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Alexandra Okada/Open-UK
Ana Amélia Carvalho/ Universidade de Coimbra
Ana Paula Correia/Universidade de Ohio
Conselho editorial Bento Silva/Universidade do Minho
Eliane Schlemmer/Unisinos
Eugênio Trivinho/Puc-SP
Gilda Helena B. de Campos/Puc-Rj
Katia Morosov Alonso/UFMT
Lucia Santaella/PUC-SP
Contar nesta presente edição com múltiplas alianças de redes de apoio, solidariedade e
afeto é uma das maneiras que encontramos também de viver juntos/as/es (re)existindo e
insurgindo coletivamente, sobretudo em tempos marcados pelas letalizações das diferenças e
dilatação das forças reacionárias de viés fascistas e ultraneoconservadoras. Nessa caminhada
de alianças, contamos com as parcerias do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), da
Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e de pesquisadores/as de diversas
aréas do conheicmento.
Esta edição conta com artigos de pontos de vista plurais, os quais encontram-se
distribuídos nas Seções de Número Temático; Fluxo Continuo; Entrevistas/Conversas;
Produções Artísticas e Culturais; Relatos de Experiência; Resumo de Teses e Dissertações;
Pontos de vista, conforme expostos a seguir:
Na Seção Temática “TRANSINSURGÊNCIAS POLÍTICAS: (RE)EXISTÊNCIAS EM
REDE”, as organizadoras tiveram como objetivo ampliar discussões e problematizações
1
1Mestranda em Educação - ProPEd - UERJ, licenciada em Pedagogia (UERJ) e Letras - Inglês (UNESA) e
graduanda em Letras - Português (UNESA). Membro do Grupo de Estudos em Gênero, Sexualidade e(m)
Interseccionalidades na Educação e(m) Saúde - GENI, membro ANTRA e equipe de coordenação IBTE. Bolsista
CNPq.
2
Doutoranda em Educação PPGE/UFSC linha de pesquisa Sujeitos. Processos Educativos e Docência/Ensino e
Formação de Professores. Co-fundadora do NeTrans.
3
Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Educação ProPed/UERJ - Linha Cotidianos, Redes Educativas
e Processos Culturais. Mestre em Educação pelo ProPed/UERJ. Especialista em Educação com aplicação da
Informática pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-2010). Graduação em Pedagogia pelo Centro
Universitário da Cidade do Rio de Janeiro (2007). Membro do Grupo de Estudos em Gênero, Sexualidade e(m)
Interseccionalidades na Educação e(m) Saúde (Geni) e do Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura (GPDOC),
ambos vinculados ao ProPEd/UERJ. Bolsista FAPERJ.
CUARTAS, Francisco Quiñones; BELEN, Sil; e CELIS, Escuela Mocha. PERSONAS TRANS
Y EDUCACIÓN EN ARGENTINA, LA EXPERIENCIA EDUCATIVA DE
MOCHA CELIS. Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019,
p. 217-231. DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449
MATTOS, Carmen Lúcia Guimarães de; CAETANO Márcio Rodrigo Vale; e CASTRO, Paula
Almeida de. CONVERSA SOBRE EDUCAÇÃO COM RAEWYN CONNELL.
Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019, p. 198-212. DOI:
https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42448
SANTOS, Ariel Dorneles Dos; e DUQUE, Tiago. “EU GOSTO MESMO É DAS BIXAS”:
REFLEXÕES SOBRE IDENTIDADE AO SOM DE LINN DA QUEBRADA.
Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019, p. 13-37. DOI:
https://doi.org/10.12957/redoc.2019.40522
SILVA, Maria Eduarda Aguiar da. A DIVISÃO NO ESPORTE DEVE SER SEPARADA POR
SEXO OU GÊNERO. Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de
2019, p. 236-249. DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39707
Boa Leitura!
RESUMO
O presente trabalho apresenta uma análise do funk e do discurso utilizado por Linn da Quebrada, moradora de
uma comunidade da Zona Leste da cidade de São Paulo. Em suas palavras, ela se identifica como “uma bixa,
transviada, uma bixa travesti, periférica, preta que está experimentando o corpo e está se jogando”. A metodologia
utilizada é a etnografia virtual, através de videoclipes e entrevistas da cantora disponíveis em diferentes canais na
plataforma do YouTube. O referencial teórico é, principalmente, o pós-estruturalista, com ênfase na perspectiva
queer. Considerando a forma como Linn da Quebrada refere-se ao seu próprio corpo e identidade, percebe-se a
priore que ela parece apresentar uma dissidência dentro da dissidência por não ser cisgênera e também borrar o
que se entende por ser travesti, contudo, essa ideia é problematizada devido ao fato de em alguns momentos borrar
a norma, mas, em outros, reiterá-la. Sua experiência de identificação parece ser como a de um elemento que não
cabe em nenhuma categoria, mas que se apossa das que foram designadas e as subverte, contestando e
apresentando novas possibilidades, novos processos de inteligibilidade/reconhecimento.
ABSTRACT
This work presents an analysis of the funk and discourse used by Linn da Quebrada, a resident of a community in
the East Zone of the city of São Paulo. In her words, she identifies herself as "a bixa, transviada, a bixa transvestite,
periférica, black, who is experiencing the body and is playing." The methodology used is virtual ethnography,
through video clips and interviews of the singer available in different channels on the YouTube platform. The
theoretical reference is, mainly, the poststructuralist, with emphasis on the queer perspective. Considering the way
Linn da Quebrada refers to her own body and identity, it is perceived that she seems to present a dissidence within
the dissidence because she is not a cisgênera and also to erase what is meant by being a transvestite, however, this
idea is problematized due to the fact that at times it erases the norm, but in others it reiterates it. His experience of
identification seems to be like that of an element that does not fit into any category, but that takes hold of those
that have been assigned and subverts them, challenging and presenting new possibilities, new processes of
1
Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-4534-3501
2
Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP e professor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1831-0915
intelligibility/recognition.
RESUMEN
El presente trabajo presenta un análisis del funk y del discurso utilizado por Linn da Quebrada, residente de una
comunidad de la Zona Este de la ciudad de São Paulo. En sus palabras, ella se identifica como "una ‘bixa’,
transviada, una ‘bixa’ travesti, periférica, negra que está experimentando el cuerpo y se está jugando". La
metodología utilizada es la etnografía virtual, a través de videoclips y entrevistas de la cantante disponibles en
diferentes canales en la plataforma de YouTube. El referencial teórico es, principalmente, el post-estructuralista,
con énfasis en la perspectiva queer. En cuanto a la forma en que Linn da Quebrada se refiere a su propio cuerpo e
identidad, se percibe la priore que ella parece presentar una disidencia dentro de la disidencia por no ser cisgénera
y también borrar lo que se entiende por ser travesti, sin embargo, esa idea es problematizada debido al hecho de
que en algunos momentos borrar la norma, pero, en otros, reiterarla. Su experiencia de identificación parece ser
como la de un elemento que no cabe en ninguna categoría, sino que se apuesta de las que fueron designadas y las
subvierte, contestando y presentando nuevas posibilidades, nuevos procesos de inteligibilidad/reconocimiento.
Introdução
Nos últimos anos tem crescido a visibilidade de artistas trans4 até então consideradas/os à
margem da sociedade devido a não adesão aos padrões hegemônicos no que diz respeito a
gênero, sexualidade, estética e performance no geral. Contudo, essa visibilidade não tem apenas
dado voz/visibilidade/reconhecimento midiático a essas pessoas, suas representações
identitárias e seus perfis considerados inadequados. Ela também tem levantado
questionamentos a despeito das identidades não heteronormativas5 e não cisgêneras6, que
comumente são alocadas como monstros que devem ser temidos por tensionarem a estabilidade
social.
4
As travestis/transexuais: Mc Xuxu, Liniker, Assucena e Raquel Virgínia da banda As Bahias e a Cozinha
Mineira; e as Drag Queens: Pabllo Vittar, Gloria Groove, Lia Clark. Disponível em:
<https://mdemulher.abril.com.br/cultura/11-artistas-brasileiros-que-estao-quebrando-todas-as-regras-de-
genero/>. Acesso em: 14 jan. 2019.
5
Warner (1991 apud SANTOS e DINIS, 2013) define a heteronormatividade como um processo de legitimidade
e privilégio que se relacionam com a heterossexualidade por pressupor essa como algo "natural".
6
Vergueiro, em entrevista para Ramírez (2014), considera o termo cisgeneridade um ponto analítico para se
contestar a naturalidade com que as pessoas não trans são legitimidadas, permitindo um olhar descolonial do
gênero, inclusive, na substituição desse termo por outros como "mulher biológica", "homem de verdade",
deslocando também a hierarquia e a naturalidade construída. É, portanto, a cisgeneridade não somente uma
classificação de uma certa adequação de um sujeito quanto ao gênero que lhe é classificado a partir da genitália-
sexo, mas uma categoria política de revisar o que se considera como padrão e essencial.
Em uma tentativa de oposição a isso, Miskolci (2010) aponta que os movimentos sociais
organizados pela população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), por
exemplo, apresentam discursos que tentam igualar essas identidades dissidentes com as ditas
normais. Discursos esses, muitas vezes, pautados por um essencialismo que tenta colocar no
mesmo grau de legitimidade as identidades LGBT das ‘cis-heteronormativas’, caracterizando-
as como inerentes aos sujeitos e não adquiridas, construídas, mutáveis.
Linn da Quebrada7, 28 anos, moradora de uma comunidade da Zona Leste da cidade de São
Paulo, é um exemplo das atuais possibilidades de identidade que tende a fugir desses dois
grupos identitários apresentados no parágrafo anterior (heteronormativos e cisgêneros). Ela tem
ganhado grande destaque, sobretudo no campo da música. Com uma estética fora dos padrões
– sendo uma travesti negra sem silicone, utilizando ambas as roupas consideradas femininas e
masculinas, comumente com cabelos coloridos e/ou com penteados afro (como trança nagô,
dread), mas às vezes careca. Linn destoa do padrão tanto de uma suposta normatividade ‘cis’
quanto de um perfil esperado de travesti. Ela defende a necessidade de se mostrar como deseja,
independente dos padrões: “A estética é uma experiência política que tem total influência sobre
os nossos afetos. A maneira como você se veste esteticamente gera efeito não somente em
outras pessoas como gera efeitos em você também”8.
Em suas palavras, ela se identifica como “uma bixa transviada, uma bixa travesti, periférica,
preta que está experimentando o corpo e está se jogando”9. Ou seja, Linn se apropria, tal como
nos remete a teoria queer10, de nomes considerados xingamentos na construção da imagem de
7
Linn sempre se apresenta com a backing vocal Jup do Bairro que também se coloca como “bixa travesti”. Jup é
uma figura importante nas performances, pois sendo negra e gorda apresenta e fala de seu corpo em forma de
protesto de um corpo livre, bem como auxilia Linn nas criações das músicas. No entanto, aqui, por questões de
recorte do “objeto” de estudo, focaremos apenas em Linn.
8
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jBEKL9lnYGA>. Acesso em: 14 mar. 2017.
9
Idem.
10
Teoria queer é um termo usado por Teresa de Laurentis em uma conferência em 1990 sobre a sexualidade de
gays e lésbicas. Antes, a categoria acusatória/estigmatizada ‘queer’, sem tradução para o português, foi apropriada
pelo movimento social anti-assimilacionista americano diante da pauta mais conservadora do Movimento Gay.
Hoje em dia, a teoria parte da pluralidade da diversidade de identidades encontradas na sociedade, é, por isso, uma
teoria que questiona os conceitos de identidades essencializadas, voltando-se não somente para as identidades
mais marginalizadas, como também aos processos de construção e desconstrução identitárias, revendo conceitos
de poder da divisão binária dos sexos/gêneros (LOURO, 2001). Contudo, o termo queer se refere, em inglês, a
sua identidade, mas vai além ao quebrar expectativas de desejos, discursos e comportamentos
a ela estereotipados.
A diferenciação de Linn de outras travestis tem relação direta com as mudanças históricas
que a experiência de ‘montagem’ do corpo travesti tem sofrido. ‘Montagem’ refere-se ao ato
de vestir-se com roupas consideradas de mulher. Benedetti (2000), ao estudar travestis, a
classificou como um processo de manipulação e construção de uma apresentação que seja
suficientemente convincente, sob o ponto de vista delas, de sua qualidade feminina, do que é
entendido por elas como feminino. No caso desse grupo, o convencimento é garantido também
através de outras ações que podem compor a ‘montagem’ em um sentido mais amplo, como os
hormônios femininos adotados por elas desde o final da década de 1960 (GREEN, 2000), e a
técnica de aplicação do silicone líquido que, apesar dos avanços no campo das cirurgias
estéticas, continua sendo comum. Segundo Silva (1993), todo o esforço delas é em busca de
um “passar por”11 mulher não trans: “Seus êxitos e motivo de orgulho estão contidos em tal
possibilidade” (Idem, p. 129). Vale ressaltar que esse é um modelo encontrado pelo autor da
experiência travesti que se apresentava e se reiterava em suas pesquisas sem ser,
necessariamente, uma tentativa de essencializar essa identidade. Assim, hoje, na ‘montagem’
realizada pela maior parte das travestis, ainda que tenha sido cada vez mais comum uma nova
geração de travestis lidar de forma menos definitiva com as transformações corporais
(DUQUE, 2011), há uma busca de naturalidade que comumente Linn não tem.
uma população mais específica, população essa que não pode ser restrita apenas aos LGBTs, mas a todas as
pessoas que de alguma forma tornam-se dissidentes por conta de suas práticas, experiências.
11
Para uma leitura mais aprofundada sobre o ‘passar por’, inclusive sobre as justas motivações em torno desse
processo de passabilidade por experiências de menos vulneráveis diante da violência e do preconceito, ler Duque
(2017).
acesso e interação com o conteúdo produzido por Linn, sendo uma das mídias sociais de grande
impacto percebido pelo grande número de acesso à plataforma (leia-se aos vídeos) e pela
quantidade de material disponível. Essa plataforma é aqui utilizada como processo de acesso
ao conteúdo e, em certa medida, um ponto de problematização, mas não é o elemento principal
da análise por conta da notória fama que a cantora parece ter na internet. Contudo, torna-se
importante mencionar que essa plataforma possui complexidades, projetos de agenciamentos,
mecanismo políticos e de disputa de poder, mas que não cabe a esse estudo se aprofundar.
A busca pelo conteúdo relacionado a Linn se deu ao digitar o nome dela na plataforma e
acessar tanto os conteúdos que aparecem como ‘Relevância’ pelo YouTube, ou seja, os que
possuem mais curtidas, comentários e visualizações, como pela classificação de ‘Data de
envio’. Assim, foi possível explorar, em ordem cronológica, se houve ou não alteração na
proposta que a cantora tem apresentado, bem como quais espaços ela passou a acessar. Uma
maior evidência da sua imagem possibilitou que ela fosse entrevistada em canais que não estão
diretamente relacionados com temática sobre identidade, gênero, sexualidade, funk etc.
Portanto, a incursão na plataforma ocorreu de maneira a acessar a cantora nos mais variados
espaços possíveis, tendo em vista que no próprio canal dela comportam especificamente os
videoclipes e shows.
Essa análise se vincula ao processo de etnografia virtual. Segundo Adriana Amaral (2010),
ele se realiza via uma reflexão imersa no campo digital (no caso, a internet) percebendo a
relação e relevância desse campo para com a pesquisa em si. Tendo em vista que o acesso ao
conteúdo da cantora parte de um ambiente onde esse está disponível no YouTube e não está de
modo offline, ou seja, independente de internet, a busca foi sempre online, verificando assim
as possibilidades de mudanças do conceito de ‘Relevância’ dos vídeos do YouTube que são
constantemente atualizados.
Apesar da teoria queer não propor necessariamente uma nova identidade, mas sim a
legitimação das experiências já existentes, muitos sujeitos têm se apropriado dela – apesar de
muitas dessas experiências dissidentes anteverem a concepção teórica –, para proclamar-se
como uma possibilidade em meio a um sistema de produção e manutenção de uma lógica
hegemônica ‘cis-heteronormativa’ (vale ressaltar, contudo, que alguns sujeitos também buscam
fazer parte dessa hegemonia). Um exemplo é a Linn da Quebrada que, através do funk12,
demonstra a desestabilização desse sistema nos revelando sujeitos até então não reconhecidos
socialmente, não legitimados, ressignificando, evidenciando subjetividades e estabelecendo
conexões distintas de suas diferenças sem cair em uma visão de apenas submissão e
desigualdade. Ela retrata, em suas músicas, esses sujeitos como sendo as ‘bichas’ afeminadas,
as ‘bichas’ pretas, as ‘bichas’ travestis, as pessoas trans e todos os corpos que não cabem em
um padrão normativo.
Assim, Linn se torna potente para pensar esses sujeitos existentes, mas historicamente
apagados dos locais de maior reconhecimento, sujeitos tidos como não inteligíveis, mas que
precisam ser vistos como tendo agência, isto é, a capacidade de agir a partir da mediação
cultural e social, construídas a despeito de uma negociação (PISCITELLI, 2008). Agência essa
que no caso dela é confeccionada junto ao funk, que fala a partir da margem e que tende a
contribuir significativamente com o processo de reconhecimento.
No clipe “Mulher”13, Linn apresenta a personagem central de sua história: “De noite pelas
calçadas / Andando de esquina em esquina / Não é homem nem mulher / É uma trava feminina”.
12
Facina (2009) retrata que o funk, como cultura de massa, é atualmente assimilado por diversas camadas da
sociedade, recebendo uma atenção especial da população jovem. Apesar disso, o funk ainda é um estilo
estigmatizado no âmbito social por conta da origem (nas favelas) e das temáticas abordadas, bem como de quem
canta como Mc e/ou (re)produz como Dj. É ainda no funk, sobretudo o carioca, perceptível a história da origem
associado à diáspora africana, o crescimento da música negra ligada à favela, e segmento musical mais responsável
por construções identitárias étnicas e de classe.
13
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-50hUUG1Ppo&ab_channel=LinndaQuebrada>. Acesso
em: 09 nov. 2018.
Essa introdução é importante porque Linn primeiramente aponta que não é uma mulher ou
homem, mas sim uma travesti. Conforme Oliveira e Grossi (2014), no decorrer dos últimos
anos, as categorias travesti e transexual passaram por definições e reconstruções que agiam em
decorrer do tempo histórico e, principalmente, dos grupos que tentavam legitima-las ou
deslegitima-las, como os discursos biomédicos, religiosos, políticos etc. Essa aparente
relativização do termo é crucial para se entender que esse sujeito travesti para a cantora não é
estático, mas segue em consonância com as discussões políticas da atualidade. Essa travesti
sendo feminina não destoa necessariamente de um senso comum do que seria uma travesti, mas
como continua Linn “Ela é diva da sarjeta, o seu corpo é uma ocupação / É favela, garagem,
esgoto e pro seu desgosto / Está sempre em desconstrução”, essa travesti é um sujeito se
descontruindo e esse processo aqui parece estar imbricado justamente nas suas experiências na
“pista”14: “Nas ruas pelas surdinas é onde faz o seu salário / Aluga o corpo a pobre, rico,
endividado, milionário”.
No campo político, Linn nos permite pensar as diversas violências atreladas ao grupo que
não é considerado normal por conta da identidade de gênero e/ou sexualidade. Quando ela canta
14
Termo regularmente usado por travestis e transexuais para falar sobre a prostituição, seja o local onde ocorre o
encontro com os/as clientes, seja o ato de prostituir (“fazer pista”).
15
“Amapô” é o mesmo que “mulher”, geralmente usado para as mulheres cisgêneras.
“Bicha estranha, louca, preta, da favela / Quando ela tá passando todos riem da cara dela” na
música “Bixa Preta”16, é o corpo marcado pela sexualidade, etnia/raça, geografia, socialmente
marginalizado que denuncia esse não caber em muitos espaços sociais e, por isso, recebe o
deboche. Miskolci (2006) chama a atenção que as normas e convenções sociais tendem a
hegemonizar os corpos e identidades, hegemonia essa que deve ser atendida a partir de um
padrão já determinado pela esfera dominante. Quando um corpo, uma identidade aceita esse
processo é como um conformismo às normas estabelecidas. Se essa condição não for aceita, o
corpo denuncia a diferença e essa diferença é cobrada em forma de preconceito. Entretanto, é
justamente na apropriação e transformação desses conceitos que causam o riso/deboche que
Linn propõe um fortalecimento de si: “A minha pele preta, é meu manto de coragem /
Impulsiona o movimento / Envaidece a viadagem” e se prepara para o que ela chama de
destruição do “macho alfa”. Essa destruição não é apenas da norma de um ser homem, mas das
redes econômicas e afetivas que esses têm feito e mantido durante anos em detrimento das
mulheres e do feminino, provocando uma dependência a eles, bem como procurando manter
uns aos outros no topo de um certo status social. Vale ressaltar aqui que esse “macho alfa”
aparece em várias músicas da Linn, mas ele não deve ser entendido necessariamente como o
algoz nas situações por ela apresentada. Porque, em grande medida, ele é o ser que deseja essa
figura “estranha, louca, preta da favela”, flerta com ela, mas ainda reproduz o “cis-tema”17.
Esse algoz pode também ser entendido como as normas reguladoras que a cantora tem
reiteradamente denunciado e questionado, não necessariamente um indivíduo específico.
Ao dizer que se identifica como uma “transviada”, que tem o desejo voltado
preferencialmente para as “bixas” afeminadas, e na construção da imagem e exposição da
corporalidade fazer uso de artifícios que desconfigure uma proeminência de um gênero
atribuído ao ‘sexo’18, Linn abala as normas sociais naturalizadas, normas de gênero e
16
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VyrQPjG0bbY&ab_channel=LinndaQuebrada>. Acesso
em: 09 nov. 2018.
17
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=k5xckO1WtVc>. Acesso em: 04 mar. 2018.
18
Entendemos aqui o ‘sexo’ como uma representação simbólica da genitália e que a este é atribuído uma conduta
socialmente instituída, conforme Butler (2003).
comportamento, de desejo pelo ‘sexo oposto’ e prática sexual socialmente inteligíveis como as
que Butler (2003) classifica como Matriz de Inteligibilidade.
Matriz essa organizada culturalmente e naturalizada que retrata uma certa harmonia entre
nascer com uma genitália, reproduzir certos comportamentos correspondente a essa genitália e
se relacionar afetivo e sexualmente com um ‘sexo’/gênero que seja oposto, como uma
heterossexualidade compulsória. Essa noção não corresponde à figura e práticas de Linn. A
desestabilidade dessa matriz provocada por Linn a conduziria para uma suposta dissidência
dentro da dissidência. Entendendo que a categoria travesti é vista como uma certa dissidência
da ‘cis-heteronormatividade’, existira na experiência de Linn uma dissidência por não ser ‘cis’.
Mas, por outro lado, em certa medida, mas não necessariamente, há travestis que ainda
procuram reproduzir normas e convenções sociais como se fossem ‘cis’, geralmente em busca
de uma passabilidade, experiência essa que aloca Linn também como dissidente, pois, como já
discutido, isso não corresponde ao perfil de Linn. Assim, poder-se-ia pensar na existência de
uma possível dissidência dentro da dissidência, isto é, da própria categoria travesti.
Conforme dito, as travestis ao longo dos anos procuraram uma assimilação com um corpo
lido socialmente como feminino. Ao fugir disso, e ainda reivindicar essa categoria, Linn amplia
19
A norma não é algo sem força sobre as experiências humanas, sejam de travestis ou não. Isso fica evidente
quando, durante a finalização desse artigo, via mídias sociais, descobriu-se que Linn iniciou usos de hormônios
femininos, tão recorrente entre travestis que buscam responder às expectativas de serem femininas a partir da
norma. Pesquisas futuras poderão analisar o impacto dessa decisão sob a discussão que estamos desenvolvendo
aqui.
Outra forma de ver Linn é como ela se proclama, sendo alguém que faz “terrorismo de
gênero” 20
. Assim, Linn classifica sua existência como a apresentação e vivência de uma
estética violenta diante do “cis-tema”, “cis-tema” esse que tenta impor uma forma de vida
específica para os sujeitos. A proposta da cantora é a de tornar sua vivência de gênero mais
radical, experimentando, construindo e desconstruindo possibilidades para além das
hegemônicas. Esse “terrorismo” é aqui visto como uma das principais características da
cantora, que reinventa formas de ser apropriando-se das que lhe são designadas e proibidas.
Linn, ao falar de sua estética, nos mostra algo que passa pelo animalesco: "Eu busco causar
um pouco de estranhamento para mim mesma e perceber como a minha estética transforma
também a minha experiência e as minhas relações"21. Ela fala sobre a experimentação que
passou a fazer ainda na época da escola de teatro. Sua experimentação passava principalmente
pelas peças consideradas femininas e por objetos diversos. Para ela, esse processo ainda é
importante, pois consegue notar que a forma como se veste altera completamente a sua relação
com as outras pessoas, os olhares na rua e a relação com a família. Isso segue em consonância
com esse “terrorismo de gênero” que Linn evidencia como sendo uma violência ou uma espécie
de terrorismo reverso, tendo em vista que para ela a violência já atinge os corpos de pessoas
20
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=k5xckO1WtVc>. Acesso em: 04 mar. 2018.
21
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Kf_idnHJLbs&feature=youtu.be>. Acesso em:
18 nov. 2018.
No campo artístico, Linn se utiliza do funk, ritmo musical carregado de estigmas, para
passar uma mensagem de desconstrução e subversão da marginalização por meio da sua
agência. Entretanto, essa desconstrução e subversão não demanda necessariamente a
construção, seja por imposição ou negociação, de uma nova imagem, identidade, mas na
reclamação desse sujeito estranho, não normativo, que se mostra vivo e subjetivo tal como
outras possibilidades. Inclusive, é nesse espaço do funk que Linn possibilita fazer uma reflexão
epistêmica desse estilo musical enquanto um espaço que, apesar dos estigmas em relação ao
feminino e a marginalização, proporciona a ela contestar normas sociais produzidas e/ou
reproduzidas nesse espaço e se tornar reconhecida em diversos outros espaços onde o funk
talvez não chegasse, como fazer uma pequena turnê na Europa.
(Des)construção, (re)significação
Uma identidade dissidente, abjeta, abarca diversas identidades e corpos que não são
considerados importantes, que tem até mesmo a condição de humanidade questionada
(BUTLER, 2001). Essas identidades são recusadas pelo outro devido a oposição à norma, mas
não ocorre necessariamente a sua extinção, pois ainda se torna necessário esse referencial para
manter o que se construiu como normal. A abjeção tende a negativar a experiência dissidente
22
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=k5xckO1WtVc>. Acesso em: 04 mar. de 2018>.
Acesso em: 15 nov. 2018.
enquanto sujeito, limitando ou recusando a sua autonomia. Para Linn, a sociedade precisa de
alguém que fuja da norma para se entender o que é desprezível, rejeitado. É projetada uma
exceção para se entender a regra23.
Linn é caracterizada por um corpo dissidente, corpo esse que se rebela contra a norma e que
procura reivindicar o direito de existir, caracterizando assim a instabilidade do gênero incitada
por Butler (2003) na alegação de que corpos ditos masculinos podem ser femininos e corpos
ditos femininos podem ser masculinos. Isso porque a autora aponta para a construção cultural
do gênero e da sua capacidade de perpassar por ambos os ‘sexos’ binários. É sendo dissidente
nessa lógica, no que tange à expressão de gênero e à sexualidade que Linn confecciona sua
identidade.
Desde o século XVIII a sociedade tem vivido uma espécie de ‘repressão sexual’. Entretanto,
essa ‘repressão’ foi, em certa medida, o motor de produção de sexualidade. Esse certo
impedimento de se falar sobre sexo e da prática, na verdade, é o que fez proliferar os discursos
sobre o sexo. Entretanto, instituições como família, igreja, escola buscavam o poder, o controle
do indivíduo e não necessariamente a redução da prática do sexo (FOUCAULT, 1988). É,
portanto, para Foucault um momento importante de disputas pelo controle e poder na sociedade
e não necessariamente de uma repressão, o que pode colocar em suspenção o termo, mas que
de alguma forma refletiu nas condutas sociais dos indivíduos.
23
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RgTbQH3N6S8&t=16s>. Acesso em: 15 mar.
2017.
24
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=g3w-t585D54&ab_channel=Showlivre>. Acesso em: 09
nov. 2018.
específico de poder. Esse disciplinar é esquematizado de forma a fazer com que o indivíduo
não o conteste, que ele o naturalize e acabe se tornando o vigia de si mesmo, mas não de modo
conformista, pois os indivíduos estão condicionados em estrutura e em diversas esferas de
poder. A feminilidade partindo de uma figura designada socialmente como masculina é então
freada e condicionada a moldes ‘universais’.
Linn acredita que o funk, até mesmo pela marginalização social relacionada juntamente aos
campos de reprodução desse ritmo (como as favelas), também produza discursos sobre o ‘sexo’,
produz e reproduzir sexualidade, mas sobre um desmerecimento maior em relação aos outros
ritmos musicais por conta das pessoas que cantam ou são retratadas estarem geralmente em
uma condição marginalizada25. Assim sendo, a aproximação com o ritmo também esbarra nos
próprios interesses da cantora em falar sobre temáticas específicas, para além das suas
possibilidades de acesso. O funk produzido por ela traz nas letras incitação ao reconhecimento
de si, a dominar e conhecer o próprio corpo, bem como o questionamento dos desejos
construídos pela sociedade.
A sociedade que vigia e disciplina, muitas vezes via a punição, é concebida através de
‘papeis’/expectativas, sujeitos realizando performances de questionar a identidade de outros
sujeitos que não se enquadram dentro do que o sistema delimitou. Para Linn, a denúncia que o
sujeito faz, como em chamar alguém de ‘viado’ na rua, é como apontar o abjeto. O abjeto
“relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas ‘vidas’ e cuja
materialidade é entendida como ‘não importante’” (PRINS; MEIJER, 2002, p. 161). Dito de
outro modo,
As imagens corporais que não se encaixam em nenhum dos gêneros tidos como em
oposição, masculino e feminino, ficam fora do humano, a rigor, constituem o domínio
do desumanizado e do abjeto, em contraposição ao qual o próprio humano se
estabelece (Idem, 2002, p. 162).
25
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=X_oQL59VUu0&t=887s>. Acesso em: 15 mar.
2017.
Assim, esse ‘viado’ ecoado na rua serve para anunciar que esse outro está descumprindo
uma norma, assim ele (o vigia) também tem a oportunidade de reafirmar o seu ‘papel social’.
Segundo Linn, o vigia “tem que denunciar e fazer com que as outras pessoas percebam que
aquilo ali não é homem porque quando ele faz isso, ele está dizendo ‘porque eu sou homem e
o meu dever é denunciar’”26.
No que tange a escolha do funk para se expressar, Linn afirma que a representatividade do
feminino sempre foi desvalorizada em diversos ritmos musicais, entretanto, é no funk que é
possível levantar uma voz, constituir um diálogo com a periferia, além de ser esse um dos
ritmos que dão voz para falar sobre as vivências de identidades até então silenciadas pela
sociedade, apesar dessa possibilidade não ser fundamentalmente uma característica do funk,
conforme será discutido no próximo capítulo27.
26
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RgTbQH3N6S8&t=16s>. Acesso em: 15 mar.
2017.
27
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=owO2jQndWX8>. Acesso em: 15 mar. 2017.
Entretanto, mesmo com o sucesso, o funk não tinha uma preocupação significativa
com a comunicação, podemos dizer que poucos eram os artistas que trabalhavam com
videoclipes, edições especiais, raras exceções, como a dupla Claudinho e Buchecha
tinham essa preocupação. (2014, p. 5)
É mediada por esse ritmo musical que Linn compartilha a própria história, casualidades,
preconceitos sofridos por ser “travesti preta e periférica”, mas ao contrário do que era nos anos
2000, investindo em parcerias com outras/os artistas LGBTs, bem como em videoclipes e
participações em programas de TV e pela internet, sobretudo no YouTube. Para ela, a música
é um movimento de ocupação, de resistência, de existência e o funk é uma explosão cultural,
mas ela ressalta que até mesmo essa performance de cantora não é algo fixo: “Eu sei que estou
cantora, que estou ocupando esse espaço, mas eu não sei qual é o próximo passo”28. É a
instabilidade e o movimento os combustíveis utilizados por Linn.
28
Entrevista disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=A9KKFSyvlS4>. Acesso em: 15 de mar. 2017.
Na perspectiva aqui abordada, essa crítica culmina com a que a cantora propaga no funk,
crítica essa que contesta a lógica binária por conta da normatividade compulsória que tentam
lhe impor para um se adequar ao considerado normal, como quando a cantora diz em
“Pirigoza”29: “Então olha só, doutor! / Saca só que genial / Sabe a minha identidade? / Nada a
ver com xota e pau!”. A análise permite compreender os processos de resistência, bem como a
apropriação do funk como performance dirigida e/ou mediação discursiva em uma constituição
de si mesma.
O interessante de pensar a Linn é desde quando ela começa no cenário musical, aliás,
de como ela chega nesse local. Após ter passado por companhias de teatro, Linn começa a
experimentar a música e, mais especificamente, o funk, como sendo o ritmo musical que ela
percebe a possibilidade de expor suas inquietudes em relação aos atravessamentos que lhe
atingem diretamente. Linn salienta que isso tem ocorrido de forma orgânica, pois ela nunca
planejou ser cantora. A ideia de cantar surge logo após ver uma amiga do teatro que começou
a fazer música. Assim, resolveu tentar e foi conhecendo pessoas e fazendo parcerias de criação
até o lançamento do disco Pajubá. Esse disco foi realizado com financiamento coletivo através
de um site. Com uma meta de R$ 45 mil, Linn arrecadou R$49.980,00 30 para produzir o disco
que foi lançado no final de 2017.
Vale ressaltar que o funk produzido pela cantora não é como o funk analisado por
Monteiro (2014), isto é, dos anos 70 ou de finais da década de 2010, em que as 'batidas' eram
reconhecidamente/exlusivamente do funk. Linn mescla essas 'batidas' do funk com outros
ritmos musicais que permite uma flexibilização de sua música/harmonia e, inclusive, a permite
acessar novos espaços com esse estilo.
29
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7kZ4Xh0mhik&ab_channel=LinndaQuebrada>. Acesso
em: 10 de nov. 2018.
30
Financiamento disponível em: <https://www.kickante.com.br/campanhas/linn-da-quebrada-bixa-pode-fazer-
um-pedido-0>. Acesso em: 18 de nov. 2018.
Apesar de não ser uma artista que produz para/na internet, Linn se destaca nessa rede,
principalmente com o primeiro videoclipe (“Enviadescer”31) divulgado no YouTube, sendo o
primeiro passo a nível nacional de reconhecimento do seu trabalho enquanto artista, performer.
A música que até então estava em um processo de experimentação, torna-se o motor de
articulação e manifestação política de Linn.
Um dos conceitos de Butler (2015) para pensar o sujeito é o desejo. Não só o sujeito ou
não necessariamente o sujeito, mas a agência desse sujeito, pois é a atividade, a consciência
reflexiva de resistir e/ou subverter convenções que consiste na caracterização da agência. Para
a autora, é o desejo o motor que vai guiar ou impulsionar a mudança, que vai desestabilizar o
sistema convencional. Linn propõe o funk como uma possibilidade de criar ou recriar os seus
desejos, desejos esses que as músicas geralmente não produzem devido a uma ‘cis-
heteronorma’ que canta sobre corpos e desejos hegemonicamente legitimados.
Sobre essa produção do desejo, Linn contesta “a minha história não é contada, os meus
desejos não são criados, os meus afetos, os meus desejos sexuais, esses ficam mantidos
escuro”32. Foi partindo dessa necessidade de se ver na música, de se reconhecer nas letras e
perceber possibilidades de afeto mais próximas a sua realidade que a cantora começa a produzir
no funk, mas uma produção no sentido de contar histórias e não necessariamente de criar novas,
31
Disponível em: <https://youtu.be/saZywh0FuEY>. Acesso em 10 nov. 2018.
32
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=X_oQL59VUu0&feature=youtu.be>. Acesso
em: 10 nov. 2018.
pois para a cantora, a história já existe, só não é declarada, cantada, bem como os desejos. O
funk torna-se a ferramenta de contar histórias fazendo emergir questões que já existem para um
determinado seguimento, mas que são abafadas ou silenciadas. Isso não significa
necessariamente que o funk é um espaço inclusivo, muito pelo contrário, como apontado, a
problemática envolvendo esse ritmo também diz respeito a seus posicionamentos considerados
machistas em relação ao feminino. O que se torna relevante nessa questão é compreender que
o ritmo não está fechado em si mesmo, o crescimento e sucesso de uma travesti nesse campo é
um exemplo da incongruência de um paradigma visto como intrínseco de que o funk só poderia
ter uma forma.
Tanto a estética quanto a música de Linn provoca uma expansão da dimensão de “ser
travesti” ou daquilo que é entendido como tal. Isso porque Linn não é uma travesti que tem
‘peitão’, ‘bundão’, toda siliconada, como poderia recorrer um conceito comum, e nem sempre
lhe é dado o reconhecimento de uma identidade feminina. A concepção de suas performances
passa por roupas e adereços considerados masculinos e roupas e adereços considerados
femininos, e essa não tem sido necessariamente uma tentativa da Linn de se abster de um
gênero, mas sim de problematiza-lo.
Na música “Enviadescer”34, Linn convoca o “macho discreto” para dizer que o real
interesse dela não é nele, mas sim nas ‘bichas’ porque ela gosta “das que são afeminadas / Das
que mostram muita pele, rebolam, saem maquiada”. Esse momento é onde a Matriz de
Inteligibilidade perde força, pois Linn não está preocupada em reiterar um papel feminino que
se harmonizaria afetivamente com o masculino, pelo contrário. Ela deseja, ou pelo menos
33
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=saZywh0FuEY&ab_channel=LinndaQuebrada>. Acesso
em: 09 nov. 2018.
34
Idem.
produz a ideia do desejo, por outras “transviadas” assim como ela. “Mas não tem nada a ver
com gostar de rola ou não / Pode vir, cola junto as transviadas, sapatão”. Assim, evidenciando
também que esse tornar-se “viada” não tem a ver com o gênero e/ou a sexualidade, mas com
uma manifestação política. A proposta é, portanto, se apropriar do feminino (ainda que reitere
parte da norma no sentido de identificar-se como feminina) sem que isso remeta a uma condição
de desejo pelo masculino, pois ela deixa claro “Eu não tô interessada no seu grande pau ereto”.
O clipe ainda traz cenas com várias mulheres e homens trans ou não que se misturam
entre o feminino e o masculino nos figurinos, maquiagem, performance. O que a princípio
parece ser uma manifestação na rua de identidades diversas reclamando o feminino para si.
Essa reclamação soa como a proposta de se contestar a feminilidade que geralmente é criticada
tanto nos corpos que podem manifesta-la quanto nos que devem reprimi-la, mulheres e homens
respectivamente.
Isso culmina com a apropriação de termos que seriam usados como xingamentos: viado,
transviado/a, bicha, e a quebra de expectativa de desejos, de discursos, de comportamentos que
a ela foi designada por ser uma travesti. É nesse rompimento que Linn se mostra possível para
além daquilo que ela foi estereotipada, não só quebrando a expectativa, mas reformulando as
categorias e nos apresentando possibilidades não pensadas.
Ao propor outras possibilidades, Linn tentar romper com o que ela chama de “roman-
cis35”, ou seja, uma confecção de histórias que abrangem a pessoa cisgênera e heterossexual,
sendo uma espécie de fórmula de manutenção desse status, ignorando a existência de outras
personagens que fujam desse padrão, buscando inclusive a circulação do dinheiro em
determinados espaços e arranjos familiares. Com isso, Linn procura externalizar essa
provocação de que a norma faz de se mostrar norma, quando ela conhece outras possibilidades
e até mesmo normativas dentro do mesmo “cis-tema”. Ao ser questionada sobre ser o amor
uma ferramenta de auto estímulo e ensino da população LGBT para com as pessoas devido a
35
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=m1WBvSRMgjE&feature=youtu.be>. Acesso
em: 03 set. 2018.
andarem de mãos dadas e trocarem afetos em público, Linn defende que, na verdade, o amor
existe como uma das principais ferramentas do sistema ‘cis-heteronormativo’.
Conforme Linn, “se você liga a televisão, se você vê as novelas, o grande drama ou a
grande trama das novelas é o quê? É o amor. Se você vai ler um livro o que se incentiva, o que
se busca é o amor, se você vê em um filme é o amor”36. Ou seja, para ela o amor é uma
ferramenta, mas usada geralmente por e para pessoas cisgêneras, heterossexuais, com uma
determinada classe social (para a manutenção desta). Geralmente essas personagens femininas
ou feminilizadas são alocadas como as que se interessam pelo romance/amor, e os personagens
masculinos ou masculinizados como os provedores de dinheiro. Isso é importante e interessante
porque a cantora não propaga nas suas músicas a busca por um amor romântico (como ela
denuncia ocorrer em outras instâncias), mas sim a possibilidade de se relacionar para além do
afeto, apenas sexualmente, com outras pessoas fora da ‘cis-heteronormatividade’. É como se a
‘sexualidade mais crua’ recebesse uma maquiagem mais romântica que a cantora prefere borrar
porque acredita que essa maquiagem tende a subjugar os sujeitos, sobretudo a mulher, e seus
desejos.
Considerações Finais
36
Idem.
suas críticas e as apropriações que faz tanto dos conceitos a ela aplicados, como de um discurso
mais acadêmico. Os posicionamentos e articulações parecem transpor as discussões
‘transviadas’ para o funk centrando na experiência que a cantora tem de sua condição mais
marginalizada, condição essa que a faz reverter a lógica e a impulsiona e a viabiliza como
referência.
A identidade propagada pela cantora a respeito de si mesma, mas não somente, pois
nesse processo de questionamento identitário ela expande suas reflexões para corpos que, como
o dela, estão sob uma vigia mais rígida da sociedade, permite assimilar a existência e a
experiência como articuladores da produção de si mesma e não como determinantes.
37
O documentário "Bixa Travesty", que conta a história da cantora, recebeu em 2018 o prêmio Teddy Award do
Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, um dos mais importantes na área de cinema LGBT. O
mesmo documentário recebeu 4 prêmios também no Brasil no Festival de Cinema de Brasília.
é uma figura estranha daquilo que é conhecido, escutado, visto. Sua estética e fala compõem
um sujeito que não é comum, um sujeito que brinca com o gênero e que passa muitas vezes até
pelo animalesco.
Conforme verificado no YouTube, Linn ao decorrer dos últimos 2 anos, desde o primeiro
vídeo na plataforma, passou a ser buscada para entrevistas em diversos canais que não tratam
necessariamente sobre corpo, sexualidade e gênero, mas que viram na cantora uma
subjetividade destoante que, conforme dito, conversa muito com parte dos discursos
acadêmicos sobre essas temáticas. Talvez Linn pudesse ser caracterizada com a forma de expor
os conceitos em uma linguagem mais fluída e acessível ao público, principalmente para o
público que ela canta: população LGBT, negra e periférica.
Fica manifesto pela cantora que seu posicionamento não é o de criar uma organização
de novas identidades, mas de permitir que as existentes ganhem vozes, ganhem espaços. E
apesar de sua contundente manifestação a uma destruição da norma, é preciso entender que a
proposta é de denunciar essa norma, pois ela não é necessariamente o normal e nem o ideal,
provocando deslegitimações de sujeitos e experiências. A reinvindicação passa por uma
existência que não seja pautada em um sistema de compressão sexual e generificado, mas por
uma ‘liberdade’ de existência e experiência que, em certa medida, pode reiterar a norma, como
às vezes ocorre em Linn ao fazer uso de maquiagem, salto alto, reivindicando e evidenciando
a “trava feminina”, mas que não fique fadada a ela.
REFERÊNCIAS
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026X2002000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 nov. 2017.
RESUMO
Neste trabalho, a partir da perspectiva teórica da Análise de Discurso (PÊCHEUX, 1969, 1975), temos como
proposta analisar os efeitos de sentidos produzidos pela Lei nº 11.340/2006, Lei Maria da Penha, a qual traz em
seu texto considerações que permitem a aplicabilidade desse instrumento social normativo aos sujeitos Trans
(transexuais e transgêneros) e o Projeto de Lei nº 8.032/2014, de Jandira Feghali, que amplia a proteção para
esses sujeitos. Objetivamos refletir acerca do modo como questões relativas aos gêneros e às sexualidades são
colocadas em funcionamento no discurso jurídico e dizem não só a respeito da mulher cisgênera, como também
da mulher trans, embora a travesti seja nessas legislações apagada/silenciada. Nossa finalidade, com esta
proposta, é perceber como a Lei e o Projeto de Lei compreendem e definem “orientação sexual”, “gênero”,
“mulher”, “transexual” e “transgênero”, analisando como o discurso jurídico pode, muitas vezes, impor
silenciamentos – neste caso com os travestis - aos sujeitos, mais do que garantir seus direitos.
PALAVRAS-CHAVE: Lei Maria da Penha; Projeto de Lei nº 8.032/2014; Silenciamento da travesti.
ABSTRACT
In this work, from the theoretical perspective of the Discourse Analysis (PÊCHEUX, 1969, 1975), we intend to
analyze the meaning effects produced by the law nº 11.340/2006, the Law of Maria da Penha, which approaches
in its text considerations that allow the applicability of this social normative instrument to Trans individuals
(transsexuals and transgenders) and the Bill nº 8.032/2014, by Jandira Feghali, which amplifies the protection to
these individuals. We aim to reflect on the way issues related to genders and sexualities are applied to the
juridical discourse and are concerned not only about the cisgender woman, but about the transsexual woman as
well, although the transvestite is erased/silenced. Our goal with this proposal is to realize how the Law and the
Bill understand and define “sexual orientation”, “gender”, “woman”, “transsexual” and “transgender”, analyzing
how the juridical discourse can impose silencing – in this case of transvestites – to the individuals, more than
securing their rights.
Keywords: The Law of Maria da Penha; The Bill nº 8.032/2014; Silencing of the Transvestite.
RESUMEN
En este trabajo, a partir de la perspectiva teórica del Análisis de Discurso (PÊCHEUX, 1969, 1975), tenemos
como propuesta analizar los efectos de sentidos producidos por la Ley nº 11.340 / 2006, Ley Maria da Penha, la
1
Doutoranda em Estudos Linguísticos no Programa de Pós-Graduacão em Estudos da Linguagem da
Universidade Federal do Mato Grosso, Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
Graduada em Pedagogia, Ciências Sociais e Letras, com especialização em Educação Especial: Deficiências
Múltiplas, em Educação do Campo, ambas pela Faculdade de Educação e Tecnologia da Região Missioneira -
FETREMIS, e Especialização em Docência no Ensino superior pelo Centro Universitário Barão de Mauá.
Atuando desde 2012 na Rede Estadual de Educação do Paraná. Pesquisadora da área de Análise de Discurso e
Linguística Aplicada, com ênfase nas Teorias do Discurso, Teorias de Gênero e o Transfeminismo.
cual trae en su texto consideraciones que permiten la aplicabilidad de ese instrumento social normativo a los
sujetos trans (transexuales y transgéneros) y el Proyecto de Ley nº 8.032 / 2014, de Jandira Feghali, que amplía
la protección para esos sujetos. Objetivamos reflexionar acerca del modo en que las cuestiones relativas a los
géneros y las sexualidades se ponen en funcionamiento en el discurso jurídico y dicen no sólo acerca de la mujer
cisgénera, sino también de la mujer trans, aunque la travesti sea en esas legislaciones apagada / silenciada.
Nuestra finalidad, con esta propuesta, es percibir cómo la Ley y el Proyecto de Ley comprenden y definen
"orientación sexual", "género", "mujer", "transexual" y "transgénero", analizando cómo el discurso jurídico
puede, muchas veces, imponer silencios - en este caso con los travestis - a los sujetos, más que garantizar sus
derechos.
PALABRAS CLAVE: Ley Maria da Penha; Proyecto de Ley nº 8.032 / 2014; Silenciamiento de travesti.
DIZERES INICIAIS
Neste trabalho, a partir da perspectiva teórica da Análise de Discurso (PÊCHEUX, 1969,
1975), tenho como proposta analisar os efeitos de sentidos produzidos em alguns recortes da
Lei nº 11.340/2006, Lei Maria da Penha, a qual traz em seu texto considerações que permitem
a aplicabilidade desse instrumento social normativo aos sujeitos Trans (transexuais e
transgêneros), e do Projeto de Lei nº 8.032/2014, de Jandira Feghali, que amplia a proteção
para esses sujeitos.
Tenho por objetivo refletir acerca do modo como as questões relativas aos gêneros e às
sexualidades são colocadas em funcionamento no discurso jurídico e dizem não só a respeito
da mulher cisgênera, como também da mulher trans e evidenciando como a travesti está
nessas legislações silenciada.
Na Lei, embora diversos juristas entendam que a mulher trans está sendo contemplada, não há
essa materialização (linguística) escrita no instrumento legal. Diferentemente do Projeto de
Lei nº 8.032/2014 que ressalta: “As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual e se aplicam às pessoas transexuais e transgêneros que se identifiquem
como mulheres”.
Minha finalidade, com esta proposta, é perceber como a Lei e o Projeto de Lei colocam em
funcionamento dizeres sobre os sujeitos “transexual” e “transgênero”, analisando como o
discurso jurídico pode, muitas vezes, impor silenciamentos a esses sujeitos, mais do que
garantir seus direitos. Neste trabalho, analiso especificamente dois recortes dos referidos
instrumentos legais.
UM POUCO DA TEORIA
Orlandi afirma que “o real da significação é o silêncio. E como meu objeto de reflexão é o
discurso, chego á outra afirmação que sucede essa: o silêncio é o real do discurso”
(ORLANDI, 2007, p.29). Desse modo, conforme a autora (ORLANDI, 2007, p. 29), o homem
está condicionado a significar, portanto, com ou sem palavras este está sujeito á interpretação.
Mesmo quando o sujeito silencia ou é silenciado – seja pelo por outro sujeito ou por alguma
instituição – este está produzindo sentido e significados.
Portanto, o esquecimento no 2 fala sobre as palavras enunciadas, as quais são utilizadas para
dizer sobre algo, mas que podem produzir outros sentidos, enquanto o esquecimento no 1, que
está condicionado ao inconsciente, reproduz determinado discurso em função de uma
determinada ideologia, e como esta nos afeta enquanto sujeito.
Nos recortes selecionados para este artigo, está reforçada a ideia que esse sujeito não sabe
sobre si, e que este não é capaz de dizer sobre si, constando um silenciamento do sujeito trans,
que é dito por todos, menos por ele mesmo, em função de ideologias que constituem a
sociedade,
Constata-se, com efeito, que o sujeito não pode penetrar conscientemente na zona
no2 e que ele o faz em realidade constantemente por um retorno de seu discurso
sobre si, uma antecipação de seu efeito, e pela consideração da defasagem que aí
introduz o discurso de um outro. Na medida em que o sujeito se corrige para
explicar a si próprio o que disse, para aprofundar “o que pensa” e formulá-lo mais
adequadamente, pode se dizer que esta zona no 2, que é a dos processos de
enunciação, se caracteriza por um funcionamento do tipo pré-consciente/consciente.
Por oposição, o esquecimento no 1, cuja zona é inacessível ao sujeito, precisamente
por esta razão, aparece como constitutivo da subjetividade na língua. Desta maneira,
pode adiantar que este recalque (tendo ao mesmo tempo como objeto o próprio
processo discursivo e o interdiscurso, ao qual ele se articula por relações de
contradição, de submissão ou de usurpação) é da natureza inconsciente, no sentido
Pêcheux e Fuchs me fazem refletir sobre a conceituação dos esquecimentos, dizendo que o
esquecimento no 2 é aquele da ordem do que pode ser enunciado, e porque é enunciado de tal
forma, com aquelas palavras e não outras.
A exemplo do que foi dito no parágrafo anterior a palavra “tratamento”, para se referenciar ao
processo transexualizador do sujeito, dá um sentido de enfermidade, uma vez que a
transexualidade se encontrava até o início de 2018 no rol de doenças relacionadas a
transtornos mentais sobre a sexualidade, “o esquecimento número 2” designa a zona em que o
sujeito enunciador se move, em que ele constitui seu enunciado, colocando as fronteiras entre
o “dito” e o rejeitado, o “não-dito”” "(MALDIDIER, 2003, p.42).
Ainda existe outro conceito bastante utilizado que podemos atribuir ao se referir á travestis e
transexuais, a Formação Imaginária, ou seja, as imagens ou ideais construídos socialmente
sobre aquele sujeito, ou o que se espera dele/dela enquanto um corpo que produz sentidos.
Nossa hipótese é que esses lugares estão representados nos processos discursivos em
que são colocados em jogo. Entretanto, seria ingênuo supor que o lugar como feixe
de traços objetivos funciona como tal no interior do processo discursivo; ele se
encontra aí representado, isto é, presente, mas transformado; em outros termos, o
que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que
designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles
se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro (PÊCHEUX, 1997, p. 82).
Essas são as imagens que sujeito A e sujeito B fazem de si; a imagem que fazem um do outro
são constituídas pelo inconsciente:
Para melhor esboçar as formações imaginárias, trago uma sequência discursiva, selecionada
das transcrições2 da série “Quem sou eu?”, série esta que circulou no programa Fantástico da
rede Globo de televisão, durante quatro domingos consecutivos entre os meses de março e
abril de 2017 e que abordou a transexualidade em diferentes aspectos:
Na SD 010, a qual traz a fala de uma mulher transexual com o nome não identificado, a
entrevistada diz: “era mulher, mas as pessoas não me viam assim”. A locutora (Entrevistada
mulher trans2) exemplifica, assim, o conceito de formação imaginária no enunciado destacado
por mim, na SD010, uma vez que retoma a memória da imagem do que é ser uma mulher
(imagem que ela faz de si) ao dizer “era mulher”; recupera a imagem que as pessoas
formulam sobre ela (imagem que o outro faz dela) ao dizer “mas as pessoas não me viam
assim”, que funciona como um mecanismo de antecipação:
Esse mecanismo imaginário produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso,
dentro de uma conjuntura sócio-histórica. De acordo com Orlandi (2002, p. 42):
2
As transcrições desta série foram feitas por mim. Elas fazem parte dos anexos da minha dissertação de
mestrado, ao total são 277 SDs.
Portanto, as formações imaginárias estão permeadas pelas relações de poder e por sentidos
estabilizados acerca dos sujeitos. Essas formações estão condicionadas às imagens que são
produzidas em um determinado contexto histórico-social, pois o imaginário está presente, é
constitutivo e essencial no funcionamento da linguagem.
Há, como vou mostrar em minhas análises, diferentes imagens que a sociedade faz do sujeito
trans, que esse sujeito faz de si e da sociedade, as quais estão em constante funcionamento nas
relações sociais.
Vejamos a seguinte sequência discursiva também retirada das transcrições da série “Quem
sou eu?”:
SD 121 Andreia mulher trans: eu tinha né, algumas paixões minhas, que não dariam
certo né, agora que eu realmente já me sinto, né? Relativamente confortável com
meu corpo, eu já me sinto muito mais preparada pra ter um relacionamento, eu não
teria mais o mesmo desconforto que eu teria antes em deixar alguém tocar o meu
corpo realmente.
Na SD 121, na parte destacada “Relativamente confortável com meu corpo”, Andreia, uma
mulher transexual, fala sobre a questão de estar bem com o próprio corpo, o qual ela foi
constituindo num processo histórico-ideológico-social, que a representa e também diz sobre
ter um determinado tipo de corpo para que alguém possa tocar - convencionado como
feminino, socialmente.
Esse viés da exploração é abordado pela série, uma vez que os próprios sujeitos entrevistados
fazem relatos sobre a prostituição, como principal alternativa para a sobrevivência, que se
torna um meio de exploração desse sujeito, um corpo que é vendido e, consequentemente,
explorado.
Portanto, partindo desse conceito, analisaremos em nosso trabalho como o corpo do sujeito
trans é colocado em evidência para dizer sobre esse sujeito e para fazer com que esse sujeito
também diga de si e do modo como relaciona (seja, algumas vezes, por intervenções
cirúrgicas) com esse seu corpo que nem sempre é reconhecido e legitimado na sociedade, a
qual tem a heteronormatividade como estrutura significante.
A Lei 11.340/06, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha, ganhou este nome em
homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, uma biofarmacêutica que durante vinte anos
foi violentada pelo marido, um professor universitário. Após duas tentativas de homicídio e o
violentador ainda estar impune, o caso ganhou repercussão internacional e, a partir da
intervenção de ONGs, chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual
cobrou uma tomada de posição da justiça brasileira, sendo, portanto, esse um marco inicial
para a criação da “Lei Maria da Penha”.
Porém, somente depois de vinte anos dos primeiros registros de violência sofrida por Maria
da Penha é que essa lei passou a vigorar. Portanto, só em setembro de 2006, a lei finalmente
entrou em funcionamento, e, a partir daí, o crime de violência contra as mulheres foi
regulamentado na legislação nacional brasileira
Esse projeto proposto pelo Deputada Jandira Feghali é uma medida normativa legal de
prevenção e de violência para com o público trans, e sua existência justifica-se pela alto
índice de violência para com o(s) sujeito(s) trans, tendo em vista que o Brasil é o país que
ocupa o topo no ranking dos crimes por transfobia.
Essa proteção, condicionada ao gênero, está presente também no texto do Artigo 5º da Lei
Maria da Penha, “Para efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (...)”, logo, o texto da Lei deixa
bem claro que será considerada a violência á ação que estiver relacionada ao gênero, no
entanto, não fala, qual é o gênero, diferentemente do Projeto de Lei em que essa delimitação
ocorre.
Neste trabalho, tendo como perspectiva teórica a Análise de Discurso pecheutiana, foram
selecionadas duas Sequências Discursivas (doravante SD), sendo uma pertencente à Lei Maria
da Penha e a outra ao texto sobre o Projeto de Lei, de Jandira Feghali. Meu intuito com a
breve análise dessas sequências é compreender como sentidos sobre a mulher (cis e trans) e a
violência são postos em funcionamento.
SD (01): O Projeto em debate visa a ampliar a proteção de que trata a Lei no 11.340,
de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha – às pessoas transexuais e
transgêneros que se identifiquem como mulheres. Há uma polêmica discussão na
doutrina e na jurisprudência sobre quem pode ser vítima de violência doméstica.
Diante dessa questão, cabe investigar qual seria o verdadeiro objetivo da Lei
Maria da Penha. Assim sendo, constata-se que o real escopo dessa Lei é prevenir,
punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher, não por razão
do sexo, mas em virtude do gênero. (PROJETO DE LEI 8.032/2014.2014. p.2.
grifos meus).
3
É uma médica brasileira, natural de Curitiba - Paraná, filiada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB),
construiu carreira política pelo Estado do Rio de Janeiro.
Valendo-se do conceito de formação imaginária, tal como teorizado por Orlandi (2013, p. 41),
sendo parte do funcionamento da linguagem e assentando-se no “modo como ás relações
sociais se inscrevem na história e são regidas em uma sociedade como a nossa, por relações
de poder”, é possível dizer que o sujeito travesti não seja socialmente aceito/visto como
imagem de mulher e representação do feminino, uma vez que este se traveste como do sexo
biológico exposto, ou seja, mesmo que este esteja “caracterizado” como mulher, perante a lei
não seria considerada/julgada como tal, mas em função de seu sexo biológico que estaria
atrelado ao conceito de masculino, e por assim ser, tratar-se-ia de um homem, e não de uma
mulher, perante a lei.
Ao olhar para o segundo gripo destacado na SD 01, “cabe investigar qual seria o verdadeiro
objetivo da Lei Maria da Penha”, é curioso como esse texto retoma a ideologia de
superioridade do homem em relação á mulher, o patriarcado, pois ao se dar conta que há uma
lei específica para proteger a mulher das violências que esta poderá vir a sofrer, em função
dos atos de um homem, o homem sente a necessidade de criar mecanismos que possibilitem
sua transposição á esta lei, e por isso vê a necessidade de investigação sobre qual o propósito
de tal instrumento legal, quando este especifica seu objeto de proteção que é a mulher,
limitando as mulheres amparadas por esta lei, silenciando e esquecendo algumas mulheres,
mas colocando claramente seu objeto protetivo a mulher, então ao formular este texto - cabe
investigar qual seria o verdadeiro objetivo da Lei Maria da Penha – ele se volta contra á
mulher e não contra o instrumento legal.
No terceiro grifo, destacamos um trecho do texto que fala sobre “violência doméstica e
familiar contra a mulher”, o que nos permite compreender que a mulher que não se encontra
no âmbito doméstico, ou no seio da sua família, não será amparada por esse instrumento legal.
Ao pensar e refletir sobre esta infeliz realidade, a população Trans4, que trabalha na
prostituição e tem como única fonte de renda o dinheiro que consegue com essa prática, pois
ás empresas em sua grande maioria não está aberta á contratação de pessoas transexuais, e
assim tem a sua maioria populacional trabalhando no ramo da prostituição, não seria
contemplada, porque estão inscritas em um lugar que não condiz com aquele lugar que a lei e
o projeto colocam em seus textos.
4
TRANS no dicionário significa, além dê. Para este artigo, entenda-se Trans como todas aquelas pessoas que se
identificam como mulher, além das convenções sociais da sociedade heteronormativa, sejam elas transexuais,
travestis, transgêneros.
A mulher trans que está em condição de prostituição, estando nas ruas, não se encontra
contemplada na esfera doméstica e nem familiar, assim, o seu lugar (ruas, casas noturnas,
boates, etc.), não é o lugar contemplado pela Lei.
No quarto grifo da SD 01, “em virtude do gênero”, os conceitos de mulher contemplados pelo
Projeto de Lei não se validam baseados no “sexo”, mas sim pelo gênero. Logo, a primeira
impressão é de que o determinismo biológico de sexo/genitália masculino ou feminino é
excluído, porém, o conceito de gênero sobre o qual o texto traz é uma construção da
sociedade, ou seja, esse “gênero” que a lei aponta é o gênero baseado em parâmetros
convencionados pela sociedade heteronormativa, logo, esses sujeitos trans, não estariam
sendo contemplados por este instrumento legislativo, pois são vistos pela sociedade como
exceções á regra do ser masculino ou feminino, não podendo haver a ocorrência de algo que
destoe desse modo de ser, homem ou mulher, determinado biologicamente e condicionados á
padrões construídos socialmente para cada sexo, seja masculino ou feminino, de maneira que
não são aceitos na sociedade outras formas do ser.
SD (02): Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela
se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação
de violência doméstica e familiar. (LEI MARIA DA PENHA, 2006. art.4. Grifos
meus).
Novamente faz parte da sequência discursiva selecionada a lei silenciando quem são as
mulheres contempladas por essa lei e o próprio texto dizendo qual é o lugar que a mulher deve
ocupar na sociedade – lugar doméstico ou familiar – se esta quiser ser amparada pela lei, caso
necessite.
As interpretações que pairam sobre a Lei Maria da Penha sobre o “lugar” que deve ocupar o
sujeito amparado por este instrumento legislativo é condizente com o Artigo 4º da Lei Maria
da Penha “na interpretação da lei serão considerados os fins sociais a que ela se destina e,
especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica ou
familiar”.
Portanto, este instrumento legal que visa coibir e prevenir à violência contra a mulher
transexual e transgênero, silenciando á travesti, perde a eficácia no caso dos sujeitos trans,
uma vez que a maioria da população trans encontra-se em situação de prostituição nas ruas ou
em ambientes propícios para o comércio sexual, e não no âmbito familiar e doméstico dito e
imposto conforme a Lei.
DIZERES FINAIS
Primeiramente, gostaria de destacar dois “lugares” que são retomados na redação da Lei
Maria da Penha e na redação do Projeto de Lei, pois é lugar, o qual, segundo o que diz os
textos legais, cabe à mulher se esta quiser estar amparada por esse instrumento legislativo: o
ambiente doméstico e familiar, assim a mulher que se coloca fora desse padrão e lugar do
âmbito doméstico e familiar não está contemplada pela lei, portanto, a mulher que tem
funções que diferem de ser/estar no ambiente doméstico e familiar não pode fazer o uso dos
direitos previstos na lei.
Por seguinte, em momento algum no texto da Lei Maria da Penha, esta traz a definição a
respeito de qual mulher essa lei está falando. Logo, diversas mulheres são silenciadas e, a não
serem aquelas que estejam no ambiente doméstico e familiar, as demais estão esquecidas.
Aqui também cabe uma reflexão sobre quem é a mulher que ocupa o ambiente doméstico e
familiar, pois esta deve ser detentora de algumas características, tais como: ser branca, ter
olhos claros, cabelos claros, ter seios grandes, cintura fina, nádegas grandes, boa estatura e ser
saudável (pois será mãe), saber cozinhar, lavar, passar, limpar, e cuidar dos filhos (quando os
tiver), aquelas que não se encaixam nesses parâmetros, quase não aparecem nos casos
registrados de violência contra a mulher, então quando esta lei foi proposta, quem era a
mulher que se pretendia amparar?
Já o Projeto de Lei que visa contemplar os sujeitos transexuais e transgêneros, porém, não
deixa claro esta abrangência para o sujeito travesti - talvez este se encaixe como uma
categoria na transgeneridade -, novamente limitando os sujeitos que podem/devem ser
atendidos por esse instrumento legal, o qual também, assim como a Lei Maria da Penha,
limita o lugar que o sujeito deve ocupar/permanecer se este quiser ser amparado pela lei.
Existe uma resistência do jurídico em tornar o sujeito trans um sujeito contemplado pela lei
em sua integridade, um sujeito de direito como todos os outros não trans. Esses sujeitos
valem-se da legislação vigente, que ampara a grande parte da sociedade que é cisgênera, o
que, em vários casos, não aplicar-se-ia aos sujeitos trans, mas isso é usado como instrumento
de “justiça” para todos.
Os sujeitos trans precisam, sim, de leis que contemplem e reflitam a sua especificidade de ser
quem são, uma vez que a própria sociedade os coloca como diferentes e os exclui; pois bem,
que existam leis diferentes para esses diferentes.
Essa questão legal, da falha do jurídico, reflete-se bem quando se trata de crime de transfobia,
pois todos os crimes com esse perfil são noticiados como homicídios, como se não tivessem
uma motivação única, que é o fato da vítima ser um sujeito trans.
Mesmo com todos os silenciamentos previstos no texto da Lei Maria da Penha e do Projeto de
Lei de Jandira Feghali é preciso reconhecer as mudanças sociais que esses instrumentos
normativos causaram na sociedade em relação aos índices de violência – de todas as formas –
contra a mulher. Porém, ainda há muita luta e resistência para que a(s) mulher(es) possa(m)
ocupar lugares que sócio-historicamente “não” cabem a ela, como universidades, política,
empresas, entre outros.
REFERÊNCIAS
BENTO, Berenice. O que é transexualidade. 2.ed. São Paulo, SP: Brasiliense, 2012.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Sociologia Jurídica. 13. ed. Rio de Janeiro – RJ.
DIAS, Maria Berenice. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 2.ed. São Paulo – SP.
Editora revista dos tribunais, 2014.
GADET, Françoise; HAK, Tony. [1969]. Por uma análise automática do discurso. Uma
Introdução à Obra de Michel Pêcheux. Editora da Unicamp, 1997.
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=4ED2CCEEB060
AB5A153FED625CB7E9A3.proposicoesWebExterno1?codteor=1282632&filename=Tramita
cao-PL+8032/2014. Acesso em: 19 ago. 2017
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=C5D4711B50706
F73DE29B00A6F757134.proposicoesWebExterno2?codteor=1372701&filename=Parecer-
CDHM-17-08-2015. Acesso em: 19 ago. 2017
DEVIR SELVAGEM
A ARTE DO GRITO (OU DO GRITO NA ARTE)
BECOMING WILD
THE ART OF YELLING (OR THE YELLING IN ART)
DEVIR SELVAJE
EL ARTE DEL GRITO (O DEL GRITO EN EL ARTE)
RESUMO
A partir de uma performance realizada em 2016, o grito opera como máquina de guerra (Deleuze e Guattari,
2012) capaz de agenciar um coletivo que mobiliza uma matilha, de modo que a experiência transexual seja
entendida como potência, jamais como loucura. O objetivo desse trabalho é refletir sobre algumas dinâmicas de
poder sobre às transexualidades tendo como marcadores de diálogo a raça e dispositivos de opressão na arte. O
grito, como uma forma de resistência, coloca em agenciamento “estruturas” de subjetivação que compõem
cartografias “trans específicas” em espaços hegemônicos. É deste modo que surge o devir selvagem; aquele que
ao devorar os processos assimétricos que lhe assujeitam, cria mundos possíveis operando fissuras nas
hegemonias e construindo redes de afeto e modos de existir.
ABSTRACT
From a performance that took place in 2016, yelling operates as a war machine (Deleuze and Guattari, 2012)
capable of organizing a collective that mobilizes a pack, so that the transsexual experience is understood as
power, never as madness. The objective of this work is to reflect on some power dynamics on transsexualities,
having as markers the dialogue between race and oppression dispositives in art. Yelling, as a form of resistance,
puts into connection "structures" of subjectivation that build up "trans-specific" cartographies in hegemonic
spaces. It is how becoming wild arises; the dispositive that devouring the asymmetric processes that surround
the existence, creates possible worlds by operating fissures in hegemonies and building networks of affection.
RESUMEN
A partir de una performance realizada en 2016, el grito opera como máquina de guerra (Deleuze y Guattari,
2012) capaz de agitar un colectivo que moviliza una manada, de modo que la experiencia transexual sea
entendida como potencia, jamás como locura. El objetivo de este trabajo es reflexionar sobre algunas dinámicas
de poder sobre las transexualidades teniendo como marcadores de diálogo la raza y dispositivos de opresión en
el arte. El grito, como una forma de resistencia, coloca en agenciamiento "estructuras" de subjetivación que
componen cartografías "trans específicas" en espacios hegemónicos. Es así que surge el devenir salvaje; el que
1
Bacharel em História da arte, mestre em Ciências Humanas com ênfase em história, teoria e crítica da cultura e
doutorando em comunicação.
al devorar los procesos asimétricos que le asuje, crea mundos posibles operando fisuras en las hegemonías y
construyendo redes de afecto y modos de existir.
Embora Fanon diga que não gritará, o que se enuncia, na verdade, é algo imanente. É que o
grito nem sempre é algo que irrompe nossos pulmões e ativa nossas cordas vocais: antes, é
algo com potência de desterritorializar e provocar abalos, mesmo que singelos, em estruturas
hegemônicas. Em outras palavras, o grito explode numa linha de fuga (DELEUZE e
GUATTARI, 1995) e mergulha num plano de imanência (idem). Nessa perspectiva, a obra de
Fanon ecoa na qualidade de som estridente que incomoda, que produz fissuras, que,
definitivamente, desestabiliza o senso comum daqueles que durante séculos recorreram à
retórica do pigmento da pele para impingir ao negro não apenas a escravidão, mas, sobretudo,
o limbo da produção de conhecimento e o “apagamento” de sua cultura, sem que, no entanto,
Fanon precise “gritar” pois se trata de um grito-dito, “silencioso”. Nesse caso, o grito assume
o papel da escrita e dilata-se por diferentes meios, inclusive tomando nossos corpos como
livros, materializando a escrita nos sabores e dissabores de nossa carne. Isso fica evidente ao
longo do livro em que, em diversos momentos, Fanon desarticula a noção de grito dos
negros2, deslocando seu sentido. É deste modo que o grito irrompe a loucura (princípio de
inferiorização) e entra num agenciamento de potência, transformando-se em arma de guerra
(DELEUZE e GUATTARI, 1995), em ferramenta nômade (DELEUZE e GUATARRI,
2012), em algo que precisa ser dito (ou gritado) de forma serena. Vemos também em Lélia
Gonzalez (1984) o mesmo princípio ou recurso de fazer ruir “discursivamente” opressões
revelando a potência antropofágica de agenciar alternativas em prol do tipo de “humanismo”
que Fanon defende. Lélia nos aponta, neste caso, que o subalterno sempre falou, indo de
2
Em três passagens fundamentais do livro, Fanon (2008) articula o grito a uma forma legítima do negro se
manifestar contra as opressões que lhe recaem. Percebe-se, nas passagens a seguir, a maneira magistral como
Fanon desarticula a noção do grito dos domínios da loucura, dispositivo de inferiorização normalmente utilizado
para se desqualificar a alteridade, diz ele; “Não sei, mas afirmo que aquele que procurar nos meus olhos algo que
não seja uma interrogação permanente, deverá perder a visão: nem reconhecimento nem ódio. E se dou um
grande grito, ele não será nada negro. Não, na perspectiva adotada aqui, não existe problema negro. Ou pelo
menos, se existe, os brancos não se interessam por ele senão por acaso. É uma história que se passa na
penumbra, e é preciso que o sol transumante que trago comigo clareie os mínimos recantos” (p.43) e “Sempre
haverá um mundo – branco – entre vocês e nós... Essa dificuldade que tem o outro de liquidar definitivamente o
passado. Diante dessa esclerose afetiva do branco, é compreensível que eu tenha decidido dar meu grito negro
(p.113) e “Após ter sido levado aos limites da autodestruição, o preto, meticulosa ou tempestuosamente, vai
saltar no “buraco negro” de onde partirá “com tal vigor o grande grito negro que estremecerá os assentamentos
do mundo”” (p.167). É importante frisar que Fanon foi um psiquiatra, deste modo, a questão da loucura, como
possível método de hierarquização entre brancos e negros é um dispositivo de poder forjado. Logo, o “grito
negro”, em Fanon, nada mais é que uma sátira, uma “estratégia” para inverter posições e pontuar, ou melhor, de
trazer à luz que a “inferioridade” do negro nada mais foi que uma construção do branco. Fanon deixa isso claro
ao dizer que a “civilização branca, a cultura europeia, impuseram ao negro um desvio existencial. [...] aquilo que
se chama de alma negra é frequentemente uma construção do branco” (p.30).
encontro à máxima de Spivak em Pode o subalterno falar?. Muito embora num primeiro
momento seja difícil associar o grito ao ato de falar, o que essas obras demonstram ter em
comum é justamente é prerrogativa de se inserirem nas lacunas deixadas pela história e ecoar
seus devires selvagens como a força ensurdecedora de um grito. O enunciado em Lélia é
afirmativo, não se trata mais de pedir uma autorização para falar, o que está em ação é um
caráter combativo, “e numa boa”, ou seja, Lélia joga por terra o cânone cartesiano “penso,
logo existo” e o contrapõe com o “vou falar, eu (r)existo”. Essa prerrogativa “selvagem” se
agencia à potência do grito (não como desespero); agora são potentes ondas de resistência,
ressignificação e combate para que se escreva e se produza outras cartografias, cartografias da
imanência, ou seja, da experiência do vivido pelos seus protagonistas.
Cunhambebe já havia indicado como deveríamos fazer ao afirmar; “sou uma onça, está
gostoso” 3
ainda no século XVI, operando, assim, o agenciamento antropófago do devir-
selvagem. Mais tarde, esse know-how foi “reatualizado” por Oswald de Andrade (2016), de
modo que nossas ações, sejam elas epistemológicas ou não, nos conduzam à superação de
opressões que nos capturam historicamente e culturalmente. Esse trabalho se inscreve nessa
perspectiva. Em certo sentido, trata-se de um relato pessoal onde busco refletir através de um
“academicismo tupiniquim” – sem deslegitimação do termo – as forças que me fizeram gritar
na academia e na vida. Busco mostrar como aos poucos fui percebendo a potência do grito e
como este trabalho e uma performance que realizei em 2016 se localizam no duplo
agenciamento grito-vida. Muitas vezes para uma mulher transexual negra existir num espaço
de privilégio, onde seu corpo é duplamente negado, não lhe resta outra opção a não ser gritar.
É nessa dinâmica que se coloca aquilo que chamo de cartoescrita, uma escrita cartográfica de
si que busca revisitar afetos, mapeando mundos abstratos, materiais e objetivos que vão se
compondo na medida em nossas vivências atravessam zonas distintas de intensidade
(ROLNIK, 2016) e criando realidade; esse trabalho é, portanto, a cartoescrita de um grito.
Gênero, raça, colonialismo e sexualidade devem inevitavelmente ser enfrentados do ponto de
vista interseccional e todo o esforço nesse trabalho gira em torno dessa interssecionalidade
3
Ver Hans Staden, 1930 p. 109
para refletir questões que nos capturam enquanto “sujeitos” na busca pela intensa imanência
do viver/vivido, para não exaurir a noção de (r)existência.
UM MÉTODO POSSÍVEL?
O mundo tornou-se caos, mas o livro permanece sendo imagem do
mundo, caosmo-radícula, em vez de cosmo-raiz. Estranha
mistificação, estado livro, que é tanto mais total quanto mais
fragmentada. O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma
ideia insípida. Na verdade, não basta dizer Viva o múltiplo, grito de
resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou
mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o
múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao
contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das
dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno
faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único
da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Um tal sistema
poderia ser chamado de rizoma...
Me peguei imaginando que tipo de metodologia deveria adotar, as opções: mergulhar nas
metodologias do campo de formação (pois também estou pensando processos artísticos) ou
me permitir “divagar” por outras epistemologias que pudessem me ajudar a produzir um
outro tipo de escrita; uma escrita de si sócio-histórico-cartográfica. Aos poucos fui
esbarrando em uma outra questão; como escapar de dicotomias? Talvez seja preciso
reconhecer que elas estão dadas e que devemos lidar de maneira a extrair delas um problema
para, enfim, (tentar) superá-las. Assim, minha proposta se aproxima muito mais de uma
“cartografia sentimental” (ROLNIK, 2016), onde busco revisitar certos afectos (idem) para
compor fluxos possíveis, pois, a
cartografia, nesse caso, acompanha e se faz o mesmo tempo que o desmanchamento
de certos mundos – de sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que
se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos
tornaram-se obsoletos (ROLNIK, 2016, p. 23).
Há uma verdade; quando você não faz parte de um grupo privilegiado, recaíra sobre seu
corpo e sua subjetividade o desprezo (FANON, 2008; GONZALEZ, 1984; NASCIMENTO,
2017) já tinham nos dito. Você é lançado em um “outro mundo”; o mundo necropolítico
(MBEMBE, 2018) onde há não apenas mortes físicas, o mundo estranho da curiosidade (que
leva à proibição do afeto) e abjeção (que subalterniza a existência). Curiosidade pois se
indagarão como você, qualquer coisa abjeta – algo inominável –, pode frequentar os mesmos
espaços (como aeroportos, universidade etc.) e desprezo pois jamais reconhecerão você como
sujeito de direito, possuinte de legitimidade co-existencial; para muitos – e muitos mesmo –
trata-se de “algo” que precisa ser eliminado, extirpado do convívio social instituído pela
cisnormatividade (SILVA, 2016). Com efeito, você aprenderá a ler os olhares e o tipo de
sentimento que sua presença causa (FANON, 2008). Assim, você entenderá que o mundo é
dividido em duas grandes categorias; “Nós” – cisbrancoheterossexuais – e “Outros” –pretos,
trans etc.; o lixo. É assim, pois, que você experimentará o mundo: sempre um problema a ser
“entendido” e, no melhor dos casos, evitado.
4
No plural porque, conforme aponta Rodrigo Borba (2016), não existe apenas um tipo de transexualidade. Da
mesma forma que não existe apenas tom de pele de negro e um modo de ser negro, sendo a experiência negra
atravessada por um comum que, em geral, seria o racismo. Sugiro a leitura do texto “Negros de pele clara” de
Sueli Carneiro (2011).
mergulhar nos meu afectos (ROLNIK, 2016) afim de revisitar cartografias e, inevitavelmente,
construir outras.
Nasci numa das muitas favelas do Rio de Janeiro, em uma família miscigenada. Embora
tivesse referência brancas no meu seio familiar, toda minha construção social e identitária
foram ao redor dos negros e a cor da minha pele denuncia esse fato, eu só precisava descobrir.
Na favela, arrisco dizer, 99% dos meus vizinhos eram pretos. No entanto, a raça não era uma
“questão”. Em geral, compartilhávamos as mesmas experiências de violência; o nosso “em
casa”. Nossas peles não nos eram estranhas, tão pouco nossos cabelos. Nossos pés corriam
descalços pelas vielas, erámos crianças pretas que não conheciam as idiossincrasias de sua
própria raça porque entre os pretos e pobres a negritude nunca foi questão que nos
diferenciava socialmente de nós mesmos. Só “descobríamos” nossa “diferença” quando o
Estado intervinha em nossas vidas através da força policial fosse invadindo nossas casas,
fosse revirando nossas mochilas, fosse batendo nos nossos pais. Muito embora a raça não
fosse uma questão, ser uma criança efeminada sem dúvidas gerava muitos conflitos. Comecei
a notar algo diferente não porque eu me sentisse diferente, mas porque tal diferença era-me o
tempo todo jogada na cara, desde muito cedo. A “generificação colonial” dos corpos exige
que o comportamento gire em torno de pressupostos culturais produzidos e alimentados no
interior de regras incessantemente repetidas (BUTLER, 2016) a partir da conformação
genital; “Roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros” (ANDRADE, 2016,
p. 88)... fábrica de “homens” e “mulheres”. Assim, percebi que diferença é socialmente
produzida. Foi em função de um dispositivo de opressão assimetricamente imposto às
mulheres cis, a misoginia, que percebi que a minha transexualidade pesava mais que minha
raça. Mas quando precisei enfrentar o mundo para além das vielas da favela, tanto a minha
transexualidade quanto a minha raça foram marcadores fundamentais de exclusão; nos
mercados e lojas sendo vigiada por seguranças (marcador racial) e nas agressões físicas e
verbais em função da imagem do meu gênero em conflito (marcador de gênero).
O colonialismo, antes de qualquer coisa, só obteve o seu “sucesso” graças a sua capacidade
de se inscrever nos corpos, de se introjetar nas mentes. Sob essa perspectiva o paradigma
colonial é um modo de subjetivação. Nunca se tratou apenas de uma estratégia econômica,
foi, sobretudo, um dispositivo fundamental de captura, efetivação e manutenção do status quo
através da exploração dos corpos e da subjetividade. Grada Kilomba em seu livro Plantation
memories: episodes of everyday racism (2010) apresenta um dos mais emblemáticos símbolos
coloniais e, consequentemente, da escravidão; a máscara do silenciamento não era apenas um
objeto que impedia pessoas escravizadas de se alimentar com cana-de-açúcar ou cacau para
matar a fome – violando, desta maneira, a propriedade e os bens do senhor levando-os à
punição – no campo simbólico, é um dos paradigmas coloniais. Para Grada Kilomba (2010),
A máscara representa as políticas sádicas de conquista e dominação e os cruéis
regimes de silenciamento dos então chamados “Outros”: Quem pode falar? O que
acontece quando falamos? Sobre o que podemos falar? (p. 16, tradução minha)
Nesse sentido, a boca desempenha um mecanismo vital na relação intersubjetiva, mas a boca,
ela mesma, é apenas parte de um todo que representa o corpo; nos alimentamos através da
5
Pensando o pós-colonialismo como o encerramento do período dito colonial, muito embora saibamos que a
colonialismo não se encerrou, mas foi “ressignificado” em outras praticas de sujeição econômica, corporal,
territorial etc.
boca, mas é também por ela que nos comunicamos6 e, deste modo, nos tornamos humanos.
Tomando essa perspectiva, o ato de silenciar é crucial para manutenção do modelo colonial: o
animal que não se comunica não pode ser considerado humano. Assim, impedidos de comer e
de falar – e de gritar – pessoas escravizadas sucumbiam ao violento regime imposto pela
estrutura colonial e todos os seus artifícios. A boca tornou-se, segundo Kilomba, um dos
dispositivos mais sofisticados de opressão porque centralizava os mecanismos de controle e
assujeitamento que historicamente vem sendo reatualizados como técnica de repressão.
Silenciados, os corpos e as subjetividades de pessoas escravizadas poderiam ser molestados
ao livre sabor do sadismo de seu senhor.
6
Muito embora não nos comuniquemos de modo exclusivamente verbal, existe inúmeras formas de
comunicação corporal, a performance e a dança provam isso.
7
Em agosto de 2018 o Supremo Tribunal Federal decidiu que as pessoas trans poderiam retificar nome e sexo
em seus registros de nascimento sem a necessidade de processo judicial, como era necessário até o referido ano.
Processo pelo qual eu e muitas amigas tivemos que nos submeter para ter a garantia do acesso a esse direito.
8
Recentemente a Organização Mundial de Saúde retirou a transexualidade do hall de doenças mentais.
9
Grada Kilomba defende que o “self” corresponde à categoria das pessoas brancas, ou seja; o que poderia ser
traduzido como uma categoria hegemônica em função da detenção do poder sobre a vida do negro. Neste artigo,
defendo que a hegemonia é sempre “cis” e essa cisgeneridade sempre foi branca. Seria preciso então liberar a
É no interior desse modelo onde se reatualizam as estruturas coloniais que se escrevem nos
corpos de pessoas negras e trans fazendo-as mercadorias. Mais que isso, se efetua a
manutenção do status quo nas dinâmicas das estruturas econômicas através do binarismo de
classe10; a cisgeneridade torna-se um modo de subjetivação dominante. Seja através das
políticas governamentais em saúde, educação e propriedade, seja através das relações
intersubjetivas forjadas e sustentadas por “manuais” de saber11 que marcam a alteridade e
criam, literalmente, uma atmosfera de recusa, patologização e criminalização dos corpos e das
subjetividades negras e trans. É, antes de tudo, no corpo onde se atualizam os mecanismos
coloniais-em-nós de captura. Assim, surgem dispositivos afim de controlar os corpos; os
manuais em paralelo à lei, os discursos dos saberes e a produção verdade (FOUCAULT,
2010). Captura-se o inconsciente, produz-se políticas que visem o corpo como ferramenta de
produção econômica, funda-se a alteridade... todos esses processos sedimentam-se na
incessante relação entre exterioridade e interioridade, entre micropolítica e macropolítica
(DELEUZE e GUATARRI, 2012) a tal ponto em que nós introjetamos o autocontrole. Uma
política perpassada pelo medo incessante de incomodar o mundo cisheterocêntrico. Se
rompermos esse limite, nossos corpos sofrerão as consequências.
O grito traz à luz todas essas opressões, pois foi também através de sua potência que pessoas
escravizadas compartilhavam suas dores nos porões dos navios negreiros, ao cantarolar dos
chicotes em suas costas, durante as inúmeras violências sexuais... O grito atravessa o tempo e
nos atinge em cheio nas favelas, nas prisões ou nas esquinas de uma rua escura onde as
travestis muitas vezes são mortas. Somos os reais protagonistas da história, sem nós vocês
potência de criação (ROLNIK, 2016) para que o protagonismo trans-negro constituísse um self e “descolasse”
do mundo da alteridade. Eis o que busco defender aqui: uma inversão da noção de self.
10
Não à toa a maior parte das pessoas que vivem nas favelas são negras.
11
Aqui faço referência ao racismo epistemológico criado a partir de figuras como Cezare Lombroso e outros,
além do DSM.
não teriam sequer sua indústria12, sem nós o projeto econômico exploratório do paradigma
colonial não teria adquirido as proporções da expansão pretendida pelo europeu. Precisaram
nos escravizar, nos patolozigar, pretendendo-se superiores, mercantilizando nossos corpos,
mas sempre houve resistência. Com efeito, o europeu criou o racismo, a luta de classes13 e
nos trouxeram a violência, mas os violentos somos nós? Os perigosos somos nós? Os
anormais somos nós? Como no passado, o grito ainda ecoa nos becos e alamedas das favelas
pelo Brasil afora. Basta a polícia subir o morro e impor sua truculência histórica e colonial.
Eu me lembro de na infância ter de gritar inúmeras vezes ao perceber que nossas vidas não
valiam nada. Lembro que o grito sempre foi coletivo e ecoava quando nossas mães
desesperadas se contorciam como gatos selvagens entre as vielas para nos salvar dos tiroteios
constantes, quando precisavam produzir mais barulho amontadas no chão para nos proteger
das balas perdidas e do tilintar das balas de fuzil14. Quantas vezes vimos nossos amigos e
parentes serem mortos por essa violência histórica e estrutural, então; como não gritar? Nós
tivemos que crescer meio ao trauma que o projeto de poder colonial produziu e ainda produz
(FANON, 2008; KILOMBA, 2010) e somos nós os loucos? Somos nós os criminosos? Somos
nós os desviados?
Submersos no caldeirão altericída dessa baixa antropofagia (ANDRADE, 2016), esses corpos
perdem legitimidade quando chegam na universidade; um dos templos da cisgeneridade
histórica15. Aqui, nós continuamos sendo falados, pesquisados, assujeitados pois é preciso
12
Segundo Eric Williams (2012) os lucros adquiridos com o tráfico de pessoas negras escravizadas financiaram
a Revolução Industrial.
13
Muito embora o projeto colonial tenha se iniciado com a exploração e dominação dos índios e posteriormente
com brancos pobres e criminosos, sugiro aqui a leitura do primeiro capítulo do livro de Eric Williams intitulado
Capitalismo e escravidão (2012). Quando os europeus entenderam que mão obra escrava era a mais adequada
para construir suas colônias dado o custo da mesma, os negros sempre foram considerados uma classe à parte,
uma classe sem direitos e garantias legais que não fosse exclusivamente o trabalho exaustivo que por fim
conduzia à morte.
14
Eu lembro que muitas vezes vovó – uma negra alta de origem angolana – gritava louvores exaurindo seu
pulmão e sua força para que suas netas, não ouvissem o som dos tiros e os berros ensandecidos dos policiais
espancando nos nossos homens – que não podiam gritar sob pena de serem ainda mais machucados – porque
achavam que todos eram bandidos.
15
Facilitar o acesso de negros, pobres e indígenas ao ensino superior, à faculdade pública, foi um dos motivos
que levaram ao ódio e rancor das classes mais favorecidas ao ex presidente Lula.
“compreender” o outro, nunca “nós” mesmos, o self é uma categoria útil de análise histórica.
Na dinâmica colonial é fundamental que as hierarquias históricas sejam respeitadas e dessa
maneira nossos corpos e subjetividades continuam sendo tomados como objetos, do mesmo
modo que nossas histórias e nossas vidas são transformadas em números, meros dados
acadêmicos, estatísticas que enriquecem os livros que, por sua vez, enchem as prateleiras das
bibliotecas e assim continuam sendo lidos e “problematizados” na estrutura cisgênera. Em
suma, o paradigma colonial reatualiza sua “força-forma” ampliando multidimensionalmente
seu modo de ação em no inconsciente; da práxis acadêmica aos fluxos relacionais de classe,
do modelo do “cistema” judiciário à macropolítica institucional. O corpus da alteridade
sempre esteve bem delimitado. Logo, o grito inscreve-se como uma forma de tentativa de
aniquilação desses processos, pois denuncia a violência que se inscreve em nossos corpos.
No item a seguir, verificaremos como o grito se efetua como um devir-selvagem, efetivando
uma cartografia estética a partir de uma performance que busca revisitar as assimetrias e
singularidades que se inscrevem no corpo negro transexual. É que arte, em seu processo de
criação, está vinculada à vida. Defender processos artísticos livres das amarras do
colonialismo-em-nós é defender a vida em sua potência contagiante. Embora a história da arte
tenha estado durante séculos à serviço da hegemonia, ele também efetivou “n” linhas de fuga.
O que se coloca a seguir é justamente isso; como agenciar uma linha de fuga que transborde o
comum? Em que dimensão o grito se inscreve nesse fluxo? Como convocar uma matilha à
guerra? Como podemos “antropofagizar” essas dinâmicas cisheterocêntricas, problematizadas
acima, pela arte?
A obra “O Grito” de Munch nos coloca diante de um “conflito visual” denso e intrigante. As
cores quentes compõem um cenário de aparente desespero que denuncia a aflição vivenciada
por seu personagem, que não sabemos bem identificar se se trata de um homem ou uma
mulher. A figura andrógina destacada no quadro tem as suas mãos na cabeça enquanto todo o
fundo do quadro é repleto de um devaneio intensamente colorido dando as cartas que o grito
desestabiliza tudo ao redor ou, é antes, a própria desestabilização provocada pelo meio, uma
reação direta a ação que o meio provocou. Mas o que é esse grito que desestabiliza não
apenas o/a personagem? É dor? É angústia? Aflição? Há um elemento “invisível” na obra, a
dizer; a potência micropolítica que ela efetua entre o que se vê e o que se sente em relação à
loucura, nos moldes da relação de poder “nós” e “outros”.
16
ver https://ideiasemprocesso.blogspot.com.br/2016/06/palestra-no-lancamento-do-livro-o.html
aqui assume uma especificidade micropolítica. Uma micropolítica capaz de produzir abalos,
capaz de fissurar e romper com linearidades, que efetua uma potência movendo tudo ao redor
tal qual em Munch. Essa compreensão do grito me veio à luz quando li um desabafo de
Tatiana Lionço sobre sua luta na Câmara dos Deputados17. Lionço denunciava aquilo que ela
classificou como estupro moral produzido pela deslealdade de setores conservadores e
reacionários da política brasileira. Inspirada por ela, comecei a observar o quanto eu precisei
gritar durante minha vida: na infância, literalmente gritava para me defender de
espancamentos na escola, de violências sexuais ou para envergonhar alguém que produzisse
bullying comigo. O grito sempre me acompanhou, sempre funcionou como uma válvula de
escape, sobretudo quando ingressei na faculdade. Na UFRJ enfrentei um abaixo-assinado
produzido por estudantes da Escola de Belas Artes (EBA) que buscava me impedir de usar o
banheiro feminino: gritei! Para resistir contra professores que se recusaram a aceitar o nome
social: eu gritei! Nesse sentido, o grito efetiva um agenciamento animal, compondo um
devir-selvagem, máquina de guerra (DELEUZE e GUATARRI, 2012). Ele é uma forma-
resistência (um outro tipo de força e de poder) que desliza pela opressão denunciando-a; o
grito é uma estratégia de sobrevivência ou, antes de mais nada, trata-se de um intenso
mergulho na potência de um plano de imanência pulsante. Se gritamos é porque vivemos, é
porque nossa carne vibra à reação de uma violenta ação. A reação a ele, no entanto, é quase
sempre esvaziada: “você é uma louca”. Trata-se da velha estratégia de desqualificar o plano
do vivido.
17
ver aqui http://cebes.org.br/2013/03/por-que-comecei-a-gritar-na-camara-dos-deputados-e-tempo-de-guerra-
moral-no-brasil/
loucos, pelo contrário; é instrumento dos passantes (MBEMBE, 2018), dos nômades, das
máquinas de guerra, daqueles e daquelas que anseiam visibilidade, direitos, legitimidade. O
grito é parte de um ritual antropofágico; aquilo com que se pretende deglutir, com os saberes-
do-corpo (ROLNIK, 2015), as normas estruturantes e os postulados assimétricos socialmente
instituídos. Não há nada de “louco” no selvagem, o louco foi uma construção hegemônica que
aqui torna-se fluxo de desterritorialização; ser selvagem é uma aposta de vida! Pensando a
partir dessa micropolítica, decidi cartografar o agenciamento de minha transexualidade com
minha negritude, colapsando o “cistema-mundo” reativado na EBA e foi assim que surgiu,
em 2016, uma performance a qual intitulei de Biofilia: um ritual autoetnográfico do desejo.
Meu objetivo era compor uma experimentação estética que me conduzisse (e,
consequentemente, os telespectadores) à revisitação dos marcadores sociais de uma matilha.
De modo, que o “resultado” fosse algo entre o estético/político e sentimental (ROLNIK,
2016), engravidando o debate a cerca da produção de gênero e violência de modo
multidimensional. Embora eu estivesse “me experimentando”, no fundo o que estava em ação
era uma experimentação coletiva das transexualidades e do dispositivo de raça em seu vetor
ético (ROLNIK, 2015), através de uma “narrativa” interarte que nos permitia passear entre
elementos performáticos, musicais, técnicos e literários para que, assim, as diferentes
linguagens entrassem em agenciamento e efetuassem sua “contaminação” rizomática dos
corpos ali presentes, constituindo assim uma poética da selvageria, a poética do grito “sem
som”.
O corpo é o elemento central numa performance e, segundo David Lapoujade (2002), é aquilo
que não aguenta mais. Essa afirmação sintetiza a perspectiva micropolítica de se tornar
imanente através de cada movimento, uma vez que é no corpo onde se inscreve a dinâmica da
herança colonial que assujeita nossos modos de existir. Conforme aponta Foucault (1988), “lá
onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se
encontra em posição de exterioridade em relação ao poder” (pp. 104-105), ou seja, todos nós
temos poder e somente com ele é que podemos construir resistência. Os poderes são
assimétricos, mas eles se “retroalimentam” e é assim que a performance emerge como um
A performance é dividida em três atos. No primeiro, há uma espécie de encontro com esse
“oculto” que é tanto a raça quanto a transexualidade. Tal encontro é disparado pelas
violências que atravessam esse corpo buscando dociliza-lo. Esse primeiro momento se
desenvolve em torno da experimentação ritual e ancestral que marcam os corpos e a cultura
negra tanto quanto as vivências trans. Num segundo momento, já em “posse de si”, começa a
experimentação de fármacos hormonoterápicos que precedem a cirurgia de “transição” de
gênero. O terceiro momento, se desenvolve em torno da torna do sexo, um lado operado o
vetor pulsante-desejante e outro as violências sexuais que deixam marcas de uma
“afetividade” tóxica em meu corpo. O uso desse corpo, passa indelevelmente pelo racismo e
pela transfobia, constituindo costuras na pele que o tempo não pode simplesmente rasgar. É
desse modo que se produz a cartoescrita: pelo vai-e-vém da agulha em nossa carne, marcando
para sempre nossa trajetória e compondo um livro “cartoescritamente” produzido. O devir-
negro não é o racismo, nem tão pouco o devir-trans é a transfobia; seus devires é a
selvageria18. O grito é uma forma de agenciar micropolíticas combativas pois, se gritamos, é
porque queremos nos fazer ouvir, mas ouvir-com-corpo-inteiro. Se a universidade ainda não
está pronta para abraçar tais intensidades, o problema não está nas pessoas que aí querem
frequentar, mas ao contrário; reside num problema histórico que, dada sua manutenção,
18
A noção de selvageria aqui é uma oposição radical ao conceito de humanismo que, entre outras coisas, forjou
um tipo de corpo e um tipo de moral. O humanismo tentou separar homens de animais, incluindo outros homens
na categoria de animal, costurando, deste modo, uma diferenciação singular entre humanos não europeus de
humanos europeus. Escrevi um texto recentemente, chamado Por uma vida anti-humanista, onde desenvolvo
melhor essas ideias. Ver em https://ideiasemprocesso.blogspot.com/2019/01/por-uma-vida-anti-humanista-ou-
sobre-um.html.
REFERÊNCIAS
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palimpsesto selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2016. p. 88 - 89.
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2011.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 5).
São Paulo: Editora 34, v. 5, 2012.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia (v.1). Rio
de Janeiro: Ed. 34, v. 1, 1995.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. São Paulo:
Autêntica, 2015.
FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974 - 1975). São Paulo:
WMF Martins FOntes, 2010.
LAPOUJADE, David. O corpo que não aguenta mais. In: LINS, D.; GADELHA, S.
Nietzsche e Deleuze: o que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. p. 81 - 90.
LAZARRATO, Maurizzio. Signos, máquinas, subjetividades. São Pauo: Edições Sesc São
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PRECIADO, Paul Beatriz. Testo Junkie: sex, drugs and biopolitics in the
pharmacopornographic era. New York: The feminist press, 2016.
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STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Tradução de Alberto Lofgren. Revista e anotada por
Theodoro Sampaio. ed. Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1930.
WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
TRANSGÊNEROS:
AINDA INCOMPREENDIDOS?
TRANSGENDER:
STILL MISUNDERSTOOD
TRANSGÉNERO:
AUNQUE INCOMPREENDIDOS
RESUMO
Este artigo retrata uma pesquisa sobre transgeneridade e sua compreensão. A expressão transgênero reporta-se
num termo que acolhe a união política entre os indivíduos com distinções de gênero incompatíveis às condutas
sociais caracteristicamente relacionadas a homens e mulheres “comuns” e que, como efeito disto, padecem de
intolerância. No Brasil, práticas de intervenção têm levantado diversos questionamentos psicológicos, legais e
sociais. No meio desta discussão, encontram-se os profissionais de psicologia que, como pertencentes a área de
saúde, devem estar preparados para dar suporte a esta parcela da população que, na maioria das vezes, está
envolvida em sofrimento psíquico. Assim, buscou-se investigar a forma como futuros psicólogos percebem o
fenômeno da transgeneridade, já que esta percepção pode influenciar suas práticas. A hipótese levantada foi de
que as atitudes de graduandos de psicologia face à identidade transgênero são baseadas na incompreensão do
fenômeno. O objeto de estudo foi ancorado no constructo de atitude da psicologia social. Os sujeitos foram 100
graduandos em psicologia do 1º ao 10º período da Universidade Estácio de Sá (campus Nova Iguaçu/RJ).
Utilizamo-nos de um questionário com escala likert de 5 pontos, para conhecer o grau de concordância quanto às
questões e produzir descrições quantitativas. Em seguida, a análise dos resultados apoiou-se no o ranking médio
(RM) de anuência dos itens dentro de cada categoria de atitudes relacionando-se ao modelo ecológico do
desenvolvimento humano. O ranking médio total do questionário foi de 3,97, o que demonstra uma aceitação da
transgeneridade.
ABSTRACT
This article portrays a survey conducted about transgenderism and understanding. The term transgender refers a
term that welcomes political union between individuals of incompatible gender distinctions social behaviors
typically related to men and women "ordinary" and that because of this effect, suffer from intolerance. In Brazil,
intervention practices have raised various psychological, legal and social questions. Amid this discussion,
psychology professionals, as belonging to health are, should be prepared to support this part of the population
that, for the most part, is involved in psychological distress. Thus, we sought to investigate how future
psychologists realize the phenomenon transgenderism, as this perception may influence their practices. The
hypothesis was that the attitudes of undergraduate psychology against the transgender identity are based on the
phenomenon of misunderstanding. The study object was anchored in the construct attitude of social psychology.
The subjects were 100 students in psychology from 1st to 10th period of Estacio de Sa University (campus Nova
Iguaçu / RJ). We use them a questionnaire with Likert scale of 5 points, to meet the degree of agreement on the
issues and produce quantitative descriptions. Then the analysis of the results was based on the average ranking
(MRI) of the consent of items within each category of actions relating to the ecological model of human
development. The total average rating questionnaire was 3.97, which indicates an acceptance of transgenderism.
RESUMEN
Este artículo retrata una investigación sobre transgeneridad y su comprensión. La expresión transgénero se
reporta en un término que acoge la unión política entre los individuos con distinciones de género incompatibles a
las conductas sociales característicamente relacionadas con hombres y mujeres "comunes" y que, como efecto de
ello, padecen de intolerancia. En Brasil, prácticas de intervención han levantado diversos cuestionamientos
psicológicos, legales y sociales. En medio de esta discusión, se encuentran los profesionales de psicología que,
como pertenecientes al área de salud, deben estar preparados para dar soporte a esta parte de la población que, la
mayoría de las veces, está involucrada en sufrimiento psíquico. Así, se buscó investigar cómo los futuros
psicólogos perciben el fenómeno de la transgeneración, ya que esta percepción puede influenciar sus prácticas.
La hipótesis planteada fue que las actitudes de los graduandos de psicología frente a la identidad transgénero se
basan en la incomprensión del fenómeno. El objeto de estudio fue anclado en el constructo de actitud de la
psicología social. Los sujetos fueron 100 graduandos en psicología del 1º al 10º período de la Universidad
Estácio de Sá (campus Nova Iguaçu / RJ). Se utilizó un cuestionario con una escala likert de 5 puntos, para
conocer el grado de concordancia en cuanto a las cuestiones y producir descripciones cuantitativas. A
continuación, el análisis de los resultados se apoyó en el ranking medio (RM) de anuencia de los ítems dentro de
cada categoría de actitudes relacionándose con el modelo ecológico del desarrollo humano. El ranking medio
total del cuestionario fue de 3,97, lo que demuestra una aceptación de la transgeneración.
INTRODUÇÃO
A expressão transgênero é entendida atualmente como um termo “guarda-chuva”, a fim de
acolher uma união política entre todos os indivíduos portadores de distinções de gênero
incompatíveis às condutas sociais prevalentes. Esta definição passou a abarcar andróginos,
homens e mulheres heterossexuais que se expressam além dos estereótipos normais,
homossexuais masculinos efeminados, homossexuais femininas masculinizadas, travestis,
transexuais (tanto masculinos quanto femininos), drag queens, sujeitos que escolhem atender
a outros pronomes ou a nenhum, pessoas intersexuadas, e indivíduos distintos pertencentes a
algumas comunidades, como: as hijras da Índia, os maridos femininos da África, os mahu da
SEXO E GÊNERO
No ano de 1933, em um seminário a respeito da feminilidade, Freud declarava, com completa
segurança que “quando a gente encontra uma pessoa, a primeira distinção que fazemos é se
ela é homem ou mulher. E estamos acostumados a fazer tal distinção com certeza absoluta”
(FREUD, 1933).
O gênero está associado às diferenciações sexuais, mas não forçosamente as diferenças
fisiológicas como são percebidas pelo meio social. As heterogeneidades sexuais são tidas
como físicas, enquanto as heterogeneidades de gênero são construídas socialmente. O gênero
tem origem no modo como a sociedade distingue o processo que modela “um macho em um
homem e uma fêmea em uma mulher”. (STREY et al, 2009, p.182).
A edificação cultural do gênero é perceptível quando se examina que ser homem ou ser
mulher nem sempre presume as mesmas características em diversas sociedades ou em
distintas épocas.
[...] para a ciência biológica, o que determina o sexo de uma pessoa são suas células
reprodutivas (espermatozoides, logo, macho; óvulos, logo, fêmea), e só.
Biologicamente, isso não define o comportamento masculino ou feminino das
pessoas: o que faz isso é a cultura. [...] Sexo é biológico, gênero é social. Como as
influências sociais não são totalmente visíveis, parece para nós que as diferenças
entre homens e mulheres são naturais, totalmente biológicas, quando, na verdade, a
maior parte delas é influenciada pelo convívio social.
família, escola, mídia, sociedade em geral, com distintas forma de pensar, de sentir, de atuar
(BENEVENTO; SANTANA, 2013).
As desigualdades de gênero são edificações históricas, primordialmente patriarcais, assentado
numa forte sistematização sexual hierárquica, conforme autoridade masculina no meio
familiar, com o deslocamento para a esfera pública. Posteriormente, em contraste a essa
sistematização social, eclode o feminismo, com a peculiaridade de ser um movimento social e
político, com intento de igualdade dos sexos (HOGEMANN, 2015).
Desta forma, conforme esclarece Carloto (2001, p. 206):
Ainda dentro da categoria gênero, dois conceitos são relevantes: identidade de gênero, que se
relaciona ao gênero com o qual uma pessoa se identifica que pode ou não concordar com o
gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento e, expressão de gênero, que é a forma
como a pessoa se apresenta, sua aparência e seu comportamento, de acordo com expectativas
sociais de aparência e comportamento de um determinado gênero (JESUS, 2012). Além disso,
Scott (1995, p. 76) destaca que “o uso de “gênero” enfatiza todo um sistema de relações que
pode incluir o sexo, mas não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina
diretamente a sexualidade”.
HETERONORMATIVIDADE
Kitzinger (2005) declara que a “heteronormatividade é um dispositivo totalitário e
hegemônico resultante da aplicação compulsória das normas binárias de conduta de gênero a
todas as relações estabelecidas entre as pessoas na nossa sociedade”. Compreende-se, deste
modo, que a propagação de costumes e padrões heterossexuais, sustentadas, por exemplo,
pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família no
modelo pai-mãe-filho(a)(s). Relacionado a estas implicações, ocorre o heterossexismo
compulsório, entendido como uma imposição incontestável aplicada a todos os integrantes da
sociedade, com o objetivo de corroborar ou legitimar as práticas heterossexuais (FOSTER,
2001 apud MIRANDA, 2010). O heterossexismo pode ser entendido ainda como um
processo ideológico que contesta, macula e marginaliza qualquer maneira não heterossexual
de identidade, comportamento ou relacionamento. Esse sistema ideológico gera benefícios
para indivíduos que seguem as regras heterossexuais e estigmatiza e isola aquelas que não as
seguem (HEREK, 1992 apud SOUZA; PEREIRA, 2013).
TEORIA QUEER
Apesar da diferenciação entre sexo, como fator biológico, e gênero, como perspectiva social
ou designação cultural dessa prática, vindo a ser uma etapa rumo ao entendimento de como
nos constituímos culturalmente como homem/masculino e mulher/feminino (BUTLER,
1990b), a progressão ainda não é satisfatória no ponto de vista de muitos teóricos. Uma das
mais proeminentes censuras quanto ao conceito de gênero relacionado a uma construção
social é ter o sexo biológico como ponto de apoio desta construção, não permitindo
diversidade para algum outro tipo de opção, distinção ou oposição por parte dos indivíduos
(LANZ, 2014).
Neste sentido, “[...] inúmeros autores têm denunciado o reducionismo do binário de gêneros,
argumentando que masculino e feminino representam apenas dois pontos extremos de um
continuum de gênero” (LANZ, 2014, p. 50). É neste contexto que a Teoria Queer surge,
instigando novos pontos de vista e rediscutindo conceitos.
De forma geral, os movimentos que estão preocupados em desafiar os limites tradicionais de
gênero e sexuais tem se avolumado, questionando as dicotomias masculino/feminino,
homem/mulher, heterossexual/homossexual; e ainda outros que não se satisfazem em
trespassar essas divisões, porém decidindo assim viver a ambiguidade da própria fronteira em
si mesma. A nova força e ação dos movimentos sexuais e de gênero geram modificações nas
teorias e, concomitantemente, é sustentada por elas. A compreensão teórica mobilizou-se da
avaliação das desigualdades e das relações de domínio entre categorias sociais no concernente
as dadas ou fixas (homens e mulheres, gays e heterossexuais) para a dúvida das próprias
categorias – sua fixidez, separação ou limites – e para ver a disputa do poder em torno delas
como menos binária e menos unidirecional. Progressivamente, surgiriam, então, elaborações
e proposições teóricas pós-identitárias. Exatamente dentro dessa perspectiva que a afirmação
de uma política e de uma Teoria Queer precisa ser entendida (LOURO, 2001).
O termo queer refere-se a estranho, bizarro, esquisito, adoentado, combalido, obscuro,
ridículo, homossexual, bicha louca, veado (BENTO, 2012). Contudo, Bento (2012, p. 2660)
salienta que “os estudos queer invertem seu uso e passam a utilizá-la como marca
diferenciadora e denunciadora da heteronormatividade englobando gays, lésbicas,
transexuais, travestis e transgêneros”. Deste modo, os estudos queer possibilitam que todas as
diversidades de gênero, ou seja, todos os qualificados de acordo com a bibliografia médica
por indivíduos patologicamente enfermos ou transtornados, sejam considerados indivíduos
que formam suas identidades mediante os mesmos aspectos que os vistos como “normais”.
Conforme Casagrande, Carvalho e Luz (2009 apud PALOSKI; CADONÁ, 2014, p. 96),
“lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, heterossexuais e outros diversos modos de estar no
mundo reforçam a ideia de que a dimensão de gênero e sexualidade vai muito além dos
padrões estereotipados de homem e mulher”, normatizados por órgãos institucionais e sociais,
como, por exemplo, família, educação e religião, e por outras formas de coerção social,
empregados com o passar dos tempos. Os estudiosos queer afirmam que é preciso efetuar
modificações epistemológicas que de fato trespassem com o raciocínio binário e com suas
consequências: a graduação, a categorização, a dominação e a marginalização (LOURO,
2001).
TRANSGÊNERO
A partir desta compreensão, pode-se então definir Transgênero, de acordo com Lanz (2014, p.
70-71), da seguinte forma:
CISGÊNERO
Cisgêneros são indivíduos que não têm questões conflitantes no que se refere à identidade de
gênero. Não se perguntam, por exemplo, quanto a sua identificação como homens ou
mulheres ou ao gênero que lhes foi dado ao nascer. Em situação oposta às pessoas “trans”, os
cisgêneros, estão em concordância com seus corpos e a expressão de gênero e/ou papel de
gênero que exercem em consonância com aquilo que a sociedade espera para alguém com seu
sexo biológico (JESUS, 2012).
ORIENTAÇÃO SEXUAL
Orientação sexual refere-se ao desejo erótico-afetivo de uma pessoa, ou seja, por quem ela se
sente atraída, seja física, romântica e/ou emocionalmente. Apesar de ser uma definição
completamente diferente dos termos tratados previamente de sexo e gênero, na cultura
ocidental a qual pertencemos, a orientação sexual de um indivíduo é considerada atrelada ao
seu sexo físico e, consequentemente, ao gênero que lhe foi designado em seu nascimento,
conforme seus órgãos sexuais. Em resumo, quem nasce “macho”, ou seja, possuidor de um
pênis é automaticamente determinado como “homem” e espera-se dessa pessoa que tenha
uma atração erótico-afetiva por mulher. E, quem nasce “fêmea”, isto é, possuidora de uma
vagina, é automaticamente classificada como “mulher” e espera-se dessa pessoa que tenha
uma atração erótico-afetiva por homem. Qualquer viabilidade diversa de arranjo entre sexo,
gênero e orientação sexual não é realmente reconhecida e aprovada, apesar de, atualmente,
ser mais “suportada” (LANZ, 2014).
Conforme esclarece Lanz (2014, p. 41) “podemos descrever sexo como aquilo que a pessoa
traz entre as pernas; gênero como aquilo que traz entre as orelhas e orientação sexual como
quem ela gosta de ter entre os braços”.
Já Butler (2009), destaca que o que regula estes encadeamentos, em nosso contexto social, é a
heteronormatividade, uma “relação absoluta, linear e direta [...] entre sexo, gênero e
orientação sexual”. Desta forma, diante desse binarismo hetero/homossexual, em sentido
genérico, os estudos queer questionam as incongruências das relações alegadamente
inabaláveis entre sexo biológico, gênero e orientação sexual (JAGOSE, 1996 apud
MIRANDA; GARCIA, 2012).
Na vivência transgênero, há uma multiplicidade de relações amplamente complexas, como
por exemplo: arrumar-se conforme o gênero oposto, aplicação de homônimos e investimento
em procedimento cirúrgico, ou até mesmo a associação de todas essas práticas. Tais manobras
podem ou não levar a uma modificação de escolha de objeto de desejo sexual. Com a
possibilidade de se tornar um homem trans e gostar de garotos (transformando-se em um
homossexual masculino); ou um homem trans e gostar de garotas (tornando-se um
heterossexual); ou ainda, estabelecer-se um homem trans, passando por uma sucessão de
movimentos na orientação sexual integrando um relato de vida muito peculiar. Assim sendo,
a narrativa não pode ser limitada em uma categoria, ou então, pode ser presa por uma
categoria apenas por uma etapa delimitada de tempo. As narrativas de vida são histórias de
transformação, e categorias podem, por vezes, frear o processo de metamorfose e
modificação. Transferências na orientação sexual podem se dar como retorno a um consorte
determinado, de maneira que as histórias de vida, trans ou não, não precisam se exibir sempre
como congruentemente heterossexuais ou homossexuais (BUTLER, 2009).
Compreende-se, então, que uma pessoa transgênero, assim como qualquer outro indivíduo,
pode ter como orientação sexual a heterossexualidade, a homossexualidade, assexualidade ou
a bissexualidade, conforme o gênero que determina para si e do gênero com o qual se sente
atraído afetivo-sexualmente. Conforme explica Jesus (2012, p. 08), por exemplo:
[...] mulheres transexuais que se atraem por homens são heterossexuais, tal como
seus parceiros, homens transexuais que se atraem por mulheres também; já mulheres
transexuais que se atraem por outras mulheres são homossexuais, e vice-versa. Isto
é, nem toda pessoa transexual é gay ou lésbica, a maioria não é, apesar de
geralmente serem identificados como membros do mesmo grupo político, o de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT.
[...] se há alguma coisa comum presente na vida dessas pessoas, ela seria definida
pelos processos de estigmatização, ou seja, das dificuldades e impossibilidades das
mesmas em terem o direito fundamental à singularidade, de poderem exercitar o
direito de ser e de viver, de serem respeitadas como cidadãs.
ESTIGMA
Segundo Santos (2012), o conceito de estigma está relacionado a uma pessoa ou a um grupo
que carrega algum “sinal” que o distingue de forma pejorativa, rebaixando-o na escala social,
no entanto, para esse sistema de graduação não é suficiente um predicado de diferenciação,
mas sim um código de símbolos relacionais que sentencia o que é ou não admissível como
“natural”, como “normal”, consequentemente, como “aceitável” ou não.
Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um
atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que
pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável [...]. Assim
deixamos de considerá-la criatura comum e total, reduzindo-a a uma pessoa
estragada e diminuída. Tal característica é estigma, especialmente quando o seu
efeito de descrédito é muito grande [...] (GOFFMAN, 2010, p. 12).
O estigma, sendo assim, é decorrente de relações de poder. É preciso haver uma relação
conflitante, onde um grupo está estabelecido no conjunto detentor de poder, isto é, no
composto dominante, a fim de praticar atos de marginalização e segregação de sequelas
socialmente relevantes, e outro grupo será depreciado, padecendo de sérios efeitos
discriminatórios (LINK E PHELAN, 2001 apud SANTOS, 2012).
Desta forma, é preciso compreender que:
De acordo Burgess (2009 apud RAMALHO, 2013, p. 101) “as pessoas transgênero são o
grupo mais negligenciado e incompreendido da sociedade, com dificuldade de acesso aos
diferentes sistemas sociais”. Esta discriminação e arbitrariedade existem, desde cedo, nos
primeiros encarregados da socialização do indivíduo. A intolerância e desconhecimento do
fenômeno, por parte do meio familiar e educacional, por considerar a expressão de gênero
demonstrada por um transgênero, socialmente inadequada e divergente, procura forçar, e
muitas vezes castigar imensamente os gêneros que não se apresentam conforme as regras
ATITUDE
Conforme explicita Lima (2006, apud FAGUNDES; ZANELLA; TORRES, 2012, p. 56), a
atitude, “trata-se de "um construto hipotético" referente à tendência psicológica expressa em
avaliação favorável ou desfavorável de uma entidade em especial”. Desta maneira, “permite
diferentes compreensões do conceito, desde um modo de reação a objetos e pessoas até uma
tendência de agir ou pensar em certas circunstâncias” (ATKINSON et al., 2002 apud
FAGUNDES; ZANELLA; TORRES, 2012, p. 56).
As atitudes relacionam-se a como as pessoas raciocinam, experimentam e desejam se
comportar em relação a um dado objeto, sendo esta conduta definida não somente por aquilo
que os indivíduos gostariam de realizar, mas também pelo que eles pensam que devem fazer,
baseando-se nas consequências em expectativas deste dito comportamento (RODRIGUES,
2009). De forma ampla, a função das atitudes é simplificar a adaptação do indivíduo ao meio
em que está inserido, e assim:
Estas atitudes manifestam-se não somente por meio de sentimentos extremos, como ódio e
paixão, mas também através de níveis medianos de emoção, como a “atração ou repulsa, as
preferências ou aversões e o interesse ou desprezo. A partir dessas tendências, diz-se, então,
que uma pessoa tem atitude positiva se aprova o objeto de sua atitude e negativa, se o
reprova” (RIVOIRE, 2006, p. 29).
As atitudes não surgem no vácuo social, mas compõem uma edificação própria do indivíduo,
no entanto, de especificidade relacionada a aprendizagem e intimamente induzida por credos,
princípios, emoções e vivências socialmente compartilhadas, equivalendo indispensavelmente
a objetos próprios que estão presentes ou que são rememorados devido a um sinal (LIMA,
2002 apud LEAL et al, 2013).
Segundo Rodrigues (2009) a mudança de atitude torna-se necessária sempre que se busca
promover o bem-estar geral da humanidade, pelo qual comportamentos negativos como o
preconceito devem ser contidos para que seja possível a compreensão e a cooperação entre
grupos e pessoas em conflito. Daí a relação das atitudes com o presente trabalho, já que
podem revelar aspectos inerentes a visão de psicólogos sobre a transgeneridade.
exemplo: social, político, econômico), que também afetam o indivíduo, embora de maneira
indireta. Este desenvolvimento é ainda tido como um método de adequação recíproco e
bidirecional, em que o indivíduo além de experimentar a intervenção praticada pelo meio, por
sua vez também influencia e gera adaptação no seu ambiente de modo dinâmico e efetivo. O
teórico determina quatro sistemas principais (microssistema, mesossistema, exossistema e
macrossistema) entendidos como “bonecas russas”, onde cada um deles demonstram diversos
ambientes que influenciam o indivíduo e que abrangem outros sistemas menores no seu
interior. (BRONFENBRENNER, 1996).
[...] urge dizer que essas dificuldades citadas impedem que esse profissional possa
promover uma fala autêntica com seus clientes acerca de suas queixas afetivo-
sexuais no sentido de aliviar as dores e conflitos identitários vividos por eles –
sujeitos contemporâneos aprisionados ao paradigma de prazer sexual que abomina
frustrações, conflitos e crises inerentes à desvinculação do sujeito do “sólido e fixo”
modelo da heteronormatividade, retroalimentado por séculos pelo modelo patriarcal
(BRUNS, 2011, p. 66).
Para a autora, é possível identificar que “tais dificuldades estão centradas na aquisição
insuficiente de conhecimentos acerca das dimensões bio-psico-sócio-culturais da sexualidade
humana, no decorrer de sua formação profissional do Psicólogo” (BRUNS, 2011, p. 66).
Conforme confirma Soares, Karluze e Campanin (2010, p. 42), “é muito difícil enxergar em
um curso de Psicologia alguma matéria ou algum projeto educacional, desenvolvido por
professores e alunos cujo tema seja a homossexualidade”, e mais difícil ainda o tema da
transgeneridade.
Segundo Cormier-Otaño e Davies (2012, p. 01), “as combinações possíveis de preferências
sexuais, orientação sexual, identidade do gênero, papel e expressão de gêneros, preferencias
do gênero e escolhas de relação são variadas e cada uma torna-se numa narrativa individual”.
É essencial, desta forma, que o psicólogo, ao trabalhar com estes indivíduos, tenha
consciência dos seus próprios valores, preconceitos, ideias, crenças e concepções sobre o que
considera ‘normal’ e ‘saudável’ em termos de orientação sexual, função do gênero,
relacionamentos.
O processo de socialização é influenciado pela cultura de tendência predominante, na qual as
crenças heteronormativas são inerentes e frequentemente incutidas, por isso ninguém se
encontra totalmente isento de heterossexismo e de homofobia, e este posicionamento só é
possível através de uma reflexão crítica constante sobre o tema (CORMIER-OTAÑO;
DAVIES, 2012). A consciência desse processo é um primeiro passo no sentido da
compreensão do fenômeno e consequente mudança de atitude.
METODOLOGIA
A pesquisa realizada foi do tipo survey, que produziu descrições quantitativas por meio do
uso de um questionário predefinido. O instrumento aplicado para a coleta dos dados
empíricos utilizou a escala de likert, que apresentou como principal vantagem a fácil
aplicabilidade e o rápido entendimento dos participantes ao modo de responder. Participaram
deste estudo 100 estudantes de psicologia da Universidade Estácio de Sá, campus Nova
Iguaçu, do 1º ao 10º período. Os critérios de inclusão foram: estar regularmente matriculado
no curso, ter idade mínima de 18 anos e aceitar participar voluntariamente, através da
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE. Para a seleção adotou-se
o procedimento de abordagem aleatória dos alunos, ou seja, o método para a escolha da
amostra foi a não probabilística.
Quanto aos cuidados éticos, apesar desta pesquisa se qualificar como de risco mínimo, alguns
procedimentos indispensáveis foram adotados, como: submeter o projeto de pesquisa e
aguardar aprovação do comitê de ética, zelar perante aos participantes pela explicação da
referida pesquisa e do sigilo envolvidos, obter assinatura dos mesmos no termo de
consentimento e, só posteriormente, realizar a aplicação do instrumento.
Para identificar o nível de concordância e compreensão sobre a transgeneridade, utilizou-se
um questionário estruturado, formado por questões fechadas onde todos os entrevistados
foram submetidos às mesmas perguntas e às mesmas alternativas de respostas, adaptado (com
consentimento da autora) do estudo oriundo da dissertação de mestrado em psicologia
(OLIVEIRA, 2013), concebido com o objetivo primordial de conhecer as atitudes de
aceitação e de discriminação sob o referido tema.
O instrumento foi constituído de 134 questões no total, dividido em 3 partes distintas. Na
parte I o questionário autoaplicável era composto sobre dados sócio demográficos onde foi
requisitado que se colocasse uma cruz na opção mais adequada, tendo como objetivo
caracterizar a população respondente e obter uma distribuição quanto à idade, sexo, gênero,
orientação sexual, religiosidade e período cursado. Já a segunda e terceira partes abordavam o
tema em si da transgeneridade. Na parte II, pediu-se que o respondente selecionasse, de entre
um conjunto de frases, a opção que melhor se adaptava à sua opinião sobre o tema, de forma
bastante abrangente. Na parte III, os itens utilizaram uma escala de cinco pontos do tipo likert
de respostas possíveis, onde foi pedido ao respondente que lesse cada frase e avaliasse a sua
concordância. Essas etapas buscaram compreender qual o nível de conhecimento do
respondente sobre a temática da transgeneridade e entender a percepção e reação quanto ao
fenômeno investigado de modo diferenciado, desde o distante e abstrato até o próximo e
concreto. Ainda nesta terceira parte, o questionário foi estruturado em cinco subcategorias,
Quanto mais próximo de 5 o RM estiver maior será o nível de aceitação dos graduandos em
psicologia sobre a temática da transgeneridade e quanto mais próximo de 1 menor. A
compilação dos dados deu-se inicialmente através do programa Microsoft Access 2013 pela
facilidade no input e na localização dos dados. Já os gráficos foram gerados no MS Excel
2013, devido à sua flexibilidade, tipologia e estética na formatação.
PARTE II DO QUESTIONÁRIO
Na segunda parte do questionário foram inseridas questões com o objetivo de identificar o
nível de familiaridade dos respondentes com a temática e qual a sua percepção, de um modo
mais geral e abstrato, sobre a transgeneridade.
Familiaridade e percepção inicial sobre a temática - Numa avaliação subjetiva dos
próprios participantes (item 1), 22% admitiram não estar de todo familiarizados com a
temática da transgeneridade, 38% indicaram estar pouco familiarizados, 29% razoavelmente e
somente 10% muito familiarizados com o tema.
CONSIDERO-ME...
40
35
30 38
25
20 29
15 22
10 10 1
5
0
NADA POUCO RAZOAVELMENTE MUITO NÃO RESPONDEU
FAMILIARIZADO FAMILIARIZADO FAMILIARIZADO FAMILIARIZADO
COM A TEMÁTICA COM A TEMÁTICA COM A TEMÁTICA COM A TEMÁTICA
DA DA DA DA
TRANSGENERIDADE TRANSGENERIDADE TRANSGENERIDADE TRANSGENERIDADE
Contato direto com pessoas transgênero - No que respeito ao contato direto com
pessoas transgênero (item 2), 5% dos respondentes indica que não conhece nem nunca ouviu
falar de alguém; num ponto mais intermédio, situam-se 36% dos respondentes indicando
“Não conheço pessoalmente, mas sei de alguém que é/ conheço de vista” ou “Não, mas já
ouvi falar de alguém” (12% e 24% respectivamente); e 59% das pessoas indicaram conhecer
pessoalmente alguém transgênero (21% “Sim, mas raramente estabeleço contato com essa
pessoa”; 24% “Sim e mantenho algum contato com essa pessoa”; 9% “Sim e mantenho uma
relação próxima com essa pessoa”; 5% “Sim, tenho um familiar que é transgênero”).
Participação em Associações ou Instituições que trabalham com a temática da
transgeneridade - Relativamente a este assunto (item 3), 93% dos respondentes nunca
participou enquanto 7% dos respondentes disse participar atualmente ou já ter participado no
passado (respectivamente 5% e 2%).
Percepção sobre a transgeneridade - No que se refere à percepção mais direta da
temática em questão, no topo dos sentimentos/emoções mais despertados (item 4) estão a
curiosidade (indicado por 58% dos participantes), compaixão (33%), tranquilidade (também
com 33%), tristeza (22%) e empatia (21%) como indicado no gráfico abaixo.
Figura 02 – Gráfico Parte II, item 4. “Quando se fala em transgeneridade, que sentimentos/
emoções lhe são despertados?” (N=100)
SENTIMENTOS DESPERTADOS
MEDO 0
1
REPULSA 1
2
ANSIEDADE 2
3
AMBIVALÊNCIA 3
5
ADMIRAÇÃO 7
9
INCOMODO 10
10
INDIFERENÇA 15
17
EMPATIA 21
22
TRANQUILIDADE 33
33
CURIOSIDADE 58
0 10 20 30 40 50 60 70
Figura 03 – Gráfico Parte II, item 5. “Quando pensa em transgeneridade, pensa na situação
como algo:” (N=100)
PENSAMENTO SOBRE
TRANSGENERIDADE
39
33 30
21 19 17 15 15 12 10 9 5 3 1
preconceitos na sociedade (55 vezes mencionado). As opções menos sugeridas foram: “Não
poder frequentar espaços em que exiba o corpo (praia, ginásios, etc)” 2 vezes mencionada e “
Não saber da existência ou não conhecer ninguém que tenha passado pelo mesmo” com 1
menção. O item “Não sei/ Não estou suficientemente informado sobre o assunto” só foi
selecionado por 3 participantes.
Figura 04 – Gráfico Parte III, Ranking Médio médio por subsistema (N=100)
Desta forma, compreendeu-se que os respondentes se consideram com uma “mente aberta” a
fim de aceitar indivíduos transgêneros socialmente, porém ainda não estão aptos e dispostos a
estenderem tal aceitação e concordância a suas vidas pessoais e privadas.
Outra correlação possível foi entre o período em curso e o grau de compreensão sobre a
temática da transgeneridade. Para tal fim, foram somados os respondentes em 3 grupos
distintos conforme o nível de conhecimento acumulado durante o curso, assim dividido:
grupo 01 do 1º ao 3º período (N=38), grupo 02 do 4º ao 7º período (N=26) e grupo 03 do 8º
ao 10º período (N=35). Foi possível perceber que os alunos do grupo 03 (períodos finais da
graduação) declararam que possuíam um conhecimento mais elevado sobre a temática
(muito=8), versus o grupo 01 (muito=1) e grupo 02 (muito=1). Em contrapartida, o grupo 3
também foi o grupo que mais declarou ter pouco conhecimento sobre o tema aventado nesta
pesquisa (pouco=16), versus o grupo 01 (pouco=12) e o grupo 02 (pouco=10). Assim sendo,
torna-se difícil uma conclusão definitiva sobre este nível de conhecimento em relação ao
período em curso.
RAZOAVELMENTE 7
POUCO 16
NADA 4
MUITO 1
4,5,6 E 7
RAZOAVELMENTE 10
POUCO 10
NADA 5
MUITO 1
1,2 E 3
RAZOAVELMENTE 12
POUCO 12
NADA 13
0 2 4 6 8 10 12 14 16 18
Como 60% dos respondentes afirmaram estar pouco (N=38) ou nada (N=22) familiarizado
com assunto transgêneros (vide gráfico 01 - parte II, item 1. “Considero-me ...”), é possível
ratificar a hipótese proposta de que existe, entre graduandos de psicologia face à identidade
transgênero, um relativo nível de incompreensão do fenômeno. No entanto, como o grau total
de aceitação foi favorável, num total geral de RM em 3,97 pode-se perceber que, apesar de
existir um nível de desconhecimento entre os respondentes, estes possuem atitudes positivas
sobre esta população, ou seja, possuem uma tendência assertiva frente aos transgêneros.
Provavelmente, se houvesse uma maior preocupação em disseminar mais conhecimento sobre
o assunto da transgeneridade, reduzindo este grau de incompreensão, a concordância com a
temática seria ainda maior, em todos os níveis.
Desta forma, consideramos que a pesquisa conseguiu alcançar seus objetivos de conhecer a
anuência de graduandos em psicologia, Universidade Estácio de Sá, Campus Nova Iguaçu,
sobre a transgeneridade e de relacionar a concordância/discordância dentro de cada categoria
de atitudes ao modelo ecológico do desenvolvimento humano de Bronfenbrenner.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho teve como objetivo investigar as atitudes dos graduandos do curso de
Psicologia, no município de Nova Iguaçu, face à identidade transgênero. Dada a análise dos
resultados, obtidos através da aplicação de questionário estruturado, verificou-se que, mesmo
ante a escassez de conhecimento da temática e incompreensão do fenômeno, as atitudes dos
graduandos são positivas em relação a transgeneridade. Para maior aprofundamento,
congruência ou incongruência nas declarações, o questionário foi dividido em categorias,
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http://dx.doi.org/10.1590/S1678-69712013000400004.
RESUMO
O objetivo deste artigo é analisar a repercussão que o diagnóstico de Incongruência de
Gênero tem na infância, situando os manuais de transtornos mentais como eixos centrais
da discussão. Para tanto, reconhece-se o uso estratégico da patologização das
identidades trans e travestis na adolescência e vida adulta, mas ressalta os desafios
quando essa mesma patologização destina-se a crianças. Diferente de quando ocorre
com pessoas adultas, compreende-se que o diagnóstico de gênero na infância se justifica
a partir de uma concepção de cuidado e benevolência. Em conclusão, propõe-se
abandonar o pensamento em saúde que se baseia na preocupação e tutela para pensar em
um compromisso ético e político com a diferença.
Palavras-chave: Diagnóstico. Crianças. Travestis. Pessoas trans.
ABSTRACT
The objective of this article is to analyze the repercussion that the diagnosis of Gender
Incongruence has on childhood, placing the manuals of mental disorders as central axes
of the discussion. For this, the strategic use of the pathologization of trans and
“travestis” identities in adolescence and adulthood is recognized, but it highlights the
challenges when this same pathologization is aimed at children. Different from when it
occurs with adults, it is understood that the diagnosis of gender in childhood is justified
from a conception of care and benevolence. In conclusion, it is proposed to abandon the
1
Mestranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5179-1154
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).
thought in health that is based on the concern and tutela to think about an ethical and
political commitment with the difference.
Keywords: Diagnosis. Children. “Travestis”. Trans people.
RESUMEN
El objetivo de este artículo es analizar la repercusión que el diagnóstico de
Incongruencia de Género tiene en la infancia, situando los manuales de trastornos
mentales como ejes centrales de la discusión. Para ello, se reconoce el uso estratégico de
la patologización de las identidades trans y travestis en la adolescencia y la vida adulta,
pero resalta los desafíos cuando esta misma patologización se destina a niños. Diferente
de cuando ocurre con personas adultas, se comprende que el diagnóstico de género en la
infancia se justifica a partir de una concepción de cuidado y benevolencia. En
conclusión, se propone abandonar el pensamiento en salud que se basa en la
preocupación y tutela para pensar en un compromiso ético y político con la diferencia.
Palabras clave: Diagnóstico. Niños. Travestis. Personas trans.
INTRODUÇÃO
3
A revisão provisória da CID-11 pode ser vista em: <https://icd.who.int/browse11/l-
m/en#/http%3a%2f%2fid.who.int%2ficd%2fentity%2f411470068>. Acesso em: 29 de jan. de 2019.
4
Aqui deixamos de nos referir apenas à transexualidade, por entendermos que os desafios se expandem às
travestis e demais pessoas trans. Não houve a intenção de utilizar a categoria “transexualidade” como
termo guarda-chuva, mas de compreendê-la como peça central no jogo da medicina.
5
Nessa seção também há a presença de um diagnóstico não específico de Incongruência de Gênero, sob o
rótulo HA6Z.
DIAGNÓSTICOS BENEVOLENTES
7
O CFM concebe a hormonioterapia somente a sujeitos que tenham mais de 16 anos. Disponível em: <
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/2013/8_2013.pdf>. Acesso em: 30 de jan. de 2019.
8
Incongruência de Gênero na Infância (IGI).
um círculo vicioso, uma vez que pretendem oferecer serviços para estigmas que têm
sido ignorados.
Diagnóstico de gênero, quando não relacionado a fins estratégicos, fabrica mais
adoecimento do que possibilidade de ação (BUTLER, 2009), mas é aqui que a infância
o autoriza a se apresentar de outra forma: através de sua benevolência. Não se busca
diagnosticar a infância para fazê-la mal de alguma forma, mas para protegê-la de algo:
da ausência de políticas públicas, do preconceito, da escola, dos próprios pais, etc. E em
nome das próprias crianças, o diagnóstico de Incongruência de Gênero tem sido
defendido. Não é devido ao interesse dos profissionais em realizar suas pesquisas, ou à
determinada reserva de mercado, mas em suposta razão do bem-estar da infância. O que
nos revela o aspecto tutelar do diagnóstico de gênero na infância, por entendê-la como
um risco eminente que deve receber amparo de consultórios em saúde mental.
A valer, o dado é que a psicologia nunca precisou de um diagnóstico para prover
suporte e proteção a alguma população, especialmente crianças. E também não
necessitou recorrer a um manual de saúde para isso. Tendo o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) em mãos, o psicólogo terá acesso à Lei n° 8.069, de 1990,
responsável por garantir que nenhuma criança ou adolescente seja alvo de negligência,
discriminação, violência, crueldade e opressão. Esse deslocamento implica pensar o
cuidado não somente através da saúde, mas a partir de âmbitos outros, tais como os
Direitos Humanos e a Constituição Brasileira.
De outro modo, estaríamos assumindo que a psicologia e as ciências médicas
sempre precisaram de um rótulo nosológico para poder agir. E, afinal, não é possível
atender sem diagnóstico? Se o código de Incongruência de Gênero na Infância é útil
para nortear crianças às psicoterapias, levando em consideração a pouca idade e o
prematuro desenvolvimento físico para intervenções mais dramáticas, então ele é
desnecessário. Os serviços garantidos pelo Processo Transexualizador (Portaria n.º
2.803) são de acompanhamento clínico, pré e pós-hormonioterapia, assim como de
acompanhamento pré e pós-operatório. Sabe-se, contudo, que não são serviços
direcionados ao público infantil.
ideia de que se é mulher esse corpo tem que ser feminino, se é homem tem
que ser masculino (p. 33).
9
TGNC, no documento da APA (2015), significa transgender and gender nonconforming. Em português,
seria equivalente a “transgênero e gênero não-conforme”.
Do mesmo modo, um paciente que, por exemplo, busque ajuda para “deixar de
parecer trans” não faz com que o foco do tratamento seja fazê-lo realizar cirurgias ou
iniciar a terapia hormonal, mas auxiliá-lo a entender os desdobramentos do contexto
social em sua própria identidade. Daí em diante ele pode decidir se operar ou não. Pode
decidir se hormonizar ou não. E ocasionalmente isso até deixe de ser um conflito. As
possibilidades são múltiplas. Como bem lembra Teixeira (2012), é um reducionismo
considerar as pessoas trans e travestis como presas em um corpo errado à espera de uma
cirurgia que irá trazer inteligibilidade e reconhecimento.
Evidentemente que uma aparência mais próxima da norma pode fazer com que o
sujeito consiga não vivenciar algumas violências cotidianas. Assim, ter passabilidade, o
que segundo a APA (2015) seria relacionado a ser percebido enquanto cisgênero, não é
necessariamente um objetivo negativo. E a própria associação reconhece isso. O ponto é
que nos soaria inadequado guiar o paciente tanto a uma busca pela aparência cisgênera
quanto à recusa dessa estética, uma vez que as consequências disso não serão
enfrentadas pelos profissionais. Cabe pensar a trans-autonomia como uma saída, uma
prática, não um conceito, útil para possibilitar a determinação do próprio gênero para
além das exigências institucionais de confirmação diagnóstica (ARÁN, MURTA e
LIONÇO, 2009).
INFÂNCIAS (IM)POSSÍVEIS
contribuindo com a ideia de que pessoas trans não podem ter um transtorno mental,
conforme aponta o CFM, na Resolução n° 1.955, referente à cirurgia de
transgenitalização no Brasil.
Nessa Resolução, o Conselho reassegura que o paciente transexual trata-se
daquele que sente um desconforto intenso com o sexo anatômico, assim como um
desejo de eliminar os genitais e as características primárias e secundárias do próprio
sexo. Tal determinação define os limites de acesso à categoria transexual, relegando às
margens os sujeitos trans que não se enquadram nesse perfil psicopatológico clássico.
Ainda, é demandado pelo CFM que o sujeito vivencie esses sintomas pelo período
mínimo de dois anos. Tempo que serve para observar se a transexualidade se articula a
(mais) algum transtorno, conforme a lógica de que as identidades trans e travestis se
tratam de adoecimentos. O Art. 4° da Resolução diz que o sujeito transexual não deve
ter “outro” transtorno mental, fornecendo indícios de que é inadmissível a presença de
alguma comorbidade10 com a transexualidade.
No entanto, esse artigo foi alterado posteriormente, sendo possível observar a
edição onde consta uma nota para que o leitor entenda “outro transtorno” como “algum
transtorno”. Embora essa reformulação dê indícios de que o CFM tem deixado de
encarar a transexualidade como um transtorno, ela sugere que as comorbidades
permanecem não sendo permitidas. Ou seja, em caso de algum paciente transexual
apresentar algum diagnóstico que não seja o de F.64.0, o profissional pode acabar
entendendo que a transexualidade é um sintoma de algo – de um transtorno psicótico,
por exemplo, mas não em si mesma. Assim, a transexuais não são permitidos quaisquer
tipos de adoecimentos psíquicos, apesar de que, paradoxalmente, sejam reconhecidas as
violências sociais que acometem essa população.
Ainda pensando através dessa lógica, em que algumas coisas não são
consentidas clinicamente em relação à transexualidade, nos parece que a infância parte
de um funcionamento similar. E um dos instrumentos sociais para impedir a
relativização da infância é o delineamento de seus limites. Não é apenas sobre definir
10
Essa é uma discussão apontada por Arán e Murta (2009).
até onde a infância pode ir, mas entender que essas fronteiras precisam ser consideradas
perigosas, pois assim passam a ser evitadas. É a partir disso que as infâncias que
subvertem os sistemas de sexo e gênero passam a ser vistas como riscos à saúde do
sujeito, quando não à sua própria vida.
Não obstante, o diagnóstico de gênero na infância pulveriza em outras
identidades, como é o caso da intersexualidade, fazendo com o debate se complexifique
ainda mais. Amplamente discutida por Machado (2005), as crianças e jovens intersex
são submetidas a algum tipo de cirurgia de “correção” da genitália logo cedo. Parte-se
da compreensão de que é necessário operá-las o quanto antes, caso contrário, surgirão
disfunções psicológicas e sociais ao longo do desenvolvimento. Todavia, tais cirurgias
não têm impedido o aparecimento dessas exatas questões, podendo inclusive ser as
propulsoras de tais sofrimentos. Mobilizações recentes de profissionais do Hospital das
Clínicas do Rio Grande do Sul, afirmam que as cirurgias de “binarização” sexual devem
ser realizadas precocemente, pois a espera para realizá-las depois pode ocasionar em
consequências catastróficas na vida adulta (HEMESATH et al, 2019).
Furar a orelha de uma menina, tratar seu cabelo com químicas, expor meninos a
brincadeiras violentas para legitimar um tipo de masculinidade, essas e outras situações
não se apresentam como ameaças a um corpo infantil, mas como um processo
necessário à reiteração da norma. Dizer-se trans, todavia, emerge uma série de
apontamentos em relação ao bem-estar daquele corpo, pois a transexualidade é vista
como um perigo. Um perigo clínico, assim como um perigo social. Clínico segundo
uma interpretação nosológica, de que aquela criança pode ter manifestado isso devido a
algum evento traumático, e social em razão do contexto transfóbico a que são
submetidas as pessoas trans.
E apesar de ser, sim, imprudente afirmar que não exista perigo social, tal
constatação não se direciona a um tensionamento das normas de gênero, que produzem
e sustentam as violências transfóbicas, mas procura fazer evitar com que as crianças
sequer sejam trans. Cautela, no entanto, com o sentido dado a essa afirmação. Ao longo
do presente trabalho, buscamos situar as crianças tidas como trans a partir de uma
postura hesitante, mas não para dizer que a transexualidade é uma fase, e sim para
pensar que o engessamento da mesma pode funcionar de forma contraproducente. O
fato é que não nos interessa afirmar que existem crianças trans, em oposição às
investidas de setores conservadores11 que dizem que tais infâncias simplesmente não
existem. O que nos interessa é deslocar o modo que realizamos as perguntas e
elaboramos nossas explicações.
Nesse sentido, não nos é fundamental responder à insistência dos que querem
saber se, afinal, existem crianças trans ou não. Pensar infância e gênero é uma atividade
que exige abrir mão do modo tradicional de interrogar. Mas o que queremos dizer com
isso? Alguém que passou pela adolescência, vida adulta e somente quando mais velho
decidiu transicionar, teria sua infância interpretada como trans? Ou então, alguém que
na infância chegou a ser diagnosticado como transexual, mas que ao longo da
adolescência decidiu rever essa decisão, deixaria de ter sido uma criança trans? Parece a
nós que tais perguntas revelam a necessidade de discutir infância e gênero através de um
outro funcionamento.
É pouco relevante, portanto, saber se é trans ou não, mas compreender quais são
as possibilidades de emergência dessas infâncias em primeiro lugar. Ou não nos chama
atenção o fato da infância que subverte o gênero ser chamada de infância “trans” e
nunca de infância “travesti”? Uma infância travesti significaria não somente um
rompimento com as investidas nosológicas, visto que a travestilidade não foi capturada
da mesma forma que a transexualidade pelo discurso médico, mas significaria também
associar à infância uma identidade profundamente ligada à precariedade, trabalho
informal e liberdade sexual.
Aparentemente, existe uma forma adequada até mesmo para ser uma criança
trans, pois é por meio de seu apelo clínico que se constrói uma rede de apoio familiar,
escolar e social. O que, de fato, é bastante interessante. É menos sobre ler as
intervenções em saúde como necessariamente ruins, e mais sobre entender que é
exclusivamente por meio delas que tem sido possível alcançar cidadania. Acolhem-se os
11
Sobre o pânico moral relacionado à suposta “ideologia de gênero”, ler Miskolci e Campana (2017).
pacientes que reproduzem a narrativa diagnóstica, que segundo Bento (2006) seriam
aqueles que melhor se enquadram à norma. Agora, sim, a pergunta: o que acontece às
travestis e pessoas trans que, independentemente de suas idades, são incapazes de
invocar a piedade da clínica?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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______. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal.
Contemporânea, São Carlos, v. 4, n. 1, p. 165-182, 2014.
LEITE Jr, Jorge. Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias "travesti" e
"transexual" no discurso científico. São Paulo: Annablume, 2011.
LOBATO, Maria; SAADEH, Alexandre; CORDEIRO, Desiree; et al. Arch Sex Behav
46: 2511, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s10508-016-0864-6>. Acesso
em: 30 de jan. de 2019.
PRADO, Marco Aurélio Máximo. Ambulare. Belo Horizonte (MG): PPGCOM UFMG,
2018.
TEIXEIRA, Flavia do Bonsucesso. Histórias que não têm era uma vez: as (in)certezas
da transexualidade. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 20, n. 2, p. 501-512, Aug. 2012.
RESUMO
Este artigo analisa como determinadas redes discursivas se (re)produzem nos processos educativos diante dos
dispositivos da sexualidade e das normas regulatórias de gênero, tomando como foco os discursos da
heteronormatividade e sua potência na produção de subjetividades em cotidianos escolares. Para isso, dialogamos com
os Estudos Feministas e queer de modo a privilegiar as produções no campo da Educação em interface com a escola.
Como opção metodológica, este estudo analisou primariamente entrevistas realizadas em uma instituição confessional
e filantrópica de ensino fundamental e médio, localizada em uma cidade de grande porte no estado do Ceará. Para
tratamento deste material, utilizamos a análise de discurso inspirados/as em perspectiva foucaultiana. Esta abordagem
teórico-analítica nos permitiu apontar que os/as educadores/ras assumem posições de sujeito localizadas em planos
hetero/normativos, bem como disposições menos rígidas em relação a estes discursos. O que nos fez ponderar sobre
ABSTRACT
This paper analyses how specific discursive webs are (re)produced in educational processes by the contrivances of
sexuality and gender focusing the discourses of heteronormativity and its power in the production of subjectivities in
school everyday. To do that, we dialogue with the queer and Feminist Studies to privilege productions in the field of
Education in interface with school. As methodological option, this study firstly analysed interviews made in a
confessional and philanthropic institution of elementary and secondary education, located in a crowded city in the
state of Ceará/Brazil. To treat that material, we used the discourse analysis inspired on a foulcaultian perspective. That
theoretical-analytical approach allowed us to point out that the educators assume a position as subjects located in
hetero/homonormative plans as well as a little bit less strict dispositions related to those discourses. That made us
ponder a diffuse arrangement of materialised enunciating sets in gender and sexuality pedagogies of that everyday
school life as long as we also realise pedagogical conducts that worked out in a critical way in relation to the previously
stablished as normative. Those results inform kind of an everyday agonistic in education and therefore reveal
movements that (re)position teachers before the plots of heteronormativity as by forms of subjection and of
pedagogical orthopaedics as on the resistance plan and (re)invention of (micro)policies of the school everyday.
Keywords: Education; School; Gender; Sexuality; Heteronormativity.
INTRODUÇÃO
3
Em diálogo com as proposições postas pelos Estudos Culturais, o conceito de pedagogia cultural é aqui apresentado
como “qualquer instituição ou dispositivo cultural que, tal como a escola, esteja envolvido – em conexão com relações
de poder – no processo de transmissão de atitudes e valores” (Silva, 2000, p.89).
dissimulação ou a segregação” (Louro, 2000, p.27), assumindo que isso implica em evidenciar
como esta estratégia política se constitui nos cotidianos escolares (Oliveira, 2001).
Estamos convencidos/as de que a escola constitui-se enquanto uma arena onde se
(re)produzem hierarquias, desigualdades, injustiças e sofrimento de forma contundente quando,
especificamente, atrelados às dimensões gênero-sexuais da constituição do sujeito escolar.
Autoras/es como Guacira Lopes Louro, Dagmar Meyer e Fernando Seffner, em algumas de suas
obras tratadas ao longo deste artigo, destacam a dimensão de saber-poder onde currículo e
cotidiano se oferecem como espaços de reificação de normas e exclusões. Ao mesmo tempo, a
escola e a educação básica se colocam como lugar possível de reinvenção dos novos modos de
fazer política e desde onde emergem novas subjetividades, articuladas ao jogo da produção de
conhecimento no cotidiano.
Entendemos o currículo e o cotidiano escolar para além de estreitezas conceituas sobre os
processos formais de ensino-aprendizagem e os conteúdos selecionados. Tratamos destas
dimensões como um arranjo por onde determinada sociedade produz os sentidos
institucionalizados pelo Estado como (im)próprios para a vida (em sociedade). Ou seja, nos
referimos às epistemologias4 do mundo produzidas nos territórios educacionais. Buscamos, assim,
compreender como a educação opera, conforma e constitui elementos para pensar-viver a
sexualidade e as relações de gênero – como dimensões importantes na constituição dos sujeitos
escolares, conforme já apostamos em outra ocasião (Pocahy e Dornelles, 2011).
A diáspora dos sujeitos objetivados nos discursos da heteronormatividade ocupa muitas
das cenas cotidianas da educação e da escola. Esta norma que atua na “produção e [...] reiteração
compulsória da norma heterossexual”(Louro, 2009, p. 90) se imbrica aos (e se retroalimenta dos)
processos de ensino-aprendizagem como um regime político arbitrário que opera no sentido de
determinar práticas e condutas normativas gendradas (no sentido atribuído por De Lauretis (2006
[1994])), ao afirmar as marcas de gênero como elementos de produção do que nos cerca). A
heteronorma atua, também, regulando as experimentações da sexualidade ao pressupor a
4
Referimo-nos a regimes de verdade que autorizam alguns/algumas a organizar e narrar as experiências políticas e
socioculturais do conhecimento no espaço escolar. Acrescentamos a isso as apostas de Britzman (1996) quando afirma
que todo conhecimento contém suas próprias ignorâncias, no sentido em que seleciona, privilegia e localiza objetos e
sujeitos no jogo do conhecimento.
A escola, vale repetir, é espaço público, objeto de políticas públicas, e nela o convívio
respeitoso da diversidade deve acontecer. A mesma consideração aqui feita para questões
de gênero e sexualidade vale para diferenças de raça, cor, origem regional, classe social,
pertencimento religioso, ordenamento familiar, etc. Todos devem ser respeitados, e
cumprir o que dizem o regimento escolar e o projeto político pedagógico da escola, que
não pode estabelecer discriminações.” (2011, p.9).
MÉTODO
Esta pesquisa possui design qualitativo, a partir da aplicação de um protocolo único (roteiro
de entrevista semi-estruturada) dividido em a) aspectos sociodemográficos, incluindo-se os
elementos relacionados à formação docente; e b) questionamentos acerca de temas e situações de
cotidiano escolar relacionados a gênero e sexualidade. Os/as interlocutores/ras foram
convidados/as a participar da pesquisa através de apresentação da equipe de pesquisa em reuniões
na escola com a companhia de coordenadores e coordenadoras pedagógicos do estabelecimento
de ensino e o trabalho com as entrevistas realizou-se durante o mês de novembro de 2012.
Na composição dos dados congregamos algumas posições destes/destas educadores entre
planos/ posições normativas, fronteiriças e críticas. Diante deste arranjo (um tanto arbitrário, mas
operativo) pudemos observar elementos de uma agonística social que cerca a experiência
educacional, não como um elemento exterior (o fora da escola, a sociedade ‘entrando’ na escola),
mas como um regime político-discursivo que define o interior de suas próprias práticas e das
condições próprias deste grupo estabelecendo micropolíticas de um cotidiano educacional.
Optamos por não analisar separadamente os núcleos/ planos. Decidimos destacar elementos
de oposição, tensão e encontros naquilo que nos pareceu mais próximo do cotidiano: por onde e
por quais caminhos no conjunto dos dados as normas se atualizam, reatualizam, marcando os
modos de produzir e habitar a escola.
INTERLOCUTORES/RAS DA PESQUISA
A dimensão ética da investigação que originou este artigo está associada ao conceito de
“cosmopolitismo crítico” apontado por Rabinow (1999), onde o principio condutor da pesquisa é
em si e por si uma questão de ética – no plano de alargamento das possibilidades de liberdade
das/dos interlocutoras/res na pesquisa, sejam estas pessoas ou instituições. Para este autor,
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A escola e suas pedagogias como políticas de subjetivação instauram normas, bem como
possibilidades de resistência. Conjuga-se, aí, um contraditório improvável na agonística da
democracia e nas disputas sobre a noção de humano/ sujeito escolar: potência de vida e
mortificação do desejo em um mesmo espaço – a escola.
Especificamente sobre as entrevistas críticas, indicamos o reconhecimento de posições mais
flexíveis com relação às questões de gênero. Contudo, ainda assim, as análises indicaram rastros
dos discursos heteronormativos e hétero/sexistas nas falas deste grupo. Em geral, os/as
interlocutores/as qualificados/as como críticos/as apresentam uma visão complexa das produções
normativas, mas o limite das posições encontra seu maior desafio nos ecos institucionais, uma vez
que o estabelecimento porta uma marca religiosa de grande expressão, sendo reconhecido no
contexto da cidade pela tradição e compromissos com as pedagogias cristãs.
Observamos na contribuição da interlocutora Beatriz, 24 anos, professora de Literatura e
Artes que: “[a sociedade] diz que não espera [coisas diferentes do homem e da mulher]. Ela sempre
vai esperar coisas diferentes porque a nossa sociedade atual por mais que se diga muito, minha
opinião, querendo igualdade, sempre vai querer diferenciar de alguma forma.”. O que nos permite
adensar a discussão de que ao gênero são atribuídas significações que dizem respeito à forma de
se comportar, a partir da materialidade ‘irredutível’ dos corpos. Os homens são vistos como fortes,
provedores e racionais, enquanto as mulheres são sensíveis e submissas, além de serem
responsáveis pelo cuidar e proteger, performance essa que pode ser atribuída à maternidade. Neste
aspecto, o que se constituiria enquanto uma diferença ´naturalizada´, opera de forma a manter as
hierarquias de gênero, seu essencialismo binário e as desigualdades decorrentes destas marcas de
poder-saber. Segundo Meyer (2003a) essas noções são apresentadas como se fizessem parte da
natureza das mulheres que se tornam, por exemplo, mães, norteando muitos dos processos
educativos através dos quais alguém se torna homem ou mulher, pai ou mãe.
Percebemos a circulação comum de discursos relativos à divisão de gênero no trabalho na
qual o argumento principal é a desigualdade construída socialmente entre homens e mulheres no
âmbito do produto dos regimes de produção – como as especialidades no campo do trabalho, bem
como no retorno salarial diferenciado. Apesar de algumas mudanças contemporâneas dos lugares
e posições ocupadas pelas mulheres na sociedade brasileira, os/as interlocutores/as apontam que
ainda existe uma grande submissão aos homens e/ou ainda persiste a visão da mulher como
cuidadora, como uma condição social de reconhecimento. Deste modo, a noção de mulher
“naturalmente” responsável por diversas instâncias de cuidado e vinculada a uma maternidade
compulsória são expressões de uma feminilidade contemporânea que, simultaneamente, não nega
o desejo e a atuação nos espaços de públicos e de trabalho. No entanto, podemos observar tensões
e desencaixes nessas representações, a partir dos seguintes argumentos:
A sociedade não espera mais isso do homem ou da mulher, a sociedade quer uma coisa só:
capital. Pelo menos a sociedade capitalista” (Pedro, 41 anos, professor de História).
Tem uma questão que eu coloquei muito, a gente tá trabalhando isso tanto com os alunos
do Fundamental quanto do Ensino Médio, é como a gente faz a correlação entre a Terceira
Revolução Industrial e o tempo histórico e dentro disso um tema que foi muito abordado
foi justamente a sexualidade, a questão do gênero, a questão da mulher como força de
trabalho, do homem como rever seus conceitos, a sociedade mudando seu comportamento
e os dois crescendo juntos nessa capacidade de interação maior na questão do gênero. Ou
seja, a sociedade caminhando para você desassociar ou desconstruir o conceito do
machismo. E a gente tem isso ainda muito forte. (Lucas, 46 anos, professor de História)
Nas entrevistas que apresentam ecos críticos percebe-se algo das repercussões dos
deslocamentos presentes nas propostas feministas. Nestas posições, observa-se o reconhecimento
do avanço das lutas das mulheres na sociedade brasileira, contudo, ainda reconhece-se a presença
masculina como opressora e a quem estas precisam, em geral, se colocar em situação de submissão.
Dessa forma, se por uma parte percebe-se tensionamentos nas representações sociais de
feminilidade e masculinidade, por outra há discursos de gênero essencialistas que atravessam a
fala dos/das entrevistados/as. Na análise do material empírico, estes discursos operam sustentando
a sensibilidade e a emoção como atributos femininos, bem como indicam a força e o trabalho como
características intrinsicamente masculinas. Este argumento pode ser observado nas ponderações
de Osvaldo, 54 anos, professor de Química: “A gente sempre espera delicadeza. Que usasse mais
o emocional do que o racional, a sensibilidade. As mulheres são muito mais espertas que os
homens, vejo pela minha mãe, tem uma percepção muito melhor de que os homens, elas veem
coisas que os homens não veem. (...) Os homens são mais racionais, machistas. Eu fui criado assim,
né? Os pais da gente... Mas quando a gente quer quebrar isso fica difícil...” Já Patrícia, 49 anos,
professora de História ressalta:
A mulher tá tomando mais espaço, e se a gente tá tomado mais espaço é porque eles estão
deixando. Claro que não necessariamente pra um ganhar o outro tem que perder, mas se
abre espaço é porque a mulher tá estudando mais, ela tá indo em busca, ela tá indo a luta.
Certo? Talvez até pra dizer pra sociedade que ela também é capaz, não só a figura do
homem, do macho.
noções que remetem a essas, como podemos perceber nos argumentos de Mariana, 54 anos,
professora de Português, Literatura e Artes:
Atualmente a sociedade mudou os valores, os valores da concepção que Deus nos ensinou.
Agora está tudo tão moderno, tão diferente, embora eu não aceite porque eu vou pela
palavra de Deus, mas as famílias mudaram a formação, é mulher com mulher, homem com
homem e a gente deve, aceitar não, mas pelo menos tentar conviver com esse tipo de
pessoas porque aceitar tá longe pra quem tem um princípio religioso, mas não podemos
discriminar.
mostrar pra eles que é uma igualdade, que precisa tratar melhor por ser homem ou mulher. Então
eu acho que a escola tem que trabalhar mais essa questão da igualdade.”.
Neste sentido, Dagmar Meyer (2003b) quando aponta que “os indivíduos aprendem desde
muito cedo – eu diria que hoje desde o útero – a ocupar e/ou a reconhecer seus lugares sociais e
aprendem isso em diferentes instâncias do social, através de estratégias sutis, refinadas e
naturalizadas” (p. 22) nos ajuda a analisar as contribuições da instituição escolar na produção
generificada dos sujeitos sociais. A pesquisadora apresenta o termo “pedagogias culturais” para
expor a ideia de como algumas instâncias agem cotidianamente na definição dos modos de ser
humanamente possível nas tramas do gênero. Para ela “[o conceito de pedagogias culturais amplia]
as noções de educação e de educativo, e com ele pretende englobar forças e processos que incluem
família e a escolarização, mas que estão muito longe de se limitar a elas ou, ainda, de se harmonizar
com elas” (2003b, p. 22). Nestes termos, ponderamos que a escola opera na produção dos sujeitos
de gênero para além dos espaços de trabalho considerados curriculares (no sentido estrito do
termo). Ou seja, quando a escola indica e aciona práticas voltadas para os processos de ensino e
aprendizagem.
Os diversos tempos-espaços escolares, os modos de ocupação do pátio, de distribuição
dos/das discentes, de acesso e de exclusão de determinadas funções, espaços e situações escolares
produzem (e são produzidos por) discursos de gênero. Deste modo, a instituição escola, em sua
complexidade, participa da produção de gênero (e também de sexualidade), porém não é a única
responsável em virtude de trabalharmos com uma perspectiva que considera as diferentes
pedagogias culturais como definidoras dos sujeitos. Ainda sobre a potência da escola nesta
produção generificada, Louro considera que:
A gente sempre espera delicadeza. Que usasse mais o emocional do que o racional, a
sensibilidade. As mulheres são muito mais espertas que os homens, vejo pela minha mãe,
tem uma percepção muito melhor de que os homens, elas veem coisas que os homens não
veem. Então, essa percepção, essa sensibilidade, essa capacidade de agir com a emoção...
Os homens são mais racionais, machistas. Eu fui criado assim, né? Os pais da gente...
Mas quando a gente quer quebrar isso fica difícil.
O excerto acima indica que, na escola, há uma grande necessidade de uma diferenciação
dos gêneros, a qual é operada pela assunção do sexo como distinção binária fundante do sujeito.
Priorizam-se, assim, as características biológicas como referencia primordial para essa distinção.
Louro (2012) considera que a homofobia é uma das formas de “manter” a (hétero) norma e
´naturalidade das coisas´ e refere que a linguagem é um importante meio para isso: “Dentre os
múltiplos espaços e as muitas instâncias onde se pode observar a instituição das distinções e das
desigualdades, a linguagem é, seguramente, o campo mais eficaz e persistente – tanto porque ela
atravessa e constitui a maioria de nossas práticas, como porque ela nos parece, quase sempre muito
“natural””. (p. 69).
Boa parte dos/as professores/as que apresentam perspectivas mais críticas possuem uma
definição aproximada e congruente em relação a esta definição de “homofobia” (apenas um
entrevistado não apresentou um argumento consistente sobre o conceito), porém se sentiram
inseguros/as quando solicitados/as para conceituar o termo. Lucas, 46 anos, professor de História,
por exemplo, declara que a homofobia: “É a aversão e de certa forma violenta ao comportamento
homoafetivo ou homossexual. Uso da violência pra proibir essas coisas”.
Algumas interlocutoras e alguns interlocutores relataram que casos de homofobia ocorrem
rotineiramente, sendo a violência verbal a mais comum. A injúria surge assim como ato de
humilhação e de demarcação de um sujeito possível na escola, mas também o sujeito a ser
corrigido. O encaminhamento dado na instituição quase sempre gira em torno de levar o caso à
coordenação e de conversas “moralistas”(sic.) sobre igualdade, visando de maneira sutil uma
adequação dos sujeitos desviantes da norma a um padrão usual exigido pela sociedade.
Citando os argumentos do professor Lucas: “A gente presencia isso praticamente no dia a
dia, né? Quando tem alguma discussão é sempre “Ah, porque você é ‘viado’, ah, porque você é
‘sapatão’” e a gente tenta, dentro da função do educador, orientar pra melhorar principalmente o
linguajar e o respeito pelo outro. Porque se não houver respeito pelo outro nas suas escolhas, a
gente não consegue nosso objetivo.”. Já Katarina, 33 anos, responsável pela disciplina de
Geografia, sustenta: “O encaminhamento, foram chamados os dois alunos pela coordenação para
acessibilidade necessária. Novamente Joana, 29 anos, nos oferece alguns argumentos que
explicitam o deslocamento de uma crítica normativa para o campo da moral religiosa:
As pessoas é que não fazem questão de parar pra ler um livro como a bíblia que é
um livro tão precioso e de tanta profundeza. [...]Então, se todos nós temos acesso
a esse conteúdo, por que não nos aprofundarmos? Porque ninguém que seguiu o
que tá lá dentro da bíblia não se deu mal, ao contrário, só de dá bem porque é
orientação divina, entende? Então o que eu penso, é que a questão de hoje é a falta
de amor, amor ao próximo, valores morais.
É recorrente nas entrevistas críticas o fato de que a escola reflete a sociedade. E conjectura
também suas produções, por isso ela acabaria influenciando na manutenção destas representações
de gênero e sexualidade. Percebemos em algumas interlocuções a interferência das instituições
sobre o indivíduo, em seu corpo e na sua sexualidade, produzindo marcas, condutas politicamente,
socialmente e religiosamente corretas: “A escola é mantedora do sistema. Assim como as religiões,
a política, os meios de comunicação, as universidades”, afirma Pedro, 41 anos, professor de
História. De forma geral, estes/as interlocutores/ras reconhecem que mesmo mantendo-se essas
produções, a escola deve promover ideais de igualdade. Esta perspectiva mais ‘flexível’ pode ser
mais bem compreendida nos argumentos de Natividade (2009):
Em relação ao preparo dos/das educadores/ras diante destes desafios que os/as interpelam
no cotidiano escolar, Junqueira (2009) afirma que os/as “profissionais da educação, no entanto,
ainda não contam com suficientes diretrizes e instrumentos adequados para enfrentar os desafios
relacionados aos direitos sexuais e à diversidade sexual” (p. 34). Esta constatação é compreendida
por nós através do conjunto de argumentos coletados de que entre este grupo não haveria quem
cultura e da política. Andrezza, 54 anos, Ensino Fundamental: Ciências e Ensino Médio: Biologia
sustenta: “Aquele educador sexual mesmo, né? Da sexologia e que venha com essas, é, essas, como
é que vou dizer pra você? Mostrando o comportamento, como é que gente deve se comportar diante
desses...”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo não teve por objetivo avaliar educadores e educadoras e, tampouco, submeter a
escola ao crivo da responsabilização individual pelos discursos heteronormativos que circundam
seu cotidiano e os efeitos desses discursos em seu projeto político-pedagógico. Buscamos
encontrar neste espaço que nos acolheu (e isto nos oferece um elemento para pensar sobre a
disposição de uma instituição como essa em tratar de temas ditos ofensivos aos seus instituídos) e
junto a estas e estes interlocutoras/res elementos de problematização sobre os discursos
heteronormativos e quais seriam as repercussões destes no cotidiano escolar. Seus argumentos se
constituem aqui como pontos de apoio, informando não um problema individual, mas como as
práticas pedagógicas são interpeladas por discursos normativos e ao mesmo tempo o quanto podem
expressar de resistência e contestação no interior da dinâmica heteronormativa. É preciso
descriminalizar educadoras e educadores e pensar que os sujeitos são movimentados em discursos
e que estes habitam corpos, produzidos em instituições.
Isso não significa declinar da responsabilização. Certamente precisamos nos responsabilizar
por nossas condutas, mas não sem antes compreendermos as condições de possibilidade para a
emergência dos problemas de nosso tempo. Acreditamos que somente em interlocução e em tom
menos acusativo podemos compreender-intervir diante de uma determinada forma histórica e
institucional que assujeita pessoas e os grupos aos grilhões da normalidade.
Enquanto equipe de pesquisa, não nos eximimos de posicionamentos e de conjecturas sobre
os conjuntos de enunciados que cercam este cotidiano escolar que assume desde seu compromisso
político-institucional um lugar nesta produção. Nosso campo puxou fios de enunciados que forjam
uma trama discursiva que, em uma escola confessional e filantrópica, materializam-se na produção
dos significados para as noções de humano e para o que se compreende por educação e democracia.
Por outro lado, se não negligenciamos os efeitos dos discursos religiosos, também não
tomamos estes como discursos que operam como totalmente excludentes de experiência crítica.
Neste aspecto, assumindo que o poder somente se exerce sobre pessoas livres e que nós buscamos
interlocuções em um lugar marcado por significações sobre as quais já estávamos cientes de que
se tratavam de um lugar de posições normativas sacramentadas, nossa atitude foi a de localizar os
enunciados e pontuar seus possíveis efeitos e compromissos normativos.
Nossa contribuição se estabelece na posição de diálogo-crítico, considerando-se que a
instituição que nos recebeu conhecia nosso perfil político de pesquisa. Nosso trabalho não é/ não
foi aquele de moldar a vontade política dos outros/ das outras, mas de construir com estes/as
interlocutoras/res um plano de investigação sobre os movimentos ontológicos que definem o
humano possível da educação e assim pensarmos o que estamos tentando fazer de nós mesmos e
do que estamos tentando fazer dos outros (Foucault, 2001c/ 1984).
Ponderamos sobre a imprescindível instrumentalização pedagógica das comunidades
escolares no manejo das relações sociais que são feitas/tecidas em gênero e sexualidade. O
constante movimento de abertura às problematizações sobre o fazer educativo e diagnóstico sobre
a produção heteronormativa e das desigualdades sociais (que se exibem tristemente no palco da
educação) nos parecem assim caminhos possíveis construir relações sociais menos arbitrárias, bem
como enfrentar os efeitos violentos dessas arbitrariedades, como a violência de gênero, formas de
abuso e objetificação da sexualidade, discriminação, preconceito e a patologização, tutela e/ou
tentativa de correção/‘ortopedia’ das diferenças.
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Identidade e diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes.
Elisângela Bertolotti1
Rosângela Fachel de Medeiros2
RESUMO
O YouTube é, atualmente, um espaço privilegiado de trocas e de interações no ambiente virtual, no qual
reconhecemos uma crescente visibilidade e sucesso de performances que apresentam estéticas e/ou
sensibilidades Queer, as quais, de maneira geral, transcendem o limite de um nicho de público LGBTTTQIA3 e,
cada vez mais, são assistidas por um público heterogêneo. Neste artigo propomos uma leitura do “#TUTORIAL
| Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter”, do famoso maquiador youtuber/influencer Antonio
Campagna, enquanto performance Queer que subverter o discurso heteronormativo, que associa a maquiagem ao
feminino e à mulher, e possibilita uma fruição lúdica da indeterminação que o Queer promove e celebra.
ABSTRACT
The YouTube is, nowadays, a privileged space to exchanges and interactions on virtual environment, which we
recognize as an increasing visibility of successful performances that show Queer aesthetics and/or sensitivity,
which ones, in general, transcend the limits of the LGBTTTQIA public and, more and more, are watched by a
heterogeneous public. In this paper we propose an analysis of the “#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo |
Esfumando preto com glitter”, by the famous makeup artist, youtuber/influencer, Antonio Campagna, as a Queer
performance which subverts the heteronormative discourse, and associate makeup to the feminine and to
woman, and allow a ludic fruition of the indetermination promoted and performed by the Queer.
RESUMEN
YouTube es actualmente un espacio privilegiado de intercambios y de interacciones en el ambiente virtual, en el
cual reconocemos una creciente visibilidad y éxito de performances que presentan estéticas y/o sensibilidades
Queer, las cuales, de manera general, trascienden el límite de un nicho de público LGBTTTQIA y, cada vez
más, son asistidas por un público heterogéneo. En este artículo proponemos una lectura del "#TUTORIAL | Ojo
todo + Boca todo | "Ahumado negro con glitter", del famoso maquillador youtuber/influencer Antonio
Campagna, como performance Queer que subvierte el discurso heteronormativo, que asocia el maquillaje al
femenino y a la mujer, y posibilita una fruición lúdica de la indeterminación que el Queer promueve y celebra.
A gente tem que lutar sim, todos os dias, passar nosso blush, nosso glitter e
sair na rua. E não ter vergonha do que a gente é.
Pabllo Vittar
INTRODUÇÃO
que aborda, mas, também, quanto à maneira como o faz, à maneira como se expressa, e à
forma como é reconhecido e identificado por seus seguidores.
A facilidade para a produção e divulgação de conteúdos, bem como a ideia (nem
sempre verdadeira) de segurança para a autoexposição, transformaram a internet e, de
maneira especial, o YouTube, em território percebido como seguro para a livre expressão,
tanto por youtubers quanto por viewers (espectadores no contexto da internet). Muitos
sujeitos LGBTTTQIA têm utilizado a plataforma seja como espaço para o discurso engajado
e político de autoafirmação identitária, seja como espaço em que se permitem exibirem-se
sem censura ou temor, em ambos os casos enfrentam e rompem padrões socioculturais,
ideológicos, políticos e estéticos heteronormativos. E mesmo que, muitas vezes, sejam
vítimas do ataque de haters4, reconhecemos uma crescente visibilidade e sucesso de
performances5 masculinas que apresentam estética e/ou sensibilidade Queer, as quais, de
maneira geral, transcendem o limite de um nicho de público LGBTTTQIA e, cada vez mais,
são assistidas por um público heterogêneo.
O sucesso dos tutoriais de maquiagem e, dentre esses, o sucesso dos que são
produzidos por jovens do sexo masculino, que se automaquiam como forma de ensinar
maquiagem, mas também de se expressar, instigou-nos a pensa-los no jogo que estabelecem
entre a temática da maquiagem e as questões contemporâneas de gênero e de identidade.
Queremos entender se os tutoriais de maquiagem produzidos por youtubers/influencers
masculinos, rompendo assim com padrões socioculturais heteronormativos, podem contribuir
para a visibilidade, autoafirmação e representatividade Queer. Para tanto, analisamos um dos
mais visualizados tutoriais de maquiagem do famoso maquiador youtuber/influencer Antonio
Campagna, intitulado “#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter”.
4
Palavra inglesa, que se poderia traduzir como “odiadores”, utilizada para designar indivíduos que disseminam
discursos de ódios e/ou atacam discursivamente pessoas em redes sociais e plataformas de interação virtual.
5
Referimos a ideia de performance em sua acepção no campo das artes, como definida Richard Schechner: “As
performances marcam identidades, modificam e redimensionam o tempo, enfeitam e remodelam o corpo,
contam histórias, permite que se jogue com condutas repetidas, que sejam preparadas e ensaiadas, apresentadas e
representadas tais condutas” (2000, p.13).
6
Em junho de 2017, o Youtube divulgou durante a VidCon, realizada na Califórnia – EUA, que alcançava o
número de 1,5 bilhão de acessos por mês.
7
Termo utilizado para identificar uma coleção de documentos em hipertexto, ou o software colaborativo
utilizado para cria-los.
8
Classificação social e colaborativa de conteúdo na internet por meio da utilização de tags.
ponto de origem para qualquer das práticas culturais associadas a ele” (JENKINS, 2009, p.
145). Conforme dados recentes levantados pelo Projeto Alfabetismo Transmedia: un
programa de investigación,9 do Programa Horizonte 2020 da União Europeia, liderado por
Carlos Scolari, e publicados no Libro Blanco – Alfabetismo Transmedia en las nuevas
Ecología de los Medios (2018); a “produção de conteúdos” é a principal e mais destacada
competência de atuação dos jovens no contexto contemporâneo de ecologia das mídias.
O YouTube transformou-se, assim, em espaço privilegiado da “mídia em primeira
pessoa” – produção centrada no discurso direto e em primeira pessoa do “autor”, do “eu”. –
Em O Show do eu (2008), Sibilia, discorre sobre as diferentes dimensões do “eu” na internet e
a maneira como as dimensões íntimas e confessionais do âmbito da vida privada são
rearticuladas para uma exposição pública, que tem por objetivo legitimar formas de ser e de
estar no mundo. Tais “escritas de si” ou “narrativas do eu”, são produzidas por um
“Autor/Narrador/Protagonista” (SIBILIA, 2008) – que surge em um contexto midiático de
conexão e interação ubíqua e onipresente. Conforme Sibilia, a vida do
autor/narrador/protagonista só passa a existir quando é “relatada em primeira pessoa do
singular” (SIBILIA, 2008, p. 33). Nesse sentido, não há surpresa em que essas produções
girem em torno do eu, sendo discursos de testemunhos, confissões, lembranças e/ou
performance de autoexibição (MENEGON, 2013, p. 28). Por terem essa configuração
autocentrada tais produções foram denominadas por Bruno Costa (2009) de “videografias do
si”. No entanto, as possibilidades de interação oferecidas pelas plataformas, transformaram
esse autor/narrador/protagonista em um narrador interativo.
A conjunção de elementos audiovisuais estéticos e narrativos recorrentes na
configuração dos vídeos divulgados nos canais do YouTube foi aos poucos constituindo o que
hoje reconhecemos como linguagens específicas do meio, e no caso específico das produções
realizadas por Autor/Narrador/Protagonista, o formato predominante é o do vlog:
9
Conforme Scolari (2018), o Projeto Alfabetismo Transmedia não se limita à análise de práticas participativas, à
geração de conteúdo pelos jovens ou às estratégias informais de aprendizagem: vai mais longe da pesquisa
científica e propõe alternativas para beneficiar-se das competências trasmídia, desenvolvidas pelos adolescentes
fora das escolas por meio de sua aplicação dentro do sistema educativo formal.
10
New media not only introduce new ways for us to express ourselves, but also new forms of self-awareness—
new ways to reflect on who we are and how we relate to others.
se comunicam por meio de uma linguagem que é compartilhada por seu nicho, assim, gamers
(youtubers de games – videojogos) e vloggers de maquiagem, utilizam palavras e expressões
que são pertinentes a seus campos específicos de interesses e que, assim, estabelecem um
universo significativo compartilhado e de autoidentificação.
Os youtubers produzem vídeos sobre as mais variadas temáticas e áreas11, atendendo
tal diversidade de conteúdos aos mais variados e segmentados públicos assim como a todas as
faixas-etárias – crianças, jovens e adultos. A temática abordada pelo canal associada ao tipo
de conteúdo e à performance do youtuber formam a equação que resulta, ou não, no sucesso
de visualizações do Canal. A fama de alguns youtubers – que se tornam então influencers,
pode ser explicada, portanto, pela forma como saem do modo tradicional de comunicação
para abordar assuntos que interessam a públicos específicos (SANTAELLA, 2007). Por meio
dessa relação que nasce da adesão à temática explorada pelo youtuber em seu canal se inicia
uma relação de admiração, empatia, credibilidade e confiança do viewer em relação ao
vlogger e, muitas vezes, de identificação com aquilo que ele representa, que é alimentada por
o que John Thompson (2008) identificou com uma “intimidade não-recíproca à distância”,
uma intimidade mediada (pelos meios/mídias) que se configura na interface da tela (do
computador/smartphone).
11
A plataforma mantém políticas de controle de conteúdo referentes à preservação dos direitos autorais e à
exibição de imagens de nudez e de conteúdo sexual, bem como restrição de idade para alguns conteúdos.
espaço nas mídias institucionalizadas. Em paralelo aos movimentos afirmativos que conclamam à
busca por igualdade e ao enfrentamento de preconceitos e estereótipos, o YouTube fornece
espaço para as manifestação da diversidade – diferentes identidades, faixas etárias, formas físicas
e corpos, que expressam diferentes pensamentos, sexualidades, gêneros etc. Tais canais e
performances, fomentam novos discursos e debates, sendo um ponto de escape virtual no qual é
permitido questionar(-se) e romper padrões socioculturais.
O YouTube oportuniza que as vivências subjetivas dos sujeitos sejam exibidas. E
diferentes práticas e vivências socioculturais e identitárias sejam expostas, configurando-se como
um espaço importante para a manifestação e representatividade Queer, principalmente, no que diz
respeito à sua visibilidade. Para compreendermos a importância dessa representatividade,
lembramos que a ressignificação do termo Queer aconteceu nos anos oitenta, quando “militantes
e pesquisadores da causa gay, principalmente nos Estados Unidos”, buscaram “ressignificar o
termo, retirando-o do sentido pejorativo com a proposta de positivá-lo, tendo como proposta
central o rompimento com o binarismo” (COSTA; SILVA JUNIOR, 2014, p. 4). E, desde então,
muito teóricos retomam, com a intenção de discutir e reconfigurar o que é ser Queer. Para
Guacira Lopes Louro, o Queer é
[...] o excêntrico que não deseja ser “integrado” e muito menos “tolerado”. Queer é
um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um
jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume
o desconforto da ambiguidade, do “entre-lugares”, do indecidível. Queer é um corpo
estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina (LOURO, 2013, p.08)
Essa fluidez identitária híbrida e movediça, que o Queer representa, pode ser
entendida como um contraponto à performatividade de gênero, identificada por Judith Butler
(2008), que é responsável pela produção dos sujeitos como resultado de recorrentes repetições
na maioria das vezes ritualística que excluem e estigmatizam aqueles que saem das regras
estabelecidas. Ao desvelar esse processo performativo, Butler (2008) propõe que deixemos de
pensar as categorias “homem” e “mulher” como fixas e passemos a entendê-las como formas
de representação dos sujeitos, promovendo assim a reflexão acerca da produção de
subjetividade como resultado da convivência social e do que ela pressupõe como correta. A
subversão dessa ordem sociocultural abre espaço para outras formas de ser e estar, que dão
Enquanto espaço virtual “livre”, o YouTube tem extrema relevância para a visibilidade de
sujeitos LGBTTQIA e de performances que rompem com o padrão heteronormativo, geralmente,
estigmatizados. É nesse espaço virtual que, finalmente, muitos desses sujeitos conseguem
expressar suas identidades e estabelecer relações individuais e de comunidades. Vozes e imagens,
comumente, reprimidas pela sociedade ganham espaço e se multiplicam por meio de canais,
vídeos etc.
13
Indeed the essence of Camp is its love of the unnatural: of artifice and exaggeration.
14 Conforme definição do YouTube, o recurso de restrição de vídeos permite aos usuários filtrarem conteúdos
que não são apropriados para menores de 18 anos, sendo uma ferramenta “opcional para ajudar instituições
como escolas, bem como usuários que querem controlar melhor o conteúdo que veem”.
visibilidade de tais representações e, quem sabe, até de maneira mais efetiva. Um ponto forte é a
naturalidade do discurso coloquial e espontâneo, inerente à linguagem do YouTube, no qual
emerge uma linguagem camp que não apenas está liberta das censuras heteronormativas como
utiliza isso a seu favor – seja como elemento de identificação com aqueles que compartilham dos
mesmos códigos linguísticos, seja como uma brincadeira com aqueles que esperam essas
diferenças.
Dentre as muitas produções referentes ao espectro Queer difundidas no YouTube,
entendemos que os tutoriais de maquiagem realizados por jovens maquiadores youtubers, ao
romperem com padrões e categorias heteronormativas e negarem estratificações estanques entre o
que é do universo masculino e o que é do universo feminino, se configuram como um poderoso
discurso Queer, mesmo essa não seja uma intenção consciente. Sob essa perspectiva, analisamos
um dos mais visualizados tutoriais de maquiagem do famoso youtuber maquiador – Antonio
Campagna.
Os tutoriais de maquiagem, cada vez mais, são incrementados por seus realizadores, que
buscam uma maior repercussão, ao se utilizarem de estratégias para chamar a atenção do público-
alvo: criação de thumbnail instigantes – que geralmente apresentam imagens dos rostos
maquiados dos youtubers (muitos apresentam a estrutura visual do “antes e depois”), as quais são
sobrepostas de um título direto e chamativo, em letras maiúsculas; descrições objetivas, mas
pessoais do conteúdo dos vídeos. Todos esses elementos têm por objetivo levar o internauta a
abrir e a assistir aos vídeos. Abertos os vídeos, a forma como os youtubers se comunicam, sua
linguagem e a maneira como se dirige a seus viewers, seu gestual, seu estilo – roupas,
maquiagem, cabelo – contribuem para o engajamento do público com o autor e com seu Canal.
Outra característica recorrente nos canais mais famosos dedicados a tutoriais e dicas de
maquiagem é que recebam o nome do(a) youtuber que os criou e administra, que, na perspectiva
do “faça você mesmo”, se maquia em frente à câmera para assim passar seus conhecimentos a
seus espectadores.
O universo da maquiagem reconhecido pelo senso comum heteronormativo como campo
das mulheres e do feminino ganha novos contornos no YouTube. Apesar da preponderância de
mulheres como produtoras de tutoriais de maquiagem, alguns jovens rapazes vêm se destacando
nesse campo. É notório, no entanto, que no Brasil, mesmo antes do advento do YouTube já eram
conhecidos alguns famosos maquiadores, que atuavam na área da televisão e da teledramaturgia,
maquiando mulheres famosas, socialites e estrelas da televisão; e que, vez por outra, apareciam
ensinando truques de maquiagem em programas televisivos. Mas essas maquiagens estavam
sempre destinadas ao campo do feminino, aos rostos de mulheres, travestis, transformistas e Drag
Queens – e nessas de maneira exagerada e performática. Os jovens maquiadores do YouTube, na
“era da cibercultura”, ao contrário de seus predecessores que brilhavam na televisão, na “era das
mídias” (SANTAELLA, 2003), maquiando mulheres famosas e atrizes, vão para a frente da
câmera maquiar a si mesmos para assim ensinar, passo a passo, seus espectadores a se
maquiarem. Eles rompem assim com limites heteronormativos em relação ao campo da
maquiagem e do corpo: são jovens maquiadores que se maquiam em frente às câmeras para
“#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter | Antonio
Campagna”
Conhecido por ser referência em contornos faciais, subterfúgio de maquiagem que cria
a ilusão de remodelamento do rosto, muito utilizado, por exemplo, para suavizar os traços
masculinos do rosto, Campagna – maquiador/youtuber/influencer, afirma que seus vídeos de
mais sucesso (visualizações, comentários e curtidas) são aqueles em que ele aparece se
automaquiando. O canal de Campagna tem mais de 24.000 inscritos16 e seus vídeos são
sucesso de visualização e de repercussão nos comentários. O principal conteúdo do canal são
os tutoriais de maquiagem, identificados já no título dos vídeos que sempre começam com:
#TUTORIAL, seguido então pela descrição do que será ensinado. Na maioria das vezes, os
tutoriais de Campagna são visualmente muito simples: o youtuber está em um ambiente
15
Dados referentes a fevereiro de 2019.
16
Dados referentes a fevereiro de 2019.
17
Para o programa “Deu certo multimídia”, realizada pelo canal “Jornalismo UCDB”
Figura 3: Print dos comentários ao #TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter
O tutorial “#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter |
Antonio Campagna”, publicado em 12 de setembro de 2017, foi selecionado como objeto de
nossa análise por ser um dos mais assistidos do canal, já tendo alcançado mais de 28.000
visualizações18, e seguindo disponibilizado em seu canal:
Figura 4: QRcode “#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter | Antonio Campagna”
18
Dados referentes a fevereiro de 2019.
Figura 6: Thumbnail do #TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter
Figura 7: Print do #TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter
O youtuber é objetivo e direto em seu vídeo, tanto em relação à duração que é de 9min e
35s, quanto em relação ao modo como o desenvolve, como em relação à edição, deixando claro
nos primeiros minutos do tutorial: “já tô com a pele pronta, tô fazendo uma técnica que chama
baking19, que você passa o pó translucido e deixa aqui, e minha sobrancelha, agora vamos fazer o
olho, que é o que tá combinado para fazer nesse vídeo”, (transcrito do vídeo). O tutorial é gravado
em um ambiente neutro, de tons claros, com o intuito de centralizar a atenção do viewer no rosto
do maquiador, que se apresenta com a blusa escura e com uma gargantilha brilhosa, atraindo a
atenção para si.
Campagna sempre tenta apresentar outras opções de soluções ou produtos para ajudar
seus seguidores que possam ter dificuldade em ou efetuar alguma técnica ou em encontrar algum
produto. Isso revela sua íntima relação de troca com seus seguidores, reiterada sempre ao final
dos tutoriais, momento em que ele instiga a interação por meio de likes ou de sugestões,
colocando-se ainda à disposição para esclarecer possíveis dúvidas. Ao finalizar o vídeo o
youtuber menciona outros de seus tutoriais, nos quais ensina a como “fazer” a pele – preparar e
uniformizar a pele para a maquiagem com produtos de beleza; e o “contorno” – efeito de
maquiagem que acentua ou atenua as linhas do rosto; e reitera que os produtos podem ser
encontrados pelo Instagram – @antonioocampagna – outro meio utilizado pelo maquiador para
expor seu trabalho e interagir com seus seguidores, que é indicado na legenda do vídeo.
Em relação à realização do “#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com
glitter | Antonio Campagna”, o maquiador/youtuber utiliza recursos, como: a edição, a montagem
e o corte; a utilização da Time Lapse20 – que permite adiantar a ação apresentada, poupando
tempo, quando, por exemplo, ele está esfumaçando a sobra; a inserção de legendas para facilitar a
compreensão e chamar a atenção da técnica usada: “Esfume a sombra bem na linha do côncavo”;
19
Segundo o site Tudo sobre Make (2015), a técnica baking “consiste na aplicação de uma camada, generosa, de
pó translúcido sobre o corretivo líquido ou cremoso na região abaixo dos olhos, e deixá-lo por uns bons 10 a 20
minutos. A intenção é obter um acabamento perfeito, sem dobrinhas, poros abertos ou acúmulos de produto em
linhas finas, e funciona segundo o princípio de que o calor e os óleos da pele vão fundir os produtos de texturas
opostas - creme e pó - durante esses 10 a 20 minutos, criando um efeito natural e perfeito.”
20
De acordo com o site Olhar Digital (2016), a técnica Time Lapse, conhecida como a “técnica do vídeo
acelerado”, é o modo como “a câmera capta apenas um fotograma a cada espaço de tempo pré-determinado; na
hora de reproduzir essas imagens em sequência, o tempo parece correr muito mais rápido, criando essa sensação
de velocidade”.
e bordões engraçados que são apresentados em cores vibrantes “Cuidado com a burra”, “Aloka!”,
que colaboram ainda para o clima descontraído e íntimo do vídeo.
A linguagem utilizada por Campagna, além de ser acessível e descontraída, caracteriza-se
claramente como camp, tendo em vista: a utilização de gírias e expressões reconhecidas como
pertencentes à comunidade LGBTTTQIA como, por exemplo: “Alookaaaa” (aglutinação de “a
louca”), uma das mais recorrentes em seus vídeos, utilizada para destacar comportamentos
exagerados ou atitudes imprevisíveis; a presença da ironia e do deboche (em relação a si mesmo –
“aloca”; “cuidado com a burra”); a imitação teatralizada e acentuada da linguagem feminina,
manifesta também na utilização de diminutivos e do gênero, e, sobretudo, a maneira afetiva como
o youtuber se dirige a seus viewers, por exemplo, chamando-os de “preciosos” – elementos que
constituem valores significantes em sua fala e contribuem para a conexão, por meio da
identificação e da alteridade, com seus seguidores.
A beleza andrógena de Campagna acentuada pela maquiagem – ele começa o vídeo
apresentando-se maquiado para mostrar a seus espectadores qual será o resultado do tutorial, para
posteriormente mostrar o processo da automaquiagem; é também um importante elemento,
levando-se em consideração a afirmação de Sontag, que reconhece nessa característica o mais
eminente elemento dessa sensibilidade. A androgenia de Campagna pode ser entendida, então,
como representatividade Queer, à medida que não há em suas automaquiagens o desejo de
assumir uma representação feminina nem tampouco Drag. Aliás, Campagna lamenta que as
pessoas confundam seu trabalho com sua identidade de gênero: “As pessoas comentam nas
minhas fotos que foram publicadas: 'está linda, está maravilhosa', tudo no feminino. Elas
confundem tudo, pois é só para mostrar meu trabalho. Sou homossexual, mas nem por isso quero
ser mulher” (LOPES, 2017). O que evidencia a dificuldade de muitas pessoas em situar
representações identitárias que não se enquadrem em padrões heteronormativos, sejam hetero ou
homossexuais, sendo esse campo de indistinção e de questionamento de certezas, justamente, o
que configura o Queer.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Kathryn Woodward (2014, p. 18) também chama atenção para a importância das
representações, por meio das quais “damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos.
Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possíveis àquilo que somos e
aquilo no qual podemos nos tornar”. Nesse sentido, o sucesso de Campagna, bem como de outros
maquiadores/youtubers é algo importante para o questionamento de padrões heteronormativos de
gênero, que foram sendo cristalizados por performatividades, sendo uma assim uma forma de
marcar um desvio e uma ruptura quanto a questões que nos formam e que nos são ensinadas
como sendo naturais. E, assim, para além do sucesso comercial em relação aos conteúdos
apresentados por esses vídeos, eles se configuram, também, e talvez sem intensão ou percepção,
em referenciais de identidades e subjetividade para muitos que não tinham ate então onde buscar
tal identificação ou interlocução, estabelecendo-se assim uma identificação entre alguns dos
viewers e os youtubers.
O sucesso dos tutoriais de Campagna pode ser associado à objetividade e à clareza para
ensinar seus espectadores a se automaquiarem, utilizando uma linguagem simples e coloquial,
que apresenta expressões próprias do universo da maquiagem combinadas a uma linguagem
camp. Ademais da linguagem, o exagero e a androgenia revelam a sensibilidade camp que revela
a essência Queer dessas narrativas. Essas marcas Queer constroem um discurso que, mesmo sem
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Acesso em: 25 abr. 2018.
TUDO SOBRE MAKE. 'Baking', técnica de contorno que é dica para um acabamento perfeito, é
a sensação de maquiagem do momento. Disponível em:
<http://www.tudosobremake.com.br/noticia/-baking-tecnica-de-contorno-que-e-dica-para-um-
acabamento-perfeito-e-a-sensacao-de-maquiagem-do-momento_a5618/1> Acesso em: 10 jan.
2018.
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T. T. da (Org). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 1 ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1999. (p.7-72).
ABSTRACT: In addition to the social ban, experienced in various societies across the globe,
LGBT citizens face problems that include legislation and imprisonment in various countries,
as well as being the object of continuous attacks. The misfortune is in the sense that, after
leaving their countries, some persecution may still persist. This is so insofar as refugee seekers
with sexual conditions and dissenting gender expressions present distinct weaknesses. Despite
1
Mestranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em
Direitos Humanos, Democracia e Cultura pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e Bacharel em Direito pela
Escola de Direito de Brasília do Instituto Brasiliense de Direito Público (EDB/IDP).
2
United Nations Human Rights – Office Of The High Commissioner. Born free and Equal – Sexual
Orientation and Gender Identity in International Human Rights Law. New York and Geneva, 2012.
Disponível em: < https://www.ohchr.org/Documents/Publications/BornFreeAndEqualLowRes.pdf>. Acesso em
12 de junho de 2018.
advances in the policies that have implemented the refuge, including the adoption of the
Declaration on Human Rights, Sexual Orientation and Gender Identity3, the promotion of equal
rights for the LGBT population is still taking modest steps. This study seeks to analyze how
the perception of personal experiences of persecution with a view to demonstrating belonging
to a specific social group can reinforce stereotypes of sexuality and gender that end up
marginalizing and harming the protection of LGBT people, reinforcing aspects of a persecution
that may be moving from the country of origin to the host country.
RESUMEN: Además de la prohibición social, vivida en varias sociedades a lo largo del globo,
los ciudadanos LGBT enfrentan problemas que incluyen la legislación y la detención en varios
países, además de ser objeto de continuos ataques. La desgracia es que, después de salir de sus
países, algunas persecuciones todavía pueden persistir. Esto se da en la medida en que
solicitantes de refugio con condiciones sexuales y expresiones de género disidentes presentan
fragilidades distintas. A pesar de que subsisten avances en las políticas que implementaron el
refugio, incluso con la adopción de la Declaración sobre Derechos Humanos, Orientación
Sexual e Identidad de Género, la promoción de derechos de igualdad con la población LGBT
todavía camina a pasos módicos. Este estudio busca analizar cómo la percepción de vivencias
personales de persecución con miras a demostrar pertenecer a un grupo social específico puede
reforzar estereotipos de sexualidad y género que acaban por marginar y perjudicar la protección
a las personas LGBT, reforzando aspectos de una persecución que puede estar desplazándose
del país de origen al país de acogida.
INTRODUÇÃO
3
United Nations Human Rights – Office Of The High Commissioner. Born free and Equal – Sexual Orientation
and Gender Identity in International Human Rights Law. New York and Geneva, 2012. Disponível em: <
https://www.ohchr.org/Documents/Publications/BornFreeAndEqualLowRes.pdf>. Acesso em 12 de junho de
2018.
4
O’FLAHERTY, Michael.; FISCHER, John. Sexual Orientation, Gender Identity and International Human
Rights Law: Contextualising the Yogyakarta Principles. Human Rights Law Review, vol. 8, n. 2, p. 222, 2008.
Nacionais que consideram crime o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, sendo que
em treze deles se pune com a morte5.
Não há pouco o que se dizer sobre a existência de leis, que valem-se de aspectos morais,
para restringir a liberdade de expressão em matéria de condição sexual e identidades
transgênero, em especial, dezenove países distribuídos entre a África do Norte, Oriente Médio
e também a China dedicam-se a editar leis que funcionam de forma a limitar a participação da
sociedade civil e a possibilidade de levar assuntos de interesse de indivíduos LGBT para a pauta
legislativa que versa sobre políticas públicas e ou processos políticos discutidos nestes locais6.
Ainda que, ao longo dos anos, subsistiu crescimento considerável à proteção dos
direitos de indivíduos LGBT 7 , é preciso perceber que apenas a partir de meados dos anos
noventa que os direitos sexuais despertaram interesse na pauta dos direitos humanos, em
especial após a decisão do Cômite de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas
(ONU), acerca do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos de 19668, ao considerar
5
“É possível citar que grande parte dos governos do Oriente Médio perseguem homossexuais, ainda que a postura
adotada seja, no mínimo, paradoxal. Diz-se isto na medida em que condenam os agentes passivos da relação e
aceitam os que são ativos. Perceba que, no início de 2017, um jovem de 15 anos foi lançado de um prédio na
cidade de Deir ez-Zor, na Síria. Em outra ótica, no Irã, um homem que tenha sido passivo em um relacionamento
homossexual deve ser enforcado, enquanto o ativo receberá chicotadas por 100 vezes. Isto se dá devido aos
tribunais de justiça destes países basearem-se na sharia, a lei islâmica, no específico trecho do corão em que os
habitantes de Sodoma são mortos por se aproximarem dos homens e não das mulheres. Na Turquia, a
homossexualidade pode ser uma das razões para se escapar do alistamento militar, na medida em que os médicos,
ao verem fotos e/ou vídeos de um homem mantendo relações com outro homem, na posição de passivo, comprova
a homossexualidade e, assim, é dispensado do serviço militar”. Retirado de: TEIXEIRA. DUDA, Porque os
terroristas do Estado Islâmico (Isis) executam gays, mas mantêm homossexuais em suas fileiras?. Veja: São
Paulo, 9 de fevereiro de 2017. Disponível em: < https://veja.abril.com.br/blog/duvidas-universais/por-que-os-
terroristas-do-estado-islamico-isis-executam-gays-mas-mantem-homossexuais-em-suas-fileiras/> , Acesso em 12
de junho de 2018. Vide: Association internationale des lesbiennes, gays, bisexuels, trans et intersexes (ILGA):
Carroll, A., & Mendos, L.R., Homophobie d’État 2017 — Une enquête mondiale sur le droit à l’orientation
sexuelle : criminalisation, protection et reconnaissance. Genève: ILGA. Mai, 2017, p. 8.
6
Association internationale des lesbiennes, gays, bisexuels, trans et intersexes (ILGA): Carroll, A., & Mendos,
L.R., Homophobie d’État 2017 — Une enquête mondiale sur le droit à l’orientation sexuelle :
criminalisation, protection et reconnaissance. Genève: ILGA. Mai, 2017, p. 9.
7
É possível afirmar que desde meados dos anos 2000, ainda que com passos tímidos, houve atenção no sentido
de criação ou definição de políticas que buscassem definir padrões para lidar com a existência de pessoas não-
heterossexuais e, em ato contínuo, não binárias, pelo mundo. Perceba a criação de organizações e ou políticas
internacionais, como a Association internationale des lesbiennes, gays, bisexuels, trans et intersexes (ILGA) e
também a Born free and Equal – Sexual Orientation and Gender Identity in International Human Rights Law.
8
SAIZ, Ignacio. Bracketing Sexuality: Human Rights and Sexual Orientation- A Decade of Development
and Denial at the UN. SPW Working Papers, n. 2, nov. 2005.
que os direitos de minorias sexuais9 também deveriam ser objeto de proteção e, a partir de então,
começar a se materializar a existência de um princípio que vedasse a discriminação por
condição sexual e/ou a expressão da identidade de gênero10.
O entendimento de que o termo refugiado congrega qualquer pessoa que, temendo ser
perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas,
encontra-se fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não
quer valer-se da proteção desse país11, surgiu após o advento da segunda grande guerra e, apesar
de não tratar, ao menos de forma específica e explicita, sobre os indivíduos LGBT e a
perseguição em virtude de sua condição sexual e a expressão da identidade de gênero,
convencionou-se por estabelecer que tais pessoas inserem-se em um grupo social específico12,
legitimando a concessão de refúgio.
Adentrando as minúcias para a concessão do refúgio13, nota-se que existe um viés que
interliga a expressão de gênero, a sexualidade e a violência sofrida por um indivíduo, dando
origem ao “fundado temor de perseguição” e o pertencimento a determinado grupo social
específico – no caso o de pertencer a uma das variáveis de ser LGBT14. A miúda dos fatos, diz-
se que, a perseguição pode ser considerada como:
9
A adoção do termo “minorias sexuais” se liga a qualquer tipo de grupo estigmatizado ou menosprezado por sua
condição sexual, identidade de gênero ou expressão de comportamento. Vide: BAHER, Peter; FLINTERMAN,
Cees; SENDERS, Mignon. Innovation and inspiration: Fifty years of the Universal Declaration of Human
Rights. Amsterdã: Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences, 1999. p. 549.
10
LEWIS, Rachel. Gay? Prove it: The Politics of Queer anti-deportation activism. Sexualities, vol. 17, n. 8,
p. 974-975, 2014.
11
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR). Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados. Genebra: 1951. Disponível em: <
http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados
.pdf>. Acesso em 12 de junho de 2018.
12
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR). Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados. Genebra: 1951. Disponível em: <
http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados
.pdf>. Acesso em 12 de junho de 2018.
13
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR). Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados. Genebra: 1951. Disponível em: <
http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados
.pdf>. Acesso em 12 de junho de 2018.
14
Opta-se por manter o termo queer devido a impossibilidade de reproduzir fielmente o ônus fortemente pejorativo
que o termo incita na cultura norte-americana. Viado, sapatão, bicha, traveco, ou termos assemelhados, se fazem
Por outro lado, quando nos remetemos a comprovação do pertencimento a uma das
várias possibilidades de ser LGBT, é que se percebe uma celeuma que pode ser nefasta ao
indivíduo solicitante de refúgio. Nota-se que a afirmação de pertencer a este grupo social é
diretamente relacionada a perceptiva do indivíduo, em seu discurso sobre si mesmo, de forma
claramente subjetiva, consistindo em demonstrar ser passível de violação por ser quem é16. Ou
seja, o relevante interesse se concentra em demonstrar a sua própria condição de existência,
fazendo com que, até mesmo, tenham surgido situações precárias para avaliar a condição sexual,
tal como se percebeu na República Tcheca no ano de 201017.
Aufere-se desta constatação que, até certo ponto, é possível que se acolham indivíduos
que apresentem diferentes vivências, ocasionando pontos de violência distintos, porém,
também se percebe que existe uma lacuna em que se requer um discurso que seja compatível
com o conceito de gênero 18 e de sexualidade. Ocasionando uma possível adequação de
possíveis, apesar de não carregarem a mácula negativa que a terminologia alcançou nos Estados Unidos da
América. O termo inglês queer é antigo e possuía, originalmente, uma conotação negative e agressiva contra
aqueles que rompiam normas de gênero, em si, homens e mulheres homossexuais. Vide: JAGOSE, Annemarie.
Queer Theory – an introduction. New York: New York University Press, 1996.
15
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR). Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados. Genebra: 1951. Disponível em: <
http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados
.pdf>. Acesso em 12 de junho de 2018.
16
LEWIS, Rachel. Gay? Prove it: The Politics of Queer anti-deportation activism. Sexualities, vol. 17, n. 8,
p. 958, 2014.
17
United Nations Human Rights – Office Of The High Commissioner. Comments on the Practice of
Phallometry in the Czech Republic to Determine the Credibility of Asylum Claims based on Persecution
due to Sexual Orientation. Czech Republic: 2011. Disponível em:
<http://www.refworld.org/docid/4daeb07b2.html>, Acesso em 14 junho de 2018.
18
De forma breve é importante destacar a ideia de distinção entre sexo e gênero surgiu, originalmente, para mitigar
a afirmação de que a origem biológica é o destino inenarrável de todo ser humano. Butler preleciona que esta
distinção atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é
culturalmente construído. Logo, não se pode dizer que o gênero se apresenta como um resultado previsível do
sexo, quiçá como uma faceta imutável quanto ao sexo. Vide: BUTLER, Judith P. Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade. 10ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 25-26, 2016.
Portanto, este estudo busca debater a concessão de refúgio com base em sua condição
sexual e ou expressão de gênero, sob a ótica da Teoria Queer e na observância de padrões de
comportamento para sexualidade e gênero na visão ocidental, e também, em ato contínuo, nas
violações perpetradas no próprio processo de obtenção do status de refugiado, em face de
outros grupos, como os indivíduos solicitantes em razão de opiniões políticas, nacionalidade,
raça ou religião, os quais podem ser verificados de forma objetiva.
Imagina-se que aquilo que o sujeito acredita ser, possui relação direta com a sua
identidade, com a substância e os moldes sociais e culturais que foram utilizados com o fim de
moldá-lo, enquanto indivíduo pertencente a uma coletividade pré-determinada. O corpo se
encontra delimitado desde quando se fala em nascituro. Quando se tem uma ultrassonografia
já se inicia um processo de construção que culmina com a prova concreta advinda do
nascimento com a designação sexual que se limite em dois sexos constituídos. Perceba que:
19
BEAUVOIR. Simone de, The Second Sex, trad. E. M. Parshley, Nova York: Vintage, p. 25, 1973.
É desta forma precoce que, indivíduos com expressões de gênero e condições sexuais
divergentes, necessitam de atenção. É possível aduzir que, além do banimento social e familiar,
violências físicas e, até mesmo, sexuais, permanecem na percepção de mundo de indivíduos
LGBT solicitantes de refúgio. Data de meados do ano de 2015 21 , a percepção pelo Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), de que a condição sexual e a
expressão de gênero, enquanto conjunturas para a concessão de refúgio restavam inadequadas.
20
PRECIADO. Beatriz, Manifesto Contrassexual, trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro, São Paulo: n-1 edições, p.
130, 2014.
21
UN High Commissioner for Refugees (UNHCR), Protecting Persons with Diverse Sexual Orientations and
Gender Identities: A Global Report on UNHCR's Efforts to Protect Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender,
and Intersex Asylum-Seekers and Refugees, December 2015, Disponível em:
<http://www.refworld.org/docid/566140454.html> Acesso em 16 de Junho de 2018.
22
BERG, Laurie; MILLBANK, Jenni, Constructing the Personal Narratives of Lesbian, Gay and Bisexual
Asylum Claimants. Journal of Refugee Studies, vol. 22, n. 2, p. 203, 2009.
23
BERG, Laurie; MILLBANK, Jenni. Constructing the Personal Narratives of Lesbian, Gay and Bisexual
Asylum Claimants. Journal of Refugee Studies, vol. 22, n. 2, p. 209, 2009.
que a exposição destas ocorrências não são obtidas de forma fácil e agradável, e sim através de
um processo sofrível e extremamente desagradável aos indivíduos interessados no refúgio24.
É neste sentido que, na contemporaneidade, se faz sugerido que a alusão de que pessoas
LGBT pertencem a um grupo social específico, não se mostra capaz de garantir que tais
24
GRUNGRAS, Neil. Support, Not Stereotypes, When Interviewing LGBTI Refugees. The Huffington Post,
ago. 2012. Disponível em: <http://www.huffingtonpost.com/neil-grungras/lgbti-refugees_b_1766387.html>.
Acesso em 19 de junho de 2018.
25
LEWIS, Rachel. Gay? Prove it: The Politics of Queer anti-deportation activism. Sexualities, vol. 17, n. 8,
p. 971, 2014.
26
JANSEN, Sabine; SPIJKERBOER, Thomas, Fleeing Homophobia: Asylum Claims Related to Sexual
Orientation and Gender Identity in Europe. Amsterdã: COC Nederland, p. 85, 2011.
27
MILLBANK, Jenni. From Discretion to Disbelief: Recent Trends in Refugee Determinations on the Basis
of Sexual Orientation in Australia and the United Kingdom. International Journal of Human Rights, vol. 13,
n. 2/3, p. 397, 2009.
28
MILLBANK, Jenni. Gender, Visibility and Public Space in Refugee Claims on the Basis of Sexual
Orientation. Seattle Journal for Social Justice, vol. 1, n. 3, p. 726-729, dec. 2002.
29
MILLBANK, Jenni. From Discretion to Disbelief: Recent Trends in Refugee Determinations on the Basis
of Sexual Orientation in Australia and the United Kingdom. International Journal of Human Rights, vol. 13,
n. 2/3, p. 394, 2009.
30
MILLBANK, Jenni. From Discretion to Disbelief: Recent Trends in Refugee Determinations on the Basis
of Sexual Orientation in Australia and the United Kingdom. International Journal of Human Rights, vol. 13,
n. 2/3, p. 396, 2009.
31
BERG, Laurie; MILLBANK, Jenni. Constructing the Personal Narratives of Lesbian, Gay and Bisexual
Asylum Claimants. Journal of Refugee Studies, vol. 22, n. 2, p. 204, 2009.
32
JANSEN, Sabine; SPIJKERBOER, Thomas. Fleeing Homophobia: Asylum Claims Related to Sexual
Orientation and Gender Identity in Europe. Amsterdã: COC Nederland, p. 42, 2011.
33
BERNARDES, Pedro Henrique Dias Alves. Esconder para sobreviver: uma perspectiva queer sobre
refugiados LGBTI+.
<http://www.enadir2017.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic2?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czoz
NDoiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjM6IjIxOCI7fSI7czoxOiJoIjtzOjMyOiJlMWNkYTUxOTBlZ
mZmZmE3ZjdmNTY3Zjk5YTY5YzdkOSI7fQ%3D%3D>, p. 5, Acesso em 19 de junho de 2018.
nativos por serem tidos como libidionosos e que, em outro sentido, são corpos “normais” e
“socialmente aceitáveis” com vistas a conseguir proteção em outros países34.
Dizer que o gênero é performativo, traduz o sentido de que este produz uma série de
efeitos. Nós agimos e andamos e falamos de forma que consolidam uma impressão de ser um
34
NAYAK, Meghana. Who Is Worthy of Protection?: Gender-Based Asylum and U.S. Immigration Politics
. EUA: Oxford University Press, 2015. 272 p. conforme citado por BERNARDES, Pedro Henrique Dias Alves.
Esconder para sobreviver: uma perspectiva queer sobre refugiados LGBTI+.
<http://www.enadir2017.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic2?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czoz
NDoiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjM6IjIxOCI7fSI7czoxOiJoIjtzOjMyOiJlMWNkYTUxOTBlZ
mZmZmE3ZjdmNTY3Zjk5YTY5YzdkOSI7fQ%3D%3D>, p. 5, Acesso em 19 de junho de 2018.
35
Butler enuncia que, o gênero “é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de
uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma
substância, de uma classe natural de ser”. Deste modo, ao acompanhar o pensamento de Judith Butler, o gênero
se constitui não de um conjunto de valores culturais submetidos ao corpo, tampouco com a interpretação que este
corpo conceda, quiçá ao ser homem ou ser mulher. Ele significa um conjunto de regras impostas, perpetuadas e
realocadas sobre o corpo de forma a consubstanciarem na aparência desejada de forma a conceder um status válido
aos indivíduos. Vide: BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 10ª ed.
– Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 59, 2016.
homem ou de ser uma mulher. Nós tomamos partido como se este ser um homem ou este ser
uma mulher fosse na verdade algo que simplesmente é uma verdade sobre nós, é um fato sobre
nós. Na verdade, é um fenômeno que tem sido produzido todo o tempo, e reproduzido todo o
tempo. Então, dizer que o gênero é performativo é dizer que ninguém pertence a um gênero
desde sempre. Daí se poder defender a existência de todo um conjunto de posturas e de artefatos
que se consubstanciam num reconhecimento dos sujeitos sociais.
Contudo, isto é um relato, um fenômeno, uma circunstância que não deveria, ao menos
em tese, ser imposta por padrões estereotipados e ocidentais, ainda mais como requisito para a
concessão de refúgio. Perceba que estes indivíduos devem mascarar suas sexualidades por anos
a fio, assegurando, por muitas vezes, sua sobrevivência em seus países de origem, para que,
então, necessitem revelar de forma explicita, com o objetivo de receberem proteção em novos
países e, ainda assim, serem forçados a adotar novamente um véu de encobrimento caso haja
negativa de concessão do refúgio, o que corrobora para uma profunda opressão contra grupos
historicamente marginalizados36.
Há de se falar que, ao decorrer dos anos, tornou-se imperativa a busca por mecanismos
e justificativas para as abjeções existentes. Se diz isto, pois, no momento em que se busca uma
explicação e uma adequação para a homossexualidade, ainda que não mais a tenhamos como
uma patologia 37 , em sentido contrário se manifesta a cultura heteronormativa como uma
36
HELLER, Pamela. Challenges Facing LGBT Asylum-Seekers: The Role of Social Work in Correcting
Oppressive Immigration Processes. Journal of Gay & Lesbian Social Services, vol. 21, p. 304-308, 2009.
37
O homossexualismo passou a existir na CID a partir da 6a Revisão (1948), na Categoria 320 Personalidade
Patológica, como um dos termos de inclusão da subcategoria 320.6 Desvio Sexual. Manteve-se assim a 7a Revisão
(1955), e na 8a Revisão (1965) o homossexualismo saiu da categoria "Personalidade Patológica" ficou na categoria
"Desvio e Transtornos Sexuais" (código 302), sendo que a subcategoria específica passou a 302.0 -
Homossexualismo. A 9a. Revisão (1975), atualmente em vigor, manteve o homossexualismo na mesma categoria
e subcategoria, porém, já levando em conta opiniões divergentes de escolas psiquiátricas, colocou sob o código a
seguinte orientação "Codifique a homossexualidade aqui seja ou não a mesma considerada transtorno mental".
Vide: LAURENTI. Ruy, Homossexualismo e a Classificação Internacional de Doenças. Rev. Saúde Pública
[online]. 1984, vol.18, n.5, pp.344-347. ISSN 0034 8910. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89101984000500002.
Por vezes adota-se um parâmetro que promove uma maior segregação e desassossego a
parcelas da sociedade, ao revés de inquietar-se para descobrir as raízes que consideram que
algumas pessoas são anormais, inaceitáveis, inválidas ao passo de que outras são habitualmente
aceitas no seio social. Na medida em que, até os dias atuais, ainda subsiste uma necessidade de
adequação entre o sexo biológico, o gênero e a expressão do desejo humano, mantendo um
dualismo entre a heterossexualidade e todas as expressões de gênero que dela discordem.
É a partir destes desafios que a perspectiva da teoria queer denota os desafios que se
apresentam na seara dos direitos humanos das pessoas em situação de refúgio. É precioso
destacar que esta teoria surgiu em clara contraposição as estruturas rígidas e justapostas que
restringiam a vivência humana, ao considera-la como “um impulso crítico em relação à ordem
sexual contemporânea”38, onde houve uma resiginificação de um termo que denotava perversão,
um verdadeiro xingamento para todos aqueles que desenvolviam-se de forma a romper com
padrões de sexualidade e gênero como unidades restritas e inelásticas.
Neste viés, a teoria queer elenca o sujeito sempre submetido a um devir, em um caráter
permanentemente transitório, de fronteiras sexuais móveis, onde as circunstâncias que versam
38
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças / Richard Miskolci. – 2. Ed. Rev. E
Ampl., 2. Reimp. – Belo Horizonte: Autêntica Editora: UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto, 2015. –
Série Cadernos da Diversidade; 6. P. 21.
39
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças / Richard Miskolci. – 2. Ed. Rev. E
Ampl., 2. Reimp. – Belo Horizonte: Autêntica Editora: UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto, 2015. –
Série Cadernos da Diversidade; 6. P. 25.
sobre identidades “naturais” de sexo e gênero, não são aceitas, permitindo uma nova
compreensão sobre categorias anteriormente fixas e restritivas, suscitando uma compreensão
elástica e atenta a necessidade de que grupos historicamente marginalizados possam exercitar
a sua sexualidade, o gênero e o desejo sexual40. Este caráter flutuante que a teoria queer apregoa
a sexualidade humana, pode ser percebido também no âmbito das discussões entre o direito
internacional dos refugiados e os direitos humanos41.
Estas noções derivam da compreensão de que, a sexualidade humana, não pode ser
percebida dentro de uma ótica binária e restrita. E sim, por outro lado, deve ser observada em
uma ótica que estabeleça uma compreensão universal acerca das performances de gênero e
desejo sexual, os quais podem ser percebidos e exercidos de numerosas formas, em diversas
sociedades e em concepções que não se amoldam as proposituras experimentadas nos países
ocidentais, nos quais ainda se vigora a tensão que elenca a cisheteronorma, a qual apresenta a
construção social, em categorias rígidas e excludentes, que restringem a identidade individual
e social.
É precioso perceber que, a própria seara dos direitos humanos atua de forma a trazer a
discussão sobre a necessidade de novas concepções acerca das noções de gênero e sexualidade.
A concepção ocidental acerca das performances de gênero e sobre a sexualidade dos indivíduos
não estão contidas, tão somente, nos contextos vivenciados nestas culturas. Não é difícil
perceber que as construções sociais criadas no ocidente, não são representativas das expressões
do oriente, e o próprio discurso que tece a universalidade dos direitos humanos, por sua vez,
deve se ater a estas variáveis.
Noções culturais, sociais e políticas são próprias de cada sociedade que as vivenciam42.
Estas vivencias e características acabam sendo internalizadas pelos indivíduos e passam por
40
ROCHA, Cássio Bruno Araújo. Um pequeno guia ao pensamento, aos conceitos e à obra de Judith Butler.
Cadernos Pagu, n. 43, p. 507-516, jul./dez. 2014
41
GROSS, Aeyal. Queer Theory and International Human Rights Law: Does Each Person Have a Sexual
Orientation?. Proceedings of the Annual Meeting (American Society of International Law), vol.101, p. 129-132.
2007. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/25660175>. Acesso em 3 ago. 2018.
42
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 10ª ed. – Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, p. 122, 2016.
Note que, para que a concessão do refúgio ocorra, é preciso que haja a confissão de
aspectos personalíssimos da vida de pessoas LGBT, as quais podem não se expressar com o
vigor necessário em virtude de o ambiente e circunstância em que se encontram não serem
favoráveis44, favorecendo a preponderância de vergonha e humilhação. Subsiste também um
paradigma de que, numerosas condutas praticadas por estas pessoas também podem constituir-
se de atos que remetam a crimes e ou a violação de regras impostas durante a vida destes
indivíduos, prejudicando a forma como se confessam perante outras sociedades em face da
percepção que eles detêm sobre suas próprias vivências45.
43
LEWIS, Rachel. Gay? Prove it: The Politics of Queer anti-deportation activism. Sexualities, vol. 17, n. 8,
p. 974, 2014.
44
SHUMAN, Amy.; BOHMER, Carol. Gender and Cultural Silences in the Political Asylum Process.
Sexualities, vol. 17, n. 8, p. 942, 2014.
45
SHUMAN, Amy.; BOHMER, Carol. Gender and Cultural Silences in the Political Asylum Process.
Sexualities, vol. 17, n. 8, p. 943, 2014.
46
SHUMAN, Amy.; BOHMER, Carol. Gender and Cultural Silences in the Political Asylum Process.
Sexualities, vol. 17, n. 8, p. 947, 2014.
Neste viés, é possível sugerir que a concessão de refúgio para um homem homossexual,
necessite implicar, em maior ou menor grau, que em seu país de origem a sua conduta pública
seja impregnada por pechas que favoreçam a perseguição, como as vivenciadas por indivíduos
que atuem na defesa e promoção de causas de igualdade entre as pessoas LGBT. De forma
diversa, não se considera as vivências e perseguições que podem ser experimentadas dentro do
ambiente privado e, em especial, no âmbito familiar. É possível suscitar que, tal como em outras
formas de violência de gênero contra a mulher, as agressões se deem, de forma proeminente,
dentro dos ambientes privados, sejam eles dentro de suas relações de emprego ou nas relações
de cunho familiar.
47
SHUMAN, Amy.; BOHMER, Carol. Gender and Cultural Silences in the Political Asylum Process.
Sexualities, vol. 17, n. 8, p. 947, 2014.
48
SHUMAN, Amy.; BOHMER, Carol. Gender and Cultural Silences in the Political Asylum Process.
Sexualities, vol. 17, n. 8, p. 947, 2014.
Ao mesmo tempo em que o refúgio deveria ser visto como uma política de abrigo e
acolhimento, ela também pode ser percebida e vivenciada como um reforço a condutas que
segregam e reprimem seres abjetos e com performances de gênero divergentes, em especial por
deturparem a ideia de gênero e sexo como categorias binárias e excludentes. Neste sentido,
pessoas que divergem destas categorias restritivas, precisam apresentar-se em consonância com
ideais ocidentais e heteronormativos que atentem contra o sistema cisgênero, necessitando que
as suas homossexualidades, lesbiandades, bissexualidades, transsexualidades e demais formas
de expressões de desejo sexual e gênero se adequem as concepções que possuem um caráter
excludente as minorias sexuais49.
É abismático que, pessoas LGBT necessitem moldar seus corpos, atitudes e expressões
para adequar-se a perspectivas da hetero-norma, ainda que suas identidades não se configurem
como normativas, se mostra imperativo a adequação às expectativas de gênero construídas em
outras realidades e com aspectos culturais distintos para que se obtenha o refúgio. Ocasionando
um processo de elaboração de identidades que, através de uma fala oriunda de perspectivas
dominantes, são reformuladas e aparentemente reconhecem direitos de grupos marginalizados.
Contudo, não se atrevem a perceber que as mesmas falas que construíram identidades e
balizamentos sobre os corpos, transcrevem, na verdade, práticas que são vistas como avessas a
pessoas queer e reforçam condutas que levam a abjeção destes corpos na sociedade50.
CONCLUSÕES
O cotejo aqui avençado, permite perceber que, as atuais formas de controle das
solicitações de refúgio, em virtude da condição sexual e identidade de gênero dos solicitantes,
tendem a reverberar e concretizar formas de violência contra pessoas queer, seja elas de forma
simbólica ou estrutural, na medida em que podem acarretar a devolução dos indivíduos aos
países de origem e ocasionar condições drásticas a estas pessoas 51 . Visto que, subsiste a
49
NAYAK, Meghana. Who Is Worthy of Protection?: Gender-Based Asylum and U.S. Immigration Politics
. EUA: Oxford University Press, 2015. 272 p.
50
LEWIS, Rachel. Gay? Prove it: The Politics of Queer anti-deportation activism. Sexualities, vol. 17, n. 8,
p. 974, 2014.
51
NAYAK, Meghana. Who Is Worthy of Protection?: Gender-Based Asylum and U.S. Immigration Politics
. EUA: Oxford University Press, 2015. 272 p
E isto, neste sentido normativo e restritivo indicado e moldado aos indivíduos queer, é
justamente o contrário do que apregoa uma categoria marcada por imprecisões e aspectos de
fluidez que esta terminologia veste, ao abandonar fáceis definições restritas e recusando-se a
fixar parâmetros de identidades sexuais e de gênero, subvertendo a própria concepção da
universalidade de direitos, tão cara e apregoada ao universo dos direitos humanos. Ao se falar
em condições humanas, não deveria pautar-se de forma a tratar os indivíduos como objetos de
52
SHAKHSARI, Sima. The queer time of death: Temporality, geopolitics, and refugee rights. Sexualities,
vol. 17, n. 8, p. 998-1015, 2014.
53
SHAKHSARI, Sima. The queer time of death: Temporality, geopolitics, and refugee rights. Sexualities,
vol. 17, n. 8, p. 998-1015, 2014.
existir que se produza um lastro probatório sobre a expressão de gênero e ou condição sexual
de pessoas queer.
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54
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RESUMO
A conversar com Raewyn Connell tever início pela sua trajetória acadêmica a partir do livro Making the
Difference: Schools, Families and Social Division (1982), cuja publicação em língua portuguesa ampliou o
interesse de pesquisadores em educação pelos estudos de gênero. Dada a amplitude da produção da autora nesta
linha de estudos a conversa continua com indagações sobre a importância para escola em lidar com esse tema,
assim como sua interconexão com os estudos sobre masculinidades e suas teorizações internacionais e mais
particularmente no Hemisfério Sul, visto que Connell, à época estava divulgando o seu livro Southern Theory:
The Global Dynamics of Knowledge in Social Science. Discutiu-se as possibilidades teóricas do Sul pelo Sul, o
papel da escola na introdução dos temas sobre as ordenações de gênero e finalmente apresenta-se reflexões dos
autores sobre seus próprios questionamentos a cerca da obra da autora.
ABSTRACT
The conversation with Raewyn Connell began with her academic trajectory with the book Making the Difference:
Schools, Families and Social Division (1982), published in Portuguese, which expanded the interest of researchers
in education on gender studies. Given the scope of the author's production in this line of studies the conversation
continues with inquiries about the importance of schools in dealing with this subject, as well as its interconnection
with the studies on masculinities and their international influence and more particularly in the Southern
Hemisphere, since Connell, at the time, was publicizing her book Southern Theory: The Global Dynamics of
Knowledge in Social Science. The theoretical possibilities of the South by the South were discussed, the role of
the school in the introduction of the themes on the genre order, and finally the authors' reflections on their own
questions about the author's work are presented.
RESUMEN
Una conversa con Raewyn Connell tener empezar por su carrera académica del libro Haciendo la Diferencia:
escuelas, las familias y la división social (1982), cuya publicación en portugués ampliado el interés de los
investigadores en la educación, los estudios de género. Dada la amplitud de la producción de la autora en esta
línea de estudios la conversación continúa con indagaciones sobre la importancia para la escuela en lidiar con ese
tema, así como su interconexión con los estudios sobre masculinidades y sus teorizaciones internacionales y más
particularmente en el hemisferio sur, ya que Connell, en la época estaba divulgando su libro Southern Theory: The
Global Dynamics of Knowledge in Social Science. Se discutió las posibilidades teóricas del Sur por el Sur, el
papel de la escuela en la introducción de los temas sobre las ordenaciones de género y finalmente se presentan
reflexiones de los autores sobre sus propios cuestionamientos a cerca de la obra de la autora.
PALABRAS CLAVE: Educación, Igualdad, Masculinidad, Género, Evaluación Etnografía.
Questões:
5
A conferência intitulada Embodiment [encorporação] das mulheres transexuais: gênero, medicina e política, foi
ministrada na Faculdade de Psicologia da UERJ por Raewyn Connel, no dia 13/04, como o patrocínio do Centro
Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) e do Laboratório Integrado em Diversidade
Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos (LIDIS/UERJ)
europeia. Você poderia falar um pouco sobre os modos como a colonialidade opera nas
escolas?
7. Você tem sido a precursora dos Estudos de Gênero na perspectiva do sul. Poderia falar
sobre as inovações dessa perspectiva e o quanto isso poderá incidir no campo de
produção de conhecimento na Educação?
8. Quando você lançou o livro Masculinities (Connell, 1995) vivíamos, no geral, a ideia
de um ethos unificado em torno da masculinidade e seu trabalho teve grande impacto
porque trouxe a ideia da multiplicidade masculina. Paralelo ao seu livro, o mundo viveu
o reconhecimento, em maior ou menor grau, dos direitos identitários e/ou cidadãos da
população de lésbica, gay, bissexual, travesti e transexual (LGBT) e a crítica feminista
a hegemonia masculina. Como você analisa o reconhecimento e os direitos civis da
Conversa.
Raewyn: Talvez.
Carmen: Posso explicar, se você desejar! A ideia principal Raewyn, é publicar essa conversa
com você no contexto da educação e não focar exclusivamente nos estudos de gênero.
Raewyn: Então me fale sobre quem é o público para o qual vocês querem escrever?
Raewyn: Bem, eu acho que vou por parte na questão, é que eu comecei na educação, eu
suponho, como um praticante, antes de ser uma pesquisadora da educação, ou ao mesmo tempo,
porque eu estava envolvida em um movimento para reformar as universidades que saíram do
New Left [Nova Esquerda] na década de 1960, quando eu era uma estudante de pós-graduação.
Nós desenvolvemos uma crítica à universidade, à pedagogia e aos currículos. Não foi apenas
uma crítica, mas tentou-se criar algo alternativo. E assim, em Sydney, eu estava envolvida na
criação de algo chamado Free University [universidade livre], que era uma tentativa de criar
um sistema central de ensino superior radical que funcionou e durou cerca de três anos. Não
tinha permanência como muitos projetos da New Left [risos], mas criava uma espécie de modelo
de educação superior onde não havia distinção entre docentes e estudantes, onde a base eram
grupos de pesquisa self-corrected [autocorrigidos] que abordavam problemas de tal
importância que as principais universidades ignoravam: questões de violência, classe, poder,
indigenismo, questões aborígines, estratégias de movimentos sociais. Então, isso continuou na
minha carreira como professora universitária mais tarde, onde eu estava continuamente
envolvida na tentativa de desenvolver uma pedagogia mais democrática na universidade. E
novos currículos em áreas como gênero e análise cultural eram praticados. Então sempre houve
um lado de prática no que eu estava tentando fazer na educação. Eu me tornei uma pesquisadora
educacional através do meu doutorado sobre a consciência política das crianças e usei uma
abordagem no estilo Piaget para o desenvolvimento do pensamento das crianças sobre o
desenvolvimento da sociedade e questões políticas. Assim, minha primeira publicação em um
periódico educacional foi desse material que se debateu questões sobre se as escolas estavam
engajadas em propaganda educacional ao lidar com o governo e a política. E, parte dessa
pesquisa foi sobre o entendimento das crianças sobre classe social e desigualdade, então eu
publiquei coisas sobre a consciência de classe das crianças. Mas depois, me envolvi em um
estudo com adolescentes, em Sydney. Era uma espécie de pesquisa, de amplo espectro, sobre a
adolescência e eu era parte de uma equipe, cuja maioria estava no Departamento de Educação.
E publicamos um livro chamado 2 to 20: Studies of City Youth” (Connell, at al., 1975) que era
basicamente um amplo estudo da vida adolescente em Sydney, no final dos anos 60 e início
dos anos 70. E, que tinha muitos dados sobre retenção educacional, diferenças sociais no
desenvolvimento e desigualdades de classe na educação. Escrevi artigos sobre isso. Foi também
quando minha primeira pesquisa sobre gênero na educação foi feita porque escrevi um artigo
sobre os padrões de diferença sexual que emergiram nesta pesquisa.
Carmen: Então, lá havia espaço para isso. Para esse tipo de debate, aqui ainda não!
Raewyn: E então, o neoliberalismo veio com sua visão estreita sobre cultura e com o estresse
na competição, da vigilância e da quantificação. E começou a impor um regime de testes muito
mais rígido do que antes e mais difundido. A questão central de antemão só tinha sido o
currículo escolar, mas agora temos testes padronizados no ensino primário e no ensino médio.
Carmen: No começo, como isso funcionava? Aqui, vou dar um exemplo, os(as) professores(as)
estão treinando os estudantes para fazer os testes.
Raewyn: Sim, sempre! Qualquer professor com a cabeça mais estreita vai ensinar a fazer o
teste. Se for um teste de alto risco, que afeta o futuro da criança ou da escola, é claro que eles
vão treiná-las para fazer o teste. Todo mundo sabe que é assim! Exceto os formuladores de
políticas que provavelmente sabem disso e não se importam. Então, sim, fico furiosa com isso!
É um processo profundamente destrutivo e distorce a educação e cria uma enorme ansiedade
nas crianças pequenas. Ele incorpora a competitividade individual como a estrutura principal
da escola e cria muito mais vigilância dos professores, porque eles agora medem a eficácia do
professor por meio desses testes. Esse foi, de fato, um dos principais argumentos para trazê-
los, uma vez que eles achavam que seriam capazes de dizer quais eram as escolas eficazes e
quais eram os professores eficazes, medindo seus resultados.
Raewyn Connell: Sim. Então, eles estão trazendo de volta o pagamento pelos resultados que
tivemos há 150 anos ou 200 anos atrás. E foi abandonado porque teve efeitos ruins sobre a
educação. Então, estamos voltando há 100 anos ou mais. É horrível! Mas como agora existe
um monopólio neoliberal nos meios de comunicação de massa, é muito difícil contestar isso.
Agora temos um padrão similar de testes centralizados e a parte mais desagradável disso foi
quando o governo nacional criou um site chamado minha escola - não nossas escolas - mas
minha escola, e começou a colocar os resultados dos testes no site para que todos pudessem
forçar as escolas a competirem umas com as outras.
Raewyn: Isso é nojento! E isso foi feito por um governo trabalhista, sabe?
Carmen: Isso foi consolidado pelo governo do PT (Partido do Trabalhadores) aqui também.
Carmen: Mas, como você sabe essa organização teve inicio com os países Europeus, pois a
América do Norte não está tão interessada nisso (na avaliação comparativa internacional).
Raewyn: Bem, eles tentaram impor isso nos Estados Unidos como o ato intitulado – No Child
Left Behind [Nenhuma Criança Deixada para Trás]6 que envolveu testes de responsabilidade
dos professores e da escola através de testes. E esse era um governo de direita (Partido
Republicano). Sim, é bem desanimador. Além disso, os testes não são muito bons. Eles não são
realmente boas ferramentas educacionais.
Carmen: Sim! A ideia é que recebamos esse tipo de comparação de modo acrítico. Você
compara o Brasil com outros países e sempre nos faz parecer mal. Pois, você pode imaginar
países de baixa densidade demográfica comparados ao Brasil. É impossível comparar!
Carmen: A próxima pergunta é sobre a sua produção na educação, o livro que estávamos
falando antes – Making the Difference (Connell, 1982). Você continua a pensar que a função
da escola é prover o conhecimento aos alunos, mesmo com a velocidade das mudanças, o
alcance de acesso à informação no contexto global, as avaliações constantes, os baixos salários
dos professores? Estamos falando do lugar particular da escola nesse contexto, onde você pode
obter informações em qualquer lugar diferente da escola. Então, você ainda acredita que a
educação é um processo de libertação?
6
A Lei No Child Left Behind (NCLB) nenhuma criança deixada para trás - foi uma Lei do Congresso dos EUA
em 2002 na gestão do Presidente George W. Bush, que autorizou a Lei de Educação Elementar e Secundária a
incluiu disposições aplicáveis a estudantes desfavorecidos com a intenção padronizar os programas de ensino e os
testes na escolas (U.S. Department of Education, 2002).
Raewyn: Hum, sim, acho que sim. Primeiro de tudo, muito do que você obtém na Internet não
é conhecimento. É apenas fantasia, propaganda e distorção.
Raewyn: Não, eu não acho que é apenas propaganda, mas há muita propaganda lá. E conteúdo
manipulativo, propaganda, produção de relações públicas, desde que grandes quantidades de
conteúdo na Internet são comercialmente produzidas e reproduzidas, para ganho econômico,
com todas as distorções que vêm com isso. É uma loucura! A televisão foi originalmente
concebida como um meio educacional e veja o que aconteceu com isso, com todo o conteúdo
indesejado e a desinformação veiculada pela televisão. O mesmo ocorre na Internet. Desde que
a Internet foi originalmente concebida para fins militares e não para fins educacionais.
Claramente, tem possibilidades educacionais, mas elas são inundadas pela comercialização e
pelas distorções nela. Então, eu não acho que a escola tenha sido deslocada como fonte de
conhecimento. Mas nesse mar de comunicações eletrônicas, é mais difícil para as escolas
prender a atenção dos jovens à medida que passam cada vez mais tempo no mundo on-line. A
escola tem que se adaptar a isso e encontrar maneiras de ajudar os jovens a navegar e criticar
em um tipo diferente de ambiente de mídia. Eu acho que isso é uma responsabilidade das
escolas, certamente. Penso na educação, na educação formal, ainda como um grande complexo
institucional na maioria das sociedades e, como instituição, é um veículo de controle por
interesses comerciais e por governos autoritários e até mesmo por governos supostamente
democráticos. Portanto, o currículo está sempre sujeito a tentativas de controle. Mas também
acho que as instituições de educação formal têm possibilidade educacional. E a chave para isso,
absolutamente, é a força de trabalho docente. As possibilidades humanas dos professores para
fazerem coisas educacionais dentro e fora das salas de aula com as crianças, criando
oportunidades para as crianças se educarem, o que eu acho que é uma parte muito importante
da educação, no nível universitário também.
Raewyn: Desculpe! Eu não acho que as escolas perderam suas funções, não! Também não acho
que as universidades perderam sua função, embora existam agora MOOCs – Massive Open
Online Courses e material online do MIT – Massachusetts Institute of Technology. A interação
real em um campus universitário é realmente importante para o ensino superior e eu também
Carmen: Como se pode evitar ser tomado pela rede? Como você poderia nos aconselhar a fazer
algo sobre isso e a escola não ser consumida por recursos de “ensinos líquidos”?
Raewyn: Bem! Parte disso envolve luta nas novas mídias. Então, a contestação na rede, que eu
sei pouco. Eu tenho 71 anos de idade. Mas eu não tenho muitas habilidades líquidas. Então,
você precisa conversar com outras pessoas sobre isso [risos]; mas esse é um dos locais de luta.
Acho que as organizações de professores e a ‘indústria’ nos setores de educação são
importantes, por isso sou uma sindicalista ativa. Na verdade, conecto as possibilidades da
educação com a capacidade das organizações de professores de proteger a autonomia da força
de trabalho docente. O gerenciamento neoliberal é muito mais intrusivo do que o gerenciamento
burocrático, devido a todos esses mecanismos de controle: gerenciamento de desempenho,
prestação de contas, relatórios, o modelo on-line para cursos. Então, quanto mais isso for
contestado, melhor! Não pode ser contestado em um nível individual. Ele pode ser subvertido
um pouco, mas não pode ser contestado sem a força de uma ação coletiva. As discussões mais
interessantes e importantes sobre o ensino superior que aconteceram na Austrália agora, estão
acontecendo no sindicato nacional de educação superior, não no jornal, não no governo, não
entre os vice-reitores, mas na verdade é no sindicato onde as melhores discussões educacionais
estão acontecendo. Isso é parte disso, eu acho. Uma parte fundamental da contestação à reforma
é a relação do professor com os alunos. Estamos fundamentalmente tentando fazer com que a
universidade e a escola funcionem no interesse dos alunos. Essa é a base, são os fundamentos
éticos nos quais testamos o regime de testes e o gerenciamento neoliberal. Essas coisas estão
© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 207 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004
DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42448
conduzindo o processo educacional para os alunos. Portanto, ganhar o apoio dos estudantes no
nível de universalidade e mostrar qualidade na educação é realmente do interesse das pessoas
nas escolas. Essa é uma dimensão importante de luta.
Carmen: Estamos chegando ao final, você parece cansada, mas você pode responder outra
questão?
Raewyn: Claro, tudo bem! Me dê mais cinco e eu farei algo com elas (risos).
Marcio: Muito obrigada eu aprecio sua generosidade.
Raewyn: Me desculpe por isso, eu estou viajando de avião por uma distância muito longa.
Marcio: Eu entendo, também viajo por períodos longos, mas já me acostumei. Mas realmente
aprecio essa oportunidade. Gostaria que você falasse quais são as contribuições da Teoria Queer
e dos Estudos de Gênero transcolonial para a educação?
Raewyn: Existe uma edição especial da Revista Discurso7 sobre isso, sobre Estudos Queer em
educação que você pode achar interessante. Eu não sou uma entusiasta da Teoria Queer. Eu
tenho críticas a elas.
Marcio: Deixe-me ir por outro caminho, talvez, seja um pouco menos complicado e mais
prazeroso para você. Quando você lançou o seu livro Masculinities (Connell, 1995), esse
trabalho teve grande impacto porque trouxe a ideia de multiplicidades sobre a masculinidade.
Paralelamente ao seu livro, no mundo ocidental sobretudo, vivemos vários outros fatores: o
reconhecimento político da população lésbica, gay, bissexual e trans (LGBT) e a severa crítica
feminista à hegemonia masculina. Como você analisa o reconhecimento e a ampliação dos
direitos civis das pessoas LGBT e o empoderamento das mulheres na educação, nesses 20 anos
após o livro Masculininities?
Raewyn: Em primeiro lugar, eu diria que sou muito crítica ao conceito de pessoas LGBT. Eu
acho que é um conceito enganoso, é como uma coleção de maçãs e laranjas. Você está lidando
com coisas radicalmente diferentes e juntando-as. Não tem ajudado a criar um pensamento
claro ou uma boa política. Então, como eu estava dizendo na minha conferência, esse conceito
ajudou a circular a ideia de que tudo isso é sobre identidade e liberdade de expressão ou sobre
7
Não conseguimos identificar na revista citada pela autora a edição especial mencionada.
nossa identidade e os direitos humanos para expressar diferentes identidades. E, deste modo
não se entende o que é a transição de gênero ou a construção do gênero. E define uma minoria
sexual como um grupo que não é uma minoria sexual. Eu não acho que conceitos confusos
sejam educacionalmente úteis.
Marcio: Então, introduzir as políticas LGBT na agenda educacional não seria uma boa ideia?
Raewyn: Não! Esse conceito, eu acho, não é uma coisa boa para se ter na agenda educacional
[...]. Acho importante ter o reconhecimento no currículo do significado humano das relações
de gênero e das relações sexuais de gênero, de modo que o currículo precisa do feminismo para
não ser um currículo patriarcal e heteronormativo. Isso auxilia a compreensão escolar dos
modos que produziram as desigualdades de gênero e sexuais na sociedade. Quero dizer, está
muito longe de ser completo e certamente houve reações e retrocessos em algumas partes do
mundo. Então, agora na Rússia é ilegal ensinar sobre a homossexualidade em escolas onde as
crianças precisam saber sobre a homossexualidade. Hum, então isso é profundamente anti-
educativo. Em outras partes do mundo, mesmo não sendo ilegal, é socialmente difícil o debate
porque os professores estariam sujeitos ao assédio, às críticas e objeção de pais. Temos, nos
últimos 20 anos, não em todos os lugares, não de modo uniforme, em linhas gerais, um período
de reação de gênero que teve poderosos movimentos e mobilizações antifeministas e de
construção de novos patriarcados, como o russo ou o reforço do poder patriarcal na China sob
um regime supostamente igualitário e de corporações transnacionais mediadas pelas agendas
econômicas globalizadas. Tudo isso é administrado por grupos de homens com uma cultura de
gestão de ocupação fortemente masculinizada. Então, nós realmente não estivemos em um
momento histórico muito progressivo nesses 20 anos. E embora a pesquisa sobre
masculinidades certamente tenha se expandido e se tornado mais sofisticada, interessante e
internacional, o campo mais global de conhecimento ainda apresenta recursos importantes para
o currículo.
Marcio: Seu trabalho traz a subjetividade das pessoas que estão sendo entrevistadas. Essa é
uma lição importante que aprendi com você, [...] quando se desconsidera a voz das pessoas, a
humanidade das pessoas... [Raewyn interrompe]
Raewyn: Não apenas suas subjetividades, mas, de maneira central, suas práticas sociais, o que
elas realmente fazem, a criatividade de sua vida cotidiana. Como argumentei em meu livro
Schools and Social Justice [Escolas e Justiça Social] (Connell, 1993) uma parte fundamental
da justiça social é a justiça nos currículos. Currículos que, de várias formas, representam o
interesse dos grupos mais poderosos e não do menos privilegiados. Esta é a história usual dos
currículos. Assim, parte disso é a capacidade do currículo incluir as vozes dos marginalizados,
aqueles que são os menos poderosos em diferentes estruturas sociais.
Carmen: Nós temos muita sorte de ter você aqui e lamento exploramos ao máximo esse
momento. Me desculpe por isso. Um dia importante para nós ter você aqui. Muito obrigado
mesmo.
Carmen: Certamente! Mais do que útil, muito obrigada, estamos muito gratos por disponibilizar
esse tempo conosco, mesmo muito cansada.
REFLEXÕES
heterossexual foi fortemente problematizada pelos movimentos das chamadas minorias sexuais
à medida que se desenvolvia a epidemia do HIV / AIDS 8. As ciências sociais e humanas
colocaram em xeque a naturalidade das formas dominantes e dentro delas, a masculinidade
hegemônica. Tudo isso ocorria em paralelo aos avanços feministas, mas também com os
retrocessos neoliberais.
As políticas neoliberais, com suas práticas anti-participativas e anti-democráticas, não
abandonaram o imperativo político do homem forte, autoritário, racional, eficiente e impiedoso.
Existem relações concretas entre masculinidade e o neoliberalismo, sobretudo, por meio do
modelo hegemônico de gestão empresarial. A globalização neoliberal inaugurou outras
instituições e espaços sociais que se ampliaram em escala global por meio da internet, dos modelos
de Estados promotores de segurança transnacionais, dos mercados e empresas multinacionais. Essas
instituições são organizadas por sistemas de gênero geograficamente estendidas e altamente complexas.
Para Connell, as pesquisas sobre as masculinidades não são os únicos dispositivos para a análise
da ordem neoliberal global, mas vai ajudar à compreensão do funcionamento de suas instituições
capitalistas. Não obstante ao feito, Connell, em seu livro Southern Theory: The Global Dynamics of
Knowledge in Social Science (Connell, 2007), propôs uma outra alternativa de produção de
conhecimento para as Ciências Sociais e Humanas. Ao afirmar que a teoria do gênero, de fato, teve
relações estabelecidas a partir da metrópole global: Europa e América do Norte, ela nos chama a atenção
para o fato de que as sociedades que foram colonizadas têm sido forçadas a refletir e debater os efeitos
da colonização independentemente da lógica dos colonos. A periferia global continuou a produzir
conhecimentos em contrassenso a lógica econômica dominante de produção de saberes, isso ela o
chamou de Teoria do Sul.
A permanente luta contra hegemônica da autora nas escolas se refletem no despertar global para
os seus escritos. Nosso interesse em seu ponto de vista aqui descrito, se inserem na temática dos
currículos escolares e da urgência dessas lutas no campo da educação. A pauta neoliberal que cerca a
escola no momento atual, amplia os muros da escola pelo machismo, homofobia e outros com o
injustificável apelo da dominação das politicas feministas e marxistas pela escola e universidades. O
passo atrás descrito por Raewyn no início de sua fala, não se limitam aos testes macronacionais
aplicados nas escolas de natureza macro politica e mercadológica, naturalizados pelo machismo tóxico,
8
Human Immunodeficiency Viruses (HIV). Acquired Immunodeficiency Syndrome (AIDS)
que se traduz no alarmante fenômeno do feminicídio e das agressões contra pessoas diferentes
simplesmente por elas existirem.
Esses muros, não impedem a violência diuturna vivida pelas crianças e jovem nas escolas e fora
dela, mas dificultam o diálogo entre professores e seus alunos e dos alunos e alunas entre si, sobre um
universo cultural e social que habitam e sobre aspectos relacionados às sexualidades, masculinidades,
feminilidades presentes em seu cotidiano.
Raewyn nos alerta, sobre o quão necessários se fazem os estudos de gênero no contexto da
educação e dá destaque especial à dialógica entre os estudantes e suas relações socioculturais.
Referências
O CORPO TRANSVESTIGÊNERE
O CORPO TRAVESTI – NA ARTE
Renata Carvalho1
RESUMO
Quando o editor da RE-DOC falou da possibilidade de estarmos juntes/xs/as/os enquanto trans-
academicas junto a/os artivistas, em uma secção artística a primeira pessoa que nos veio à mente, foi a
artista, Renata Carvalho*. O motivo foi seu papel nos últimos anos encarnando Jesus Cristo, na peça
“O evangelho segundo Jesus, rainha do céu”, protagonizado pela atriz e mulher trans/travesti
Renata**, em um texto da britânica e também mulher transgênero, Jo Clifford, e que foi traduzido e
dirigido por Natalia Mallo. A peça é um monólogo e traz histórias bíblicas sob a perspectiva
contemporânea e sob a versão transgênera. A artista Renata Carvalho e sua equipe tiveram seu
trabalho cancelado por várias vezes em função de ataques contínuos por parte de alguns membros de
grupos religiosos, entre eles, aqueles ligados à Igreja Católica. Para que parte do texto de seu novo
espetáculo estivesse presente neste dossiê, esperamos por seu retorno ao Brasil, depois da turnê em
apresentações pelo Reino Unido, Europa Central e África. O texto abaixo é o retorno ao nosso pedido
por uma composição artística, autoral e inédita para esta revista e segue na integra com a fotografia da
autora, produtora e atriz, como parte daquilo que é apresentado em seu trabalho mais recente, o
“Manisfeto Transpofágico”.
PALAVRAS-CHAVE: Jesus Cristo, Rainha do céu; Trans-Artivismorimeira e Resistência Trans
ABSTRACT
When the editor of RE-DOC told us about the possibility of being together as Trans-academics with
the Trans-artivists, in an artistic section, the first person that blow up in our mind was the artist,
Renata Carvalho. The reason was her role process in the last years incarnating Jesus Christ in the play
"The Gospel According to Jesus, Queen of Heaven", starring as actress and trans/transvesti woman
Renata **, in a text written by the British and also transgender woman, Jo Clifford, and which was
translated and directed by Natalia Mallo. The play is a monologue and brings biblical stories from the
contemporary perspective and under the transgender version. Renata Carvalho and her team had their
work canceled several times, due to ongoing attacks by some members of religious groups, including
those linked to the Catholic Church. As part of the text of her new play to be present in this dossier,
we look forward to her return to Brazil, after touring in presentations across the UK, Central Europe
and Africa. The text below is the return to our request for an artistic composition, authored and
unpublished for this magazine and follows in full with the photograph of the author, producer and
actress, as part of what is presented in her most recent work, " The Manisfeto Transpophagic ".
** https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2018/04/05/quem-e-renata-carvalho-a-
atriz-trans-que-ousou-encarnar-jesus-cristo.htm
REFERÊNCIAS
CLIFFORD, J. (2018). Excerpt from "The Gospel According to Jesus Queen of
Heaven". Journal of Feminist Studies in Religion 34(1), 97-99. Indiana University Press.
Retrieved April 9, 2019, from Project MUSE database.
GONÇALVES Jr, Sara Wagner Pimenta. No Mar dos Abandonos: suspiro entre a teoria e
prática queer. In: Rebeh-Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, 2017. Disponível
em: < http://www.revistas.unilab.edu.br/index.php/rebeh/article/view/95/54>. Acesso em
23/01/2018
Mocha Celis1
RESUMEN
En Argentina y américa del sur las personas travestis, transexuales y transgéneros sufren una serie
de violencias basadas en su identidad de género. Entre ellas se encuentra la discriminación que
atraviesa todos los ámbitos en los que se desenvuelven, inclusive la escuela. Por esta razón las
personas trans no logran completar la escuela secundaria y eso repercute en la posibilidad de
encontrar trabajo. Esta situación da origen a una mayor marginación social, a abusos por parte de
la policía, a enfermedades de transmisión sexual y adicciones, que se traducen como un descenso
en la calidad de vida. Mocha Celis nació desde la necesidad de construir las herramientas para la
capacitación y el reconocimiento social por medio del otorgamiento de títulos secundarios
oficiales para revertir la situación en la que travestis, transexuales y transgéneros se encuentran.
RESUMO
Na Argentina e na América do Sul, travestis, transexuais e transgêneros sofrem uma série de
violência baseada em sua identidade de gênero. Entre elas, a discriminação que atravessa todas as
1Bachillerato Trans Mocha Celis/Argentina. Producción realizada en la materia Metodología de la Investigación del
Bachillerato Popular Travesti y Trans Mocha Celis UGEE N 16- Buenos Aires .Director: Francisco Quiñones Cuartas,
Docente : Miguel Nicolini, Docente adjunta: Fuster Lucia. Estudiantes : Agostinetti Marisol, Alonso Ignacio, Aguirre
Melina, Ayala Angelina Ayala Claudia, Fernandez Alma, Fernandez Emmanuel, Flores Flavia, Galeano Mayra,
Gonzalez Lorena, Heredia Victoria, Ifran Lorena, Larriega Melanie, Ledesma Jannette, Martignoni Maria Pia, Ojeda
Gonzalez Evelyn, Pagani Sofia, Pagliari Ophelia, Peluffo Adriana, Pinat Morena, Rash Debora, Rodriguez Jaqueline,
Rodriguez Maximiliano, Sanabria Cardozo Naida, Santillan Hamir, Silveira Virginia, Soto Luciana, Valcat Delfina,
Vazquez Nicole.
áreas em que se desenvolve, inclusive a escola. Por essa razão, as pessoas trans não conseguem
concluir o ensino médio e isso afeta a possibilidade de encontrar um emprego. Esta situação dá
origem a uma maior marginalização social, a abusos da polícia, a doenças sexualmente
transmissíveis e a vícios, que se traduzem em declínio na qualidade de vida. A Mocha Celis nasceu
da necessidade de construir ferramentas de treinamento e reconhecimento social por meio da
concessão de graus secundários oficiais para reverter a situação em que travestis, transexuais e
transgêneros se encontram.
ABSTRACT
In Argentina and South America, travestis, transsexuals and transgenders suffer a series of
violence based on their gender identity. Among them, the discrimination that crosses all the areas
in which it develops, including the school. For this reason, trans people are unable to complete
high school and this affects the possibility of finding a job. This situation leads to greater social
marginalization, police abuses, sexually transmitted diseases and addictions, which translate into
a decline in quality of life. Mocha Celis was born out of the need to build training tools and social
recognition through the granting of official secondary degrees to reverse the situation in which
travestis, transsexuals and transgenders has been in.
El presente trabajo fue realizado por las propias estudiantes del Bachillerato Travesti /
Trans Mocha Celis dentro de la Materia Metodología de la Investigación, junto a la Oficina de
Género del Ministerio de Público dela Defensa. Se decidió hacer una investigación que actualizara
los datos del informe de Lohana Berkins “La Gesta del Nombre Propio” donde en el año 2005 se
expuso la situación de las travestis en relación con la violencia, vivienda, salud y educación.
Con el presente trabajo por primera vez las estudiantes no fueron sujetas-objetos de estudio
sino que fueron sujetas- productoras de conocimiento y de sentido, desempeñándose como
investigadoras, encuestadoras, procesadoras de contenido, sujetas críticas de la propia existencia.
Este hecho inédito también arrojó datos alarmantes para la población travesti/trans.
Los datos arrojados son una herramienta pedagógica y política para pensar políticas
públicas para la propia población a nivel local y regional, ya que se intuye que si se hace un estudio
de estas características en la región, los datos se presentarán con los mismos valores, con el
agravante de que, en términos educativos, los países de la región aún no logran conquistas como
la educación pública, laica y gratuita del mismo modo que una ley de identidad de género amplia
e integral.
IINTRODUCCIÓN
Los Bachilleratos Populares se caracterizan por una serie de ítems que los diferencian de
otras instituciones educativas. Entre ellas se encuentran el poseer carácter de gratuitos, el
funcionamiento horizontal para la toma de decisiones, organizar sus prácticas y relaciones
pedagógicas desde la Educación Popular y contemplar la realidad, el medio geográfico y sus
necesidades, recuperando los saberes y las prácticas que vuelquen los partícipes de la experiencia.
Este Bachillerato Popular se ubica en una geografía identitaria, más precisamente en el
territorio de la identidad de género, territorio fronterizo con una firme aduana que determina
quiénes pueden salir del margen y quienes deberán quedarse. Las personas transexuales, travestis
y transgéneros, al portar una identidad de género diferente al sexo asignado al nacer no podrán
cruzar la frontera y las conduce a través de diversos mecanismos a la marginación social que trae
aparejada un descenso en la calidad de vida de los sujetos, ya sea por la imposibilidad de completar
los estudios formales, por la falta de trabajo o el ejercicio de trabajos de alto riesgo y
estigmatizados como la prostitución, la precariedad de las viviendas o la dificultad del acceso al
derecho a la salud.
Con este proyecto pretendemos contemplar las necesidades particulares de quienes quedan
excluidas y excluidos del sistema educativo por razones de esta clase, y por lo tanto dificultándose
el pleno desenvolvimiento humano de la persona y de esta manera brindarles las herramientas para
que realicen un pleno ejercicio de la ciudadanía.
Nuestra hipótesis fue que con la apertura de un Bachillerato Popular con estas
características podemos mejorar la calidad de vida, aumentar la esperanza de vida y reducir la
mortandad trans mediante la generación de herramientas que permitan a travestis, transexuales y
transgéneros elegir sus fuentes de ingreso y conocer sus derechos ciudadanos y de esa manera,
prevenir todos los problemas asociados a la desinformación y desconocimiento que resultan poco
empoderantes.
Cabe subrayar la premisa de no exclusividad de cualquier proyecto de esta índole, y éste
no es la excepción. Cualquier persona habilitada para comenzar sus estudios secundarios, ya sea
hombres y mujer cis, travestis, transgénero, transexual o intersexual, puede participar del
Bachillerato Popular, siendo éste especialmente sensible a las necesidades particulares del
colectivo trans.
En el estudio publicado en dicho libro se observa que la escuela ocupa el tercer puesto en
la lista de lugares en los cuales ellas han recibido agresiones2, siendo un territorio hostil para la
expresión de la identidad de género. La discriminación como ejercicio de la violencia toma
diversas formas, entre ellas el uso de adjetivos peyorativos para referirse a la identidad de género
de la persona.
“La situación de violencia más mencionada (…) fueron las burlas/insultos.
(…) Las burlas o insultos, en general, consisten en descalificar la identidad
travesti mediante el uso de apelativos tales como “trabuco”, “travesaño”,
“trava” o el uso del masculino para llamar a la agredida”3.
Un dato de suma relevancia son las barreras que dificultan el acceso al sistema educativo.
Esto nos ayudaría a visualizar el panorama y a tomar medidas específicas para superar estas
situaciones. Al consultar a las entrevistadas sobre cuáles eran las principales barreras para retomar
los estudios se observó que
“El arma más poderosa que había usado el sistema para controlarnos
era la ignorancia... Estudien porque la herramienta más poderosa que
puede tener una persona, más que el dinero, es el conocimiento”.
Lohana Berkins
Claro que estas mejorías pierden su carácter de tal cuando se compara esta escolaridad con
la de la población de la caba en general. El 59,8% de las mujeres trans y travestis tiene un nivel
educativo alcanzado inferior al establecido como obligatorio por el Estado (secundario completo),
mientras que para la población en general de la Ciudad, mayor de 25 años, este porcentaje es del
29%.24 Al incorporar la variable edad al análisis de las condiciones educativas en las mujeres trans
y travestis, resulta que quienes se encuentran en peores condiciones educativas son las personas
que tienen 41 años y más, en tanto el 67,3% de ellas no alcanzó a completar el nivel obligatorio.
Algo similar ocurre en el grupo etario entre 18 y 29 años de edad, el 64,7% está en esa misma
condición. Por último, el 53,8% de quienes están entre los 30 y los 40 años alcanzó el nivel
secundario completo y más.
Al analizar el nivel de educación alcanzado entre las mujeres trans y travestis y la edad en
que asumieron socialmente su identidad de género, es notable cómo esa asunción sigue
interviniendo en el ejercicio del derecho a la educación. En efecto, quienes asumieron su identidad
de género a los 13 años o antes tienen un nivel de estudios inferior a la secundaria completa en un
69,6%. Sucede algo similar con quienes asumieron su identidad de género entre los 14 y los 18
años. Aquellas que manifestaron su identidad de género a los 19 años o más han alcanzado el nivel
secundario completo o más en un 74,2%.
Del total de hombres trans que manifestó encontrarse estudiando en la actualidad (39.4%),
casi el 54% lo está haciendo en el nivel universitario. Todos los encuestados manifestaron realizar
sus estudios en una institución pública.
El 84,7% de hombres trans que están estudiando consideró que el trato entre los/as
compañeros/as y el equipo docente había mejorado luego de la sanción de la Ley de Identidad de
Género. En 2005, la principal razón por la que no estudiaban fue el miedo a la discriminación,
mientras que en 2016 lo es la falta de dinero y la falta de tiempo/horarios difíciles. Esta diferencia
podría tener una vinculación con el impacto producido por la Ley de Identidad de Género.
Al incorporar la variable de edad a este análisis, se observa que la falta de dinero como
principal dificultad para continuar los estudios es una razón de mayor peso para quienes tienen 41
años y más (45,8%) y quienes tienen entre 18 y 29 años (38,3%), grupos que, como se vio en el
apartado referido a empleo, presentan peores condiciones laborales.
Otro cambio respecto de 2005, refiere al deseo de completar los estudios. El interés por
formarse académicamente aumentó, en 2016, siete puntos.
Al observar las edades de las travestis y mujeres trans que no están estudiando pero desean
hacerlo, se observó que son las más jóvenes (de 18 a 29 años) las que muestran mayor interés en
completar los estudios; el 92% de ellas lo afirmó.
En el caso de los hombres trans que no están estudiando, el 45% de los encuestados admitió
querer continuar con sus estudios.
de Identidad de Género, resultó que las primeras estiman, en más del 64%, que tales posibilidades
mejoraron, mientras que los hombres trans lo hacen en un 45%.
En el año 2010, se había logrado conquistar desde las organizaciones de la sociedad civil,
la ley de matrimonio igualitario, que si bien no era una de las necesidades más urgentes del
colectivo LGTBIQ fue una estrategia para dar un debate a nivel nacional de la necesidad de
políticas públicas para el colectivo.
Si bien para la mayoría de las personas la democracia llegó en 1983, para las personas
travestis y trans el estado de derecho llegó el 9 de mayo de 2012 tras sancionarse la Ley de
Identidad de Género. Fue en este momento cuando el Estado empezó a considerar a las personas
travestis y trans como ciudadanas sujetos de derecho. Durante muchos años, el cambio registral de
nombre y sexo en los documentos era autorizado solo a aquellas personas que se sometían a
protocolos psicomédicos de evaluación y diagnóstico del género autopercibido.
Era requisito obligatorio la adecuación a las características físicas que se reconocen como
socialmente típicas para cada género. Con la lucha del activismo trans se reconoce como Derecho
Humano fundamental las expresiones o las identidades de género de las personas y su autonomía
en las decisiones relacionadas con la modificación de sus cuerpos. A partir de la Ley de Identidad
de Género, se vuelve imperativa la despatologización y desjudicialización de las expresiones de
género; ellas ya no son vistas como patológicas y anormales. Así, se abandona el paradigma
internacional de patologización de ciertas identidades o expresiones de género que estuvo en vigor
en nuestro país durante muchos años y que contribuyó a la exclusión, la discriminación y la
criminalización de las personas trans.
En ese proceso del camino hacia la reglamentación de la ley de identidad de género, nació
Bachillerato Trans Mocha Celis, siendo el primero del mundo con sus características. Se trata de
un espacio educativo INCLUSIVO y no excluyente, con Orientación en Diversidad de Género,
Sexual y Cultural. Crítico frente a las desigualdades, fue pensado desde su origen para ofrecer una
respuesta frente a la exclusión histórica sufrida por las personas Trans (travestis,transexuales,
Transgéneros).
La propuesta socio pedagógica está dirigida a mayores de 18 años y actualmente forman
parte de este bachillerato mas de 120 estudiantes entre lxs que se encuentran personas trans y no
trans, hecho que convierte tangible la diversidad del espacio. Se trata de un ámbito educativo
gratuito que brinda la posibilidad obtener la terminalidad de los estudios Primarios, ingresando al
mismo tiempo en la Escuela Secundaria, con un plan de estudios de tres años, obteniendo el título
oficial de BACHILLER PERITO AUXILIAR EN DESARROLLO DE LAS COMUNIDADES
Plan 601/01.
El Bachillerato Trans Mocha Celis; obtiene en el 2012 su reconocimiento oficial bajo la
dependencia de la Dirección de Educación del Adulto y del Adolescente de la Dirección General
de Educación de Gestión Estatal bajo la Res. 1050/12 SSGEYCP con CUE 202867-00. La base
de sus objetivos reside en generar un espacio de capacitación académica y construcción socio
política como ciudadanxs sujetxs de Derecho; generar oportunidades de inclusión social, a través
de acciones integradas, que permitan construir y fortalecer un perfil Formativo-Ocupacional en el
cual desarrollarse, finalizar su escolaridad obligatoria, impulsar experiencias de formación y
prácticas calificantes en ambientes de trabajo, iniciar una actividad productiva de manera
independiente o insertarse en un empleo.
El nombre Mocha Celis es el de una travesti que fue asesinada por la policía en una situación aún
no esclarecida y que no había podido culminar sus estudios.
Sus compañeras se dieron cuenta de que Mocha no sabía leer ni escribir porque siempre
pedía que le leyeran los edictos policiales o que completaran sus datos cuando la llevaban presa,con
el tiempo se organizaron y cada vez que eran detenidas, sus compañeras aprovechaban para
enseñarle.
Mocha murió sin poder terminar el secundario. Este espacio lleva su nombre con el objetivo
que ninguna otra persona, en especial las personas trans, se quede sin acceder a la educación
Gabriela da Silva1
1
Doutoranda em Educação PPGE/UFSC linha de pesquisa Sujeitos. Processos Educativos e
Docência/Ensino e Formação de Professores. Co-fundadora do NeTrans.
https://riuni.unisul.br/bitstream/handle/12345/585/110144_Jesualdo.pdf?sequence=1&is
Allowed=y
RESUMO:
Este trabalho de dissertação está inserido na área das Ciências Humanas no campo da Saúde
Coletiva, sua temática envolve a saúde dos homens transgêneros. O sexo biológico das crianças
ocupa um lugar central para as suas primeiras relações interpessoais e subjetivas, toda
construção imaginária e idealizada dos pais funda-se neste aspecto. Antes mesmo da criança
se perceber como um sujeito, a sociedade cis-hétero-normativa dita que deve haver consonância
entre sexo biológico, orientação sexual e identidade de gênero. Intriga-nos saber o que as
pessoas fazem quando sua identidade de gênero não corresponde ao seu sexo biológico. A
discussão teórica sobre gênero fundamenta-se em BEAUVOIR (1967), BUTLER (2003) E
LOURO (1997), entre outros. Diante de tal conflito, pretende-se compreender como são tecidas
as redes de busca por atendimentos, como fazem para ter acesso à informações e serviços no
sistema formal de saúde e, sobretudo, quais são as demandas e dificuldades dos homens
transgêneros nesse percurso (KLEINMAN, 1978; SOUZA e PEREIRA, 2016). Parte-se do
pressuposto que há barreiras e entraves para o processo transexualizador, devido às questões
financeiras, morais e sobretudo geográficas. Os sujeitos da pesquisa são homens que decidiram
passar pelo processo transexualizador. É imprescindível pontuar que homens transgêneros
nasceram e foram intituladas como “mulheres cisgênero”. Ao não se reconhecer com a
1
Mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Mato Grosso. Graduação em Psicologia.
Experiência em Psicologia Clínica.
identidade feminina buscam passar pela transição para adquirir caracteres masculinos como
forma de adequar sua imagem à sua identidade de gênero (ARÁN, 2006; BENTO 2008; LIMA,
2014). Como estratégia metodológica optou-se por entrevistas individuais com roteiro
semiestruturado, para assim compreender os caminhos de cuidado que os homens transgêneros
percorrem ao decidirem passar pelo processo transexualizador. Após a coleta dos dados será
realizada a análise das narrativas e do contexto imbricado nesse: a cultura, a historicidade, a
sociedade e a performatividade do sujeito (FOUCAULT, 2017; LANGDON,1999). Assim,
pretende-se compreender o drama social (TURNER,1986) dos homens transgêneros no
processo de busca pela sua identidade de gênero. Os capítulos que integram o marco teórico
são: Gênero e identidade de gênero; Corpo e subjetividade; Atenção à saúde, dificuldades e
necessidades; Itinerário terapêutico e Políticas públicas e direitos à saúde. Quando nos
deparamos com as situações sobre as dificuldades e entraves para realização do processo
transexualizador, percebemos a relevância de estudar e fornecer contribuições específicos sobre
essa população para endossar políticas e serviços voltados para transgêneros, transexuais e
travestis. Uma das hipóteses que rege a pesquisa é que há preconceito, desinformação,
ocorrendo assim a falha no atendimento desses sujeitos pelos profissionais de saúde. Essa
questão desperta-nos para a importância de compreendermos o contexto social em que vivem,
especialmente por desafiarem a sociedade heteronormativa eles ficam à mercê da violência e
do adoecimento mental.
Resumo
Artigo científico que tem objetivo analisar se a separação nos esportes deve ser por sexo
biológico ou gênero, fruto de pesquisa iniciada em março de 2018 após a polêmica com a
jogadora transexual de volei Tifanny Abreu. O trabalho enfoca a temática da divisão sexual
nos esportes e se a separação deve ser por sexo biológico ou gênero auto identificado,
enfrentando questões polêmicas que envolvem a idéia de vantagem ou desvantagem pretérita,
ouvindo argumentos favoráveis e contrários a inclusão de atletas transexuais nos esportes.
Palavras chaves -Transexualidade. Separação sexual nos esportes. Sexo biológico. Gênero.
Abstract
Scientific article that aims to analyze whether the separation in sports should be by biological
sex or gender, the result of research initiated in March 2018 after the controversy with the
transsexual volleyball player Tyfanni Abreu. The work focuses on the issue of sexual division
in sports and whether the separation should be by biological sex or self-identified gender,
facing controversial issues involving the idea of past advantage or disadvantage, listening to
arguments favorable and contrary to the inclusion of transsexual athletes in sports
Resumen
Artículo científico que tiene objetivo analizar si la separación en los deportes debe ser por
sexo biológico o género, fruto de investigación iniciada en marzo de 2018 tras la polémica
con la jugadora transexual de volei Tyfanni Abreu. El trabajo enfoca la temática de la división
sexual en los deportes y si la separación debe ser por sexo biológico o género auto
identificado, enfrentando cuestiones polémicas que involucran la idea de ventaja o desventaja
pretérita, oyendo argumentos favorables y contrarios a la inclusión de atletas transexuales en
los deportes
Palabras claves -Transexualidad. Separación sexual en los deportes. Sexo biológico. Género.
INTRODUÇÃO
No ano de 2018, a partir de 21 de Janeiro de 2018, tomou conta dos noticiários o caso
da atleta de vôlei, Tifanny, acerca da sua aceitação como jogadora na categoria feminina pelo
Comitê Olimpíco Internacional - COI.2
2
Reportagem, Caso Tiffany: Sheilla vê vantagem física e se diz contra; opinião gera polêmica,
<http://esporte;ig;com;br/maisesportes/volei/2018-01-21/caso-tiffany-sheilla.html>, acessado em 26 de fevereiro
de 2019.
Por fim, o terceiro capitulo visa analisar a inclusão de atletas transexuais no esporte
de acordo com os estudos de gênero e legislação vigente.
A pesquisa será desenvolvida pelo método dedutivo, uma vez que a pesquisadora
pretende eleger um conjunto de proposições, as quais acredita serem viáveis e adequadas para
analisar o objeto da pesquisa, com o fito de comprová-las argumentativamente.
3
Michael Warner, Fear of a Queer Planet, 1993. Crítico literário americano, teórico social, e Seymou H Knox,
professor de Literatura Inglesa e Estudos Americanos da Universidade de Yale. ele também escreve para
Artforum, The Nation, The Advocate e The Vilage Voice.
Essa linha de pensamento vem de uma lógica biologizante que entende que “homem
nasce homem” e “mulher nasce mulher”, a partir de suas genitálias, negando direito a
identidade a quem transgride as normas vigentes de gênero – travestis, mulheres transexuais e
homens trans.
4
Guaciara Lopes Louro. Doutora em Educação e Professora titular aposentada do Programa de Pós Graduação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
5
Judith Butler, filósofa pós-estruturalista estadunidense, umas das principais teóricas da questão contemporânea
do feminismo, teoria queer e ética. Ela é professora do departamento de retórica e literatura comparada da
Universidade da Califórnia em Berkeley.
Dessa forma, a reação negativa que a performance de Viviane Beleboni 6 foi encarada
pela sociedade revela quais vidas são reconhecidas como importantes e quais vidas não
importam.
A peça em questão recebeu duras criticas, por partes de certos grupos religiosos, de
estar profanando a religião cristã, uma vez que, no imaginário de alguns coletivos de pessoas
ser comparado a uma travesti é ofensa grave. Vale dizer, inclusive, que a atriz recebeu
diversas ameaças, processos judiciais que tentaram censurar a peça, o que demonstra o ódio e
o desprezo que alguns setores da sociedade sentem por travestis e mulheres transexuais.
Como segunda instituição de acesso social, e a primeira fora do seio familiar. A escola
concentra o maior expectro daquilo que as pessoas aprendem em suas famílias. Os valores, a
religiosidade, a intolerância ao diferente e consequentemente como reagir a isso são ensinados
aos seus membros para que não se aproximem ou se misturem a quem está errado e merece
ser isolado, se possível, excluído do convívio.
6
Viviane Beleboni, Transexual ficou conhecida mundialmente após aparecer "cricificada" durante a parada
LGBT de São Paulo no ano de 2015.
7
Renata Carvalho, atriz transexual, protagonista da peça " O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu". Peça
que retrata o calcário de um Jesus Cristo cujo crime-mor foi ter nascido transexual.
Um dos fatores que contribuem para que a escola seja um não lugar para pessoas
Transexuais é a proibição da discussão de gênero nas escolas, nos programas municipais e
estaduais de educação orquestrado por grupos ultraconservadores tem mantido a proibição,
que vem sendo derrubada nos tribunais de justiça do Estado, tendo o próprio Ministro Luis
Roberto Barroso se manifestando pela inconstitucionalidade da proibição na ADPF 465.
Essa triste realidade provoca a não capacitação para entrada no mercado formal de
trabalho e aliada ao preconceito se torna uma barreira quase intransponível, como resultado
não vemos pessoas trans nas diversas atividades laborais cotidianas.
O fisiologista Turíbio Barros8 entende que apesar dos níveis de testosterona de uma
atleta transexual ser identico ao de uma mulher cisgenera, haveria uma vantagem pretérita
devido aos anos de crescimento com uso de testosterona.
Já Cyd Zeigler9, autor do estudo “Fair Play: How LGBT Athletes are Claiming Their
Rightful Place in Sport”, entende que essa “vantagem” não garante maior capacidade física
do que uma atleta que não teve essa influência de hormonio no seu crescimento.
Importante ressaltar que para atingir o nível exigido a mulher transexual passa por um
rigoroso acompanhamento e regular terapia hormonal que possibilita o equilíbrio hormonal no
mesmo patamar de mulheres ditas cigêneras, as que biologicamente nasceram no sexo
feminino e assim se reconhecem.
8
Dr turibio Barros, Mestre e doutor em fisiologia do Exercício. Professor Adjunto da UNIFESP Membro do
Conselho Regional de Biomedicina, Consultor em Fisiologia do Exercício. Autor de livros sovre ciências do
esporte, fisiologia do exercício, saúde e qualidade de vida.
9
Cyd Zeigler, é comentarista e autor no campo da sexualidade e esportes. Zeigler foi co-fundados da Outsports e
da National Gay Flag Football League.
10
Joanna Harper, assessora do COI em assuntos de gênero e esporte, fisico médico de profissão, corredor ávido
por escolha e a unica pessoaa publicar um artigo revisado por pares sobre o desempenho de atletlas transgenero.
11
Karen Seidel, endocrinologista do Instituto de Endocrinologia e Diabetes do Estado do Rio de Janeiro e
coordenadora do ambulatório trans, referenciado para atendimento ambulatorial no processo transexualizador.
“Por mais que os níveis de testosterona estejam bastante reduzidos, ainda mantém
sua estrutura óssea muscular e visceral de um indivíduo masculino, podendo ter uma
performance superior de suas colegas”
transexuais às mulheres biológicas, chamadas de cis. Esse teste seria satisfatório para provar
que as atletas podem competir juntas.
Tifanny tem 1,94m, a central Thaísa, de 1,96m, salta 3,16m, o mais alto do país. Mas,
fora daqui a italiana Paola Egonu alcança os 3,36m, e a chinesa Ting Zhu, 3,27m. Wallace,
oposto da seleção masculina, mesma posição de Tifanny, chega aos 3,44m.
Para Rezende a biologia não deve ser neutra nem axiológica tampouco
metodologicamente citando Pierre Bordieu, fazendo uma critica ao que considera “achismos”
sobre o tema em relação a critica sobre a presença de grupos estigmatizados e invizibilizados
nos esportes.
Ainda se baseando no estudo de Joanna Harper ele cita que uma pesquisa com atletas
corredores de provas de rua e concluiu que as atletas transexuais que foram submetidas a
terapia de reestabelecimento hormonal passaram a alcançar tempos até 12% inferiores aos
alcançados um ano antes da terapia.
Ao abordar o caso específico da atleta Tifanny ele desta que ela sacou na Superliga 27
vezes nos 3 jogos e fez 3 pontos de saque, media de um (1) ponto de saque por jogo. A atleta
jogou 13 sets o que faz sua média de saque de diminuir para 0,23 pontos por set.
“Em eficiência ela tem a maior média de pontos por SET (também não a faz maior
pontuadora da competição como as notícias tendem a dizer) e essa afirmação não a
coloca como a melhor jogadora do torneio, aliás 45% de aproveitamento no ataque não
a coloca entre as 5 melhores atacantes da competição (a jogadora líder nas estatísticas
de ataque de acordo com os dados da CBV é Walewska Oliveira com 60% de
aproveitamento no ataque) , ou seja, a atleta não é um “ponto fora da curva”, quando
se percebe os números de ações de suas companheiras de equipe. Ela foi bloqueada,
foi defendida e errou ataques na mesma proporção de qualquer outra jogadora que
disputa o torneio”
Percebe-se que pelos estudos apresentados que o nível hormonal e de massa muscular
de mulheres transexuais se equivalem a de mulheres cisgeneras, não havendo segundo os
estudos pesquisados vantagem quando preenchido os requisitos e exigências estabelecidas
pelo Comitê Olímpico Internacional.
As discussões sobre inclusão de pessoas transexuais nos esportes ainda são muito
polêmicas, devido, ainda pouca literatura e pesquisas sobre essa questão. A inclusão de atletas
trans nos esportes, sem precisar de autorização prévia dos comitês tem como marco o “V Gay
Games de Nova York” em 1994, evento cultura e esportivo organizado para comunidade
LGBT+
Trago a reflexão, os estudos intitulados Gay and Lesbian Studies e a Queer Theory,
que faz um contraponto entre corpo e identidade de gênero. Os movimentos sociais de
afirmação identitária, movimento de travestis e transexuais, por ex, vem por anos
reinvidicando espaço questionando a construção cultural da sociedade vigente, fazendo um
antagonismo entre construção cultural e diferença anatômica.
Segundo Thomas Laqueur a diferença entre os sexos é uma invenção para promover
desigualdades, não que as diferenças corporais não fossem percebidas, mas até o final do
século XVIII os sexos não eram entendidos como opostos e incomensuráveis, surgindo a
partir de então a segregação de gênero, que vigora até hoje, promovendo uma serie de
discussões, em especial, quando envolve outras identidades sexuais, não contempladas pela
cis heteronormatividade.
Entretanto a pergunta fica: a divisão de categorias esportivas deve ser separada por
sexo ou gênero.
Se faz necessário conceituar sexo e gênero, onde sexo nos remete às diferenças
biológicas naturais do corpo: cromossomos, perfil hormonal, órgãos sexuais internos e
externos e gênero se refere a construção social e cultural das diferenças sexuais, aquilo que se
considera como característica masculina e feminina.
Portanto, eu entendo que obedecendo os critérios estabelecidos pelo COI não existe
vantagem atual ou pregressa de atletas transgêneros nos esportes.
Entendendo a atuação das atletas como trabalho, destaco o seguinte trecho do livro
Gênero e Desigualdades de Flavia Biroli:
Portanto, se basear única e exclusivamente nos aspectos biológicos irá gerar uma
desigualdade e discriminação muito grande há um número considerável de mulheres
transexuais conhecido como transfobia social ou estrutural, fato, que já ocorre em diversas
áreas do mercado de trabalho, lembrando que 90% da população de mulheres transexuais e
travestis estão na prostituição e 179 mulheres transexuais e travestis foram assassinadas por
crime de ódio só em 2017 ( ANTRA , 2018).
CONCLUSÃO
A divisão no esporte, portanto, a meu sentir se for feita com base no sexo biológico,
irá inviabilizar que uma mulher transexual consiga reconhecimento de sua identidade de
gênero dentro da categoria feminina, já a divisão por gênero constitui o reconhecimento das
múltiplas identidades que fazem parte do sexo feminino, incluindo-se nesse contexto as
mulheres transexuais, motivo pelo qual entendo que a divisão da categoria no esporte deve ser
feita por gênero, levando-se em conta o percentual de testosterona e que o processo de
hormonização de 2 anos ou mais provoca perda de massa muscular e densidade óssea.
Estando a atleta dentro das regras estabelecidas para qualquer mulher e sendo
conclusivos os estudos pela não prevalencia de vantagem pretérida associada ao gênero não
cabe qualquer segregação ou discriminação, sob pena de estar-se cometendo grave atentado
aos direitos humanos das mulheres transexuais.
Por esse motivo que entendo pela inclusão das mulheres transexuais nas categorias
femininas de esporte, desde que cumpridos os requisitos exigidos pelo Comitê Olimpico
Internacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOMES, Carla e SORJ, Bila. Corpo, Geração e Identidade. Soc. Estado vol.29 nº2. Brasília,
2014.
ESPORTE, Globo. Reportagem sobre polêmica envolvendo a jogadora Tyffani Abreu. Esporte
espetacular.<https://globoesporte.globo.com/programas/esporte-espetacular/noticia/envolvida-
em-polemica-tiffany-desabafa-forca-de-uma-mulher.ghtml. , acesso em 18.03.2018 >
ESPORTE, Globo. Fisiologista ve beneficios pregesso para atletas transgêneros mas Comite
Olimpico Internacional abre espaço". Olímpiadas.
<https://globoesporte.globo.com/olimpiadas/noticia/fisiologista-ve-beneficio-pregresso-mas-
coi-abre-espaco-para-transgeneros.ghtml>, acesso em 18.03.2018
NLUCON. Inclusão de atletlas trans nos esportes e polêmica do caso Tyfanni Abreu. Inclusão
de Altetas Trans nos Esportes <http://www.nlucon.com/2017/03/atletas-trans-levam-
vantagens-em.html>, acesso em 18.03.2018
HUFFPOSTBRASIL. Transgêneros tem que ser incluídos nos esporte diz federação. Atletas
Transgêneros tem que ser incluídas nos esportes.
<https://www.huffpostbrasil.com/2018/01/24/transgeneros-tem-de-ser-incluidos-no-esporte-
diz-federacao-internacional-de-volei_a_23342720/, acesso em 27.01.2019>
XICA MANICONGO:
A TRANSGENERIDADE TOMA A PALAVRA
XICA MANICONGO:
THE TRANSGENDERITY TAKES THE FLOOR
XICA MANICONGO:
LA TRANSGENERIDAD TOMA LA PALABRA
RESUMO
O presente artigo apresenta a estória de Xica Manicongo, natural do Congo e escravizada, registrada
oficialmente como Francisco, conhecida atualmente como a primeira travesti da História do Brasil, considerando
os registros de sua existência, derivados os arquivos da Primeira Visitação da Inquisição. Delineando uma
trajetória histórica dos usos das informações disponíveis desde o século
XVI, por parte de pesquisadores, movimentos sociais e artísticos, reitera-se o caráter mobilizacional da
construção de memória coletiva, e seu papel relevante na construção e protagonização de identidades grupais,
particularmente, daquelas identificadas no âmbito das identidades de gênero trans, tendo em vista sua
apropriação simbólica e ressignificação na contemporaneidade.
ABSTRACT
This article presents the story of Xica Manicongo, a native of Congo and enslaved, officially registered as
Francisco, known today as the first travesti of Brazilian History, considering the records of her existence,
derived from the archives of the First Visitation of the Inquisition. Outlining a historical trajectory of the uses of
the information available since the 16th century by researchers, social and artistic movements, the mobilizational
character of the construction of collective memory is reiterated, and its relevant role in the construction and
protagonization of group identities, particularly of those identified within the scope of transgender identities, in
view of their symbolic appropriation and redefinition in contemporaneity.
KEYWORDS: Gender identity. History. Collective memory. Individual. Social movements. Transgenerality.
RESUMEN
El presente artículo presenta la historia de Xica Manicongo, natural del Congo y esclavizada, registrada
oficialmente como Francisco, conocida actualmente como la primera travesti de la Historia de Brasil,
considerando los registros de su existencia, derivados los archivos de la Primera Visitación de la Inquisición.
1
Professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro – IFRJ. Doutora em Psicologia Social, do
Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília – UnB, com Pós-Doutorado pela Escola Superior de
Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas – CPDOC/FGV Rio. Pesquisadora-Líder do ODARA – Grupo
Interdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Identidade e Diversidade (CNPq). Autora do livro “Transfeminismo:
Teorias e Práticas” (Metanoia Editora, 2014).
Delineando una trayectoria histórica de los usos de las informaciones disponibles desde el siglo XVI, por parte
de investigadores, movimientos sociales y artísticos, se reitera el carácter movilizacional de la construcción de
memoria colectiva, y su papel relevante en la construcción y protagonización de identidades grupales,
particularmente, de aquellas identificadas en el ámbito de las identidades de género trans, teniendo en vista su
apropiación simbólica y resignificación en la contemporaneidad.
PALABRAS CLAVE: Identidad de género. Historia. Memoria colectiva. Individuo. Movimientos sociales.
Transgenderism.
INTRODUÇÃO
A epígrafe que abre este artigo é o lema da Cidade de Salvador, a qual se refere ao episódio
relatado na Bíblia sobre o retorno da pomba que indicou a Noé que havia terra para
desembarcar da arca, após o dilúvio.
Eu venho contar uma estória, mais do que apenas uma história. Estória por ter ocorrido, pelo
episódio ter sido registrado. Mas esta também é uma História, a nossa. A dos opressores e a
dos oprimidos. A do pensamento eurocêntrico e a das epistemologias “amefricanas”
(GONZALEZ, 1988), que se constituem na complexa realidade psíquica e cultural brasileira,
que nos constitui como sujeitos de uma América Africana La(t/d)ina. Um olhar a partir das
vidas trans, tão longamente apagadas, violentadas, assassinadas.
Trago verdades, não necessariamente as suas, mas a de algumas pessoas como esta que lhe
escreve. Verdades são construídas, demoram a serem reconhecidas como tais. Primeiramente
são ridicularizadas, depois rejeitadas, e enfim, aceitas (JESUS, 2015). O que você fará deste
relato e das minhas breves reflexões, só a você cabe dizer.
A presente reconstrução da trajetória dos usos da história de Xica Manicongo visa a reiterar o
caráter de seleção e reconstrução contínua da memória coletiva, a partir do processo de
identificação dos indivíduos com os seus grupos (JESUS, 2014a).
Havia na capital do país, São Salvador da Bahia de Todos os Santos, também conhecida,
posteriormente, como Cidade da Bahia ou simplesmente Salvador, então colônia de Portugal,
nos idos de 1591, uma africana do Congo escravizada e vendida a um sapateiro, a qual
chamamos de Xica Manicongo.
O registro da existência de Xica Manicongo se deve à extensa pesquisa de Luiz Mott sobre a
Mais uma Francisca entre tantas que lutam diuturnamente para sobreviver, em meio ao ódio e
o preconceito que nos cerca, ontem e hoje.
Coberta com um pano que prendia com o nó para frente, à moda dos quimbanda3 de sua Terra
Natal, e apesar de sua condição desumanizada, imposta pelos homens brancos, os candangos,
ela andava sobranceira por toda Cidade Baixa, às vezes subindo para a Cidade Alta e
voltando, a serviço do seu senhor, ou só passeando, inclusive para encontrar os seus homens.
Diz-se que Xica era conhecida por ser muito namoradeira. Mesmo no inferno da escravidão
havia frestas, sempre escavadas pela gente negra.
XICA NO TEMPO
“Divi-divi-divi-dividir salvador
Diz em que cidade você que se encaixa
Cidade alta ou cidade baixa
Diz
Em que cidade que você”?4
A Primeira Visitação
Esse sopro de liberdade encontrado por Xica, entre os becos sujos e casas imundas cheirando
a opressão, muito importunava um tal de Matias Moreira, cristão-velho5 que tinha saído de
Lisboa, o qual mais de uma vez a interpelou, no meio da rua, para que não usasse mais
daquele estilo e passasse a usar “vestido de homem” – interessante pensar no quanto de
3
O termo é bantu, e significa, basicamente, “invertido”, tendo adquirido também o sentido de
“curador” e, posteriormente, para os umbandistas do século XX, referindo-se a um ramo de sua
religião.
4
Trecho da música “Duas Cidades”, do álbum homônimo lançado pelo 2016 grupo BaianaSystem.
5
Ou “cristão puro”, era um termo com fins ideológicos, para demonstrar prestígio, designando o
cristão que não foi judeu nem tinha antepassados judeus.
© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 252 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004
DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.41817
Ela se recusou! Xica não obedeceu. Continuo a ser por fora quem era por dentro, sem se
vestir daquilo que não era.
Deu-se, porém, a primeira visita da Inquisição, denominada visitação. O dito cujo estava tão
incomodado que a denunciou à Igreja, e ela foi acusado do crime de sodomia, que não se
restringia ao que hoje entendemos por homossexualidade ou transexualidade. Qualquer
prática tida como “nefanda” era classificada na categoria sodomítica, como sexo oral ou anal
entre homens e mulheres, mesmo os casados (TREVISAN, 2007).
O código penal vigente à época era as Ordenações Manuelinas, que equiparavam a sodomia
ao crime de lesa-majestade. A pessoa considerada culpada deveria ser queimada viva, em um
auto de fé em praça pública, ter seus bens confiscados pela Igreja Católica e a infâmia lançada
sobre os seus descendentes até a terceira geração.
Tente imaginar o terrível impacto que uma possível condenação, desse nível, causava em
qualquer pessoa.
Xica, por séculos, quando lembrada em nota de alguma pesquisa sobre as denunciações da
primeira visitação do Santo Ofício à Bahia, foi chamada de Francisco, seu nome de batismo, e
por tempo equivalente foi apontada como homem, até que sua história foi resgatada, nestes
novos tempos de movimentos sociais, após estudos sobre a Inquisição no Brasil que
consideraram a interseção com gênero e sexualidade algo necessário, que lhe apontaram
como a primeira travesti alvo dos processos, e seu nome social atribuído postumamente por
Majorie Marchi, militante travesti negra que presidia a ASTRA-Rio (Associação de Travestis
A ASTRA-Rio chegou a criar o Troféu Xica Manicongo7 (Figura 1), em 2010, voltado aos
direitos humanos, cultura e promoção da cidadania de travestis e transexuais.
A arca da História prosseguiu, e até fins do século XX, Xica Manicongo ainda era,
erroneamente (porém explicável, tendo em vista as limitadas informações então disponíveis e
a invisibilização e silencimento impostos à população trans), considerada homossexual, o que
apagava a sua existência como travesti.
Então, as pessoas trans começaram a ler sobre aquela negra virada do século XVI, com ela se
6
http://www.nlucon.com/2016/04/morre-aos-42-anos-majorie-marchi.html
7
http://www.jb.com.br/cultura/noticias/2010/03/05/trofeu-xica-manicongo-sera-entregue-na-casa-de-cultura-
laura-alvim
8
Fonte: http://www.ggb.org.br/trofeu%20xica%20manicongo%20no%20rio.html
© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 254 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004
DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.41817
Qual era o seu nome antes de ter sido chamada de “Francisco” pelos colonizadores
escravocratas? Perdeu-se nos cadernos contábeis que abafaram a sua liberdade.
Havia travestis não só ali na Ladeira da Misericórdia, mas também em Fez, na nação
Tupinambá, em São Paulo de Luanda, no Deserto do Mojave, em Goa... em todo lugar e
tempo, ainda não sendo chamadas ou denominando-se de travestis, porém trazendo outros
nomes para esse afeto que nos une até hoje: o de nos reconhecermos onde o cis-tema (ou
cistema9) nos nega. Guerrilha de ser.
XICA RETORNA
SerTransNejas
O Rio de Janeiro me abraça, a paisagem e sua gente apaixonada. Sou desejada, sou amada,
sou invejada. Eu sou uma pessoa livre: a minha caminhada foi escolha radicalmente minha,
da mulher negra que desceu do Planalto Central, filha de mineiras e sergipanos, sou Centro-
Oeste, Nordeste e Sudeste. Ancestralidade. Carioca nascida em Brasília. Eu também sou
Brasil.
SerTransNejas: no portão principal da Feira de São Cristóvão, chamada "a dos nordestinos",
eu as encontro e nos manifestamos contra mais um feminicídio trans (Figura 2), o da cearense
Dandara dos Santos (LUCON, 2017). Nordestina. Outra Sertransneja assassinada pela
transfobia, em 15 de fevereiro de 2017, em Fortaleza10. Lá está Xica Manicongo, elas são
muitas nordestinas.
9 Termo utilizado, principalmente por transfeministas, para se referir ao sistema cisnormativo e transfóbico que
impede o reconhecimento dos direitos fundamentais de pessoas trans. Para aprofundamento, recomendo as
leituras de Viviane Vergueiro (2014, 2015) e Laporta (2018).
10
http://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Dandara_dos_Santos
© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 255 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004
DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.41817
Uma coletiva de artistas; performers; cantoras; dançarinas; escritoras; cordelistas; trans: eis o
Coletivo Xica Manicongo12, auto-denominado “Movimento de arte, cultura, militância e
ativismo. Coletiva LGBT Interseccional de Transdiversidade Cultural Xica Manicongo”!
A sua produção prolífica, mais do que criativa, é, mais precisamente, inovadora, não só por
empoderar pessoas trans ao promover o seu protagonismo como aquelas que falam de si e do
mundo por si mesmas, mas acima de tudo por suas palavras ditas e escritas gerarem novas
narrativas, que entrecruzam sertão e cidade, gênero e tradição.
De sua rica safra já tivemos os cordéis “Xica Manicongo” “Sertransneja”13 (Figura 3),
“Recortes Visíveis”, “As Sertransnejas: As Peixeiradas da Vida” e “Quilombo Manicongo”.
11
Fonte: http://www.oestadoce.com.br/geral/manifestacao-feira-de-sao-cristovao-abraca-movimento-
trans-dandara-presente
12
Página do coletivo no Facebook: http://www.facebook.com/coletivoxicamanicongo
13
Disponível em http://outraliteratura.com.br/wp-content/uploads/2018/05/cordel-
SERTRANSNEJA.pdf
© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 256 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004
DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.41817
Figura 3. Capa do cordel Sertransneja. Xilogravura de autoria de Matheusa Passareli 14 e Tertuliana Lustosa.
Fonte: Coletivo Xica Manicongo (2017).
É um movimento plural, reitero, entretanto, vale lembrar que tem à sua frente, como elas
mesmas já se autodenominaram, a balaieira cearense Wescla Vasconcelos, a atriz potiguar
Biancka Fernandes e a cordelista piauiense, cabeça de cuia, Tertuliana Lustosa!
Há outras pessoas trans que com elas se encontram, como eu (apesar de ser apenas uma
apoiadora e testemunha de suas aventuras, sem contribuir artisticamente com elas), e pessoas
cis também. É muito amor envolvido! É um dos nossos quilombos, que ultrapassou a Cidade
Maravilhosa e encontrou abrigo na Salvador de Xica.
14 Conhecida como Matheusa, ou Theusa, foi uma pessoa não-binária de 21 anos, estudante de Artes Visuais da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 29 de abril de 2018, após ter tido um surto psicótico
durante uma festa de aniversário no bairro do Encantado, tirou as roupas e saiu pelas ruas em direção ao Morro
do 18, onde foi encontrada por traficantes, julgada, executada, esquartejada e teve seus restos mortais
incinerados. Saiba mais em https://www.cartacapital.com.br/diversidade/policia-confirma-assassinato-de-
matheusa-em-favela-no-rio, https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/estudante-matheusa-foi-julgada-antes-
de-ser-morta-por-traficantes-diz-delegada.ghtml, https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/a-gente-nao-
pode-naturalizar-o-sofrimento-diz-irma-de-matheusa-passareli-trans-morta-no-rio.ghtml e
https://oglobo.globo.com/rio/mae-irmao-prestam-homenagem-matheusa-em-ato-ecumenico-na-uerj-22668857.
© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 257 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004
DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.41817
Xica volta à baila, e à sua cidade, como uma pomba, para anunciar boas novas.
Em janeiro de 2017, o Coletivo das Liliths, grupo teatral sediado em Salvador, estreou o
espetáculo “Xica”, em referência à personagem histórica e sua representatividade (Figura 4).
O século XXI testemunha o ressurgimento da Xica, como símbolo, heroína, rainha, nas vozes
e escritos dessa gente trans contemporânea, que a transforma em âncora desse barco que,
pretende-se, prende-nos ao porto tão almejado de algo que se chama “cidadania”. Termo
inseguro e assaz inconsistente, inalcançável há milênios para os grupos historicamente
discriminados, esse “ser cidadã(ão)... Algo que almejamos por ainda sequer sermos
consideradas “gente”. Nós que lutamos para ter reconhecida a nossa mulheridade, estatuto de
15
http://portalsoteropreta.com.br/coletivo-das-liliths-apresenta-xica-historia-de-francisco-manicongo
nossa condição de mulheres, quando mulheres trans. Ou de homens, quando homens trans:
Xica Manicongo é a mensagem que nos chega do passado e ensina: sigam em frente,
transvestigêneres16! Pois o terreno fértil será para as vozes trans – transformadas em palavras.
Em suma, a denúncia virou poema: cordel. Teatro: ancestralidade em cena. Artigo científico.
REFERÊNCIAS
COLETIVO XICA MANICONGO. Sertransneja. Mimeo, 2017.
16
Termo criado pelas ativistas Érika Hilton e Indianare Alves Siqueira, em uma mesa de bar, para se referirem
de forma coletiva a pessoas transexuais, travestis e demais pessoas transgêneras, segundo depoimento da atriz
Renata Carvalho.
© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 259 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004
DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.41817
JESUS, Jaqueline Gomes de. Oliveira Silveira na UnB: Memória Coletiva e Políticas de
Inclusão Racial. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN),
v. 7, n. 15, 2014a. p. 4-24. Disponível em
http://www.abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/article/view/112
LUCON, Neto. Quem era Dandara dos Santos, A Travesti que Mostrou a Cara da
Transfobia no Brasil ao Mundo. NLucon, 2017. Disponível em
http://www.nlucon.com/2017/03/quem-era-dandara-dos-santos-travesti.html
LUSTOSA, Tertuliana. Xica Manicongo foi Rainha. Em: Coletivo Xica Manicongo, Xica
Manicongo (pp. 2-4), 2017.