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Ficha Técnica

Reitor Ruy Garcia Marques

Vice-Reitor Maria Georgina Muniz Washington

Sub-Reitora de Graduação Tania Maria de Castro Carvalho Netto

Sub-Reitor de Pós-graduação e Pesquisa Egberto Gaspar de Moura

Sub-Reitora de Extensão e Cultura Elaine Ferreira Torres

Diretor da Faculdade de Educação Rosana Glat

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Maria Isabel Ramalho Ortigão


Educação/ ProPed

Editor-chefe Edméa Oliveira dos Santos

Editor-científico Rosemary dos Santos


Cristiane Porto

Editor-gerente Felipe da Silva Ponte de Carvalho

Editor-executivo Tania Lucía Maddalena


Mirian Maia do Amaral

Nome da dição Transinsurgências políticas: (re)existências em rede

Organizadores Sara Wagner Pimenta Gonçalves Junior


Gabriela da Silva
IBTE – Instituto Brasileiro Trans de Educação
ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais

Alexandra Okada/Open-UK
Ana Amélia Carvalho/ Universidade de Coimbra
Ana Paula Correia/Universidade de Ohio
Conselho editorial Bento Silva/Universidade do Minho
Eliane Schlemmer/Unisinos
Eugênio Trivinho/Puc-SP
Gilda Helena B. de Campos/Puc-Rj
Katia Morosov Alonso/UFMT
Lucia Santaella/PUC-SP

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 1 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


Lucia Amante/ Universidade Aberta/PT
Luis Paulo Mercado/UFAL
Lynn Alves/UNEB
Maria Elizabeth de Almeida/PUC/SP
Maria Teresa Freitas/UFJF
Marilda Benrres/PUC-PR
Miriam Struchiner/UFRJ
Paulo Dias/UAB-PT
Roberto Sidnei Macedo/UFBA
Sergio Amadeu/UFABC
Stéfanie Gasse/Universidade de Rouen-Normandia

Avaliadores Adriane Matos de Araújo/UERJ


Bryan Axt/PUCPR
Cristiano Sant’Anna de Medeiros/UERJ
Dilton Ribeiro do Couto Junior/UERJ
Erika Barbosa de Araújo/UFRRJ
Humberto Luis De Cesaro, Instituto Federal Catarinense
Gabriela da Silva/UFSC
Gleiton Matheus Bonfante/UFRJ-Göteborg Universitet
Leandro Teofilo de Brito/Colégio Pedro II
Lucia Amante/ Universidade Aberta PT
Luciana Caixeta Barboza/UFTM
Luís Paulo Borges/UERJ
Maria Zanela/UFSC
Mona Ribeiro Nascimento/UFBA
Rafael Marques Gonçalves/UFAC
Sara Wagner Pimenta Gonçalves Junior /UERJ
Társio Roberto Lopes Macedo/UFBA

Ilustração da capa Luiza Lemos

Ilustração do editorial e apresentação Laerte Coutinho

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 2 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO: TRANSREBELIÕES POLÍTICAS: PROBLEMATIZAÇÕES,


TENSÕES E SABERES EM REDE....................................................................................04-12

“EU GOSTO MESMO É DAS BIXAS”: REFLEXÕES SOBRE IDENTIDADE AO SOM DE


LINN DA QUEBRADA......................................................................................................13-37

O SILENCIAMENTO DO SUJEITO TRAVESTI NA LEGISLAÇÃO.............................38-50

DEVIR SELVAGEM: A ARTE DO GRITO (OU DO GRITO NA ARTE) ......................51-71

TRANSGÊNEROS: AINDA INCOMPREENDIDOS?....................................................72-101

DIAGNÓSTICOS BENEVOLENTES NA INFÂNCIA: CRIANÇAS TRANS E A SUPOSTA


NECESSIDADE DE UM TRATAMENTO ...................................................................102-126

PROBLEMATIZANDO GÊNERO E SEXUALIDADE EM INTERLOCUÇÃO COM


EDUCADORAS/RES DE UMA ESCOLA CONFESSIONAL......................................127-150

PASSA DEMAQUILANTE NO TEU PRECONCEITO: TUTORIAIS DE MAQUIAGEM


COMO PERFORMANCE QUEER NO YOUTUBE .....................................................151-176

A CONCESSÃO DE REFÚGIO À PESSOAS LGBT.....................................................177-197

CONVERSA SOBRE EDUCAÇÃO COM RAEWYN CONNELL...............................198-212

O CORPO TRANSVESTIGÊNERE – O CORPO TRAVESTI – NA ARTE .................213-216

PERSONAS TRANS Y EDUCACIÓN EN ARGENTINA, LA EXPERIENCIA EDUCATIVA


DE MOCHA CELIS........................................................................................................217-231

GÊNERO E SEXUALIDADE NO AMBIENTE ESCOLAR: CONCEPÇÕES DAS


DIRETORAS FRENTE A PRECONCEITOS E DISCRIMINAÇÕES COM ESTUDANTES
LGBTT ...........................................................................................................................232-233

ITINERÁRIO TERAPÊUTICO DOS HOMENS TRANSGÊNEROS DA BAIXADA


CUIABANA/MT ...........................................................................................................234-235

A DIVISÃO NO ESPORTE DEVE SER SEPARADA POR SEXO OU


GÊNERO.........................................................................................................................236-249

XICA MANICONGO: A TRANSGENERIDADE TOMA A PALAVRA .....................250-260

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TRANSREBELIÕES POLÍTICAS:
PROBLEMATIZAÇÕES, TENSÕES E SABERES EM REDE

Sara Wagner Pimenta Gonçalves Junior1


Gabriela da Silva2
Felipe da Silva Ponte de Carvalho3

Contar nesta presente edição com múltiplas alianças de redes de apoio, solidariedade e
afeto é uma das maneiras que encontramos também de viver juntos/as/es (re)existindo e
insurgindo coletivamente, sobretudo em tempos marcados pelas letalizações das diferenças e
dilatação das forças reacionárias de viés fascistas e ultraneoconservadoras. Nessa caminhada
de alianças, contamos com as parcerias do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), da
Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e de pesquisadores/as de diversas
aréas do conheicmento.
Esta edição conta com artigos de pontos de vista plurais, os quais encontram-se
distribuídos nas Seções de Número Temático; Fluxo Continuo; Entrevistas/Conversas;
Produções Artísticas e Culturais; Relatos de Experiência; Resumo de Teses e Dissertações;
Pontos de vista, conforme expostos a seguir:
Na Seção Temática “TRANSINSURGÊNCIAS POLÍTICAS: (RE)EXISTÊNCIAS EM
REDE”, as organizadoras tiveram como objetivo ampliar discussões e problematizações

1
1Mestranda em Educação - ProPEd - UERJ, licenciada em Pedagogia (UERJ) e Letras - Inglês (UNESA) e
graduanda em Letras - Português (UNESA). Membro do Grupo de Estudos em Gênero, Sexualidade e(m)
Interseccionalidades na Educação e(m) Saúde - GENI, membro ANTRA e equipe de coordenação IBTE. Bolsista
CNPq.
2
Doutoranda em Educação PPGE/UFSC linha de pesquisa Sujeitos. Processos Educativos e Docência/Ensino e
Formação de Professores. Co-fundadora do NeTrans.
3
Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Educação ProPed/UERJ - Linha Cotidianos, Redes Educativas
e Processos Culturais. Mestre em Educação pelo ProPed/UERJ. Especialista em Educação com aplicação da
Informática pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-2010). Graduação em Pedagogia pelo Centro
Universitário da Cidade do Rio de Janeiro (2007). Membro do Grupo de Estudos em Gênero, Sexualidade e(m)
Interseccionalidades na Educação e(m) Saúde (Geni) e do Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura (GPDOC),
ambos vinculados ao ProPEd/UERJ. Bolsista FAPERJ.

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por/entre vidas T, que corroboram para o esgarçamento das normas hegemônicas de gênero,
sexualidade e raça entre outros marcadores sociais, a partir de processos formativos cotidianos.
Abrindo essa Seção, o artigo “EU GOSTO MESMO É DAS BIXAS”: REFLEXÕES
SOBRE IDENTIDADE AO SOM DE LINN DA QUEBRADA” de Ariel Dorneles Dos Santos
e Tiago Duque apresenta uma análise do funk e do discurso utilizado por Linn da Quebrada,
moradora de uma comunidade da Zona Leste da cidade de São Paulo. Em suas palavras, ela se
identifica como “uma bixa, transviada, uma bixa travesti, periférica, preta que está
experimentando o corpo e está se jogando”. A metodologia utilizada é a etnografia virtual,
através de videoclipes e entrevistas da cantora disponíveis em diferentes canais na plataforma
do YouTube. O referencial teórico é, principalmente, o pós-estruturalista, com ênfase na
perspectiva queer. Considerando a forma como Linn da Quebrada refere-se ao seu próprio
corpo e identidade, percebe-se a priore que ela parece apresentar uma dissidência dentro da
dissidência por não ser cisgênera e também borrar o que se entende por ser travesti, contudo,
essa ideia é problematizada devido ao fato de em alguns momentos borrar a norma, mas, em
outros, reiterá-la. Sua experiência de identificação parece ser como a de um elemento que não
cabe em nenhuma categoria, mas que se apossa das que foram designadas e as subverte,
contestando e apresentando novas possibilidades, novos processos de
inteligibilidade/reconhecimento.
Já no artigo “O SILENCIAMENTO DO SUJEITO TRAVESTI NA LEGISLAÇÃO”,
Jaqueline Angelo dos Santos Denardin, a partir da perspectiva teórica da Análise de Discurso
(PÊCHEUX, 1969, 1975), tem como proposta analisar os efeitos de sentidos produzidos pela
Lei nº 11.340/2006, Lei Maria da Penha, a qual traz em seu texto considerações que permitem
a aplicabilidade desse instrumento social normativo aos sujeitos Trans (transexuais e
transgêneros) e o Projeto de Lei nº 8.032/2014, de Jandira Feghali, que amplia a proteção para
esses sujeitos. O objetivo é refletir acerca do modo como questões relativas aos gêneros e às
sexualidades são colocadas em funcionamento no discurso jurídico e dizem não só a respeito
da mulher cisgênera, como também da mulher trans, embora a travesti seja nessas legislações
apagada/silenciada. A finalidade da autora, com esta proposta, é perceber como a Lei e o
Projeto de Lei compreendem e definem “orientação sexual”, “gênero”, “mulher”, “transexual”

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e “transgênero”, analisando como o discurso jurídico pode, muitas vezes, impor silenciamentos
– neste caso com os travestis - aos sujeitos, mais do que garantir seus direitos.
Em “DEVIR SELVAGEM: A ARTE DO GRITO (OU DO GRITO NA ARTE)”,
Mariah Rafaela Silva destaca, com base em uma performance realizada em 2016, que o grito
opera como máquina de guerra (Deleuze e Guattari, 2012) capaz de agenciar um coletivo que
mobiliza uma matilha, de modo que a experiência transexual seja entendida como potência,
jamais como loucura. O objetivo desse trabalho é refletir sobre algumas dinâmicas de poder
sobre às transexualidades tendo como marcadores de diálogo a raça e dispositivos de opressão
na arte. O grito, como uma forma de resistência, coloca em agenciamento “estruturas” de
subjetivação que compõem cartografias “trans específicas” em espaços hegemônicos. É deste
modo que surge o devir selvagem; aquele que ao devorar os processos assimétricos que lhe
assujeitam, cria mundos possíveis operando fissuras nas hegemonias e construindo redes de
afeto e modos de existir.
Erika Barbosa de Araújo e Glaucia Lima de Magalhães Theophilo relatam uma pesquisa
sobre transgeneridade e sua compreensão, no artigo “TRANSGÊNEROS: AINDA
INCOMPREENDIDOS?”. A expressão transgênero reporta-se num termo que acolhe a união
política entre os indivíduos com distinções de gênero incompatíveis às condutas sociais
caracteristicamente relacionadas a homens e mulheres “comuns” e que, como efeito disto,
padecem de intolerância. No Brasil, práticas de intervenção têm levantado diversos
questionamentos psicológicos, legais e sociais. No meio desta discussão, encontram-se os
profissionais de psicologia que, como pertencentes a área de saúde, devem estar preparados
para dar suporte a esta parcela da população que, na maioria das vezes, está envolvida em
sofrimento psíquico. Assim, buscou-se investigar a forma como futuros psicólogos percebem
o fenômeno da transgeneridade, já que esta percepção pode influenciar suas práticas. A hipótese
levantada foi de que as atitudes de graduandos de psicologia face à identidade transgênero são
baseadas na incompreensão do fenômeno. O objeto de estudo foi ancorado no constructo de
atitude da psicologia social. Os sujeitos foram 100 graduandos em psicologia do 1º ao 10º
período da Universidade Estácio de Sá (campus Nova Iguaçu/RJ). Utilizamo-nos de um
questionário com escala likert de 5 pontos, para conhecer o grau de concordância quanto às
questões e produzir descrições quantitativas. Em seguida, a análise dos resultados apoiou-se no

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o ranking médio (RM) de anuência dos itens dentro de cada categoria de atitudes relacionando-
se ao modelo ecológico do desenvolvimento humano. O ranking médio total do questionário
foi de 3,97, o que demonstra uma aceitação da transgeneridade.
Finalizando a Seção Temática, o artigo “DIAGNÓSTICOS BENEVOLENTES NA
INFÂNCIA: CRIANÇAS TRANS E A SUPOSTA NECESSIDADE DE UM TRATAMENTO
PRECOCE” de Sofia Ricardo Favero; e Paula Sandrine Machado analisa a repercussão que o
diagnóstico de Incongruência de Gênero tem na infância, situando os manuais de transtornos
mentais como eixos centrais da discussão. Para tanto, reconhece-se o uso estratégico da
patologização das identidades trans e travestis na adolescência e vida adulta, mas ressalta os
desafios quando essa mesma patologização destina-se a crianças. Diferente de quando ocorre
com pessoas adultas, compreende-se que o diagnóstico de gênero na infância se justifica a partir
de uma concepção de cuidado e benevolência. Em conclusão, propõe-se abandonar o
pensamento em saúde que se baseia na preocupação e tutela para pensar em um compromisso
ético e político com a diferença.
A Seção Artigos Fluxo Continuo começa com o artigo “PROBLEMATIZANDO
GÊNERO E SEXUALIDADE EM INTERLOCUÇÃO COM EDUCADORAS/RES DE UMA
ESCOLA CONFESSIONAL-FILANTRÓPICA” de Fernando Altair Pocahy e Priscila Gomes
Dornelles. O artigo analisa como determinadas redes discursivas se (re)produzem nos processos
educativos diante dos dispositivos da sexualidade e das normas regulatórias de gênero, tomando
como foco os discursos da heteronormatividade e sua potência na produção de subjetividades
em cotidianos escolares. Para isso, xs autores dialogam com os Estudos Feministas e queer de
modo a privilegiar as produções no campo da Educação em interface com a escola. Como opção
metodológica, esse estudo analisou primariamente entrevistas realizadas em uma instituição
confessional e filantrópica de ensino fundamental e médio, localizada em uma cidade de grande
porte no estado do Ceará. Para tratamento deste material, foi utilizado a análise de discurso
inspirados/as em perspectiva foucaultiana. Esta abordagem teórico-analítica permitiu apontar
que os/as educadores/ras assumem posições de sujeito localizadas em planos
hetero/normativos, bem como disposições menos rígidas em relação a estes discursos. O que
fez ponderar sobre um arranjo difuso de conjuntos enunciativos materializados em pedagogias
de gênero e da sexualidade nestes cotidianos escolares, ao mesmo tempo em que percebemos

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condutas pedagógicas que funcionavam de modo crítico em relação aos estabelecidos
normativos. Estes resultados nos informam algo de uma agonística cotidiana na educação e,
neste sentido, revelam movimentos que (re)posicionam professoras e professores diante das
tramas da heteronormatividade - seja através das formas de sujeição e das ortopedias
pedagógicas, seja no plano da resistência e (re)invenção de (micro)políticas do cotidiano
escolar.
“PASSA DEMAQUILANTE NO TEU PRECONCEITO: TUTORIAIS DE
MAQUIAGEM COMO PERFORMANCE QUEER NO YOUTUBE” de Elisângela Bertolotti
e Rosângela Fachel de Medeiros é o segundo artigo dessa Seção. Para as autoras, o Youtube é,
atualmente, um espaço privilegiado de trocas e de interações no ambiente virtual, no qual
reconhecemos uma crescente visibilidade e sucesso de performancesque apresentam estéticas
e/ou sensibilidades Queer, as quais, de maneira geral, transcendem o limite de um nicho de
público LGBTTTQIA e, cada vez mais, são assistidas por um público heterogêneo. Nesse
artigo, Bertolotti e Medeiros propõem uma leitura do “#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo |
Esfumado preto com glitter”, do famoso maquiador youtuber/influencer Antonio Campagna,
enquanto performance Queer que subverter o discurso heteronormativo, que associa a
maquiagem ao feminino e à mulher, e possibilita uma fruição lúdica da indeterminação que o
Queer promove e celebra.
Allan Vieira Santos, no artigo “A CONCESSÃO DE REFÚGIO À PESSOAS LGBT”,
argumenta que além do banimento social, vivenciado em várias sociedades ao longo do globo,
cidadãos LGBT enfrentam problemas que incluem a legislação e a prisão em vários países,
além de serem objetos de contínuos ataques. O infortúnio é no sentido de que, após saírem de
seus países, algumas perseguições ainda podem persistir. Isto se dá na medida em que
solicitantes de refúgio com condições sexuais e expressões de gênero dissidentes apresentam
fragilidades distintas. Apesar de subsistirem avanços nas políticas que implementaram o
refúgio, inclusive com a adoção da Declaração sobre Direitos Humanos, Orientação Sexual e
Identidade de Gênero, a promoção de direitos de igualdade para com a população LGBTainda
caminha a passos módicos. Esse estudo busca analisar como a percepção de vivências pessoais
de perseguição com vistas a demonstrar pertencer a um grupo social específico pode reforçar
estereótipos de sexualidade e gênero que acabam por marginalizar e prejudicar a proteção a

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pessoas LGBT, reforçando aspectos de uma perseguição que pode estar se deslocando do país
de origem para o país de acolhimento.
Na Seção Entrevistas/Conversas, contamos com a “CONVERSA SOBRE
EDUCAÇÃO COM RAEWYN CONNELL” realizada por Carmen Lúcia Guimarães de
Mattos, Márcio Rodrigo Vale Caetano e Paula Almeida de Castro. A conversar com Raewyn
Connell tever início pela sua trajetória acadêmica a partir do livro Making the Difference:
Schools, Families and Social Division (1982), cuja publicação em língua portuguesa ampliou
o interesse de pesquisadores em educação pelos estudos de gênero. Dada a amplitude da
produção da autora nesta linha de estudos a conversa continua com indagações sobre a
importância para escola em lidar com esse tema, assim como sua interconexão com os estudos
sobre masculinidades e suas teorizações internacionais e mais particularmente no Hemisfério
Sul, visto que Connell, à época estava divulgando o seu livro Southern Theory: The Global
Dynamics of Knowledge in Social Science. Discutiu-se as possibilidades teóricas do Sul pelo
Sul, o papel da escola na introdução dos temas sobre as ordenações de gênero e finalmente
apresenta-se reflexões dos autores sobre seus próprios questionamentos acerca da obra da
autora.
“O CORPO TRANSVESTIGÊNERE – O CORPO TRAVESTI – NA ARTE” de Renata
Carvalho compõe a Seção de Produções Artísticas e Culturais. E na Seção Relato de
Experiência, encontramos o artigo “PERSONAS TRANS Y EDUCACIÓN EN ARGENTINA,
LA EXPERIENCIA EDUCATIVA DE MOCHA CELIS”.
Já na Seção Resumos de Teses e Dissertações, é possível localizar as pesquisas de
mestrado de Gabriela da Silva sobre “GÊNERO E SEXUALIDADE NO AMBIENTE
ESCOLAR: CONCEPÇÕES DAS DIRETORAS FRENTE A PRECONCEITOS E
DISCRIMINAÇÕES COM ESTUDANTES LGBTT”; e de Rayssa Karla Dourado Porto sobre
“ITINERÁRIO TERAPÊUTICO DOS HOMENS TRANSGÊNEROS DA BAIXADA
CUIABANA/MT”.
Por fim, na Seção Pontos de Vista, Jaqueline Gomes de Jesus destaca “XICA
MANICONGO: A TRANSGENERIDADE TOMA A PALAVRA”; e Maria Eduarda Aguiar
da Silva discute “A DIVISÃO NO ESPORTE DEVE SER SEPARADA POR SEXO OU
GÊNERO”.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 9 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Erika Barbosa de; e THEOPHILO, Glaucia Lima de Magalhães.


TRANSGÊNEROS: AINDA INCOMPREENDIDOS? Revista Docência e
Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019, p. 73-101. DOI:
https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39490

BERTOLOTTI, Elisângela; e MEDEIROS, Rosângela Fachel de. PASSA DEMAQUILANTE


NO TEU PRECONCEITO: TUTORIAIS DE MAQUIAGEM COMO
PERFORMANCE QUEER NO YOUTUBE. Revista Docência e Cibercultura, v. 3,
n. 1, janeiro/abril de 2019, p. 151-176. DOI:
https://doi.org/10.12957/redoc.2019.40792

CARVALHO, Renata. O CORPO TRANSVESTIGÊNERE – O CORPO TRAVESTI – NA


ARTE. Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019, p. 213-
216. DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.41816

CUARTAS, Francisco Quiñones; BELEN, Sil; e CELIS, Escuela Mocha. PERSONAS TRANS
Y EDUCACIÓN EN ARGENTINA, LA EXPERIENCIA EDUCATIVA DE
MOCHA CELIS. Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019,
p. 217-231. DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449

DENARDIN, Jaqueline Angelo dos Santos. O SILENCIAMENTO DO SUJEITO TRAVESTI


NA LEGISLAÇÃO. Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de
2019, p. 38-50. DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39518

FAVERO, Sofia Ricardo; e MACHADO, Paula Sandrine. DIAGNÓSTICOS


BENEVOLENTES NA INFÂNCIA: CRIANÇAS TRANS E A SUPOSTA
NECESSIDADE DE UM TRATAMENTO. Revista Docência e Cibercultura, v. 3,
n. 1, janeiro/abril de 2019, p. 102-126. DOI:
https://doi.org/10.12957/redoc.2019.40481

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 10 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


JESUS, Jaqueline Gomes de. XICA MANICONGO: A TRANSGENERIDADE TOMA A
PALAVRA. Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019, p.
250-260. DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.41817

MATTOS, Carmen Lúcia Guimarães de; CAETANO Márcio Rodrigo Vale; e CASTRO, Paula
Almeida de. CONVERSA SOBRE EDUCAÇÃO COM RAEWYN CONNELL.
Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019, p. 198-212. DOI:
https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42448

POCAHY, Fernando Altair; DORNELLES, Priscila Gomes. PROBLEMATIZANDO


GÊNERO E SEXUALIDADE EM INTERLOCUÇÃO COM EDUCADORAS/RES
DE UMA ESCOLA CONFESSIONAL. Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1,
janeiro/abril de 2019, p. 127-150. DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.41765

PORTO, Rayssa Karla Dourado. ITINERÁRIO TERAPÊUTICO DOS HOMENS


TRANSGÊNEROS DA BAIXADA CUIABANA/MT. Revista Docência e
Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019, p. 234-235. DOI:
https://doi.org/10.12957/redoc.2019.40653

SANTOS, Allan Vieira. A CONCESSÃO DE REFÚGIO À PESSOAS LGBT. Revista


Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019, p. 177-197. DOI:
https://doi.org/10.12957/redoc.2019.40676

SANTOS, Ariel Dorneles Dos; e DUQUE, Tiago. “EU GOSTO MESMO É DAS BIXAS”:
REFLEXÕES SOBRE IDENTIDADE AO SOM DE LINN DA QUEBRADA.
Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019, p. 13-37. DOI:
https://doi.org/10.12957/redoc.2019.40522

SILVA, Gabriela da. GÊNERO E SEXUALIDADE NO AMBIENTE ESCOLAR:


CONCEPÇÕES DAS DIRETORAS FRENTE A PRECONCEITOS E
DISCRIMINAÇÕES COM ESTUDANTES LGBTT. Revista Docência e

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 11 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019, p. 232-233. DOI:
https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39516

SILVA, Maria Eduarda Aguiar da. A DIVISÃO NO ESPORTE DEVE SER SEPARADA POR
SEXO OU GÊNERO. Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de
2019, p. 236-249. DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39707

SILVA, Mariah Rafaela. DEVIR SELVAGEM: A ARTE DO GRITO (OU DO GRITO NA


ARTE). Revista Docência e Cibercultura, v. 3, n. 1, janeiro/abril de 2019, p. 51-72.
DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39916

Boa Leitura!

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 12 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.40522

“EU GOSTO MESMO É DAS BIXAS”


REFLEXÕES SOBRE IDENTIDADE AO SOM DE LINN DA QUEBRADA

"I LIKE SAME IS FROM THE BIXAS"


REFLECTIONS ON IDENTITY TO LINN DA QUEBRADA'S SOUND

"YO GUSTO MISMO ES DE LAS BIXAS"


REFLEXIONES SOBRE IDENTIDAD AL SONIDO DE LINN DA QUEBRADA

Ariel Dorneles Dos Santos1


Tiago Duque23

RESUMO
O presente trabalho apresenta uma análise do funk e do discurso utilizado por Linn da Quebrada, moradora de
uma comunidade da Zona Leste da cidade de São Paulo. Em suas palavras, ela se identifica como “uma bixa,
transviada, uma bixa travesti, periférica, preta que está experimentando o corpo e está se jogando”. A metodologia
utilizada é a etnografia virtual, através de videoclipes e entrevistas da cantora disponíveis em diferentes canais na
plataforma do YouTube. O referencial teórico é, principalmente, o pós-estruturalista, com ênfase na perspectiva
queer. Considerando a forma como Linn da Quebrada refere-se ao seu próprio corpo e identidade, percebe-se a
priore que ela parece apresentar uma dissidência dentro da dissidência por não ser cisgênera e também borrar o
que se entende por ser travesti, contudo, essa ideia é problematizada devido ao fato de em alguns momentos borrar
a norma, mas, em outros, reiterá-la. Sua experiência de identificação parece ser como a de um elemento que não
cabe em nenhuma categoria, mas que se apossa das que foram designadas e as subverte, contestando e
apresentando novas possibilidades, novos processos de inteligibilidade/reconhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: Transviada. Dissidência. Identidade. Linn da Quebrada

ABSTRACT
This work presents an analysis of the funk and discourse used by Linn da Quebrada, a resident of a community in
the East Zone of the city of São Paulo. In her words, she identifies herself as "a bixa, transviada, a bixa transvestite,
periférica, black, who is experiencing the body and is playing." The methodology used is virtual ethnography,
through video clips and interviews of the singer available in different channels on the YouTube platform. The
theoretical reference is, mainly, the poststructuralist, with emphasis on the queer perspective. Considering the way
Linn da Quebrada refers to her own body and identity, it is perceived that she seems to present a dissidence within
the dissidence because she is not a cisgênera and also to erase what is meant by being a transvestite, however, this
idea is problematized due to the fact that at times it erases the norm, but in others it reiterates it. His experience of
identification seems to be like that of an element that does not fit into any category, but that takes hold of those
that have been assigned and subverts them, challenging and presenting new possibilities, new processes of

Submetido em: 28/02/2019 Aceito em: 10/04/2019 Publicado em: 01/06/2019

1
Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Orcid:
https://orcid.org/0000-0003-4534-3501
2
Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP e professor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1831-0915

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 13 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.40522

intelligibility/recognition.

KEYWORDS: Transvestite. Dissent. Identity. Linn da Quebrada.

RESUMEN
El presente trabajo presenta un análisis del funk y del discurso utilizado por Linn da Quebrada, residente de una
comunidad de la Zona Este de la ciudad de São Paulo. En sus palabras, ella se identifica como "una ‘bixa’,
transviada, una ‘bixa’ travesti, periférica, negra que está experimentando el cuerpo y se está jugando". La
metodología utilizada es la etnografía virtual, a través de videoclips y entrevistas de la cantante disponibles en
diferentes canales en la plataforma de YouTube. El referencial teórico es, principalmente, el post-estructuralista,
con énfasis en la perspectiva queer. En cuanto a la forma en que Linn da Quebrada se refiere a su propio cuerpo e
identidad, se percibe la priore que ella parece presentar una disidencia dentro de la disidencia por no ser cisgénera
y también borrar lo que se entiende por ser travesti, sin embargo, esa idea es problematizada debido al hecho de
que en algunos momentos borrar la norma, pero, en otros, reiterarla. Su experiencia de identificación parece ser
como la de un elemento que no cabe en ninguna categoría, sino que se apuesta de las que fueron designadas y las
subvierte, contestando y presentando nuevas posibilidades, nuevos procesos de inteligibilidad/reconocimiento.

PALABRAS CLAVE: Transviada. Disidencia. Identidad. Linn da Quebrada

Introdução

Nos últimos anos tem crescido a visibilidade de artistas trans4 até então consideradas/os à
margem da sociedade devido a não adesão aos padrões hegemônicos no que diz respeito a
gênero, sexualidade, estética e performance no geral. Contudo, essa visibilidade não tem apenas
dado voz/visibilidade/reconhecimento midiático a essas pessoas, suas representações
identitárias e seus perfis considerados inadequados. Ela também tem levantado
questionamentos a despeito das identidades não heteronormativas5 e não cisgêneras6, que
comumente são alocadas como monstros que devem ser temidos por tensionarem a estabilidade
social.

4
As travestis/transexuais: Mc Xuxu, Liniker, Assucena e Raquel Virgínia da banda As Bahias e a Cozinha
Mineira; e as Drag Queens: Pabllo Vittar, Gloria Groove, Lia Clark. Disponível em:
<https://mdemulher.abril.com.br/cultura/11-artistas-brasileiros-que-estao-quebrando-todas-as-regras-de-
genero/>. Acesso em: 14 jan. 2019.
5
Warner (1991 apud SANTOS e DINIS, 2013) define a heteronormatividade como um processo de legitimidade
e privilégio que se relacionam com a heterossexualidade por pressupor essa como algo "natural".
6
Vergueiro, em entrevista para Ramírez (2014), considera o termo cisgeneridade um ponto analítico para se
contestar a naturalidade com que as pessoas não trans são legitimidadas, permitindo um olhar descolonial do
gênero, inclusive, na substituição desse termo por outros como "mulher biológica", "homem de verdade",
deslocando também a hierarquia e a naturalidade construída. É, portanto, a cisgeneridade não somente uma
classificação de uma certa adequação de um sujeito quanto ao gênero que lhe é classificado a partir da genitália-
sexo, mas uma categoria política de revisar o que se considera como padrão e essencial.

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Em uma tentativa de oposição a isso, Miskolci (2010) aponta que os movimentos sociais
organizados pela população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), por
exemplo, apresentam discursos que tentam igualar essas identidades dissidentes com as ditas
normais. Discursos esses, muitas vezes, pautados por um essencialismo que tenta colocar no
mesmo grau de legitimidade as identidades LGBT das ‘cis-heteronormativas’, caracterizando-
as como inerentes aos sujeitos e não adquiridas, construídas, mutáveis.

Linn da Quebrada7, 28 anos, moradora de uma comunidade da Zona Leste da cidade de São
Paulo, é um exemplo das atuais possibilidades de identidade que tende a fugir desses dois
grupos identitários apresentados no parágrafo anterior (heteronormativos e cisgêneros). Ela tem
ganhado grande destaque, sobretudo no campo da música. Com uma estética fora dos padrões
– sendo uma travesti negra sem silicone, utilizando ambas as roupas consideradas femininas e
masculinas, comumente com cabelos coloridos e/ou com penteados afro (como trança nagô,
dread), mas às vezes careca. Linn destoa do padrão tanto de uma suposta normatividade ‘cis’
quanto de um perfil esperado de travesti. Ela defende a necessidade de se mostrar como deseja,
independente dos padrões: “A estética é uma experiência política que tem total influência sobre
os nossos afetos. A maneira como você se veste esteticamente gera efeito não somente em
outras pessoas como gera efeitos em você também”8.

Em suas palavras, ela se identifica como “uma bixa transviada, uma bixa travesti, periférica,
preta que está experimentando o corpo e está se jogando”9. Ou seja, Linn se apropria, tal como
nos remete a teoria queer10, de nomes considerados xingamentos na construção da imagem de

7
Linn sempre se apresenta com a backing vocal Jup do Bairro que também se coloca como “bixa travesti”. Jup é
uma figura importante nas performances, pois sendo negra e gorda apresenta e fala de seu corpo em forma de
protesto de um corpo livre, bem como auxilia Linn nas criações das músicas. No entanto, aqui, por questões de
recorte do “objeto” de estudo, focaremos apenas em Linn.
8
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jBEKL9lnYGA>. Acesso em: 14 mar. 2017.
9
Idem.
10
Teoria queer é um termo usado por Teresa de Laurentis em uma conferência em 1990 sobre a sexualidade de
gays e lésbicas. Antes, a categoria acusatória/estigmatizada ‘queer’, sem tradução para o português, foi apropriada
pelo movimento social anti-assimilacionista americano diante da pauta mais conservadora do Movimento Gay.
Hoje em dia, a teoria parte da pluralidade da diversidade de identidades encontradas na sociedade, é, por isso, uma
teoria que questiona os conceitos de identidades essencializadas, voltando-se não somente para as identidades
mais marginalizadas, como também aos processos de construção e desconstrução identitárias, revendo conceitos
de poder da divisão binária dos sexos/gêneros (LOURO, 2001). Contudo, o termo queer se refere, em inglês, a

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sua identidade, mas vai além ao quebrar expectativas de desejos, discursos e comportamentos
a ela estereotipados.

A diferenciação de Linn de outras travestis tem relação direta com as mudanças históricas
que a experiência de ‘montagem’ do corpo travesti tem sofrido. ‘Montagem’ refere-se ao ato
de vestir-se com roupas consideradas de mulher. Benedetti (2000), ao estudar travestis, a
classificou como um processo de manipulação e construção de uma apresentação que seja
suficientemente convincente, sob o ponto de vista delas, de sua qualidade feminina, do que é
entendido por elas como feminino. No caso desse grupo, o convencimento é garantido também
através de outras ações que podem compor a ‘montagem’ em um sentido mais amplo, como os
hormônios femininos adotados por elas desde o final da década de 1960 (GREEN, 2000), e a
técnica de aplicação do silicone líquido que, apesar dos avanços no campo das cirurgias
estéticas, continua sendo comum. Segundo Silva (1993), todo o esforço delas é em busca de
um “passar por”11 mulher não trans: “Seus êxitos e motivo de orgulho estão contidos em tal
possibilidade” (Idem, p. 129). Vale ressaltar que esse é um modelo encontrado pelo autor da
experiência travesti que se apresentava e se reiterava em suas pesquisas sem ser,
necessariamente, uma tentativa de essencializar essa identidade. Assim, hoje, na ‘montagem’
realizada pela maior parte das travestis, ainda que tenha sido cada vez mais comum uma nova
geração de travestis lidar de forma menos definitiva com as transformações corporais
(DUQUE, 2011), há uma busca de naturalidade que comumente Linn não tem.

Essa pesquisa, em uma perspectiva pós-estruturalista (pós-colonial, feminista e queer),


analisa os videoclipes do YouTube, além de diversas entrevistas também disponíveis na mesma
plataforma. Conforme Miskolci (2011), o uso de mídias sociais tende a atingir uma grande
massa, contudo, sem ser necessariamente algo universalizante e, por isso, tem crescido
notoriamente em diversos ramos de pesquisa. O YouTube é aqui usado como ambiente de

uma população mais específica, população essa que não pode ser restrita apenas aos LGBTs, mas a todas as
pessoas que de alguma forma tornam-se dissidentes por conta de suas práticas, experiências.
11
Para uma leitura mais aprofundada sobre o ‘passar por’, inclusive sobre as justas motivações em torno desse
processo de passabilidade por experiências de menos vulneráveis diante da violência e do preconceito, ler Duque
(2017).

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acesso e interação com o conteúdo produzido por Linn, sendo uma das mídias sociais de grande
impacto percebido pelo grande número de acesso à plataforma (leia-se aos vídeos) e pela
quantidade de material disponível. Essa plataforma é aqui utilizada como processo de acesso
ao conteúdo e, em certa medida, um ponto de problematização, mas não é o elemento principal
da análise por conta da notória fama que a cantora parece ter na internet. Contudo, torna-se
importante mencionar que essa plataforma possui complexidades, projetos de agenciamentos,
mecanismo políticos e de disputa de poder, mas que não cabe a esse estudo se aprofundar.

A busca pelo conteúdo relacionado a Linn se deu ao digitar o nome dela na plataforma e
acessar tanto os conteúdos que aparecem como ‘Relevância’ pelo YouTube, ou seja, os que
possuem mais curtidas, comentários e visualizações, como pela classificação de ‘Data de
envio’. Assim, foi possível explorar, em ordem cronológica, se houve ou não alteração na
proposta que a cantora tem apresentado, bem como quais espaços ela passou a acessar. Uma
maior evidência da sua imagem possibilitou que ela fosse entrevistada em canais que não estão
diretamente relacionados com temática sobre identidade, gênero, sexualidade, funk etc.
Portanto, a incursão na plataforma ocorreu de maneira a acessar a cantora nos mais variados
espaços possíveis, tendo em vista que no próprio canal dela comportam especificamente os
videoclipes e shows.

Essa análise se vincula ao processo de etnografia virtual. Segundo Adriana Amaral (2010),
ele se realiza via uma reflexão imersa no campo digital (no caso, a internet) percebendo a
relação e relevância desse campo para com a pesquisa em si. Tendo em vista que o acesso ao
conteúdo da cantora parte de um ambiente onde esse está disponível no YouTube e não está de
modo offline, ou seja, independente de internet, a busca foi sempre online, verificando assim
as possibilidades de mudanças do conceito de ‘Relevância’ dos vídeos do YouTube que são
constantemente atualizados.

Linn da Quebrada e as normas identitárias de gênero

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Apesar da teoria queer não propor necessariamente uma nova identidade, mas sim a
legitimação das experiências já existentes, muitos sujeitos têm se apropriado dela – apesar de
muitas dessas experiências dissidentes anteverem a concepção teórica –, para proclamar-se
como uma possibilidade em meio a um sistema de produção e manutenção de uma lógica
hegemônica ‘cis-heteronormativa’ (vale ressaltar, contudo, que alguns sujeitos também buscam
fazer parte dessa hegemonia). Um exemplo é a Linn da Quebrada que, através do funk12,
demonstra a desestabilização desse sistema nos revelando sujeitos até então não reconhecidos
socialmente, não legitimados, ressignificando, evidenciando subjetividades e estabelecendo
conexões distintas de suas diferenças sem cair em uma visão de apenas submissão e
desigualdade. Ela retrata, em suas músicas, esses sujeitos como sendo as ‘bichas’ afeminadas,
as ‘bichas’ pretas, as ‘bichas’ travestis, as pessoas trans e todos os corpos que não cabem em
um padrão normativo.

Assim, Linn se torna potente para pensar esses sujeitos existentes, mas historicamente
apagados dos locais de maior reconhecimento, sujeitos tidos como não inteligíveis, mas que
precisam ser vistos como tendo agência, isto é, a capacidade de agir a partir da mediação
cultural e social, construídas a despeito de uma negociação (PISCITELLI, 2008). Agência essa
que no caso dela é confeccionada junto ao funk, que fala a partir da margem e que tende a
contribuir significativamente com o processo de reconhecimento.

No clipe “Mulher”13, Linn apresenta a personagem central de sua história: “De noite pelas
calçadas / Andando de esquina em esquina / Não é homem nem mulher / É uma trava feminina”.

12
Facina (2009) retrata que o funk, como cultura de massa, é atualmente assimilado por diversas camadas da
sociedade, recebendo uma atenção especial da população jovem. Apesar disso, o funk ainda é um estilo
estigmatizado no âmbito social por conta da origem (nas favelas) e das temáticas abordadas, bem como de quem
canta como Mc e/ou (re)produz como Dj. É ainda no funk, sobretudo o carioca, perceptível a história da origem
associado à diáspora africana, o crescimento da música negra ligada à favela, e segmento musical mais responsável
por construções identitárias étnicas e de classe.
13
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-50hUUG1Ppo&ab_channel=LinndaQuebrada>. Acesso
em: 09 nov. 2018.

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Essa introdução é importante porque Linn primeiramente aponta que não é uma mulher ou
homem, mas sim uma travesti. Conforme Oliveira e Grossi (2014), no decorrer dos últimos
anos, as categorias travesti e transexual passaram por definições e reconstruções que agiam em
decorrer do tempo histórico e, principalmente, dos grupos que tentavam legitima-las ou
deslegitima-las, como os discursos biomédicos, religiosos, políticos etc. Essa aparente
relativização do termo é crucial para se entender que esse sujeito travesti para a cantora não é
estático, mas segue em consonância com as discussões políticas da atualidade. Essa travesti
sendo feminina não destoa necessariamente de um senso comum do que seria uma travesti, mas
como continua Linn “Ela é diva da sarjeta, o seu corpo é uma ocupação / É favela, garagem,
esgoto e pro seu desgosto / Está sempre em desconstrução”, essa travesti é um sujeito se
descontruindo e esse processo aqui parece estar imbricado justamente nas suas experiências na
“pista”14: “Nas ruas pelas surdinas é onde faz o seu salário / Aluga o corpo a pobre, rico,
endividado, milionário”.

A problematização do termo travesti esbarra também no conceito de mulher, pois quando a


cantora salienta a personagem como uma travesti feminina, ela apresenta uma identidade que
condiz com um ser feminina, ou seja, há uma forma de ser feminina ou masculina, e essa
travesti é a feminina. Não somente, no decorrer da música quando se questiona se é sempre
uma mulher, Linn responde “Ela tem cara de mulher / Ela tem corpo de mulher / Ela tem jeito
/ Tem bunda / Tem peito / E o pau de mulher!” e “Ela é amapô 15 de carne osso, silicone
industrial / Navalha na boca / Calcinha de fio dental”. Com isso, evidencia a construção desse
corpo e dessa identidade travesti, como um modo de ser e se fazer ser, reiterando que o corpo
ou seus componentes não definem a identidade, ou seja, o fato dela ter “pau” não inviabiliza a
sua condição de travesti e/ou mulher.

No campo político, Linn nos permite pensar as diversas violências atreladas ao grupo que
não é considerado normal por conta da identidade de gênero e/ou sexualidade. Quando ela canta

14
Termo regularmente usado por travestis e transexuais para falar sobre a prostituição, seja o local onde ocorre o
encontro com os/as clientes, seja o ato de prostituir (“fazer pista”).
15
“Amapô” é o mesmo que “mulher”, geralmente usado para as mulheres cisgêneras.

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“Bicha estranha, louca, preta, da favela / Quando ela tá passando todos riem da cara dela” na
música “Bixa Preta”16, é o corpo marcado pela sexualidade, etnia/raça, geografia, socialmente
marginalizado que denuncia esse não caber em muitos espaços sociais e, por isso, recebe o
deboche. Miskolci (2006) chama a atenção que as normas e convenções sociais tendem a
hegemonizar os corpos e identidades, hegemonia essa que deve ser atendida a partir de um
padrão já determinado pela esfera dominante. Quando um corpo, uma identidade aceita esse
processo é como um conformismo às normas estabelecidas. Se essa condição não for aceita, o
corpo denuncia a diferença e essa diferença é cobrada em forma de preconceito. Entretanto, é
justamente na apropriação e transformação desses conceitos que causam o riso/deboche que
Linn propõe um fortalecimento de si: “A minha pele preta, é meu manto de coragem /
Impulsiona o movimento / Envaidece a viadagem” e se prepara para o que ela chama de
destruição do “macho alfa”. Essa destruição não é apenas da norma de um ser homem, mas das
redes econômicas e afetivas que esses têm feito e mantido durante anos em detrimento das
mulheres e do feminino, provocando uma dependência a eles, bem como procurando manter
uns aos outros no topo de um certo status social. Vale ressaltar aqui que esse “macho alfa”
aparece em várias músicas da Linn, mas ele não deve ser entendido necessariamente como o
algoz nas situações por ela apresentada. Porque, em grande medida, ele é o ser que deseja essa
figura “estranha, louca, preta da favela”, flerta com ela, mas ainda reproduz o “cis-tema”17.
Esse algoz pode também ser entendido como as normas reguladoras que a cantora tem
reiteradamente denunciado e questionado, não necessariamente um indivíduo específico.

Ao dizer que se identifica como uma “transviada”, que tem o desejo voltado
preferencialmente para as “bixas” afeminadas, e na construção da imagem e exposição da
corporalidade fazer uso de artifícios que desconfigure uma proeminência de um gênero
atribuído ao ‘sexo’18, Linn abala as normas sociais naturalizadas, normas de gênero e

16
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VyrQPjG0bbY&ab_channel=LinndaQuebrada>. Acesso
em: 09 nov. 2018.
17
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=k5xckO1WtVc>. Acesso em: 04 mar. 2018.
18
Entendemos aqui o ‘sexo’ como uma representação simbólica da genitália e que a este é atribuído uma conduta
socialmente instituída, conforme Butler (2003).

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comportamento, de desejo pelo ‘sexo oposto’ e prática sexual socialmente inteligíveis como as
que Butler (2003) classifica como Matriz de Inteligibilidade.

Matriz essa organizada culturalmente e naturalizada que retrata uma certa harmonia entre
nascer com uma genitália, reproduzir certos comportamentos correspondente a essa genitália e
se relacionar afetivo e sexualmente com um ‘sexo’/gênero que seja oposto, como uma
heterossexualidade compulsória. Essa noção não corresponde à figura e práticas de Linn. A
desestabilidade dessa matriz provocada por Linn a conduziria para uma suposta dissidência
dentro da dissidência. Entendendo que a categoria travesti é vista como uma certa dissidência
da ‘cis-heteronormatividade’, existira na experiência de Linn uma dissidência por não ser ‘cis’.
Mas, por outro lado, em certa medida, mas não necessariamente, há travestis que ainda
procuram reproduzir normas e convenções sociais como se fossem ‘cis’, geralmente em busca
de uma passabilidade, experiência essa que aloca Linn também como dissidente, pois, como já
discutido, isso não corresponde ao perfil de Linn. Assim, poder-se-ia pensar na existência de
uma possível dissidência dentro da dissidência, isto é, da própria categoria travesti.

Contudo, se considerarmos que muitas travestis buscam a passabilidade como mulheres


‘cis’, isto é, buscam a reprodução da norma via a Matriz de Inteligiblidade em termos de
gênero, há então uma única dissidência, isto é, desde sempre, Linn tensiona a norma, seja
quando não corresponde a ela por ter ‘sexo’ masculino e ser travesti, ou quando não
corresponde à expectativa dada via norma pelas próprias travestis
reprodutoras/performatizadoras de uma inteligibilidade difundida/generalizada de ser travesti
feminina, ‘passável’19.

Conforme dito, as travestis ao longo dos anos procuraram uma assimilação com um corpo
lido socialmente como feminino. Ao fugir disso, e ainda reivindicar essa categoria, Linn amplia

19
A norma não é algo sem força sobre as experiências humanas, sejam de travestis ou não. Isso fica evidente
quando, durante a finalização desse artigo, via mídias sociais, descobriu-se que Linn iniciou usos de hormônios
femininos, tão recorrente entre travestis que buscam responder às expectativas de serem femininas a partir da
norma. Pesquisas futuras poderão analisar o impacto dessa decisão sob a discussão que estamos desenvolvendo
aqui.

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a possiblidade da performance do gênero gerando uma instabilidade das normativas


conhecidas, ainda que as reiterando e subvertendo, em grande medida, como uma negociação
de reconhecimento, legitimidade. Essa negociação se dá nas formas de apresentação que
compõe, apesar de roupas e acessórios que não caracterizam de imediato um gênero,
maquiagens e modos de agir que nos permite identificar um modo de ser feminino diferente do
normativamente esperado. Sendo assim, não se trata de compreender Linn como a dissidência
dentro da dissidência, antes, Linn expande as possibilidades de ser feminina/travesti pela sua
dissidência à norma que produz inteligibilidade às mulheres ‘cis’ e às travestis enquanto um
modo hegemônico de serem femininas.

Outra forma de ver Linn é como ela se proclama, sendo alguém que faz “terrorismo de
gênero” 20
. Assim, Linn classifica sua existência como a apresentação e vivência de uma
estética violenta diante do “cis-tema”, “cis-tema” esse que tenta impor uma forma de vida
específica para os sujeitos. A proposta da cantora é a de tornar sua vivência de gênero mais
radical, experimentando, construindo e desconstruindo possibilidades para além das
hegemônicas. Esse “terrorismo” é aqui visto como uma das principais características da
cantora, que reinventa formas de ser apropriando-se das que lhe são designadas e proibidas.

Linn, ao falar de sua estética, nos mostra algo que passa pelo animalesco: "Eu busco causar
um pouco de estranhamento para mim mesma e perceber como a minha estética transforma
também a minha experiência e as minhas relações"21. Ela fala sobre a experimentação que
passou a fazer ainda na época da escola de teatro. Sua experimentação passava principalmente
pelas peças consideradas femininas e por objetos diversos. Para ela, esse processo ainda é
importante, pois consegue notar que a forma como se veste altera completamente a sua relação
com as outras pessoas, os olhares na rua e a relação com a família. Isso segue em consonância
com esse “terrorismo de gênero” que Linn evidencia como sendo uma violência ou uma espécie
de terrorismo reverso, tendo em vista que para ela a violência já atinge os corpos de pessoas

20
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=k5xckO1WtVc>. Acesso em: 04 mar. 2018.
21
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Kf_idnHJLbs&feature=youtu.be>. Acesso em:
18 nov. 2018.

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trans e é naturalizada, a proposta seria de devolver isso desestabilizando as normativas. Para


ela, isso “tem a ver com uma estética onde a gente se posiciona de forma violenta a esse 'cis-
tema' que nos obriga a agirmos e sermos de uma forma somente"22. Assim, ela acaba
ultrapassando o binarismo de gênero não só na estética visual com figurinos inteiros feitos de
lata e plástico que impossibilitam uma definição, mas sonora ao usar o feminino
recorrentemente nos termos que seriam pronunciados no masculino, como “traveca”,
“transviada”, bem como generalizar sempre no feminino.

No campo artístico, Linn se utiliza do funk, ritmo musical carregado de estigmas, para
passar uma mensagem de desconstrução e subversão da marginalização por meio da sua
agência. Entretanto, essa desconstrução e subversão não demanda necessariamente a
construção, seja por imposição ou negociação, de uma nova imagem, identidade, mas na
reclamação desse sujeito estranho, não normativo, que se mostra vivo e subjetivo tal como
outras possibilidades. Inclusive, é nesse espaço do funk que Linn possibilita fazer uma reflexão
epistêmica desse estilo musical enquanto um espaço que, apesar dos estigmas em relação ao
feminino e a marginalização, proporciona a ela contestar normas sociais produzidas e/ou
reproduzidas nesse espaço e se tornar reconhecida em diversos outros espaços onde o funk
talvez não chegasse, como fazer uma pequena turnê na Europa.

(Des)construção, (re)significação

Uma identidade dissidente, abjeta, abarca diversas identidades e corpos que não são
considerados importantes, que tem até mesmo a condição de humanidade questionada
(BUTLER, 2001). Essas identidades são recusadas pelo outro devido a oposição à norma, mas
não ocorre necessariamente a sua extinção, pois ainda se torna necessário esse referencial para
manter o que se construiu como normal. A abjeção tende a negativar a experiência dissidente

22
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=k5xckO1WtVc>. Acesso em: 04 mar. de 2018>.
Acesso em: 15 nov. 2018.

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enquanto sujeito, limitando ou recusando a sua autonomia. Para Linn, a sociedade precisa de
alguém que fuja da norma para se entender o que é desprezível, rejeitado. É projetada uma
exceção para se entender a regra23.

Linn é caracterizada por um corpo dissidente, corpo esse que se rebela contra a norma e que
procura reivindicar o direito de existir, caracterizando assim a instabilidade do gênero incitada
por Butler (2003) na alegação de que corpos ditos masculinos podem ser femininos e corpos
ditos femininos podem ser masculinos. Isso porque a autora aponta para a construção cultural
do gênero e da sua capacidade de perpassar por ambos os ‘sexos’ binários. É sendo dissidente
nessa lógica, no que tange à expressão de gênero e à sexualidade que Linn confecciona sua
identidade.

Desde o século XVIII a sociedade tem vivido uma espécie de ‘repressão sexual’. Entretanto,
essa ‘repressão’ foi, em certa medida, o motor de produção de sexualidade. Esse certo
impedimento de se falar sobre sexo e da prática, na verdade, é o que fez proliferar os discursos
sobre o sexo. Entretanto, instituições como família, igreja, escola buscavam o poder, o controle
do indivíduo e não necessariamente a redução da prática do sexo (FOUCAULT, 1988). É,
portanto, para Foucault um momento importante de disputas pelo controle e poder na sociedade
e não necessariamente de uma repressão, o que pode colocar em suspenção o termo, mas que
de alguma forma refletiu nas condutas sociais dos indivíduos.

A história de (des)construção de Linn aparece em “A Lenda”24: “Eu fui expulsa da igreja


(ela foi desassociada) / Porque 'uma podre maçã deixa as outras contaminada' / Eu tinha tudo
pra dar certo e dei até o cu fazer bico / Hoje, meu corpo, minhas regras, meus roteiros, minhas
pregas / Sou eu mesma quem fabrico”. Isso nos remete a esse mote repressivo de sexualidades
que está para além de uma norma. A ‘sociedade disciplinar’ (FOUCAULT, 2008) remete a um
movimento social de conduzir o sujeito a obedecer, atender as demandas de um grupo

23
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RgTbQH3N6S8&t=16s>. Acesso em: 15 mar.
2017.
24
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=g3w-t585D54&ab_channel=Showlivre>. Acesso em: 09
nov. 2018.

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específico de poder. Esse disciplinar é esquematizado de forma a fazer com que o indivíduo
não o conteste, que ele o naturalize e acabe se tornando o vigia de si mesmo, mas não de modo
conformista, pois os indivíduos estão condicionados em estrutura e em diversas esferas de
poder. A feminilidade partindo de uma figura designada socialmente como masculina é então
freada e condicionada a moldes ‘universais’.

Linn acredita que o funk, até mesmo pela marginalização social relacionada juntamente aos
campos de reprodução desse ritmo (como as favelas), também produza discursos sobre o ‘sexo’,
produz e reproduzir sexualidade, mas sobre um desmerecimento maior em relação aos outros
ritmos musicais por conta das pessoas que cantam ou são retratadas estarem geralmente em
uma condição marginalizada25. Assim sendo, a aproximação com o ritmo também esbarra nos
próprios interesses da cantora em falar sobre temáticas específicas, para além das suas
possibilidades de acesso. O funk produzido por ela traz nas letras incitação ao reconhecimento
de si, a dominar e conhecer o próprio corpo, bem como o questionamento dos desejos
construídos pela sociedade.

A sociedade que vigia e disciplina, muitas vezes via a punição, é concebida através de
‘papeis’/expectativas, sujeitos realizando performances de questionar a identidade de outros
sujeitos que não se enquadram dentro do que o sistema delimitou. Para Linn, a denúncia que o
sujeito faz, como em chamar alguém de ‘viado’ na rua, é como apontar o abjeto. O abjeto
“relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas ‘vidas’ e cuja
materialidade é entendida como ‘não importante’” (PRINS; MEIJER, 2002, p. 161). Dito de
outro modo,

As imagens corporais que não se encaixam em nenhum dos gêneros tidos como em
oposição, masculino e feminino, ficam fora do humano, a rigor, constituem o domínio
do desumanizado e do abjeto, em contraposição ao qual o próprio humano se
estabelece (Idem, 2002, p. 162).

25
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=X_oQL59VUu0&t=887s>. Acesso em: 15 mar.
2017.

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Assim, esse ‘viado’ ecoado na rua serve para anunciar que esse outro está descumprindo
uma norma, assim ele (o vigia) também tem a oportunidade de reafirmar o seu ‘papel social’.
Segundo Linn, o vigia “tem que denunciar e fazer com que as outras pessoas percebam que
aquilo ali não é homem porque quando ele faz isso, ele está dizendo ‘porque eu sou homem e
o meu dever é denunciar’”26.

No que tange a escolha do funk para se expressar, Linn afirma que a representatividade do
feminino sempre foi desvalorizada em diversos ritmos musicais, entretanto, é no funk que é
possível levantar uma voz, constituir um diálogo com a periferia, além de ser esse um dos
ritmos que dão voz para falar sobre as vivências de identidades até então silenciadas pela
sociedade, apesar dessa possibilidade não ser fundamentalmente uma característica do funk,
conforme será discutido no próximo capítulo27.

Funk como possibilidade de criação de desejo

No Brasil, originado em um sistema de marginalização, o funk chegou nos anos 70 e se


propagou de forma a atingir todas as parcelas da sociedade. Ele registra desde o início um
discurso de descontentamento dos povos marginalizados e suas músicas denunciavam mazelas
sociais, assim como o Hip hop.

Para Monteiro, apesar da popularização do funk, as/os artistas não buscavam


necessariamente um investimento em apresentações mais rebuscadas:

O funk conquistou bastante espaço na mídia, principalmente por meio de


apresentações dos cantores em programas de TV, rádio e televisão; o que contribui
para a população do funk em meados de 2000 internacionalmente. Algo a se
comemorar, pois um movimento que vinha da periferia estava conquistando o mundo.

26
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RgTbQH3N6S8&t=16s>. Acesso em: 15 mar.
2017.
27
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=owO2jQndWX8>. Acesso em: 15 mar. 2017.

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Entretanto, mesmo com o sucesso, o funk não tinha uma preocupação significativa
com a comunicação, podemos dizer que poucos eram os artistas que trabalhavam com
videoclipes, edições especiais, raras exceções, como a dupla Claudinho e Buchecha
tinham essa preocupação. (2014, p. 5)

É mediada por esse ritmo musical que Linn compartilha a própria história, casualidades,
preconceitos sofridos por ser “travesti preta e periférica”, mas ao contrário do que era nos anos
2000, investindo em parcerias com outras/os artistas LGBTs, bem como em videoclipes e
participações em programas de TV e pela internet, sobretudo no YouTube. Para ela, a música
é um movimento de ocupação, de resistência, de existência e o funk é uma explosão cultural,
mas ela ressalta que até mesmo essa performance de cantora não é algo fixo: “Eu sei que estou
cantora, que estou ocupando esse espaço, mas eu não sei qual é o próximo passo”28. É a
instabilidade e o movimento os combustíveis utilizados por Linn.

A cantora vai na contramão dos modelos de identidades difundidos pela mídia e


apreendidos na educação que estão cada vez mais difíceis de serem obtidos. A sociedade,
entretanto, ainda continua na busca dessa assimilação midiática. Para se alcançar esse objetivo,
é necessária uma dedicação intensa e essa não só é cultuada como também é controlada e
vigiada por outros que também estão sujeitos a se enquadrar (MISKOLCI, 2006).

Essa assimilação perpassa o sistema binário (masculino – feminino) que se faz


aparentemente lógico na caracterização do gênero homem e mulher, vindo a ser constituído a
partir ou junto ao ‘sexo’. Vinculando o comportamento expresso socioculturalmente ao ‘sexo’,
ao gênero e à genitália, criando assim uma determinação ideal. Conforme Bento aponta, há uma
tentativa de alocar uma questão do campo biológico, da natureza no que tange a
transexualidade, como se postulasse um imperativo de que “a natureza constrói a sexualidade
e posiciona os corpos de acordo com as supostas disposições naturais” (2008, p. 17), o que para
a autora é uma problemática, inclusive, postulada no sistema binário. Os corpos devem então
ser construídos a partir dessa determinação que, apesar de se apresentar como natural – sendo

28
Entrevista disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=A9KKFSyvlS4>. Acesso em: 15 de mar. 2017.

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mais especificamente naturalizada – é ainda construída, demonstrando que a possibilidade de


subversão e/ou outra montagem desse corpo, bem como expressão de gênero são possíveis.

Na perspectiva aqui abordada, essa crítica culmina com a que a cantora propaga no funk,
crítica essa que contesta a lógica binária por conta da normatividade compulsória que tentam
lhe impor para um se adequar ao considerado normal, como quando a cantora diz em
“Pirigoza”29: “Então olha só, doutor! / Saca só que genial / Sabe a minha identidade? / Nada a
ver com xota e pau!”. A análise permite compreender os processos de resistência, bem como a
apropriação do funk como performance dirigida e/ou mediação discursiva em uma constituição
de si mesma.

O interessante de pensar a Linn é desde quando ela começa no cenário musical, aliás,
de como ela chega nesse local. Após ter passado por companhias de teatro, Linn começa a
experimentar a música e, mais especificamente, o funk, como sendo o ritmo musical que ela
percebe a possibilidade de expor suas inquietudes em relação aos atravessamentos que lhe
atingem diretamente. Linn salienta que isso tem ocorrido de forma orgânica, pois ela nunca
planejou ser cantora. A ideia de cantar surge logo após ver uma amiga do teatro que começou
a fazer música. Assim, resolveu tentar e foi conhecendo pessoas e fazendo parcerias de criação
até o lançamento do disco Pajubá. Esse disco foi realizado com financiamento coletivo através
de um site. Com uma meta de R$ 45 mil, Linn arrecadou R$49.980,00 30 para produzir o disco
que foi lançado no final de 2017.

Vale ressaltar que o funk produzido pela cantora não é como o funk analisado por
Monteiro (2014), isto é, dos anos 70 ou de finais da década de 2010, em que as 'batidas' eram
reconhecidamente/exlusivamente do funk. Linn mescla essas 'batidas' do funk com outros
ritmos musicais que permite uma flexibilização de sua música/harmonia e, inclusive, a permite
acessar novos espaços com esse estilo.

29
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7kZ4Xh0mhik&ab_channel=LinndaQuebrada>. Acesso
em: 10 de nov. 2018.
30
Financiamento disponível em: <https://www.kickante.com.br/campanhas/linn-da-quebrada-bixa-pode-fazer-
um-pedido-0>. Acesso em: 18 de nov. 2018.

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A reflexão de produzir música também passa pela comercialização. Apesar de um


grande volume de doações para a o disco, a venda e a inserção em algumas plataformas, bem
como a participação em alguns programas necessitam de algumas concessões, mas ela aposta
que é justamente a forma que produz a própria música que a faz permanecer sendo ouvida. Linn
diz que não canta só sobre si mesma, mas sobre outras pessoas que assim como ela querem se
ver e ouvir, e esse processo ainda serve de ponte para encontros de corpos e vidas semelhantes.

Apesar de não ser uma artista que produz para/na internet, Linn se destaca nessa rede,
principalmente com o primeiro videoclipe (“Enviadescer”31) divulgado no YouTube, sendo o
primeiro passo a nível nacional de reconhecimento do seu trabalho enquanto artista, performer.
A música que até então estava em um processo de experimentação, torna-se o motor de
articulação e manifestação política de Linn.

Um dos conceitos de Butler (2015) para pensar o sujeito é o desejo. Não só o sujeito ou
não necessariamente o sujeito, mas a agência desse sujeito, pois é a atividade, a consciência
reflexiva de resistir e/ou subverter convenções que consiste na caracterização da agência. Para
a autora, é o desejo o motor que vai guiar ou impulsionar a mudança, que vai desestabilizar o
sistema convencional. Linn propõe o funk como uma possibilidade de criar ou recriar os seus
desejos, desejos esses que as músicas geralmente não produzem devido a uma ‘cis-
heteronorma’ que canta sobre corpos e desejos hegemonicamente legitimados.

Sobre essa produção do desejo, Linn contesta “a minha história não é contada, os meus
desejos não são criados, os meus afetos, os meus desejos sexuais, esses ficam mantidos
escuro”32. Foi partindo dessa necessidade de se ver na música, de se reconhecer nas letras e
perceber possibilidades de afeto mais próximas a sua realidade que a cantora começa a produzir
no funk, mas uma produção no sentido de contar histórias e não necessariamente de criar novas,

31
Disponível em: <https://youtu.be/saZywh0FuEY>. Acesso em 10 nov. 2018.
32
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=X_oQL59VUu0&feature=youtu.be>. Acesso
em: 10 nov. 2018.

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pois para a cantora, a história já existe, só não é declarada, cantada, bem como os desejos. O
funk torna-se a ferramenta de contar histórias fazendo emergir questões que já existem para um
determinado seguimento, mas que são abafadas ou silenciadas. Isso não significa
necessariamente que o funk é um espaço inclusivo, muito pelo contrário, como apontado, a
problemática envolvendo esse ritmo também diz respeito a seus posicionamentos considerados
machistas em relação ao feminino. O que se torna relevante nessa questão é compreender que
o ritmo não está fechado em si mesmo, o crescimento e sucesso de uma travesti nesse campo é
um exemplo da incongruência de um paradigma visto como intrínseco de que o funk só poderia
ter uma forma.

“Se tu quiser ficar comigo, boy, vai ter que enviadescer”33

Tanto a estética quanto a música de Linn provoca uma expansão da dimensão de “ser
travesti” ou daquilo que é entendido como tal. Isso porque Linn não é uma travesti que tem
‘peitão’, ‘bundão’, toda siliconada, como poderia recorrer um conceito comum, e nem sempre
lhe é dado o reconhecimento de uma identidade feminina. A concepção de suas performances
passa por roupas e adereços considerados masculinos e roupas e adereços considerados
femininos, e essa não tem sido necessariamente uma tentativa da Linn de se abster de um
gênero, mas sim de problematiza-lo.

Na música “Enviadescer”34, Linn convoca o “macho discreto” para dizer que o real
interesse dela não é nele, mas sim nas ‘bichas’ porque ela gosta “das que são afeminadas / Das
que mostram muita pele, rebolam, saem maquiada”. Esse momento é onde a Matriz de
Inteligibilidade perde força, pois Linn não está preocupada em reiterar um papel feminino que
se harmonizaria afetivamente com o masculino, pelo contrário. Ela deseja, ou pelo menos

33
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=saZywh0FuEY&ab_channel=LinndaQuebrada>. Acesso
em: 09 nov. 2018.
34
Idem.

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produz a ideia do desejo, por outras “transviadas” assim como ela. “Mas não tem nada a ver
com gostar de rola ou não / Pode vir, cola junto as transviadas, sapatão”. Assim, evidenciando
também que esse tornar-se “viada” não tem a ver com o gênero e/ou a sexualidade, mas com
uma manifestação política. A proposta é, portanto, se apropriar do feminino (ainda que reitere
parte da norma no sentido de identificar-se como feminina) sem que isso remeta a uma condição
de desejo pelo masculino, pois ela deixa claro “Eu não tô interessada no seu grande pau ereto”.

O clipe ainda traz cenas com várias mulheres e homens trans ou não que se misturam
entre o feminino e o masculino nos figurinos, maquiagem, performance. O que a princípio
parece ser uma manifestação na rua de identidades diversas reclamando o feminino para si.
Essa reclamação soa como a proposta de se contestar a feminilidade que geralmente é criticada
tanto nos corpos que podem manifesta-la quanto nos que devem reprimi-la, mulheres e homens
respectivamente.

Isso culmina com a apropriação de termos que seriam usados como xingamentos: viado,
transviado/a, bicha, e a quebra de expectativa de desejos, de discursos, de comportamentos que
a ela foi designada por ser uma travesti. É nesse rompimento que Linn se mostra possível para
além daquilo que ela foi estereotipada, não só quebrando a expectativa, mas reformulando as
categorias e nos apresentando possibilidades não pensadas.

Ao propor outras possibilidades, Linn tentar romper com o que ela chama de “roman-
cis35”, ou seja, uma confecção de histórias que abrangem a pessoa cisgênera e heterossexual,
sendo uma espécie de fórmula de manutenção desse status, ignorando a existência de outras
personagens que fujam desse padrão, buscando inclusive a circulação do dinheiro em
determinados espaços e arranjos familiares. Com isso, Linn procura externalizar essa
provocação de que a norma faz de se mostrar norma, quando ela conhece outras possibilidades
e até mesmo normativas dentro do mesmo “cis-tema”. Ao ser questionada sobre ser o amor
uma ferramenta de auto estímulo e ensino da população LGBT para com as pessoas devido a

35
Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=m1WBvSRMgjE&feature=youtu.be>. Acesso
em: 03 set. 2018.

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andarem de mãos dadas e trocarem afetos em público, Linn defende que, na verdade, o amor
existe como uma das principais ferramentas do sistema ‘cis-heteronormativo’.

Conforme Linn, “se você liga a televisão, se você vê as novelas, o grande drama ou a
grande trama das novelas é o quê? É o amor. Se você vai ler um livro o que se incentiva, o que
se busca é o amor, se você vê em um filme é o amor”36. Ou seja, para ela o amor é uma
ferramenta, mas usada geralmente por e para pessoas cisgêneras, heterossexuais, com uma
determinada classe social (para a manutenção desta). Geralmente essas personagens femininas
ou feminilizadas são alocadas como as que se interessam pelo romance/amor, e os personagens
masculinos ou masculinizados como os provedores de dinheiro. Isso é importante e interessante
porque a cantora não propaga nas suas músicas a busca por um amor romântico (como ela
denuncia ocorrer em outras instâncias), mas sim a possibilidade de se relacionar para além do
afeto, apenas sexualmente, com outras pessoas fora da ‘cis-heteronormatividade’. É como se a
‘sexualidade mais crua’ recebesse uma maquiagem mais romântica que a cantora prefere borrar
porque acredita que essa maquiagem tende a subjugar os sujeitos, sobretudo a mulher, e seus
desejos.

Considerações Finais

Analisando o desenvolvimento da Linn no funk e sua ascensão no campo artístico, é


possível compreender que o uso que ela faz da música é político e singular, mas não único, pois
ainda há outras/os artistas antes dela e na atualidade que de alguma forma quebram ou
contestam o sistema hegemônico da ‘cisheteronormatividade’. Além disso, a possibilidade que
ela traz com as batidas características do ritmo musical também poderiam remeter a um
entretenimento, tendo em vista que suas apresentações com plateia envolvem danças e
movimentos característicos do ritmo, contudo, Linn sempre evidencia que sua proposta é de ser
ouvida. Estar como cantora, o que para ela não é estático, é a possibilidade que encontrou no
momento de se fazer ouvir. O que se destaca em especial na cantora é a forma como conduz

36
Idem.

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suas críticas e as apropriações que faz tanto dos conceitos a ela aplicados, como de um discurso
mais acadêmico. Os posicionamentos e articulações parecem transpor as discussões
‘transviadas’ para o funk centrando na experiência que a cantora tem de sua condição mais
marginalizada, condição essa que a faz reverter a lógica e a impulsiona e a viabiliza como
referência.

Linn deixa evidente a todo o momento a sua relação de problematização sociocultural


com conceitos naturalizados, discussão essa que revisa os conceitos já estabelecidos de abjeto
e dissidente, gerados na própria cultura em que os sujeitos estão inseridos a partir da existência
de um comportamento médio ou ideal que se harmonizaria com o funcionamento do sistema
social, bem como de possibilidades de construção de identidades, sobretudo pautadas pelas
interseções e mediações as quais Linn se coloca e é alocada diante dessa visibilidade, como
travesti, negra, periférica.

A identidade propagada pela cantora a respeito de si mesma, mas não somente, pois
nesse processo de questionamento identitário ela expande suas reflexões para corpos que, como
o dela, estão sob uma vigia mais rígida da sociedade, permite assimilar a existência e a
experiência como articuladores da produção de si mesma e não como determinantes.

Ao se colocar como “terrorista de gênero” e buscar destruir o “cis-tema” e o “macho


alfa”, Linn parece ser uma figura intragável que não caberia em nenhum espaço, principalmente
os mais inclusivos, por conta de uma espécie de violência simbólica e retórica que ela fala ao
defender a própria existência. Contudo, ao que se percebe, principalmente no Youtube, a
cantora ganha mais e mais espaço, nos seus clipes o número de visualizações é considerado
bom dentro da plataforma e Linn tem se destacado em outros campos, como em filmes e
documentário premiado internacionalmente37. Isso é crucial para se perceber que a cantora
apesar de ganhar mais fãs por conta de suas apostas performáticas e problemáticas levantadas,

37
O documentário "Bixa Travesty", que conta a história da cantora, recebeu em 2018 o prêmio Teddy Award do
Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, um dos mais importantes na área de cinema LGBT. O
mesmo documentário recebeu 4 prêmios também no Brasil no Festival de Cinema de Brasília.

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é uma figura estranha daquilo que é conhecido, escutado, visto. Sua estética e fala compõem
um sujeito que não é comum, um sujeito que brinca com o gênero e que passa muitas vezes até
pelo animalesco.

Gomes (2016) ao fazer uma análise da identidade de gênero no movimento funk e a


relação com a mídia, expõe a singularidade composta por uma funkeira trans que faz surgir um
interesse midiático de acesso por conta de uma visibilidade perversa que busca, antes de tudo,
explorar esse sujeito e sua condição, reduzindo, simplificando as pautas das/os artistas e
provocando muitas vezes conceitos confusos sobre determinada questão. Isso torna-se um
ponto marcante para entender a procura cada vez maior pela cantora na plataforma, pois ainda
há uma certa complexidade dela ao se colocar e falar de suas pautas que saltam como
discrepante do esperado e, de certa forma, fascina o ouvinte que até então só via mais uma
travesti. Isso, pensando em mercado editorial, serve para a cantora como um certo chamariz,
como se essa estranheza fosse um produto de venda. Apesar de a todo o momento se colocar
como alguém que produz mais como um ato político, Linn parece estar ciente desse mercado,
bem como das dificuldades de acesso e permanência nele e da necessidade mercadológica de
suas músicas para serem mais acessadas/vendidas, apesar de relutar com as concessões e
limitações de suas performances (como o uso de termos considerados palavrões).

Conforme verificado no YouTube, Linn ao decorrer dos últimos 2 anos, desde o primeiro
vídeo na plataforma, passou a ser buscada para entrevistas em diversos canais que não tratam
necessariamente sobre corpo, sexualidade e gênero, mas que viram na cantora uma
subjetividade destoante que, conforme dito, conversa muito com parte dos discursos
acadêmicos sobre essas temáticas. Talvez Linn pudesse ser caracterizada com a forma de expor
os conceitos em uma linguagem mais fluída e acessível ao público, principalmente para o
público que ela canta: população LGBT, negra e periférica.

Fica manifesto pela cantora que seu posicionamento não é o de criar uma organização
de novas identidades, mas de permitir que as existentes ganhem vozes, ganhem espaços. E
apesar de sua contundente manifestação a uma destruição da norma, é preciso entender que a

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proposta é de denunciar essa norma, pois ela não é necessariamente o normal e nem o ideal,
provocando deslegitimações de sujeitos e experiências. A reinvindicação passa por uma
existência que não seja pautada em um sistema de compressão sexual e generificado, mas por
uma ‘liberdade’ de existência e experiência que, em certa medida, pode reiterar a norma, como
às vezes ocorre em Linn ao fazer uso de maquiagem, salto alto, reivindicando e evidenciando
a “trava feminina”, mas que não fique fadada a ela.

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DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39518

O SILENCIAMENTO DO SUJEITO TRAVESTI NA LEGISLAÇÃO

THE SILENCING OF THE TRANSVESTITE INDIVIDUAL IN THE LAW

EL SILENCIO DEL SUJETO TRAVESTI EN LA LEGISLACIÓN

Jaqueline Angelo dos Santos Denardin1

RESUMO
Neste trabalho, a partir da perspectiva teórica da Análise de Discurso (PÊCHEUX, 1969, 1975), temos como
proposta analisar os efeitos de sentidos produzidos pela Lei nº 11.340/2006, Lei Maria da Penha, a qual traz em
seu texto considerações que permitem a aplicabilidade desse instrumento social normativo aos sujeitos Trans
(transexuais e transgêneros) e o Projeto de Lei nº 8.032/2014, de Jandira Feghali, que amplia a proteção para
esses sujeitos. Objetivamos refletir acerca do modo como questões relativas aos gêneros e às sexualidades são
colocadas em funcionamento no discurso jurídico e dizem não só a respeito da mulher cisgênera, como também
da mulher trans, embora a travesti seja nessas legislações apagada/silenciada. Nossa finalidade, com esta
proposta, é perceber como a Lei e o Projeto de Lei compreendem e definem “orientação sexual”, “gênero”,
“mulher”, “transexual” e “transgênero”, analisando como o discurso jurídico pode, muitas vezes, impor
silenciamentos – neste caso com os travestis - aos sujeitos, mais do que garantir seus direitos.
PALAVRAS-CHAVE: Lei Maria da Penha; Projeto de Lei nº 8.032/2014; Silenciamento da travesti.

ABSTRACT
In this work, from the theoretical perspective of the Discourse Analysis (PÊCHEUX, 1969, 1975), we intend to
analyze the meaning effects produced by the law nº 11.340/2006, the Law of Maria da Penha, which approaches
in its text considerations that allow the applicability of this social normative instrument to Trans individuals
(transsexuals and transgenders) and the Bill nº 8.032/2014, by Jandira Feghali, which amplifies the protection to
these individuals. We aim to reflect on the way issues related to genders and sexualities are applied to the
juridical discourse and are concerned not only about the cisgender woman, but about the transsexual woman as
well, although the transvestite is erased/silenced. Our goal with this proposal is to realize how the Law and the
Bill understand and define “sexual orientation”, “gender”, “woman”, “transsexual” and “transgender”, analyzing
how the juridical discourse can impose silencing – in this case of transvestites – to the individuals, more than
securing their rights.
Keywords: The Law of Maria da Penha; The Bill nº 8.032/2014; Silencing of the Transvestite.

RESUMEN
En este trabajo, a partir de la perspectiva teórica del Análisis de Discurso (PÊCHEUX, 1969, 1975), tenemos
como propuesta analizar los efectos de sentidos producidos por la Ley nº 11.340 / 2006, Ley Maria da Penha, la

Submetido em: 18/01/2019 Aceito em: 14/02/2019 Publicado em: 01/06/2019

1
Doutoranda em Estudos Linguísticos no Programa de Pós-Graduacão em Estudos da Linguagem da
Universidade Federal do Mato Grosso, Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
Graduada em Pedagogia, Ciências Sociais e Letras, com especialização em Educação Especial: Deficiências
Múltiplas, em Educação do Campo, ambas pela Faculdade de Educação e Tecnologia da Região Missioneira -
FETREMIS, e Especialização em Docência no Ensino superior pelo Centro Universitário Barão de Mauá.
Atuando desde 2012 na Rede Estadual de Educação do Paraná. Pesquisadora da área de Análise de Discurso e
Linguística Aplicada, com ênfase nas Teorias do Discurso, Teorias de Gênero e o Transfeminismo.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 38 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


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cual trae en su texto consideraciones que permiten la aplicabilidad de ese instrumento social normativo a los
sujetos trans (transexuales y transgéneros) y el Proyecto de Ley nº 8.032 / 2014, de Jandira Feghali, que amplía
la protección para esos sujetos. Objetivamos reflexionar acerca del modo en que las cuestiones relativas a los
géneros y las sexualidades se ponen en funcionamiento en el discurso jurídico y dicen no sólo acerca de la mujer
cisgénera, sino también de la mujer trans, aunque la travesti sea en esas legislaciones apagada / silenciada.
Nuestra finalidad, con esta propuesta, es percibir cómo la Ley y el Proyecto de Ley comprenden y definen
"orientación sexual", "género", "mujer", "transexual" y "transgénero", analizando cómo el discurso jurídico
puede, muchas veces, imponer silencios - en este caso con los travestis - a los sujetos, más que garantizar sus
derechos.
PALABRAS CLAVE: Ley Maria da Penha; Proyecto de Ley nº 8.032 / 2014; Silenciamiento de travesti.

DIZERES INICIAIS
Neste trabalho, a partir da perspectiva teórica da Análise de Discurso (PÊCHEUX, 1969,
1975), tenho como proposta analisar os efeitos de sentidos produzidos em alguns recortes da
Lei nº 11.340/2006, Lei Maria da Penha, a qual traz em seu texto considerações que permitem
a aplicabilidade desse instrumento social normativo aos sujeitos Trans (transexuais e
transgêneros), e do Projeto de Lei nº 8.032/2014, de Jandira Feghali, que amplia a proteção
para esses sujeitos.
Tenho por objetivo refletir acerca do modo como as questões relativas aos gêneros e às
sexualidades são colocadas em funcionamento no discurso jurídico e dizem não só a respeito
da mulher cisgênera, como também da mulher trans e evidenciando como a travesti está
nessas legislações silenciada.

A Lei nº 11.340/2006 assim se enuncia: “Toda mulher - independentemente de classe, raça,


etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião - goza dos direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e
facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu
aperfeiçoamento moral, intelectual e social” e, em seu artigo 5º, adverte que “As relações
pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual".

Na Lei, embora diversos juristas entendam que a mulher trans está sendo contemplada, não há
essa materialização (linguística) escrita no instrumento legal. Diferentemente do Projeto de
Lei nº 8.032/2014 que ressalta: “As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual e se aplicam às pessoas transexuais e transgêneros que se identifiquem
como mulheres”.

Minha finalidade, com esta proposta, é perceber como a Lei e o Projeto de Lei colocam em
funcionamento dizeres sobre os sujeitos “transexual” e “transgênero”, analisando como o
discurso jurídico pode, muitas vezes, impor silenciamentos a esses sujeitos, mais do que
garantir seus direitos. Neste trabalho, analiso especificamente dois recortes dos referidos
instrumentos legais.

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UM POUCO DA TEORIA

Orlandi afirma que “o real da significação é o silêncio. E como meu objeto de reflexão é o
discurso, chego á outra afirmação que sucede essa: o silêncio é o real do discurso”
(ORLANDI, 2007, p.29). Desse modo, conforme a autora (ORLANDI, 2007, p. 29), o homem
está condicionado a significar, portanto, com ou sem palavras este está sujeito á interpretação.
Mesmo quando o sujeito silencia ou é silenciado – seja pelo por outro sujeito ou por alguma
instituição – este está produzindo sentido e significados.

A autora ainda traz considerações sobre as formas de esquecimento, e diz sobre o


esquecimento no 2 “que é da ordem da enunciação: ao falarmos, o fazemos de uma maneira e
não de outra, e, ao longo de nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que indicam que o
dizer sempre podia ser outro” (ORLANDI, 2015, p.33), e sobre o esquecimento n o 1 “o outro
esquecimento é o esquecimento número um, também chamado esquecimento ideológico: ele é
da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela
ideologia”(ORLANDI, 2015, p.33).

Portanto, o esquecimento no 2 fala sobre as palavras enunciadas, as quais são utilizadas para
dizer sobre algo, mas que podem produzir outros sentidos, enquanto o esquecimento no 1, que
está condicionado ao inconsciente, reproduz determinado discurso em função de uma
determinada ideologia, e como esta nos afeta enquanto sujeito.

Nos recortes selecionados para este artigo, está reforçada a ideia que esse sujeito não sabe
sobre si, e que este não é capaz de dizer sobre si, constando um silenciamento do sujeito trans,
que é dito por todos, menos por ele mesmo, em função de ideologias que constituem a
sociedade,

Constata-se, com efeito, que o sujeito não pode penetrar conscientemente na zona
no2 e que ele o faz em realidade constantemente por um retorno de seu discurso
sobre si, uma antecipação de seu efeito, e pela consideração da defasagem que aí
introduz o discurso de um outro. Na medida em que o sujeito se corrige para
explicar a si próprio o que disse, para aprofundar “o que pensa” e formulá-lo mais
adequadamente, pode se dizer que esta zona no 2, que é a dos processos de
enunciação, se caracteriza por um funcionamento do tipo pré-consciente/consciente.
Por oposição, o esquecimento no 1, cuja zona é inacessível ao sujeito, precisamente
por esta razão, aparece como constitutivo da subjetividade na língua. Desta maneira,
pode adiantar que este recalque (tendo ao mesmo tempo como objeto o próprio
processo discursivo e o interdiscurso, ao qual ele se articula por relações de
contradição, de submissão ou de usurpação) é da natureza inconsciente, no sentido

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em que a ideologia é constitutivamente inconsciente dela mesma. (PÊCHEUX,


FUCHS,1997,p.177)

Pêcheux e Fuchs me fazem refletir sobre a conceituação dos esquecimentos, dizendo que o
esquecimento no 2 é aquele da ordem do que pode ser enunciado, e porque é enunciado de tal
forma, com aquelas palavras e não outras.

A exemplo do que foi dito no parágrafo anterior a palavra “tratamento”, para se referenciar ao
processo transexualizador do sujeito, dá um sentido de enfermidade, uma vez que a
transexualidade se encontrava até o início de 2018 no rol de doenças relacionadas a
transtornos mentais sobre a sexualidade, “o esquecimento número 2” designa a zona em que o
sujeito enunciador se move, em que ele constitui seu enunciado, colocando as fronteiras entre
o “dito” e o rejeitado, o “não-dito”” "(MALDIDIER, 2003, p.42).

Já sobre o esquecimento no 1 que é da ordem do inconsciente “no “esquecimento número 1” o


sujeito “esquece”, ou em outras palavras, recalca que o sentido se forma em um processo que
lhe é exterior: a zona do “esquecimento número 1” é, por definição, inacessível ao
sujeito”(MALDIDIER, 2003, p.42), e, por isso, é constituído no campo do ideológico, e como
dito anteriormente a transexualidade era considerada doença, por isso, está condicionada ao
discurso médico patologizante e o jurídico que pune e adia a legalidade para as demandas
destes sujeitos.

Ainda existe outro conceito bastante utilizado que podemos atribuir ao se referir á travestis e
transexuais, a Formação Imaginária, ou seja, as imagens ou ideais construídos socialmente
sobre aquele sujeito, ou o que se espera dele/dela enquanto um corpo que produz sentidos.

As Formações Imaginárias estão relacionadas com os mecanismos que possibilitam o


funcionamento do discurso. “Assim não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos
como tal, isto é, como estão inscritos na sociedade, e que poderiam ser sociologicamente
descritos, que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções”
(ORLANDI, 2015, p.38).

Sobre as formações imaginárias, Pêcheux afirma que:

Nossa hipótese é que esses lugares estão representados nos processos discursivos em
que são colocados em jogo. Entretanto, seria ingênuo supor que o lugar como feixe
de traços objetivos funciona como tal no interior do processo discursivo; ele se
encontra aí representado, isto é, presente, mas transformado; em outros termos, o
que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que
designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles
se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro (PÊCHEUX, 1997, p. 82).

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Essas são as imagens que sujeito A e sujeito B fazem de si; a imagem que fazem um do outro
são constituídas pelo inconsciente:

As condições de produção implicam o que é material (a língua sujeita a equívoco e a


historicidade), o que é inconstitucional (a forma-social em sua ordem) e o
mecanismo imaginário. Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como
todo objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica. Temos assim a
imagem da posição sujeito locutor (quem sou eu para lhe falar assim?) mas também
da posição sujeito interlocutor (quem é ele para me falar assim, ou para que eu lhe
fale assim?), e também a do objeto do discurso (do que estou lhe falando, do que ele
me fala?). É pois todo um jogo imaginário que preside a troca de palavras. E se
fazemos intervir a antecipação, este jogo fica ainda mais complexo pois incluirá: a
imagem que o locutor faz da imagem que seu interlocutor faz dele, a imagem que o
interlocutor faz da imagem que ele faz do objeto do discurso e assim por diante.
(ORLANDI, 2015, p.38)

Para melhor esboçar as formações imaginárias, trago uma sequência discursiva, selecionada
das transcrições2 da série “Quem sou eu?”, série esta que circulou no programa Fantástico da
rede Globo de televisão, durante quatro domingos consecutivos entre os meses de março e
abril de 2017 e que abordou a transexualidade em diferentes aspectos:

SD 010 Entrevistada mulher trans 2: A parte mais difícil da infância é que eu já


sabia que era mulher, mas as pessoas não me viam assim.

Na SD 010, a qual traz a fala de uma mulher transexual com o nome não identificado, a
entrevistada diz: “era mulher, mas as pessoas não me viam assim”. A locutora (Entrevistada
mulher trans2) exemplifica, assim, o conceito de formação imaginária no enunciado destacado
por mim, na SD010, uma vez que retoma a memória da imagem do que é ser uma mulher
(imagem que ela faz de si) ao dizer “era mulher”; recupera a imagem que as pessoas
formulam sobre ela (imagem que o outro faz dela) ao dizer “mas as pessoas não me viam
assim”, que funciona como um mecanismo de antecipação:

Em toda língua há regras de projeção que permitem ao sujeito passar da situação


(empírica) para a posição (discursiva). O que significa no discurso são essas
posições. E elas significam em relação ao contexto sócio-histórico e a memória (o
saber discursivo, o já-dito) (ORLANDI, 2015, p.38).

Esse mecanismo imaginário produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso,
dentro de uma conjuntura sócio-histórica. De acordo com Orlandi (2002, p. 42):

2
As transcrições desta série foram feitas por mim. Elas fazem parte dos anexos da minha dissertação de
mestrado, ao total são 277 SDs.

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O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. Ele é


eficaz. Ele não “brota” do nada: assenta-se no modo como as relações sociais se
inscrevem na história e são regidas, em uma sociedade como a nossa por relações de
poder. [A imagem] se constitui nesse confronto do simbólico com o político, em
processos que ligam discursos e instituições.

Portanto, as formações imaginárias estão permeadas pelas relações de poder e por sentidos
estabilizados acerca dos sujeitos. Essas formações estão condicionadas às imagens que são
produzidas em um determinado contexto histórico-social, pois o imaginário está presente, é
constitutivo e essencial no funcionamento da linguagem.

Há, como vou mostrar em minhas análises, diferentes imagens que a sociedade faz do sujeito
trans, que esse sujeito faz de si e da sociedade, as quais estão em constante funcionamento nas
relações sociais.

“Enquanto corpo simbólico, corpo de um sujeito, ele é produzido em um processo que é um


processo de significação, onde trabalha a ideologia, cuja materialidade específica é o
discurso” (ORLANDI, 2012, p.16). Essa afirmação de Orlandi sobre o corpo do sujeito e sua
constituição como processo de significação traz luz às nossas reflexões sobre o sentido de
corpo e o corpo produzindo sentidos, em um processo discursivo de produção de sentidos, o
que está relacionado á representação do corpo do/da travesti/transexual.

As questões relacionadas ao corpo do sujeito transexual/travesti são precursoras de várias


discussões e decisões que envolvem esses sujeitos. Nessa perspectiva, sobre o corpo e a sua
constituição como processo de (re)significação dos sujeitos, Orlandi nos diz:

Levei em conta, ao pensar o sujeito, em sua materialidade, significando-o e


significando-se no espaço urbano, que havia uma especificidade em seu processo de
significação que se relacionava fortemente ao seu corpo. Havia, por exemplo,
marcas produzidas pela inserção do sujeito com sua materialidade em um outro
espaço de significação: o urbano e o rural. A interpelação do indivíduo em sujeito
pela ideologia produz uma forma sujeito histórica com seu corpo. Há, eu diria, uma
forma histórica (e social) o corpo, se pensamos o corpo do sujeito. (ORLANDI,
2012, p.17)

Vejamos a seguinte sequência discursiva também retirada das transcrições da série “Quem
sou eu?”:

SD 121 Andreia mulher trans: eu tinha né, algumas paixões minhas, que não dariam
certo né, agora que eu realmente já me sinto, né? Relativamente confortável com
meu corpo, eu já me sinto muito mais preparada pra ter um relacionamento, eu não
teria mais o mesmo desconforto que eu teria antes em deixar alguém tocar o meu
corpo realmente.

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Na SD 121, na parte destacada “Relativamente confortável com meu corpo”, Andreia, uma
mulher transexual, fala sobre a questão de estar bem com o próprio corpo, o qual ela foi
constituindo num processo histórico-ideológico-social, que a representa e também diz sobre
ter um determinado tipo de corpo para que alguém possa tocar - convencionado como
feminino, socialmente.

Ao utilizar-se da palavra “relativamente”, ela está se comparando, se relacionando a algo,


nesse caso, a um padrão, portanto, relativamente, ao que é esperado para o corpo feminino,
ela estaria confortável: “todas as funções do corpo feminino são controladas e reguladas pelo
patriarcado, transformando o corpo em um objeto de exploração (sexual, econômica,
familiar)” (PEREIRA, 2017, p.99).

Esse viés da exploração é abordado pela série, uma vez que os próprios sujeitos entrevistados
fazem relatos sobre a prostituição, como principal alternativa para a sobrevivência, que se
torna um meio de exploração desse sujeito, um corpo que é vendido e, consequentemente,
explorado.

Portanto, partindo desse conceito, analisaremos em nosso trabalho como o corpo do sujeito
trans é colocado em evidência para dizer sobre esse sujeito e para fazer com que esse sujeito
também diga de si e do modo como relaciona (seja, algumas vezes, por intervenções
cirúrgicas) com esse seu corpo que nem sempre é reconhecido e legitimado na sociedade, a
qual tem a heteronormatividade como estrutura significante.

A LEI MARIA DA PENHA E O PROJETO DE LEI 8.032/2014:


DIREITOS TRANS?

A Lei 11.340/06, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha, ganhou este nome em
homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, uma biofarmacêutica que durante vinte anos
foi violentada pelo marido, um professor universitário. Após duas tentativas de homicídio e o
violentador ainda estar impune, o caso ganhou repercussão internacional e, a partir da
intervenção de ONGs, chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual
cobrou uma tomada de posição da justiça brasileira, sendo, portanto, esse um marco inicial
para a criação da “Lei Maria da Penha”.

Porém, somente depois de vinte anos dos primeiros registros de violência sofrida por Maria
da Penha é que essa lei passou a vigorar. Portanto, só em setembro de 2006, a lei finalmente
entrou em funcionamento, e, a partir daí, o crime de violência contra as mulheres foi
regulamentado na legislação nacional brasileira

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 44 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39518

Já em 2014, a Deputada Jandira Feghali3 propôs ao Congresso Nacional um Projeto de Lei


que amplia o público atendido pela Lei Maria da Penha, contemplando as mulheres
transexuais e transgêneros. Projeto que traz em seu texto de justificativa a afirmação e
caracterização de quem é o sujeito transexual e transgênero, respaldada no discurso médico,
seguido de uma justificativa social.

Esse projeto proposto pelo Deputada Jandira Feghali é uma medida normativa legal de
prevenção e de violência para com o público trans, e sua existência justifica-se pela alto
índice de violência para com o(s) sujeito(s) trans, tendo em vista que o Brasil é o país que
ocupa o topo no ranking dos crimes por transfobia.

Essa proteção, condicionada ao gênero, está presente também no texto do Artigo 5º da Lei
Maria da Penha, “Para efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (...)”, logo, o texto da Lei deixa
bem claro que será considerada a violência á ação que estiver relacionada ao gênero, no
entanto, não fala, qual é o gênero, diferentemente do Projeto de Lei em que essa delimitação
ocorre.

Neste trabalho, tendo como perspectiva teórica a Análise de Discurso pecheutiana, foram
selecionadas duas Sequências Discursivas (doravante SD), sendo uma pertencente à Lei Maria
da Penha e a outra ao texto sobre o Projeto de Lei, de Jandira Feghali. Meu intuito com a
breve análise dessas sequências é compreender como sentidos sobre a mulher (cis e trans) e a
violência são postos em funcionamento.

Na primeira sequência, temos:

SD (01): O Projeto em debate visa a ampliar a proteção de que trata a Lei no 11.340,
de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha – às pessoas transexuais e
transgêneros que se identifiquem como mulheres. Há uma polêmica discussão na
doutrina e na jurisprudência sobre quem pode ser vítima de violência doméstica.
Diante dessa questão, cabe investigar qual seria o verdadeiro objetivo da Lei
Maria da Penha. Assim sendo, constata-se que o real escopo dessa Lei é prevenir,
punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher, não por razão
do sexo, mas em virtude do gênero. (PROJETO DE LEI 8.032/2014.2014. p.2.
grifos meus).

3
É uma médica brasileira, natural de Curitiba - Paraná, filiada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB),
construiu carreira política pelo Estado do Rio de Janeiro.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 45 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39518

Observando o primeiro grifo no recorte do Projeto de Lei, “transexuais e transgêneros”, não


encontramos o sujeito travesti na redação desse texto, logo, esse sujeito é silenciado/apagado
do discurso, pois não aparece, não consta no texto do projeto.

Valendo-se do conceito de formação imaginária, tal como teorizado por Orlandi (2013, p. 41),
sendo parte do funcionamento da linguagem e assentando-se no “modo como ás relações
sociais se inscrevem na história e são regidas em uma sociedade como a nossa, por relações
de poder”, é possível dizer que o sujeito travesti não seja socialmente aceito/visto como
imagem de mulher e representação do feminino, uma vez que este se traveste como do sexo
biológico exposto, ou seja, mesmo que este esteja “caracterizado” como mulher, perante a lei
não seria considerada/julgada como tal, mas em função de seu sexo biológico que estaria
atrelado ao conceito de masculino, e por assim ser, tratar-se-ia de um homem, e não de uma
mulher, perante a lei.

Ao olhar para o segundo gripo destacado na SD 01, “cabe investigar qual seria o verdadeiro
objetivo da Lei Maria da Penha”, é curioso como esse texto retoma a ideologia de
superioridade do homem em relação á mulher, o patriarcado, pois ao se dar conta que há uma
lei específica para proteger a mulher das violências que esta poderá vir a sofrer, em função
dos atos de um homem, o homem sente a necessidade de criar mecanismos que possibilitem
sua transposição á esta lei, e por isso vê a necessidade de investigação sobre qual o propósito
de tal instrumento legal, quando este especifica seu objeto de proteção que é a mulher,
limitando as mulheres amparadas por esta lei, silenciando e esquecendo algumas mulheres,
mas colocando claramente seu objeto protetivo a mulher, então ao formular este texto - cabe
investigar qual seria o verdadeiro objetivo da Lei Maria da Penha – ele se volta contra á
mulher e não contra o instrumento legal.

No terceiro grifo, destacamos um trecho do texto que fala sobre “violência doméstica e
familiar contra a mulher”, o que nos permite compreender que a mulher que não se encontra
no âmbito doméstico, ou no seio da sua família, não será amparada por esse instrumento legal.

Ao pensar e refletir sobre esta infeliz realidade, a população Trans4, que trabalha na
prostituição e tem como única fonte de renda o dinheiro que consegue com essa prática, pois
ás empresas em sua grande maioria não está aberta á contratação de pessoas transexuais, e
assim tem a sua maioria populacional trabalhando no ramo da prostituição, não seria
contemplada, porque estão inscritas em um lugar que não condiz com aquele lugar que a lei e
o projeto colocam em seus textos.

4
TRANS no dicionário significa, além dê. Para este artigo, entenda-se Trans como todas aquelas pessoas que se
identificam como mulher, além das convenções sociais da sociedade heteronormativa, sejam elas transexuais,
travestis, transgêneros.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 46 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39518

A mulher trans que está em condição de prostituição, estando nas ruas, não se encontra
contemplada na esfera doméstica e nem familiar, assim, o seu lugar (ruas, casas noturnas,
boates, etc.), não é o lugar contemplado pela Lei.

No quarto grifo da SD 01, “em virtude do gênero”, os conceitos de mulher contemplados pelo
Projeto de Lei não se validam baseados no “sexo”, mas sim pelo gênero. Logo, a primeira
impressão é de que o determinismo biológico de sexo/genitália masculino ou feminino é
excluído, porém, o conceito de gênero sobre o qual o texto traz é uma construção da
sociedade, ou seja, esse “gênero” que a lei aponta é o gênero baseado em parâmetros
convencionados pela sociedade heteronormativa, logo, esses sujeitos trans, não estariam
sendo contemplados por este instrumento legislativo, pois são vistos pela sociedade como
exceções á regra do ser masculino ou feminino, não podendo haver a ocorrência de algo que
destoe desse modo de ser, homem ou mulher, determinado biologicamente e condicionados á
padrões construídos socialmente para cada sexo, seja masculino ou feminino, de maneira que
não são aceitos na sociedade outras formas do ser.

Já, na SD2, temos:

SD (02): Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela
se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação
de violência doméstica e familiar. (LEI MARIA DA PENHA, 2006. art.4. Grifos
meus).

Novamente faz parte da sequência discursiva selecionada a lei silenciando quem são as
mulheres contempladas por essa lei e o próprio texto dizendo qual é o lugar que a mulher deve
ocupar na sociedade – lugar doméstico ou familiar – se esta quiser ser amparada pela lei, caso
necessite.

As interpretações que pairam sobre a Lei Maria da Penha sobre o “lugar” que deve ocupar o
sujeito amparado por este instrumento legislativo é condizente com o Artigo 4º da Lei Maria
da Penha “na interpretação da lei serão considerados os fins sociais a que ela se destina e,
especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica ou
familiar”.

Portanto, este instrumento legal que visa coibir e prevenir à violência contra a mulher
transexual e transgênero, silenciando á travesti, perde a eficácia no caso dos sujeitos trans,
uma vez que a maioria da população trans encontra-se em situação de prostituição nas ruas ou
em ambientes propícios para o comércio sexual, e não no âmbito familiar e doméstico dito e
imposto conforme a Lei.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 47 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39518

DIZERES FINAIS

Primeiramente, gostaria de destacar dois “lugares” que são retomados na redação da Lei
Maria da Penha e na redação do Projeto de Lei, pois é lugar, o qual, segundo o que diz os
textos legais, cabe à mulher se esta quiser estar amparada por esse instrumento legislativo: o
ambiente doméstico e familiar, assim a mulher que se coloca fora desse padrão e lugar do
âmbito doméstico e familiar não está contemplada pela lei, portanto, a mulher que tem
funções que diferem de ser/estar no ambiente doméstico e familiar não pode fazer o uso dos
direitos previstos na lei.

Por seguinte, em momento algum no texto da Lei Maria da Penha, esta traz a definição a
respeito de qual mulher essa lei está falando. Logo, diversas mulheres são silenciadas e, a não
serem aquelas que estejam no ambiente doméstico e familiar, as demais estão esquecidas.

Aqui também cabe uma reflexão sobre quem é a mulher que ocupa o ambiente doméstico e
familiar, pois esta deve ser detentora de algumas características, tais como: ser branca, ter
olhos claros, cabelos claros, ter seios grandes, cintura fina, nádegas grandes, boa estatura e ser
saudável (pois será mãe), saber cozinhar, lavar, passar, limpar, e cuidar dos filhos (quando os
tiver), aquelas que não se encaixam nesses parâmetros, quase não aparecem nos casos
registrados de violência contra a mulher, então quando esta lei foi proposta, quem era a
mulher que se pretendia amparar?

Já o Projeto de Lei que visa contemplar os sujeitos transexuais e transgêneros, porém, não
deixa claro esta abrangência para o sujeito travesti - talvez este se encaixe como uma
categoria na transgeneridade -, novamente limitando os sujeitos que podem/devem ser
atendidos por esse instrumento legal, o qual também, assim como a Lei Maria da Penha,
limita o lugar que o sujeito deve ocupar/permanecer se este quiser ser amparado pela lei.

Existe uma resistência do jurídico em tornar o sujeito trans um sujeito contemplado pela lei
em sua integridade, um sujeito de direito como todos os outros não trans. Esses sujeitos
valem-se da legislação vigente, que ampara a grande parte da sociedade que é cisgênera, o
que, em vários casos, não aplicar-se-ia aos sujeitos trans, mas isso é usado como instrumento
de “justiça” para todos.

Os sujeitos trans precisam, sim, de leis que contemplem e reflitam a sua especificidade de ser
quem são, uma vez que a própria sociedade os coloca como diferentes e os exclui; pois bem,
que existam leis diferentes para esses diferentes.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 48 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39518

Essa questão legal, da falha do jurídico, reflete-se bem quando se trata de crime de transfobia,
pois todos os crimes com esse perfil são noticiados como homicídios, como se não tivessem
uma motivação única, que é o fato da vítima ser um sujeito trans.

Novamente reforçando a ideia que a maioria da população trans sobrevive em condição de


prostituição e que realizam estas práticas nas ruas, e, por estar em situação de vulnerabilidade
total a maioria necessita do amparo desta medida inibidora da violência, porém não serão
contempladas por ela.

Mesmo com todos os silenciamentos previstos no texto da Lei Maria da Penha e do Projeto de
Lei de Jandira Feghali é preciso reconhecer as mudanças sociais que esses instrumentos
normativos causaram na sociedade em relação aos índices de violência – de todas as formas –
contra a mulher. Porém, ainda há muita luta e resistência para que a(s) mulher(es) possa(m)
ocupar lugares que sócio-historicamente “não” cabem a ela, como universidades, política,
empresas, entre outros.

Seguiremos resistindo e resistentes.

REFERÊNCIAS

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CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Sociologia Jurídica. 13. ed. Rio de Janeiro – RJ.

DIAS, Maria Berenice. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. 2.ed. São Paulo – SP.
Editora revista dos tribunais, 2014.

GADET, Françoise; HAK, Tony. [1969]. Por uma análise automática do discurso. Uma
Introdução à Obra de Michel Pêcheux. Editora da Unicamp, 1997.

MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso – (Re)ler Michel Pêcheux hoje. Tradução


Eni P. Orlandi. Campinas, SP, 2003.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 12a Edição,


Pontes Editores, Campinas, SP. 2015.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. 4a


Edição, Pontes Editores, Campinas, SP. 2012.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 49 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


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PÊCHEUX, Michel. Análise de Discurso: Michel Pêcheux Textos Selecionados: Eni


Puccinelli Orlandi. 4a Edição, Pontes Editores, Campinas, SP. 2015.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4ª Ed.


Campinas – SP. Editora da Unicamp. 2009.

PEREIRA, Fernanda. CORPOS EM PROTESTO: Análise Discursiva do Movimento


FEMEN. 2017. (160 f.). Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade
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AB5A153FED625CB7E9A3.proposicoesWebExterno1?codteor=1282632&filename=Tramita
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F73DE29B00A6F757134.proposicoesWebExterno2?codteor=1372701&filename=Parecer-
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http://www.observe.ufba.br/lei_mariadapenha. Acesso em: 19 ago. 2017.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 50 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


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DEVIR SELVAGEM
A ARTE DO GRITO (OU DO GRITO NA ARTE)
BECOMING WILD
THE ART OF YELLING (OR THE YELLING IN ART)
DEVIR SELVAJE
EL ARTE DEL GRITO (O DEL GRITO EN EL ARTE)

Mariah Rafaela Silva1

RESUMO
A partir de uma performance realizada em 2016, o grito opera como máquina de guerra (Deleuze e Guattari,
2012) capaz de agenciar um coletivo que mobiliza uma matilha, de modo que a experiência transexual seja
entendida como potência, jamais como loucura. O objetivo desse trabalho é refletir sobre algumas dinâmicas de
poder sobre às transexualidades tendo como marcadores de diálogo a raça e dispositivos de opressão na arte. O
grito, como uma forma de resistência, coloca em agenciamento “estruturas” de subjetivação que compõem
cartografias “trans específicas” em espaços hegemônicos. É deste modo que surge o devir selvagem; aquele que
ao devorar os processos assimétricos que lhe assujeitam, cria mundos possíveis operando fissuras nas
hegemonias e construindo redes de afeto e modos de existir.

PALAVRAS-CHAVE: Transexualidades. Raça. Gênero. Grito. Imanência.

ABSTRACT
From a performance that took place in 2016, yelling operates as a war machine (Deleuze and Guattari, 2012)
capable of organizing a collective that mobilizes a pack, so that the transsexual experience is understood as
power, never as madness. The objective of this work is to reflect on some power dynamics on transsexualities,
having as markers the dialogue between race and oppression dispositives in art. Yelling, as a form of resistance,
puts into connection "structures" of subjectivation that build up "trans-specific" cartographies in hegemonic
spaces. It is how becoming wild arises; the dispositive that devouring the asymmetric processes that surround
the existence, creates possible worlds by operating fissures in hegemonies and building networks of affection.

KEYWORDS: Transsexualities. Race. Gender. Yelling. Immanence.

RESUMEN
A partir de una performance realizada en 2016, el grito opera como máquina de guerra (Deleuze y Guattari,
2012) capaz de agitar un colectivo que moviliza una manada, de modo que la experiencia transexual sea
entendida como potencia, jamás como locura. El objetivo de este trabajo es reflexionar sobre algunas dinámicas
de poder sobre las transexualidades teniendo como marcadores de diálogo la raza y dispositivos de opresión en
el arte. El grito, como una forma de resistencia, coloca en agenciamiento "estructuras" de subjetivación que
componen cartografías "trans específicas" en espacios hegemónicos. Es así que surge el devenir salvaje; el que

Submetido em: 03/02/2019 Aceito em: 26/02/2019 Publicado em: 01/06/2019

1
Bacharel em História da arte, mestre em Ciências Humanas com ênfase em história, teoria e crítica da cultura e
doutorando em comunicação.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 51 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39916

al devorar los procesos asimétricos que le asuje, crea mundos posibles operando fisuras en las hegemonías y
construyendo redes de afecto y modos de existir.

PALABRAS CLAVE. Transexualidades. Raza. Género. Grito. Inmanencia.

FALAR, OUVIR E GRITAR SÃO VERBOS, É AÇÃO: UM BREVE PANORAMA

E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as


implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados
[...] que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo
vai falar, e numa boa.

Lélia Gonzalez em Racismo e sexismo na cultura brasileira

Não venho armado de verdades decisivas. Minha consciência não é


dotada de fulgurâncias essenciais. Entretanto, com toda serenidade,
penso que é bom que certas coisas sejam ditas. Essas coisas, vou dizê-
las, não gritá-las. Pois há muito tempo que o grito não faz mais parte
da minha vida.

Frantz Fanon em Pele negra, máscaras brancas

Em Peles negras, máscaras brancas, Fanon (2008) aponta a necessidade de superar o


colonialismo em todas as suas dimensões, inclusive em seus tentáculos epistemológicos. Para
ele, não basta conhecer o mundo, “mas transformá-lo” (p.33) em prol de um novo
humanismo, aquele onde a epidermização da inferioridade (FANON, 2008) não seja algo
tolerável. Assim, aponta para a necessidade de “dizer coisas”, mesmo que essas possam
incomodar. Esse trabalho segue a perspectiva fanoniana; o que se busca aqui é produzir uma
historiografia da arte capaz de ir contra inconscientes coloniais (ROLNIK, 2015) que, entre
outras coisas, buscam deslegitimar e, em certo sentido, inferiorizar e exotificar a intersecção
entre gênero e raça no que diz respeito fundamentalmente às minhas experiências como uma
estudante de história da arte.

Embora Fanon diga que não gritará, o que se enuncia, na verdade, é algo imanente. É que o
grito nem sempre é algo que irrompe nossos pulmões e ativa nossas cordas vocais: antes, é

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algo com potência de desterritorializar e provocar abalos, mesmo que singelos, em estruturas
hegemônicas. Em outras palavras, o grito explode numa linha de fuga (DELEUZE e
GUATTARI, 1995) e mergulha num plano de imanência (idem). Nessa perspectiva, a obra de
Fanon ecoa na qualidade de som estridente que incomoda, que produz fissuras, que,
definitivamente, desestabiliza o senso comum daqueles que durante séculos recorreram à
retórica do pigmento da pele para impingir ao negro não apenas a escravidão, mas, sobretudo,
o limbo da produção de conhecimento e o “apagamento” de sua cultura, sem que, no entanto,
Fanon precise “gritar” pois se trata de um grito-dito, “silencioso”. Nesse caso, o grito assume
o papel da escrita e dilata-se por diferentes meios, inclusive tomando nossos corpos como
livros, materializando a escrita nos sabores e dissabores de nossa carne. Isso fica evidente ao
longo do livro em que, em diversos momentos, Fanon desarticula a noção de grito dos
negros2, deslocando seu sentido. É deste modo que o grito irrompe a loucura (princípio de
inferiorização) e entra num agenciamento de potência, transformando-se em arma de guerra
(DELEUZE e GUATTARI, 1995), em ferramenta nômade (DELEUZE e GUATARRI,
2012), em algo que precisa ser dito (ou gritado) de forma serena. Vemos também em Lélia
Gonzalez (1984) o mesmo princípio ou recurso de fazer ruir “discursivamente” opressões
revelando a potência antropofágica de agenciar alternativas em prol do tipo de “humanismo”
que Fanon defende. Lélia nos aponta, neste caso, que o subalterno sempre falou, indo de

2
Em três passagens fundamentais do livro, Fanon (2008) articula o grito a uma forma legítima do negro se
manifestar contra as opressões que lhe recaem. Percebe-se, nas passagens a seguir, a maneira magistral como
Fanon desarticula a noção do grito dos domínios da loucura, dispositivo de inferiorização normalmente utilizado
para se desqualificar a alteridade, diz ele; “Não sei, mas afirmo que aquele que procurar nos meus olhos algo que
não seja uma interrogação permanente, deverá perder a visão: nem reconhecimento nem ódio. E se dou um
grande grito, ele não será nada negro. Não, na perspectiva adotada aqui, não existe problema negro. Ou pelo
menos, se existe, os brancos não se interessam por ele senão por acaso. É uma história que se passa na
penumbra, e é preciso que o sol transumante que trago comigo clareie os mínimos recantos” (p.43) e “Sempre
haverá um mundo – branco – entre vocês e nós... Essa dificuldade que tem o outro de liquidar definitivamente o
passado. Diante dessa esclerose afetiva do branco, é compreensível que eu tenha decidido dar meu grito negro
(p.113) e “Após ter sido levado aos limites da autodestruição, o preto, meticulosa ou tempestuosamente, vai
saltar no “buraco negro” de onde partirá “com tal vigor o grande grito negro que estremecerá os assentamentos
do mundo”” (p.167). É importante frisar que Fanon foi um psiquiatra, deste modo, a questão da loucura, como
possível método de hierarquização entre brancos e negros é um dispositivo de poder forjado. Logo, o “grito
negro”, em Fanon, nada mais é que uma sátira, uma “estratégia” para inverter posições e pontuar, ou melhor, de
trazer à luz que a “inferioridade” do negro nada mais foi que uma construção do branco. Fanon deixa isso claro
ao dizer que a “civilização branca, a cultura europeia, impuseram ao negro um desvio existencial. [...] aquilo que
se chama de alma negra é frequentemente uma construção do branco” (p.30).

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encontro à máxima de Spivak em Pode o subalterno falar?. Muito embora num primeiro
momento seja difícil associar o grito ao ato de falar, o que essas obras demonstram ter em
comum é justamente é prerrogativa de se inserirem nas lacunas deixadas pela história e ecoar
seus devires selvagens como a força ensurdecedora de um grito. O enunciado em Lélia é
afirmativo, não se trata mais de pedir uma autorização para falar, o que está em ação é um
caráter combativo, “e numa boa”, ou seja, Lélia joga por terra o cânone cartesiano “penso,
logo existo” e o contrapõe com o “vou falar, eu (r)existo”. Essa prerrogativa “selvagem” se
agencia à potência do grito (não como desespero); agora são potentes ondas de resistência,
ressignificação e combate para que se escreva e se produza outras cartografias, cartografias da
imanência, ou seja, da experiência do vivido pelos seus protagonistas.

Cunhambebe já havia indicado como deveríamos fazer ao afirmar; “sou uma onça, está
gostoso” 3
ainda no século XVI, operando, assim, o agenciamento antropófago do devir-
selvagem. Mais tarde, esse know-how foi “reatualizado” por Oswald de Andrade (2016), de
modo que nossas ações, sejam elas epistemológicas ou não, nos conduzam à superação de
opressões que nos capturam historicamente e culturalmente. Esse trabalho se inscreve nessa
perspectiva. Em certo sentido, trata-se de um relato pessoal onde busco refletir através de um
“academicismo tupiniquim” – sem deslegitimação do termo – as forças que me fizeram gritar
na academia e na vida. Busco mostrar como aos poucos fui percebendo a potência do grito e
como este trabalho e uma performance que realizei em 2016 se localizam no duplo
agenciamento grito-vida. Muitas vezes para uma mulher transexual negra existir num espaço
de privilégio, onde seu corpo é duplamente negado, não lhe resta outra opção a não ser gritar.
É nessa dinâmica que se coloca aquilo que chamo de cartoescrita, uma escrita cartográfica de
si que busca revisitar afetos, mapeando mundos abstratos, materiais e objetivos que vão se
compondo na medida em nossas vivências atravessam zonas distintas de intensidade
(ROLNIK, 2016) e criando realidade; esse trabalho é, portanto, a cartoescrita de um grito.
Gênero, raça, colonialismo e sexualidade devem inevitavelmente ser enfrentados do ponto de
vista interseccional e todo o esforço nesse trabalho gira em torno dessa interssecionalidade

3
Ver Hans Staden, 1930 p. 109

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para refletir questões que nos capturam enquanto “sujeitos” na busca pela intensa imanência
do viver/vivido, para não exaurir a noção de (r)existência.

UM MÉTODO POSSÍVEL?
O mundo tornou-se caos, mas o livro permanece sendo imagem do
mundo, caosmo-radícula, em vez de cosmo-raiz. Estranha
mistificação, estado livro, que é tanto mais total quanto mais
fragmentada. O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma
ideia insípida. Na verdade, não basta dizer Viva o múltiplo, grito de
resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou
mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o
múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao
contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das
dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno
faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único
da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Um tal sistema
poderia ser chamado de rizoma...

Gilles Deleuze & Féliz Guattari, Mil Platôs v.1

Me peguei imaginando que tipo de metodologia deveria adotar, as opções: mergulhar nas
metodologias do campo de formação (pois também estou pensando processos artísticos) ou
me permitir “divagar” por outras epistemologias que pudessem me ajudar a produzir um
outro tipo de escrita; uma escrita de si sócio-histórico-cartográfica. Aos poucos fui
esbarrando em uma outra questão; como escapar de dicotomias? Talvez seja preciso
reconhecer que elas estão dadas e que devemos lidar de maneira a extrair delas um problema
para, enfim, (tentar) superá-las. Assim, minha proposta se aproxima muito mais de uma
“cartografia sentimental” (ROLNIK, 2016), onde busco revisitar certos afectos (idem) para
compor fluxos possíveis, pois, a
cartografia, nesse caso, acompanha e se faz o mesmo tempo que o desmanchamento
de certos mundos – de sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que
se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos
tornaram-se obsoletos (ROLNIK, 2016, p. 23).

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 55 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


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Assim, a cartografia é aqui um fazercomcorpo, uma geopolítica da escrita, para pensar o


binômio “nós-mundo”. O compromisso cartográfico é com a micropolítica, é pensar
processos de subjetivação. Tendo como ponto de partida o “mundo em mim”, optei então por
chamar provisoriamente de “cartoescrita” um tipo de escrita de si que tem como ferramenta
as idiossincrasias cartográficas, transversalizando outros métodos (empírico, descritivo,
etnográfico, histórico) pois, creio, a cartografia é antes de tudo um dispositivo de enunciação
coletiva (DELEUZE e GUATTARI, 2015).

O QUE VEM PRIMEIRO, TRANSEXUALIDADE OU RAÇA? SOBRE


CISGENERIDADES E CONSTRUÇÃO DA DIFERENÇA

[...] eis que me descubro objeto em meio a outros objetos


Frantz Fanon em Pele negra, máscaras brancas

Há uma verdade; quando você não faz parte de um grupo privilegiado, recaíra sobre seu
corpo e sua subjetividade o desprezo (FANON, 2008; GONZALEZ, 1984; NASCIMENTO,
2017) já tinham nos dito. Você é lançado em um “outro mundo”; o mundo necropolítico
(MBEMBE, 2018) onde há não apenas mortes físicas, o mundo estranho da curiosidade (que
leva à proibição do afeto) e abjeção (que subalterniza a existência). Curiosidade pois se
indagarão como você, qualquer coisa abjeta – algo inominável –, pode frequentar os mesmos
espaços (como aeroportos, universidade etc.) e desprezo pois jamais reconhecerão você como
sujeito de direito, possuinte de legitimidade co-existencial; para muitos – e muitos mesmo –
trata-se de “algo” que precisa ser eliminado, extirpado do convívio social instituído pela
cisnormatividade (SILVA, 2016). Com efeito, você aprenderá a ler os olhares e o tipo de
sentimento que sua presença causa (FANON, 2008). Assim, você entenderá que o mundo é
dividido em duas grandes categorias; “Nós” – cisbrancoheterossexuais – e “Outros” –pretos,
trans etc.; o lixo. É assim, pois, que você experimentará o mundo: sempre um problema a ser
“entendido” e, no melhor dos casos, evitado.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 56 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


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Esse mundo – cisbrancoheterossexual – constrói códigos calcados numa norma ficcional de


gênero e sexualidade, como pressupostos de inteligibilidade (BUTLER, 2016), e também a
partir da ficção do mito da democracia racial e nos operativos de classe para produzir sentido
existencial. De modo que você só possuirá inteligibilidade social se for capaz de
corresponder, entre outras coisas, prerrogativas ficcionais de coerência, manutenção e
controle. Fanon (2008), ao relatar sua experiência em um “novo mundo”, diz que
No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu
esquema corporal. O conhecimento do corpo é simplesmente uma atividade de
negação. É um conhecimento em terceira pessoa, em torno do corpo reina uma
atmosfera densa de incerteza (p.104)

Mas como produzir inteligibilidade se você já é a priori um outsider? Ao relatar a experiência


vivida do negro, Fanon indica que há um “em casa” (onde a construção de si é permeada por
iguais e o mundo se torna mais “leve”) e um “fora de casa”, onde todas as suas ações serão
balizadas por complexos sistemas de verificação processual, ou seja, gênero, raça e classe
são, fundamentalmente, ferramentas de legitimidade, civilidade e de humanidade; o
complexo de inteligibilidade. À margem disso só pode haver “aberrações”, monstruosidades
(FOUCAULT, 2010). A experiência transexual negra entra nessa última engrenagem como
um os mecanismos de exclusão remanescentes do paradigma colonial. É que transexualidades
e negritudes4 são “defeitos” demais para um único corpo, é monstruosidade em excesso,
assim, o “mundo branco [e cisgênero, grifo meu], o único honesto, rejeita minha participação”
(FANON, 2008, p.107). Transexualidade e negritude, enquanto marcadores sociais da
diferença, são dispositivos de produção de assimetria social e se inscrevem numa pluralidade
de existências, inclusive na minha. A pergunta “qual marcador você percebeu com mais força
no seu corpo; raça ou a transexualidade?”, feita por uma amiga, disparou em mim uma série
de questões não tão bem resolvidas. Buscando responder tal pergunta, senti que era preciso

4
No plural porque, conforme aponta Rodrigo Borba (2016), não existe apenas um tipo de transexualidade. Da
mesma forma que não existe apenas tom de pele de negro e um modo de ser negro, sendo a experiência negra
atravessada por um comum que, em geral, seria o racismo. Sugiro a leitura do texto “Negros de pele clara” de
Sueli Carneiro (2011).

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 57 Jan/Abr. 2019 ISSN 2594-9004


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mergulhar nos meu afectos (ROLNIK, 2016) afim de revisitar cartografias e, inevitavelmente,
construir outras.

Nasci numa das muitas favelas do Rio de Janeiro, em uma família miscigenada. Embora
tivesse referência brancas no meu seio familiar, toda minha construção social e identitária
foram ao redor dos negros e a cor da minha pele denuncia esse fato, eu só precisava descobrir.
Na favela, arrisco dizer, 99% dos meus vizinhos eram pretos. No entanto, a raça não era uma
“questão”. Em geral, compartilhávamos as mesmas experiências de violência; o nosso “em
casa”. Nossas peles não nos eram estranhas, tão pouco nossos cabelos. Nossos pés corriam
descalços pelas vielas, erámos crianças pretas que não conheciam as idiossincrasias de sua
própria raça porque entre os pretos e pobres a negritude nunca foi questão que nos
diferenciava socialmente de nós mesmos. Só “descobríamos” nossa “diferença” quando o
Estado intervinha em nossas vidas através da força policial fosse invadindo nossas casas,
fosse revirando nossas mochilas, fosse batendo nos nossos pais. Muito embora a raça não
fosse uma questão, ser uma criança efeminada sem dúvidas gerava muitos conflitos. Comecei
a notar algo diferente não porque eu me sentisse diferente, mas porque tal diferença era-me o
tempo todo jogada na cara, desde muito cedo. A “generificação colonial” dos corpos exige
que o comportamento gire em torno de pressupostos culturais produzidos e alimentados no
interior de regras incessantemente repetidas (BUTLER, 2016) a partir da conformação
genital; “Roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros” (ANDRADE, 2016,
p. 88)... fábrica de “homens” e “mulheres”. Assim, percebi que diferença é socialmente
produzida. Foi em função de um dispositivo de opressão assimetricamente imposto às
mulheres cis, a misoginia, que percebi que a minha transexualidade pesava mais que minha
raça. Mas quando precisei enfrentar o mundo para além das vielas da favela, tanto a minha
transexualidade quanto a minha raça foram marcadores fundamentais de exclusão; nos
mercados e lojas sendo vigiada por seguranças (marcador racial) e nas agressões físicas e
verbais em função da imagem do meu gênero em conflito (marcador de gênero).

Contudo, o “marcador” da cisgeneridade tem suas nuanças e rupturas microfísicas. Com


efeito, a cisgeneridade passa também pelo marcador racial, ou seja, ela também possui suas

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assimetrias. Todo o mergulho que realizei em minhas próprias cartografias inevitavelmente


resvalava não apenas nos dispositivos de transexualidade e raça, mas sobretudo no de
cisgeneridade. Creio, portanto, ser importante alargar o conceito de cisgeneridade na medida
em que a hegemonia social seguirá critérios inteligíveis de raça, classe, sexo e gênero. Angela
Davis (2016) nos conta que a escravidão submeteu pessoas negras, especialmente as mulheres
cis, a um regime brutal de anulação da humanidade. Consideradas coisas, meras mercadorias,
as mulheres negras além de terem que operar sua força de trabalho, estavam submetidas a
outra forma cruel de violência; a institucionalização do estupro (instrumento econômico de
reprodução). Deste modo, a desumanização das pessoas negras cisgêneros não era apenas
uma ferramenta política, era, sobretudo, um mecanismo de efetuação econômica. O fim da
escravidão não cessou a desumanização das pessoas de cor, Preciado (2016) demostra os
métodos violentos e ‘objetificantes’ da indústria farmacêutica sobre os corpos das mulheres
negras no desenvolvimento das pílulas anticoncepcionais. O autor mostra que a pílula não
surgiu apenas como “técnica de controle da reprodução, mas também para produzir e
controlar gênero e raça” (p.190, tradução minha) no caribe. Em outras palavras; tratava-se de
um projeto higienista tendo como pano de fundo o racismo institucionalizado na
colonialidade e as profundas assimetrias de gênero, classe e raça que capturam os corpos. Por
isso, o conceito de cisgeneridade deve fundamentalmente levar em consideração não apenas
performatividade de gênero (FAVEIRO e VIEIRA, 2015), mas igualmente as peculiaridades
das dinâmicas econômicas e raciais. Tal conceito emerge também como um marcador racial
vinculado à noção hegemônica de branquitude, sexo e poder, ou seja, as pessoas negras –
sobretudo as mulheres negras na favela – não acessam a cisgeneridade com a mesma
intensidade das pessoas brancas demonstrando, assim, o caráter, fraturado da cisgeneridade
dessas pessoas. Intersseccionalizando o conceito, temos a raça engendrada nos dispositivos de
poder com o gênero. Gênero e raça são dispositivos relacionais de modo que, pouco importa o
que vem primeiro; raça ou transexualidade, se no fundo os dispositivos que agenciam
processos de assujeitamento baseiam-se em dinâmicas de exclusão que, embora não sejam
semelhantes, tem como marcador dispositivos de poder que aqui é pensando através do

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conceito de cisgeneridade. A cisgeneridade “funda” a alteridade no paradigma pós-colonial5;


ela foi e continua sendo o dispositivo que constrói e delimita a diferença. Embora seja um
termo relativamente recente (SILVA, 2016), ao transferirmos sua noção para o domínio da
história, percebemos as dinâmicas assimétricas que se inscrevem no campo de atuação
“cisgenerificado”, onde o poder é instituído a partir do binário normal-anormal. É nesta seara
de enfretamento e produção da cisgeneridade que também emergem dinâmicas de exclusão da
raça e de gênero, enquanto marcadores sociais.

SOBREVIVENCIA E MANUTENÇÃO DO COLONIAL-EM-NÓS

O colonialismo, antes de qualquer coisa, só obteve o seu “sucesso” graças a sua capacidade
de se inscrever nos corpos, de se introjetar nas mentes. Sob essa perspectiva o paradigma
colonial é um modo de subjetivação. Nunca se tratou apenas de uma estratégia econômica,
foi, sobretudo, um dispositivo fundamental de captura, efetivação e manutenção do status quo
através da exploração dos corpos e da subjetividade. Grada Kilomba em seu livro Plantation
memories: episodes of everyday racism (2010) apresenta um dos mais emblemáticos símbolos
coloniais e, consequentemente, da escravidão; a máscara do silenciamento não era apenas um
objeto que impedia pessoas escravizadas de se alimentar com cana-de-açúcar ou cacau para
matar a fome – violando, desta maneira, a propriedade e os bens do senhor levando-os à
punição – no campo simbólico, é um dos paradigmas coloniais. Para Grada Kilomba (2010),
A máscara representa as políticas sádicas de conquista e dominação e os cruéis
regimes de silenciamento dos então chamados “Outros”: Quem pode falar? O que
acontece quando falamos? Sobre o que podemos falar? (p. 16, tradução minha)

Nesse sentido, a boca desempenha um mecanismo vital na relação intersubjetiva, mas a boca,
ela mesma, é apenas parte de um todo que representa o corpo; nos alimentamos através da

5
Pensando o pós-colonialismo como o encerramento do período dito colonial, muito embora saibamos que a
colonialismo não se encerrou, mas foi “ressignificado” em outras praticas de sujeição econômica, corporal,
territorial etc.

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boca, mas é também por ela que nos comunicamos6 e, deste modo, nos tornamos humanos.
Tomando essa perspectiva, o ato de silenciar é crucial para manutenção do modelo colonial: o
animal que não se comunica não pode ser considerado humano. Assim, impedidos de comer e
de falar – e de gritar – pessoas escravizadas sucumbiam ao violento regime imposto pela
estrutura colonial e todos os seus artifícios. A boca tornou-se, segundo Kilomba, um dos
dispositivos mais sofisticados de opressão porque centralizava os mecanismos de controle e
assujeitamento que historicamente vem sendo reatualizados como técnica de repressão.
Silenciados, os corpos e as subjetividades de pessoas escravizadas poderiam ser molestados
ao livre sabor do sadismo de seu senhor.

Na contemporaneidade, a máscara de silenciamento foi substituída pelo laudo diagnóstico


imposto às pessoas transexuais. Criado sob os domínios da cisgeneridade, o laudo representa
o modelo de saber e de legitimidade sobre os corpos trans. É ele que define quem pode ser
submetido à cirurgia de transgenitalização ou qualquer outra cirurgia de adequação de
fenótipo condizente com o gênero que uma pessoa trans se identifica. É ele também o
principal dispositivo que era reclamado pela justiça em processos de retificação civil7.
Trocando por miúdos; há uma relação direta entre a máscara de silenciamento e o laudo
diagnóstico pois ambos patologizam, ambos exprimem os silenciamentos, ambos
circunscrevem nossas subjetividades. Muito embora as pessoas trans falem, sua expressão só
se tornará inteligível se ela estiver nos moldes do roteiro previamente estabelecido pela
macroesturutra cisgênera na forma do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais
(DSM)8; os corpos trans não assumem seu próprio protagonismo. Quando o self9 não se

6
Muito embora não nos comuniquemos de modo exclusivamente verbal, existe inúmeras formas de
comunicação corporal, a performance e a dança provam isso.
7
Em agosto de 2018 o Supremo Tribunal Federal decidiu que as pessoas trans poderiam retificar nome e sexo
em seus registros de nascimento sem a necessidade de processo judicial, como era necessário até o referido ano.
Processo pelo qual eu e muitas amigas tivemos que nos submeter para ter a garantia do acesso a esse direito.
8
Recentemente a Organização Mundial de Saúde retirou a transexualidade do hall de doenças mentais.

9
Grada Kilomba defende que o “self” corresponde à categoria das pessoas brancas, ou seja; o que poderia ser
traduzido como uma categoria hegemônica em função da detenção do poder sobre a vida do negro. Neste artigo,
defendo que a hegemonia é sempre “cis” e essa cisgeneridade sempre foi branca. Seria preciso então liberar a

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efetiva, entra em ação o paradigma da alteridade. Conforme aponta Kilomba (2010),


a negritude serve como forma primária de alteridade, pela qual a branquitude é
construída. O “Outro” não é o outro per se; ele se torna através de um processo de
absoluta negação (p.19, tradução minha).

É no interior desse modelo onde se reatualizam as estruturas coloniais que se escrevem nos
corpos de pessoas negras e trans fazendo-as mercadorias. Mais que isso, se efetua a
manutenção do status quo nas dinâmicas das estruturas econômicas através do binarismo de
classe10; a cisgeneridade torna-se um modo de subjetivação dominante. Seja através das
políticas governamentais em saúde, educação e propriedade, seja através das relações
intersubjetivas forjadas e sustentadas por “manuais” de saber11 que marcam a alteridade e
criam, literalmente, uma atmosfera de recusa, patologização e criminalização dos corpos e das
subjetividades negras e trans. É, antes de tudo, no corpo onde se atualizam os mecanismos
coloniais-em-nós de captura. Assim, surgem dispositivos afim de controlar os corpos; os
manuais em paralelo à lei, os discursos dos saberes e a produção verdade (FOUCAULT,
2010). Captura-se o inconsciente, produz-se políticas que visem o corpo como ferramenta de
produção econômica, funda-se a alteridade... todos esses processos sedimentam-se na
incessante relação entre exterioridade e interioridade, entre micropolítica e macropolítica
(DELEUZE e GUATARRI, 2012) a tal ponto em que nós introjetamos o autocontrole. Uma
política perpassada pelo medo incessante de incomodar o mundo cisheterocêntrico. Se
rompermos esse limite, nossos corpos sofrerão as consequências.

O grito traz à luz todas essas opressões, pois foi também através de sua potência que pessoas
escravizadas compartilhavam suas dores nos porões dos navios negreiros, ao cantarolar dos
chicotes em suas costas, durante as inúmeras violências sexuais... O grito atravessa o tempo e
nos atinge em cheio nas favelas, nas prisões ou nas esquinas de uma rua escura onde as
travestis muitas vezes são mortas. Somos os reais protagonistas da história, sem nós vocês

potência de criação (ROLNIK, 2016) para que o protagonismo trans-negro constituísse um self e “descolasse”
do mundo da alteridade. Eis o que busco defender aqui: uma inversão da noção de self.
10
Não à toa a maior parte das pessoas que vivem nas favelas são negras.
11
Aqui faço referência ao racismo epistemológico criado a partir de figuras como Cezare Lombroso e outros,
além do DSM.

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não teriam sequer sua indústria12, sem nós o projeto econômico exploratório do paradigma
colonial não teria adquirido as proporções da expansão pretendida pelo europeu. Precisaram
nos escravizar, nos patolozigar, pretendendo-se superiores, mercantilizando nossos corpos,
mas sempre houve resistência. Com efeito, o europeu criou o racismo, a luta de classes13 e
nos trouxeram a violência, mas os violentos somos nós? Os perigosos somos nós? Os
anormais somos nós? Como no passado, o grito ainda ecoa nos becos e alamedas das favelas
pelo Brasil afora. Basta a polícia subir o morro e impor sua truculência histórica e colonial.
Eu me lembro de na infância ter de gritar inúmeras vezes ao perceber que nossas vidas não
valiam nada. Lembro que o grito sempre foi coletivo e ecoava quando nossas mães
desesperadas se contorciam como gatos selvagens entre as vielas para nos salvar dos tiroteios
constantes, quando precisavam produzir mais barulho amontadas no chão para nos proteger
das balas perdidas e do tilintar das balas de fuzil14. Quantas vezes vimos nossos amigos e
parentes serem mortos por essa violência histórica e estrutural, então; como não gritar? Nós
tivemos que crescer meio ao trauma que o projeto de poder colonial produziu e ainda produz
(FANON, 2008; KILOMBA, 2010) e somos nós os loucos? Somos nós os criminosos? Somos
nós os desviados?

Submersos no caldeirão altericída dessa baixa antropofagia (ANDRADE, 2016), esses corpos
perdem legitimidade quando chegam na universidade; um dos templos da cisgeneridade
histórica15. Aqui, nós continuamos sendo falados, pesquisados, assujeitados pois é preciso

12
Segundo Eric Williams (2012) os lucros adquiridos com o tráfico de pessoas negras escravizadas financiaram
a Revolução Industrial.
13
Muito embora o projeto colonial tenha se iniciado com a exploração e dominação dos índios e posteriormente
com brancos pobres e criminosos, sugiro aqui a leitura do primeiro capítulo do livro de Eric Williams intitulado
Capitalismo e escravidão (2012). Quando os europeus entenderam que mão obra escrava era a mais adequada
para construir suas colônias dado o custo da mesma, os negros sempre foram considerados uma classe à parte,
uma classe sem direitos e garantias legais que não fosse exclusivamente o trabalho exaustivo que por fim
conduzia à morte.
14
Eu lembro que muitas vezes vovó – uma negra alta de origem angolana – gritava louvores exaurindo seu
pulmão e sua força para que suas netas, não ouvissem o som dos tiros e os berros ensandecidos dos policiais
espancando nos nossos homens – que não podiam gritar sob pena de serem ainda mais machucados – porque
achavam que todos eram bandidos.
15
Facilitar o acesso de negros, pobres e indígenas ao ensino superior, à faculdade pública, foi um dos motivos
que levaram ao ódio e rancor das classes mais favorecidas ao ex presidente Lula.

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“compreender” o outro, nunca “nós” mesmos, o self é uma categoria útil de análise histórica.
Na dinâmica colonial é fundamental que as hierarquias históricas sejam respeitadas e dessa
maneira nossos corpos e subjetividades continuam sendo tomados como objetos, do mesmo
modo que nossas histórias e nossas vidas são transformadas em números, meros dados
acadêmicos, estatísticas que enriquecem os livros que, por sua vez, enchem as prateleiras das
bibliotecas e assim continuam sendo lidos e “problematizados” na estrutura cisgênera. Em
suma, o paradigma colonial reatualiza sua “força-forma” ampliando multidimensionalmente
seu modo de ação em no inconsciente; da práxis acadêmica aos fluxos relacionais de classe,
do modelo do “cistema” judiciário à macropolítica institucional. O corpus da alteridade
sempre esteve bem delimitado. Logo, o grito inscreve-se como uma forma de tentativa de
aniquilação desses processos, pois denuncia a violência que se inscreve em nossos corpos.
No item a seguir, verificaremos como o grito se efetua como um devir-selvagem, efetivando
uma cartografia estética a partir de uma performance que busca revisitar as assimetrias e
singularidades que se inscrevem no corpo negro transexual. É que arte, em seu processo de
criação, está vinculada à vida. Defender processos artísticos livres das amarras do
colonialismo-em-nós é defender a vida em sua potência contagiante. Embora a história da arte
tenha estado durante séculos à serviço da hegemonia, ele também efetivou “n” linhas de fuga.
O que se coloca a seguir é justamente isso; como agenciar uma linha de fuga que transborde o
comum? Em que dimensão o grito se inscreve nesse fluxo? Como convocar uma matilha à
guerra? Como podemos “antropofagizar” essas dinâmicas cisheterocêntricas, problematizadas
acima, pela arte?

DEVIR-SELVAGEM E POLÍTICA DO GRITO: MICROPOLÍTICAS PELA


INTENSA IMANÊNCIA DO VIVER

A obra “O Grito” de Munch nos coloca diante de um “conflito visual” denso e intrigante. As
cores quentes compõem um cenário de aparente desespero que denuncia a aflição vivenciada
por seu personagem, que não sabemos bem identificar se se trata de um homem ou uma
mulher. A figura andrógina destacada no quadro tem as suas mãos na cabeça enquanto todo o

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fundo do quadro é repleto de um devaneio intensamente colorido dando as cartas que o grito
desestabiliza tudo ao redor ou, é antes, a própria desestabilização provocada pelo meio, uma
reação direta a ação que o meio provocou. Mas o que é esse grito que desestabiliza não
apenas o/a personagem? É dor? É angústia? Aflição? Há um elemento “invisível” na obra, a
dizer; a potência micropolítica que ela efetua entre o que se vê e o que se sente em relação à
loucura, nos moldes da relação de poder “nós” e “outros”.

No que tange esse modelo relacional, a constituição do saber, enquanto ferramenta de


produção de verdade, que considerou a transexualidade uma doença mental e a negritude uma
monstruosidade, operacionalizam aquilo que eu chamei de “inteligibilidade somática” 16 que,
em linhas gerais, seria o encadeamento supostamente natural entre sexo, gênero e orientação
sexual coerentes às normas sociais, a tríade básica da cisheteronormatividade. Assim,
socialmente, torna-se aceitável classificar a alteridade, impingindo-lhe algum tipo de
patologia; louco, doente etc. Michel Foucault foi um do filósofos que mais se debruçaram
sobre o tema das relações de poder, preocupado em refletir sobre o modus operandi das
relações de poder que constroem a figura do monstro a ser combatido (FOUCAULT, 2010), e
sobre as idiossincrasias operacionais das categorias “mesmo” e “outros” em As palavras e as
coisas (1999), o filósofo, seguindo o pensamento de Jorge Luís Borges, reflete sobre os
desdobramento das categorias e classificações. É que nossa sociedade também opera a partir
de certa arbitrariedade classificativa que escancaram as relações de poder que circunscrevem
nossos corpos e nossas subjetividades, e é nesse ponto que tanto o pensamento de Foucault
quanto o do Gilles Deleuze e Félix Guattari são fundamentais para esse trabalho e para a
performance que realizei em novembro de 2016 na UFRJ. Em linhas gerais, tudo o que
escapa às estruturas hegemônicas compõe uma ideia de alteridade. Logo, o grito, aquilo que
talvez só os loucos e enfermos produzem, não pode se considerado como parte de uma
sociedade estruturalmente higienista, colonial, racista e cisheterocentrada. O grito é o som dos
loucos, dos outros, de uma alteridade não desejável, não aceitável, arbitrariamente
classificável. Talvez seja esse o grito da figura andrógina de Munch. É por isso que o grito

16
ver https://ideiasemprocesso.blogspot.com.br/2016/06/palestra-no-lancamento-do-livro-o.html

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aqui assume uma especificidade micropolítica. Uma micropolítica capaz de produzir abalos,
capaz de fissurar e romper com linearidades, que efetua uma potência movendo tudo ao redor
tal qual em Munch. Essa compreensão do grito me veio à luz quando li um desabafo de
Tatiana Lionço sobre sua luta na Câmara dos Deputados17. Lionço denunciava aquilo que ela
classificou como estupro moral produzido pela deslealdade de setores conservadores e
reacionários da política brasileira. Inspirada por ela, comecei a observar o quanto eu precisei
gritar durante minha vida: na infância, literalmente gritava para me defender de
espancamentos na escola, de violências sexuais ou para envergonhar alguém que produzisse
bullying comigo. O grito sempre me acompanhou, sempre funcionou como uma válvula de
escape, sobretudo quando ingressei na faculdade. Na UFRJ enfrentei um abaixo-assinado
produzido por estudantes da Escola de Belas Artes (EBA) que buscava me impedir de usar o
banheiro feminino: gritei! Para resistir contra professores que se recusaram a aceitar o nome
social: eu gritei! Nesse sentido, o grito efetiva um agenciamento animal, compondo um
devir-selvagem, máquina de guerra (DELEUZE e GUATARRI, 2012). Ele é uma forma-
resistência (um outro tipo de força e de poder) que desliza pela opressão denunciando-a; o
grito é uma estratégia de sobrevivência ou, antes de mais nada, trata-se de um intenso
mergulho na potência de um plano de imanência pulsante. Se gritamos é porque vivemos, é
porque nossa carne vibra à reação de uma violenta ação. A reação a ele, no entanto, é quase
sempre esvaziada: “você é uma louca”. Trata-se da velha estratégia de desqualificar o plano
do vivido.

A patologização (louco/criminoso) da alteridade é o método mais disputado da categoria


“nós-normais” para lidar com micropolíticas que escancaram a vil mecânica das hegemonias.
A aposta do grito surge como como um tema menor (DELEUZE e GUATTARI, 2015) onde
o menor é aquilo com potência de se inscrever às margens de estruturas hegemônicas para
operar sua força de desterritorialização, “coeficientes de desterritorialização” (Idem, p. 33)
que se efetuam nos agenciamentos dos abalos. O grito nessas circunstâncias não é arma dos

17
ver aqui http://cebes.org.br/2013/03/por-que-comecei-a-gritar-na-camara-dos-deputados-e-tempo-de-guerra-
moral-no-brasil/

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loucos, pelo contrário; é instrumento dos passantes (MBEMBE, 2018), dos nômades, das
máquinas de guerra, daqueles e daquelas que anseiam visibilidade, direitos, legitimidade. O
grito é parte de um ritual antropofágico; aquilo com que se pretende deglutir, com os saberes-
do-corpo (ROLNIK, 2015), as normas estruturantes e os postulados assimétricos socialmente
instituídos. Não há nada de “louco” no selvagem, o louco foi uma construção hegemônica que
aqui torna-se fluxo de desterritorialização; ser selvagem é uma aposta de vida! Pensando a
partir dessa micropolítica, decidi cartografar o agenciamento de minha transexualidade com
minha negritude, colapsando o “cistema-mundo” reativado na EBA e foi assim que surgiu,
em 2016, uma performance a qual intitulei de Biofilia: um ritual autoetnográfico do desejo.
Meu objetivo era compor uma experimentação estética que me conduzisse (e,
consequentemente, os telespectadores) à revisitação dos marcadores sociais de uma matilha.
De modo, que o “resultado” fosse algo entre o estético/político e sentimental (ROLNIK,
2016), engravidando o debate a cerca da produção de gênero e violência de modo
multidimensional. Embora eu estivesse “me experimentando”, no fundo o que estava em ação
era uma experimentação coletiva das transexualidades e do dispositivo de raça em seu vetor
ético (ROLNIK, 2015), através de uma “narrativa” interarte que nos permitia passear entre
elementos performáticos, musicais, técnicos e literários para que, assim, as diferentes
linguagens entrassem em agenciamento e efetuassem sua “contaminação” rizomática dos
corpos ali presentes, constituindo assim uma poética da selvageria, a poética do grito “sem
som”.

O corpo é o elemento central numa performance e, segundo David Lapoujade (2002), é aquilo
que não aguenta mais. Essa afirmação sintetiza a perspectiva micropolítica de se tornar
imanente através de cada movimento, uma vez que é no corpo onde se inscreve a dinâmica da
herança colonial que assujeita nossos modos de existir. Conforme aponta Foucault (1988), “lá
onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se
encontra em posição de exterioridade em relação ao poder” (pp. 104-105), ou seja, todos nós
temos poder e somente com ele é que podemos construir resistência. Os poderes são
assimétricos, mas eles se “retroalimentam” e é assim que a performance emerge como um

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“dispositivo experimental” (DESPRET, 2011) em seu devir-selvagem na medida em que “ter


um corpo é aprender a ser afetado” (DESPRET, 2011, p. 56), afetado em multiplicidade e
coletividade, como um grito que desterritorializa nossos tímpanos e ativa diversas sensações.
Trata-se de uma “narrativa” cartográfica que visa mapear as formas de resistência anticolonial
que se inscrevem em nossos corpos, devolvendo o protagonismo de pessoas trans negras às
suas próprias vozes, aos seus corpos e suas histórias.

A performance é dividida em três atos. No primeiro, há uma espécie de encontro com esse
“oculto” que é tanto a raça quanto a transexualidade. Tal encontro é disparado pelas
violências que atravessam esse corpo buscando dociliza-lo. Esse primeiro momento se
desenvolve em torno da experimentação ritual e ancestral que marcam os corpos e a cultura
negra tanto quanto as vivências trans. Num segundo momento, já em “posse de si”, começa a
experimentação de fármacos hormonoterápicos que precedem a cirurgia de “transição” de
gênero. O terceiro momento, se desenvolve em torno da torna do sexo, um lado operado o
vetor pulsante-desejante e outro as violências sexuais que deixam marcas de uma
“afetividade” tóxica em meu corpo. O uso desse corpo, passa indelevelmente pelo racismo e
pela transfobia, constituindo costuras na pele que o tempo não pode simplesmente rasgar. É
desse modo que se produz a cartoescrita: pelo vai-e-vém da agulha em nossa carne, marcando
para sempre nossa trajetória e compondo um livro “cartoescritamente” produzido. O devir-
negro não é o racismo, nem tão pouco o devir-trans é a transfobia; seus devires é a
selvageria18. O grito é uma forma de agenciar micropolíticas combativas pois, se gritamos, é
porque queremos nos fazer ouvir, mas ouvir-com-corpo-inteiro. Se a universidade ainda não
está pronta para abraçar tais intensidades, o problema não está nas pessoas que aí querem
frequentar, mas ao contrário; reside num problema histórico que, dada sua manutenção,

18
A noção de selvageria aqui é uma oposição radical ao conceito de humanismo que, entre outras coisas, forjou
um tipo de corpo e um tipo de moral. O humanismo tentou separar homens de animais, incluindo outros homens
na categoria de animal, costurando, deste modo, uma diferenciação singular entre humanos não europeus de
humanos europeus. Escrevi um texto recentemente, chamado Por uma vida anti-humanista, onde desenvolvo
melhor essas ideias. Ver em https://ideiasemprocesso.blogspot.com/2019/01/por-uma-vida-anti-humanista-ou-
sobre-um.html.

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empurrou para debaixo do tapete da invisibilidade os corpos trans-negros. A arte ocupa um


duplo papel; foi aí também que o cistema operou, mas é por aí também que ele pode ser
desestabilizado. “Ouvimos” gritos desterritorializantes ao longo de toda história da arte; de
uma assinatura, a um reflexo no espelho, de um manifesto a uma exposição. É que o tema do
gênero, através das mulheres, sempre gritou de algum modo. Biofilia surge para compor com
grito.

SÓ NOS AGENCIAMOS NAS COLETIVIDADES (REFLEXÕES FINAIS)

O corpo sempre se colocou no meio de todo processo histórico, capitalista-colonial. Foi no


corpo, antes de mais nada, onde os violentos processos constituintes da escravidão se
inscreveram e é onde atuam ainda o racismo e a transfobia. De algum modo, os gritos dos
nossos antepassados se materializam em nossas peles. Experimentá-lo é uma forma de
produzir afetos (ROLNIK, 2015) que agenciem linhas de fuga e possibilidade de mergulho
em um plano potente de imanência. O corpo é rizoma, um sistema aberto, que continua
efetuando novas conexões, desestabilizações, desterritorialização.
Embora o paradigma colonial continue exercendo sua força necropolítica, sempre haverá
resistência. Há a certeza de que cada vez mais ocuparemos espaços onde insistem em nos
caricaturar, nos tomar como objetos, como dados científicos, meros números para produção
do status quo hegemônico e sua produção de verdade ou onde se insistam no modelo
metafísico de representação da alteridade. Na arte, surgirá cada vez mais artistas negros e
trans com sede de gritar, de usar seu corpo como ferramenta de emancipação, de modo a
combater os estereótipos (NASCIMENTO, 2017) do “cistema-mundo” e seu duplo regime de
subjetivação (servidão e sujeição) através de seus maquinismos (LAZZARATO, 2014), como
foi acontecendo intensamente nesta década, precisamos de mais e mais, só assim
construiremos um novo e poderemos efetivar uma verdadeira revolução.

No fundo capitalismo e colonialismo não são instituições à parte, ao contrário; se confundem,


se completam, são interdependentes. Em suma, um não poderia existir sem o outro. Assim,

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seu “arrasto” perpetua assimetrias no tempo-espaço, sobretudo na dinâmica da produção de


saber. Os dispositivos de poder que surgem dessa conjunção, são frutos dos mesmos
desdobramentos institucionais que efetivam o sexismo, a homotransfobia e o racismo
(DAVIS, 2017) e, portanto, não é absurdo ampliar o conceito de cisgeneridade conforme
apresentado nesse trabalho. O grito é, desse modo, um vitalismo antropofágico na medida em
que liga, conforme um buraco de minhoca, dois universos atravessados pela opressão
histórica de seus corpos. Biofilia é uma mostra do quão perverso tal sistema pode ser, mas
também é uma ferramenta para um vitalismo do self desatado das dinâmicas de sujeição, um
vitalismo pela efetuação de si e do protagonismo de seu próprio corpo no mundo. Nesse
sentido, Biofilia é uma intensa imanência do viver. Que possamos ser protagonistas de nossas
próprias vidas, pois não devemos esperar que migalhas caiam da mesa [cis]branca (QUEBA-
BARRACO, 2016). O lixo vai gritar, e numa boa!

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TRANSGÊNEROS:
AINDA INCOMPREENDIDOS?
TRANSGENDER:
STILL MISUNDERSTOOD
TRANSGÉNERO:
AUNQUE INCOMPREENDIDOS

Erika Barbosa de Araújo1


Glaucia Lima de Magalhães Theophilo2

RESUMO
Este artigo retrata uma pesquisa sobre transgeneridade e sua compreensão. A expressão transgênero reporta-se
num termo que acolhe a união política entre os indivíduos com distinções de gênero incompatíveis às condutas
sociais caracteristicamente relacionadas a homens e mulheres “comuns” e que, como efeito disto, padecem de
intolerância. No Brasil, práticas de intervenção têm levantado diversos questionamentos psicológicos, legais e
sociais. No meio desta discussão, encontram-se os profissionais de psicologia que, como pertencentes a área de
saúde, devem estar preparados para dar suporte a esta parcela da população que, na maioria das vezes, está
envolvida em sofrimento psíquico. Assim, buscou-se investigar a forma como futuros psicólogos percebem o
fenômeno da transgeneridade, já que esta percepção pode influenciar suas práticas. A hipótese levantada foi de
que as atitudes de graduandos de psicologia face à identidade transgênero são baseadas na incompreensão do
fenômeno. O objeto de estudo foi ancorado no constructo de atitude da psicologia social. Os sujeitos foram 100
graduandos em psicologia do 1º ao 10º período da Universidade Estácio de Sá (campus Nova Iguaçu/RJ).
Utilizamo-nos de um questionário com escala likert de 5 pontos, para conhecer o grau de concordância quanto às
questões e produzir descrições quantitativas. Em seguida, a análise dos resultados apoiou-se no o ranking médio
(RM) de anuência dos itens dentro de cada categoria de atitudes relacionando-se ao modelo ecológico do
desenvolvimento humano. O ranking médio total do questionário foi de 3,97, o que demonstra uma aceitação da
transgeneridade.

PALAVRAS-CHAVE: Transgênero. Escala de atitudes likert. Graduandos de psicologia.

ABSTRACT
This article portrays a survey conducted about transgenderism and understanding. The term transgender refers a
term that welcomes political union between individuals of incompatible gender distinctions social behaviors

Submetido em: 17/01/2019 Aceito em: 05/03/2019 Publicado em: 01/06/2019


1
E-mail: / ORCID: enfaerika@hotmail.com
Instituição – País: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - Brasil
Formação e instituição: Mestre em Psicologia – UFRRJ
2
E-mail: / ORCID: glaucia.magalhaes@hotmail.com
Instituição – País: Universidade Estácio de Sá - Brasil
Formação e instituição: Bacharel em Psicologia - UNESA

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typically related to men and women "ordinary" and that because of this effect, suffer from intolerance. In Brazil,
intervention practices have raised various psychological, legal and social questions. Amid this discussion,
psychology professionals, as belonging to health are, should be prepared to support this part of the population
that, for the most part, is involved in psychological distress. Thus, we sought to investigate how future
psychologists realize the phenomenon transgenderism, as this perception may influence their practices. The
hypothesis was that the attitudes of undergraduate psychology against the transgender identity are based on the
phenomenon of misunderstanding. The study object was anchored in the construct attitude of social psychology.
The subjects were 100 students in psychology from 1st to 10th period of Estacio de Sa University (campus Nova
Iguaçu / RJ). We use them a questionnaire with Likert scale of 5 points, to meet the degree of agreement on the
issues and produce quantitative descriptions. Then the analysis of the results was based on the average ranking
(MRI) of the consent of items within each category of actions relating to the ecological model of human
development. The total average rating questionnaire was 3.97, which indicates an acceptance of transgenderism.

KEYWORDS: Transgender. Likert scale of attitudes. Psychology undergraduates.

RESUMEN
Este artículo retrata una investigación sobre transgeneridad y su comprensión. La expresión transgénero se
reporta en un término que acoge la unión política entre los individuos con distinciones de género incompatibles a
las conductas sociales característicamente relacionadas con hombres y mujeres "comunes" y que, como efecto de
ello, padecen de intolerancia. En Brasil, prácticas de intervención han levantado diversos cuestionamientos
psicológicos, legales y sociales. En medio de esta discusión, se encuentran los profesionales de psicología que,
como pertenecientes al área de salud, deben estar preparados para dar soporte a esta parte de la población que, la
mayoría de las veces, está involucrada en sufrimiento psíquico. Así, se buscó investigar cómo los futuros
psicólogos perciben el fenómeno de la transgeneración, ya que esta percepción puede influenciar sus prácticas.
La hipótesis planteada fue que las actitudes de los graduandos de psicología frente a la identidad transgénero se
basan en la incomprensión del fenómeno. El objeto de estudio fue anclado en el constructo de actitud de la
psicología social. Los sujetos fueron 100 graduandos en psicología del 1º al 10º período de la Universidad
Estácio de Sá (campus Nova Iguaçu / RJ). Se utilizó un cuestionario con una escala likert de 5 puntos, para
conocer el grado de concordancia en cuanto a las cuestiones y producir descripciones cuantitativas. A
continuación, el análisis de los resultados se apoyó en el ranking medio (RM) de anuencia de los ítems dentro de
cada categoría de actitudes relacionándose con el modelo ecológico del desarrollo humano. El ranking medio
total del cuestionario fue de 3,97, lo que demuestra una aceptación de la transgeneración.

PALABRAS CLAVE: Transgénero. Escala de actitudes likert. Graduados de psicología.

INTRODUÇÃO
A expressão transgênero é entendida atualmente como um termo “guarda-chuva”, a fim de
acolher uma união política entre todos os indivíduos portadores de distinções de gênero
incompatíveis às condutas sociais prevalentes. Esta definição passou a abarcar andróginos,
homens e mulheres heterossexuais que se expressam além dos estereótipos normais,
homossexuais masculinos efeminados, homossexuais femininas masculinizadas, travestis,
transexuais (tanto masculinos quanto femininos), drag queens, sujeitos que escolhem atender
a outros pronomes ou a nenhum, pessoas intersexuadas, e indivíduos distintos pertencentes a
algumas comunidades, como: as hijras da Índia, os maridos femininos da África, os mahu da

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Polinésia, as virgens juramentadas dos Bálcãs, e etc., todos divergentes ou transgressores de


gênero pré-concebidos (LANZ, 2014).
Pessoas transgênero que buscam a transgenitalização (cirurgia), ou incrementam uma
alteração do seu gênero social através de formas não cirúrgicas, ou desejam legalmente
adequar o seu registro civil ao nome e ao gênero com o qual se identificam, ou simplesmente
desejam passear entre os papeis de gênero estabelecidos socialmente, por exemplo, encontram
obstáculos desumanizadores para que lhes seja outorgado o direito primordial à identidade.
Isto sem mencionar, em alguns casos, a necessidade de carregar o rótulo de portador de um
transtorno psiquiátrico, o que invalida o seu reconhecimento como um ser saudável.
Neste cenário ainda se encontram questões relacionadas aos preconceitos, à insatisfação com
a forma corporal alcançada após a cirurgia que não atinge ao ideal sonhado, as dificuldades
de acesso à saúde pública, à incompreensão generalizada, ao mercado de trabalho que associa
essa identidade à marginalidade e ao crime, a não aceitação familiar, à dificuldade de
encontrar um emprego, e tantas outras violências cotidianas.
Nos dias atuais, uma parte da população com identidade transgênero é considerada acometida
por uma patologia, tanto relatadas no CID-10 (sob o código F64.2), quanto no DSM-V (sob o
código 302.6) e, a fim de conseguir autorização para a cirurgia de transgenitalização (desejo
de alguns dos transgêneros), existe uma obrigatoriedade de diagnóstico psiquiátrico sob o
rótulo de “Disforia de Gênero”, além de terapia psicológica por 2 anos. Uma vez que as
cirurgias são irreversíveis, a saúde mental apresenta probabilidade de ser afetada em face à
nova configuração corporal, desta forma, não só o tratamento psicoterapêutico é
recomendado, como é exigido por legislação pertinente ao assunto.
No entanto, a população “trans” luta atualmente pela despatologização do gênero, com o
objetivo maior de impedir a retirada da autonomia individual e o não reconhecimento da
condição de sujeitos conscientes das pessoas “trans” que buscam redesignação de sexo.
Relacionados a esta discussão, encontram-se os profissionais de psicologia que, pertencentes
a área de saúde, devem estar preparados para dar suporte a esta parcela da população que, na
maioria das vezes, está envolvida em sofrimento psíquico, quer referente aos próprios
questionamentos individuais de incompatibilidade sexo-gênero, quer pela incompreensão de
familiares, amigos e da sociedade de forma geral, além de preconceitos e atitudes agressivas,
das mais diferentes formas, a que são submetidos em seu cotidiano. Assim, entendendo que
somente a partir da compreensão de um fenômeno e suas particularidades é que será possível
um profissional atuar de maneira humanizada. Para tanto, buscou-se investigar a forma como
futuros psicólogos percebem o fenômeno da transgeneridade, já que esta percepção pode
influenciar na sua prática e, consequentemente, na qualidade da atenção à saúde a população.
Assim, a hipótese levantada foi de que as atitudes de graduandos de psicologia face à
identidade transgênero são baseadas no desconhecimento e incompreensão do fenômeno.
Desta forma, esta pesquisa teve como objetivo geral identificar as atitudes face à identidade

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transgênero e, mais especificamente conhecer a anuência de graduandos em psicologia sobre


a transgeneridade e relacionar a concordância ou não, dentro de cada categoria de atitudes, ao
Modelo Ecológico do Desenvolvimento Humano de Bronfenbrenner (1996), expostos no
questionário utilizado.

SEXO E GÊNERO
No ano de 1933, em um seminário a respeito da feminilidade, Freud declarava, com completa
segurança que “quando a gente encontra uma pessoa, a primeira distinção que fazemos é se
ela é homem ou mulher. E estamos acostumados a fazer tal distinção com certeza absoluta”
(FREUD, 1933).
O gênero está associado às diferenciações sexuais, mas não forçosamente as diferenças
fisiológicas como são percebidas pelo meio social. As heterogeneidades sexuais são tidas
como físicas, enquanto as heterogeneidades de gênero são construídas socialmente. O gênero
tem origem no modo como a sociedade distingue o processo que modela “um macho em um
homem e uma fêmea em uma mulher”. (STREY et al, 2009, p.182).
A edificação cultural do gênero é perceptível quando se examina que ser homem ou ser
mulher nem sempre presume as mesmas características em diversas sociedades ou em
distintas épocas.

Conforme explica Jesus (2012, p. 06):

[...] para a ciência biológica, o que determina o sexo de uma pessoa são suas células
reprodutivas (espermatozoides, logo, macho; óvulos, logo, fêmea), e só.
Biologicamente, isso não define o comportamento masculino ou feminino das
pessoas: o que faz isso é a cultura. [...] Sexo é biológico, gênero é social. Como as
influências sociais não são totalmente visíveis, parece para nós que as diferenças
entre homens e mulheres são naturais, totalmente biológicas, quando, na verdade, a
maior parte delas é influenciada pelo convívio social.

De acordo com Monro (2005), “toda a sociedade demonstra-se fundamentada em função do


sexo e do gênero”. Isto explica a noção de ser pelo gênero que os indivíduos constroem as
posições que exercem nas instituições da sociedade onde se enquadram e, por isso, “além de
ser exclusivamente um predicado dos indivíduos, ele é fomentador de todo âmbito social
onde estes indivíduos se mobilizam” (AMÂNCIO, 2003).
A construção do papel do homem e da mulher, que se inicia no processo gestacional e com o
nascimento do bebê, o primeiro reconhecimento se dá através do sexo: “menina ou menino” e
a partir de então iniciará a construção do papel que a sociedade espera deste indivíduo já
definido. Por possuírem genitais femininos ou masculinos, serão qualificados pelo pai, mãe,

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família, escola, mídia, sociedade em geral, com distintas forma de pensar, de sentir, de atuar
(BENEVENTO; SANTANA, 2013).
As desigualdades de gênero são edificações históricas, primordialmente patriarcais, assentado
numa forte sistematização sexual hierárquica, conforme autoridade masculina no meio
familiar, com o deslocamento para a esfera pública. Posteriormente, em contraste a essa
sistematização social, eclode o feminismo, com a peculiaridade de ser um movimento social e
político, com intento de igualdade dos sexos (HOGEMANN, 2015).
Desta forma, conforme esclarece Carloto (2001, p. 206):

[...] a categoria gênero vai ser desenvolvida pelas teóricas do feminismo


contemporâneo sob a perspectiva de compreender e responder, dentro de parâmetros
científicos, a situação de desigualdade entre os sexos e como esta situação opera na
realidade e interfere no conjunto das relações sociais.

Ainda dentro da categoria gênero, dois conceitos são relevantes: identidade de gênero, que se
relaciona ao gênero com o qual uma pessoa se identifica que pode ou não concordar com o
gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento e, expressão de gênero, que é a forma
como a pessoa se apresenta, sua aparência e seu comportamento, de acordo com expectativas
sociais de aparência e comportamento de um determinado gênero (JESUS, 2012). Além disso,
Scott (1995, p. 76) destaca que “o uso de “gênero” enfatiza todo um sistema de relações que
pode incluir o sexo, mas não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina
diretamente a sexualidade”.

HETERONORMATIVIDADE
Kitzinger (2005) declara que a “heteronormatividade é um dispositivo totalitário e
hegemônico resultante da aplicação compulsória das normas binárias de conduta de gênero a
todas as relações estabelecidas entre as pessoas na nossa sociedade”. Compreende-se, deste
modo, que a propagação de costumes e padrões heterossexuais, sustentadas, por exemplo,
pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família no
modelo pai-mãe-filho(a)(s). Relacionado a estas implicações, ocorre o heterossexismo
compulsório, entendido como uma imposição incontestável aplicada a todos os integrantes da
sociedade, com o objetivo de corroborar ou legitimar as práticas heterossexuais (FOSTER,
2001 apud MIRANDA, 2010). O heterossexismo pode ser entendido ainda como um
processo ideológico que contesta, macula e marginaliza qualquer maneira não heterossexual
de identidade, comportamento ou relacionamento. Esse sistema ideológico gera benefícios

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para indivíduos que seguem as regras heterossexuais e estigmatiza e isola aquelas que não as
seguem (HEREK, 1992 apud SOUZA; PEREIRA, 2013).

TEORIA QUEER
Apesar da diferenciação entre sexo, como fator biológico, e gênero, como perspectiva social
ou designação cultural dessa prática, vindo a ser uma etapa rumo ao entendimento de como
nos constituímos culturalmente como homem/masculino e mulher/feminino (BUTLER,
1990b), a progressão ainda não é satisfatória no ponto de vista de muitos teóricos. Uma das
mais proeminentes censuras quanto ao conceito de gênero relacionado a uma construção
social é ter o sexo biológico como ponto de apoio desta construção, não permitindo
diversidade para algum outro tipo de opção, distinção ou oposição por parte dos indivíduos
(LANZ, 2014).

Há uma amarração, uma costura, no sentido de que o corpo reflete o sexo, e o


gênero só pode ser entendido, só adquire vida, quando referido a essa relação. As
performatividades de gênero que se articulam fora dessa amarração são postas às
margens, analisadas como identidades transtornadas, anormais, psicóticas,
aberrações da natureza, coisas esquisitas (BENTO, 2012, p. 2657).

Neste sentido, “[...] inúmeros autores têm denunciado o reducionismo do binário de gêneros,
argumentando que masculino e feminino representam apenas dois pontos extremos de um
continuum de gênero” (LANZ, 2014, p. 50). É neste contexto que a Teoria Queer surge,
instigando novos pontos de vista e rediscutindo conceitos.
De forma geral, os movimentos que estão preocupados em desafiar os limites tradicionais de
gênero e sexuais tem se avolumado, questionando as dicotomias masculino/feminino,
homem/mulher, heterossexual/homossexual; e ainda outros que não se satisfazem em
trespassar essas divisões, porém decidindo assim viver a ambiguidade da própria fronteira em
si mesma. A nova força e ação dos movimentos sexuais e de gênero geram modificações nas
teorias e, concomitantemente, é sustentada por elas. A compreensão teórica mobilizou-se da
avaliação das desigualdades e das relações de domínio entre categorias sociais no concernente
as dadas ou fixas (homens e mulheres, gays e heterossexuais) para a dúvida das próprias
categorias – sua fixidez, separação ou limites – e para ver a disputa do poder em torno delas
como menos binária e menos unidirecional. Progressivamente, surgiriam, então, elaborações
e proposições teóricas pós-identitárias. Exatamente dentro dessa perspectiva que a afirmação
de uma política e de uma Teoria Queer precisa ser entendida (LOURO, 2001).
O termo queer refere-se a estranho, bizarro, esquisito, adoentado, combalido, obscuro,
ridículo, homossexual, bicha louca, veado (BENTO, 2012). Contudo, Bento (2012, p. 2660)
salienta que “os estudos queer invertem seu uso e passam a utilizá-la como marca
diferenciadora e denunciadora da heteronormatividade englobando gays, lésbicas,

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transexuais, travestis e transgêneros”. Deste modo, os estudos queer possibilitam que todas as
diversidades de gênero, ou seja, todos os qualificados de acordo com a bibliografia médica
por indivíduos patologicamente enfermos ou transtornados, sejam considerados indivíduos
que formam suas identidades mediante os mesmos aspectos que os vistos como “normais”.
Conforme Casagrande, Carvalho e Luz (2009 apud PALOSKI; CADONÁ, 2014, p. 96),
“lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, heterossexuais e outros diversos modos de estar no
mundo reforçam a ideia de que a dimensão de gênero e sexualidade vai muito além dos
padrões estereotipados de homem e mulher”, normatizados por órgãos institucionais e sociais,
como, por exemplo, família, educação e religião, e por outras formas de coerção social,
empregados com o passar dos tempos. Os estudiosos queer afirmam que é preciso efetuar
modificações epistemológicas que de fato trespassem com o raciocínio binário e com suas
consequências: a graduação, a categorização, a dominação e a marginalização (LOURO,
2001).

TRANSGÊNERO
A partir desta compreensão, pode-se então definir Transgênero, de acordo com Lanz (2014, p.
70-71), da seguinte forma:

[...] a não conformidade com a norma de gênero está na raiz do fenômeno


transgênero, sendo ela – e nenhuma outra coisa – que determina a existência do
fenômeno transgênero. [...] não se trata de “mais uma” identidade gênero-
divergente, mas de uma circunstância sociopolítica de inadequação e/ou
discordância e/ou desvio e/ou não-conformidade com o dispositivo binário de
gênero. [...] A transgeneridade é um fenômeno extremamente amplo, podendo
apresentar uma imensa variedade de manifestações. O termo transgênero também
vem sendo utilizado para classificar pessoas que, de alguma forma, não se
reconhecem e/ou não podem ser socialmente reconhecidas nem como “homem”,
nem como “mulher”, pois a sua identidade de gênero não se enquadra em nenhuma
das duas categorias disponíveis. Desta forma, transgênero refere-se a todo tipo de
pessoa envolvida em comportamentos e/ou atividades que transgridem as normas de
conduta impostas pelo dispositivo binário de gênero.

Para Peres e Toledo (2011), é necessário compreender que a definição de transgêneros se


apresentam sempre em construção e permanentemente deverão ser aprovadas e reconhecidas
pelas pessoas que experimentam situar-se nestas conformidades.
Ao findar do século XX, o movimento transgênero nasce como um crescente aclaramento do
movimento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTTT) e impulsiona
recursos para gerar modificações políticas e jurídicas no campo social em diversas partes do
planeta. Embora a população de transgêneros seja reconhecida como uma parte da
coletividade LGBTTT, o movimento transgênero (transgender movement) se difere do
movimento LGBTTT por ter demandas específicas, como, por exemplo, o combate contra a

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patologização da transexualidade, e a exigência de políticas públicas que consintam a ampla


admissão a serviços de atenção básica isentos de marginalização pelos profissionais de saúde
e a alteração do nome, que seja condizente com sua identificação de gênero, entre outras
(GARII, 2007 apud ÁVILA; GROSSI, 2010).
Os cidadãos que possuem identidades não adequadas as ideias tidas como normais de gênero
e sexualidade são constantemente segregados, colocados à parte, através dos discursos,
instituições e políticas que favorecem as identidades não-transgênero (MONRO, 2005;
NAMASTE, 2000).
Segundo Ramalho (2013, p. 100) no fundo trata-se de estratégias de funcionamento que
subvertem a identidade e promovem a exclusão e a abjecção de corpos, sexualidades e
comportamentos considerados como “desviantes”. Sendo assim, uma maneira indistinguível
de imposição de normas que aceita e copia as formas ideais do sexo, orientação sexual,
identidade de gênero e estimativas dominantes do que é ser “normal e natural”.

CISGÊNERO
Cisgêneros são indivíduos que não têm questões conflitantes no que se refere à identidade de
gênero. Não se perguntam, por exemplo, quanto a sua identificação como homens ou
mulheres ou ao gênero que lhes foi dado ao nascer. Em situação oposta às pessoas “trans”, os
cisgêneros, estão em concordância com seus corpos e a expressão de gênero e/ou papel de
gênero que exercem em consonância com aquilo que a sociedade espera para alguém com seu
sexo biológico (JESUS, 2012).

ORIENTAÇÃO SEXUAL
Orientação sexual refere-se ao desejo erótico-afetivo de uma pessoa, ou seja, por quem ela se
sente atraída, seja física, romântica e/ou emocionalmente. Apesar de ser uma definição
completamente diferente dos termos tratados previamente de sexo e gênero, na cultura
ocidental a qual pertencemos, a orientação sexual de um indivíduo é considerada atrelada ao
seu sexo físico e, consequentemente, ao gênero que lhe foi designado em seu nascimento,
conforme seus órgãos sexuais. Em resumo, quem nasce “macho”, ou seja, possuidor de um
pênis é automaticamente determinado como “homem” e espera-se dessa pessoa que tenha
uma atração erótico-afetiva por mulher. E, quem nasce “fêmea”, isto é, possuidora de uma
vagina, é automaticamente classificada como “mulher” e espera-se dessa pessoa que tenha
uma atração erótico-afetiva por homem. Qualquer viabilidade diversa de arranjo entre sexo,
gênero e orientação sexual não é realmente reconhecida e aprovada, apesar de, atualmente,
ser mais “suportada” (LANZ, 2014).

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Conforme esclarece Lanz (2014, p. 41) “podemos descrever sexo como aquilo que a pessoa
traz entre as pernas; gênero como aquilo que traz entre as orelhas e orientação sexual como
quem ela gosta de ter entre os braços”.
Já Butler (2009), destaca que o que regula estes encadeamentos, em nosso contexto social, é a
heteronormatividade, uma “relação absoluta, linear e direta [...] entre sexo, gênero e
orientação sexual”. Desta forma, diante desse binarismo hetero/homossexual, em sentido
genérico, os estudos queer questionam as incongruências das relações alegadamente
inabaláveis entre sexo biológico, gênero e orientação sexual (JAGOSE, 1996 apud
MIRANDA; GARCIA, 2012).
Na vivência transgênero, há uma multiplicidade de relações amplamente complexas, como
por exemplo: arrumar-se conforme o gênero oposto, aplicação de homônimos e investimento
em procedimento cirúrgico, ou até mesmo a associação de todas essas práticas. Tais manobras
podem ou não levar a uma modificação de escolha de objeto de desejo sexual. Com a
possibilidade de se tornar um homem trans e gostar de garotos (transformando-se em um
homossexual masculino); ou um homem trans e gostar de garotas (tornando-se um
heterossexual); ou ainda, estabelecer-se um homem trans, passando por uma sucessão de
movimentos na orientação sexual integrando um relato de vida muito peculiar. Assim sendo,
a narrativa não pode ser limitada em uma categoria, ou então, pode ser presa por uma
categoria apenas por uma etapa delimitada de tempo. As narrativas de vida são histórias de
transformação, e categorias podem, por vezes, frear o processo de metamorfose e
modificação. Transferências na orientação sexual podem se dar como retorno a um consorte
determinado, de maneira que as histórias de vida, trans ou não, não precisam se exibir sempre
como congruentemente heterossexuais ou homossexuais (BUTLER, 2009).
Compreende-se, então, que uma pessoa transgênero, assim como qualquer outro indivíduo,
pode ter como orientação sexual a heterossexualidade, a homossexualidade, assexualidade ou
a bissexualidade, conforme o gênero que determina para si e do gênero com o qual se sente
atraído afetivo-sexualmente. Conforme explica Jesus (2012, p. 08), por exemplo:

[...] mulheres transexuais que se atraem por homens são heterossexuais, tal como
seus parceiros, homens transexuais que se atraem por mulheres também; já mulheres
transexuais que se atraem por outras mulheres são homossexuais, e vice-versa. Isto
é, nem toda pessoa transexual é gay ou lésbica, a maioria não é, apesar de
geralmente serem identificados como membros do mesmo grupo político, o de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT.

No entanto, independente da orientação sexual, conforme salienta Peres e Toledo (2011, p.


02), em relação aos transgêneros:

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[...] se há alguma coisa comum presente na vida dessas pessoas, ela seria definida
pelos processos de estigmatização, ou seja, das dificuldades e impossibilidades das
mesmas em terem o direito fundamental à singularidade, de poderem exercitar o
direito de ser e de viver, de serem respeitadas como cidadãs.

ESTIGMA
Segundo Santos (2012), o conceito de estigma está relacionado a uma pessoa ou a um grupo
que carrega algum “sinal” que o distingue de forma pejorativa, rebaixando-o na escala social,
no entanto, para esse sistema de graduação não é suficiente um predicado de diferenciação,
mas sim um código de símbolos relacionais que sentencia o que é ou não admissível como
“natural”, como “normal”, consequentemente, como “aceitável” ou não.

Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um
atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que
pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável [...]. Assim
deixamos de considerá-la criatura comum e total, reduzindo-a a uma pessoa
estragada e diminuída. Tal característica é estigma, especialmente quando o seu
efeito de descrédito é muito grande [...] (GOFFMAN, 2010, p. 12).

O estigma, sendo assim, é decorrente de relações de poder. É preciso haver uma relação
conflitante, onde um grupo está estabelecido no conjunto detentor de poder, isto é, no
composto dominante, a fim de praticar atos de marginalização e segregação de sequelas
socialmente relevantes, e outro grupo será depreciado, padecendo de sérios efeitos
discriminatórios (LINK E PHELAN, 2001 apud SANTOS, 2012).
Desta forma, é preciso compreender que:

[...] o estigma desempenha um papel central nas relações de poder e de controle em


todos os sistemas sociais. Faz com que alguns grupos sejam desvalorizados e que
outros se sintam de alguma forma, superiores. Em última análise, portanto, estamos
falando de desigualdade social. (PARKER; AGGLETON, 2001, p. 11-12 apud
PERES; TOLEDO, 2011, p. 03)

De acordo Burgess (2009 apud RAMALHO, 2013, p. 101) “as pessoas transgênero são o
grupo mais negligenciado e incompreendido da sociedade, com dificuldade de acesso aos
diferentes sistemas sociais”. Esta discriminação e arbitrariedade existem, desde cedo, nos
primeiros encarregados da socialização do indivíduo. A intolerância e desconhecimento do
fenômeno, por parte do meio familiar e educacional, por considerar a expressão de gênero
demonstrada por um transgênero, socialmente inadequada e divergente, procura forçar, e
muitas vezes castigar imensamente os gêneros que não se apresentam conforme as regras

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sociais, de maneira a se adaptarem aos seus estereótipos. Indivíduos transgêneros enfrentam


também a escassez nos serviços médicos e sociais, e ainda a privação de programas e
políticas públicas com uma atenção distinta para essa categoria, que, repetidamente, é
justificada pela insignificante estatística desta parcela populacional. Como consequência da
desaprovação familiar e de amigos, da restrição de chances educacionais (resultando no
abandono escolar precoce), e sociais (onde geralmente é evidenciada a conotação de atributos
depreciativos concernente a promiscuidade, doença mental ou crime), a vida adulta é
vivenciada por fortes demarcações no acesso ao mercado de trabalho (LOEHR, 2007).
A condição de vulnerabilidade torna-se avolumada nos indivíduos transgêneros, corroborando
para existência de uma vida a margem, de total afastamento (MONRO, 2005), em processos
de fragilidade e retraimento, remetendo-as para uma situação de ilegalidade e segregação
social. Em face da não aceitação social e de atitudes insistidas de cunho negativo, os
indivíduos transgêneros vivenciam sinais e sintomas de temor, ansiedade, depressão e, até
mesmo, ideação suicida, além de se correlacionarem a fatores de preconceito e altos níveis de
categorização, ou seja, estigmatização (MALLON, 2009).
Deste modo, compreende-se que a estigmatização entre a população transgênero é bastante
presente e pode trazer prejuízos as suas vidas. A distinção e a disparidade ocorrem em todas
as fases da existência dos transgêneros e podem ser notadas desde as mais tenras experiências
sofridas de estigmatização, de discriminação, de violência e de exclusão (PERES, 2005 apud
PERES; TOLEDO, 2011). É desta maneira que o constructo de atitudes inserido na
Psicologia Social surge como suporte e base na compreensão dos estigmas sofridos pelos
transgêneros.

ATITUDE
Conforme explicita Lima (2006, apud FAGUNDES; ZANELLA; TORRES, 2012, p. 56), a
atitude, “trata-se de "um construto hipotético" referente à tendência psicológica expressa em
avaliação favorável ou desfavorável de uma entidade em especial”. Desta maneira, “permite
diferentes compreensões do conceito, desde um modo de reação a objetos e pessoas até uma
tendência de agir ou pensar em certas circunstâncias” (ATKINSON et al., 2002 apud
FAGUNDES; ZANELLA; TORRES, 2012, p. 56).
As atitudes relacionam-se a como as pessoas raciocinam, experimentam e desejam se
comportar em relação a um dado objeto, sendo esta conduta definida não somente por aquilo
que os indivíduos gostariam de realizar, mas também pelo que eles pensam que devem fazer,
baseando-se nas consequências em expectativas deste dito comportamento (RODRIGUES,
2009). De forma ampla, a função das atitudes é simplificar a adaptação do indivíduo ao meio
em que está inserido, e assim:

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[...] possibilitam um ambiente significativo, funcionando como guia do


comportamento. Esse esquema ou conhecimento ajuda a filtrar o complexo e
significativo número de informações externas, o que permite agrupar tanto pessoas
como acontecimentos em categorias, dispensando essas atitudes simplificadas e
estereotipadas. Logo, as atitudes assumidas em direção a um grupo favorecem a
formação de uma base para que se façam inferências sobre seus membros (LEAL et
al, 2013, p. 949).

Estas atitudes manifestam-se não somente por meio de sentimentos extremos, como ódio e
paixão, mas também através de níveis medianos de emoção, como a “atração ou repulsa, as
preferências ou aversões e o interesse ou desprezo. A partir dessas tendências, diz-se, então,
que uma pessoa tem atitude positiva se aprova o objeto de sua atitude e negativa, se o
reprova” (RIVOIRE, 2006, p. 29).
As atitudes não surgem no vácuo social, mas compõem uma edificação própria do indivíduo,
no entanto, de especificidade relacionada a aprendizagem e intimamente induzida por credos,
princípios, emoções e vivências socialmente compartilhadas, equivalendo indispensavelmente
a objetos próprios que estão presentes ou que são rememorados devido a um sinal (LIMA,
2002 apud LEAL et al, 2013).

Adquiridas por meio da aprendizagem, as atitudes constituem-se de três


componentes, a saber: o cognitivo (pensamentos e crenças), o afetivo (sentimentos
de atração ou rejeição) e o comportamental (tendência de reação do indivíduo diante
do objeto da atitude), podendo ser positivas ou negativas (LEAL et al, 2013, p.
948).

Segundo Rodrigues (2009) a mudança de atitude torna-se necessária sempre que se busca
promover o bem-estar geral da humanidade, pelo qual comportamentos negativos como o
preconceito devem ser contidos para que seja possível a compreensão e a cooperação entre
grupos e pessoas em conflito. Daí a relação das atitudes com o presente trabalho, já que
podem revelar aspectos inerentes a visão de psicólogos sobre a transgeneridade.

MODELO ECOLÓGICO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO


A teoria tenta explicar como as atitudes se formam a partir de uma perspectiva de base
sistêmica relacionado ao modelo ecológico de desenvolvimento humano de Brofenbrenner.
Segundo este modelo, delineia-se o desenvolvimento humano como acontecendo incerto em
vários agrupamentos, sendo acometido pelas modificações e eventos que sucedem tanto nos
âmbitos mais próximos (por exemplo: família, escola/ emprego), com os quais a pessoa
instala um convívio e influência mais diretos, como nos contextos menos próximos (por

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exemplo: social, político, econômico), que também afetam o indivíduo, embora de maneira
indireta. Este desenvolvimento é ainda tido como um método de adequação recíproco e
bidirecional, em que o indivíduo além de experimentar a intervenção praticada pelo meio, por
sua vez também influencia e gera adaptação no seu ambiente de modo dinâmico e efetivo. O
teórico determina quatro sistemas principais (microssistema, mesossistema, exossistema e
macrossistema) entendidos como “bonecas russas”, onde cada um deles demonstram diversos
ambientes que influenciam o indivíduo e que abrangem outros sistemas menores no seu
interior. (BRONFENBRENNER, 1996).

A FORMAÇÃO E ATUAÇÃO DE PSICÓLOGOS FRENTE À POPULAÇÃO


TRANSGÊNERO NA ÁREA DE SAÚDE
É importante destacar que há espaço para uma série de reflexões no campo da Psicologia. O
acompanhamento dos processos de readequação sexual, relacionados a temática das situações
de disforia de gênero e a questão do transgenerismo (em que se inclui a temática da
diversidade da expressão de gênero), envolvendo desde a formação acadêmica até a
construção de referências de atuação (SOARES; KARLUZE; CAMPANIN, 2010).
A homossexualidade, e também a transexualidade e travestilidade, na contemporaneidade,
ainda é atingida por preconceitos históricos, sociais, políticos e religiosos, o que pode gerar
em uma pessoa homossexual, e/ou transgênero, a vivência de sofrimentos psíquicos e estados
de vulnerabilidade. É necessário, portanto, perceber que a grande questão a ser trabalhada
refere-se à relação entre sociedade e o entendimento sobre o significado destes fenômenos,
cabendo ao psicólogo atuar apoiado em conhecimento balizado dos referidos temas. Um
psicólogo atuante nesta área trabalha lidando com questões polêmicas e conflituosas e
também com a sociedade de forma geral, sendo o exercício da escuta seu principal
instrumento. O paciente como indivíduo vivencia outros aspectos de sua humanidade além
dos relacionados à sua identidade e/ou expressão de gênero, ou seja, a escuta deve expandir-
se além de um rótulo segmentado (SOARES; KARLUZE; CAMPANIN, 2010).
Conforme afirma Carvalho (2010, p. 1003):

[...] as preocupações que indivíduos transgêneros referem relativamente aos serviços


de saúde mental são: (a) o serem considerados doentes ou loucos, abordados como
diagnósticos e não como pessoas; (b) a falta de reconhecimento, por parte dos
profissionais, de que muitos dos seus problemas se devem a processos sociais de
exclusão e não a doença mental; (c) a ignorância relativamente a questões de
identidade de género – com a recomendação de que os terapeutas deveriam procurar
informação nesta área, em lugar de esperar que os sujeitos lhe forneçam; e (d) as
inseguranças do dia-a-dia – com a sugestão de que os profissionais podem ter um
papel importante na sensibilização de polícia, escola, hospital e outras instituições
acerca de questões de identidade de género.

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A atuação psicológica “ausente de preconceitos, de tabus e de outros tipos de desinformação,


deve, por intermédio desses profissionais, ser cada vez mais buscada, compreendida e vivida
pela sociedade, que clama por esclarecimentos acerca de suas dúvidas e dilemas referentes à
sexualidade” (BRUNS, 2011, p. 69).
A questão que norteou esta pesquisa diz respeito às atitudes que estão presentes entre
graduandos do curso de psicologia sobre o tema de transgeneridade. Assim sendo, apoiados
nas palavras de Davies “compreende-se que a maioria dos psicoterapeutas e conselheiros
provavelmente não estão aptos para trabalhar com clientes do foro da diversidade do gênero e
sexual” (CORMIER-OTAÑO; DAVIES, 2012, p. 02).
Desta forma,

[...] urge dizer que essas dificuldades citadas impedem que esse profissional possa
promover uma fala autêntica com seus clientes acerca de suas queixas afetivo-
sexuais no sentido de aliviar as dores e conflitos identitários vividos por eles –
sujeitos contemporâneos aprisionados ao paradigma de prazer sexual que abomina
frustrações, conflitos e crises inerentes à desvinculação do sujeito do “sólido e fixo”
modelo da heteronormatividade, retroalimentado por séculos pelo modelo patriarcal
(BRUNS, 2011, p. 66).

Para a autora, é possível identificar que “tais dificuldades estão centradas na aquisição
insuficiente de conhecimentos acerca das dimensões bio-psico-sócio-culturais da sexualidade
humana, no decorrer de sua formação profissional do Psicólogo” (BRUNS, 2011, p. 66).
Conforme confirma Soares, Karluze e Campanin (2010, p. 42), “é muito difícil enxergar em
um curso de Psicologia alguma matéria ou algum projeto educacional, desenvolvido por
professores e alunos cujo tema seja a homossexualidade”, e mais difícil ainda o tema da
transgeneridade.
Segundo Cormier-Otaño e Davies (2012, p. 01), “as combinações possíveis de preferências
sexuais, orientação sexual, identidade do gênero, papel e expressão de gêneros, preferencias
do gênero e escolhas de relação são variadas e cada uma torna-se numa narrativa individual”.
É essencial, desta forma, que o psicólogo, ao trabalhar com estes indivíduos, tenha
consciência dos seus próprios valores, preconceitos, ideias, crenças e concepções sobre o que
considera ‘normal’ e ‘saudável’ em termos de orientação sexual, função do gênero,
relacionamentos.
O processo de socialização é influenciado pela cultura de tendência predominante, na qual as
crenças heteronormativas são inerentes e frequentemente incutidas, por isso ninguém se
encontra totalmente isento de heterossexismo e de homofobia, e este posicionamento só é
possível através de uma reflexão crítica constante sobre o tema (CORMIER-OTAÑO;
DAVIES, 2012). A consciência desse processo é um primeiro passo no sentido da
compreensão do fenômeno e consequente mudança de atitude.

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METODOLOGIA
A pesquisa realizada foi do tipo survey, que produziu descrições quantitativas por meio do
uso de um questionário predefinido. O instrumento aplicado para a coleta dos dados
empíricos utilizou a escala de likert, que apresentou como principal vantagem a fácil
aplicabilidade e o rápido entendimento dos participantes ao modo de responder. Participaram
deste estudo 100 estudantes de psicologia da Universidade Estácio de Sá, campus Nova
Iguaçu, do 1º ao 10º período. Os critérios de inclusão foram: estar regularmente matriculado
no curso, ter idade mínima de 18 anos e aceitar participar voluntariamente, através da
assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE. Para a seleção adotou-se
o procedimento de abordagem aleatória dos alunos, ou seja, o método para a escolha da
amostra foi a não probabilística.
Quanto aos cuidados éticos, apesar desta pesquisa se qualificar como de risco mínimo, alguns
procedimentos indispensáveis foram adotados, como: submeter o projeto de pesquisa e
aguardar aprovação do comitê de ética, zelar perante aos participantes pela explicação da
referida pesquisa e do sigilo envolvidos, obter assinatura dos mesmos no termo de
consentimento e, só posteriormente, realizar a aplicação do instrumento.
Para identificar o nível de concordância e compreensão sobre a transgeneridade, utilizou-se
um questionário estruturado, formado por questões fechadas onde todos os entrevistados
foram submetidos às mesmas perguntas e às mesmas alternativas de respostas, adaptado (com
consentimento da autora) do estudo oriundo da dissertação de mestrado em psicologia
(OLIVEIRA, 2013), concebido com o objetivo primordial de conhecer as atitudes de
aceitação e de discriminação sob o referido tema.
O instrumento foi constituído de 134 questões no total, dividido em 3 partes distintas. Na
parte I o questionário autoaplicável era composto sobre dados sócio demográficos onde foi
requisitado que se colocasse uma cruz na opção mais adequada, tendo como objetivo
caracterizar a população respondente e obter uma distribuição quanto à idade, sexo, gênero,
orientação sexual, religiosidade e período cursado. Já a segunda e terceira partes abordavam o
tema em si da transgeneridade. Na parte II, pediu-se que o respondente selecionasse, de entre
um conjunto de frases, a opção que melhor se adaptava à sua opinião sobre o tema, de forma
bastante abrangente. Na parte III, os itens utilizaram uma escala de cinco pontos do tipo likert
de respostas possíveis, onde foi pedido ao respondente que lesse cada frase e avaliasse a sua
concordância. Essas etapas buscaram compreender qual o nível de conhecimento do
respondente sobre a temática da transgeneridade e entender a percepção e reação quanto ao
fenômeno investigado de modo diferenciado, desde o distante e abstrato até o próximo e
concreto. Ainda nesta terceira parte, o questionário foi estruturado em cinco subcategorias,

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baseadas no modelo ecológico do desenvolvimento humano de Bronfenbrenner (1996), com


os seguintes subsistemas: macrossistema, exossistema, mesossistema, microssistema e
individual.
Na escala likert a cada item de resposta foi atribuído um número que reflete a direção da
atitude dos respondentes em relação a cada afirmação, onde os valores menores que 3 são
considerados como discordantes e, maiores que 3, como concordantes, considerando uma
escala de 5 pontos. A pontuação total da atitude de cada respondente foi alcançada pela
somatória das pontuações obtidas para cada afirmação. A cada item foi atribuída uma escala
qualitativa e outra quantitativa como segue: concordo totalmente (5), concordo (4), neutro (3),
discordo (2) e discordo totalmente (1). O valor exatamente 3 seria considerado “sem opinião”,
sendo o “ponto neutro”, equivalente aos casos em que os respondentes deixaram em branco.
Levando em consideração que parte dos itens estão formulados com valência negativa (ou
seja, a opção 5 “Concordo totalmente” revela uma atitude de completa rejeição da
transgeneridade) enquanto os restantes estão formulados com valência positiva (ou seja, a
opção 5 “Concordo totalmente” revela uma atitude de completa aceitação da
transgeneridade), foi necessário inverter as cotações dos itens de valência negativa, de modo a
possibilitar as análises seguintes.
Toda a coleta de dados foi realizada mediante procedimentos manuais. O participante foi
abordado e sua colaboração solicitada; caso fosse concedida foi ministrado o questionário
autoaplicável para coleta de dados. A utilização desse instrumento foi de aplicação e com
duração variadas durante o decorrer de 5 semanas, aproximadamente.
Para analisar os itens likert foi utilizado o cálculo do ranking médio (RM). Para o cálculo do
RM utilizou-se o método de análise de escala do tipo likert apresentado por Malhotra (2001
apud LARANJEIRAS; ALBUQUERQUE; FONTES, 2011). Neste modelo atribui-se um
valor de 1 a 5 para cada resposta a partir da qual é calculada a média ponderada para cada
item, baseando-se na frequência das respostas. Desta forma foi obtido o RM através da
seguinte estratégia:
 fi = frequência observada de cada resposta para cada item
 Vi = valor de cada resposta
 Média ponderada (MP) = Σ( fi.Vi)
 NS = nº de sujeitos
 Ranking médio (RM) = MP / (NS)

Quanto mais próximo de 5 o RM estiver maior será o nível de aceitação dos graduandos em
psicologia sobre a temática da transgeneridade e quanto mais próximo de 1 menor. A
compilação dos dados deu-se inicialmente através do programa Microsoft Access 2013 pela
facilidade no input e na localização dos dados. Já os gráficos foram gerados no MS Excel
2013, devido à sua flexibilidade, tipologia e estética na formatação.

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ANÁLISE DOS RESULTADOS


DADOS DEMOGRÁFICOS
PARTE I DO QUESTIONÁRIO
Na primeira parte do questionário foram colocadas questões de múltipla escolha de modo a
obter-se uma caracterização da amostra respondente em termos de variáveis que se
consideraram relevantes para o estudo. Apresenta-se a seguir uma breve análise descritiva de
cada um dos itens da Parte I.
 Idade - A maioria dos respondentes (40%) tem entre 18 e 25 anos, seguido pela faixa
etária dos 36 a 45 anos (21%). A representação de cada faixa etária é progressivamente
menor, com 20% dos respondentes na faixa entre os 26 a 35 anos, 14% entre os 46 a 55 anos,
5% com idades compreendidas entre os 56 a 65 anos nenhum respondente (0%) com mais de
65 anos.
 Sexo - Foi questionado o sexo (atribuído à nascença) dos participantes, sendo obtida
uma distribuição de 77% de respondentes do sexo feminino, 22% de respondentes do sexo
masculino e ainda 1% de pessoas que se identificaram com a condição de intersexo.
 Identidade de gênero - No que diz respeito à identidade de gênero (em que se pediu
que os participantes indicassem “como se sentem”) obteve-se 74% de respostas “mulher
(predominantemente)”, 25% de respostas “homem (predominantemente)”, 1% de respostas
“ambos” e ainda 0% responderam “nenhum”.
 Orientação sexual - A maioria dos respondentes indicou ser heterossexual (91%),
sendo que os participantes pertencentes às minorias sexuais tiveram ainda uma representação
pouco significativa de 8% (5% de homossexuais, 3% bissexuais, 0% outra e 0% assexuais),
sendo que 1% dos respondentes indicaram ainda a opção “Não sei/ Prefiro não responder”.
 Prática religiosa – A maior manifestação dos respondentes relaciona-se a pertencente a
algum tipo de religião, num total acumulado de 79%, que se divide em: 43% evangélicos,
19% católicos, 6% protestante, 3% espírita, 2% de religião afro-brasileira (Camdonblé /
Umbanda), 6% definida como “outra” (adventista do 7º dia, etc.). Contam ainda 21% sem
religião e 0% não respondeu.
 Períodos – A representatividade dos graduandos do curso de psicologia, divididos por
períodos, deu-se da seguinte forma: 33% do 1º período, seguido de 18% do 5º período, 14 %
do 10º período, 11% do 9º período, 10% do 8º período, 6% do 3º período, 5% do 4º período,
2% do 6º período, 1% do 7º período e 0% do 2º período.

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PARTE II DO QUESTIONÁRIO
Na segunda parte do questionário foram inseridas questões com o objetivo de identificar o
nível de familiaridade dos respondentes com a temática e qual a sua percepção, de um modo
mais geral e abstrato, sobre a transgeneridade.
 Familiaridade e percepção inicial sobre a temática - Numa avaliação subjetiva dos
próprios participantes (item 1), 22% admitiram não estar de todo familiarizados com a
temática da transgeneridade, 38% indicaram estar pouco familiarizados, 29% razoavelmente e
somente 10% muito familiarizados com o tema.

Figura 01 – Gráfico Parte II, item 1. “Considero-me ...” (N=100)

CONSIDERO-ME...
40
35
30 38
25
20 29
15 22
10 10 1
5
0
NADA POUCO RAZOAVELMENTE MUITO NÃO RESPONDEU
FAMILIARIZADO FAMILIARIZADO FAMILIARIZADO FAMILIARIZADO
COM A TEMÁTICA COM A TEMÁTICA COM A TEMÁTICA COM A TEMÁTICA
DA DA DA DA
TRANSGENERIDADE TRANSGENERIDADE TRANSGENERIDADE TRANSGENERIDADE

Fonte: elaborado pelas autoras

 Contato direto com pessoas transgênero - No que respeito ao contato direto com
pessoas transgênero (item 2), 5% dos respondentes indica que não conhece nem nunca ouviu
falar de alguém; num ponto mais intermédio, situam-se 36% dos respondentes indicando
“Não conheço pessoalmente, mas sei de alguém que é/ conheço de vista” ou “Não, mas já
ouvi falar de alguém” (12% e 24% respectivamente); e 59% das pessoas indicaram conhecer
pessoalmente alguém transgênero (21% “Sim, mas raramente estabeleço contato com essa
pessoa”; 24% “Sim e mantenho algum contato com essa pessoa”; 9% “Sim e mantenho uma
relação próxima com essa pessoa”; 5% “Sim, tenho um familiar que é transgênero”).
 Participação em Associações ou Instituições que trabalham com a temática da
transgeneridade - Relativamente a este assunto (item 3), 93% dos respondentes nunca
participou enquanto 7% dos respondentes disse participar atualmente ou já ter participado no
passado (respectivamente 5% e 2%).
 Percepção sobre a transgeneridade - No que se refere à percepção mais direta da
temática em questão, no topo dos sentimentos/emoções mais despertados (item 4) estão a

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curiosidade (indicado por 58% dos participantes), compaixão (33%), tranquilidade (também
com 33%), tristeza (22%) e empatia (21%) como indicado no gráfico abaixo.

Figura 02 – Gráfico Parte II, item 4. “Quando se fala em transgeneridade, que sentimentos/
emoções lhe são despertados?” (N=100)

SENTIMENTOS DESPERTADOS
MEDO 0
1
REPULSA 1
2
ANSIEDADE 2
3
AMBIVALÊNCIA 3
5
ADMIRAÇÃO 7
9
INCOMODO 10
10
INDIFERENÇA 15
17
EMPATIA 21
22
TRANQUILIDADE 33
33
CURIOSIDADE 58
0 10 20 30 40 50 60 70

Fonte: elaborado pelas autoras

 Pensamentos sobre a transgeneridade - No item 5, como se verifica na figura 03, os


participantes revelam que a transgeneridade tende a surgir como algo compreensível (39%
dos casos), estranho (33%) e aceitável (30%), demonstrando uma certa incongruência.

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Figura 03 – Gráfico Parte II, item 5. “Quando pensa em transgeneridade, pensa na situação
como algo:” (N=100)

PENSAMENTO SOBRE
TRANSGENERIDADE

39
33 30
21 19 17 15 15 12 10 9 5 3 1

Fonte: elaborado pelas autoras

 Opinião sobre a transgeneridade - No item 6, quando se pergunta aos participantes


como entendem a transgeneridade as respostas distribuem-se pelas várias opções com 38%
afirmando que é “uma opção que a pessoa toma (de pertencer a outro sexo)”, 34% indicando
que é “uma condição de desconformidade corpo-identidade sexual sobre a qual a pessoa não
tem controle”, 15% declarando ser o resultado de experiências da infância e educação, 3%
acreditando ser “o resultado de um trauma”, 2% crendo que é “uma doença”, sendo que 5%
indicaram a opção “Outra” e ainda 3% não responderam à pergunta.
 Impacto de conhecer alguém transgênero - Quando pedido aos respondentes uma
avaliação sobre o impacto de conhecer alguém transgênero na sua percepção sobre a temática
(item 7), 59% dos respondentes admite um impacto positivo, ou seja, mudaria a percepção
“num sentido positivo (por exemplo, antes de conhecer achar a situação perturbadora, depois
de conhecer achar compreensível)” ou “ainda mais positivo (por exemplo antes de conhecer
já aceitar, depois de conhecer desenvolver ainda mais interesse e compreensão)”, com 26% e
33% das respostas respectivamente, 36% acha que não teria qualquer impacto (“Não mudou/
acho que não mudaria”), 1% dos respondentes admite um impacto negativo (por exemplo,
antes de conhecer achar a situação indiferente, depois achar perturbador)”, 1% indica ser um
assunto gerador de desconforto e sobre o qual não gosta de pensar, e 3% não responderam.
 Dificuldades de uma pessoa transgênero - Por fim, no item 8, foi pedido que fossem
selecionadas as opções que os respondentes acreditassem poderem ser as maiores dificuldades
das pessoas transgênero. As principais respostas foram: “Poder ser alvo de discriminação”
como a mais cotada (76 vezes mencionada), seguida por “Lidar com as reações dos amigos e
da família” (64 vezes mencionada) e posteriormente o item “Ter que lidar com estereótipos e

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preconceitos na sociedade (55 vezes mencionado). As opções menos sugeridas foram: “Não
poder frequentar espaços em que exiba o corpo (praia, ginásios, etc)” 2 vezes mencionada e “
Não saber da existência ou não conhecer ninguém que tenha passado pelo mesmo” com 1
menção. O item “Não sei/ Não estou suficientemente informado sobre o assunto” só foi
selecionado por 3 participantes.

PARTE III DO QUESTIONÁRIO


A partir do ranking médio total do questionário de 3,97, percebe-se uma atitude de aceitação
da transgeneridade por parte da amostra respondente, o que é coerente com as respostas da
Parte II, predominantemente aceitantes da transgeneridade. Além do ranking médio total, a
fim de analisarmos mais detalhadamente, foi calculado o RM médio por categorias conforme
o modelo ecológico do desenvolvimento humano de Bronfenbrenner (1979), com os
seguintes subsistemas: macrossistema, exossistema, mesossistema, microssistema e nível
individual. Apresentamos na figura 04 o RM médio por sistema, onde percebe-se um grau de
anuência muito similar entre todos eles.

Figura 04 – Gráfico Parte III, Ranking Médio médio por subsistema (N=100)

RM DAS ATITUDES POR SISTEMA DE DH


PARTE 3E (Individual); PARTE 3A
3,99;20% (Macrossistema);
3,91; 20% PARTE 3A (Macrossistema)
PARTE 3B (Exossistema)
PARTE 3D
(Microssistema);3,72; PARTE 3C (Mesossistema)
19% PARTE 3B
(Exossistema); 4,24; PARTE 3D (Microssistema)
21% PARTE 3E (Individual)
PARTE 3C
(Mesossistema); 4,00;
20%

Fonte: elaborado pelas autoras

Quando se considera as categorias separadamente, observou-se em relação ao subsistema


exosistema, que o mesmo foi considerado com o mais alto nível de aceitação da
transgeneridade, por apresentar um RM de 4,24. Dentro desta categoria o menor RM
individual foi encontrado quando se perguntou se “Simpatizaria com ele/ela” (3,54) e o maior
RM individual apresentou-se no item sobre “Se a pessoa tentasse falar comigo, poderia tratá-
la mal ou insultá-la” (com um grau de discordância de 4,72 sobre esta dita atitude, o que
demonstra posicionamento favorável aos indivíduos transgêneros).

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No subsistema mesossistema o grau de aceitação demonstrado pelo RM médio foi de 4,0,


representando uma aceitação da transgeneridade. Dentro desta categoria o menor RM
individual foi encontrado quando se perguntou se “Felicitaria a decisão da pessoa” (3,27) e o
maior RM individual apresentou-se no item sobre “Sentiria tanto nojo que poderia mesmo
insultar a pessoa” (4,70, relacionado a não anuência com o referido item e concordância com
o tema da transgeneridade).
Na categoria macrossistema calculou-se um RM médio de 3,91, demonstrando também
aceitação pela transgeneridade. Pode-se destacar alguns aspectos positivos nesse subsistema:
“Profissionais que trabalhem na área da saúde devem estar bem informados sobre questões
ligadas à orientação sexual, ao gênero e à transgeneridade” (RM 4,35); “As instituições que
prestam cuidados de saúde devem ter conhecimento suficiente sobre a temática da
transgeneridade” (RM 4,31); “As pessoas transgêneros devem ter os mesmos direitos legais
que os restantes cidadãos” (RM 4,38), “O sistema judicial deve encontrar-se preparado para
lidar com problemáticas ligadas à transgeneridade (ex. pessoas transgêneros vítimas de
agressões e discriminação)” (RM 4,37) e “As pessoas devem ter oportunidades de emprego
iguais independentemente de serem ou não transgêneros” (RM 4,62). No entanto, o menor
RM individual indicado foi no item “As crianças devem brincar com brinquedos apropriados
ao seu gênero (ex. meninas brincar com bonecas, meninos brincar com carrinhos)” (RM
3,07).
A categoria microssistema teve um RM médio de 3,72 o que demonstra aceitação, porém
podemos destacar alguns pontos que podem ser analisados individualmente, como: “Iria
recear que ela esteja a correr riscos (RM 2,67) e “Ficaria preocupado que essa pessoa sofresse
de discriminação: (RM 2,06), com os menores índices, em contrapartida a “Reagiria tão
violentamente que era capaz de lhe bater” (RM 4,56) e “Cortaria relações com a pessoa
imediatamente”(RM 4,47), ambos relacionados a discordância em alto grau com as atitudes
levantadas e consequente anuência com a transgeneridade.
A nível individual o RM médio foi de 3,99, e aponta, através dos RM individuais como itens
críticos: “Se uma pessoa me dissesse que não se sente nem homem nem mulher, pensaria que
há algo de errado com ela” (RM 3,32) e “Algumas situações perturbam-me tanto que tenho
mesmo que reagir” (RM 3,35); e como itens positivos: “Para mim, uma pessoa transgênero
merece tanto respeito quanto qualquer outra” (RM 4,45) e “As pessoas tendem a recorrer a
mim para falar dos seus problemas” (RM 4,32).
Buscando correlações possíveis, foi analisado a relação entre o primeiro item da parte 3E
(“Considero que tenho uma mente "aberta"), com RM de 3,85 versus o penúltimo item da
mesma parte (“Se gostasse mesmo de uma pessoa, aceitaria tê-la como parceira romântica,
independentemente de ser ou não transgênero”), com RM de 2,62, o que representa uma
ligeira incongruência, já que em relação a ter a mente aberta há uma concordância e em
relação a ter um envolvimento romântico com uma pessoa “trans” há uma discordância.

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DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39490

Figura 05 - Gráfico correlação entre auto-avaliação e aceitação de parceiro transgênero (N=100)

MENTE ABERTA X RELACIONAMENTO COM "TRANS"


3
6 - NÃO RESPONDEU 4
5 - CONCORDO TOTALMENTE 12
28
4 - CONCORDO 12
42
3- NÃO CONCORDO E NEM DISCORDO 22
17
2- DISCORDO 28
5
1 - DISCORDO TOTALMENTE 23
4
Se gostasse mesmo de uma pessoa, aceitaria tê-la como parceira romântica,
independentemente de ser ou não transgênero (RM=2,62)
Considero que tenho uma mente "aberta" (RM=3,85)

Fonte: elaborado pelas autoras

Desta forma, compreendeu-se que os respondentes se consideram com uma “mente aberta” a
fim de aceitar indivíduos transgêneros socialmente, porém ainda não estão aptos e dispostos a
estenderem tal aceitação e concordância a suas vidas pessoais e privadas.
Outra correlação possível foi entre o período em curso e o grau de compreensão sobre a
temática da transgeneridade. Para tal fim, foram somados os respondentes em 3 grupos
distintos conforme o nível de conhecimento acumulado durante o curso, assim dividido:
grupo 01 do 1º ao 3º período (N=38), grupo 02 do 4º ao 7º período (N=26) e grupo 03 do 8º
ao 10º período (N=35). Foi possível perceber que os alunos do grupo 03 (períodos finais da
graduação) declararam que possuíam um conhecimento mais elevado sobre a temática
(muito=8), versus o grupo 01 (muito=1) e grupo 02 (muito=1). Em contrapartida, o grupo 3
também foi o grupo que mais declarou ter pouco conhecimento sobre o tema aventado nesta
pesquisa (pouco=16), versus o grupo 01 (pouco=12) e o grupo 02 (pouco=10). Assim sendo,
torna-se difícil uma conclusão definitiva sobre este nível de conhecimento em relação ao
período em curso.

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DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39490

Figura 06 – Gráfico correlação entre os períodos e conhecimento sobre a temática (N=100)

CONHECIMENTO SOBRE A TEMATICA X PERIODO


MUITO 8
8,9 E 10

RAZOAVELMENTE 7
POUCO 16
NADA 4
MUITO 1
4,5,6 E 7

RAZOAVELMENTE 10
POUCO 10
NADA 5
MUITO 1
1,2 E 3

RAZOAVELMENTE 12
POUCO 12
NADA 13
0 2 4 6 8 10 12 14 16 18

Fonte: elaborado pelas autoras

Como 60% dos respondentes afirmaram estar pouco (N=38) ou nada (N=22) familiarizado
com assunto transgêneros (vide gráfico 01 - parte II, item 1. “Considero-me ...”), é possível
ratificar a hipótese proposta de que existe, entre graduandos de psicologia face à identidade
transgênero, um relativo nível de incompreensão do fenômeno. No entanto, como o grau total
de aceitação foi favorável, num total geral de RM em 3,97 pode-se perceber que, apesar de
existir um nível de desconhecimento entre os respondentes, estes possuem atitudes positivas
sobre esta população, ou seja, possuem uma tendência assertiva frente aos transgêneros.
Provavelmente, se houvesse uma maior preocupação em disseminar mais conhecimento sobre
o assunto da transgeneridade, reduzindo este grau de incompreensão, a concordância com a
temática seria ainda maior, em todos os níveis.
Desta forma, consideramos que a pesquisa conseguiu alcançar seus objetivos de conhecer a
anuência de graduandos em psicologia, Universidade Estácio de Sá, Campus Nova Iguaçu,
sobre a transgeneridade e de relacionar a concordância/discordância dentro de cada categoria
de atitudes ao modelo ecológico do desenvolvimento humano de Bronfenbrenner.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho teve como objetivo investigar as atitudes dos graduandos do curso de
Psicologia, no município de Nova Iguaçu, face à identidade transgênero. Dada a análise dos
resultados, obtidos através da aplicação de questionário estruturado, verificou-se que, mesmo
ante a escassez de conhecimento da temática e incompreensão do fenômeno, as atitudes dos
graduandos são positivas em relação a transgeneridade. Para maior aprofundamento,
congruência ou incongruência nas declarações, o questionário foi dividido em categorias,

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DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39490

baseadas no modelo ecológico do desenvolvimento humano de Bronfenbrenner, onde foi


possível realizar correlações nos subsistemas: macrossistema, exossistema, mesossistema,
microssistema e nível individual. Dentre as subcategorias há aceitação dos respondentes, não
sendo verificadas atitudes negativas face à população trangênero. No nível individual uma
correlação mostrou-se incongruente no que se refere a aceitação da temática e relacionamento
romântico com um transgênero. Desta forma, das correlações que foram possíveis, a
apresentação no nível individual se fez crítica.
A partir dos resultados apresentados evidenciamos a necessidade de um número maior de
pesquisas e envolvimento com a temática, tendo em vista que os modos de existir são
inúmeros e os transgêneros ainda pouco conhecidos pela sociedade. Ressaltamos que o
objetivo do conhecimento dentro do contexto da comunidade humana e a finalidade das
Universidades não são outros senão possibilitar o avanço da própria espécie. Desta forma
precisamos continuar a investigar, identificar, compreender e, principalmente, transformar
paradigmas. Afinal, quando deparamos com as possibilidades de conhecimento, nos
assemelhamos a uma esfera que vai se dilatando e assim permite uma compreensão maior dos
fenômenos, contudo sem perder de vista que haverá sempre uma maior proximidade com o
desconhecido (PASCAL, 1623-1662).

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violências e vulnerabilidade social - Página 97 de 108 - IV Colóquio Internacional Ação
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DIAGNÓSTICOS BENEVOLENTES NA INFÂNCIA:


CRIANÇAS TRANS E A SUPOSTA NECESSIDADE DE UM TRATAMENTO
PRECOCE

BENEVOLENT DIAGNOSES IN CHILDHOOD:


TRANS CHILDREN AND THE SUPPOSED NEED FOR EARLY TREATMENT

DIAGNÓSTICOS BENEVOLENTES EN LA INFANCIA:


NIÑOS TRANS Y LA SUPOSTA NECESIDAD DE UN TRATAMIENTO PRECOCE

Sofia Ricardo Favero1


Paula Sandrine Machado2

RESUMO
O objetivo deste artigo é analisar a repercussão que o diagnóstico de Incongruência de
Gênero tem na infância, situando os manuais de transtornos mentais como eixos centrais
da discussão. Para tanto, reconhece-se o uso estratégico da patologização das
identidades trans e travestis na adolescência e vida adulta, mas ressalta os desafios
quando essa mesma patologização destina-se a crianças. Diferente de quando ocorre
com pessoas adultas, compreende-se que o diagnóstico de gênero na infância se justifica
a partir de uma concepção de cuidado e benevolência. Em conclusão, propõe-se
abandonar o pensamento em saúde que se baseia na preocupação e tutela para pensar em
um compromisso ético e político com a diferença.
Palavras-chave: Diagnóstico. Crianças. Travestis. Pessoas trans.

ABSTRACT
The objective of this article is to analyze the repercussion that the diagnosis of Gender
Incongruence has on childhood, placing the manuals of mental disorders as central axes
of the discussion. For this, the strategic use of the pathologization of trans and
“travestis” identities in adolescence and adulthood is recognized, but it highlights the
challenges when this same pathologization is aimed at children. Different from when it
occurs with adults, it is understood that the diagnosis of gender in childhood is justified
from a conception of care and benevolence. In conclusion, it is proposed to abandon the

Submetido em: 26/02/2019 Aceito em: 10/04/2019 Publicado em: 01/06/2019

1
Mestranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5179-1154
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).

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thought in health that is based on the concern and tutela to think about an ethical and
political commitment with the difference.
Keywords: Diagnosis. Children. “Travestis”. Trans people.

RESUMEN
El objetivo de este artículo es analizar la repercusión que el diagnóstico de
Incongruencia de Género tiene en la infancia, situando los manuales de trastornos
mentales como ejes centrales de la discusión. Para ello, se reconoce el uso estratégico de
la patologización de las identidades trans y travestis en la adolescencia y la vida adulta,
pero resalta los desafíos cuando esta misma patologización se destina a niños. Diferente
de cuando ocurre con personas adultas, se comprende que el diagnóstico de género en la
infancia se justifica a partir de una concepción de cuidado y benevolencia. En
conclusión, se propone abandonar el pensamiento en salud que se basa en la
preocupación y tutela para pensar en un compromiso ético y político con la diferencia.
Palabras clave: Diagnóstico. Niños. Travestis. Personas trans.

INTRODUÇÃO

“E mais, assumida a nossa responsabilidade, daremos a ela o direito de se


criar para ser aquilo que ela entende ser, ou seja, se tornar aquilo que ela é?”

Amara Moira (2015)

Diagnosticar a transexualidade não é um trabalho exatamente novo para os


consultórios de saúde ao redor do mundo. Desde que o endocrinologista Harry
Benjamin decidiu se dedicar a estudar o tema, um olhar psicopatológico sobre o gênero
passou a ser consolidado. Foi na década de 1960, com o lançamento do seu livro O
Fenômeno Transexual, que Benjamin (1966) definiu a transexualidade a partir de
critérios diagnósticos, que iam desde a repulsa ao genital à vontade intensa de remover
as características primárias e secundárias do sexo designado.
De acordo com a “Etiologia da Transexualidade”, maneira pela qual Benjamin
(1966) encontrou para formular suas diretrizes clínicas, os pacientes transexuais
deveriam ser divididos entre aqueles que eram “verdadeiros” e aqueles que eram
“falsos”. Ser um transexual de verdade, segundo essa lógica, implicaria em uma relação

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de necessidade profunda com intervenções hormonais e cirúrgicas. Os pacientes que não


desejassem tais procedimentos, logo, seriam considerados inaptos à cirurgia de
transgenitalização – vulgarmente conhecida como cirurgia de “mudança de sexo”.
Naquele contexto, acreditava-se que as vias cirúrgicas seriam as únicas possibilidades
terapêuticas frente a pacientes transexuais, sob o argumento que “desde que é evidente,
portanto, que a mente do transexual não pode ser ajustada ao corpo, é lógico e
justificável propor o oposto, ajustar o corpo à mente” (BENJAMIN, 1966, p. 53,
tradução nossa).
Apesar desse esforço para distanciar as psicoterapias, deve-se levar em
consideração que o que estava em jogo não era exatamente uma escuta desligada de
preconceitos, mas tratamentos que muitas vezes visavam certo resgate “às origens”, a
um passado que foi desvirtuado. Em outras palavras, psicoterapias de reversão sexual e
de gênero. Ainda assim, ao passo que Benjamin (1966) descartava a eficácia desses
atendimentos, também desconsiderava a opção de um exercício psicológico baseado na
busca pela autonomia. Nesse sentido, foi-se compreendendo que a transexualidade era
uma questão de saúde, mas, mais especificamente, uma questão dos médicos. Conforme
aponta Leite Jr. (2011), foi também devido a essa noção que as travestis passaram a ser
vistas como um problema, pois não se comportavam como a nosologia esperava.
De todo modo, foi a partir da década de 1980 que a transexualidade passou a ser
gestada dentro dos guias de patologias da mente, aparecendo no lançamento da nona
Classificação Internacional de Doenças (CID), bem como na divulgação da terceira
versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Entretanto,
esse é um processo que ainda se encontra em disputa. Até então, a transexualidade
aparecia catalogada como “transexualismo”, mas passou a ser referida enquanto
Transtorno de Identidade de Gênero (TIG) em ambos os guias. Todavia, TIG deu lugar
à Disforia de Gênero do DSM-IV para o DSM-5, e promete ganhar a cara de
Incongruência de Gênero (CID-11) na próxima versão que está prevista para 2019.
Sendo assim, temos atualmente os diagnósticos de Disforia de Gênero (DSM-5)
e Incongruência de Gênero (CID-11) – caso as notícias de lançamento da CID-11 se

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confirmem3. Convém destacar que essas duas transformações se deram dentro de um


campo de supostas estratégias despatologizantes, ou seja, tanto o DSM-5 quanto a CID-
11 afirmam estar despatologizando as identidades trans e travestis 4 conforme fazem
mudanças gramaticais. E embora essa seja a interpretação de um primeiro momento, é
necessário irmos além desse olhar superficial, pois mudam-se os termos, mas não se
mudam as práticas. Dizemos isso tendo em vista a permanência de critérios diagnósticos
nos dois guias, ligados à temporalidade do processo, aos sentimentos de ojeriza ao
genital e à intensa vontade de transformar o corpo no do sexo oposto.
No DSM-5 (2013), o tempo estipulado de acompanhamento psicológico é de
seis meses e as diretrizes diagnósticas referem-se mais a aspectos sexistas do
desenvolvimento, possuindo um longo segmento para discutir a Disforia de Gênero na
infância. Então, situam alguns aspectos que podem ser sinalizadores da transexualidade
em crianças, a respeito da inversão dos papeis normativos do sexo-gênero-desejo, como
gostar de brincar de boneca (p. ex. barbie, p. 454), carrinho e até mesmo interesse em
brincar de casinha ou a preferência por sentar ao urinar. Desempenhar o papel de mãe,
ter personagens femininos favoritos, evitar brincadeiras agressivas ou jogos
competitivos, tudo isso dá sustentação clínica para diagnosticar o (trans)gênero.
Contudo, tais critérios denunciam a fragilidade de um processo que deveria ser
científico, mas que esbarra em estereótipos há muito combatidos por diversos setores
sociais, entre eles o movimento feminista e os próprios ativismos trans, indicando como
são recorrentes as criticas à pretensa neutralidade da ciência e seu caráter – também –
ideológico.
Seguindo adiante, o DSM-5 se encontra com a linguagem da CID-10, e define
que na adolescência e vida adulta, com a chegada da puberdade, podem surgir
desconfortos com o próprio sexo, fazendo com que o sujeito recorra a intervenções
cirúrgicas ou não. Referimo-nos a um encontro com a linguagem da CID-10 a partir de

3
A revisão provisória da CID-11 pode ser vista em: <https://icd.who.int/browse11/l-
m/en#/http%3a%2f%2fid.who.int%2ficd%2fentity%2f411470068>. Acesso em: 29 de jan. de 2019.
4
Aqui deixamos de nos referir apenas à transexualidade, por entendermos que os desafios se expandem às
travestis e demais pessoas trans. Não houve a intenção de utilizar a categoria “transexualidade” como
termo guarda-chuva, mas de compreendê-la como peça central no jogo da medicina.

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um entendimento que, para o manual da Organização Mundial da Saúde (OMS), há um


apelo psicopatológico mais pronunciado. Dito de outro modo, se no DSM-5 é possível
achar indícios de que azul é cor de menino e rosa é cor de menina, na CID-10 o que
impera é uma concepção de transexualidade ligada ao sofrimento, dor e angústia. Por
esse ângulo, os dois guias se encontram quando concordam que é necessário apresentar
uma aflição clinicamente considerável, assim como um prejuízo social significativo.

AS TEMPORALIDADES DA INCONGRUÊNCIA DE GÊNERO

O que a CID-11 traz de novo não é somente uma tímida despatologização,


deixando de nomear a transexualidade de “transtorno” para tratá-la como incongruência,
mas uma série de impasses que devem ser considerados quando pensamos em
diagnósticos estratégicos. Mais uma vez seguindo os passos do DSM-5, a CID-11
decidiu fracionar o diagnóstico de Incongruência de Gênero em etapas da vida: infância
(HA61) e adolescência e vida adulta (HA60). Ademais, o diagnóstico5 deixou de estar
na divisão F.64.0, referente às categorias de “perturbação da identidade sexual”, para
estar agora em uma seção de “condições relacionadas à saúde sexual”. Em outras
palavras, a transexualidade deixou o campo referente aos transtornos mentais, o que
pode ser bastante interessante em termos de um processo despatologizante, mas não
deixou de situá-la a partir de critérios diagnósticos.
Ora, se o que a CID-11 pretende fazer, ao dividir a transexualidade em tempos
distintos da vida, é o mesmo que o DSM-5 fez em 2013, de modo que não estaríamos
aqui falando de uma movimentação inovadora. Todavia, convém destacar algumas
especificidades em relação a tais manuais, pois embora pareçam repercutir das mesmas
formas, seus efeitos são diferentes. Enquanto o DSM tem uma proposta narrativa e
descritiva acerca dos transtornos a que se refere, a CID se apresenta enquanto uma
convenção médica que determina as características das patologias a médicos e outros

5
Nessa seção também há a presença de um diagnóstico não específico de Incongruência de Gênero, sob o
rótulo HA6Z.

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operadores de saúde (BENTO e PELÚCIO, 2012). Ademais, o DSM costuma circular


mais entre psiquiatras e profissionais de saúde mental do que entre outros operadores de
saúde. Diante disso, a CID tem uma capacidade de reverberar com maior intensidade
não só entre os que trabalham com adoecimentos psíquicos, mas também entre
enfermeiros, fisioterapeutas, odontólogos, entre outros.
Dessa forma, ainda que o diagnóstico de Incongruência de Gênero na Infância
(CID-11) esteja dando continuidade a um processo que teve início com a Disforia de
Gênero na Infância (DSM-5), o que se inaugura é uma série de desafios novos. Pois, se
assumimos que o DSM tem um potencial de impacto mais tímido, é necessário declarar
que a CID ampliou a possibilidade de intervenção na infância. Dito de um modo
simples, se a CID é utilizada por mais profissionais e se consolidou como um tratado
internacional de saúde, logo, seus códigos repercutem com maior expressão. De fato, ao
diagnostificar uma infância – supostamente trans – como incongruente não se está
apenas propondo um modelo de atendimento em saúde, mas situando a transexualidade
como um a priori clínico. E essa proposta deriva da ideia de que o natural é ser
cisgênero. Como traz Jesus (2015), a cisgeneridade refere-se às pessoas que não são
trans, ou seja, são aqueles que se identificam com o gênero designado ao nascer. Cis, do
latim, significa “do lado de cá”. Entretanto, o conceito não para por aí, ele surge com a
proposta de substituir os termos “mulher biológica” ou “homem de verdade” que faziam
com que as pessoas trans fossem vistas como artificiais ou paródias de um gênero
“verdadeiro”. Por esse ângulo, V. (2016) afirma que o ato de nomear a cisgeneridade é
um ato de nomear a norma, mas por que é tão importante nomear a norma? É que, do
contrário, ela se apresenta como natural, e os que dela escapam passam a ser vistos
como desvirtuados.
A cisgeneridade passa a ocupar um eixo central de análise, paralelo a conceitos
como “branquitude”, “sexismo” e “heteronormatividade”. Útil para pensar como uma
infância aparentemente trans é alvo de intrometimentos da ciência porque trata-se de
uma expressão não-normativa, que não preenche uma esperada coerência entre sexo,
gênero e desejo (BUTLER, 2015). Talvez a pergunta seja se faria sentido um

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diagnóstico de heterossexualidade na infância, ou quem sabe um diagnóstico de


cisgeneridade na infância, mas isso seria ilógico, uma vez que o que importa não é
compreender os modos de produção de desigualdade a partir dos marcadores sociais da
diferença, mas patologizar essa mesma diferença através de condutas que aparecem
como “bem-intencionadas”.
Bem-intencionadas em razão de duas questões: se por um lado os diagnósticos
de Disforia (DSM-5) ou Incongruência (CID-11) são articulados de maneira estratégica
para adultos, tendo em vista que a legislação de alguns países só oferece assistência em
saúde a partir de um código nosológico (BENTO e PELÚCIO, 2012), por outro lado
não temos os mesmos ganhos quando pensamos o deslocamento desses diagnósticos
para a infância. No Brasil, as proposições da CID-10 servem de guia para o Processo
Transexualizador n.º 2.803 (LIONÇO, 2009), isto é, a política pública mais expressiva
que é destinada à população de transexuais e travestis. Na ausência de um amparo da
OMS, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderia suspender o Processo Transexualizador.
Nesse sentido, o que esteve em disputa foi a possibilidade de se manter um
diagnóstico de gênero para pessoas adultas, mas sem o teor psicopatológico. Em outras
palavras, se trata de não situar a transexualidade como um transtorno mental, mas a
deslocar para seções que discutam “outras questões relacionadas à saúde” – processo
parecido com o que está em iminência na CID-11. E aqui convém destacar que essa
nova organização no guia foi apresentada pela mídia6 como a despatologização da
transexualidade, mas que não se trata exatamente disso, tendo em vista que os critérios
diagnósticos permanecem existindo, bem como a própria ideia de “incongruência” que
situa as identidades trans e travestis como antinaturais.
Justifica-se, portanto, a existência de um diagnóstico para pessoas adultas, pois
com ele poderão acessar serviços de hormonioterapia e intervenções cirúrgicas. Por
isso, o uso do diagnóstico é considerado estratégico (ARÁN, MURTA E LIONÇO,
2009), devido à sua capacidade de prover acesso à saúde por meio da direção menos
psicopatológica diante das possibilidades. Contudo, não se pode considerar estratégico
6
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/18/internacional/1529346704_000097.html>.
Acesso em: 30 de jan. de 2019.

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um diagnóstico de gênero na infância, nem fazer um uso estratégico do mesmo, pois


seus objetivos não são semelhantes às demandas da adolescência e vida adulta. Ora, não
se pretende hormonizar uma criança “trans” e tampouco operá-la genitalmente antes da
chegada da puberdade, é algo que sequer tem amparo7 do próprio Conselho Federal de
Medicina (CFM).
Desse modo, seria prudente considerar que os diagnósticos, tanto na infância
quanto na adolescência/vida adulta, cumprem a mesma função? Parece-nos que na
infância ele perde o seu caráter estratégico, pois é desnecessário garantir acesso a algo
que, primeiramente, desinteressa à própria infância. E talvez o ponto inicial dessa
discussão seja compreender as temporalidades da Incongruência de Gênero, que não vão
ter as mesmas consequências para todos os pacientes, mas que, sim, irão dispor de
efeitos distintos a depender das etapas da vida a que tais diagnósticos se destinam. Ora,
avaliar, diagnosticar e tratar sujeitos adultos se equivale a fazer o mesmo com sujeitos
crianças?

DIAGNÓSTICOS BENEVOLENTES

Se não é esperado encaminhar uma criança com diagnóstico de Incongruência de


Gênero a endocrinologistas e cirurgiões, o que remanesce é a oferta psicoterápica. Ao
menos tem sido essa a posição assumida pelo Programa de Identidade de Gênero
(PROTIG) e Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual
(AMTIGOS), em artigo submetido à revista Archives of Sexual Behavior. São duas
instituições de estados distintos, mas que têm trabalhado juntas na defesa da
permanência da GIC (Gender Incongruence of Childhood8) na nova revisão da CID.
No documento, Lobato et al (2016) afirma que:

[...] crianças gênero disfóricas necessitam urgentemente de serviços para


prevenir e reduzir os riscos associados às experiências horripilantes que

7
O CFM concebe a hormonioterapia somente a sujeitos que tenham mais de 16 anos. Disponível em: <
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/2013/8_2013.pdf>. Acesso em: 30 de jan. de 2019.
8
Incongruência de Gênero na Infância (IGI).

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impactam muitos adultos que nunca tiveram nenhum suporte de profissionais


de saúde mental (tradução nossa, n. p.).

E continuam a defesa ao diagnóstico, discorrendo que ele se faz necessário:

[...] pela proteção e suporte às crianças transgêneras do nosso contexto, que


continuam marcadas por um grave preconceito e discriminação devido à
diversidade sexual e de gênero. É crucial que a GIC continue na CID
(LOBATO et al, 2016, tradução nossa, n. p.).

Encaminhado para a World Professional Association for Transgender Health


(WPATH), esse mesmo documento propõe-se a convencer os outros membros da
associação acerca da importância da Incongruência de Gênero constar na CID-11,
apesar das discordâncias entre aqueles que compõem a WPATH, pois com esse
diagnóstico seria possível dar suporte e proteção às crianças, assim como prevenir e
reduzir riscos associados a experiências de violência. Em outros termos, é demandada a
permanência de um código de adoecimento no referido manual de saúde, algo que pode
ser estigmatizante, para que possam prevenir futuros estigmas. Um paradoxo. Querem
criar o problema, para depois resolvê-lo.
Tal visão parte do princípio que as patologias de gênero não interferem em
outros campos da vida do sujeito, como se uma determinação nosológica não esbarrasse
em esferas como a família, o direito, a educação, entre outras. Essa é uma perspectiva
amplamente abordada por Bento (2014), quando a autora afirma que a patologização
das identidades trans não se restringe à área da saúde, mas que escapa para o social. Por
esse ângulo, seria arriscado pressupor que a existência de um diagnóstico de
“incongruência” ou “disforia” viabiliza mais vulnerabilidade?
De acordo com Butler (2009), sim. O diagnóstico de gênero exerce pressão
social. Ademais, embora seja dito que ele é útil para possibilitar um encontro do sujeito
consigo mesmo, ao passo que pode fazer isso, também produz uma versão mais
engessada das normas de gênero. Nesse sentido, a autora irá apontar que tal diagnóstico
percorre um caminho ambíguo, pois é aquele que leva ao alívio do sofrimento enquanto
causa esse próprio sofrimento que necessita ser aliviado (BUTLER, 2009). Dessa
forma, parece-nos que os esforços do PROTIG e do AMTIGOS acarretam na criação de

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um círculo vicioso, uma vez que pretendem oferecer serviços para estigmas que têm
sido ignorados.
Diagnóstico de gênero, quando não relacionado a fins estratégicos, fabrica mais
adoecimento do que possibilidade de ação (BUTLER, 2009), mas é aqui que a infância
o autoriza a se apresentar de outra forma: através de sua benevolência. Não se busca
diagnosticar a infância para fazê-la mal de alguma forma, mas para protegê-la de algo:
da ausência de políticas públicas, do preconceito, da escola, dos próprios pais, etc. E em
nome das próprias crianças, o diagnóstico de Incongruência de Gênero tem sido
defendido. Não é devido ao interesse dos profissionais em realizar suas pesquisas, ou à
determinada reserva de mercado, mas em suposta razão do bem-estar da infância. O que
nos revela o aspecto tutelar do diagnóstico de gênero na infância, por entendê-la como
um risco eminente que deve receber amparo de consultórios em saúde mental.
A valer, o dado é que a psicologia nunca precisou de um diagnóstico para prover
suporte e proteção a alguma população, especialmente crianças. E também não
necessitou recorrer a um manual de saúde para isso. Tendo o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) em mãos, o psicólogo terá acesso à Lei n° 8.069, de 1990,
responsável por garantir que nenhuma criança ou adolescente seja alvo de negligência,
discriminação, violência, crueldade e opressão. Esse deslocamento implica pensar o
cuidado não somente através da saúde, mas a partir de âmbitos outros, tais como os
Direitos Humanos e a Constituição Brasileira.
De outro modo, estaríamos assumindo que a psicologia e as ciências médicas
sempre precisaram de um rótulo nosológico para poder agir. E, afinal, não é possível
atender sem diagnóstico? Se o código de Incongruência de Gênero na Infância é útil
para nortear crianças às psicoterapias, levando em consideração a pouca idade e o
prematuro desenvolvimento físico para intervenções mais dramáticas, então ele é
desnecessário. Os serviços garantidos pelo Processo Transexualizador (Portaria n.º
2.803) são de acompanhamento clínico, pré e pós-hormonioterapia, assim como de
acompanhamento pré e pós-operatório. Sabe-se, contudo, que não são serviços
direcionados ao público infantil.

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Dizemos que é desnecessário, então, um código de patologia para garantir a


oferta psicoterápica, mas não que ela – a psicoterapia em si – seja desnecessária. São
coisas diferentes. Entretanto, talvez por se tratar de um atendimento
psicológico/psiquiátrico, se apresenta a ideia de que ele é benéfico para o paciente. E
esse é um estereótipo clássico na história da saúde mental. As psicoterapias podem, sim,
ser bastante potentes e interessantes clinicamente, mas também são capazes de produzir
adoecimentos (BRASIL, 2009), especialmente quando desnecessárias.
Nesse contexto em que o diagnóstico de gênero na infância insiste em se exibir
como benévolo, tendo como embasamento teórico a preocupação e o cuidado dos
profissionais envolvidos com essa população, não se avalia crianças consideradas trans
a partir de uma perspectiva científica, mas a partir da generosidade dos operadores em
saúde. Diagnostica-se porque querem cuidar. Diagnostica-se porque querem prevenir.
Diagnostica-se porque há um atravessamento filantrópico em suas práticas. E o que, a
não ser a infância, seria tão capaz de produzir essa compaixão-epistemológica? Assim
vai sendo traçado o caráter tutelar do diagnóstico de gênero na infância.
É a partir disso que entendemos que, diferente do uso estratégico da
patologização na vida adulta de pessoas trans, tal diagnóstico na infância acompanha
um suposto processo benevolente dentro das ciências médicas e da saúde mental,
situando a “proteção” como justificativa para atendimento de crianças consideradas
trans. Contudo, manter a Incongruência de Gênero na Infância na revisão da CID-11
perante esse argumento é algo que perde o sentido a partir do momento que se procura o
fortalecimento de direitos a partir de outros setores, desobrigando a saúde de garantias
que cabem à Constituição Federal e ao ECA.
Não se trata de dizer que tais profissionais e instituições não possam expressar
compaixão com os temas de suas pesquisas, ou de sequer duvidar de suas preocupações,
que são legítimas, o que está em discussão é pensar que um código de patologia na CID
requer uma justificativa nosológica mais convincente do que a que está sendo
apresentada. Seria imprudente desconsiderar a importância do exercício de seus
trabalhos frente a famílias que testemunham o gênero para além da binariedade. Longe

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de ser um atendimento fácil, convém reconhecer o caráter desafiador em lidar com


gênero e infância em nossos cotidianos laborais. Apesar disso, a via do diagnóstico é
apenas uma forma, e talvez a mais controversa delas, de promover a cidadania de um
sujeito. Pode-se tencionar que, se há implicação em gerar serviços para prevenir e
minimizar os efeitos do preconceito, porventura fosse mais interessante pensar em lutas
para fortalecer, enquanto profissão, as garantias constitucionais voltadas à infância e
adolescência.

“QUANTO ANTES COMEÇAR, MELHOR FICARÁ”

Outro argumento comumente utilizado frente a uma defesa do diagnóstico de


gênero na infância é referente à possibilidade de sucesso de uma intervenção precoce.
Entende-se que, quanto mais cedo se inicia um acompanhamento psicoterápico,
melhores seriam os resultados psíquicos durante a adolescência e vida adulta. O mesmo
vale para as intervenções corporais. Quanto mais cedo se faz uso dos bloqueadores
hormonais ou se inicia a terapia hormonal, melhores serão as respostas do corpo nos
anos seguintes. Embora sejam bem intencionadas, são premissas que se baseiam na
ideia de que as identidades trans necessitam de aprimoramento.
Pensar a oferta psicológica a crianças “trans” é um processo que só faz sentido
se abandonarmos a obviedade que se apresenta junto à própria psicoterapia. Pois bem,
caso não pensássemos que a transexualidade é uma demanda clínica, talvez não
considerássemos óbvia a ideia de que pessoas trans devem procurar atendimentos em
saúde mental, independentemente de serem crianças ou pessoas adultas. Pressupõe-se
que ser trans é uma adversidade, e que isso se configura como uma demanda clínica.
Todavia, pode acontecer da transexualidade não ser vista pelo sujeito como um
problema a ser discutido com o profissional de saúde mental, fazendo com que o
impulso por discutir essa questão de gênero apareça muito mais da parte do profissional
do que do paciente.
Não se busca questionar se uma psicoterapia durante a infância seria capaz de
gerar benefícios para alguém, isso nos parece evidente. O que procuramos questionar é

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a razão disso ser protocolado a um tipo de infância apenas, que é a pertencente às


pessoas trans e travestis. Infâncias aparentemente heterossexuais, segundo essa lógica,
devem não precisar do mesmo tipo de suporte técnico. Noção que se deve ao fato da
heterossexualidade não ser encarada como um desvio da infância, mas a infância em seu
mais perfeito funcionamento.
Soma-se a isso a ideia de que as intervenções no campo dos hormônios sexuais
devem ser iniciadas cada vez mais cedo. E o mais irônico em relação ao adiantamento
progressivo da terapia hormonal é que essa demanda surge para garantir um melhor
resultado estético. Nesse sentido, perdem força as afirmações do documento Guidelines
for Psychological Practice With Transgender and Gender Nonconforming People
(APA, 2015). O guia relata que uma transição tardia pode alcançar mudanças somente
superficiais, sem graves transformações devido ao decréscimo de hormônios naturais ao
envelhecimento. Ou seja, dá indícios de considerar estimado que tais intervenções
aconteçam o quanto antes.
Embora esteja em jogo um reconhecimento de como o estradiol e a testosterona
atuam com mais eficácia conforme sejam usados mais cedo, é interessante pensar como
essa se trata de uma orientação controversa. Se o indicado ao paciente é que inicie logo
a sua terapia hormonal, em determinada corrida contra o tempo, com objetivo de
alcançar um sucesso estético posterior, é preciso não tomar esse “sucesso” como um
dado irrelevante. Afinal, de qual resultado estamos falando? Ora, as mesmas diretrizes
que afirmam a importância de uma intervenção precoce orientam que o profissional
tenha uma postura crítica em relação aos papéis de gênero.
Em outros termos, ao mesmo tempo em que há um estímulo à antecipação das
intervenções hormonais, que faria o paciente melhor adequar-se a uma aparência ideal
do sexo oposto, existe um consenso de que a psicoterapia deve problematizar essa
concepção normativa acerca da estética de homens e mulheres. Nas palavras de Prado
(2018), isso ocorre pois:

olhamos para os corpos trans a partir de uma visão patologizadora, buscando


neles coerência do sistema sexo-gênero. Os miramos buscando sempre a

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ideia de que se é mulher esse corpo tem que ser feminino, se é homem tem
que ser masculino (p. 33).

Convém destacar, entretanto, que o desejo por parecer o mais próximo do


modelo “feminino” não se trata exatamente um problema. Que um paciente queira,
deseje e busque estar dentro de um padrão de feminilidade não é, necessariamente, um
sinal de alerta. Que a psicologia corrobore com isso, ainda que com boas intenções,
compreendendo que devem ser feitos esforços na infância para resultados melhores na
vida adulta, é uma proposta incompatível até mesmo com o objetivo do referido
documento. De acordo com a APA (2015), “psicólogos podem auxiliar pessoas TGNC9
a desafiar as normas e estereótipos de gênero, bem como a explorar sua singular
identidade de gênero e expressão de gênero” (p, 835, tradução nossa).
Fora questionar a necessidade de um resultado “satisfatório” ocasionado pelo
uso precoce de bloqueadores ou hormônios em crianças diagnosticadas como trans, é
preciso interrogar que resultado é esse. O que garante satisfação? Por que propor que os
resultados devem ser melhores? Melhores em relação a quê? Se distanciar o máximo
possível de características que denunciem a transexualidade entraria no quadro de uma
percepção satisfatória? Caso essa hipótese esteja correta, quais são os efeitos
terapêuticos de um discurso que impõe a própria identidade do sujeito como algo a ser
disfarçado? Ademais, desde quando uma disciplina que se importava com o sentir,
pensar e agir passou a se preocupar com a aparência dos pacientes?
De fato, a depender do grau de diretividade da abordagem psicológica, não é que
a aparência dos pacientes seja desimportante, mas se um paciente nos procura porque
quer perder peso, e perde peso durante o processo terapêutico, não caberá a nós,
enquanto profissionais, comemorarmos esse emagrecimento. Pelo contrário, caberá
estar interessado em entender o sentido que o paciente dá à perda de peso. Celebrar seu
emagrecimento poderia fazer com que, posteriormente, frente a um possível ganho de
peso, o paciente se sentisse pressionado, como se tivesse falhado de alguma forma.

9
TGNC, no documento da APA (2015), significa transgender and gender nonconforming. Em português,
seria equivalente a “transgênero e gênero não-conforme”.

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Do mesmo modo, um paciente que, por exemplo, busque ajuda para “deixar de
parecer trans” não faz com que o foco do tratamento seja fazê-lo realizar cirurgias ou
iniciar a terapia hormonal, mas auxiliá-lo a entender os desdobramentos do contexto
social em sua própria identidade. Daí em diante ele pode decidir se operar ou não. Pode
decidir se hormonizar ou não. E ocasionalmente isso até deixe de ser um conflito. As
possibilidades são múltiplas. Como bem lembra Teixeira (2012), é um reducionismo
considerar as pessoas trans e travestis como presas em um corpo errado à espera de uma
cirurgia que irá trazer inteligibilidade e reconhecimento.
Evidentemente que uma aparência mais próxima da norma pode fazer com que o
sujeito consiga não vivenciar algumas violências cotidianas. Assim, ter passabilidade, o
que segundo a APA (2015) seria relacionado a ser percebido enquanto cisgênero, não é
necessariamente um objetivo negativo. E a própria associação reconhece isso. O ponto é
que nos soaria inadequado guiar o paciente tanto a uma busca pela aparência cisgênera
quanto à recusa dessa estética, uma vez que as consequências disso não serão
enfrentadas pelos profissionais. Cabe pensar a trans-autonomia como uma saída, uma
prática, não um conceito, útil para possibilitar a determinação do próprio gênero para
além das exigências institucionais de confirmação diagnóstica (ARÁN, MURTA e
LIONÇO, 2009).

INFÂNCIAS (IM)POSSÍVEIS

Embora o diagnóstico de Incongruência de Gênero na Infância destine-se


especificamente a crianças consideradas trans, ele não se esgota nesse campo. Afinal, ao
se produzir uma infância incongruente, o que se faz é também o contrário: produz-se
uma infância normativa. Em outras palavras, definir como incongruente um tipo de
infância é fazer com que se desenhem os contornos de uma infância congruente, mas de
qual congruência estamos falando?
Na perspectiva de Canguilhem (1995), os fenômenos patológicos não são
variações dos fenômenos saudáveis, o que nos leva a afirmar que as infâncias trans não
se tratariam de versões variadas das infâncias cis. Todavia, não é através dessa

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compreensão que funcionam os diagnósticos de gênero, pois se baseiam na ideia de que


a transexualidade “infantil” é um desvio da cisgeneridade “infantil”, fazendo com que
os esforços clínicos conduzam-se através de uma leitura psicopatológica. Apesar disso,
é preciso ter em mente que a patologia não pode ser analisada de acordo com a pretensa
coerência da saúde (CANGUILHEM, 1995).
É a partir desse entendimento que se questiona os fundamentos nosológicos que
impõem a clínica psicológica às infâncias incongruentes, sob o argumento de que seria
um benefício a elas. De fato, quais níveis de benefícios podem ser gerados por um
processo psicoterapêutico que se insiste, se decreta e se divulga enquanto necessário?
Ora, parte-se da noção de que, diferente das outras crianças, as que são trans devem
possuir alguma incapacidade intrínseca de lidar com o próprio desenvolvimento. Um
olhar individualista acerca do sujeito, pois o que realmente interessa à análise não são as
habilidades sociais da criança, e sim as normas de gênero que não concebem a
existência dessa infância.
Vale destacar, entretanto, que essa restrita oferta psicológica direciona-se às
crianças consideradas trans sem maiores questionamentos. Surge como uma questão
evidente. Se os que são cisgêneros crescem e permanecem se identificando com os
signos masculinos (pênis) e femininos (vagina), constituindo-se como normais, os que
subvertem esse roteiro devem passar por uma avaliação – e os encarregados de fazê-la
são os profissionais de saúde mental. Seja para atender. Seja para tratar. Seja para fins
de pesquisa. E ainda de acordo com Canguilhem (1995), o patológico surge apenas
quando analisado em uma relação, isto é, fora da relação com a cisgeneridade as
crianças trans não adquiririam a condição de anormal.
Mais uma vez, não se trata de afirmar que o caminho para resolver essa oferta
restrita seria ampliar a psicoterapia a toda e qualquer criança. É menos sobre dizer que
partir desse momento todas as infâncias devem ser supervisionadas por psicólogos e
psiquiatras, e mais sobre pensar que algumas crianças tidas como trans podem precisar
de suporte psíquico, mas que isso não deve ser generalizado. Afinal, ser trans é um
dentre vários outros marcadores que compõem o sujeito. De outro modo, estaríamos

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contribuindo com a ideia de que pessoas trans não podem ter um transtorno mental,
conforme aponta o CFM, na Resolução n° 1.955, referente à cirurgia de
transgenitalização no Brasil.
Nessa Resolução, o Conselho reassegura que o paciente transexual trata-se
daquele que sente um desconforto intenso com o sexo anatômico, assim como um
desejo de eliminar os genitais e as características primárias e secundárias do próprio
sexo. Tal determinação define os limites de acesso à categoria transexual, relegando às
margens os sujeitos trans que não se enquadram nesse perfil psicopatológico clássico.
Ainda, é demandado pelo CFM que o sujeito vivencie esses sintomas pelo período
mínimo de dois anos. Tempo que serve para observar se a transexualidade se articula a
(mais) algum transtorno, conforme a lógica de que as identidades trans e travestis se
tratam de adoecimentos. O Art. 4° da Resolução diz que o sujeito transexual não deve
ter “outro” transtorno mental, fornecendo indícios de que é inadmissível a presença de
alguma comorbidade10 com a transexualidade.
No entanto, esse artigo foi alterado posteriormente, sendo possível observar a
edição onde consta uma nota para que o leitor entenda “outro transtorno” como “algum
transtorno”. Embora essa reformulação dê indícios de que o CFM tem deixado de
encarar a transexualidade como um transtorno, ela sugere que as comorbidades
permanecem não sendo permitidas. Ou seja, em caso de algum paciente transexual
apresentar algum diagnóstico que não seja o de F.64.0, o profissional pode acabar
entendendo que a transexualidade é um sintoma de algo – de um transtorno psicótico,
por exemplo, mas não em si mesma. Assim, a transexuais não são permitidos quaisquer
tipos de adoecimentos psíquicos, apesar de que, paradoxalmente, sejam reconhecidas as
violências sociais que acometem essa população.
Ainda pensando através dessa lógica, em que algumas coisas não são
consentidas clinicamente em relação à transexualidade, nos parece que a infância parte
de um funcionamento similar. E um dos instrumentos sociais para impedir a
relativização da infância é o delineamento de seus limites. Não é apenas sobre definir

10
Essa é uma discussão apontada por Arán e Murta (2009).

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até onde a infância pode ir, mas entender que essas fronteiras precisam ser consideradas
perigosas, pois assim passam a ser evitadas. É a partir disso que as infâncias que
subvertem os sistemas de sexo e gênero passam a ser vistas como riscos à saúde do
sujeito, quando não à sua própria vida.
Não obstante, o diagnóstico de gênero na infância pulveriza em outras
identidades, como é o caso da intersexualidade, fazendo com o debate se complexifique
ainda mais. Amplamente discutida por Machado (2005), as crianças e jovens intersex
são submetidas a algum tipo de cirurgia de “correção” da genitália logo cedo. Parte-se
da compreensão de que é necessário operá-las o quanto antes, caso contrário, surgirão
disfunções psicológicas e sociais ao longo do desenvolvimento. Todavia, tais cirurgias
não têm impedido o aparecimento dessas exatas questões, podendo inclusive ser as
propulsoras de tais sofrimentos. Mobilizações recentes de profissionais do Hospital das
Clínicas do Rio Grande do Sul, afirmam que as cirurgias de “binarização” sexual devem
ser realizadas precocemente, pois a espera para realizá-las depois pode ocasionar em
consequências catastróficas na vida adulta (HEMESATH et al, 2019).
Furar a orelha de uma menina, tratar seu cabelo com químicas, expor meninos a
brincadeiras violentas para legitimar um tipo de masculinidade, essas e outras situações
não se apresentam como ameaças a um corpo infantil, mas como um processo
necessário à reiteração da norma. Dizer-se trans, todavia, emerge uma série de
apontamentos em relação ao bem-estar daquele corpo, pois a transexualidade é vista
como um perigo. Um perigo clínico, assim como um perigo social. Clínico segundo
uma interpretação nosológica, de que aquela criança pode ter manifestado isso devido a
algum evento traumático, e social em razão do contexto transfóbico a que são
submetidas as pessoas trans.
E apesar de ser, sim, imprudente afirmar que não exista perigo social, tal
constatação não se direciona a um tensionamento das normas de gênero, que produzem
e sustentam as violências transfóbicas, mas procura fazer evitar com que as crianças
sequer sejam trans. Cautela, no entanto, com o sentido dado a essa afirmação. Ao longo
do presente trabalho, buscamos situar as crianças tidas como trans a partir de uma

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postura hesitante, mas não para dizer que a transexualidade é uma fase, e sim para
pensar que o engessamento da mesma pode funcionar de forma contraproducente. O
fato é que não nos interessa afirmar que existem crianças trans, em oposição às
investidas de setores conservadores11 que dizem que tais infâncias simplesmente não
existem. O que nos interessa é deslocar o modo que realizamos as perguntas e
elaboramos nossas explicações.
Nesse sentido, não nos é fundamental responder à insistência dos que querem
saber se, afinal, existem crianças trans ou não. Pensar infância e gênero é uma atividade
que exige abrir mão do modo tradicional de interrogar. Mas o que queremos dizer com
isso? Alguém que passou pela adolescência, vida adulta e somente quando mais velho
decidiu transicionar, teria sua infância interpretada como trans? Ou então, alguém que
na infância chegou a ser diagnosticado como transexual, mas que ao longo da
adolescência decidiu rever essa decisão, deixaria de ter sido uma criança trans? Parece a
nós que tais perguntas revelam a necessidade de discutir infância e gênero através de um
outro funcionamento.
É pouco relevante, portanto, saber se é trans ou não, mas compreender quais são
as possibilidades de emergência dessas infâncias em primeiro lugar. Ou não nos chama
atenção o fato da infância que subverte o gênero ser chamada de infância “trans” e
nunca de infância “travesti”? Uma infância travesti significaria não somente um
rompimento com as investidas nosológicas, visto que a travestilidade não foi capturada
da mesma forma que a transexualidade pelo discurso médico, mas significaria também
associar à infância uma identidade profundamente ligada à precariedade, trabalho
informal e liberdade sexual.
Aparentemente, existe uma forma adequada até mesmo para ser uma criança
trans, pois é por meio de seu apelo clínico que se constrói uma rede de apoio familiar,
escolar e social. O que, de fato, é bastante interessante. É menos sobre ler as
intervenções em saúde como necessariamente ruins, e mais sobre entender que é
exclusivamente por meio delas que tem sido possível alcançar cidadania. Acolhem-se os

11
Sobre o pânico moral relacionado à suposta “ideologia de gênero”, ler Miskolci e Campana (2017).

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pacientes que reproduzem a narrativa diagnóstica, que segundo Bento (2006) seriam
aqueles que melhor se enquadram à norma. Agora, sim, a pergunta: o que acontece às
travestis e pessoas trans que, independentemente de suas idades, são incapazes de
invocar a piedade da clínica?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O diagnóstico de gênero não é exatamente uma novidade. Transexualismo.


Transtorno de identidade de gênero. Disforia de gênero. Incongruência de gênero.
Enfim, foram diversos os termos utilizados ao longo da história da psiquiatria para
classificar os “desviantes” de gênero. Mais recentemente, as noções de disforia e
incongruência têm trabalhado juntas para diminuir a carga patologizante que
“transexualismo” e “transtorno de identidade de gênero” traziam.
Todavia, disforia e incongruência são termos relacionais, ou seja, funcionam
justamente porque se referem a algo que é tanto eufórico quanto congruente: a
cisgeneridade. Identidades trans e travestis são julgadas de acordo com a coerência e de
corpos cisgêneros, fazendo com que sejam encarados enquanto variações, mas não
possibilidades. Nesse percurso, uma série de disputas se apresenta, e uma delas é em
relação à retirada ou manutenção do diagnóstico de gênero em pessoas adultas, pois ele
permitiria o acesso e garantia de direitos. Decide-se, portanto, por mantê-lo, sob a
condição de deslocá-lo a uma seção relativa a outras condições de saúde, fazendo com
que perca, pouco a pouco, suas características psicopatológicas.
Meio a isso, durante um processo que prometia despatologizar a transexualidade,
ou minimamente realocá-la de maneira estratégica, surge um diagnóstico de gênero para
a infância, com promessa de ser tão benéfico quanto. Embora as ferramentas que o
diagnóstico dispõe, ou seja, a hormonioterapia e as cirurgias genitais, sejam
desinteressantes à própria infância. De todo modo, instituições envolvidas com o
atendimento a essa população têm se mostrado interessada na permanência desse
diagnóstico na nova revisão da CID, prevista para 2019.

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E paralelo a elas, se encontram os ativismos trans divididos, pois se existe um


grupo que entende a periculosidade de ampliar as intervenções na infância, há também
aquele contingente que considera solidária uma proposta patologizante em crianças
consideradas trans. Essa concordância paradoxal entre ativismos e operadores de saúde
pode fazer com que se tornem uma realidade os tratamentos precoces em casos de
transexualidade. Ainda, a antecipação de tais tratamentos sendo justificadas sob o rótulo
de que proporcionarão melhores resultados no futuro. Esses melhores resultados,
contudo, não são simples melhorias estéticas, mas aproximações com a norma.
Controversamente, os atendimentos psicológicos têm se baseado em diretrizes,
em outras palavras, em recomendações, para que os profissionais de psicologia
incentivem os pacientes a questionar os padrões de gênero. Cria-se o problema para
poder resolvê-lo. Em perspectiva contrária, entendemos que existem riscos envolvidos
na defesa de um tratamento precoce para as identidades trans e travestis, tendo em vista
que isso abre portas para que crianças absorvam a narrativa médica acerca do que é ser
homem e do que é ser uma mulher.
Não se tratando de um diagnóstico estratégico, a Incongruência de Gênero na
infância deve ser analisada com mais cautela, pois apesar de surgir em forma de
preocupação e cuidado por parte dos operadores de saúde envolvidos com essa
população, é preciso reconhecer que nem sempre boas intenções levarão a boas práticas.
E que a insistência em atender crianças vistas como trans, a todo e qualquer custo,
fornece indicativos de ser um exercício tutelar. Uma vez questionada a benevolência do
diagnóstico de gênero para crianças, espera-se que seja possível notar como se trata de
um processo que carece de cientificidade, mas serve a interesses de pesquisa e mercado.
Ora, mesmo sendo evidente, convém destacar que (des)diagnosticar não impede a
continuidade das pesquisas, não dificulta o seguimento dos tratamentos terapêuticos e
certamente não implica em desassistência (PRADO, 2018).
É possível fazer pesquisa, atender e promover assistência sem fortalecer valores
de uma infância dita normal. Necessita-se mesmo de um rótulo nosológico para
pesquisar a saúde da mulher, da população negra e indígena? Aparentemente, não. A

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ética, os direitos humanos e as garantias constitucionais, assim como os contextos de


vulnerabilidade desses sujeitos, dão amparo e sustentação às propostas de investigação
que se destinam a estudar tais temas. Desde quando foi necessário patologizar para
atender? E sob qual justificativa se entende que é preciso intervir precocemente em
infâncias consideradas incongruentes de gênero?
Caso seja preciso intervir mais cedo devido ao contexto opressor em que está
situado o sujeito, para prepará-lo de alguma forma em termos de suportabilidade, os
esforços diagnósticos deveriam ser voltados para as violações sociais, e não para o
indivíduo. Se é devido à possibilidade de melhoria na aparência ou níveis hormonais do
sujeito, decerto, convém refletir se a psicologia realmente desejará ser esse espaço de
estímulo e aprimoramento estético. E, assim, assumir a sua posição enquanto disciplina
conivente com a norma.
De toda forma, definir que crianças tidas como trans precisam tanto de
diagnóstico quanto de assistência precoce é uma atribuição psicologicamente ambígua,
por 1) basear-se em um lugar-comum, que se refere às identidades trans e travestis
como causadoras de sofrimento; 2) reproduzir a lógica de atendimentos individuais para
tentar dar conta de questões estruturais; 3) e ampliar as intervenções na infância. Por
fim, que um paciente tenha pressa, certamente, é algo compreensível. Não nos causa
espanto entender a impaciência de um sujeito que viveu períodos de sua vida sem ter
seu gênero legitimado. Que nós tenhamos pressa para vê-lo mudar, e mudar o quanto
antes, com efeito, é um trabalho que pode ter vários nomes, mas o menos adequado
talvez fosse chamá-lo de “terapia”.

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PROBLEMATIZANDO GÊNERO E SEXUALIDADE EM


INTERLOCUÇÃO COM EDUCADORAS/RES DE UMA ESCOLA
CONFESSIONAL-FILANTRÓPICA

PROBLEMATIZING GENDER AND SEXUALITY IN INTERLOCUTION WITH


TEACHERS FROM A CONFESSIONAL-PHILANTHROPIC SCHOOL

Fernando Altair Pocahy1


Priscila Gomes Dornelles2

RESUMO
Este artigo analisa como determinadas redes discursivas se (re)produzem nos processos educativos diante dos
dispositivos da sexualidade e das normas regulatórias de gênero, tomando como foco os discursos da
heteronormatividade e sua potência na produção de subjetividades em cotidianos escolares. Para isso, dialogamos com
os Estudos Feministas e queer de modo a privilegiar as produções no campo da Educação em interface com a escola.
Como opção metodológica, este estudo analisou primariamente entrevistas realizadas em uma instituição confessional
e filantrópica de ensino fundamental e médio, localizada em uma cidade de grande porte no estado do Ceará. Para
tratamento deste material, utilizamos a análise de discurso inspirados/as em perspectiva foucaultiana. Esta abordagem
teórico-analítica nos permitiu apontar que os/as educadores/ras assumem posições de sujeito localizadas em planos
hetero/normativos, bem como disposições menos rígidas em relação a estes discursos. O que nos fez ponderar sobre

Submetido em: 05/04/2019 Aceito em: 20/04/2019 Publicado em: 01/06/2019


1
Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) atuando na Faculdade de Educação, junto
ao Departamento de Estudos Aplicados ao Ensino e ao Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd). É
coordenador do GENI - Grupo de Estudos em Gênero, Sexualidade e(m) Interseccionalidades na Educação e(m)
Saúde. Bolsista da FAPERJ no programa Jovem Cientista do Nosso Estado (2015-2018) e do Programa de Incentivo
à Produção Científica, Técnica e Artística/ PROCIÊNCIA-UERJ-FAPERJ (início 2015, em vigência). É Doutor em
Educação e Mestre em Psicologia Social e Institucional, ambos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), com bolsa CAPES, vinculado respectivamente aos grupos GEERGE - Grupo de Estudos em Educação e
Relações de Gênero e ao Laboratório de Psicologia e Políticas Públicas. É graduado em Psicologia pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Atualmente é Editor Associado da Revista Interface - Comunicação, Saúde e
Educação - Unesp Botucatu.
2
Licenciada em Educação Física pela UFRGS, é especialista em Pedagogias do Corpo e da Saúde, mestre e doutora
em Educação ela mesma instituição. É integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero
(Geerge/UFRGS), do Gepefe/UFRB (Grupo de Estudos e Pesquisas e Educação, Formação de Professores e Educação
Física) e do núcleo Capitu/ UFRB (Gênero, Diversidade e Sexualidade). Atualmente é professora do Centro de
Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), professora vinculada ao Mestrado
Profissional em Educação do Campo da UFRB e coordena o subprojeto de Educação Física do Pibid e o projeto de
extensão “Futsal Feminino em Amargosa: rompendo fronteiras de gênero” na mesma instituição. Atua,
prioritariamente, no âmbito das discussões/ações sobre formação de professores; Educação Física Escolar; relações
de gênero, sexualidade, educação e educação do campo; estágio em Educação Física.

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um arranjo difuso de conjuntos enunciativos materializados em pedagogias de gênero e da sexualidade nestes


cotidianos escolares, ao mesmo tempo em que percebemos condutas pedagógicas que funcionavam de modo crítico
em relação aos estabelecidos normativos. Estes resultados nos informam algo de uma agonística cotidiana na educação
e, neste sentido, revelam movimentos que (re)posicionam professoras e professores diante das tramas da
heteronormatividade - seja através das formas de sujeição e das ortopedias pedagógicas, seja no plano da resistência
e (re)invenção de (micro)políticas do cotidiano escolar.
PALAVRAS-CHAVES: Educação; Escola; Gênero; Sexualidade; Heteronormatividade.

ABSTRACT
This paper analyses how specific discursive webs are (re)produced in educational processes by the contrivances of
sexuality and gender focusing the discourses of heteronormativity and its power in the production of subjectivities in
school everyday. To do that, we dialogue with the queer and Feminist Studies to privilege productions in the field of
Education in interface with school. As methodological option, this study firstly analysed interviews made in a
confessional and philanthropic institution of elementary and secondary education, located in a crowded city in the
state of Ceará/Brazil. To treat that material, we used the discourse analysis inspired on a foulcaultian perspective. That
theoretical-analytical approach allowed us to point out that the educators assume a position as subjects located in
hetero/homonormative plans as well as a little bit less strict dispositions related to those discourses. That made us
ponder a diffuse arrangement of materialised enunciating sets in gender and sexuality pedagogies of that everyday
school life as long as we also realise pedagogical conducts that worked out in a critical way in relation to the previously
stablished as normative. Those results inform kind of an everyday agonistic in education and therefore reveal
movements that (re)position teachers before the plots of heteronormativity as by forms of subjection and of
pedagogical orthopaedics as on the resistance plan and (re)invention of (micro)policies of the school everyday.
Keywords: Education; School; Gender; Sexuality; Heteronormativity.

INTRODUÇÃO

A diversidade cultural e os dilemas de uma sociedade complexa e híbrida, como a nossa,


fazem da escola o espectro plural, desigual e diverso da educação em nosso país. A
institucionalização da educação básica no Brasil acontece, efetivamente, em desacordo com a
pluralidade regional, institucional e desde as especificidades de seus diversos níveis de ensino e
esferas de gestão – pública ou privada. Diante de tantas possibilidades culturais e contextuais,
destacamos os efeitos dos compromissos biopolíticos (Foucault, 1997 [1976]) engendrados e
‘assumidos’ pela/na escola através da (re)produção de discursos sobre raça/etnia, gênero e
sexualidade. Esta herança e fidelidade políticas se articulam enquanto dispositivos na ficção de
um conceito de “humano ideal” assumido por discursos que busca(va)m hegemonia na educação.
Vinculada a estes ‘jogos’ de poder característicos da modernidade, a escola ocupa certa evidência
como um dos espaços sociais privilegiados nas tramas políticas geridas para a produção de modos

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de vida e, mais amplamente, voltados à agonística social da democracia brasileira.


Nestes termos, consideramos as políticas públicas que definem e se articulam na
composição do campo da educação (escolar) como práticas de subjetivação potentes na
contemporaneidade. Nossa aposta consiste em assumirmos que a política pública, qualquer que
seja ela, sempre e incondicionalmente, exerce uma pedagogia cultural3 ao propor e/ou informar
algo na/da/sobre a produção de modos de vida. Isto é, uma política pública é, antes de tudo, uma
produção político-discursiva através da qual os sujeitos estabelecem uma sorte de relações consigo
mesmos diante de certos códigos morais e de determinados discursos estabelecidos, materializados
em institucionalidades programáticas que cercam sua existência, a de seus pares e, mais
amplamente, a de uma comunidade, um grupo ou um coletivo.
A esse movimento de produção do sujeito na contemporaneidade, inspirados/as em
Foucault (1995), compreendemos os modos de subjetivação. Isto é, analisamos as políticas
educativas em acordo com o argumento de que as subjetividades e as relações sociais se constituem
em jogos de saber-poder oferecendo um ideal regulatório para as vidas, um ideal que oferece uma
noção de humano que importa e, consequentemente, habilitado a circular nos domínios do viável
e do possível na vida em sociedade e nos espaços educativos escolares como o sujeito escolar
normal. Ao mesmo instante em que define uma ontologia política do que pensamos ser a cidadania,
nestas tramas do poder produz-se uma marca indelével sobre o sentido do educar para sua época,
lugar e cultura – estabelecendo os limites da participação social e da democracia como uma disputa
constante.
Neste estudo, objetivaremos uma análise dos discursos em torno da sexualidade e das
práticas regulatórias que definem o gênero na sua feitura binária (masculino e feminino). Dessa
forma, ao engajarmo-nos em produções de estudiosas e estudiosos no campo da educação (Louro,
2011; Meyer, 2013) que visibilizam e/ou demarcam àqueles/as insurgentes e/ou contestantes das
marcas do humano viável e possível neste jogo social, buscamos acompanhar movimentos que
escapam à norma, o que inclui os processos heteronormativos que se deparam com “o silêncio, a

3
Em diálogo com as proposições postas pelos Estudos Culturais, o conceito de pedagogia cultural é aqui apresentado
como “qualquer instituição ou dispositivo cultural que, tal como a escola, esteja envolvido – em conexão com relações
de poder – no processo de transmissão de atitudes e valores” (Silva, 2000, p.89).

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dissimulação ou a segregação” (Louro, 2000, p.27), assumindo que isso implica em evidenciar
como esta estratégia política se constitui nos cotidianos escolares (Oliveira, 2001).
Estamos convencidos/as de que a escola constitui-se enquanto uma arena onde se
(re)produzem hierarquias, desigualdades, injustiças e sofrimento de forma contundente quando,
especificamente, atrelados às dimensões gênero-sexuais da constituição do sujeito escolar.
Autoras/es como Guacira Lopes Louro, Dagmar Meyer e Fernando Seffner, em algumas de suas
obras tratadas ao longo deste artigo, destacam a dimensão de saber-poder onde currículo e
cotidiano se oferecem como espaços de reificação de normas e exclusões. Ao mesmo tempo, a
escola e a educação básica se colocam como lugar possível de reinvenção dos novos modos de
fazer política e desde onde emergem novas subjetividades, articuladas ao jogo da produção de
conhecimento no cotidiano.
Entendemos o currículo e o cotidiano escolar para além de estreitezas conceituas sobre os
processos formais de ensino-aprendizagem e os conteúdos selecionados. Tratamos destas
dimensões como um arranjo por onde determinada sociedade produz os sentidos
institucionalizados pelo Estado como (im)próprios para a vida (em sociedade). Ou seja, nos
referimos às epistemologias4 do mundo produzidas nos territórios educacionais. Buscamos, assim,
compreender como a educação opera, conforma e constitui elementos para pensar-viver a
sexualidade e as relações de gênero – como dimensões importantes na constituição dos sujeitos
escolares, conforme já apostamos em outra ocasião (Pocahy e Dornelles, 2011).
A diáspora dos sujeitos objetivados nos discursos da heteronormatividade ocupa muitas
das cenas cotidianas da educação e da escola. Esta norma que atua na “produção e [...] reiteração
compulsória da norma heterossexual”(Louro, 2009, p. 90) se imbrica aos (e se retroalimenta dos)
processos de ensino-aprendizagem como um regime político arbitrário que opera no sentido de
determinar práticas e condutas normativas gendradas (no sentido atribuído por De Lauretis (2006
[1994])), ao afirmar as marcas de gênero como elementos de produção do que nos cerca). A
heteronorma atua, também, regulando as experimentações da sexualidade ao pressupor a

4
Referimo-nos a regimes de verdade que autorizam alguns/algumas a organizar e narrar as experiências políticas e
socioculturais do conhecimento no espaço escolar. Acrescentamos a isso as apostas de Britzman (1996) quando afirma
que todo conhecimento contém suas próprias ignorâncias, no sentido em que seleciona, privilegia e localiza objetos e
sujeitos no jogo do conhecimento.

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heterossexualidade como obrigatória (Rich, 1981), ou seja, ficcionada em suposta evidência,


naturalidade e incontestabilidade.
Porém, é no cotidiano escolar onde são reveladas também sobrevivências-resistências de
costumes, tradições e normas. Oliveira (2001, p.43) nos agita a pensar as práticas cotidianas,
“procurando nelas, não as marcas da estrutura social que as iguala e padroniza, mas sobretudo, os
traços de uma lógica de produção de ações de sujeitos reais, atores e autores de suas vidas
irredutível à lógica estrutural, porque plural e diferenciada”. Os/As sujeitos escolares
(professores/as, discentes, gestão escolar, por exemplo) podem agir como
modificadores/modificadoras das relações de saber-poder que eles/elas estão supostamente
submetidos/as.
No rastro destas ideias, alojamo-nos em um tipo de problematização que toma como
princípio a ética a partir de Foucault (2001a/ 1984), especificamente, quando este conceito aponta
relações com a ampliação das margens de liberdade de determinadas relações sociais/processos de
subjetivação. Este processo também se constitui em sua dimensão estética, uma vez que agencia a
possibilidade de certa (re)invenção de si e contorno singular (como uma sorte de efeito do jogo da
produção da diferença) para a subjetividade. Tudo isso produzido na agonística da política – o
plano privilegiado da subjetivação, isto é, o plano de disputa, de oposições, de confronto, de
ruptura e de acontecimentos, insurgências e insubordinações micropolíticas.
No entanto, cabe sublinhar, as interpelações que (re)definem as possibilidades de
organização de determinado espaço de prática educativa se oferecem como enunciados na
produção e exercício de pedagogias que estabelecem hierarquias e posições de aprendizagem e a
consolidação de epistemologias sobre o mundo, manchadas pelos discursos etno-sexo-gendrados
e entre outras intersecções destes marcadores e posições articuladas às políticas de conhecimento.
No caso de uma articulação com o campo da educação escolar, recorremos às proposições de
Seffner (2011) quando afirma que:

A escola, vale repetir, é espaço público, objeto de políticas públicas, e nela o convívio
respeitoso da diversidade deve acontecer. A mesma consideração aqui feita para questões
de gênero e sexualidade vale para diferenças de raça, cor, origem regional, classe social,
pertencimento religioso, ordenamento familiar, etc. Todos devem ser respeitados, e

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cumprir o que dizem o regimento escolar e o projeto político pedagógico da escola, que
não pode estabelecer discriminações.” (2011, p.9).

As provocações indicadas por Seffner (2011) sobre os compromissos da educação escolar


em articulação com as dimensões teóricas que tratamos ao longo desta seção assentam e conduzem
a nossa investigação sobre a produção de relações socioculturais na perspectiva de gênero e
sexualidade, a partir de uma cartografia dos esquemas pedagógicos, curriculares e institucionais
que este território educacional nos permitiu problematizar.

MÉTODO

Esta pesquisa possui design qualitativo, a partir da aplicação de um protocolo único (roteiro
de entrevista semi-estruturada) dividido em a) aspectos sociodemográficos, incluindo-se os
elementos relacionados à formação docente; e b) questionamentos acerca de temas e situações de
cotidiano escolar relacionados a gênero e sexualidade. Os/as interlocutores/ras foram
convidados/as a participar da pesquisa através de apresentação da equipe de pesquisa em reuniões
na escola com a companhia de coordenadores e coordenadoras pedagógicos do estabelecimento
de ensino e o trabalho com as entrevistas realizou-se durante o mês de novembro de 2012.
Na composição dos dados congregamos algumas posições destes/destas educadores entre
planos/ posições normativas, fronteiriças e críticas. Diante deste arranjo (um tanto arbitrário, mas
operativo) pudemos observar elementos de uma agonística social que cerca a experiência
educacional, não como um elemento exterior (o fora da escola, a sociedade ‘entrando’ na escola),
mas como um regime político-discursivo que define o interior de suas próprias práticas e das
condições próprias deste grupo estabelecendo micropolíticas de um cotidiano educacional.
Optamos por não analisar separadamente os núcleos/ planos. Decidimos destacar elementos
de oposição, tensão e encontros naquilo que nos pareceu mais próximo do cotidiano: por onde e
por quais caminhos no conjunto dos dados as normas se atualizam, reatualizam, marcando os
modos de produzir e habitar a escola.

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INTERLOCUTORES/RAS DA PESQUISA

O estabelecimento de ensino que acolheu a pesquisa opera no ensino fundamental e médio.


Trata-se de instituição filantrópica e religiosa (católica). A escola atende a aproximadamente 2.000
estudantes da cidade e arredores, alguns e algumas desses/as discentes depositários de pequenas
quantias na manutenção da matrícula. Apenas uma pequena parcela matriculada está isenta de
qualquer pagamento, contemplados/as com bolsa integral. A escola oferece cursos
profissionalizantes nas áreas tecnológica e de serviços, como cursos de garçom e manutenção de
computadores, por exemplo. As atividades religiosas fazem parte do cotidiano da comunidade
escolar, onde a presença de padres e algumas missionárias reforçam o projeto confessional:
“Educar e promover as crianças em situação de risco ensinando-lhes o gosto pelo trabalho”
(informação obtida no site da instituição).
Nosso trabalho se apoia nas contribuições de 19 professoras/res do total de 40 profissionais
envolvidos/as nos dois níveis de ensino ofertados pela escola (fundamental II e médio). O número
de adesões corresponde a disponibilidade dos educadores e das educadoras no período do trabalho
de campo, efetivamente também associado à disponibilidade pessoal diante da proposta – o que
permitiu que abrangêssemos 50% do corpo docente.
Acessamos 6 interlocutores/as da Área de Ciências Exatas e Biológicas, atuando 3 deles na
disciplina de Biologia, 2 na disciplina de Química e 1 na disciplina de Matemática; possuem Média
de renda: R$1.975,2 (Menor renda: R$776,00 - Maior renda: R$4.000,00); Média de idade: 42
anos (Mais jovem: 29 anos - Mais velho: 54 anos); Religião: 83,3% católicos e 16,6% Testemunho
de Jeová; Formação: 66,6% apenas graduação, 33,3% Especialização como maior titulação;
Tempo médio de atuação como professor/a: 9,3 anos (Menor tempo de experiência: 3 anos - Maior
tempo de experiência: 15 anos); Posição do grupo em relação à temática da pesquisa: 66,6%
normativas – 33,3% fronteiriços – 0% críticos.

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O total de educadores/ras da área de Ciências Humanas corresponde a 13 interlocutores/as,


com média da idade: 39 anos (Menor idade: 24 anos - Maior idade: 54 anos); Religião: 92,3%
católicos – 7,6% não se encaixa em alguma religião; Formação: 69.2% graduados/as e 30,7% com
especialização como maior titulação; Tempo médio de atuação como professor: 11 anos (Menor
tempo de experiência: 1 ano - Maior tempo de experiência: 24 anos); Grupo de classificação:
53,8% crítica – 30,7% normativa – 15,3% sedimentada; Disciplinas: 46,1% história (dentro dessa
porcentagem, 33,3% também ministram filosofia) – 7,6% inglês – 23% português – 7,6% geografia
– 15,3% Educação Física.
Aos/às professores/ras que se dispuseram colaborar ofertamos um cronograma de horários
inserido no expediente docente e organizado pela coordenação pedagógica geral da escola. A
produção de dados foi realizada durante o período de uma semana letiva no mês de novembro de
2012, através de inserções da equipe composta de 5 mestrandas em Psicologia e 5 alunas/os de
Iniciação Científica, vinculadas ao laboratório de estudos coordenado pelo primeiro autor do
artigo, à época vinculado à Universidade de Fortaleza.

PRESSUPOSTOS E PROCEDIMENTOS ÉTICOS DA PESQUISA

A dimensão ética da investigação que originou este artigo está associada ao conceito de
“cosmopolitismo crítico” apontado por Rabinow (1999), onde o principio condutor da pesquisa é
em si e por si uma questão de ética – no plano de alargamento das possibilidades de liberdade
das/dos interlocutoras/res na pesquisa, sejam estas pessoas ou instituições. Para este autor,

O princípio condutor é ético. Esta é uma posição oposicionista, desconfiada de poderes


soberanos, verdades universais, precisão relativizada em demasia, autenticidade local,
moralismo de cima e de baixo. Entendimento é o seu outro valor, mas um entendimento
desconfiado de suas tendências imperialistas. Esta posição presta atenção às – e respeita –
diferenças, mas também está alerta à tendência de essencializá-las. (p.100)

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Em consonância aos pressupostos de Rabinow (supracitado) tratamos de formular a


construção das entradas de análise para a pesquisa a partir de um “movimento de (re)composição
de cenas do cotidiano, reunindo as contradições, contestações, as continuidades e as
descontinuidades que marcam as representações em torno do corpo e de suas performances de
gênero, no exercício da sexualidade a partir de uma postura ético-reflexiva. Modo este de recusa
ao olhar excitado e objetificante – que muitas vezes é encontrado em pesquisas sobre as ditas
práticas e vidas ‘abjetas’”, como nos aporta Pocahy (2011; p.32).
Além desta dimensão ética, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética, através de registro
na Plataforma Brasil como forma de avaliação dos procedimentos da pesquisa. O projeto foi
devidamente aprovado sob o número 03162012.2.0000.505.
Ao considerarmos que nosso trabalho se dirige em interlocução com pessoas tomamos
especial atenção à resolução 466/12 do Comitê de Ética em Pesquisa do Ministério da Saúde que
orienta a pesquisa “envolvendo seres humanos”, reafirmamos que o princípio ético que conduz
esta pesquisa encontra-se associado às provocações de Edward MacRae (2006) em atender aos
preceitos do rigor e do cuidado em pesquisa, mas salientando que os temas que emergem de nossa
proposta se relacionam a aspectos de demasiada preocupação institucional, controle e
especialíssima atenção moral. Por esse motivo, todos os trâmites institucionais foram realizados,
mas sem deixar de considerar que o tema de sexualidade, muitas vezes, encontra seus primeiros
desafios de entendimento no campo das distintas moralidades que cercam o fazer cotidiano,
produzindo repercussões no instante em que é acionado como tema de pesquisa.
O projeto foi apresentado à diretoria pedagógica e geral e às coordenações pedagógicas da
escola. Nesta ocasião, obtivemos a anuência e a parceria da instituição para o desenvolvimento da
pesquisa e todas/os as/os interlocutoras/es assinaram os Termos de Consentimento Livre e
Esclarecido. Incorporou-se às nossas preocupações éticas a devolução do estudo, ocasião para o
maior adensamento das problematizações através de novos espaços de interlocução. No entanto,
em decorrência de uma mudança na direção do estabelecimento, não houve adesão da nova gestão
à parceria; esse fato nos impossibilitou de avançarmos em uma proposta de ´tensionamento´ dos
dados junto a esta comunidade escolar.

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FERRAMENTAS CONCEITUAIS DE ANÁLISE

O corpus desta investigação foi produzido e composto pelas respostas individuais a um


conjunto de questionamentos que foram produzidos na revisão de estudos e pesquisas que vêm se
ocupando do trabalho de formação docente e práticas de cotidiano escolar na sua relação com a
heteronormatividade (Dornelles & Meyer, 2013; Dornelles & Givigi, 2013; Quartiero & Nardi,
2012; Bento, 2011; Pocahy & Dornelles, 2011; Junqueira, 2009; Borges & Meyer, 2008). Para
isso, elaboramos três núcleos enunciativos que nos permitiram perceber os discursos que coabitam
um cotidiano escolar e que se (des)articulam, produzindo as posições que os sujeitos
educadores/ras ocupam nesta trama agonística investigada.
Os questionamentos dirigidos a esta comunidade escolar privilegiaram pontos de interesse
que, mesmo que não estejam sistematizados na análise geral aqui descrita, ofereceram condições
das composições dos conjuntos de enunciados estabelecidos a partir de nossos questionamentos:
a) Perguntamos às educadoras e aos educadores sobre os atributos mais importantes e
esperados para mulheres e homens em nossa sociedade e se a escola tem influenciado sobre a
formulação, produção e/ou manutenção destes atributos, solicitando-lhes exemplos do cotidiano.
b) Sobre a formação profissional questionamos se em algum momento foram
orientadas/orientados a lidar com questões relacionadas à diversidade cultural, religiosa, étnico-
racial, sobre as deficiências, sobre gênero e/ou sexualidade e como isso ocorreu, em caso positivo.
Perguntamos ainda se elas e eles já participaram de alguma formação sobre a temática da
sexualidade e educação.
d) No rastro desta questão, investigamos se já presenciaram alguma situação de cotidiano
escolar relacionada à discriminação motivada pela orientação sexual e qual foi o encaminhamento
institucional. Perguntamos aos/às interlocutores/ras sobre quais seriam os fatores mais
significativos para a produção de atitudes discriminatórias na sociedade brasileira e se a escola
contribuiria e como contribuiria para a produção da discriminação por orientação por raça/etnia,
deficiências, por orientação sexual e por gênero?
e) Examinamos ainda se o grupo docente tinha conhecimento de alguma iniciativa sobre o
enfrentamento à homofobia ou da discriminação por orientação sexual na educação escolar e o que

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pensava sobre tal iniciativa. Interessamo-nos também em saber se eles/elas participariam de


alguma formação específica relacionada a estes temas e quais seriam os aspectos de abordagem
mais importantes para este tipo de formação, bem como quais estariam aptos a ministrar este tipo
de formação.
O tratamento das informações do campo privilegiou a composição de nucleações
enunciativas a partir dos agrupamentos e reagrupamentos construídos a partir de uma primeira
análise e organização das informações construídas na interlocução com o grupo de 19
educadores/as. Deste modo, o Núcleo 1 consiste em entrevistas em aproximação com discursos
que nos permitem refletir sobre os regimes de verdade hétero/normativos sedimentados
(normativos); o Núcleo 2 - entrevistas em discursos que apontam para movimentos híbridos entre
posições normativas e críticas (fronteiriças); e o Núcleo 3 - entrevistas que indicam efeitos de
discursos críticos e relativamente contestatórios às hétero/normas. Esta nucleação não encerra a
possibilidade de trânsito entre as posições ocupadas pelos/as professores/as em suas falas, mas
oferecem um plano possível de organização e identificação dos arranjos de significação das
práticas pedagógicas cotidianas na escola investigada.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A escola e suas pedagogias como políticas de subjetivação instauram normas, bem como
possibilidades de resistência. Conjuga-se, aí, um contraditório improvável na agonística da
democracia e nas disputas sobre a noção de humano/ sujeito escolar: potência de vida e
mortificação do desejo em um mesmo espaço – a escola.
Especificamente sobre as entrevistas críticas, indicamos o reconhecimento de posições mais
flexíveis com relação às questões de gênero. Contudo, ainda assim, as análises indicaram rastros
dos discursos heteronormativos e hétero/sexistas nas falas deste grupo. Em geral, os/as
interlocutores/as qualificados/as como críticos/as apresentam uma visão complexa das produções
normativas, mas o limite das posições encontra seu maior desafio nos ecos institucionais, uma vez

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que o estabelecimento porta uma marca religiosa de grande expressão, sendo reconhecido no
contexto da cidade pela tradição e compromissos com as pedagogias cristãs.
Observamos na contribuição da interlocutora Beatriz, 24 anos, professora de Literatura e
Artes que: “[a sociedade] diz que não espera [coisas diferentes do homem e da mulher]. Ela sempre
vai esperar coisas diferentes porque a nossa sociedade atual por mais que se diga muito, minha
opinião, querendo igualdade, sempre vai querer diferenciar de alguma forma.”. O que nos permite
adensar a discussão de que ao gênero são atribuídas significações que dizem respeito à forma de
se comportar, a partir da materialidade ‘irredutível’ dos corpos. Os homens são vistos como fortes,
provedores e racionais, enquanto as mulheres são sensíveis e submissas, além de serem
responsáveis pelo cuidar e proteger, performance essa que pode ser atribuída à maternidade. Neste
aspecto, o que se constituiria enquanto uma diferença ´naturalizada´, opera de forma a manter as
hierarquias de gênero, seu essencialismo binário e as desigualdades decorrentes destas marcas de
poder-saber. Segundo Meyer (2003a) essas noções são apresentadas como se fizessem parte da
natureza das mulheres que se tornam, por exemplo, mães, norteando muitos dos processos
educativos através dos quais alguém se torna homem ou mulher, pai ou mãe.
Percebemos a circulação comum de discursos relativos à divisão de gênero no trabalho na
qual o argumento principal é a desigualdade construída socialmente entre homens e mulheres no
âmbito do produto dos regimes de produção – como as especialidades no campo do trabalho, bem
como no retorno salarial diferenciado. Apesar de algumas mudanças contemporâneas dos lugares
e posições ocupadas pelas mulheres na sociedade brasileira, os/as interlocutores/as apontam que
ainda existe uma grande submissão aos homens e/ou ainda persiste a visão da mulher como
cuidadora, como uma condição social de reconhecimento. Deste modo, a noção de mulher
“naturalmente” responsável por diversas instâncias de cuidado e vinculada a uma maternidade
compulsória são expressões de uma feminilidade contemporânea que, simultaneamente, não nega
o desejo e a atuação nos espaços de públicos e de trabalho. No entanto, podemos observar tensões
e desencaixes nessas representações, a partir dos seguintes argumentos:

A sociedade não espera mais isso do homem ou da mulher, a sociedade quer uma coisa só:
capital. Pelo menos a sociedade capitalista” (Pedro, 41 anos, professor de História).

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Tem uma questão que eu coloquei muito, a gente tá trabalhando isso tanto com os alunos
do Fundamental quanto do Ensino Médio, é como a gente faz a correlação entre a Terceira
Revolução Industrial e o tempo histórico e dentro disso um tema que foi muito abordado
foi justamente a sexualidade, a questão do gênero, a questão da mulher como força de
trabalho, do homem como rever seus conceitos, a sociedade mudando seu comportamento
e os dois crescendo juntos nessa capacidade de interação maior na questão do gênero. Ou
seja, a sociedade caminhando para você desassociar ou desconstruir o conceito do
machismo. E a gente tem isso ainda muito forte. (Lucas, 46 anos, professor de História)

Nas entrevistas que apresentam ecos críticos percebe-se algo das repercussões dos
deslocamentos presentes nas propostas feministas. Nestas posições, observa-se o reconhecimento
do avanço das lutas das mulheres na sociedade brasileira, contudo, ainda reconhece-se a presença
masculina como opressora e a quem estas precisam, em geral, se colocar em situação de submissão.
Dessa forma, se por uma parte percebe-se tensionamentos nas representações sociais de
feminilidade e masculinidade, por outra há discursos de gênero essencialistas que atravessam a
fala dos/das entrevistados/as. Na análise do material empírico, estes discursos operam sustentando
a sensibilidade e a emoção como atributos femininos, bem como indicam a força e o trabalho como
características intrinsicamente masculinas. Este argumento pode ser observado nas ponderações
de Osvaldo, 54 anos, professor de Química: “A gente sempre espera delicadeza. Que usasse mais
o emocional do que o racional, a sensibilidade. As mulheres são muito mais espertas que os
homens, vejo pela minha mãe, tem uma percepção muito melhor de que os homens, elas veem
coisas que os homens não veem. (...) Os homens são mais racionais, machistas. Eu fui criado assim,
né? Os pais da gente... Mas quando a gente quer quebrar isso fica difícil...” Já Patrícia, 49 anos,
professora de História ressalta:
A mulher tá tomando mais espaço, e se a gente tá tomado mais espaço é porque eles estão
deixando. Claro que não necessariamente pra um ganhar o outro tem que perder, mas se
abre espaço é porque a mulher tá estudando mais, ela tá indo em busca, ela tá indo a luta.
Certo? Talvez até pra dizer pra sociedade que ela também é capaz, não só a figura do
homem, do macho.

Os/as interlocutores/as em perspectivas mais fronteiriças referem dificuldades sobre


questionamentos relativos a gênero e ao exercício da sexualidade, como elementos que
correspondem à dimensão cultural e política destas experiências. No entanto, são profícuas as

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noções que remetem a essas, como podemos perceber nos argumentos de Mariana, 54 anos,
professora de Português, Literatura e Artes:

Atualmente a sociedade mudou os valores, os valores da concepção que Deus nos ensinou.
Agora está tudo tão moderno, tão diferente, embora eu não aceite porque eu vou pela
palavra de Deus, mas as famílias mudaram a formação, é mulher com mulher, homem com
homem e a gente deve, aceitar não, mas pelo menos tentar conviver com esse tipo de
pessoas porque aceitar tá longe pra quem tem um princípio religioso, mas não podemos
discriminar.

O sexismo (expresso de forma contundente no machismo) é bastante presente no contexto


sociocultural nordestino e cearense, como no Brasil de forma em geral. Seus efeitos podem ser
percebidos nas falas dos/das entrevistados/as de maneira sutil e, por vezes, esfumaçada: “Eu acho
que a mulher tem que refletir bastante sobre essa questão que quer um ambiente de trabalho, quer
ser mulher e quer ser mãe e eu acho que isso através de um debate é possível, mas desde que não
haja queima de etapas”. As mulheres entrevistadas dizem perceber o machismo, como os efeitos
pessoais e sociais dele expressos em sentença tais como: “homem é pra mandar e mulher é pra
cozinhar”, como afirma Mariana, interlocutora supracitada.
Nas entrevistas críticas percebemos a recorrência da menção da escola como espaço social
que reflete a organização social e conjectura suas produções. Por isso, estes/estas entrevistados/as
indicam a força desta instituição na manutenção das representações de gênero e de sexualidade
“dominantes” apresentadas ao longo deste artigo. Para eles/elas, “A escola é mantedora do sistema.
Assim como as religiões, a política, os meios de comunicação, as universidades”(Pedro, 41 anos,
professor de História). De forma geral, estes/as interlocutores/ras reconhecem que a interferência
das instituições sobre o indivíduo, seu corpo e sua sexualidade, produzindo marcas, condutas
políticas, sociais e institucionais consideradas normais e/ou corretas.
Contudo, a norma pode funcionar em desalinho com os ideais de igualdade entre os sujeitos
sociais. Os argumentos de Sabrina, 35 anos, professora de História, Filosofia, Sociologia e
Formação Humana nos permite compreender esta ideia de um lugar de tensões entre normas e
formas de contestação: “a escola reflete a sociedade, então ela precisa mudar partindo mesmo dos
professores que estão mais próximos dos alunos, mesmo que a estrutura não permita, cabe a nós

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mostrar pra eles que é uma igualdade, que precisa tratar melhor por ser homem ou mulher. Então
eu acho que a escola tem que trabalhar mais essa questão da igualdade.”.
Neste sentido, Dagmar Meyer (2003b) quando aponta que “os indivíduos aprendem desde
muito cedo – eu diria que hoje desde o útero – a ocupar e/ou a reconhecer seus lugares sociais e
aprendem isso em diferentes instâncias do social, através de estratégias sutis, refinadas e
naturalizadas” (p. 22) nos ajuda a analisar as contribuições da instituição escolar na produção
generificada dos sujeitos sociais. A pesquisadora apresenta o termo “pedagogias culturais” para
expor a ideia de como algumas instâncias agem cotidianamente na definição dos modos de ser
humanamente possível nas tramas do gênero. Para ela “[o conceito de pedagogias culturais amplia]
as noções de educação e de educativo, e com ele pretende englobar forças e processos que incluem
família e a escolarização, mas que estão muito longe de se limitar a elas ou, ainda, de se harmonizar
com elas” (2003b, p. 22). Nestes termos, ponderamos que a escola opera na produção dos sujeitos
de gênero para além dos espaços de trabalho considerados curriculares (no sentido estrito do
termo). Ou seja, quando a escola indica e aciona práticas voltadas para os processos de ensino e
aprendizagem.
Os diversos tempos-espaços escolares, os modos de ocupação do pátio, de distribuição
dos/das discentes, de acesso e de exclusão de determinadas funções, espaços e situações escolares
produzem (e são produzidos por) discursos de gênero. Deste modo, a instituição escola, em sua
complexidade, participa da produção de gênero (e também de sexualidade), porém não é a única
responsável em virtude de trabalharmos com uma perspectiva que considera as diferentes
pedagogias culturais como definidoras dos sujeitos. Ainda sobre a potência da escola nesta
produção generificada, Louro considera que:

As instituições escolares constituíram-se nas sociedades urbanas, em instâncias


privilegiadas de formação das identidades de gênero e sexuais, com padrões claramente
estabelecidos, regulamentados e legislação capazes de separar, ordenar e normalizar cada
um/uma e todos/as. (2000, p. 47).

Os/as interlocutores/as que compõem o quadro de argumentos ditos mais normativos


acrescentam o lugar da família na produção e manutenção dos discursos acerca do binarismo de
gênero. Para eles/elas, alunos e alunas trazem “esses pensamentos e condutas” de casa. Dornelles

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(2013), ao investigar como a Educação Física escolar (hetero)normaliza os sujeitos escolares


através de suas práticas pedagógicas, analisou como as falas de docentes indicam a família como
responsável pela educação de gênero. Porém, esta autora contrapõe este argumento visibilizando
os modos (não reconhecidos) cotidianos que a disciplina de Educação Física promove
ensinamentos heteronormativos quanto à vivência do gênero e da sexualidade na escola. O
argumento de Joana, 29 anos, professora de Ciências do Ensino Fundamental II e Biologia do
Ensino Médio, nos auxilia nesta conjectura:
A escola tem grande influência, grande influência mesmo com relação principalmente na
formação do indivíduo. Nós sabemos que o professor faz toda a diferença. Porém eu não
acho que essa responsabilidade deveria ser só do professor, só da escola, só da instituição.
Tem que ser principalmente uma grande responsabilidade dos pais porque eles que vão
realmente formar cidadãos para a sociedade. Nós complementamos, mas é um
complemento significativo.

Esses argumentos nos permitem ainda encontrar elementos na compreensão da produção


sociocultural da LGBTQI+fobia, assumindo no gênero uma de suas formas de sustentação e
suspeita sobre a sexualidade. Isto é, o fantasma da (homo)sexualidade ou das sexualidades
dissidentes à heterossexualidade compulsória é revestido pelo lençol normativo do binarismo de
gênero e da heteronormatividade. Louro (2010) ao referir-se à homofobia na escola utiliza a noção
de apartheid sexual e assinala: “consentida e ensinada na escola, a homofobia se expressa pelo
afastamento, pela imposição do ridículo. Como se a homossexualidade fosse “contagiosa”, cria-se
uma grande resistência em demonstrar simpatia para com os sujeitos homossexuais: a aproximação
pode ser interpretada como uma adesão a tal prática ou identidade”. (p. 29).
No argumento da professora Mariana (Língua Portuguesa, Literatura e Artes) encontramos
movimentos que exemplificam essa ancoragem binária, elemento basilar para a produção de uma
cultura homofóbica e heteronormativa:

A gente sempre espera delicadeza. Que usasse mais o emocional do que o racional, a
sensibilidade. As mulheres são muito mais espertas que os homens, vejo pela minha mãe,
tem uma percepção muito melhor de que os homens, elas veem coisas que os homens não
veem. Então, essa percepção, essa sensibilidade, essa capacidade de agir com a emoção...
Os homens são mais racionais, machistas. Eu fui criado assim, né? Os pais da gente...
Mas quando a gente quer quebrar isso fica difícil.

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O excerto acima indica que, na escola, há uma grande necessidade de uma diferenciação
dos gêneros, a qual é operada pela assunção do sexo como distinção binária fundante do sujeito.
Priorizam-se, assim, as características biológicas como referencia primordial para essa distinção.
Louro (2012) considera que a homofobia é uma das formas de “manter” a (hétero) norma e
´naturalidade das coisas´ e refere que a linguagem é um importante meio para isso: “Dentre os
múltiplos espaços e as muitas instâncias onde se pode observar a instituição das distinções e das
desigualdades, a linguagem é, seguramente, o campo mais eficaz e persistente – tanto porque ela
atravessa e constitui a maioria de nossas práticas, como porque ela nos parece, quase sempre muito
“natural””. (p. 69).
Boa parte dos/as professores/as que apresentam perspectivas mais críticas possuem uma
definição aproximada e congruente em relação a esta definição de “homofobia” (apenas um
entrevistado não apresentou um argumento consistente sobre o conceito), porém se sentiram
inseguros/as quando solicitados/as para conceituar o termo. Lucas, 46 anos, professor de História,
por exemplo, declara que a homofobia: “É a aversão e de certa forma violenta ao comportamento
homoafetivo ou homossexual. Uso da violência pra proibir essas coisas”.
Algumas interlocutoras e alguns interlocutores relataram que casos de homofobia ocorrem
rotineiramente, sendo a violência verbal a mais comum. A injúria surge assim como ato de
humilhação e de demarcação de um sujeito possível na escola, mas também o sujeito a ser
corrigido. O encaminhamento dado na instituição quase sempre gira em torno de levar o caso à
coordenação e de conversas “moralistas”(sic.) sobre igualdade, visando de maneira sutil uma
adequação dos sujeitos desviantes da norma a um padrão usual exigido pela sociedade.
Citando os argumentos do professor Lucas: “A gente presencia isso praticamente no dia a
dia, né? Quando tem alguma discussão é sempre “Ah, porque você é ‘viado’, ah, porque você é
‘sapatão’” e a gente tenta, dentro da função do educador, orientar pra melhorar principalmente o
linguajar e o respeito pelo outro. Porque se não houver respeito pelo outro nas suas escolhas, a
gente não consegue nosso objetivo.”. Já Katarina, 33 anos, responsável pela disciplina de
Geografia, sustenta: “O encaminhamento, foram chamados os dois alunos pela coordenação para

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tentar resolver da melhor maneira possível em relação a opção sexual de um determinado... De um


desses alunos.”
As educadoras e os educadores reconhecem como fatores que favorecem o preconceito os
efeitos da mídia e da família. Elas e eles percebem a escola como mantenedora de diversos tipos
de discriminação (sexual, gênero, raça-etnia e deficiência), seja pela precariedade ou ausência na
formação e preparo dos educadores/ das educadoras, segundo elas e eles, e ainda pelas condições
práticas-materiais-instrumentais para lidar com essas questões ou por falta de acessibilidade (no
caso de pessoas com algum tipo de limitação física).
Nas entrevistas qualificadas como normativas e fronteiriças nota-se que os professores não
possuem uma noção segura sobre o termo “homofobia” e alguns ligam o sufixo da palavra
(“fobia”) a um medo qualquer e outros pensam que apenas casos de agressão física são
classificados como homofobia, descartando a violência verbal e psicológica. A partir da confusão
ao conceituar o termo, eles acabam negligenciando os casos concretos de violência na escola,
alegando não ter presenciado nenhum tipo de preconceito. Percebemos nas falas das professoras
algo desta trama que opera na ausência de referencias linguísticas e cotidianas sobre as formas de
discriminação expressa na heteronormatividade. Andrezza, 54 anos, professora do Ensino
Fundamental: Ciências e Ensino Médio: Biologia afirma “Homofobia? Já sei: É medo de...
Homofobia... eu já ouvi falar...pois é... não sei se é medo... questão sexual, ou se é medo de... fobia
é medo, né? Homossexual? Pois é, com relação a homossexualismo.”
De outra parte, estes dilemas da indiferença e do não reconhecimento da violência
homofóbica se expressam pela invisibilidade, como podemos depreender dos argumentos de
Joana, 29 anos, Ciências do Ensino Fundamental II e Biologia do Ensino Médio: “Eu nunca estive
numa situação que eu presenciasse na íntegra, em todos os termos uma pessoa se referir a outra
por conta dela ser homossexual e ter tamanha violência ou agressão verbal.”
Os/as interlocutores/as creditam à produção de discriminação os valores culturais. Muitos
relatos referem os aspectos religiosos ocupando importância nestas situações. Não acreditam que
a escola contribui na produção de discriminações, afirmam que lá o objetivo maior é a igualdade
e que o mais próximo de discriminação seria por deficiência, pelo fato da escola não possuir a

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acessibilidade necessária. Novamente Joana, 29 anos, nos oferece alguns argumentos que
explicitam o deslocamento de uma crítica normativa para o campo da moral religiosa:

As pessoas é que não fazem questão de parar pra ler um livro como a bíblia que é
um livro tão precioso e de tanta profundeza. [...]Então, se todos nós temos acesso
a esse conteúdo, por que não nos aprofundarmos? Porque ninguém que seguiu o
que tá lá dentro da bíblia não se deu mal, ao contrário, só de dá bem porque é
orientação divina, entende? Então o que eu penso, é que a questão de hoje é a falta
de amor, amor ao próximo, valores morais.

É recorrente nas entrevistas críticas o fato de que a escola reflete a sociedade. E conjectura
também suas produções, por isso ela acabaria influenciando na manutenção destas representações
de gênero e sexualidade. Percebemos em algumas interlocuções a interferência das instituições
sobre o indivíduo, em seu corpo e na sua sexualidade, produzindo marcas, condutas politicamente,
socialmente e religiosamente corretas: “A escola é mantedora do sistema. Assim como as religiões,
a política, os meios de comunicação, as universidades”, afirma Pedro, 41 anos, professor de
História. De forma geral, estes/as interlocutores/ras reconhecem que mesmo mantendo-se essas
produções, a escola deve promover ideais de igualdade. Esta perspectiva mais ‘flexível’ pode ser
mais bem compreendida nos argumentos de Natividade (2009):

A revisão dos estudos disponíveis sugere que, ao menos em um plano normativo, há


religiões em que haveria espaço para uma relativa valorização da diversidade sexual (como
as afro-brasileiras), enquanto posicionamentos católicos e evangélicos expressariam a
persistência de uma rejeição às praticas homossexuais, qualificadas como pecado a partir
de diferentes estratégias discursivas. Estas tendências hegemônicas não eliminam a
existência de vozes e iniciativas dissidentes no interior das igrejas cristãs, conduzidas por
lideranças que flexibilizam as prescrições normativas da igreja(...) (p. 128)

Em relação ao preparo dos/das educadores/ras diante destes desafios que os/as interpelam
no cotidiano escolar, Junqueira (2009) afirma que os/as “profissionais da educação, no entanto,
ainda não contam com suficientes diretrizes e instrumentos adequados para enfrentar os desafios
relacionados aos direitos sexuais e à diversidade sexual” (p. 34). Esta constatação é compreendida
por nós através do conjunto de argumentos coletados de que entre este grupo não haveria quem

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possuísse conhecimento sobre estratégias de enfrentamento à discriminação na educação escolar,


seja nas instituições que trabalham ou não.
Porém, relatam que há um discurso moralista sobre igualdade em sala de aula visando uma
melhor convivência entre os discentes fazendo com que estes “aceitem” e “respeitem” a
diversidade. Os/as educadores/as acreditam que seria de grande importância a criação de novas
estratégias de enfrentamento e lamentam a não existência destas. Pedro, 41 anos, professor de
História, se interroga: “Na escola? Não. Assim, as coordenadoras entram em sala, leem textos mas
não voltadas à orientação, mas sobre respeito, as liberdades. Mas, não... “Ah, vamos falar sobre
sexualidade”. Que eu saiba, não.”. Já para Joana, 29 anos, Ciências do Ensino Fundamental II e
Biologia do Ensino Médio: “Na realidade, nós aqui da Escola somos incentivados a trabalhar muito
sobre a questão de valores e nesses valores entram muito essas questões aí, a questão do
preconceito, do palavrão, insultos, a questão do bullying. Então sempre há atitudes dos professores
sobre isso. ”
A grande maioria dos/as interlocutores/as afirma que participariam de alguma formação que
envolvesse as temáticas discutidas, e como abordagens a serem discutidas nesta destacam o amor,
a igualdade e a violência. Percebe-se que as abordagens propostas condizem com alguns ideais
cristãos, mostrando a influência da religião na vida dos educadores. A fala deles se aproxima dos
princípios religiosos da caridade e do acolhimento, porém não visa uma aceitação integral da
pessoa (com sua sexualidade singular) e sim de uma possível mudança desse desejo. Patrícia, 49
anos, professora de História, afirma: “O respeito pelo outro. Aceitação, mas é quase a mesma coisa,
né? O nível de conscientização, os valores... É uma junção de tudo isso.” (Quando perguntados
quais as abordagens deviam ser utilizadas numa possível formação).
Quando questionados/as sobre quais profissionais deveriam ministrar esse tipo formação, as
opiniões variaram entre competências de psicólogos, sexólogos, professores e médicos. Os
argumentos presentes no arranjo de posturas críticas nos indicam que para isso basta que o
profissional tenha conhecimento, vivências e relação com as temáticas. Acreditamos que a
referência a profissionais da saúde esteja ligada a noção de algo da patologização das condutas,
cuja mudança de conduta/estado se daria através da medicalização, terapia ou pedagogias
ortopédicas, e detrimento ao debate sobre como essas relações são constituídas no campo da

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cultura e da política. Andrezza, 54 anos, Ensino Fundamental: Ciências e Ensino Médio: Biologia
sustenta: “Aquele educador sexual mesmo, né? Da sexologia e que venha com essas, é, essas, como
é que vou dizer pra você? Mostrando o comportamento, como é que gente deve se comportar diante
desses...”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo não teve por objetivo avaliar educadores e educadoras e, tampouco, submeter a
escola ao crivo da responsabilização individual pelos discursos heteronormativos que circundam
seu cotidiano e os efeitos desses discursos em seu projeto político-pedagógico. Buscamos
encontrar neste espaço que nos acolheu (e isto nos oferece um elemento para pensar sobre a
disposição de uma instituição como essa em tratar de temas ditos ofensivos aos seus instituídos) e
junto a estas e estes interlocutoras/res elementos de problematização sobre os discursos
heteronormativos e quais seriam as repercussões destes no cotidiano escolar. Seus argumentos se
constituem aqui como pontos de apoio, informando não um problema individual, mas como as
práticas pedagógicas são interpeladas por discursos normativos e ao mesmo tempo o quanto podem
expressar de resistência e contestação no interior da dinâmica heteronormativa. É preciso
descriminalizar educadoras e educadores e pensar que os sujeitos são movimentados em discursos
e que estes habitam corpos, produzidos em instituições.
Isso não significa declinar da responsabilização. Certamente precisamos nos responsabilizar
por nossas condutas, mas não sem antes compreendermos as condições de possibilidade para a
emergência dos problemas de nosso tempo. Acreditamos que somente em interlocução e em tom
menos acusativo podemos compreender-intervir diante de uma determinada forma histórica e
institucional que assujeita pessoas e os grupos aos grilhões da normalidade.
Enquanto equipe de pesquisa, não nos eximimos de posicionamentos e de conjecturas sobre
os conjuntos de enunciados que cercam este cotidiano escolar que assume desde seu compromisso
político-institucional um lugar nesta produção. Nosso campo puxou fios de enunciados que forjam
uma trama discursiva que, em uma escola confessional e filantrópica, materializam-se na produção
dos significados para as noções de humano e para o que se compreende por educação e democracia.

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Por outro lado, se não negligenciamos os efeitos dos discursos religiosos, também não
tomamos estes como discursos que operam como totalmente excludentes de experiência crítica.
Neste aspecto, assumindo que o poder somente se exerce sobre pessoas livres e que nós buscamos
interlocuções em um lugar marcado por significações sobre as quais já estávamos cientes de que
se tratavam de um lugar de posições normativas sacramentadas, nossa atitude foi a de localizar os
enunciados e pontuar seus possíveis efeitos e compromissos normativos.
Nossa contribuição se estabelece na posição de diálogo-crítico, considerando-se que a
instituição que nos recebeu conhecia nosso perfil político de pesquisa. Nosso trabalho não é/ não
foi aquele de moldar a vontade política dos outros/ das outras, mas de construir com estes/as
interlocutoras/res um plano de investigação sobre os movimentos ontológicos que definem o
humano possível da educação e assim pensarmos o que estamos tentando fazer de nós mesmos e
do que estamos tentando fazer dos outros (Foucault, 2001c/ 1984).
Ponderamos sobre a imprescindível instrumentalização pedagógica das comunidades
escolares no manejo das relações sociais que são feitas/tecidas em gênero e sexualidade. O
constante movimento de abertura às problematizações sobre o fazer educativo e diagnóstico sobre
a produção heteronormativa e das desigualdades sociais (que se exibem tristemente no palco da
educação) nos parecem assim caminhos possíveis construir relações sociais menos arbitrárias, bem
como enfrentar os efeitos violentos dessas arbitrariedades, como a violência de gênero, formas de
abuso e objetificação da sexualidade, discriminação, preconceito e a patologização, tutela e/ou
tentativa de correção/‘ortopedia’ das diferenças.

REFERÊNCIAS

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PASSA DEMAQUILANTE NO TEU PRECONCEITO:


TUTORIAIS DE MAQUIAGEM COMO PERFORMANCE QUEER NO YOUTUBE

PUT ON MAKEUP REMOVAL ON YOUR PREJUDICE:


MAKEUP TUTORIAL AS PERFORMANCE QUEER ON YOUTUBE

PASA DEMAQUILLANTE EN TU PRECONCEITO:


TUTORIALES DE MAQUILLAJE COMO PERFORMANCE QUEER EN EL YOUTUBE

Elisângela Bertolotti1
Rosângela Fachel de Medeiros2

RESUMO
O YouTube é, atualmente, um espaço privilegiado de trocas e de interações no ambiente virtual, no qual
reconhecemos uma crescente visibilidade e sucesso de performances que apresentam estéticas e/ou
sensibilidades Queer, as quais, de maneira geral, transcendem o limite de um nicho de público LGBTTTQIA3 e,
cada vez mais, são assistidas por um público heterogêneo. Neste artigo propomos uma leitura do “#TUTORIAL
| Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter”, do famoso maquiador youtuber/influencer Antonio
Campagna, enquanto performance Queer que subverter o discurso heteronormativo, que associa a maquiagem ao
feminino e à mulher, e possibilita uma fruição lúdica da indeterminação que o Queer promove e celebra.

PALAVRAS-CHAVE: YouTube. Queer. Tutoriais de maquiagem.

ABSTRACT
The YouTube is, nowadays, a privileged space to exchanges and interactions on virtual environment, which we
recognize as an increasing visibility of successful performances that show Queer aesthetics and/or sensitivity,
which ones, in general, transcend the limits of the LGBTTTQIA public and, more and more, are watched by a

Submetido em: 14/03/2019 Aceito em: 25/03/2019 Publicado em: 01/06/2019


1
Mestra em Literatura Comparada pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI/
Frederico Westphalen. E-mail: elisangelabertolotti@gmail.com
2
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora visitante do
Mestrado em Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas - UFPel. e-mail:rosangelafachel@gmail.com
3
A sigla originalmente criada como LGBT – Lesbicas, Gays, Bissexuais e Trans, e em uso desde 1990, com o
passar do tempo e a maior atenção a esses indivíduos e as suas questões, foi sofrendo adequações, sendo essa sua
versão mais recente, que identifica: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Queer,
Intersexo e Assexual.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 151 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.40792

heterogeneous public. In this paper we propose an analysis of the “#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo |
Esfumando preto com glitter”, by the famous makeup artist, youtuber/influencer, Antonio Campagna, as a Queer
performance which subverts the heteronormative discourse, and associate makeup to the feminine and to
woman, and allow a ludic fruition of the indetermination promoted and performed by the Queer.

KEYWORDS: YouTube. Queer. Makeup tutorial.

RESUMEN
YouTube es actualmente un espacio privilegiado de intercambios y de interacciones en el ambiente virtual, en el
cual reconocemos una creciente visibilidad y éxito de performances que presentan estéticas y/o sensibilidades
Queer, las cuales, de manera general, trascienden el límite de un nicho de público LGBTTTQIA y, cada vez
más, son asistidas por un público heterogéneo. En este artículo proponemos una lectura del "#TUTORIAL | Ojo
todo + Boca todo | "Ahumado negro con glitter", del famoso maquillador youtuber/influencer Antonio
Campagna, como performance Queer que subvierte el discurso heteronormativo, que asocia el maquillaje al
femenino y a la mujer, y posibilita una fruición lúdica de la indeterminación que el Queer promueve y celebra.

PALABRAS CLAVE: YouTube. Queer. Tutoriales de maquillaje.

A gente tem que lutar sim, todos os dias, passar nosso blush, nosso glitter e
sair na rua. E não ter vergonha do que a gente é.
Pabllo Vittar

INTRODUÇÃO

A expansão e popularização das tecnológicas de comunicação em rede transformou a


vida das pessoas, que passam a estar constantemente conectadas – computadores, tablets,
smartTVs, mas, sobretudo, são os celulares que mediam as relações interpessoais, os
processos de aprendizados e a própria experiência de mundo. O ambiente virtual é hoje o
território privilegiado e norteador de trocas e de interações: simbólicas, culturais, sociais,
educativas e afetivas, que se intensificaram a partir da Web 2.0, quando o consumidor passou
a ser também produtor do conteúdo – prossumidor. Essa perspectiva se acentuou no
YouTube, prossumidores se transformam em youtubers, produzindo e difundindo vídeos que
respondem a seus interesses e que acreditam que podem interessar a outras pessoas. Muito do
conteúdo, atualmente, produzido e difundido na plataforma, pode ser entendido como first
person media (mídia em primeira pessoa), sendo o youtuber o Autor/Narrador/Protagonista
dos vídeos que publica. Quando um youtuber alcança muito sucesso, engajando legiões de
seguidores, ele se torna um influencer (influenciador) – não apenas em relação às temáticas

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que aborda, mas, também, quanto à maneira como o faz, à maneira como se expressa, e à
forma como é reconhecido e identificado por seus seguidores.
A facilidade para a produção e divulgação de conteúdos, bem como a ideia (nem
sempre verdadeira) de segurança para a autoexposição, transformaram a internet e, de
maneira especial, o YouTube, em território percebido como seguro para a livre expressão,
tanto por youtubers quanto por viewers (espectadores no contexto da internet). Muitos
sujeitos LGBTTTQIA têm utilizado a plataforma seja como espaço para o discurso engajado
e político de autoafirmação identitária, seja como espaço em que se permitem exibirem-se
sem censura ou temor, em ambos os casos enfrentam e rompem padrões socioculturais,
ideológicos, políticos e estéticos heteronormativos. E mesmo que, muitas vezes, sejam
vítimas do ataque de haters4, reconhecemos uma crescente visibilidade e sucesso de
performances5 masculinas que apresentam estética e/ou sensibilidade Queer, as quais, de
maneira geral, transcendem o limite de um nicho de público LGBTTTQIA e, cada vez mais,
são assistidas por um público heterogêneo.
O sucesso dos tutoriais de maquiagem e, dentre esses, o sucesso dos que são
produzidos por jovens do sexo masculino, que se automaquiam como forma de ensinar
maquiagem, mas também de se expressar, instigou-nos a pensa-los no jogo que estabelecem
entre a temática da maquiagem e as questões contemporâneas de gênero e de identidade.
Queremos entender se os tutoriais de maquiagem produzidos por youtubers/influencers
masculinos, rompendo assim com padrões socioculturais heteronormativos, podem contribuir
para a visibilidade, autoafirmação e representatividade Queer. Para tanto, analisamos um dos
mais visualizados tutoriais de maquiagem do famoso maquiador youtuber/influencer Antonio
Campagna, intitulado “#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter”.

4
Palavra inglesa, que se poderia traduzir como “odiadores”, utilizada para designar indivíduos que disseminam
discursos de ódios e/ou atacam discursivamente pessoas em redes sociais e plataformas de interação virtual.
5
Referimos a ideia de performance em sua acepção no campo das artes, como definida Richard Schechner: “As
performances marcam identidades, modificam e redimensionam o tempo, enfeitam e remodelam o corpo,
contam histórias, permite que se jogue com condutas repetidas, que sejam preparadas e ensaiadas, apresentadas e
representadas tais condutas” (2000, p.13).

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A ERA DOS YOUTUBERS


Criado em 2005, por Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim, e adquirido pela
Google em 2006, o YouTube é, atualmente, a segunda rede social mais visitada do mundo6. O
nome da plataforma deriva da união das palavras inglesas: you (você) e tube (“tubo” ou
“canal”, e, também, uma gíria para designar “televisão”). Poderíamos entender a palavra
YouTube, então, como “você transmite” ou “canal feito por você”, o que sintetiza muito bem
a proposta da plataforma, criada para o compartilhamento de conteúdos audiovisuais: pré-
existentes, como trechos de filmes e de programas de televisão, obras audiovisuais completas,
videoclipes; ou produzidos pelos internautas, como edição de materiais audiovisuais pré-
existentes, videoblogs, vlogs e tutoriais.
A utilização do canal para a promoção pessoal foi ganhando cada vez mais espaço e
resultou na mudança no slogan da plataforma de Your Digital Video Repository (seu
repositório de vídeos digitais) para Broadcast Yourself (transmita-se), que instiga os
indivíduos a serem produtores e transmissores de si. Essa mudança respondeu à própria
transformação no comportamento dos usuários da internet, que desvelavam as possibilidades
da rede como um ambiente de interação e de participação, que envolvia wikis7, aplicativos
baseados na folksonomia8, redes sociais, blogs e todo o tipo de tecnologias da informação e
da comunicação em rede. Essa nova configuração de interação na internet foi reconhecida
como a segunda geração da Web, a Web 2.0 (termo cunhado pela empresa O’Reilly Media),
que passava a ser entendida a partir de então como uma plataforma. Rapidamente os usuários
começaram a explorar o amplo potencial de difusão de conteúdo no YouTube.
Para compartilhar vídeos é preciso que o usuário crie seu próprio canal, o qual está
associado a uma conta/perfil do Google, sendo o usuário responsável por definir se o
conteúdo será disponibilizado de forma pública ou privada. No entanto, como salienta Henry
Jenkins, apesar de ser o epicentro da “cultura participativa”, o YouTube “não representa o

6
Em junho de 2017, o Youtube divulgou durante a VidCon, realizada na Califórnia – EUA, que alcançava o
número de 1,5 bilhão de acessos por mês.
7
Termo utilizado para identificar uma coleção de documentos em hipertexto, ou o software colaborativo
utilizado para cria-los.
8
Classificação social e colaborativa de conteúdo na internet por meio da utilização de tags.

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ponto de origem para qualquer das práticas culturais associadas a ele” (JENKINS, 2009, p.
145). Conforme dados recentes levantados pelo Projeto Alfabetismo Transmedia: un
programa de investigación,9 do Programa Horizonte 2020 da União Europeia, liderado por
Carlos Scolari, e publicados no Libro Blanco – Alfabetismo Transmedia en las nuevas
Ecología de los Medios (2018); a “produção de conteúdos” é a principal e mais destacada
competência de atuação dos jovens no contexto contemporâneo de ecologia das mídias.
O YouTube transformou-se, assim, em espaço privilegiado da “mídia em primeira
pessoa” – produção centrada no discurso direto e em primeira pessoa do “autor”, do “eu”. –
Em O Show do eu (2008), Sibilia, discorre sobre as diferentes dimensões do “eu” na internet e
a maneira como as dimensões íntimas e confessionais do âmbito da vida privada são
rearticuladas para uma exposição pública, que tem por objetivo legitimar formas de ser e de
estar no mundo. Tais “escritas de si” ou “narrativas do eu”, são produzidas por um
“Autor/Narrador/Protagonista” (SIBILIA, 2008) – que surge em um contexto midiático de
conexão e interação ubíqua e onipresente. Conforme Sibilia, a vida do
autor/narrador/protagonista só passa a existir quando é “relatada em primeira pessoa do
singular” (SIBILIA, 2008, p. 33). Nesse sentido, não há surpresa em que essas produções
girem em torno do eu, sendo discursos de testemunhos, confissões, lembranças e/ou
performance de autoexibição (MENEGON, 2013, p. 28). Por terem essa configuração
autocentrada tais produções foram denominadas por Bruno Costa (2009) de “videografias do
si”. No entanto, as possibilidades de interação oferecidas pelas plataformas, transformaram
esse autor/narrador/protagonista em um narrador interativo.
A conjunção de elementos audiovisuais estéticos e narrativos recorrentes na
configuração dos vídeos divulgados nos canais do YouTube foi aos poucos constituindo o que
hoje reconhecemos como linguagens específicas do meio, e no caso específico das produções
realizadas por Autor/Narrador/Protagonista, o formato predominante é o do vlog:

O vlog (abreviação para ‘videolog’) é uma forma predominante do vídeo “amador”


no YouTube, tipicamente estruturada sobre o conceito do monologo feito

9
Conforme Scolari (2018), o Projeto Alfabetismo Transmedia não se limita à análise de práticas participativas, à
geração de conteúdo pelos jovens ou às estratégias informais de aprendizagem: vai mais longe da pesquisa
científica e propõe alternativas para beneficiar-se das competências trasmídia, desenvolvidas pelos adolescentes
fora das escolas por meio de sua aplicação dentro do sistema educativo formal.

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diretamente para a câmera, cujos vídeos são caracteristicamente produzidos com


pouco mais que uma webcam e pouca habilidade em edição. Os assuntos abordados
vão de debates políticos racionais a arroubos exacerbados sobre o próprio YouTube
e detalhes triviais da vida cotidiana. (MONTANHA, 2011, p. 192)

Outra fórmula utilizada no YouTube e identificada como muito apreciada pelos


viewers, são as Lives – transmissões ao vivo, que reforçam a ideia de intimidade entre
produtor e receptores.
Michael Wesch, um dos primeiros a estudar o fenômeno do YouTube, claramente na
esteira de Marshall McLuhan, chama a atenção para o fato de que uma “nova mídia não
apenas introduz uma nova forma de nos expressarmos, mas também novas formas de
autoconsciência – novas maneiras de refletir sobre quem nós somos e como nos relacionamos
com os outros” (WESCH, 2009, p. 19 – tradução das autoras).10 Wesch (2009) argumenta
que a webcam com seu potencial de conexão global conecta espaços privados criando um
contexto perfeito para o compartilhamento de momentos profundos de autorreflexão e, assim,
gerando conexões que são intensamente experimentadas, mas que permanecem efêmeras e
soltas. Já em seus primeiros trabalhos, Wesch batiza esse Autor/Narrador/Protagonista das
narrativas audiovisuais do YouTube de youtuber.
Conforme Camilo Coutinho, a decisão por assistir um vídeo é 60% motivada pelas
thumbnails (imagem estática em miniatura, como se fosse uma capa, que apresenta o vídeo) e
40%, resultado dos vídeos. Além disso, Coutinho destaca a importância dos “conteúdos
periféricos” gerados a partir dos vídeos como GIFs e memes na divulgação e no sucesso dos
vídeos e canais. O principal elemento para a consolidação de um canal do YouTube – seja
informativo, que produzem vídeos (como, por exemplo, tutoriais), sobre uma determinada
temática específica: maquiagem, culinária, games, cinema, literatura, computação, etc.; ou
narrativo – ficcionais, documentais ou de depoimento/testemunho: webséries e vlogs; é a
identificação com um público-alvo. Instaurada a relação de confiança e credibilidade entre o
youtuber e seu público, muito dos vídeos divulgados serão respostas a demandas, tentando
atender às solicitações do público. Sendo assim, os vídeos têm uma edição dinâmica que
busca otimizar o tempo – acelerando e/ou fragmentando sequencias. Além disso, os youtubers

10
New media not only introduce new ways for us to express ourselves, but also new forms of self-awareness—
new ways to reflect on who we are and how we relate to others.

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se comunicam por meio de uma linguagem que é compartilhada por seu nicho, assim, gamers
(youtubers de games – videojogos) e vloggers de maquiagem, utilizam palavras e expressões
que são pertinentes a seus campos específicos de interesses e que, assim, estabelecem um
universo significativo compartilhado e de autoidentificação.
Os youtubers produzem vídeos sobre as mais variadas temáticas e áreas11, atendendo
tal diversidade de conteúdos aos mais variados e segmentados públicos assim como a todas as
faixas-etárias – crianças, jovens e adultos. A temática abordada pelo canal associada ao tipo
de conteúdo e à performance do youtuber formam a equação que resulta, ou não, no sucesso
de visualizações do Canal. A fama de alguns youtubers – que se tornam então influencers,
pode ser explicada, portanto, pela forma como saem do modo tradicional de comunicação
para abordar assuntos que interessam a públicos específicos (SANTAELLA, 2007). Por meio
dessa relação que nasce da adesão à temática explorada pelo youtuber em seu canal se inicia
uma relação de admiração, empatia, credibilidade e confiança do viewer em relação ao
vlogger e, muitas vezes, de identificação com aquilo que ele representa, que é alimentada por
o que John Thompson (2008) identificou com uma “intimidade não-recíproca à distância”,
uma intimidade mediada (pelos meios/mídias) que se configura na interface da tela (do
computador/smartphone).

Considerando que a quase-interação mediada é, tipicamente, altamente monológica


e que envolve a produção de formas simbólicas direcionadas a um espectro
indefinido de receptores em potencial, pode ser vista como um tipo de quase-
interação. Ela não tem o mesmo nível de reciprocidade e de especificidade
interpessoal de outras formas de interação, seja mediada ou face-a-face. Mas a
quase-interação mediada é, de qualquer modo, uma forma de interação. Ela cria
também diversos tipos de relacionamentos interpessoais, vínculos sociais e
intimidade (o que chamo de «intimidade não-recíproca à distância») (THOMPSON,
2008, p. 19)

Essas celebridades da internet advêm de diversas áreas e interesses, e a disseminação e


o sucesso de seus vídeos contribuem para que alcancem prestígio junto a seu público e, assim,
ascendam à condição de influência (influencer) na construção e afirmação identitária. Suas

11
A plataforma mantém políticas de controle de conteúdo referentes à preservação dos direitos autorais e à
exibição de imagens de nudez e de conteúdo sexual, bem como restrição de idade para alguns conteúdos.

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narrativas alcançam distintos públicos e fornecem informações, soluções e identificação. Esse


poder de identificação e de afirmação identitária que advém do sucesso de visualizações e de
engajamento dos viewers (comentários, likes e, principalmente, compartilhamentos) vem sendo
explorado consciente ou inconscientemente por muitos Canais do YouTube e por seus
Autor/Narrador/Protagonista, bem como pela própria plataforma que possui um programa de
parceira que permite aos produtores de conteúdo a geração de renda por meio da apresentação de
anúncios – no âmbito mercadológico reconhecer e estabelecer a identificação dos viewers com o
conteúdo e com o canal é extremamente importante.12
A interação dos viewers – por meio de comentários e likes, é fundamental para o
engajamento e fidelização, que os transformam em seguidores, e é essencial para o sucesso do
canal. Essa possibilidade de interconexão virtual e em rede permite aos indivíduos manifestarem
opiniões e discursos referentes a seus interesses, e promove sua aproximação e interação com
outros indivíduos que manifestam interesses, necessidades e expectativas semelhantes. Nesse
sentido, os canais do YouTube se revelam locais de confluência e de identificação dos viewers
tanto em relação ao influencer quanto entre si. É possível inferirmos, então, a importância que
youtubers-influencer podem ter na construção e afirmação identitára de seus seguidores-viewers.

REPRESENTATIVIDADE QUEER NO YOUTUBE

A liberdade de expressão possibilitada pelo YouTube, bem como a sensação de segurança


dos vlogers ao gravarem seus vídeos dentro da própria casa ou em algum ambiente controlado,
têm transformado a plataforma em espaço perfeito para a manifestação de opiniões e de
posicionamentos: ideológicos, culturais, sociais e políticos – muitas vezes, fazendo referência a
questões identitárias de gênero e de raça. Assim, as plataformas virtuais são utilizadas, também,
para promover a visibilidade e a discussão de conteúdos que, de maneira geral, não possuem
12
Philip Kotler (2017), chama a atenção para o poder mercadológico dos influencers (youtubers, blogueiros,
vlogueiros), cuja capacidade de comunicação, por meio de uma abordagem particular de assuntos variados, atrai,
fideliza e cria confiança em seus viewers. Esse poder já é reconhecido por muitas empresas que pagam para
associar suas marcas e produtos a influencers que atuem junto a seus nichos de mercado, já que as mensagens
transmitidas por essas personalidades causam mais impacto e confiança no ato da compra. Ou seja, o público
adere com mais facilidade as opiniões expostas pelos influencers do que a outro tipo de comercial ou
divulgação.

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espaço nas mídias institucionalizadas. Em paralelo aos movimentos afirmativos que conclamam à
busca por igualdade e ao enfrentamento de preconceitos e estereótipos, o YouTube fornece
espaço para as manifestação da diversidade – diferentes identidades, faixas etárias, formas físicas
e corpos, que expressam diferentes pensamentos, sexualidades, gêneros etc. Tais canais e
performances, fomentam novos discursos e debates, sendo um ponto de escape virtual no qual é
permitido questionar(-se) e romper padrões socioculturais.
O YouTube oportuniza que as vivências subjetivas dos sujeitos sejam exibidas. E
diferentes práticas e vivências socioculturais e identitárias sejam expostas, configurando-se como
um espaço importante para a manifestação e representatividade Queer, principalmente, no que diz
respeito à sua visibilidade. Para compreendermos a importância dessa representatividade,
lembramos que a ressignificação do termo Queer aconteceu nos anos oitenta, quando “militantes
e pesquisadores da causa gay, principalmente nos Estados Unidos”, buscaram “ressignificar o
termo, retirando-o do sentido pejorativo com a proposta de positivá-lo, tendo como proposta
central o rompimento com o binarismo” (COSTA; SILVA JUNIOR, 2014, p. 4). E, desde então,
muito teóricos retomam, com a intenção de discutir e reconfigurar o que é ser Queer. Para
Guacira Lopes Louro, o Queer é

[...] o excêntrico que não deseja ser “integrado” e muito menos “tolerado”. Queer é
um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um
jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume
o desconforto da ambiguidade, do “entre-lugares”, do indecidível. Queer é um corpo
estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina (LOURO, 2013, p.08)

Essa fluidez identitária híbrida e movediça, que o Queer representa, pode ser
entendida como um contraponto à performatividade de gênero, identificada por Judith Butler
(2008), que é responsável pela produção dos sujeitos como resultado de recorrentes repetições
na maioria das vezes ritualística que excluem e estigmatizam aqueles que saem das regras
estabelecidas. Ao desvelar esse processo performativo, Butler (2008) propõe que deixemos de
pensar as categorias “homem” e “mulher” como fixas e passemos a entendê-las como formas
de representação dos sujeitos, promovendo assim a reflexão acerca da produção de
subjetividade como resultado da convivência social e do que ela pressupõe como correta. A
subversão dessa ordem sociocultural abre espaço para outras formas de ser e estar, que dão

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vazão ao amplo espectro do humano em contraposição à ideia de singularidade e ao


essencialismo, que se alicerçam na ideia de uma convergência intrínseca entre sexo e gênero.

A noção binária de masculino/feminino constitui não só a estrutura exclusiva em


que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a ‘especificidade’
do feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada, analítica e
politicamente separada da constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de
relações de poder, os quais tanto constituem a ‘identidade’ como tornam equívoca a
noção singular de identidade (BUTLER, 2008, p. 21).

Na esfera discursiva audiovisual do YouTube, o Queer se manifesta de maneira mais


evidente por meio da sensibilidade Camp. Para Susan Sontag (1964 – tradução das autoras)13,
essa sensibilidade camp está em “seu amor pelo afetamento: pelo artifício e pelo exagero” e
tem na androgenia uma de suas imagens eminentes. Para Denilson Lopes (2002, p. 95), a
sensibilidade camp está associada à “atitude exagerada de certos homossexuais, ou
simplesmente à afetação”. E, conforme Lauro Maia Amorim (2015, p. 167-168), no âmbito
da linguagem,

[...] o camp seria um fenômeno sociolinguístico que se efetiva entre falantes


homossexuais masculinos no seio de uma comunidade na qual seus membros
assumem e performam a identidade gay por meio de signos e estratégias linguístico-
pragmáticas que se valem, inclusive, de estereótipos com o objetivo de demarcar
uma identidade sexual distinta. Há vários aspectos que caracterizam o camp, dentre
os quais se destacam a ironia à renomeação dos próprios sujeitos homossexuais por
meio de apelidos sugestivos, em geral relacionados à feminilidade. [...] O estilo
Camp também se vale da imitação teatralizada da linguagem feminina (girl-talk) e
por exclamações que acentuam o efeito de teatralização.

Enquanto espaço virtual “livre”, o YouTube tem extrema relevância para a visibilidade de
sujeitos LGBTTQIA e de performances que rompem com o padrão heteronormativo, geralmente,
estigmatizados. É nesse espaço virtual que, finalmente, muitos desses sujeitos conseguem
expressar suas identidades e estabelecer relações individuais e de comunidades. Vozes e imagens,
comumente, reprimidas pela sociedade ganham espaço e se multiplicam por meio de canais,
vídeos etc.

13
Indeed the essence of Camp is its love of the unnatural: of artifice and exaggeration.

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No entanto, não podemos ser ingênuos ao ponto de pensarmos que o YouTube é um


paraíso para a livre expressão democrática de todas as identidades. Em 2017, a plataforma teve de
esclarecer que iria rever os critérios da ferramenta de restrição de vídeos14, após a acusação da
dupla canadense Tenga e Sara (declaradamente homossexuais), de que a ferramenta estaria
ocultando seus vídeos, reconhecendo-os como “potencialmente inapropriados” – apesar de não
apresentarem imagens violentas ou sexuais. Para as jovens cantoras, o modo restrito, ativado pela
ferramenta de restrição, estaria censurando conteúdos LGBTTTQIA. Na mesma época, a
vlogueira Rowan Ellis, ativista LGBTTTQIA, declarou em um vídeo intitulado “O YouTube é
anti-LGBTQ?”, que quarenta de seus vídeos haviam sido bloqueados simplesmente por
abordarem questões relacionadas às identidades LGBTTTQIAs. Para Ellis limitar o acesso de
jovens LGBTTTQIA a esses conteúdos é um crime, pois o YouTube seria um dos únicos espaços
em que esses jovens encontrariam apoio e conselhos. E, a partir dessa percepção, ela questionou o
motivo oculto para esses vídeos haverem sidos bloqueados (ELLIS, 2017).
Em contrapartida, lembramos o exemplo brasileiro da cantora, compositora e Drag Queen
Pabllo Vittar, fenômeno midiático, alçado à fama pelo videoclipe Open bar (2015), que fez
grande sucesso no YouTube. Os vídeos de Pabllo Vittar dão visibilidade à sua performance
híbrida e fluida, liberta da heteronormatividade vigente, rompendo preconceitos e barreiras
socioculturais ainda vigentes e fortes. E foi essa exposição em seu canal do YouTube,
disponibilizando videoclipes e vlogs, que impulsionou sua carreira e a levou a tornar-se uma das
mais importantes influencers contemporâneas brasileiras. Assim, apesar de não ser um espaço
completamente livre e independente de preconceitos e censuras, alicerçadas em uma
heteronormatividade estrutural, reconhecemos o potencial do YouTube como espaço de produção
e intervenções socioculturais e identitárias, que permite a dinamização e a construção de discursos
de representatividade e de questionamentos de representações.
Cabe ressaltar que a autoexposição de sujeitos Queer e/ou a produção e divulgação de
conteúdos e repertórios Queer em vídeos no YouTube nem sempre são manifestações político-
identitárias engajadas de autoafirmação. No entanto, é inegável que essas produções promovem a

14 Conforme definição do YouTube, o recurso de restrição de vídeos permite aos usuários filtrarem conteúdos
que não são apropriados para menores de 18 anos, sendo uma ferramenta “opcional para ajudar instituições
como escolas, bem como usuários que querem controlar melhor o conteúdo que veem”.

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visibilidade de tais representações e, quem sabe, até de maneira mais efetiva. Um ponto forte é a
naturalidade do discurso coloquial e espontâneo, inerente à linguagem do YouTube, no qual
emerge uma linguagem camp que não apenas está liberta das censuras heteronormativas como
utiliza isso a seu favor – seja como elemento de identificação com aqueles que compartilham dos
mesmos códigos linguísticos, seja como uma brincadeira com aqueles que esperam essas
diferenças.
Dentre as muitas produções referentes ao espectro Queer difundidas no YouTube,
entendemos que os tutoriais de maquiagem realizados por jovens maquiadores youtubers, ao
romperem com padrões e categorias heteronormativas e negarem estratificações estanques entre o
que é do universo masculino e o que é do universo feminino, se configuram como um poderoso
discurso Queer, mesmo essa não seja uma intenção consciente. Sob essa perspectiva, analisamos
um dos mais visualizados tutoriais de maquiagem do famoso youtuber maquiador – Antonio
Campagna.

DO IT YOURSELF – FAÇA VOCÊ MESMO: OS TUTORIAIS DO YOUTUBE

Os tutoriais audiovisuais criados e divulgados no YouTube atendem as mais variadas


demandas nos mais diversos campos – computação, culinária, moda, maquiagem, saúde, entre
muitos outros, tendo por objetivo a solução de um problema ou o esclarecimento de uma dúvida.
E atravessam a interface de maneira ativa, uma vez que o produtor/autor desses vídeos tem por
objetivo ensinar “como fazer” algo ao receptor/viewer por meio da apresentação de um “passo a
passo”. Para nós o sucesso dos tutoriais pode ser relacionado a perspectivas de
ensino/aprendizagem que imbricam ações reconhecidas pelo Projeto Alfabetismo Transmedia: un
programa de investigación como “estratégias informais de aprendizagem” utilizadas pelos jovens
na contemporaneidade: prática; resolução de problemas; imitação; jogo; avaliação; e ensino.
Conforme resultados levantados pelo Projeto, apresentados no relatório Libro Blanco: “YouTube
es uno de los espacios de aprendizaje en línea más importantes, y ocupa un lugar central en el
consumo mediático de contenidos y (a veces) incluso en su producción #TransmediaLiteracy”
(SCOLARI, 2018).

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No universo dos tutoriais é perceptível o destaque dos tutoriais de maquiagem,


corroborado pelo simples teste de começarmos a digitar no buscador do Google: “tutorial
para”, a o que logo nos é sugerida a busca por conteúdos relacionados ao campo da
maquiagem e da beleza:

Figura 1: Pesquisa no Google.

Fonte: Captura de tela

A proeminência desses conteúdos relacionados à palavra tutorial revela a frequência


da procura por essa combinação de palavras: tutorial + maquiagem; tutorial + make, o que é
um sinal do grande interesse das pessoas por tais conteúdos. O mesmo teste realizado na
página do YouTube revela uma situação ainda mais proeminente, reafirmando, então, que os
tutoriais mais buscados e visualizados são os de maquiagem.

Figura 2: Pesquisa no YouTube.

Fonte: Captura de tela.

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TUTORIAIS DE MAQUIAGEM COMO PERFORMANCE QUEER

Os tutoriais de maquiagem, cada vez mais, são incrementados por seus realizadores, que
buscam uma maior repercussão, ao se utilizarem de estratégias para chamar a atenção do público-
alvo: criação de thumbnail instigantes – que geralmente apresentam imagens dos rostos
maquiados dos youtubers (muitos apresentam a estrutura visual do “antes e depois”), as quais são
sobrepostas de um título direto e chamativo, em letras maiúsculas; descrições objetivas, mas
pessoais do conteúdo dos vídeos. Todos esses elementos têm por objetivo levar o internauta a
abrir e a assistir aos vídeos. Abertos os vídeos, a forma como os youtubers se comunicam, sua
linguagem e a maneira como se dirige a seus viewers, seu gestual, seu estilo – roupas,
maquiagem, cabelo – contribuem para o engajamento do público com o autor e com seu Canal.
Outra característica recorrente nos canais mais famosos dedicados a tutoriais e dicas de
maquiagem é que recebam o nome do(a) youtuber que os criou e administra, que, na perspectiva
do “faça você mesmo”, se maquia em frente à câmera para assim passar seus conhecimentos a
seus espectadores.
O universo da maquiagem reconhecido pelo senso comum heteronormativo como campo
das mulheres e do feminino ganha novos contornos no YouTube. Apesar da preponderância de
mulheres como produtoras de tutoriais de maquiagem, alguns jovens rapazes vêm se destacando
nesse campo. É notório, no entanto, que no Brasil, mesmo antes do advento do YouTube já eram
conhecidos alguns famosos maquiadores, que atuavam na área da televisão e da teledramaturgia,
maquiando mulheres famosas, socialites e estrelas da televisão; e que, vez por outra, apareciam
ensinando truques de maquiagem em programas televisivos. Mas essas maquiagens estavam
sempre destinadas ao campo do feminino, aos rostos de mulheres, travestis, transformistas e Drag
Queens – e nessas de maneira exagerada e performática. Os jovens maquiadores do YouTube, na
“era da cibercultura”, ao contrário de seus predecessores que brilhavam na televisão, na “era das
mídias” (SANTAELLA, 2003), maquiando mulheres famosas e atrizes, vão para a frente da
câmera maquiar a si mesmos para assim ensinar, passo a passo, seus espectadores a se
maquiarem. Eles rompem assim com limites heteronormativos em relação ao campo da
maquiagem e do corpo: são jovens maquiadores que se maquiam em frente às câmeras para

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ensinar mulheres a se automaquiarem (mas há também tutoriais destinados a maquiagens


masculinas), o travestimento pode acontecer, mas não é recorrente.
Um exemplo internacional dessa tendência de sucesso de tutoriais de maquiagem
realizados por jovens do sexo masculino, é Jack, que com apenas 15 anos faz o maior sucesso
com seus tutoriais de maquiagem postados em seus perfis no instagram e em seu canal do
YouTube, intitulado “makeuupbyjack”, que já tem mais de 31.000 inscritos15 e apresenta, além de
tutoriais, vídeos de Jack falando sobre assuntos solicitados por seus seguidores. O sucesso do
canal de Jack, assim como de outros youtubers do campo da maquiagem, vai além da qualidade
notória de seus tutoriais, que agradam o público, estando relacionado à imagem dos youtubers e
às múltiplas questões subjetivas associadas a suas produções e à maneira como acabam
constituindo um discurso identitário e de representatividade. A perspectiva de narrativa em
primeira pessoa, diretamente destinada ao espectador, aproxima o youtuber do espectador, sendo
uma excelente e segura maneira de propor o enfrentamento de preconceitos e de diferenças, que
talvez não seria tão tranquilo além da interface.

“#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter | Antonio
Campagna”

Conhecido por ser referência em contornos faciais, subterfúgio de maquiagem que cria
a ilusão de remodelamento do rosto, muito utilizado, por exemplo, para suavizar os traços
masculinos do rosto, Campagna – maquiador/youtuber/influencer, afirma que seus vídeos de
mais sucesso (visualizações, comentários e curtidas) são aqueles em que ele aparece se
automaquiando. O canal de Campagna tem mais de 24.000 inscritos16 e seus vídeos são
sucesso de visualização e de repercussão nos comentários. O principal conteúdo do canal são
os tutoriais de maquiagem, identificados já no título dos vídeos que sempre começam com:
#TUTORIAL, seguido então pela descrição do que será ensinado. Na maioria das vezes, os
tutoriais de Campagna são visualmente muito simples: o youtuber está em um ambiente

15
Dados referentes a fevereiro de 2019.
16
Dados referentes a fevereiro de 2019.

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simples, comodamente sentado e colocado em frente à câmera, geralmente, usando roupas


simples e andrógenas, falando diretamente com seus viewers e maquiando-se.
Em entrevista17, Campagna contou que sempre gostou de maquiagem, mas somente após
fazer um curso de maquiagem na Europa decidiu expressar a sua autenticidade e sua personalidade
por meio da maquiagem. É interessante destacar que ele afirma ter aprendido a maquiar observando
outros profissionais e fazendo testes em si mesmo, mas ao começar a mostrar seu trabalho nas redes
sócias, ele apresentava apenas maquiagens feitas em clientes e nunca postava fotos do próprio rosto
maquiado, “principalmente, por medo” da reação preconceituosa das pessoas. Seus vídeos recebem
inúmeros elogios de pessoas que admiram o seu trabalho, geralmente jovens, em sua maioria
mulheres, mas com a presença também de homens – dentro da diversidade de seu público é
interessante percebermos como o universo LGBTTTQIA é celebrado e reafirmado pelos discursos
– que muitas vezes repetem e se apropriam de falas e expressões utilizadas no tutorial. O sucesso,
medido pelos wiews e likes de seus vídeos, revela o grau de representatividade do maquiador, que
em seu perfil no Instagran, se apresenta como “beauty influencer” (influenciador no campo da
beleza). Os comentários em seus vídeos revelam a grande admiração de seus seguidores, que
o incentivam à produção de novos vídeos, elogiam as maquiagens que ele realiza, o modo
como ele desenvolve o vídeo e a maneira como ele cativa seus seguidos, sua simpatia e sua
simplicidade.

17
Para o programa “Deu certo multimídia”, realizada pelo canal “Jornalismo UCDB”

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Figura 3: Print dos comentários ao #TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter

Fonte: Captura de tela – Canal do YouTube. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=h4F1SsLmxGw> Acesso em: 11 abr. 2018.

O tutorial “#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter |
Antonio Campagna”, publicado em 12 de setembro de 2017, foi selecionado como objeto de
nossa análise por ser um dos mais assistidos do canal, já tendo alcançado mais de 28.000
visualizações18, e seguindo disponibilizado em seu canal:

Figura 4: QRcode “#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter | Antonio Campagna”

Fonte: Criado pelas autoras.

18
Dados referentes a fevereiro de 2019.

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Figura 5: Print da página de abertura do Canal Antonio Campagna

Fonte: Captura de tela – Canal do YouTube Disponível em:


<https://www.youtube.com/channel/UCciPFREyZjAX2-JsIyexcbw>.

A primeira e evidente constatação à análise do “#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo


| Esfumado preto com glitter | Antonio Campagna” é o total conforto do youtuber e de seus
viewers com o fato de ele ser um jovem que, não apenas domina as técnicas da maquiagem,
mas expressa essa relação do masculino com a maquiagem com total liberdade e prazer.
O título é o primeiro elemento para o engajamento do espectador, Campagna já chama
a atenção dos seus seguidores, dizendo exatamente o que irá ensinar. Como vemos no título
do tutorial em questão, em que anuncia a proposta de make “boca tudo + olho tudo”, isto é,
uma maquiagem marcante nos olhos e nos lábios, elemento que nem sempre é a aposta
principal dos maquiadores, tendo em vista que, normalmente, preferem “boca tudo + olho
nada” ou vice-versa. Tal proposta reforça, previamente, uma das principais características de
Campagna, a ousadia em suas maquiagens.

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Figura 6: Thumbnail do #TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter

Fonte: Google Imagens.

Na descrição do vídeo, o maquiador/youtuber apresenta rapidamente o conteúdo do


vídeo: “Oi genteeeee alokaaaaaa! Saiu mais um #tutorial pra vocês, comentem aí ideias de
temas para tutoriais. Os produtos makiê eu sempre compro com a @makie_aninhagimenez,
ela envia para todo Brasil. Bjos.” (COMPAGNA, 2017). Desde o início do vídeo, Campagna
demonstra-se muito feliz com mais um tutorial, dirigindo-se diretamente a seus viewers: “oi
genteee” e utilizando seu bordão de autoidentificação: “Alookaaaa!”.

Figura 7: Print do #TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com glitter

Fonte: Captura de tela – Canal do YouTube


<https://www.youtube.com/watch?v=h4F1SsLmxGw>

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O youtuber é objetivo e direto em seu vídeo, tanto em relação à duração que é de 9min e
35s, quanto em relação ao modo como o desenvolve, como em relação à edição, deixando claro
nos primeiros minutos do tutorial: “já tô com a pele pronta, tô fazendo uma técnica que chama
baking19, que você passa o pó translucido e deixa aqui, e minha sobrancelha, agora vamos fazer o
olho, que é o que tá combinado para fazer nesse vídeo”, (transcrito do vídeo). O tutorial é gravado
em um ambiente neutro, de tons claros, com o intuito de centralizar a atenção do viewer no rosto
do maquiador, que se apresenta com a blusa escura e com uma gargantilha brilhosa, atraindo a
atenção para si.
Campagna sempre tenta apresentar outras opções de soluções ou produtos para ajudar
seus seguidores que possam ter dificuldade em ou efetuar alguma técnica ou em encontrar algum
produto. Isso revela sua íntima relação de troca com seus seguidores, reiterada sempre ao final
dos tutoriais, momento em que ele instiga a interação por meio de likes ou de sugestões,
colocando-se ainda à disposição para esclarecer possíveis dúvidas. Ao finalizar o vídeo o
youtuber menciona outros de seus tutoriais, nos quais ensina a como “fazer” a pele – preparar e
uniformizar a pele para a maquiagem com produtos de beleza; e o “contorno” – efeito de
maquiagem que acentua ou atenua as linhas do rosto; e reitera que os produtos podem ser
encontrados pelo Instagram – @antonioocampagna – outro meio utilizado pelo maquiador para
expor seu trabalho e interagir com seus seguidores, que é indicado na legenda do vídeo.
Em relação à realização do “#TUTORIAL | Olho tudo + Boca tudo | Esfumado preto com
glitter | Antonio Campagna”, o maquiador/youtuber utiliza recursos, como: a edição, a montagem
e o corte; a utilização da Time Lapse20 – que permite adiantar a ação apresentada, poupando
tempo, quando, por exemplo, ele está esfumaçando a sobra; a inserção de legendas para facilitar a
compreensão e chamar a atenção da técnica usada: “Esfume a sombra bem na linha do côncavo”;

19
Segundo o site Tudo sobre Make (2015), a técnica baking “consiste na aplicação de uma camada, generosa, de
pó translúcido sobre o corretivo líquido ou cremoso na região abaixo dos olhos, e deixá-lo por uns bons 10 a 20
minutos. A intenção é obter um acabamento perfeito, sem dobrinhas, poros abertos ou acúmulos de produto em
linhas finas, e funciona segundo o princípio de que o calor e os óleos da pele vão fundir os produtos de texturas
opostas - creme e pó - durante esses 10 a 20 minutos, criando um efeito natural e perfeito.”
20
De acordo com o site Olhar Digital (2016), a técnica Time Lapse, conhecida como a “técnica do vídeo
acelerado”, é o modo como “a câmera capta apenas um fotograma a cada espaço de tempo pré-determinado; na
hora de reproduzir essas imagens em sequência, o tempo parece correr muito mais rápido, criando essa sensação
de velocidade”.

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e bordões engraçados que são apresentados em cores vibrantes “Cuidado com a burra”, “Aloka!”,
que colaboram ainda para o clima descontraído e íntimo do vídeo.
A linguagem utilizada por Campagna, além de ser acessível e descontraída, caracteriza-se
claramente como camp, tendo em vista: a utilização de gírias e expressões reconhecidas como
pertencentes à comunidade LGBTTTQIA como, por exemplo: “Alookaaaa” (aglutinação de “a
louca”), uma das mais recorrentes em seus vídeos, utilizada para destacar comportamentos
exagerados ou atitudes imprevisíveis; a presença da ironia e do deboche (em relação a si mesmo –
“aloca”; “cuidado com a burra”); a imitação teatralizada e acentuada da linguagem feminina,
manifesta também na utilização de diminutivos e do gênero, e, sobretudo, a maneira afetiva como
o youtuber se dirige a seus viewers, por exemplo, chamando-os de “preciosos” – elementos que
constituem valores significantes em sua fala e contribuem para a conexão, por meio da
identificação e da alteridade, com seus seguidores.
A beleza andrógena de Campagna acentuada pela maquiagem – ele começa o vídeo
apresentando-se maquiado para mostrar a seus espectadores qual será o resultado do tutorial, para
posteriormente mostrar o processo da automaquiagem; é também um importante elemento,
levando-se em consideração a afirmação de Sontag, que reconhece nessa característica o mais
eminente elemento dessa sensibilidade. A androgenia de Campagna pode ser entendida, então,
como representatividade Queer, à medida que não há em suas automaquiagens o desejo de
assumir uma representação feminina nem tampouco Drag. Aliás, Campagna lamenta que as
pessoas confundam seu trabalho com sua identidade de gênero: “As pessoas comentam nas
minhas fotos que foram publicadas: 'está linda, está maravilhosa', tudo no feminino. Elas
confundem tudo, pois é só para mostrar meu trabalho. Sou homossexual, mas nem por isso quero
ser mulher” (LOPES, 2017). O que evidencia a dificuldade de muitas pessoas em situar
representações identitárias que não se enquadrem em padrões heteronormativos, sejam hetero ou
homossexuais, sendo esse campo de indistinção e de questionamento de certezas, justamente, o
que configura o Queer.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No momento em que Campagna se expõe fisicamente – gestual, maquiagem,


vestuário, linguajar – bem como por meio das questões que aborda em seus tutoriais, mesmo
que sem a intenção de levantar uma bandeira identitária, ele se configura como
representatividade, pois, como afirma Butler:

As representações possuem um papel de extrema importância no que diz respeito às


questões identitárias, haja vista, que muitos dos comportamentos reproduzidos em
sociedade talvez se tornem “fato” por meio de repetições midiáticas [...]. Se por um
lado nunca se está pleno com a identidade. Como se pode ser o que não se pode ver?
O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior
de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para
produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. (BUTLER,
2014, p.69)

Kathryn Woodward (2014, p. 18) também chama atenção para a importância das
representações, por meio das quais “damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos.
Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possíveis àquilo que somos e
aquilo no qual podemos nos tornar”. Nesse sentido, o sucesso de Campagna, bem como de outros
maquiadores/youtubers é algo importante para o questionamento de padrões heteronormativos de
gênero, que foram sendo cristalizados por performatividades, sendo uma assim uma forma de
marcar um desvio e uma ruptura quanto a questões que nos formam e que nos são ensinadas
como sendo naturais. E, assim, para além do sucesso comercial em relação aos conteúdos
apresentados por esses vídeos, eles se configuram, também, e talvez sem intensão ou percepção,
em referenciais de identidades e subjetividade para muitos que não tinham ate então onde buscar
tal identificação ou interlocução, estabelecendo-se assim uma identificação entre alguns dos
viewers e os youtubers.
O sucesso dos tutoriais de Campagna pode ser associado à objetividade e à clareza para
ensinar seus espectadores a se automaquiarem, utilizando uma linguagem simples e coloquial,
que apresenta expressões próprias do universo da maquiagem combinadas a uma linguagem
camp. Ademais da linguagem, o exagero e a androgenia revelam a sensibilidade camp que revela
a essência Queer dessas narrativas. Essas marcas Queer constroem um discurso que, mesmo sem

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a intenção direta de seu autor/narrador/protagonista, desconstrói e subverte a expectativa


heteronormativa que associa a maquiagem ao feminino e à mulher, desconstruindo assim
estereótipos de gênero. Além disso, essas produções desmitificam essas representações,
apresentando uma performance discursiva estética que retira o homem maquiado da margem
social (travesti, transformista) e do estereótipo humorístico e/ou performático (Drag), e o
ressignifica e o reconfigura em um cotidiano andrógeno e/ou fluido.
Essas narrativas revelam o potencial do YouTube enquanto espaço para desconstrução e
questionamento de estereótipos e preconceitos, bem como enquanto espaço para afirmações
indentitárias libertas, inclusive, da própria autoafirmação. E oferecem coisas diferentes a públicos
diferentes, uma vez que subjacente ao interesse em aprender algum truque de automaquiagem –
alguns viewers estarão se aproximando da alteridade na representatividade do outro, enquanto
outros podem justamente reafirmarem-se na identificação com o outro. Nesse sentido é
importante termos em mente o imbricamento entre os universos – real/virtual, que coexistem em
uma dinâmica de interação e tensão, vislumbrando a forma como essas questões constituídas no
ambiente do “virtual” podem influenciar no mundo “real”.
Nesse jogo de quebra de paradigmas de gênero estabelecido por esses tutoriais de
maquiagem, o “anonimato” do viewer instaura também uma liberdade para jovens meninos se
aventurarem a conhecer sem culpa ou medo o universo da maquiagem e automaquiagem. Ou
seja, a regra de que o rosto a ser maquiado é o feminino (mesmo no campo do travestimento, da
transexualidade e/ou da performance teatral) é completamente apagada. No entanto, nos
comentários do tutoriais há uma preponderância de manifestação de mulheres, que encontram a
maneira ideal para se automaquiarem na performance de automaquiagem do jovem e belo
maquiador-youtuber Antonio Campagna. A maquiagem é mostrada como arte, uma competência
liberta das amarras de gênero, cuja beleza rompe com preconceitos. Para Campagna, a
“maquiagem é libertadora, é ampla, é arte” (JORNALISMO, UCDB, 2017).
Nesse sentido, falamos em representatividade Queer nos tutoriais de maquiagem de
Campagna a partir da proposição de Donald Morton para quem “Ser gay é ter uma simples
identidade” enquanto “ser queer é entrar e celebrar o espaço lúdico de uma indeterminação
textual” (MORTON, 2002, p. 121). Essa celebração lúdica da indeterminação é evidente no
tutorial de maquiagem de Campagna, à medida que seus discursos audiovisuais desestabilizam

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padrões heteronormativos e questionam antigas certezas de gênero, brincando com a


possibilidade de transitar por essas posições e, sobretudo, de misturá-las. Nesse sentido, mais do
que uma representação gay ou de homossexualidade esses tutoriais surgem como espaço lúdico
de fruição da indeterminação que o Queer promove e celebra.

REFERÊNCIAS

#TUTORIAL | OLHO TUDO + BOCA TUDO | ESFUMADO PRETO COM GLITTER.


9min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=h4F1SsLmxGw> Acesso em: 10 jan.
2018.

AMORIM, Lauro Maia. Tradução & identidade. In: AMORIM, LM.; RODRIGUES, CC.;
STUPIELLO, ÉNA. (Orgs.). Tradução & perspectivas teóricas e práticas [online]. São Paulo:
Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, pp. 155-182. Disponível em:
<http://books.scielo.org/id/6vkk8/pdf/amorim-9788568334614-08.pdf > Acesso em: 29 abr.
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A CONCESSÃO DE REFÚGIO À PESSOAS LGBT

REFUGEES FOR LGBT PEOPLE

LA CONCESIÓN DE REFUGIO A PERSONAS LGBT

Allan Vieira Santos1

RESUMO: Além do banimento social, vivenciado em várias sociedades ao longo do globo,


cidadãos LGBT enfrentam problemas que incluem a legislação e a prisão em vários países,
além de serem objetos de contínuos ataques. O infortúnio é no sentido de que, após saírem de
seus países, algumas perseguições ainda podem persistir. Isto se dá na medida em que
solicitantes de refúgio com condições sexuais e expressões de gênero dissidentes apresentam
fragilidades distintas. Apesar de subsistirem avanços nas políticas que implementaram o
refúgio, inclusive com a adoção da Declaração sobre Direitos Humanos, Orientação Sexual e
Identidade de Gênero2, a promoção de direitos de igualdade para com a população LGBT ainda
caminha a passos módicos. Este estudo busca analisar como a percepção de vivências pessoais
de perseguição com vistas a demonstrar pertencer a um grupo social específico pode reforçar
estereótipos de sexualidade e gênero que acabam por marginalizar e prejudicar a proteção a
pessoas LGBT, reforçando aspectos de uma perseguição que pode estar se deslocando do país
de origem para o país de acolhimento.

PALAVRAS-CHAVE: Refúgio; Teoria Queer; Direitos Humanos; Perseguição; Migração.

ABSTRACT: In addition to the social ban, experienced in various societies across the globe,
LGBT citizens face problems that include legislation and imprisonment in various countries,
as well as being the object of continuous attacks. The misfortune is in the sense that, after
leaving their countries, some persecution may still persist. This is so insofar as refugee seekers
with sexual conditions and dissenting gender expressions present distinct weaknesses. Despite

Submetido em: 10/03/2019 Aceito em: 08/04/2019 Publicado em: 01/06/2019

1
Mestranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em
Direitos Humanos, Democracia e Cultura pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e Bacharel em Direito pela
Escola de Direito de Brasília do Instituto Brasiliense de Direito Público (EDB/IDP).

2
United Nations Human Rights – Office Of The High Commissioner. Born free and Equal – Sexual
Orientation and Gender Identity in International Human Rights Law. New York and Geneva, 2012.
Disponível em: < https://www.ohchr.org/Documents/Publications/BornFreeAndEqualLowRes.pdf>. Acesso em
12 de junho de 2018.

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advances in the policies that have implemented the refuge, including the adoption of the
Declaration on Human Rights, Sexual Orientation and Gender Identity3, the promotion of equal
rights for the LGBT population is still taking modest steps. This study seeks to analyze how
the perception of personal experiences of persecution with a view to demonstrating belonging
to a specific social group can reinforce stereotypes of sexuality and gender that end up
marginalizing and harming the protection of LGBT people, reinforcing aspects of a persecution
that may be moving from the country of origin to the host country.

KEY WORDS: Refuge; Queer Theory; Human rights; Persecution; Migration.

RESUMEN: Además de la prohibición social, vivida en varias sociedades a lo largo del globo,
los ciudadanos LGBT enfrentan problemas que incluyen la legislación y la detención en varios
países, además de ser objeto de continuos ataques. La desgracia es que, después de salir de sus
países, algunas persecuciones todavía pueden persistir. Esto se da en la medida en que
solicitantes de refugio con condiciones sexuales y expresiones de género disidentes presentan
fragilidades distintas. A pesar de que subsisten avances en las políticas que implementaron el
refugio, incluso con la adopción de la Declaración sobre Derechos Humanos, Orientación
Sexual e Identidad de Género, la promoción de derechos de igualdad con la población LGBT
todavía camina a pasos módicos. Este estudio busca analizar cómo la percepción de vivencias
personales de persecución con miras a demostrar pertenecer a un grupo social específico puede
reforzar estereotipos de sexualidad y género que acaban por marginar y perjudicar la protección
a las personas LGBT, reforzando aspectos de una persecución que puede estar desplazándose
del país de origen al país de acogida.

PALABRAS CLAVE: Refugio; Teoría Queer; Derechos humanos; persecución; La migración.

INTRODUÇÃO

Em um nível global, centenas de milhares de indivíduos são submetidos a violações de


direitos humanos em razão de sua condição sexual ou da expressão da identidade de gênero a
que pertence. A violência contra estes indivíduos, em especial, mas não apenas, pode ocorrer
devido a criação de empecilhos para a segurança, a liberdade, o gozo de direitos políticos,
sociais e culturais e, até mesmo, com a negativa do direito à vida e a marginalização destes
sujeitos 4 . Na contemporaneidade, ainda constam em setenta e dois o número de Estados

3
United Nations Human Rights – Office Of The High Commissioner. Born free and Equal – Sexual Orientation
and Gender Identity in International Human Rights Law. New York and Geneva, 2012. Disponível em: <
https://www.ohchr.org/Documents/Publications/BornFreeAndEqualLowRes.pdf>. Acesso em 12 de junho de
2018.
4
O’FLAHERTY, Michael.; FISCHER, John. Sexual Orientation, Gender Identity and International Human
Rights Law: Contextualising the Yogyakarta Principles. Human Rights Law Review, vol. 8, n. 2, p. 222, 2008.

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Nacionais que consideram crime o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, sendo que
em treze deles se pune com a morte5.

Não há pouco o que se dizer sobre a existência de leis, que valem-se de aspectos morais,
para restringir a liberdade de expressão em matéria de condição sexual e identidades
transgênero, em especial, dezenove países distribuídos entre a África do Norte, Oriente Médio
e também a China dedicam-se a editar leis que funcionam de forma a limitar a participação da
sociedade civil e a possibilidade de levar assuntos de interesse de indivíduos LGBT para a pauta
legislativa que versa sobre políticas públicas e ou processos políticos discutidos nestes locais6.

Ainda que, ao longo dos anos, subsistiu crescimento considerável à proteção dos
direitos de indivíduos LGBT 7 , é preciso perceber que apenas a partir de meados dos anos
noventa que os direitos sexuais despertaram interesse na pauta dos direitos humanos, em
especial após a decisão do Cômite de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas
(ONU), acerca do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos de 19668, ao considerar

5
“É possível citar que grande parte dos governos do Oriente Médio perseguem homossexuais, ainda que a postura
adotada seja, no mínimo, paradoxal. Diz-se isto na medida em que condenam os agentes passivos da relação e
aceitam os que são ativos. Perceba que, no início de 2017, um jovem de 15 anos foi lançado de um prédio na
cidade de Deir ez-Zor, na Síria. Em outra ótica, no Irã, um homem que tenha sido passivo em um relacionamento
homossexual deve ser enforcado, enquanto o ativo receberá chicotadas por 100 vezes. Isto se dá devido aos
tribunais de justiça destes países basearem-se na sharia, a lei islâmica, no específico trecho do corão em que os
habitantes de Sodoma são mortos por se aproximarem dos homens e não das mulheres. Na Turquia, a
homossexualidade pode ser uma das razões para se escapar do alistamento militar, na medida em que os médicos,
ao verem fotos e/ou vídeos de um homem mantendo relações com outro homem, na posição de passivo, comprova
a homossexualidade e, assim, é dispensado do serviço militar”. Retirado de: TEIXEIRA. DUDA, Porque os
terroristas do Estado Islâmico (Isis) executam gays, mas mantêm homossexuais em suas fileiras?. Veja: São
Paulo, 9 de fevereiro de 2017. Disponível em: < https://veja.abril.com.br/blog/duvidas-universais/por-que-os-
terroristas-do-estado-islamico-isis-executam-gays-mas-mantem-homossexuais-em-suas-fileiras/> , Acesso em 12
de junho de 2018. Vide: Association internationale des lesbiennes, gays, bisexuels, trans et intersexes (ILGA):
Carroll, A., & Mendos, L.R., Homophobie d’État 2017 — Une enquête mondiale sur le droit à l’orientation
sexuelle : criminalisation, protection et reconnaissance. Genève: ILGA. Mai, 2017, p. 8.
6
Association internationale des lesbiennes, gays, bisexuels, trans et intersexes (ILGA): Carroll, A., & Mendos,
L.R., Homophobie d’État 2017 — Une enquête mondiale sur le droit à l’orientation sexuelle :
criminalisation, protection et reconnaissance. Genève: ILGA. Mai, 2017, p. 9.
7
É possível afirmar que desde meados dos anos 2000, ainda que com passos tímidos, houve atenção no sentido
de criação ou definição de políticas que buscassem definir padrões para lidar com a existência de pessoas não-
heterossexuais e, em ato contínuo, não binárias, pelo mundo. Perceba a criação de organizações e ou políticas
internacionais, como a Association internationale des lesbiennes, gays, bisexuels, trans et intersexes (ILGA) e
também a Born free and Equal – Sexual Orientation and Gender Identity in International Human Rights Law.
8
SAIZ, Ignacio. Bracketing Sexuality: Human Rights and Sexual Orientation- A Decade of Development
and Denial at the UN. SPW Working Papers, n. 2, nov. 2005.

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que os direitos de minorias sexuais9 também deveriam ser objeto de proteção e, a partir de então,
começar a se materializar a existência de um princípio que vedasse a discriminação por
condição sexual e/ou a expressão da identidade de gênero10.

O entendimento de que o termo refugiado congrega qualquer pessoa que, temendo ser
perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas,
encontra-se fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não
quer valer-se da proteção desse país11, surgiu após o advento da segunda grande guerra e, apesar
de não tratar, ao menos de forma específica e explicita, sobre os indivíduos LGBT e a
perseguição em virtude de sua condição sexual e a expressão da identidade de gênero,
convencionou-se por estabelecer que tais pessoas inserem-se em um grupo social específico12,
legitimando a concessão de refúgio.

Adentrando as minúcias para a concessão do refúgio13, nota-se que existe um viés que
interliga a expressão de gênero, a sexualidade e a violência sofrida por um indivíduo, dando
origem ao “fundado temor de perseguição” e o pertencimento a determinado grupo social
específico – no caso o de pertencer a uma das variáveis de ser LGBT14. A miúda dos fatos, diz-
se que, a perseguição pode ser considerada como:

9
A adoção do termo “minorias sexuais” se liga a qualquer tipo de grupo estigmatizado ou menosprezado por sua
condição sexual, identidade de gênero ou expressão de comportamento. Vide: BAHER, Peter; FLINTERMAN,
Cees; SENDERS, Mignon. Innovation and inspiration: Fifty years of the Universal Declaration of Human
Rights. Amsterdã: Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences, 1999. p. 549.
10
LEWIS, Rachel. Gay? Prove it: The Politics of Queer anti-deportation activism. Sexualities, vol. 17, n. 8,
p. 974-975, 2014.
11
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR). Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados. Genebra: 1951. Disponível em: <
http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados
.pdf>. Acesso em 12 de junho de 2018.
12
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR). Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados. Genebra: 1951. Disponível em: <
http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados
.pdf>. Acesso em 12 de junho de 2018.
13
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR). Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados. Genebra: 1951. Disponível em: <
http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados
.pdf>. Acesso em 12 de junho de 2018.
14
Opta-se por manter o termo queer devido a impossibilidade de reproduzir fielmente o ônus fortemente pejorativo
que o termo incita na cultura norte-americana. Viado, sapatão, bicha, traveco, ou termos assemelhados, se fazem

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“[...] graves violações de direitos humanos, ameaças à liberdade e outras


formas de violência grave. No entanto, formas menos gravosas de violência,
se continuadas, também podem constituir uma perseguição. A equiparação de
ações a uma perseguição vai depender das circunstâncias do caso, bem como
da idade, gênero, opiniões, sentimentos e estado psicológico do solicitante”15

Por outro lado, quando nos remetemos a comprovação do pertencimento a uma das
várias possibilidades de ser LGBT, é que se percebe uma celeuma que pode ser nefasta ao
indivíduo solicitante de refúgio. Nota-se que a afirmação de pertencer a este grupo social é
diretamente relacionada a perceptiva do indivíduo, em seu discurso sobre si mesmo, de forma
claramente subjetiva, consistindo em demonstrar ser passível de violação por ser quem é16. Ou
seja, o relevante interesse se concentra em demonstrar a sua própria condição de existência,
fazendo com que, até mesmo, tenham surgido situações precárias para avaliar a condição sexual,
tal como se percebeu na República Tcheca no ano de 201017.

Aufere-se desta constatação que, até certo ponto, é possível que se acolham indivíduos
que apresentem diferentes vivências, ocasionando pontos de violência distintos, porém,
também se percebe que existe uma lacuna em que se requer um discurso que seja compatível
com o conceito de gênero 18 e de sexualidade. Ocasionando uma possível adequação de

possíveis, apesar de não carregarem a mácula negativa que a terminologia alcançou nos Estados Unidos da
América. O termo inglês queer é antigo e possuía, originalmente, uma conotação negative e agressiva contra
aqueles que rompiam normas de gênero, em si, homens e mulheres homossexuais. Vide: JAGOSE, Annemarie.
Queer Theory – an introduction. New York: New York University Press, 1996.
15
Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
(ACNUR). Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados. Genebra: 1951. Disponível em: <
http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados
.pdf>. Acesso em 12 de junho de 2018.
16
LEWIS, Rachel. Gay? Prove it: The Politics of Queer anti-deportation activism. Sexualities, vol. 17, n. 8,
p. 958, 2014.
17
United Nations Human Rights – Office Of The High Commissioner. Comments on the Practice of
Phallometry in the Czech Republic to Determine the Credibility of Asylum Claims based on Persecution
due to Sexual Orientation. Czech Republic: 2011. Disponível em:
<http://www.refworld.org/docid/4daeb07b2.html>, Acesso em 14 junho de 2018.
18
De forma breve é importante destacar a ideia de distinção entre sexo e gênero surgiu, originalmente, para mitigar
a afirmação de que a origem biológica é o destino inenarrável de todo ser humano. Butler preleciona que esta
distinção atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é
culturalmente construído. Logo, não se pode dizer que o gênero se apresenta como um resultado previsível do
sexo, quiçá como uma faceta imutável quanto ao sexo. Vide: BUTLER, Judith P. Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade. 10ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 25-26, 2016.

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comportamentos, vivências e performances com o objetivo de corresponderem aos anseios dos


países nos quais solicitam refúgio.

Portanto, este estudo busca debater a concessão de refúgio com base em sua condição
sexual e ou expressão de gênero, sob a ótica da Teoria Queer e na observância de padrões de
comportamento para sexualidade e gênero na visão ocidental, e também, em ato contínuo, nas
violações perpetradas no próprio processo de obtenção do status de refugiado, em face de
outros grupos, como os indivíduos solicitantes em razão de opiniões políticas, nacionalidade,
raça ou religião, os quais podem ser verificados de forma objetiva.

A PERSPECTIVA HETERONORMATIVA OCIDENTAL: O SUJEITO, O GÊNERO E


A SEXUALIDADE SOCIALMENTE CONSTRUÍDOS

Acolhe-se a ideia de que, durante o mundo pós-moderno, as construções sociais e


culturais desempenharam um importante papel na vida dos sujeitos da sociedade. Entretanto,
não há como se olvidar que nem todas estas construções sociais lograram êxito em se alçarem
como bem-sucedidas na caracterização de estruturas tidas como naturais: as distinções entre
machos e fêmeas, como preconiza Simone de Beauvoir19, o corpo como sujeito passivo das
transformações sociais e, até mesmo, o próprio sexo.

Imagina-se que aquilo que o sujeito acredita ser, possui relação direta com a sua
identidade, com a substância e os moldes sociais e culturais que foram utilizados com o fim de
moldá-lo, enquanto indivíduo pertencente a uma coletividade pré-determinada. O corpo se
encontra delimitado desde quando se fala em nascituro. Quando se tem uma ultrassonografia
já se inicia um processo de construção que culmina com a prova concreta advinda do
nascimento com a designação sexual que se limite em dois sexos constituídos. Perceba que:

A primeira fragmentação do corpo, ou atribuição do sexo, ocorre mediante


um processo que chamarei, seguindo Judith Butler, de invocação

19
BEAUVOIR. Simone de, The Second Sex, trad. E. M. Parshley, Nova York: Vintage, p. 25, 1973.

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performativa. Nenhum de nós escapou dessa interpelação. Antes do


nascimento, graças à ecografia – uma tecnologia célere por ser descritiva, mas
que não é senão prescritiva – ou no próprio momento do nascimento, nos foi
atribuído um sexo feminino ou masculino.20

É desta forma precoce que, indivíduos com expressões de gênero e condições sexuais
divergentes, necessitam de atenção. É possível aduzir que, além do banimento social e familiar,
violências físicas e, até mesmo, sexuais, permanecem na percepção de mundo de indivíduos
LGBT solicitantes de refúgio. Data de meados do ano de 2015 21 , a percepção pelo Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), de que a condição sexual e a
expressão de gênero, enquanto conjunturas para a concessão de refúgio restavam inadequadas.

É importante destaca que, para a concessão do refúgio justificado em condição sexual


e expressão de gênero, requer-se, contemporaneamente, a transmissão de experiências de
perseguição e fuga para adequar-se ao status de refugiado. Perceba que “enquanto solicitações
com base em opiniões políticas, nacionalidade, raça ou religião podem ser verificadas
concretamente, o pertencimento a um “grupo social” condição sexual ou expressão de gênero
depende de uma inteligência subjetiva e interna de identidade pessoal”22.

Isto se dá devido ao fato de que, em se tratando de pessoas LGBT, existe um aspecto


que permeia o profano e a vida individual de cada um, internalizadas na memoria pessoal do
indivíduo, que acarretam a exposição de características que impactam diretamente no modo de
vida do indivíduo, tal como assédio sexual, tortura, auto repressão, vergonha23, sendo evidente

20
PRECIADO. Beatriz, Manifesto Contrassexual, trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro, São Paulo: n-1 edições, p.
130, 2014.
21
UN High Commissioner for Refugees (UNHCR), Protecting Persons with Diverse Sexual Orientations and
Gender Identities: A Global Report on UNHCR's Efforts to Protect Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender,
and Intersex Asylum-Seekers and Refugees, December 2015, Disponível em:
<http://www.refworld.org/docid/566140454.html> Acesso em 16 de Junho de 2018.
22
BERG, Laurie; MILLBANK, Jenni, Constructing the Personal Narratives of Lesbian, Gay and Bisexual
Asylum Claimants. Journal of Refugee Studies, vol. 22, n. 2, p. 203, 2009.
23
BERG, Laurie; MILLBANK, Jenni. Constructing the Personal Narratives of Lesbian, Gay and Bisexual
Asylum Claimants. Journal of Refugee Studies, vol. 22, n. 2, p. 209, 2009.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 183 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


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que a exposição destas ocorrências não são obtidas de forma fácil e agradável, e sim através de
um processo sofrível e extremamente desagradável aos indivíduos interessados no refúgio24.

A compreensão ocidental destas revelações tem permitido que aberrações jurídicas


venham sendo propostas. Neste sentido25, no ano de 2010, a Suprema Corte do Reino Unido,
proveu decisão no sentido de que tão somente indivíduos “notadamente homossexuais” ou
ainda “homossexuais com vida sexual ativa” seriam os que se enquadravam como grupo social
específico e que, em ato continuo, necessitavam de proteção. Por outro lado, os que “optavam
por viver discretamente em sociedade”, não estariam contidos neste grupo. Relaciona-se
também a ideia de que indivíduos bissexuais, poderiam envolver-se sexualmente com uma
pessoa do sexo oposto para evitar a perseguição, e desta forma não ser abarcada pelo instituto
do refúgio26.

Em outros relatos, noticia-se que Estados também vem recusando a concessão de


refúgio ao levar em conta que, caso os indivíduos solicitantes se importassem com a própria
segurança, estes não necessitariam do refúgio. Considerando que, ao evitar possíveis
comportamentos que os caracterizassem como LGBT, principalmente em sociedade, abrindo
mão de um relacionamento público ou até extirpando-os de sua vida, nada teriam a temer27.
Este raciocínio pode levar a crer que o próprio indivíduo que busca o status de refugiado é
vítima de sua própria torpeza, já que não pode ter sua vivência plena em seu país de origem
devido ao seu próprio comportamento e performance de gênero.

É neste sentido que, na contemporaneidade, se faz sugerido que a alusão de que pessoas
LGBT pertencem a um grupo social específico, não se mostra capaz de garantir que tais

24
GRUNGRAS, Neil. Support, Not Stereotypes, When Interviewing LGBTI Refugees. The Huffington Post,
ago. 2012. Disponível em: <http://www.huffingtonpost.com/neil-grungras/lgbti-refugees_b_1766387.html>.
Acesso em 19 de junho de 2018.
25
LEWIS, Rachel. Gay? Prove it: The Politics of Queer anti-deportation activism. Sexualities, vol. 17, n. 8,
p. 971, 2014.
26
JANSEN, Sabine; SPIJKERBOER, Thomas, Fleeing Homophobia: Asylum Claims Related to Sexual
Orientation and Gender Identity in Europe. Amsterdã: COC Nederland, p. 85, 2011.
27
MILLBANK, Jenni. From Discretion to Disbelief: Recent Trends in Refugee Determinations on the Basis
of Sexual Orientation in Australia and the United Kingdom. International Journal of Human Rights, vol. 13,
n. 2/3, p. 397, 2009.

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indivíduos possam gozar verdadeiramente do instituto do refúgio. Isto ocorre devido a


influência que padrões performáticos de gêneros são vivenciados pelos países ocidentais e em
como estes são reproduzidos na administração de cada país 28 . Perceba que, até mesmo,
questiona-se a participação do solicitante de refúgio, especificamente em ambientes LGBT29,
para que assim se possa, ao menos neste raciocínio, fazer prova da condição sexual ou da
expressão de gênero destes indivíduos.

Não que, estes atos, realmente assegurem o pertencimento a um grupo de identidade em


seu país, porém, são estas as noções de adequação sexual, a que cotidianamente tem-se
adotado30 para a concessão do refúgio. Ou seja, são verdadeiros estereótipos de análise corporal,
que podem acabar por desprezar pessoas que não se enquadrem nos padrões de
contraheteronorma esperados por cidadãos LGBT do ocidente 31 , em especial de mulheres
lésbicas que não possuam trejeitos masculinos, gays que se comportem de forma não afeminada
e pessoas que casaram-se ou tenham tido filhos32.

Também existem outros posicionamentos que alegam que as minorias sexuais


solicitantes de refúgio seriam “depravados, de que não possuem relacionamentos estáveis e são
promíscuos ou de que solicitantes bissexuais estariam em dúvida sobre sua sexualidade” 33,
comungando com o entendimento de que estas pessoas são objetos de ataque em seus países

28
MILLBANK, Jenni. Gender, Visibility and Public Space in Refugee Claims on the Basis of Sexual
Orientation. Seattle Journal for Social Justice, vol. 1, n. 3, p. 726-729, dec. 2002.
29
MILLBANK, Jenni. From Discretion to Disbelief: Recent Trends in Refugee Determinations on the Basis
of Sexual Orientation in Australia and the United Kingdom. International Journal of Human Rights, vol. 13,
n. 2/3, p. 394, 2009.
30
MILLBANK, Jenni. From Discretion to Disbelief: Recent Trends in Refugee Determinations on the Basis
of Sexual Orientation in Australia and the United Kingdom. International Journal of Human Rights, vol. 13,
n. 2/3, p. 396, 2009.
31
BERG, Laurie; MILLBANK, Jenni. Constructing the Personal Narratives of Lesbian, Gay and Bisexual
Asylum Claimants. Journal of Refugee Studies, vol. 22, n. 2, p. 204, 2009.
32
JANSEN, Sabine; SPIJKERBOER, Thomas. Fleeing Homophobia: Asylum Claims Related to Sexual
Orientation and Gender Identity in Europe. Amsterdã: COC Nederland, p. 42, 2011.
33
BERNARDES, Pedro Henrique Dias Alves. Esconder para sobreviver: uma perspectiva queer sobre
refugiados LGBTI+.
<http://www.enadir2017.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic2?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czoz
NDoiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjM6IjIxOCI7fSI7czoxOiJoIjtzOjMyOiJlMWNkYTUxOTBlZ
mZmZmE3ZjdmNTY3Zjk5YTY5YzdkOSI7fQ%3D%3D>, p. 5, Acesso em 19 de junho de 2018.

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nativos por serem tidos como libidionosos e que, em outro sentido, são corpos “normais” e
“socialmente aceitáveis” com vistas a conseguir proteção em outros países34.

Portanto, nota-se que há verdadeiros contrapesos estatais para filtrar experiências


sexuais que coadunem com as perspectivas ocidentais, levando a ideias pré-estabelecidas da
sexualidade entre cidadãos LGBT. Quer dizer que o solicitante deve ter transpassado e
vislumbrado, a si mesmo, dentre uma relação interpessoal plausível, para assim realizar o
convencimento de que realmente enquadra-se na restrita categoria de cidadão abjeto 35 .
Conduzindo a própria ideia da heterossexualidade como norma, em que, um cidadão LGBT
que não demonstre, ou tenha uma performance de forma a ocultar ou não transparecer sua
condição sexual, este mesmo indivíduo poderá ser regularmente aceito na sociedade e transitar
livremente pelos espaços.

Curioso é que, em maior ou menor grau, espera-se que os indivíduos, ao adentrarem em


um novo território, teoricamente seguro, demonstrem padrões de comportamento ocidentais
nos quais se perceba atos, gestos, falas, consumos e hábitos comuns a pessoas LGBT.
Ignorando-se toda a percepção de que o gênero é fluído, é performático e que, poucos dias atrás,
estas pessoas ainda subsistiam por esconder suas sexualidades e identidades de gênero, para
assegurar sua sobrevivência e ou integridade em seus países de origem.

Dizer que o gênero é performativo, traduz o sentido de que este produz uma série de
efeitos. Nós agimos e andamos e falamos de forma que consolidam uma impressão de ser um

34
NAYAK, Meghana. Who Is Worthy of Protection?: Gender-Based Asylum and U.S. Immigration Politics
. EUA: Oxford University Press, 2015. 272 p. conforme citado por BERNARDES, Pedro Henrique Dias Alves.
Esconder para sobreviver: uma perspectiva queer sobre refugiados LGBTI+.
<http://www.enadir2017.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic2?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czoz
NDoiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjM6IjIxOCI7fSI7czoxOiJoIjtzOjMyOiJlMWNkYTUxOTBlZ
mZmZmE3ZjdmNTY3Zjk5YTY5YzdkOSI7fQ%3D%3D>, p. 5, Acesso em 19 de junho de 2018.
35
Butler enuncia que, o gênero “é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de
uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma
substância, de uma classe natural de ser”. Deste modo, ao acompanhar o pensamento de Judith Butler, o gênero
se constitui não de um conjunto de valores culturais submetidos ao corpo, tampouco com a interpretação que este
corpo conceda, quiçá ao ser homem ou ser mulher. Ele significa um conjunto de regras impostas, perpetuadas e
realocadas sobre o corpo de forma a consubstanciarem na aparência desejada de forma a conceder um status válido
aos indivíduos. Vide: BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 10ª ed.
– Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 59, 2016.

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homem ou de ser uma mulher. Nós tomamos partido como se este ser um homem ou este ser
uma mulher fosse na verdade algo que simplesmente é uma verdade sobre nós, é um fato sobre
nós. Na verdade, é um fenômeno que tem sido produzido todo o tempo, e reproduzido todo o
tempo. Então, dizer que o gênero é performativo é dizer que ninguém pertence a um gênero
desde sempre. Daí se poder defender a existência de todo um conjunto de posturas e de artefatos
que se consubstanciam num reconhecimento dos sujeitos sociais.

Contudo, isto é um relato, um fenômeno, uma circunstância que não deveria, ao menos
em tese, ser imposta por padrões estereotipados e ocidentais, ainda mais como requisito para a
concessão de refúgio. Perceba que estes indivíduos devem mascarar suas sexualidades por anos
a fio, assegurando, por muitas vezes, sua sobrevivência em seus países de origem, para que,
então, necessitem revelar de forma explicita, com o objetivo de receberem proteção em novos
países e, ainda assim, serem forçados a adotar novamente um véu de encobrimento caso haja
negativa de concessão do refúgio, o que corrobora para uma profunda opressão contra grupos
historicamente marginalizados36.

REFÚGIO: UM VISLUMBRE SOBRE A ÓTICA DA PERFORMANCE DE GÊNERO

Há de se falar que, ao decorrer dos anos, tornou-se imperativa a busca por mecanismos
e justificativas para as abjeções existentes. Se diz isto, pois, no momento em que se busca uma
explicação e uma adequação para a homossexualidade, ainda que não mais a tenhamos como
uma patologia 37 , em sentido contrário se manifesta a cultura heteronormativa como uma

36
HELLER, Pamela. Challenges Facing LGBT Asylum-Seekers: The Role of Social Work in Correcting
Oppressive Immigration Processes. Journal of Gay & Lesbian Social Services, vol. 21, p. 304-308, 2009.
37
O homossexualismo passou a existir na CID a partir da 6a Revisão (1948), na Categoria 320 Personalidade
Patológica, como um dos termos de inclusão da subcategoria 320.6 Desvio Sexual. Manteve-se assim a 7a Revisão
(1955), e na 8a Revisão (1965) o homossexualismo saiu da categoria "Personalidade Patológica" ficou na categoria
"Desvio e Transtornos Sexuais" (código 302), sendo que a subcategoria específica passou a 302.0 -
Homossexualismo. A 9a. Revisão (1975), atualmente em vigor, manteve o homossexualismo na mesma categoria
e subcategoria, porém, já levando em conta opiniões divergentes de escolas psiquiátricas, colocou sob o código a
seguinte orientação "Codifique a homossexualidade aqui seja ou não a mesma considerada transtorno mental".
Vide: LAURENTI. Ruy, Homossexualismo e a Classificação Internacional de Doenças. Rev. Saúde Pública
[online]. 1984, vol.18, n.5, pp.344-347. ISSN 0034 8910. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89101984000500002.

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variável possível, naturaliza-se a heterossexualidade enquanto encobre-se um mecanismo que


reverbera o caráter anormal das sexualidades dela discordantes.

Por vezes adota-se um parâmetro que promove uma maior segregação e desassossego a
parcelas da sociedade, ao revés de inquietar-se para descobrir as raízes que consideram que
algumas pessoas são anormais, inaceitáveis, inválidas ao passo de que outras são habitualmente
aceitas no seio social. Na medida em que, até os dias atuais, ainda subsiste uma necessidade de
adequação entre o sexo biológico, o gênero e a expressão do desejo humano, mantendo um
dualismo entre a heterossexualidade e todas as expressões de gênero que dela discordem.

É a partir destes desafios que a perspectiva da teoria queer denota os desafios que se
apresentam na seara dos direitos humanos das pessoas em situação de refúgio. É precioso
destacar que esta teoria surgiu em clara contraposição as estruturas rígidas e justapostas que
restringiam a vivência humana, ao considera-la como “um impulso crítico em relação à ordem
sexual contemporânea”38, onde houve uma resiginificação de um termo que denotava perversão,
um verdadeiro xingamento para todos aqueles que desenvolviam-se de forma a romper com
padrões de sexualidade e gênero como unidades restritas e inelásticas.

O queer surgiu a partir da concepção de que a sexualidade humana é um dispositivo


histórico de poder, em que se busca a regulação nas sociedades ocidentais pela inserção do sexo
em sistemas que se dedicam a prática e a discursos sociais, como a cultura, as prospecções
morais, e as noções da natureza do ser humano, a qual refletia a sexualidade como um regime
que se dedica a regulação das relações sociais, através de instituições e práticas que propõem o
reforço de noções estáticas e firmas sobre o gênero e a sexualidade39.

Neste viés, a teoria queer elenca o sujeito sempre submetido a um devir, em um caráter
permanentemente transitório, de fronteiras sexuais móveis, onde as circunstâncias que versam

38
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças / Richard Miskolci. – 2. Ed. Rev. E
Ampl., 2. Reimp. – Belo Horizonte: Autêntica Editora: UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto, 2015. –
Série Cadernos da Diversidade; 6. P. 21.
39
MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças / Richard Miskolci. – 2. Ed. Rev. E
Ampl., 2. Reimp. – Belo Horizonte: Autêntica Editora: UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto, 2015. –
Série Cadernos da Diversidade; 6. P. 25.

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sobre identidades “naturais” de sexo e gênero, não são aceitas, permitindo uma nova
compreensão sobre categorias anteriormente fixas e restritivas, suscitando uma compreensão
elástica e atenta a necessidade de que grupos historicamente marginalizados possam exercitar
a sua sexualidade, o gênero e o desejo sexual40. Este caráter flutuante que a teoria queer apregoa
a sexualidade humana, pode ser percebido também no âmbito das discussões entre o direito
internacional dos refugiados e os direitos humanos41.

Estas noções derivam da compreensão de que, a sexualidade humana, não pode ser
percebida dentro de uma ótica binária e restrita. E sim, por outro lado, deve ser observada em
uma ótica que estabeleça uma compreensão universal acerca das performances de gênero e
desejo sexual, os quais podem ser percebidos e exercidos de numerosas formas, em diversas
sociedades e em concepções que não se amoldam as proposituras experimentadas nos países
ocidentais, nos quais ainda se vigora a tensão que elenca a cisheteronorma, a qual apresenta a
construção social, em categorias rígidas e excludentes, que restringem a identidade individual
e social.

É precioso perceber que, a própria seara dos direitos humanos atua de forma a trazer a
discussão sobre a necessidade de novas concepções acerca das noções de gênero e sexualidade.
A concepção ocidental acerca das performances de gênero e sobre a sexualidade dos indivíduos
não estão contidas, tão somente, nos contextos vivenciados nestas culturas. Não é difícil
perceber que as construções sociais criadas no ocidente, não são representativas das expressões
do oriente, e o próprio discurso que tece a universalidade dos direitos humanos, por sua vez,
deve se ater a estas variáveis.

Noções culturais, sociais e políticas são próprias de cada sociedade que as vivenciam42.
Estas vivencias e características acabam sendo internalizadas pelos indivíduos e passam por

40
ROCHA, Cássio Bruno Araújo. Um pequeno guia ao pensamento, aos conceitos e à obra de Judith Butler.
Cadernos Pagu, n. 43, p. 507-516, jul./dez. 2014
41
GROSS, Aeyal. Queer Theory and International Human Rights Law: Does Each Person Have a Sexual
Orientation?. Proceedings of the Annual Meeting (American Society of International Law), vol.101, p. 129-132.
2007. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/25660175>. Acesso em 3 ago. 2018.
42
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 10ª ed. – Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, p. 122, 2016.

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uma averiguação e compatibilidade quando da análise das solicitações de refúgio para as


minorias sexuais. Isto pois, é adotado nas solicitação de refúgio, em especial quando de
minorias sexuais, que se busque vislumbrar condutas que se encontravam reprimidas e ocultas
em seus países de origem, com vistas a adequação de prospecções pré-constituídas sobre gênero
e sexualidade, influenciando o deferimento do pedido de refúgio43.

Note que, para que a concessão do refúgio ocorra, é preciso que haja a confissão de
aspectos personalíssimos da vida de pessoas LGBT, as quais podem não se expressar com o
vigor necessário em virtude de o ambiente e circunstância em que se encontram não serem
favoráveis44, favorecendo a preponderância de vergonha e humilhação. Subsiste também um
paradigma de que, numerosas condutas praticadas por estas pessoas também podem constituir-
se de atos que remetam a crimes e ou a violação de regras impostas durante a vida destes
indivíduos, prejudicando a forma como se confessam perante outras sociedades em face da
percepção que eles detêm sobre suas próprias vivências45.

Além disto, também é preciso destacar, a necessidade imperativa de que os agentes


concedentes de refúgio, consigam adequar as realidades experimentadas pelos requerentes, em
comportamentos padronizados e normativos vistos sob uma ótica própria em cada Estado.
Portanto, para que solicitações de refúgio sejam aceitas, devem coincidir com às prospecções
dos agentes do país concedente em face das narrativas dos solicitantes 46 . Logo, a questão
paradigmática que versa sobre a concessão do refúgio de pessoas queer, encontra-se justificada
na medida em que devem ter sido experimentadas situações e acontecimentos que sejam
plausíveis sob a ótica dos agentes, como ocorrências que ensejem a concessão do refúgio.

43
LEWIS, Rachel. Gay? Prove it: The Politics of Queer anti-deportation activism. Sexualities, vol. 17, n. 8,
p. 974, 2014.
44
SHUMAN, Amy.; BOHMER, Carol. Gender and Cultural Silences in the Political Asylum Process.
Sexualities, vol. 17, n. 8, p. 942, 2014.
45
SHUMAN, Amy.; BOHMER, Carol. Gender and Cultural Silences in the Political Asylum Process.
Sexualities, vol. 17, n. 8, p. 943, 2014.
46
SHUMAN, Amy.; BOHMER, Carol. Gender and Cultural Silences in the Political Asylum Process.
Sexualities, vol. 17, n. 8, p. 947, 2014.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 190 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


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Isto acarreta, em ato contínuo, a necessidade que se reproduzam performances de


gênero e expressão de desejos sexuais, compatíveis com a percepção dos países concedentes
de refúgio, como sendo atos que tendam a causar uma perseguição e ou ameaça. Quando o viés
de conduta esperado para um homem homossexual, na concepção ocidental, não seja
facilmente percebida, distanciando-se das normas de comportamento ideais para a concessão,
a solicitação de refúgio poderá ser negada, de sobremaneira quando a perseguição não se dê
em espaços públicos47.

Neste viés, é possível sugerir que a concessão de refúgio para um homem homossexual,
necessite implicar, em maior ou menor grau, que em seu país de origem a sua conduta pública
seja impregnada por pechas que favoreçam a perseguição, como as vivenciadas por indivíduos
que atuem na defesa e promoção de causas de igualdade entre as pessoas LGBT. De forma
diversa, não se considera as vivências e perseguições que podem ser experimentadas dentro do
ambiente privado e, em especial, no âmbito familiar. É possível suscitar que, tal como em outras
formas de violência de gênero contra a mulher, as agressões se deem, de forma proeminente,
dentro dos ambientes privados, sejam eles dentro de suas relações de emprego ou nas relações
de cunho familiar.

Está deficiência é demonstrada quando da equiparação entre as solicitações de refúgio


por homens homossexuais e mulheres lésbicas. Apesar de participarem de relações que
demonstram as mesmas ofensas, em tese, a heteronormatividade, países como os Estados
Unidos da América e a Inglaterra48, identificam um índice de ocorrências menores envolvendo
refúgios em que a protagonista seja uma mulher homossexual. Envolve-se, neste sentido, a
pragmática que ataca e vilipendia o direito ao refúgio, em virtude de uma tendência a
desconsiderar as relações privadas, por não demonstrem claramente as máculas a que um
indivíduo LGBT é submetido, reforçando a imprecisão com a qual as relações de gênero e
poder são tratadas pelos Estados.

47
SHUMAN, Amy.; BOHMER, Carol. Gender and Cultural Silences in the Political Asylum Process.
Sexualities, vol. 17, n. 8, p. 947, 2014.
48
SHUMAN, Amy.; BOHMER, Carol. Gender and Cultural Silences in the Political Asylum Process.
Sexualities, vol. 17, n. 8, p. 947, 2014.

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Ao mesmo tempo em que o refúgio deveria ser visto como uma política de abrigo e
acolhimento, ela também pode ser percebida e vivenciada como um reforço a condutas que
segregam e reprimem seres abjetos e com performances de gênero divergentes, em especial por
deturparem a ideia de gênero e sexo como categorias binárias e excludentes. Neste sentido,
pessoas que divergem destas categorias restritivas, precisam apresentar-se em consonância com
ideais ocidentais e heteronormativos que atentem contra o sistema cisgênero, necessitando que
as suas homossexualidades, lesbiandades, bissexualidades, transsexualidades e demais formas
de expressões de desejo sexual e gênero se adequem as concepções que possuem um caráter
excludente as minorias sexuais49.

É abismático que, pessoas LGBT necessitem moldar seus corpos, atitudes e expressões
para adequar-se a perspectivas da hetero-norma, ainda que suas identidades não se configurem
como normativas, se mostra imperativo a adequação às expectativas de gênero construídas em
outras realidades e com aspectos culturais distintos para que se obtenha o refúgio. Ocasionando
um processo de elaboração de identidades que, através de uma fala oriunda de perspectivas
dominantes, são reformuladas e aparentemente reconhecem direitos de grupos marginalizados.
Contudo, não se atrevem a perceber que as mesmas falas que construíram identidades e
balizamentos sobre os corpos, transcrevem, na verdade, práticas que são vistas como avessas a
pessoas queer e reforçam condutas que levam a abjeção destes corpos na sociedade50.

CONCLUSÕES

O cotejo aqui avençado, permite perceber que, as atuais formas de controle das
solicitações de refúgio, em virtude da condição sexual e identidade de gênero dos solicitantes,
tendem a reverberar e concretizar formas de violência contra pessoas queer, seja elas de forma
simbólica ou estrutural, na medida em que podem acarretar a devolução dos indivíduos aos
países de origem e ocasionar condições drásticas a estas pessoas 51 . Visto que, subsiste a

49
NAYAK, Meghana. Who Is Worthy of Protection?: Gender-Based Asylum and U.S. Immigration Politics
. EUA: Oxford University Press, 2015. 272 p.
50
LEWIS, Rachel. Gay? Prove it: The Politics of Queer anti-deportation activism. Sexualities, vol. 17, n. 8,
p. 974, 2014.
51
NAYAK, Meghana. Who Is Worthy of Protection?: Gender-Based Asylum and U.S. Immigration Politics
. EUA: Oxford University Press, 2015. 272 p

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necessidade de que o solicitante de refúgio demonstre de forma criteriosa as situações que o


acometiam em seus países, na medida em que os Estados buscam a revelação de vivências que
se compatibilizem com as perspectivas ocidentais.

Além de se mostrar como uma aberração, visto que a experimentação de situações de


perseguição de gênero e condição sexual, são distintas em razão das culturas e das sociedades,
e também dependem de esferas públicas e privadas. Neste sentido, seria relevante a indicação
de que as experiências de uma pessoa em determinada sociedade, não necessariamente se
adequam as expectativas de outros indivíduos em uma realidade distinta, sendo que a conduta
dos Estados concedentes de refúgio deveriam pautar-se na perspectiva de que outras formas de
vida são possíveis em cada país52.

Tendo em vista que os mecanismos de controle ainda esbarram em concepções


normativas, seja na adequação entre sexo e gênero ou ainda na expressão de desejo sexual,
demonstrando assim uma prática que exclui e marginaliza as pessoas, trazendo a ideia de que
as identidades são fixas e os comportamentos dela derivados são todos categorizados e
esperados. Acarretando uma adequação racional dos indivíduos, anulando suas variáveis
pessoais e buscando restringir-se em definições fixas, aceitáveis e esperadas, as quais
encontram-se reguladas e dispostas como normas imperativas aos indivíduos53.

E isto, neste sentido normativo e restritivo indicado e moldado aos indivíduos queer, é
justamente o contrário do que apregoa uma categoria marcada por imprecisões e aspectos de
fluidez que esta terminologia veste, ao abandonar fáceis definições restritas e recusando-se a
fixar parâmetros de identidades sexuais e de gênero, subvertendo a própria concepção da
universalidade de direitos, tão cara e apregoada ao universo dos direitos humanos. Ao se falar
em condições humanas, não deveria pautar-se de forma a tratar os indivíduos como objetos de

52
SHAKHSARI, Sima. The queer time of death: Temporality, geopolitics, and refugee rights. Sexualities,
vol. 17, n. 8, p. 998-1015, 2014.
53
SHAKHSARI, Sima. The queer time of death: Temporality, geopolitics, and refugee rights. Sexualities,
vol. 17, n. 8, p. 998-1015, 2014.

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existir que se produza um lastro probatório sobre a expressão de gênero e ou condição sexual
de pessoas queer.

Diante de tantas imprecisões, indicar-se-ia de forma lógica que a vivência de um


indivíduo possa ser abstraída em observância as narrativas de vida e perseguição que carregam
consigo54, sem que isto tenha a necessidade de adequar-se as expectativas do ouvinte, e sim
questionando a si mesmos sobre se eventuais inconsistências seriam determinantes para a
negativa do refúgio 55 . Assim, questiona-se se as relações de poder e sujeição seriam
determinantes e excludentes, dada a complexidade que permeia as relações de gênero e
sexualidade no espectro humano.

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54
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Sexualities, vol. 17, n. 8, p. 947, 2014.
55
SHUMAN, Amy.; BOHMER, Carol. Gender and Cultural Silences in the Political Asylum Process.
Sexualities, vol. 17, n. 8, p. 947, 2014.

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CONVERSA SOBRE EDUCAÇÃO COM RAEWYN CONNELL1

CONVERSATION ON EDUCATION WITH RAEWYN CONNELL

CONVERSA SOBRE EDUCACIÓN CON RAEWYN CONNELL

Carmen Lúcia Guimarães de Mattos2


Márcio Rodrigo Vale Caetano3
Paula Almeida de Castro4

RESUMO
A conversar com Raewyn Connell tever início pela sua trajetória acadêmica a partir do livro Making the
Difference: Schools, Families and Social Division (1982), cuja publicação em língua portuguesa ampliou o
interesse de pesquisadores em educação pelos estudos de gênero. Dada a amplitude da produção da autora nesta
linha de estudos a conversa continua com indagações sobre a importância para escola em lidar com esse tema,
assim como sua interconexão com os estudos sobre masculinidades e suas teorizações internacionais e mais
particularmente no Hemisfério Sul, visto que Connell, à época estava divulgando o seu livro Southern Theory:
The Global Dynamics of Knowledge in Social Science. Discutiu-se as possibilidades teóricas do Sul pelo Sul, o
papel da escola na introdução dos temas sobre as ordenações de gênero e finalmente apresenta-se reflexões dos
autores sobre seus próprios questionamentos a cerca da obra da autora.

PALAVRAS-CHAVE: Educação, Igualdade, Masculinidade, Gênero, Avaliação Etnografia.

ABSTRACT
The conversation with Raewyn Connell began with her academic trajectory with the book Making the Difference:
Schools, Families and Social Division (1982), published in Portuguese, which expanded the interest of researchers
in education on gender studies. Given the scope of the author's production in this line of studies the conversation
continues with inquiries about the importance of schools in dealing with this subject, as well as its interconnection
with the studies on masculinities and their international influence and more particularly in the Southern

Submetido em: 03/05/2019 Aceito em: 04/05/2019 Publicado em: 01/06/2019


1
Transcrição da entrevista por Nathan Sany - Whitman College, Walla Walla – WA/EUA.
2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) – Brasil. Formação e instituição [Ph.D]. – University of
Pennsylvania, USA.c E-mail: clgmattos@gmail.com
3
Universidade Federal do Rio Grande – FURG & Bolsista PNPD no Proped/UERJ. Doutorado em Educação –
Universidade Federal Fluminense. E-mail: mrvcaetano@gmail.com / ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4128-
8229.
4
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Doutorado em Educação - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) – Brasil. E-mail: emailsdapaula@gmail.com.

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Hemisphere, since Connell, at the time, was publicizing her book Southern Theory: The Global Dynamics of
Knowledge in Social Science. The theoretical possibilities of the South by the South were discussed, the role of
the school in the introduction of the themes on the genre order, and finally the authors' reflections on their own
questions about the author's work are presented.

KEYWORDS: Education, Equality, Masculinity, Gender, Etnographic Assessment

RESUMEN
Una conversa con Raewyn Connell tener empezar por su carrera académica del libro Haciendo la Diferencia:
escuelas, las familias y la división social (1982), cuya publicación en portugués ampliado el interés de los
investigadores en la educación, los estudios de género. Dada la amplitud de la producción de la autora en esta
línea de estudios la conversación continúa con indagaciones sobre la importancia para la escuela en lidiar con ese
tema, así como su interconexión con los estudios sobre masculinidades y sus teorizaciones internacionales y más
particularmente en el hemisferio sur, ya que Connell, en la época estaba divulgando su libro Southern Theory: The
Global Dynamics of Knowledge in Social Science. Se discutió las posibilidades teóricas del Sur por el Sur, el
papel de la escuela en la introducción de los temas sobre las ordenaciones de género y finalmente se presentan
reflexiones de los autores sobre sus propios cuestionamientos a cerca de la obra de la autora.
PALABRAS CLAVE: Educación, Igualdad, Masculinidad, Género, Evaluación Etnografía.

Raewyn Connell é uma pesquisadora conhecida mundialmente por sua extensa


produção sobre os estudos de gênero, masculinidade(s) e sexualidade(s). Entretanto, com o
livro Making the Difference: Schools, Families and Social Division, publicação coletiva de
Raewyn Connell, Dean Ashenden, Sandra Kessler e Gary Dowsett, em 1982, surge o nosso
interesse pelo trabalho de Connell, e, é neste contexto que se deu a conversa entre ela e os(as)
autores(as) deste texto.

O livro, publicado no Brasil sob o título, Estabelecendo Diferenças: escolas, famílias e


divisão social, em 1995, baseia-se em uma pesquisa etnográfica sobre as escolas e as moradias
de pessoas ricas e poderosas e das assalariadas. O estudo etnográfico permitiu que crianças,
responsáveis e docentes falassem sobre eles próprios. Elas desenvolveram: novas maneiras de
entender as desigualdades educacionais; de como funcionavam os sistemas de classe e de
gênero, e das expectativas sociais sobre as escolas. Neste sentido, as questões de pesquisa
trataram as igualdades de oportunidades, coeducação e o currículo significativo de forma
simples, mas incisivas. O livro abordou tanto a política educacional, a nível de sistema, como
a experiência do dia a dia das crianças e de docentes, assim como; dos problemas de
escolarização e da produção de relações de classe e de gênero. Essa combinação inovadora de
teoria, pesquisa e política envolveu e instigou o(a)s leitor(a)s o que tornou o texto relevante em

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termos metodológicos e temáticos. Passado algumas décadas desde o lançamento do livro


original, ele permanece no rol das referências mais importantes na área de Educação, na
Austrália, no Brasil e em várias partes do mundo. Coloca de modo peculiar como as relações e
ordenações de gênero têm um papel importante na organização pedagógica, no currículo e nas
práticas da escola.

A conversa entre Raewyn, Carmen e Marcio se deu na Faculdade de Educação da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 13 de abril de 2015, as questões foram
previamente preparadas e enviadas a autora com um dia de antecedência. Raewyn havia
finalizado uma conferência5 e, portanto, estava cansada da maratona de fuso horário de 13 horas
e três dias de conferências. Foi uma gentileza enorme da parte dela encontrar fôlego para mais
duas horas de conversa.

Apresentar-se-á a seguir as questões formuladas a título de conhecimento e pertinência


das respostas, mas a conversa será editada em acordo com as falas como elas se apresentaram
a partir da linearidade da conversa.

Questões:

1. Raewyn você é conhecida internacionalmente por suas pesquisas e produções no campo


dos Estudos das Masculinidades e esses estudos se interconectam substancialmente os
conhecidos Estudos de Gênero. Entretanto, seu trabalho também tem forte correlação
com a Educação. Você poderia nos falar sobre seu percurso profissional e intelectual e
de como suas pesquisas nos mais variados temas, repercutiram na área da educação?

2. No campo legislativo na educação brasileira é garantido um currículo diversificado


frente a nossa pluralidade cultural. Porém, as avaliações estatizadas nacionais
executadas pelo Governo Federal orientam os conhecimentos que devem ser
universalizados na escola e esses são fortemente atravessados pela lógica global

5
A conferência intitulada Embodiment [encorporação] das mulheres transexuais: gênero, medicina e política, foi
ministrada na Faculdade de Psicologia da UERJ por Raewyn Connel, no dia 13/04, como o patrocínio do Centro
Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) e do Laboratório Integrado em Diversidade
Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos (LIDIS/UERJ)

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europeia. Você poderia falar um pouco sobre os modos como a colonialidade opera nas
escolas?

3. Com a velocidade das mudanças ocorridas no âmbito do acesso à informação no


contexto global e a constante desvalorização docente e da escola em relação ao seu
papel formador, você continua a pensar que a função da escola é proporcionar as pessoas
o conhecimento e que o processo educacional é um processo de libertação como você
afirmou no seu livro Making the difference (Connell, at. al., 1982)?

4. No Brasil, no geral, existe a predominância da utilização das teorias do mundo ocidental


nortista e isso se faz sentir na produção de pesquisas no campo da educação, o que não
se diferencia no cenário metodológico. Como você analisa a possibilidade de maior
circulação e reconhecimento pelo sul da produção do sul?

5. Considerando sua importância intelectual internacional, rompendo inclusive com a


colonialidade do Norte e ultrapassando as fronteiras australianas, o que você
aconselharia aos/às jovens pesquisadores/as para que esses/as tenham o reconhecimento
de suas produções?

6. Para algumas pessoas, a pedagogia enquanto campo de produção do conhecimento é


vista como algo secundário dado suas dimensões empíricas, com a forte presença da
subjetividade dos sujeitos envolvidos na produção do conhecimento e a
supervalorização da teoria e do abstrato. Você poderia comentar sobre as dimensões
subjetivas e empíricas para a produção do conhecimento?

7. Você tem sido a precursora dos Estudos de Gênero na perspectiva do sul. Poderia falar
sobre as inovações dessa perspectiva e o quanto isso poderá incidir no campo de
produção de conhecimento na Educação?

8. Quando você lançou o livro Masculinities (Connell, 1995) vivíamos, no geral, a ideia
de um ethos unificado em torno da masculinidade e seu trabalho teve grande impacto
porque trouxe a ideia da multiplicidade masculina. Paralelo ao seu livro, o mundo viveu
o reconhecimento, em maior ou menor grau, dos direitos identitários e/ou cidadãos da
população de lésbica, gay, bissexual, travesti e transexual (LGBT) e a crítica feminista
a hegemonia masculina. Como você analisa o reconhecimento e os direitos civis da

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população LGBT e o protagonismo das mulheres na educação nesses 20 anos após o


lançamento de Masculinities (idem)?

9. Quais as contribuições que a Teoria Queer e os Estudos Pós-coloniais teriam para a


educação?

Conversa.

Carmen: Você quer ver as perguntas novamente?

Raewyn: Talvez.

Carmen: Posso explicar, se você desejar! A ideia principal Raewyn, é publicar essa conversa
com você no contexto da educação e não focar exclusivamente nos estudos de gênero.
Raewyn: Então me fale sobre quem é o público para o qual vocês querem escrever?

Carmen: O público é formado por pesquisadores(as) em educação interessados(as) em estudos


sobre família, gênero e educação. Gostaríamos de ouvir sobre você. Quando falamos sobre
você, você sabe! desperta sempre o interesse dos(as) leitores(as) sobre os estudos de gênero e
masculinidade. Aqui (Brasil), como você falou na sua conferência, o interesse maior é em torno
do seu trabalho sobre masculinidades. Gostaríamos de ouvir sobre a conexão entre o seu
trabalho anterior e os de agora. Agora você está promovendo seu livro Southern Theory: The
Global Dynamics of Knowledge in Social Science (Connell, 2007), e as pessoas querem saber
sua opinião sobre o que fazer com a sua teoria? Como ela que está conectada a educação. Então,
nós preparamos essas perguntas, bem, a primeira é sobre a sua trajetória profissional, o
reconhecimento internacional do seu trabalho e também pelo um forte impacto que ele tem no
campo da educação, especialmente os seus trabalhos iniciais. Você poderia nos contar um
pouco sobre essa trajetória intelectual no campo da educação?

Raewyn: Bem, eu acho que vou por parte na questão, é que eu comecei na educação, eu
suponho, como um praticante, antes de ser uma pesquisadora da educação, ou ao mesmo tempo,
porque eu estava envolvida em um movimento para reformar as universidades que saíram do
New Left [Nova Esquerda] na década de 1960, quando eu era uma estudante de pós-graduação.
Nós desenvolvemos uma crítica à universidade, à pedagogia e aos currículos. Não foi apenas
uma crítica, mas tentou-se criar algo alternativo. E assim, em Sydney, eu estava envolvida na
criação de algo chamado Free University [universidade livre], que era uma tentativa de criar

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um sistema central de ensino superior radical que funcionou e durou cerca de três anos. Não
tinha permanência como muitos projetos da New Left [risos], mas criava uma espécie de modelo
de educação superior onde não havia distinção entre docentes e estudantes, onde a base eram
grupos de pesquisa self-corrected [autocorrigidos] que abordavam problemas de tal
importância que as principais universidades ignoravam: questões de violência, classe, poder,
indigenismo, questões aborígines, estratégias de movimentos sociais. Então, isso continuou na
minha carreira como professora universitária mais tarde, onde eu estava continuamente
envolvida na tentativa de desenvolver uma pedagogia mais democrática na universidade. E
novos currículos em áreas como gênero e análise cultural eram praticados. Então sempre houve
um lado de prática no que eu estava tentando fazer na educação. Eu me tornei uma pesquisadora
educacional através do meu doutorado sobre a consciência política das crianças e usei uma
abordagem no estilo Piaget para o desenvolvimento do pensamento das crianças sobre o
desenvolvimento da sociedade e questões políticas. Assim, minha primeira publicação em um
periódico educacional foi desse material que se debateu questões sobre se as escolas estavam
engajadas em propaganda educacional ao lidar com o governo e a política. E, parte dessa
pesquisa foi sobre o entendimento das crianças sobre classe social e desigualdade, então eu
publiquei coisas sobre a consciência de classe das crianças. Mas depois, me envolvi em um
estudo com adolescentes, em Sydney. Era uma espécie de pesquisa, de amplo espectro, sobre a
adolescência e eu era parte de uma equipe, cuja maioria estava no Departamento de Educação.
E publicamos um livro chamado 2 to 20: Studies of City Youth” (Connell, at al., 1975) que era
basicamente um amplo estudo da vida adolescente em Sydney, no final dos anos 60 e início
dos anos 70. E, que tinha muitos dados sobre retenção educacional, diferenças sociais no
desenvolvimento e desigualdades de classe na educação. Escrevi artigos sobre isso. Foi também
quando minha primeira pesquisa sobre gênero na educação foi feita porque escrevi um artigo
sobre os padrões de diferença sexual que emergiram nesta pesquisa.

Carmen: Então, lá havia espaço para isso. Para esse tipo de debate, aqui ainda não!
Raewyn: E então, o neoliberalismo veio com sua visão estreita sobre cultura e com o estresse
na competição, da vigilância e da quantificação. E começou a impor um regime de testes muito
mais rígido do que antes e mais difundido. A questão central de antemão só tinha sido o
currículo escolar, mas agora temos testes padronizados no ensino primário e no ensino médio.

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Carmen: No começo, como isso funcionava? Aqui, vou dar um exemplo, os(as) professores(as)
estão treinando os estudantes para fazer os testes.

Raewyn: Claro! Eles sempre têm sim.

Carmen: Então, foi o mesmo lá?

Raewyn: Sim, sempre! Qualquer professor com a cabeça mais estreita vai ensinar a fazer o
teste. Se for um teste de alto risco, que afeta o futuro da criança ou da escola, é claro que eles
vão treiná-las para fazer o teste. Todo mundo sabe que é assim! Exceto os formuladores de
políticas que provavelmente sabem disso e não se importam. Então, sim, fico furiosa com isso!
É um processo profundamente destrutivo e distorce a educação e cria uma enorme ansiedade
nas crianças pequenas. Ele incorpora a competitividade individual como a estrutura principal
da escola e cria muito mais vigilância dos professores, porque eles agora medem a eficácia do
professor por meio desses testes. Esse foi, de fato, um dos principais argumentos para trazê-
los, uma vez que eles achavam que seriam capazes de dizer quais eram as escolas eficazes e
quais eram os professores eficazes, medindo seus resultados.

Carmen: Eles estão até dando bônus para os professores.

Raewyn Connell: Sim. Então, eles estão trazendo de volta o pagamento pelos resultados que
tivemos há 150 anos ou 200 anos atrás. E foi abandonado porque teve efeitos ruins sobre a
educação. Então, estamos voltando há 100 anos ou mais. É horrível! Mas como agora existe
um monopólio neoliberal nos meios de comunicação de massa, é muito difícil contestar isso.
Agora temos um padrão similar de testes centralizados e a parte mais desagradável disso foi
quando o governo nacional criou um site chamado minha escola - não nossas escolas - mas
minha escola, e começou a colocar os resultados dos testes no site para que todos pudessem
forçar as escolas a competirem umas com as outras.

Carmen: É o mesmo aqui.

Raewyn: Isso é nojento! E isso foi feito por um governo trabalhista, sabe?

Carmen: Isso foi consolidado pelo governo do PT (Partido do Trabalhadores) aqui também.

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Raewyn: Então, muito disso vem da OCDE (Organização para a Cooperação e


Desenvolvimento Econômico), que se tornou um banco de pensamento neoliberal que começou
a controlar a política educacional.

Carmen: Mas, como você sabe essa organização teve inicio com os países Europeus, pois a
América do Norte não está tão interessada nisso (na avaliação comparativa internacional).
Raewyn: Bem, eles tentaram impor isso nos Estados Unidos como o ato intitulado – No Child
Left Behind [Nenhuma Criança Deixada para Trás]6 que envolveu testes de responsabilidade
dos professores e da escola através de testes. E esse era um governo de direita (Partido
Republicano). Sim, é bem desanimador. Além disso, os testes não são muito bons. Eles não são
realmente boas ferramentas educacionais.

Carmen: Sim! A ideia é que recebamos esse tipo de comparação de modo acrítico. Você
compara o Brasil com outros países e sempre nos faz parecer mal. Pois, você pode imaginar
países de baixa densidade demográfica comparados ao Brasil. É impossível comparar!

Raewyn: Mas, produz manchetes na mídia. E coisas para os políticos dizerem.

Carmen: A próxima pergunta é sobre a sua produção na educação, o livro que estávamos
falando antes – Making the Difference (Connell, 1982). Você continua a pensar que a função
da escola é prover o conhecimento aos alunos, mesmo com a velocidade das mudanças, o
alcance de acesso à informação no contexto global, as avaliações constantes, os baixos salários
dos professores? Estamos falando do lugar particular da escola nesse contexto, onde você pode
obter informações em qualquer lugar diferente da escola. Então, você ainda acredita que a
educação é um processo de libertação?

6
A Lei No Child Left Behind (NCLB) nenhuma criança deixada para trás - foi uma Lei do Congresso dos EUA
em 2002 na gestão do Presidente George W. Bush, que autorizou a Lei de Educação Elementar e Secundária a
incluiu disposições aplicáveis a estudantes desfavorecidos com a intenção padronizar os programas de ensino e os
testes na escolas (U.S. Department of Education, 2002).

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Raewyn: Hum, sim, acho que sim. Primeiro de tudo, muito do que você obtém na Internet não
é conhecimento. É apenas fantasia, propaganda e distorção.

Carmen: Você acha que é apenas propaganda?

Raewyn: Não, eu não acho que é apenas propaganda, mas há muita propaganda lá. E conteúdo
manipulativo, propaganda, produção de relações públicas, desde que grandes quantidades de
conteúdo na Internet são comercialmente produzidas e reproduzidas, para ganho econômico,
com todas as distorções que vêm com isso. É uma loucura! A televisão foi originalmente
concebida como um meio educacional e veja o que aconteceu com isso, com todo o conteúdo
indesejado e a desinformação veiculada pela televisão. O mesmo ocorre na Internet. Desde que
a Internet foi originalmente concebida para fins militares e não para fins educacionais.
Claramente, tem possibilidades educacionais, mas elas são inundadas pela comercialização e
pelas distorções nela. Então, eu não acho que a escola tenha sido deslocada como fonte de
conhecimento. Mas nesse mar de comunicações eletrônicas, é mais difícil para as escolas
prender a atenção dos jovens à medida que passam cada vez mais tempo no mundo on-line. A
escola tem que se adaptar a isso e encontrar maneiras de ajudar os jovens a navegar e criticar
em um tipo diferente de ambiente de mídia. Eu acho que isso é uma responsabilidade das
escolas, certamente. Penso na educação, na educação formal, ainda como um grande complexo
institucional na maioria das sociedades e, como instituição, é um veículo de controle por
interesses comerciais e por governos autoritários e até mesmo por governos supostamente
democráticos. Portanto, o currículo está sempre sujeito a tentativas de controle. Mas também
acho que as instituições de educação formal têm possibilidade educacional. E a chave para isso,
absolutamente, é a força de trabalho docente. As possibilidades humanas dos professores para
fazerem coisas educacionais dentro e fora das salas de aula com as crianças, criando
oportunidades para as crianças se educarem, o que eu acho que é uma parte muito importante
da educação, no nível universitário também.

Carmen: Então, para você a escola continua, não vai acabar?

Raewyn: Desculpe! Eu não acho que as escolas perderam suas funções, não! Também não acho
que as universidades perderam sua função, embora existam agora MOOCs – Massive Open
Online Courses e material online do MIT – Massachusetts Institute of Technology. A interação
real em um campus universitário é realmente importante para o ensino superior e eu também

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acho que é um grande problema quando a função de produzir conhecimento é


institucionalmente separada da função de educar e circular o conhecimento que é, naturalmente,
entendido aqui quando a pesquisa é realizada em institutos de pesquisa em que o pessoal de
pesquisa das universidades é separado do seu corpo docente, uma tendência agora. Ou ainda
quando a pesquisa está localizada em corporações, que não têm nenhum interesse em educação,
porque seu interesse real é manipular o público para obter vantagem comercial e lucrativa.
Temos que pensar a escola como uma instituição de ensino e de pesquisa. Ela é uma instituição
educacional e essas funções se juntam. É um local de articulação entre grupos de pessoas com
diferentes tipos de recursos educacionais e isso pode produzir um significativo desnível nos
testes. E isso, obviamente, é ignorado pela agenda neoliberal e pelo regime de testes
padronizados.

Carmen: Como se pode evitar ser tomado pela rede? Como você poderia nos aconselhar a fazer
algo sobre isso e a escola não ser consumida por recursos de “ensinos líquidos”?

Raewyn: Bem! Parte disso envolve luta nas novas mídias. Então, a contestação na rede, que eu
sei pouco. Eu tenho 71 anos de idade. Mas eu não tenho muitas habilidades líquidas. Então,
você precisa conversar com outras pessoas sobre isso [risos]; mas esse é um dos locais de luta.
Acho que as organizações de professores e a ‘indústria’ nos setores de educação são
importantes, por isso sou uma sindicalista ativa. Na verdade, conecto as possibilidades da
educação com a capacidade das organizações de professores de proteger a autonomia da força
de trabalho docente. O gerenciamento neoliberal é muito mais intrusivo do que o gerenciamento
burocrático, devido a todos esses mecanismos de controle: gerenciamento de desempenho,
prestação de contas, relatórios, o modelo on-line para cursos. Então, quanto mais isso for
contestado, melhor! Não pode ser contestado em um nível individual. Ele pode ser subvertido
um pouco, mas não pode ser contestado sem a força de uma ação coletiva. As discussões mais
interessantes e importantes sobre o ensino superior que aconteceram na Austrália agora, estão
acontecendo no sindicato nacional de educação superior, não no jornal, não no governo, não
entre os vice-reitores, mas na verdade é no sindicato onde as melhores discussões educacionais
estão acontecendo. Isso é parte disso, eu acho. Uma parte fundamental da contestação à reforma
é a relação do professor com os alunos. Estamos fundamentalmente tentando fazer com que a
universidade e a escola funcionem no interesse dos alunos. Essa é a base, são os fundamentos
éticos nos quais testamos o regime de testes e o gerenciamento neoliberal. Essas coisas estão
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conduzindo o processo educacional para os alunos. Portanto, ganhar o apoio dos estudantes no
nível de universalidade e mostrar qualidade na educação é realmente do interesse das pessoas
nas escolas. Essa é uma dimensão importante de luta.

Carmen: Estamos chegando ao final, você parece cansada, mas você pode responder outra
questão?

Raewyn: Claro, tudo bem! Me dê mais cinco e eu farei algo com elas (risos).
Marcio: Muito obrigada eu aprecio sua generosidade.

Raewyn: Me desculpe por isso, eu estou viajando de avião por uma distância muito longa.

Marcio: Eu entendo, também viajo por períodos longos, mas já me acostumei. Mas realmente
aprecio essa oportunidade. Gostaria que você falasse quais são as contribuições da Teoria Queer
e dos Estudos de Gênero transcolonial para a educação?

Raewyn: Existe uma edição especial da Revista Discurso7 sobre isso, sobre Estudos Queer em
educação que você pode achar interessante. Eu não sou uma entusiasta da Teoria Queer. Eu
tenho críticas a elas.

Marcio: Deixe-me ir por outro caminho, talvez, seja um pouco menos complicado e mais
prazeroso para você. Quando você lançou o seu livro Masculinities (Connell, 1995), esse
trabalho teve grande impacto porque trouxe a ideia de multiplicidades sobre a masculinidade.
Paralelamente ao seu livro, no mundo ocidental sobretudo, vivemos vários outros fatores: o
reconhecimento político da população lésbica, gay, bissexual e trans (LGBT) e a severa crítica
feminista à hegemonia masculina. Como você analisa o reconhecimento e a ampliação dos
direitos civis das pessoas LGBT e o empoderamento das mulheres na educação, nesses 20 anos
após o livro Masculininities?

Raewyn: Em primeiro lugar, eu diria que sou muito crítica ao conceito de pessoas LGBT. Eu
acho que é um conceito enganoso, é como uma coleção de maçãs e laranjas. Você está lidando
com coisas radicalmente diferentes e juntando-as. Não tem ajudado a criar um pensamento
claro ou uma boa política. Então, como eu estava dizendo na minha conferência, esse conceito
ajudou a circular a ideia de que tudo isso é sobre identidade e liberdade de expressão ou sobre

7
Não conseguimos identificar na revista citada pela autora a edição especial mencionada.

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nossa identidade e os direitos humanos para expressar diferentes identidades. E, deste modo
não se entende o que é a transição de gênero ou a construção do gênero. E define uma minoria
sexual como um grupo que não é uma minoria sexual. Eu não acho que conceitos confusos
sejam educacionalmente úteis.

Marcio: Então, introduzir as políticas LGBT na agenda educacional não seria uma boa ideia?

Raewyn: Não! Esse conceito, eu acho, não é uma coisa boa para se ter na agenda educacional
[...]. Acho importante ter o reconhecimento no currículo do significado humano das relações
de gênero e das relações sexuais de gênero, de modo que o currículo precisa do feminismo para
não ser um currículo patriarcal e heteronormativo. Isso auxilia a compreensão escolar dos
modos que produziram as desigualdades de gênero e sexuais na sociedade. Quero dizer, está
muito longe de ser completo e certamente houve reações e retrocessos em algumas partes do
mundo. Então, agora na Rússia é ilegal ensinar sobre a homossexualidade em escolas onde as
crianças precisam saber sobre a homossexualidade. Hum, então isso é profundamente anti-
educativo. Em outras partes do mundo, mesmo não sendo ilegal, é socialmente difícil o debate
porque os professores estariam sujeitos ao assédio, às críticas e objeção de pais. Temos, nos
últimos 20 anos, não em todos os lugares, não de modo uniforme, em linhas gerais, um período
de reação de gênero que teve poderosos movimentos e mobilizações antifeministas e de
construção de novos patriarcados, como o russo ou o reforço do poder patriarcal na China sob
um regime supostamente igualitário e de corporações transnacionais mediadas pelas agendas
econômicas globalizadas. Tudo isso é administrado por grupos de homens com uma cultura de
gestão de ocupação fortemente masculinizada. Então, nós realmente não estivemos em um
momento histórico muito progressivo nesses 20 anos. E embora a pesquisa sobre
masculinidades certamente tenha se expandido e se tornado mais sofisticada, interessante e
internacional, o campo mais global de conhecimento ainda apresenta recursos importantes para
o currículo.

Marcio: Seu trabalho traz a subjetividade das pessoas que estão sendo entrevistadas. Essa é
uma lição importante que aprendi com você, [...] quando se desconsidera a voz das pessoas, a
humanidade das pessoas... [Raewyn interrompe]

Raewyn: Não apenas suas subjetividades, mas, de maneira central, suas práticas sociais, o que
elas realmente fazem, a criatividade de sua vida cotidiana. Como argumentei em meu livro

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Schools and Social Justice [Escolas e Justiça Social] (Connell, 1993) uma parte fundamental
da justiça social é a justiça nos currículos. Currículos que, de várias formas, representam o
interesse dos grupos mais poderosos e não do menos privilegiados. Esta é a história usual dos
currículos. Assim, parte disso é a capacidade do currículo incluir as vozes dos marginalizados,
aqueles que são os menos poderosos em diferentes estruturas sociais.

Carmen: Nós temos muita sorte de ter você aqui e lamento exploramos ao máximo esse
momento. Me desculpe por isso. Um dia importante para nós ter você aqui. Muito obrigado
mesmo.

Raewyn: OK, espero que tenham algo de útil para a publicação.

Carmen: Certamente! Mais do que útil, muito obrigada, estamos muito gratos por disponibilizar
esse tempo conosco, mesmo muito cansada.

REFLEXÕES

Após reconhecimento de suas pesquisas sobre as dinâmicas de classe publicadas em


Ruling Class, Ruling Culture: Studies of Conflict, power and hegemony in Australian Life
(Connell, 1977) e conexão entre os marcadores classe e gênero nas dinâmicas escolares in
Making the Difference (Connell, 1982), Raewyn Connell desenvolveu uma teoria de gênero
enquanto estrutura social expressa no livro Gender and Power: Society, the Person, and Sexual
Politics (Connell, 1987) e publicou, em 1995, o livro Masculininities, ainda não traduzido para
o português, este livro é constituído em torno do conceito de masculinidade hegemônica,
certamente é uma das principais referências nas ciências humanas e sociais para os estudos
sobre masculinidades. Este conceito teve como objetivo central a análise dos processos de
hierarquização, normatização e, sobretudo, de marginalização das masculinidades subalternas.
A Nova Esquerda Australiana, a emancipação política de países colonizados e os
movimentos de contracultura permitiram aos/às intelectuais da geração de Connell os
sentimentos ousados necessários à contestação das instituições normatizadoras. A expansão do
sistema universitário australiano dos anos 1940-1970 certamente deu à pesquisadora as bases
institucionais para o desenvolvimento de suas pesquisas e com elas as críticas às desigualdades
educacionais e sexuais que fragilizariam os muros que protegiam a masculinidade.
Vários fatores convergiram, na década de 1980, para a emergência do questionamento
à masculinidade: o movimento pacifista criticava fortemente o militarismo, a masculinidade
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heterossexual foi fortemente problematizada pelos movimentos das chamadas minorias sexuais
à medida que se desenvolvia a epidemia do HIV / AIDS 8. As ciências sociais e humanas
colocaram em xeque a naturalidade das formas dominantes e dentro delas, a masculinidade
hegemônica. Tudo isso ocorria em paralelo aos avanços feministas, mas também com os
retrocessos neoliberais.
As políticas neoliberais, com suas práticas anti-participativas e anti-democráticas, não
abandonaram o imperativo político do homem forte, autoritário, racional, eficiente e impiedoso.
Existem relações concretas entre masculinidade e o neoliberalismo, sobretudo, por meio do
modelo hegemônico de gestão empresarial. A globalização neoliberal inaugurou outras
instituições e espaços sociais que se ampliaram em escala global por meio da internet, dos modelos
de Estados promotores de segurança transnacionais, dos mercados e empresas multinacionais. Essas
instituições são organizadas por sistemas de gênero geograficamente estendidas e altamente complexas.
Para Connell, as pesquisas sobre as masculinidades não são os únicos dispositivos para a análise
da ordem neoliberal global, mas vai ajudar à compreensão do funcionamento de suas instituições
capitalistas. Não obstante ao feito, Connell, em seu livro Southern Theory: The Global Dynamics of
Knowledge in Social Science (Connell, 2007), propôs uma outra alternativa de produção de
conhecimento para as Ciências Sociais e Humanas. Ao afirmar que a teoria do gênero, de fato, teve
relações estabelecidas a partir da metrópole global: Europa e América do Norte, ela nos chama a atenção
para o fato de que as sociedades que foram colonizadas têm sido forçadas a refletir e debater os efeitos
da colonização independentemente da lógica dos colonos. A periferia global continuou a produzir
conhecimentos em contrassenso a lógica econômica dominante de produção de saberes, isso ela o
chamou de Teoria do Sul.
A permanente luta contra hegemônica da autora nas escolas se refletem no despertar global para
os seus escritos. Nosso interesse em seu ponto de vista aqui descrito, se inserem na temática dos
currículos escolares e da urgência dessas lutas no campo da educação. A pauta neoliberal que cerca a
escola no momento atual, amplia os muros da escola pelo machismo, homofobia e outros com o
injustificável apelo da dominação das politicas feministas e marxistas pela escola e universidades. O
passo atrás descrito por Raewyn no início de sua fala, não se limitam aos testes macronacionais
aplicados nas escolas de natureza macro politica e mercadológica, naturalizados pelo machismo tóxico,

8
Human Immunodeficiency Viruses (HIV). Acquired Immunodeficiency Syndrome (AIDS)

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que se traduz no alarmante fenômeno do feminicídio e das agressões contra pessoas diferentes
simplesmente por elas existirem.
Esses muros, não impedem a violência diuturna vivida pelas crianças e jovem nas escolas e fora
dela, mas dificultam o diálogo entre professores e seus alunos e dos alunos e alunas entre si, sobre um
universo cultural e social que habitam e sobre aspectos relacionados às sexualidades, masculinidades,
feminilidades presentes em seu cotidiano.
Raewyn nos alerta, sobre o quão necessários se fazem os estudos de gênero no contexto da
educação e dá destaque especial à dialógica entre os estudantes e suas relações socioculturais.

Referências

CONNELL, R. W. Southern Theory: The Global Dynamics of Knowledge in Social Science.


Sydney, Allen & Unwin Australia; Cambridge, Polity Press, 2007.
CONNELL, R.W. Gender and Power: Society, the Person, and Sexual Politics, California:
Stanford University Press, 1987.
CONNELL, R.W. Ruling Class, Ruling Culture: Studies of Conflict, power and hegemony in
Australian Life. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1977. 264p.
CONNELL, R.W. Schools and Social Justice (Our Schools), Philadelphia: Temple
University Press,1993. 140 p.
CONNELL, R.W. Masculinities. Cambridge, Polity Press; Sydney, Allen & Unwin; Berkeley,
University of California Press, 1995.
Connell, RW, DJ Ashenden, S Kessler and GW Dowsett. Making the Difference: Schools,
Families and Social Division. Sydney, Allen & Unwin, 1982. Tradução no Brasil
[Estabelecendo a Diferença: Escolas, Famílias e Divisão Social, Porto Alegre, Artes Medicas,
1995].
CONNELL, W. F; STROOBANT, R. E; SINCLAIR, K. E; CONNELL R. W.; ROGERS.K. 2
to 20: Studies of City Youth. Sydney: Hicks Smith & Sons, 1975.
U.S. Department of Education. No Child Left Behind Act of 2001, PUBLIC LAW 107–110—
JAN. 8. 107th Congress: Washington, DC. 2002

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O CORPO TRANSVESTIGÊNERE
O CORPO TRAVESTI – NA ARTE

THE TRANSVESTIGENDER BODY


THE TRAVESTI BODY IN THE ART

Renata Carvalho1

RESUMO
Quando o editor da RE-DOC falou da possibilidade de estarmos juntes/xs/as/os enquanto trans-
academicas junto a/os artivistas, em uma secção artística a primeira pessoa que nos veio à mente, foi a
artista, Renata Carvalho*. O motivo foi seu papel nos últimos anos encarnando Jesus Cristo, na peça
“O evangelho segundo Jesus, rainha do céu”, protagonizado pela atriz e mulher trans/travesti
Renata**, em um texto da britânica e também mulher transgênero, Jo Clifford, e que foi traduzido e
dirigido por Natalia Mallo. A peça é um monólogo e traz histórias bíblicas sob a perspectiva
contemporânea e sob a versão transgênera. A artista Renata Carvalho e sua equipe tiveram seu
trabalho cancelado por várias vezes em função de ataques contínuos por parte de alguns membros de
grupos religiosos, entre eles, aqueles ligados à Igreja Católica. Para que parte do texto de seu novo
espetáculo estivesse presente neste dossiê, esperamos por seu retorno ao Brasil, depois da turnê em
apresentações pelo Reino Unido, Europa Central e África. O texto abaixo é o retorno ao nosso pedido
por uma composição artística, autoral e inédita para esta revista e segue na integra com a fotografia da
autora, produtora e atriz, como parte daquilo que é apresentado em seu trabalho mais recente, o
“Manisfeto Transpofágico”.
PALAVRAS-CHAVE: Jesus Cristo, Rainha do céu; Trans-Artivismorimeira e Resistência Trans

ABSTRACT
When the editor of RE-DOC told us about the possibility of being together as Trans-academics with
the Trans-artivists, in an artistic section, the first person that blow up in our mind was the artist,
Renata Carvalho. The reason was her role process in the last years incarnating Jesus Christ in the play
"The Gospel According to Jesus, Queen of Heaven", starring as actress and trans/transvesti woman
Renata **, in a text written by the British and also transgender woman, Jo Clifford, and which was
translated and directed by Natalia Mallo. The play is a monologue and brings biblical stories from the
contemporary perspective and under the transgender version. Renata Carvalho and her team had their
work canceled several times, due to ongoing attacks by some members of religious groups, including

Submetido em: 08/04/2019 Aceito em: 08/04/2019 Publicado em: 01/06/2019


1
Atriz, diretora, dramaturga e transpóloga. Fundadora do MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans),
do “Manifesto Representatividade Trans” e do Coletivo T (1º Coletivo artístico formado integralmente por
artistas Trans em SP).

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 213 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


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those linked to the Catholic Church. As part of the text of her new play to be present in this dossier,
we look forward to her return to Brazil, after touring in presentations across the UK, Central Europe
and Africa. The text below is the return to our request for an artistic composition, authored and
unpublished for this magazine and follows in full with the photograph of the author, producer and
actress, as part of what is presented in her most recent work, " The Manisfeto Transpophagic ".

KEYWORDS: Jesus Christ, queen of heaven; Trans-Artvism and Trans Resistence.

TRAVIARCADO: Onde Todos Os Corpos São Natura(lizados)is

No dia 11 de março de 2019, completamos 2 anos do lançamento do “Manifesto


Representatividade Trans”, e já podemos sentir mudanças, algumas significativas. Mas e as
narrativas que nos rodeiam? E essa construção social e criminalização de nossos corpos que a
arte corroborou no imagético do senso comum?
Narrativas dadas em textos romanceados e que nos torna risíveis, caricatas,
subjugando as nossas identidades (trans)femininas todo tempo. Como ficam? Narrativas que
nos masculinizam, que rechaçam e endemonizam? Do que adiantam?
O corpo transvestigênere, talvez seja o único corpo, que é atacado público e
diariamente por parte significativa da Igreja, pela mídia, pelo judiciário, pela medicina, pela
arte e ninguém fala nada. Ninguém reclama. Podem fazer qualquer história, de qualquer
forma e jeito, pode fazer qualquer vídeo tirando sarro, pode ser peça de teatro, livros, TCCs,
mestrados, doutorados, canais no youtube, portais, biografias e até em novelas das 9, que
ninguém reclama.
Pode chamar de qualquer coisa, pode erotizar, exotificar, tirar sarro, xingar e deixar
nítido a vergonha que todos têm deste corpo.
Pode chama-lo de violento, de bélico, de doente, de anormal.
Pode bater, expulsar de casa e até matar.
Cansamos. Não pode mais não. Que estudo e conhecimento é esse que vocês
obtiveram para contar algumas histórias sobre nós? Algumas beiram ao esdrúxulo. Não
queremos mais isso não!

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 214 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


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Essas narrativas nos matam todos os dias.


Agora estamos tomando as canetas, os teclados, os lápis de assalto.
Estamos escrevendo nossas histórias, contando outras narrativas, inventando
personagens como nós. Nós existimos na nossa Travaturgia.
O meu Teatro pode ser de Rua ou das Ruas.
E minha escrevivência é minha Transcestralidade.
Neste ano (2019), também no dia 20 de março, ao estrear meu novo trabalho:
“Manifesto Transpofágico” onde me visto do meu próprio corpo, do meu corpo Travesti,
narrando a transcestralidade dele.
O peso dado a esta palavra: Travesti. A este corpo Travesti.
Ela, a palavra, é repetida diversas vezes.
É preciso cansar, desgastá-la.
É preciso falar sobre sem sussurrar, sem cochichar, sem vergonha.
Vamos disseca-la. É preciso.
TRAVESTI. TRAVESTI. TRAVESTI.
Uma transfofagia da transpologia de uma transpóloga.
Ela digere. Se alimenta.
Precisamos alargar nosso conceito de humanidade. Ele não nos cabe, não nos serve.
Parem os Trans Fakes por 30 anos. Queremos parar de morrer.
Queremos parar de ser suicidadas.
Chega de cidadania precarizada.
A Arte Trans vem como farol na arte cisgênera.
Estamos com as luzes dos postes apontados
Luz. Refletores. Proscênios. 3º sinal.
A cafetina nos dirigiu.
A arte é e sempre foi democrática.
Pena que os artistas cisgêneros não saibam disso, estamos aqui gritando.
Me dê mais papéis? Folhas. Canetas.
Bem vindes ao Traviarcado onde todes os corpos são naturais.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 215 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


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Figura 1. Renata Carvalho, protagonista da peça teatral,


"The Gospel According to Jesus Queen of Heaven"
Fonte: Imagem enviada pela própria artista.

*Renata Carvalho – Atriz, diretora, dramaturga e transpóloga. Fundadora do MONART


(Movimento Nacional de Artistas Trans), do “Manifesto Representatividade Trans” e do
Coletivo T (1º Coletivo artístico formado integralmente por artistas Trans em SP).

** https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2018/04/05/quem-e-renata-carvalho-a-
atriz-trans-que-ousou-encarnar-jesus-cristo.htm

REFERÊNCIAS
CLIFFORD, J. (2018). Excerpt from "The Gospel According to Jesus Queen of
Heaven". Journal of Feminist Studies in Religion 34(1), 97-99. Indiana University Press.
Retrieved April 9, 2019, from Project MUSE database.

GONÇALVES Jr, Sara Wagner Pimenta. No Mar dos Abandonos: suspiro entre a teoria e
prática queer. In: Rebeh-Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, 2017. Disponível
em: < http://www.revistas.unilab.edu.br/index.php/rebeh/article/view/95/54>. Acesso em
23/01/2018

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PERSONAS TRANS Y EDUCACIÓN EN ARGENTINA,


LA EXPERIENCIA EDUCATIVA DE MOCHA CELIS
PESSOAS TRANS E EDUCAÇÃO NA ARGENTINA,
A EXPERIENCIA EDUCATIVA DE MOCHA CELIS

TRANS PERSONS AND EDUCATION IN ARGENTINA,


THE EDUCATIONAL EXPERIENCE OF MOCHA CELIS

Mocha Celis1

RESUMEN
En Argentina y américa del sur las personas travestis, transexuales y transgéneros sufren una serie
de violencias basadas en su identidad de género. Entre ellas se encuentra la discriminación que
atraviesa todos los ámbitos en los que se desenvuelven, inclusive la escuela. Por esta razón las
personas trans no logran completar la escuela secundaria y eso repercute en la posibilidad de
encontrar trabajo. Esta situación da origen a una mayor marginación social, a abusos por parte de
la policía, a enfermedades de transmisión sexual y adicciones, que se traducen como un descenso
en la calidad de vida. Mocha Celis nació desde la necesidad de construir las herramientas para la
capacitación y el reconocimiento social por medio del otorgamiento de títulos secundarios
oficiales para revertir la situación en la que travestis, transexuales y transgéneros se encuentran.

PALABRAS CLAVE: personas trans; educación; experiencia Mocha Celis; Argentina.

RESUMO
Na Argentina e na América do Sul, travestis, transexuais e transgêneros sofrem uma série de
violência baseada em sua identidade de gênero. Entre elas, a discriminação que atravessa todas as

Submetido em: 03/05/2019 Aceito em: 04/05/2019 Publicado em: 01/06/2019

1Bachillerato Trans Mocha Celis/Argentina. Producción realizada en la materia Metodología de la Investigación del
Bachillerato Popular Travesti y Trans Mocha Celis UGEE N 16- Buenos Aires .Director: Francisco Quiñones Cuartas,
Docente : Miguel Nicolini, Docente adjunta: Fuster Lucia. Estudiantes : Agostinetti Marisol, Alonso Ignacio, Aguirre
Melina, Ayala Angelina Ayala Claudia, Fernandez Alma, Fernandez Emmanuel, Flores Flavia, Galeano Mayra,
Gonzalez Lorena, Heredia Victoria, Ifran Lorena, Larriega Melanie, Ledesma Jannette, Martignoni Maria Pia, Ojeda
Gonzalez Evelyn, Pagani Sofia, Pagliari Ophelia, Peluffo Adriana, Pinat Morena, Rash Debora, Rodriguez Jaqueline,
Rodriguez Maximiliano, Sanabria Cardozo Naida, Santillan Hamir, Silveira Virginia, Soto Luciana, Valcat Delfina,
Vazquez Nicole.

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áreas em que se desenvolve, inclusive a escola. Por essa razão, as pessoas trans não conseguem
concluir o ensino médio e isso afeta a possibilidade de encontrar um emprego. Esta situação dá
origem a uma maior marginalização social, a abusos da polícia, a doenças sexualmente
transmissíveis e a vícios, que se traduzem em declínio na qualidade de vida. A Mocha Celis nasceu
da necessidade de construir ferramentas de treinamento e reconhecimento social por meio da
concessão de graus secundários oficiais para reverter a situação em que travestis, transexuais e
transgêneros se encontram.

PALAVRAS-CHAVE: pessoas trans, educação; experiência Mocha Celis; Argentina

ABSTRACT
In Argentina and South America, travestis, transsexuals and transgenders suffer a series of
violence based on their gender identity. Among them, the discrimination that crosses all the areas
in which it develops, including the school. For this reason, trans people are unable to complete
high school and this affects the possibility of finding a job. This situation leads to greater social
marginalization, police abuses, sexually transmitted diseases and addictions, which translate into
a decline in quality of life. Mocha Celis was born out of the need to build training tools and social
recognition through the granting of official secondary degrees to reverse the situation in which
travestis, transsexuals and transgenders has been in.

KEYWORDS: Trans people; Education; Mocha Celis Education Experience; Argentina.

El presente trabajo fue realizado por las propias estudiantes del Bachillerato Travesti /
Trans Mocha Celis dentro de la Materia Metodología de la Investigación, junto a la Oficina de
Género del Ministerio de Público dela Defensa. Se decidió hacer una investigación que actualizara
los datos del informe de Lohana Berkins “La Gesta del Nombre Propio” donde en el año 2005 se
expuso la situación de las travestis en relación con la violencia, vivienda, salud y educación.
Con el presente trabajo por primera vez las estudiantes no fueron sujetas-objetos de estudio
sino que fueron sujetas- productoras de conocimiento y de sentido, desempeñándose como
investigadoras, encuestadoras, procesadoras de contenido, sujetas críticas de la propia existencia.
Este hecho inédito también arrojó datos alarmantes para la población travesti/trans.
Los datos arrojados son una herramienta pedagógica y política para pensar políticas
públicas para la propia población a nivel local y regional, ya que se intuye que si se hace un estudio
de estas características en la región, los datos se presentarán con los mismos valores, con el

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agravante de que, en términos educativos, los países de la región aún no logran conquistas como
la educación pública, laica y gratuita del mismo modo que una ley de identidad de género amplia
e integral.

IINTRODUCCIÓN

Los Bachilleratos Populares se caracterizan por una serie de ítems que los diferencian de
otras instituciones educativas. Entre ellas se encuentran el poseer carácter de gratuitos, el
funcionamiento horizontal para la toma de decisiones, organizar sus prácticas y relaciones
pedagógicas desde la Educación Popular y contemplar la realidad, el medio geográfico y sus
necesidades, recuperando los saberes y las prácticas que vuelquen los partícipes de la experiencia.
Este Bachillerato Popular se ubica en una geografía identitaria, más precisamente en el
territorio de la identidad de género, territorio fronterizo con una firme aduana que determina
quiénes pueden salir del margen y quienes deberán quedarse. Las personas transexuales, travestis
y transgéneros, al portar una identidad de género diferente al sexo asignado al nacer no podrán
cruzar la frontera y las conduce a través de diversos mecanismos a la marginación social que trae
aparejada un descenso en la calidad de vida de los sujetos, ya sea por la imposibilidad de completar
los estudios formales, por la falta de trabajo o el ejercicio de trabajos de alto riesgo y
estigmatizados como la prostitución, la precariedad de las viviendas o la dificultad del acceso al
derecho a la salud.
Con este proyecto pretendemos contemplar las necesidades particulares de quienes quedan
excluidas y excluidos del sistema educativo por razones de esta clase, y por lo tanto dificultándose
el pleno desenvolvimiento humano de la persona y de esta manera brindarles las herramientas para
que realicen un pleno ejercicio de la ciudadanía.
Nuestra hipótesis fue que con la apertura de un Bachillerato Popular con estas
características podemos mejorar la calidad de vida, aumentar la esperanza de vida y reducir la
mortandad trans mediante la generación de herramientas que permitan a travestis, transexuales y
transgéneros elegir sus fuentes de ingreso y conocer sus derechos ciudadanos y de esa manera,

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 219 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449

prevenir todos los problemas asociados a la desinformación y desconocimiento que resultan poco
empoderantes.
Cabe subrayar la premisa de no exclusividad de cualquier proyecto de esta índole, y éste
no es la excepción. Cualquier persona habilitada para comenzar sus estudios secundarios, ya sea
hombres y mujer cis, travestis, transgénero, transexual o intersexual, puede participar del
Bachillerato Popular, siendo éste especialmente sensible a las necesidades particulares del
colectivo trans.
En el estudio publicado en dicho libro se observa que la escuela ocupa el tercer puesto en
la lista de lugares en los cuales ellas han recibido agresiones2, siendo un territorio hostil para la
expresión de la identidad de género. La discriminación como ejercicio de la violencia toma
diversas formas, entre ellas el uso de adjetivos peyorativos para referirse a la identidad de género
de la persona.
“La situación de violencia más mencionada (…) fueron las burlas/insultos.
(…) Las burlas o insultos, en general, consisten en descalificar la identidad
travesti mediante el uso de apelativos tales como “trabuco”, “travesaño”,
“trava” o el uso del masculino para llamar a la agredida”3.

Un dato de suma relevancia son las barreras que dificultan el acceso al sistema educativo.
Esto nos ayudaría a visualizar el panorama y a tomar medidas específicas para superar estas
situaciones. Al consultar a las entrevistadas sobre cuáles eran las principales barreras para retomar
los estudios se observó que

El miedo a la discriminación es la barrera más mencionada (…). En


segundo lugar encontramos la escasez de dinero (…). A continuación la
falta de tiempo y estímulos, (…) y en cuarto lugar, la falta de información”4
(Elaboración propia. Berkins, Lohana. 2005. La Gesta del Nombre
Propio).

2 Renata Hiller en Berkins, Lohana y Fernández, Josefina. 2005. p. 98


3
Berkins, Lohana y Fernández, Josefina. 2005. p 62.
4 Berkins, Lohana. 2007. p. 72.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 220 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449

LA GESTA DE MOCHA CELIS

“El arma más poderosa que había usado el sistema para controlarnos
era la ignorancia... Estudien porque la herramienta más poderosa que
puede tener una persona, más que el dinero, es el conocimiento”.
Lohana Berkins

El derecho a la educación está consagrado en la Constitución Nacional desde 1853.


Convenciones y tratados internacionales suscritos por la Argentina e incorporados en su Carta
Magna en 1994 reafirmaron ese derecho. La Constitución de la Ciudad de Buenos Aires también
lo garantiza y responsabiliza al Estado como proveedor de la educación pública, estatal, laica y
gratuita. La mayoría de las personas trans/travestis han estado históricamente relegadas del
ejercicio del derecho a la educación. Por ejemplo, cuando en 2005 se publicó La Gesta del Nombre
Propio, el 64% de las personas encuestadas que se había autopercibido con una identidad trans
antes de los 13 años no había terminado la escuela primaria. Sin embargo, los datos relevados en
esta investigación, así como los resultados obtenidos en otros estudios realizados con posterioridad
a la sanción de la Ley de Identidad de Género, indican que en el ámbito de la educación, a
diferencia de otros como la vivienda e incluso el empleo, se evidencia una mejora en el acceso a
ese derecho en relación con la situación identificada en 2005. En efecto, la escolaridad de mujeres
trans y travestis en todos los niveles tuvo avances en los últimos diez años. El porcentaje de quienes
contaban en 2005 con el nivel secundario completo era del 20,8% y pasó al 24,3% en 2016.
Asimismo, el porcentaje de quienes están implicadas en los niveles terciario y universitario,
aunque incompleto, pasó del 8,7% al 10,1%, y el porcentaje del nivel universitario completo, del
4,6% al 5,9%.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 221 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449

Claro que estas mejorías pierden su carácter de tal cuando se compara esta escolaridad con
la de la población de la caba en general. El 59,8% de las mujeres trans y travestis tiene un nivel
educativo alcanzado inferior al establecido como obligatorio por el Estado (secundario completo),
mientras que para la población en general de la Ciudad, mayor de 25 años, este porcentaje es del
29%.24 Al incorporar la variable edad al análisis de las condiciones educativas en las mujeres trans
y travestis, resulta que quienes se encuentran en peores condiciones educativas son las personas
que tienen 41 años y más, en tanto el 67,3% de ellas no alcanzó a completar el nivel obligatorio.
Algo similar ocurre en el grupo etario entre 18 y 29 años de edad, el 64,7% está en esa misma
condición. Por último, el 53,8% de quienes están entre los 30 y los 40 años alcanzó el nivel
secundario completo y más.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 222 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449

Al analizar el nivel de educación alcanzado entre las mujeres trans y travestis y la edad en
que asumieron socialmente su identidad de género, es notable cómo esa asunción sigue
interviniendo en el ejercicio del derecho a la educación. En efecto, quienes asumieron su identidad
de género a los 13 años o antes tienen un nivel de estudios inferior a la secundaria completa en un
69,6%. Sucede algo similar con quienes asumieron su identidad de género entre los 14 y los 18
años. Aquellas que manifestaron su identidad de género a los 19 años o más han alcanzado el nivel
secundario completo o más en un 74,2%.

Si observamos a quienes sí están estudiando, en 2005 nos encontramos que lo hacía un


10,4%, mientras que en 2016 lo estaban haciendo el 26% de las mujeres trans y travestis
encuestadas. Estos pequeños cambios pueden ser resultado de la Ley de Identidad de Género y de
las políticas inclusivas de los últimos diez años, una de las cuales fue la creación de nuestro
Bachillerato Popular Trans Mocha Celis.
Del total de las mujeres trans y travestis que dijeron estar estudiando en 2016, el 50% se
encuentra cursando el nivel secundario. Un hecho novedoso es que casi un 16% dijo estar
estudiando en la universidad. En su gran mayoría (87,9%), estudian en una institución pública.
Quienes están fuera de la educación formal afirmaron estar participando en cursos, tales como
acompañante terapéutico, secretariado administrativo, cursos de primeros auxilios, seguridad e
higiene laboral, idiomas, operadora de pc, peluquería, maquillaje.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 223 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449

Al grupo de mujeres trans y travestis que se encontraban estudiando, se les consultó si


observaban algún cambio en el trato de los/las compañeros/as y equipo docente luego de la sanción
de la Ley de Identidad de Género. El 72,2% consideró que había mejorado, para el resto sigue
igual o no respondieron a la pregunta. No hubo valoraciones que indicarán empeoramiento alguno.
En el caso de los hombres trans, el 72,8% cuenta con un nivel educativo secundario completo o
más.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 224 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449

Del total de hombres trans que manifestó encontrarse estudiando en la actualidad (39.4%),
casi el 54% lo está haciendo en el nivel universitario. Todos los encuestados manifestaron realizar
sus estudios en una institución pública.
El 84,7% de hombres trans que están estudiando consideró que el trato entre los/as
compañeros/as y el equipo docente había mejorado luego de la sanción de la Ley de Identidad de
Género. En 2005, la principal razón por la que no estudiaban fue el miedo a la discriminación,
mientras que en 2016 lo es la falta de dinero y la falta de tiempo/horarios difíciles. Esta diferencia
podría tener una vinculación con el impacto producido por la Ley de Identidad de Género.

Al incorporar la variable de edad a este análisis, se observa que la falta de dinero como
principal dificultad para continuar los estudios es una razón de mayor peso para quienes tienen 41
años y más (45,8%) y quienes tienen entre 18 y 29 años (38,3%), grupos que, como se vio en el
apartado referido a empleo, presentan peores condiciones laborales.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 225 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449

Otro cambio respecto de 2005, refiere al deseo de completar los estudios. El interés por
formarse académicamente aumentó, en 2016, siete puntos.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 226 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449

Al observar las edades de las travestis y mujeres trans que no están estudiando pero desean
hacerlo, se observó que son las más jóvenes (de 18 a 29 años) las que muestran mayor interés en
completar los estudios; el 92% de ellas lo afirmó.

En el caso de los hombres trans que no están estudiando, el 45% de los encuestados admitió
querer continuar con sus estudios.

Al comparar las evaluaciones de mujeres trans y travestis y de hombres trans respecto de


los cambios producidos en las posibilidades de acceder a la educación con posterioridad a la Ley

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 227 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449

de Identidad de Género, resultó que las primeras estiman, en más del 64%, que tales posibilidades
mejoraron, mientras que los hombres trans lo hacen en un 45%.

En el año 2010, se había logrado conquistar desde las organizaciones de la sociedad civil,
la ley de matrimonio igualitario, que si bien no era una de las necesidades más urgentes del
colectivo LGTBIQ fue una estrategia para dar un debate a nivel nacional de la necesidad de
políticas públicas para el colectivo.
Si bien para la mayoría de las personas la democracia llegó en 1983, para las personas
travestis y trans el estado de derecho llegó el 9 de mayo de 2012 tras sancionarse la Ley de
Identidad de Género. Fue en este momento cuando el Estado empezó a considerar a las personas
travestis y trans como ciudadanas sujetos de derecho. Durante muchos años, el cambio registral de
nombre y sexo en los documentos era autorizado solo a aquellas personas que se sometían a
protocolos psicomédicos de evaluación y diagnóstico del género autopercibido.
Era requisito obligatorio la adecuación a las características físicas que se reconocen como
socialmente típicas para cada género. Con la lucha del activismo trans se reconoce como Derecho

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 228 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449

Humano fundamental las expresiones o las identidades de género de las personas y su autonomía
en las decisiones relacionadas con la modificación de sus cuerpos. A partir de la Ley de Identidad
de Género, se vuelve imperativa la despatologización y desjudicialización de las expresiones de
género; ellas ya no son vistas como patológicas y anormales. Así, se abandona el paradigma
internacional de patologización de ciertas identidades o expresiones de género que estuvo en vigor
en nuestro país durante muchos años y que contribuyó a la exclusión, la discriminación y la
criminalización de las personas trans.
En ese proceso del camino hacia la reglamentación de la ley de identidad de género, nació
Bachillerato Trans Mocha Celis, siendo el primero del mundo con sus características. Se trata de
un espacio educativo INCLUSIVO y no excluyente, con Orientación en Diversidad de Género,
Sexual y Cultural. Crítico frente a las desigualdades, fue pensado desde su origen para ofrecer una
respuesta frente a la exclusión histórica sufrida por las personas Trans (travestis,transexuales,
Transgéneros).
La propuesta socio pedagógica está dirigida a mayores de 18 años y actualmente forman
parte de este bachillerato mas de 120 estudiantes entre lxs que se encuentran personas trans y no
trans, hecho que convierte tangible la diversidad del espacio. Se trata de un ámbito educativo
gratuito que brinda la posibilidad obtener la terminalidad de los estudios Primarios, ingresando al
mismo tiempo en la Escuela Secundaria, con un plan de estudios de tres años, obteniendo el título
oficial de BACHILLER PERITO AUXILIAR EN DESARROLLO DE LAS COMUNIDADES
Plan 601/01.
El Bachillerato Trans Mocha Celis; obtiene en el 2012 su reconocimiento oficial bajo la
dependencia de la Dirección de Educación del Adulto y del Adolescente de la Dirección General
de Educación de Gestión Estatal bajo la Res. 1050/12 SSGEYCP con CUE 202867-00. La base
de sus objetivos reside en generar un espacio de capacitación académica y construcción socio
política como ciudadanxs sujetxs de Derecho; generar oportunidades de inclusión social, a través
de acciones integradas, que permitan construir y fortalecer un perfil Formativo-Ocupacional en el
cual desarrollarse, finalizar su escolaridad obligatoria, impulsar experiencias de formación y
prácticas calificantes en ambientes de trabajo, iniciar una actividad productiva de manera
independiente o insertarse en un empleo.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 229 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449

Luego de 8 años de existencia, Mocha Celis, no solo significó la posibilidad concreta de


finalizar los estudios para muchas personas, sino que al mismo tiempo se convirtió en el primer
empleo formal para aquellas identidades que aun habiendo logrado formación anteriormente, no
lográn ejercer sus profesiones por las mismas privaciones y discriminación por identidad de
género, sufridas históricamente

¿PORQUE SE LLAMA MOCHA CELIS?

El nombre Mocha Celis es el de una travesti que fue asesinada por la policía en una situación aún
no esclarecida y que no había podido culminar sus estudios.
Sus compañeras se dieron cuenta de que Mocha no sabía leer ni escribir porque siempre
pedía que le leyeran los edictos policiales o que completaran sus datos cuando la llevaban presa,con
el tiempo se organizaron y cada vez que eran detenidas, sus compañeras aprovechaban para
enseñarle.
Mocha murió sin poder terminar el secundario. Este espacio lleva su nombre con el objetivo
que ninguna otra persona, en especial las personas trans, se quede sin acceder a la educación

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 230 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.42449

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 231 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


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GÊNERO E SEXUALIDADE NO AMBIENTE ESCOLAR: CONCEPÇÕES DAS


DIRETORAS FRENTE A PRECONCEITOS E DISCRIMINAÇÕES COM
ESTUDANTES LGBTTs

Gabriela da Silva1

A pesquisa em nível de mestrado procurou responder à seguinte questão: - Qual a


importância que as dimensões de gênero e sexualidade adquirem na concepção das
diretoras escolares no reconhecimento ou desconhecimento da discriminação e do
preconceito em relação a lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros
(LGBTT)? O objetivo geral foi pesquisar as concepções das diretoras atuantes na rede
municipal de educação - Tubarão sobre preconceitos e discriminações relacionados aos
sujeitos que não tem uma correspondência entre sexo biológico, identidade de gênero e
expressão da sexualidade socialmente esperados. Como objetivos específicos o estudo
se propôs identificar as concepções das diretoras sobre questões de gênero, sexo e
sexualidade; evidenciar a existência do preconceito e discriminação para com alunos
LGBTT na concepção das diretoras; analisar o posicionamento das diretoras frente a
atitudes de preconceitos e discriminação por parte dos alunos, funcionários e
professores. Os referenciais teóricos pautaram-se nos aportes dialéticos, culturalistas,
identitárias e das diferenças. Os “Estudos Queer” contribuíram para a compreensão da
escola como possível espaço de subversão das normas de gênero/sexo, superando as
propostas que fixam os sujeitos em estruturas rígidas, deterministas e convencionais. A
pesquisa teve como lócus o ambiente escolar da rede municipal de ensino de Tubarão,
compreendendo seis das oito unidades escolares que oferecem as séries finais do ensino
fundamental. A metodologia foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas com
seis diretoras de escola. Com relação aos resultados, observou-se que as discriminações

Submetido em: 18/01/2019 Aceito em: 18/01/2019 Publicado em: 01/06/2019

1
Doutoranda em Educação PPGE/UFSC linha de pesquisa Sujeitos. Processos Educativos e
Docência/Ensino e Formação de Professores. Co-fundadora do NeTrans.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 232 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39516

e preconceitos surgidos no espaço escolar ou são encaminhadas por um trabalho pontual


e não sistemático, ou se reduzem a sermões que envolvem o poder atribuído à diretora
na exigência do respeito às diferenças. A sexualidade é vista como atrelada ao sexo
biológico, e os casais heterossexuais são vistos como extensão da ideia de reprodução e
pelo viés da prevenção a DSTs/HIV/AIDS. Identificou-se uma lacuna na formação
inicial e continuada das diretoras com temáticas que envolvam o universo das diferenças
sexuais e de gênero, de forma que a discussão na escola é atribuída aos profissionais da
área da saúde. Neste sentido, é imprescindível destacar o desafio da escola na luta pela
transformação de ideologias conservadoras e dominantes, ainda heteronormativa, que
excluem meninas e meninos por suas identidades de gênero e sexual e lutar pelo
compromisso da escola em “educar” para as questões humanas, e entre elas as referentes
à sexualidade e ao gênero.

Palavras-chave: Educação. Formação Humana. Diretoras. Gênero. Sexualidade.

Dissertação disponível em:

https://riuni.unisul.br/bitstream/handle/12345/585/110144_Jesualdo.pdf?sequence=1&is
Allowed=y

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 233 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.40653

ITINERÁRIO TERAPÊUTICO DOS HOMENS TRANSGÊNEROS DA BAIXADA


CUIABANA/MT

THE SEEKING BEHAVIOR OF TRANSGENDERS MEN (ftm) OF THE REGION BAIXADA


CUIABANA/MT

EL TRAYECTO TERAPÉUTICO DE DE LOS HOMBRES TRANSGÉNEROS EN LA REGIÓN BAIXADA


CUIABANA/MT

Rayssa Karla Dourado Porto1

RESUMO:
Este trabalho de dissertação está inserido na área das Ciências Humanas no campo da Saúde
Coletiva, sua temática envolve a saúde dos homens transgêneros. O sexo biológico das crianças
ocupa um lugar central para as suas primeiras relações interpessoais e subjetivas, toda
construção imaginária e idealizada dos pais funda-se neste aspecto. Antes mesmo da criança
se perceber como um sujeito, a sociedade cis-hétero-normativa dita que deve haver consonância
entre sexo biológico, orientação sexual e identidade de gênero. Intriga-nos saber o que as
pessoas fazem quando sua identidade de gênero não corresponde ao seu sexo biológico. A
discussão teórica sobre gênero fundamenta-se em BEAUVOIR (1967), BUTLER (2003) E
LOURO (1997), entre outros. Diante de tal conflito, pretende-se compreender como são tecidas
as redes de busca por atendimentos, como fazem para ter acesso à informações e serviços no
sistema formal de saúde e, sobretudo, quais são as demandas e dificuldades dos homens
transgêneros nesse percurso (KLEINMAN, 1978; SOUZA e PEREIRA, 2016). Parte-se do
pressuposto que há barreiras e entraves para o processo transexualizador, devido às questões
financeiras, morais e sobretudo geográficas. Os sujeitos da pesquisa são homens que decidiram
passar pelo processo transexualizador. É imprescindível pontuar que homens transgêneros
nasceram e foram intituladas como “mulheres cisgênero”. Ao não se reconhecer com a

Submetido em: 09/03/2019 Aceito em: 08/04/2019 Publicado em: 01/06/2019

1
Mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Mato Grosso. Graduação em Psicologia.
Experiência em Psicologia Clínica.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 234 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.40653

identidade feminina buscam passar pela transição para adquirir caracteres masculinos como
forma de adequar sua imagem à sua identidade de gênero (ARÁN, 2006; BENTO 2008; LIMA,
2014). Como estratégia metodológica optou-se por entrevistas individuais com roteiro
semiestruturado, para assim compreender os caminhos de cuidado que os homens transgêneros
percorrem ao decidirem passar pelo processo transexualizador. Após a coleta dos dados será
realizada a análise das narrativas e do contexto imbricado nesse: a cultura, a historicidade, a
sociedade e a performatividade do sujeito (FOUCAULT, 2017; LANGDON,1999). Assim,
pretende-se compreender o drama social (TURNER,1986) dos homens transgêneros no
processo de busca pela sua identidade de gênero. Os capítulos que integram o marco teórico
são: Gênero e identidade de gênero; Corpo e subjetividade; Atenção à saúde, dificuldades e
necessidades; Itinerário terapêutico e Políticas públicas e direitos à saúde. Quando nos
deparamos com as situações sobre as dificuldades e entraves para realização do processo
transexualizador, percebemos a relevância de estudar e fornecer contribuições específicos sobre
essa população para endossar políticas e serviços voltados para transgêneros, transexuais e
travestis. Uma das hipóteses que rege a pesquisa é que há preconceito, desinformação,
ocorrendo assim a falha no atendimento desses sujeitos pelos profissionais de saúde. Essa
questão desperta-nos para a importância de compreendermos o contexto social em que vivem,
especialmente por desafiarem a sociedade heteronormativa eles ficam à mercê da violência e
do adoecimento mental.

PALAVRAS-CHAVE: Homem Transgênero. Identidade de Gênero. Itinerário Terapêutico. Análise de


Narrativas.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 235 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39707

A DIVISÃO NO ESPORTE DEVE SER SEPARADA POR SEXO OU GÊNERO

LA DIVISIÓN EN EL DEPORTE DEBE SER SEPARADA POR SEXO O GÉNERO

THE SPORTS DIVISION MUST BE SEPARATED BY SEX OR GENDER

Maria Eduarda Aguiar da Silva1

Resumo
Artigo científico que tem objetivo analisar se a separação nos esportes deve ser por sexo
biológico ou gênero, fruto de pesquisa iniciada em março de 2018 após a polêmica com a
jogadora transexual de volei Tifanny Abreu. O trabalho enfoca a temática da divisão sexual
nos esportes e se a separação deve ser por sexo biológico ou gênero auto identificado,
enfrentando questões polêmicas que envolvem a idéia de vantagem ou desvantagem pretérita,
ouvindo argumentos favoráveis e contrários a inclusão de atletas transexuais nos esportes.

Palavras chaves -Transexualidade. Separação sexual nos esportes. Sexo biológico. Gênero.

Abstract
Scientific article that aims to analyze whether the separation in sports should be by biological
sex or gender, the result of research initiated in March 2018 after the controversy with the
transsexual volleyball player Tyfanni Abreu. The work focuses on the issue of sexual division
in sports and whether the separation should be by biological sex or self-identified gender,
facing controversial issues involving the idea of past advantage or disadvantage, listening to
arguments favorable and contrary to the inclusion of transsexual athletes in sports

Key words -Transsexuality. Sexual separation in sports. Biological sex. Genre.

Resumen
Artículo científico que tiene objetivo analizar si la separación en los deportes debe ser por
sexo biológico o género, fruto de investigación iniciada en marzo de 2018 tras la polémica
con la jugadora transexual de volei Tyfanni Abreu. El trabajo enfoca la temática de la división

Submetido em: 10/03/2019 Aceito em: 08/04/2019 Publicado em: 01/06/2019


1
Advogada, graduada em Direito pela UNESA, Cursando pós de Genero e Direito na EMERJ.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 236 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39707

sexual en los deportes y si la separación debe ser por sexo biológico o género auto
identificado, enfrentando cuestiones polémicas que involucran la idea de ventaja o desventaja
pretérita, oyendo argumentos favorables y contrarios a la inclusión de atletas transexuales en
los deportes

Palabras claves -Transexualidad. Separación sexual en los deportes. Sexo biológico. Género.

INTRODUÇÃO

A população de mulheres transexuais e travestis historicamente luta por direitos


básicos de cidadania, tal como direito ao nome, direito ao respeito de sua identidade e
inclusão dentro da sociedade.

No ano de 2018, a partir de 21 de Janeiro de 2018, tomou conta dos noticiários o caso
da atleta de vôlei, Tifanny, acerca da sua aceitação como jogadora na categoria feminina pelo
Comitê Olimpíco Internacional - COI.2

A polêmica se originou a partir da alegação, de algumas jogadoras, de que uma


mulher transexual ou mulher transgênero teria uma força fisica maior que jogadoras que
fossem mulheres cisgeneras.
Isso se deve principalmente pelo desempenho espetacular que a alteta tem tido, no ano
de 2018, em cinco jogos foram 115 pontos, média de 23 por partida e um desempenho
superior ao da oposta Tandara, do Osasco e da seleção brasileira, maior pontuadora da
competição com média de 20 pontos.

Segundo o Comitê Olímpico Internacional, não é necessário fazer a cirurgia de


redesignação sexual (CRS) para disputar competições femininas. Basta ter um nível de
testosterona abaixo de 10 nanomols por litro de sangue.

O presente trabalho visa, então, analisar as questões juridicas e de gênero envolvendo


o caso sendo necessário adentrar sobre as controvérsias ligadas a biologia.

O primeiro capitulo visa entender e analisar como a heteronormatividade e a


marginalização dos corpos trans (travestis e mulheres transexuais) contribuem para o processo

2
Reportagem, Caso Tiffany: Sheilla vê vantagem física e se diz contra; opinião gera polêmica,
<http://esporte;ig;com;br/maisesportes/volei/2018-01-21/caso-tiffany-sheilla.html>, acessado em 26 de fevereiro
de 2019.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 237 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39707

de desumanização e violência em que é vítima a população de mulheres transexuais e


travestis.

O segundo capitulo analisa como os especialistas tem tratado a matéria trazendo


argumentos contrários e favoráveis a permanência de atletas transexuais nos esportes.

Por fim, o terceiro capitulo visa analisar a inclusão de atletas transexuais no esporte
de acordo com os estudos de gênero e legislação vigente.

A pesquisa será desenvolvida pelo método dedutivo, uma vez que a pesquisadora
pretende eleger um conjunto de proposições, as quais acredita serem viáveis e adequadas para
analisar o objeto da pesquisa, com o fito de comprová-las argumentativamente.

Para tanto, a abordagem do objeto desta pesquisa jurídica será necessariamente


qualitativa, porquanto a pesquisadora pretende se valer da bibliografia pertinente à temática
em foco – analisada e fichada na fase exploratória da pesquisa (revistas, artigos correlatos,
legislação e doutrina) – para sustentar a sua tese.

A heteronormatividade e a marginalização dos corpos trans (travestis e mulheres


transexuais). Como esse processo contribui para o processo de desumanização e
violência.

De acordo com Vagner Matias do Prado e Alessandra Lo Gullo A Nogueira (2018) o


conceito de heteronormatividade, cunhado por Michael Warner (1993) é compreendido como
um padrão de sexualidade que regula o modo como as sociedades ocidentais estão
organizadas, trata-se de determinar dentro da sociedade quais são as identidades e a
sexualidades socialmente aceitas3.

Nesse aspecto, a heteronormatividade visa controlar corpos e sexualidades. De acordo


com o sistema normativo vigente há duas formas de ver a anatomia sexual humana: homem
ou mulher a partir de sua genitália e com relação a sexualidade só se admite a orientação
heterossexual, ignorando-se os diversos recortes de gênero e sexualidade existentes, tais
como homem trans, mulher transexual, travesti, pessoa não binária, homossexual, lesbica,
bissexual dentre outras formas de sexualidade e gênero.

3
Michael Warner, Fear of a Queer Planet, 1993. Crítico literário americano, teórico social, e Seymou H Knox,
professor de Literatura Inglesa e Estudos Americanos da Universidade de Yale. ele também escreve para
Artforum, The Nation, The Advocate e The Vilage Voice.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 238 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39707

Conforme ressalta Guaciara Louro (1999)4, há uma lógica na representação


hegemônica do gênero e da sexualidade que definiria uma coerência “natural” e “inerente”
entre sexo-gênero-sexualidade, isto é, cada sexo só poderia interessar-se pelo sexo oposto
(sexualidade heterossexual) e este interesse seria ratificado pela possibilidade procriativa.

Essa linha de pensamento vem de uma lógica biologizante que entende que “homem
nasce homem” e “mulher nasce mulher”, a partir de suas genitálias, negando direito a
identidade a quem transgride as normas vigentes de gênero – travestis, mulheres transexuais e
homens trans.

A influência da heteronormatividade sobre os corpos trans promove um verdadeiro


processo de desumanização, entendendo desumanização como vulnerabilização induzida e
produção de abjeções. Os reflexos desse processo de marginalização é a transfobia e falta de
acesso aos espaços de educação, trabalho, e família constituindo a vida de pessoas transexuais
em uma vida sub-humana, em indivíduos sem acesso aos direitos básicos de cidadania e
vivência em sociedade.

Em relação as violências vivenciadas por mulheres transexuais e travestis estão o


cerceamento do direito a vida, a cidadania, sem falar da violência simbólica, esta entendida
quando os lugares se tornam não lugares, como exemplo prático podemos citar a expulsão do
seio familiar e da escola.

A violência praticada contra travestis e mulheres transexuais é acentuada devido a


invisibilidade dentro da sociedade, principalmente para questões de violência física e
assassinatos, como exemplo podemos citar a performance da travesti Viviane Beleboni na 19ª
Parada LGBT de São Paulo de 2015, cuja performance era sua imagem crucificada em um
dos trios (Vagner Matias do Prado e Alessandra Lo Gullo A Nogueira, 2018).

Segundo Buthler5 ( 2015, p 17):

“os esquemas normativos são interrompidos um pelo outro, emergem e desaparecem


dependendo de operações mais amplas de poder, e com muita frequência se deparam
com versões espectrais daquilo que alegam conhecer. Assim, há sujeitos que não são
exatamente reconhecíveis como sujeitos e há vidas que dificilmente ou nunca são
reconhecidas como vidas”.

4
Guaciara Lopes Louro. Doutora em Educação e Professora titular aposentada do Programa de Pós Graduação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
5
Judith Butler, filósofa pós-estruturalista estadunidense, umas das principais teóricas da questão contemporânea
do feminismo, teoria queer e ética. Ela é professora do departamento de retórica e literatura comparada da
Universidade da Califórnia em Berkeley.

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DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39707

Dessa forma, a reação negativa que a performance de Viviane Beleboni 6 foi encarada
pela sociedade revela quais vidas são reconhecidas como importantes e quais vidas não
importam.

Caso similar aconteceu com a atriz Renata Carvalho 7, ao interpretar a peça “ O


Evangelho de Jesus segundo Rainha do Céu”, onde Jesus Cristo é uma travesti, é uma nítida
provocação ao conservadorismo religioso.

A peça em questão recebeu duras criticas, por partes de certos grupos religiosos, de
estar profanando a religião cristã, uma vez que, no imaginário de alguns coletivos de pessoas
ser comparado a uma travesti é ofensa grave. Vale dizer, inclusive, que a atriz recebeu
diversas ameaças, processos judiciais que tentaram censurar a peça, o que demonstra o ódio e
o desprezo que alguns setores da sociedade sentem por travestis e mulheres transexuais.

Indubitavelmente o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais ao atingir a


marca de 179 mortes em 2017 (ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

Em relação a exclusão escolar cabe algumas considerações. Ao serem expulsas de


casa, as mulheres transexuais não conseguem se manter dentro da estrutura formal de ensino.
Passam a não mais se enxergar como cidadãs e tem suas possibilidades de qualificação ou
realização profissional comprometidas.

Como segunda instituição de acesso social, e a primeira fora do seio familiar. A escola
concentra o maior expectro daquilo que as pessoas aprendem em suas famílias. Os valores, a
religiosidade, a intolerância ao diferente e consequentemente como reagir a isso são ensinados
aos seus membros para que não se aproximem ou se misturem a quem está errado e merece
ser isolado, se possível, excluído do convívio.

Pesquisas demonstram que ¼ estudantes NÃO gostariam de ter um colega de classe


Transexual. A mesma rejeição explícita, apareceu inclusive entre professores, ainda que em
menor grau. (UNESCO, 2004).

O Brasil concentra cerca de 82% de exclusão escolar das pessoas Trans


(ANTRA/Afroreggae); 59% das pessoas trans não possui o ensino fundamental; 68% não
possui o ensino médio; e apenas 0,02% estão no ensino Superior.

6
Viviane Beleboni, Transexual ficou conhecida mundialmente após aparecer "cricificada" durante a parada
LGBT de São Paulo no ano de 2015.
7
Renata Carvalho, atriz transexual, protagonista da peça " O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu". Peça
que retrata o calcário de um Jesus Cristo cujo crime-mor foi ter nascido transexual.

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Um dos fatores que contribuem para que a escola seja um não lugar para pessoas
Transexuais é a proibição da discussão de gênero nas escolas, nos programas municipais e
estaduais de educação orquestrado por grupos ultraconservadores tem mantido a proibição,
que vem sendo derrubada nos tribunais de justiça do Estado, tendo o próprio Ministro Luis
Roberto Barroso se manifestando pela inconstitucionalidade da proibição na ADPF 465.

“A Constituição estabelece expressamente como diretrizes para a


organização da educação a promoção do pleno desenvolvimento da pessoa,
do desenvolvimento humanístico do país, do pluralismo de ideias, bem
como da liberdade de ensinar e de aprender.

Quanto maior é o contato do aluno com visões de mundo diferentes, mais


amplo tende a ser o universo de ideias a partir do qual pode desenvolver
uma visão crítica, e mais confortável tende a ser o trânsito em ambientes
diferentes dos seus”, observou, ao considerar presente a plausibilidade da
inconstitucionalidade formal e material do dispositivo questionado ”

Outro ponto importante a ser ressaltado, é que em que pese a resolução 12 do


Conselho Nacional de Combate a Discriminação e a Resolução 01/2018 do MEC garantirem
o uso do nome social e de banheiro conforme o gênero nas escolas públicas e privadas ainda
se encontra resistência no cumprimento desse direito, que acaba tendo que ser dirimido no
poder judiciário.

Essa triste realidade provoca a não capacitação para entrada no mercado formal de
trabalho e aliada ao preconceito se torna uma barreira quase intransponível, como resultado
não vemos pessoas trans nas diversas atividades laborais cotidianas.

Por isso a lógica social heteronormativa é de tentar excluir travestis e mulheres


transexuais de todos os espaços, criando sempre uma barreira quase que intransponível para
que essas mulheres possam ser reconhecidas como pertencentes do gênero feminino e
principalmente como pessoas que fazem parte do estado brasileiro, com direito a cidadania
plena e não ser tratada como pária da sociedade.

Dessa forma, se mostra extremamente relevante refletir se a separação nos esportes


deve ser por sexo biológico ou gênero e como os processos de exclusão social transformam
lugares em não lugares – família, escola e trabalho - para pessoas transexuais.

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Separação sexual nos esportes: o que dizem os especialistas

O fisiologista Turíbio Barros8 entende que apesar dos níveis de testosterona de uma
atleta transexual ser identico ao de uma mulher cisgenera, haveria uma vantagem pretérita
devido aos anos de crescimento com uso de testosterona.

Já Cyd Zeigler9, autor do estudo “Fair Play: How LGBT Athletes are Claiming Their
Rightful Place in Sport”, entende que essa “vantagem” não garante maior capacidade física
do que uma atleta que não teve essa influência de hormonio no seu crescimento.

Segundo estudo chamado “Race Times for Trangender Athletes”, do Providence


Protland Medical Center, de Joanna Harper10, o tratamento hormonal de mulheres transexuais
produz um decréscimo significativo de massa corporal e densidade óssea.

A Federação Internacional de Vôlei reafirma a regra atual do Comitê Olímpico


Internacional definindo que de acordo com as regras do COI, homens trans podem participar
de competições masculinas sem restrições. Já mulheres transexuais e travestis precisam
preencher quatro condições para disputar competições na categoria feminina: 1) declarar ser
do gênero feminino (reconhecimento civil que deverá por no mínimo 4 anos para efeitos
esportivos), 2) ter nível de testosterona inferior a 10 nanomols nos 12 meses anteriores ao
primeiro jogo, manter o nível de testosterona inferior a 10 namomols durante o período
elegível para competir e 3) ser submetida a testes frequentes para monitorar a testosterona.
Não é mais necessário ter passado por cirurgia de resignação sexual.

Importante ressaltar que para atingir o nível exigido a mulher transexual passa por um
rigoroso acompanhamento e regular terapia hormonal que possibilita o equilíbrio hormonal no
mesmo patamar de mulheres ditas cigêneras, as que biologicamente nasceram no sexo
feminino e assim se reconhecem.

O assunto é polêmico e divide especialistas Dra Karen11, médica endocrinologista do


IEDE – Instituto de Endocrinologia e Diabetes do Estado do Rio de Janeiro – faz uma análise
técnica atleta tem privilégios perante as outras jogadoras do time feminino.

8
Dr turibio Barros, Mestre e doutor em fisiologia do Exercício. Professor Adjunto da UNIFESP Membro do
Conselho Regional de Biomedicina, Consultor em Fisiologia do Exercício. Autor de livros sovre ciências do
esporte, fisiologia do exercício, saúde e qualidade de vida.
9
Cyd Zeigler, é comentarista e autor no campo da sexualidade e esportes. Zeigler foi co-fundados da Outsports e
da National Gay Flag Football League.
10
Joanna Harper, assessora do COI em assuntos de gênero e esporte, fisico médico de profissão, corredor ávido
por escolha e a unica pessoaa publicar um artigo revisado por pares sobre o desempenho de atletlas transgenero.
11
Karen Seidel, endocrinologista do Instituto de Endocrinologia e Diabetes do Estado do Rio de Janeiro e
coordenadora do ambulatório trans, referenciado para atendimento ambulatorial no processo transexualizador.

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“Por mais que os níveis de testosterona estejam bastante reduzidos, ainda mantém
sua estrutura óssea muscular e visceral de um indivíduo masculino, podendo ter uma
performance superior de suas colegas”

De acordo com a pesquisadora Joanna Harper, do Providence Portland Medical Center,


nos Estados Unidos, a diminuição da testosterona é suficiente para igualar as competidoras

transexuais às mulheres biológicas, chamadas de cis. Esse teste seria satisfatório para provar
que as atletas podem competir juntas.

“Terapia hormonal para mulheres trans normalmente envolve um bloqueador de


testosterona e um suplemento de estrógeno. Quando os níveis do ‘hormônio
masculino’ se aproximam do esperado para a transição, a paciente percebe uma
diminuição na massa muscular, densidade óssea e na proporção de células vermelhas
que carregam o oxigênio no corpo”, diz Joanna.

Ainda conforme pontuou a especialista, enquanto isso, o estrógeno aumenta as


reservas de gordura, principalmente nos quadris. Juntas, essas mudanças levam a uma perda
de velocidade, força e resistência — todos componentes importantes de um atleta.

Durante a terapia hormonal, Tifanny perdeu toda a potência e explosão. Se saltava


3,50m quando “homem”, agora pula, no máximo, 3,25m. O número ainda é alto se comparado
a outras jogadoras de altura parecida, informou a profissional.

Tifanny tem 1,94m, a central Thaísa, de 1,96m, salta 3,16m, o mais alto do país. Mas,
fora daqui a italiana Paola Egonu alcança os 3,36m, e a chinesa Ting Zhu, 3,27m. Wallace,
oposto da seleção masculina, mesma posição de Tifanny, chega aos 3,44m.

Regis Rezende, (Professor de Educação Física e Fisiologista formado pela PUC-GO,


Pós-Graduado e Especialista em Voleibol pela Universidade Gama Filho-RJ, CREF: 004202-
G/GO, com as revisões de Adriano Passos Doutorando em Sociologia – PPGS/UFG; Mestre
em Sociologia – PPGS/UFG; Graduado em Educação Física; Especialista em Fisiologia do
Exercício, Avaliação Morfofuncional, Atividade Física Adaptada e Saúde) publicou na revista
melhor do vôlei estudos mostram que em alguns esportes a performance de atletas submetidas
à terapia hormonal é inclusive abaixo de mulheres cisgênero.

Para Rezende a biologia não deve ser neutra nem axiológica tampouco
metodologicamente citando Pierre Bordieu, fazendo uma critica ao que considera “achismos”
sobre o tema em relação a critica sobre a presença de grupos estigmatizados e invizibilizados
nos esportes.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 243 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


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Ainda se baseando no estudo de Joanna Harper ele cita que uma pesquisa com atletas
corredores de provas de rua e concluiu que as atletas transexuais que foram submetidas a
terapia de reestabelecimento hormonal passaram a alcançar tempos até 12% inferiores aos
alcançados um ano antes da terapia.

Apresenta ainda algumas peculiaridades em relação ao voley masculino e feminino


destacando que: 1) o sistema defensivo não é igual; 2) que os saques dos jogos femininos são
mais flutuantes que o masculino e 3) as posições de defesa são diferentes, tendem a ser mais
baixas para mulheres.

Ao abordar o caso específico da atleta Tifanny ele desta que ela sacou na Superliga 27
vezes nos 3 jogos e fez 3 pontos de saque, media de um (1) ponto de saque por jogo. A atleta
jogou 13 sets o que faz sua média de saque de diminuir para 0,23 pontos por set.

(Gráfico retirado de http://www.melhordovolei.com.br/a-multilateralidade-da-biologia/)

Em análise aos números Regis Rezende destaca que:

“Em eficiência ela tem a maior média de pontos por SET (também não a faz maior
pontuadora da competição como as notícias tendem a dizer) e essa afirmação não a
coloca como a melhor jogadora do torneio, aliás 45% de aproveitamento no ataque não
a coloca entre as 5 melhores atacantes da competição (a jogadora líder nas estatísticas
de ataque de acordo com os dados da CBV é Walewska Oliveira com 60% de
aproveitamento no ataque) , ou seja, a atleta não é um “ponto fora da curva”, quando
se percebe os números de ações de suas companheiras de equipe. Ela foi bloqueada,
foi defendida e errou ataques na mesma proporção de qualquer outra jogadora que
disputa o torneio”

Percebe-se que pelos estudos apresentados que o nível hormonal e de massa muscular
de mulheres transexuais se equivalem a de mulheres cisgeneras, não havendo segundo os
estudos pesquisados vantagem quando preenchido os requisitos e exigências estabelecidas
pelo Comitê Olímpico Internacional.

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Inclusão de atletas trans no esporte de acordo com os estudos de gênero e legislação


vigente

As discussões sobre inclusão de pessoas transexuais nos esportes ainda são muito
polêmicas, devido, ainda pouca literatura e pesquisas sobre essa questão. A inclusão de atletas
trans nos esportes, sem precisar de autorização prévia dos comitês tem como marco o “V Gay
Games de Nova York” em 1994, evento cultura e esportivo organizado para comunidade
LGBT+

Em relação aos Jogos Olímpicos, o Comitê Olímpico Internacional em 2015 editou


diretrizes para inclusão de transexuais nos esportes.

Renee Richards foi uma das primeiras representantes transexuais, na modalidade


competitiva na disputa de jogos de tenis de campo individual, década de 1970.

“Renée Richards se tornou, oficialmente, “a primeira transexual da


história da modalidade”. Ou assim foi registrado pela historia oficial do
esporte! Em que pese essa classificação ser importante para identificar
para alteridade e outras identidades sexuais e de gênero no campo
esportivo, Richards preferia que ela fosse considerada como outra
mulher qualquer (Camargo, 2018, p.1)”

No ano de 2016, na Itália, o cenário do volei teve modificações com a contratação da


libero Alessia Ameri, de 30 anos. A primeira “trans” a jogar em uma partida oficial de vôlei
do campeonato italiano, atleta da equipe Hermae Entu da série A2.

Os Estudos de gênero e o que diz a legislação vigente

Os estudos de gênero, em regra, favorecem rejeição pelo determinismo biológico,


entendendo que existem fatores relacionais e culturais de construção social do feminino e do
masculino.

Trago a reflexão, os estudos intitulados Gay and Lesbian Studies e a Queer Theory,
que faz um contraponto entre corpo e identidade de gênero. Os movimentos sociais de
afirmação identitária, movimento de travestis e transexuais, por ex, vem por anos
reinvidicando espaço questionando a construção cultural da sociedade vigente, fazendo um
antagonismo entre construção cultural e diferença anatômica.

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Segundo Thomas Laqueur a diferença entre os sexos é uma invenção para promover
desigualdades, não que as diferenças corporais não fossem percebidas, mas até o final do
século XVIII os sexos não eram entendidos como opostos e incomensuráveis, surgindo a
partir de então a segregação de gênero, que vigora até hoje, promovendo uma serie de
discussões, em especial, quando envolve outras identidades sexuais, não contempladas pela
cis heteronormatividade.

Assim, os estudos de gênero questionam a imutabilidade do sexo, entendimento


defendido por Laqueur, Judith Butler e Strathem.

Entretanto a pergunta fica: a divisão de categorias esportivas deve ser separada por
sexo ou gênero.

Se faz necessário conceituar sexo e gênero, onde sexo nos remete às diferenças
biológicas naturais do corpo: cromossomos, perfil hormonal, órgãos sexuais internos e
externos e gênero se refere a construção social e cultural das diferenças sexuais, aquilo que se
considera como característica masculina e feminina.

A discussão gira em torno de duas visões antagônicas: a visão essencialista e a


construtivista, na visão essencialista, os defensores(as) da tese que a jogadora Tifanny teria
vantagem física se baseiam numa lógica biológica.

Dentre as pesquisadas, a teoria construtivista figura-se a mais inclusiva, entendendo


que gênero é construção social e que os estudos apontam que uma mulher transexual em TSH
( Terapia Sexual Hormonal) costuma correr 12% mais devagar do que antes, ou seja,
comprovadamente ocorre perda de força, massa muscular e densidade óssea (Harper).
Imagine uma pessoa com corpo fisico maior mas com força fisica menor, nesse contexto a
pessoa teria que fazer muito mais força para manter o mesmo nivel que uma pessoa menor
com a mesma força fisica.

“(…) a mulher transexual é uma mulher que, no processo de resignificação,


ingere bloqueio de hormônios (testosterona), ou seja, ela tem menos
testosterona no organismo do que as suas concorrentes, demandando maior
treinamento para manter massa muscular e a força do que uma atleta mulher
nascida fêmea. (…) (GRESPAN; GOELLNER, 2014, P. 1268)”

Dessa forma, os discursos contrários a inclusão das mulheres transexuais no esporte


demonstram uma clara transfobia dentro do cenário esportivo, De Jesus (2014) afirma que:

“No que se refere ao seu cotidiano, as pessoas transgênero são alvo de


preconceito, desatendimento de direitos fundamentais ( diferentes organizações
não lhe permitem utilizar seus nomes sociais e elas não conseguem adequar

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seus registros civis na justiça), exclusão estrutural (acesso dificultado ou


impedido à educação, ao mercado de trabalho e até mesmo ao uso de
banheiros) e de violências variadas, de ameaça a agressões e homicídios, o que
configura a extensa série de percepções estereotipadas negativas e de atos
discriminatórios contra homens e mulheres transexuais e travestis denominada
“transfobia” ( De Jesus, 2014, p.105-106)

Portanto, eu entendo que obedecendo os critérios estabelecidos pelo COI não existe
vantagem atual ou pregressa de atletas transgêneros nos esportes.

E mais, a Constituição da República federativa do Brasil de 1988, garante no art.1, III


o princípio da dignidade da pessoa humana e no seu art. 3º, IV a proibição de quaisquer
formas de discriminação.

Entendendo a atuação das atletas como trabalho, destaco o seguinte trecho do livro
Gênero e Desigualdades de Flavia Biroli:

“Permanece, portanto, a necessidade enfrentar os padrões de gênero


nessas hierarquias, considerando a produção de gênero nas relações
de trabalho levando em conta a interseção de gênero, classe e raça”.

Portanto, se basear única e exclusivamente nos aspectos biológicos irá gerar uma
desigualdade e discriminação muito grande há um número considerável de mulheres
transexuais conhecido como transfobia social ou estrutural, fato, que já ocorre em diversas
áreas do mercado de trabalho, lembrando que 90% da população de mulheres transexuais e
travestis estão na prostituição e 179 mulheres transexuais e travestis foram assassinadas por
crime de ódio só em 2017 ( ANTRA , 2018).

CONCLUSÃO

A divisão no esporte, portanto, a meu sentir se for feita com base no sexo biológico,
irá inviabilizar que uma mulher transexual consiga reconhecimento de sua identidade de
gênero dentro da categoria feminina, já a divisão por gênero constitui o reconhecimento das
múltiplas identidades que fazem parte do sexo feminino, incluindo-se nesse contexto as
mulheres transexuais, motivo pelo qual entendo que a divisão da categoria no esporte deve ser
feita por gênero, levando-se em conta o percentual de testosterona e que o processo de
hormonização de 2 anos ou mais provoca perda de massa muscular e densidade óssea.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 247 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39707

Há de ser considerado também que a constituição federal veda qualquer forma de


discriminação e tem como principio fundamental a dignidade da pessoa humana. ( art. 1º , III
e art. 3, IV, ambos da CF/88).

Estando a atleta dentro das regras estabelecidas para qualquer mulher e sendo
conclusivos os estudos pela não prevalencia de vantagem pretérida associada ao gênero não
cabe qualquer segregação ou discriminação, sob pena de estar-se cometendo grave atentado
aos direitos humanos das mulheres transexuais.

Por esse motivo que entendo pela inclusão das mulheres transexuais nas categorias
femininas de esporte, desde que cumpridos os requisitos exigidos pelo Comitê Olimpico
Internacional.

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espetacular.<https://globoesporte.globo.com/programas/esporte-espetacular/noticia/envolvida-
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ESPORTE, Globo. Fisiologista ve beneficios pregesso para atletas transgêneros mas Comite
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<https://globoesporte.globo.com/olimpiadas/noticia/fisiologista-ve-beneficio-pregresso-mas-
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13

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Transgêneros tem que ser incluídas nos esportes.

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 248 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.39707

<https://www.huffpostbrasil.com/2018/01/24/transgeneros-tem-de-ser-incluidos-no-esporte-
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© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 249 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.41817

XICA MANICONGO:
A TRANSGENERIDADE TOMA A PALAVRA
XICA MANICONGO:
THE TRANSGENDERITY TAKES THE FLOOR
XICA MANICONGO:
LA TRANSGENERIDAD TOMA LA PALABRA

Jaqueline Gomes de Jesus12

RESUMO
O presente artigo apresenta a estória de Xica Manicongo, natural do Congo e escravizada, registrada
oficialmente como Francisco, conhecida atualmente como a primeira travesti da História do Brasil, considerando
os registros de sua existência, derivados os arquivos da Primeira Visitação da Inquisição. Delineando uma
trajetória histórica dos usos das informações disponíveis desde o século
XVI, por parte de pesquisadores, movimentos sociais e artísticos, reitera-se o caráter mobilizacional da
construção de memória coletiva, e seu papel relevante na construção e protagonização de identidades grupais,
particularmente, daquelas identificadas no âmbito das identidades de gênero trans, tendo em vista sua
apropriação simbólica e ressignificação na contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade de gênero. História. Memória coletiva. Indivíduo. Movimentos sociais.


Transgeneridade.

ABSTRACT
This article presents the story of Xica Manicongo, a native of Congo and enslaved, officially registered as
Francisco, known today as the first travesti of Brazilian History, considering the records of her existence,
derived from the archives of the First Visitation of the Inquisition. Outlining a historical trajectory of the uses of
the information available since the 16th century by researchers, social and artistic movements, the mobilizational
character of the construction of collective memory is reiterated, and its relevant role in the construction and
protagonization of group identities, particularly of those identified within the scope of transgender identities, in
view of their symbolic appropriation and redefinition in contemporaneity.

KEYWORDS: Gender identity. History. Collective memory. Individual. Social movements. Transgenerality.

RESUMEN
El presente artículo presenta la historia de Xica Manicongo, natural del Congo y esclavizada, registrada
oficialmente como Francisco, conocida actualmente como la primera travesti de la Historia de Brasil,
considerando los registros de su existencia, derivados los archivos de la Primera Visitación de la Inquisición.

Submetido em: 08/04/2019 Aceito em: 08/04/2019 Publicado em: 01/06/2019

1
Professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro – IFRJ. Doutora em Psicologia Social, do
Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília – UnB, com Pós-Doutorado pela Escola Superior de
Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas – CPDOC/FGV Rio. Pesquisadora-Líder do ODARA – Grupo
Interdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Identidade e Diversidade (CNPq). Autora do livro “Transfeminismo:
Teorias e Práticas” (Metanoia Editora, 2014).

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 250 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


DOI: https://doi.org/10.12957/redoc.2019.41817

Delineando una trayectoria histórica de los usos de las informaciones disponibles desde el siglo XVI, por parte
de investigadores, movimientos sociales y artísticos, se reitera el carácter movilizacional de la construcción de
memoria colectiva, y su papel relevante en la construcción y protagonización de identidades grupales,
particularmente, de aquellas identificadas en el ámbito de las identidades de género trans, teniendo en vista su
apropiación simbólica y resignificación en la contemporaneidad.

PALABRAS CLAVE: Identidad de género. Historia. Memoria colectiva. Individuo. Movimientos sociales.
Transgenderism.

INTRODUÇÃO

Sic illa ad arcam reversa est (Assim ela voltou à arca).

A epígrafe que abre este artigo é o lema da Cidade de Salvador, a qual se refere ao episódio
relatado na Bíblia sobre o retorno da pomba que indicou a Noé que havia terra para
desembarcar da arca, após o dilúvio.

Eu venho contar uma estória, mais do que apenas uma história. Estória por ter ocorrido, pelo
episódio ter sido registrado. Mas esta também é uma História, a nossa. A dos opressores e a
dos oprimidos. A do pensamento eurocêntrico e a das epistemologias “amefricanas”
(GONZALEZ, 1988), que se constituem na complexa realidade psíquica e cultural brasileira,
que nos constitui como sujeitos de uma América Africana La(t/d)ina. Um olhar a partir das
vidas trans, tão longamente apagadas, violentadas, assassinadas.

Trago verdades, não necessariamente as suas, mas a de algumas pessoas como esta que lhe
escreve. Verdades são construídas, demoram a serem reconhecidas como tais. Primeiramente
são ridicularizadas, depois rejeitadas, e enfim, aceitas (JESUS, 2015). O que você fará deste
relato e das minhas breves reflexões, só a você cabe dizer.

A presente reconstrução da trajetória dos usos da história de Xica Manicongo visa a reiterar o
caráter de seleção e reconstrução contínua da memória coletiva, a partir do processo de
identificação dos indivíduos com os seus grupos (JESUS, 2014a).

Xica na Cidade da Bahia

Havia na capital do país, São Salvador da Bahia de Todos os Santos, também conhecida,
posteriormente, como Cidade da Bahia ou simplesmente Salvador, então colônia de Portugal,
nos idos de 1591, uma africana do Congo escravizada e vendida a um sapateiro, a qual
chamamos de Xica Manicongo.

O registro da existência de Xica Manicongo se deve à extensa pesquisa de Luiz Mott sobre a

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perseguição aos chamados “sodomitas” no Brasil, a partir da documentação inquisitorial


encontrada no arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal. Para maiores informações,
recomendo a leitura de Mott (1999).

Mais uma Francisca entre tantas que lutam diuturnamente para sobreviver, em meio ao ódio e
o preconceito que nos cerca, ontem e hoje.

Manicongo era, originalmente, um título para governantes do Reino do Congo (Mwene


Kongo, literalmente, Senhor do Congo), que foi transformado na corruptela que conhecemos
pelos portugueses, para designar pessoas oriundas da região (Ou seria Xica uma rainha?).

Coberta com um pano que prendia com o nó para frente, à moda dos quimbanda3 de sua Terra
Natal, e apesar de sua condição desumanizada, imposta pelos homens brancos, os candangos,
ela andava sobranceira por toda Cidade Baixa, às vezes subindo para a Cidade Alta e
voltando, a serviço do seu senhor, ou só passeando, inclusive para encontrar os seus homens.
Diz-se que Xica era conhecida por ser muito namoradeira. Mesmo no inferno da escravidão
havia frestas, sempre escavadas pela gente negra.

XICA NO TEMPO

“Divi-divi-divi-dividir salvador
Diz em que cidade você que se encaixa
Cidade alta ou cidade baixa
Diz
Em que cidade que você”?4

A Primeira Visitação

Esse sopro de liberdade encontrado por Xica, entre os becos sujos e casas imundas cheirando
a opressão, muito importunava um tal de Matias Moreira, cristão-velho5 que tinha saído de
Lisboa, o qual mais de uma vez a interpelou, no meio da rua, para que não usasse mais
daquele estilo e passasse a usar “vestido de homem” – interessante pensar no quanto de

3
O termo é bantu, e significa, basicamente, “invertido”, tendo adquirido também o sentido de
“curador” e, posteriormente, para os umbandistas do século XX, referindo-se a um ramo de sua
religião.
4
Trecho da música “Duas Cidades”, do álbum homônimo lançado pelo 2016 grupo BaianaSystem.
5
Ou “cristão puro”, era um termo com fins ideológicos, para demonstrar prestígio, designando o
cristão que não foi judeu nem tinha antepassados judeus.
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estereótipos de gênero na moda preservamos, ou pior, evoluímos, de lá pra cá.

Ela se recusou! Xica não obedeceu. Continuo a ser por fora quem era por dentro, sem se
vestir daquilo que não era.

Deu-se, porém, a primeira visita da Inquisição, denominada visitação. O dito cujo estava tão
incomodado que a denunciou à Igreja, e ela foi acusado do crime de sodomia, que não se
restringia ao que hoje entendemos por homossexualidade ou transexualidade. Qualquer
prática tida como “nefanda” era classificada na categoria sodomítica, como sexo oral ou anal
entre homens e mulheres, mesmo os casados (TREVISAN, 2007).

O código penal vigente à época era as Ordenações Manuelinas, que equiparavam a sodomia
ao crime de lesa-majestade. A pessoa considerada culpada deveria ser queimada viva, em um
auto de fé em praça pública, ter seus bens confiscados pela Igreja Católica e a infâmia lançada
sobre os seus descendentes até a terceira geração.

Tente imaginar o terrível impacto que uma possível condenação, desse nível, causava em
qualquer pessoa.

Tachada pejorativamente como “quimbanda, membro de uma quadrilha de feiticeiros


sodomitas” (QUIMBANDA DUDU, 2005, p. 27), O que se comenta é que Xica, para
continuar viva, abriu mão de se vestir como lhe convinha e adotou o estilo de vestimenta
tradicional para os homens da época...

As Ordenações Filipinas, que substituíram as Manuelinas em 1603, acrescentaram o crime de


se vestir com os trajes de alguém de gênero diverso ao atribuído socialmente, exceto se em
festas ou jogos, cujas penas iam do degredo de três anos para os homens e de dois para as
mulheres, além do pagamento de multa para o denunciador.

Xica Redescoberta pelas Suas

Xica, por séculos, quando lembrada em nota de alguma pesquisa sobre as denunciações da
primeira visitação do Santo Ofício à Bahia, foi chamada de Francisco, seu nome de batismo, e
por tempo equivalente foi apontada como homem, até que sua história foi resgatada, nestes
novos tempos de movimentos sociais, após estudos sobre a Inquisição no Brasil que
consideraram a interseção com gênero e sexualidade algo necessário, que lhe apontaram
como a primeira travesti alvo dos processos, e seu nome social atribuído postumamente por
Majorie Marchi, militante travesti negra que presidia a ASTRA-Rio (Associação de Travestis

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e Transexuais do Rio de Janeiro), até seu falecimento6.

A ASTRA-Rio chegou a criar o Troféu Xica Manicongo7 (Figura 1), em 2010, voltado aos
direitos humanos, cultura e promoção da cidadania de travestis e transexuais.

Figura 1. Ilustração para o Troféu Xica Manicongo.


Fonte: Autoria não identificada8.

Para termos consciência de quem somos precisamos de memória, de ter conhecimento de


nossa história, de onde viemos, de que a nossa população lutou, e morreu, para que
tivéssemos os mínimos direitos dos quais hoje gozamos.

A arca da História prosseguiu, e até fins do século XX, Xica Manicongo ainda era,
erroneamente (porém explicável, tendo em vista as limitadas informações então disponíveis e
a invisibilização e silencimento impostos à população trans), considerada homossexual, o que
apagava a sua existência como travesti.

Então, as pessoas trans começaram a ler sobre aquela negra virada do século XVI, com ela se

6
http://www.nlucon.com/2016/04/morre-aos-42-anos-majorie-marchi.html
7
http://www.jb.com.br/cultura/noticias/2010/03/05/trofeu-xica-manicongo-sera-entregue-na-casa-de-cultura-
laura-alvim
8
Fonte: http://www.ggb.org.br/trofeu%20xica%20manicongo%20no%20rio.html
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identificaram, no jeito de ser, no temperamento, na ousadia de enfrentar a cisgeneridade,


empreendimento intelectual impulsionado pela apropriação do pensamento transfeminista
(JESUS, 2014b), e que se expressou, na prática, pelas diversas ressignificações da figura
histórica.

Francisco. Francisca. Xica.

Qual era o seu nome antes de ter sido chamada de “Francisco” pelos colonizadores
escravocratas? Perdeu-se nos cadernos contábeis que abafaram a sua liberdade.

Havia travestis não só ali na Ladeira da Misericórdia, mas também em Fez, na nação
Tupinambá, em São Paulo de Luanda, no Deserto do Mojave, em Goa... em todo lugar e
tempo, ainda não sendo chamadas ou denominando-se de travestis, porém trazendo outros
nomes para esse afeto que nos une até hoje: o de nos reconhecermos onde o cis-tema (ou
cistema9) nos nega. Guerrilha de ser.

Precisou uma travesti do século XX nomear Xica no século XXI. Travessia.

XICA RETORNA

SerTransNejas

O Rio de Janeiro me abraça, a paisagem e sua gente apaixonada. Sou desejada, sou amada,
sou invejada. Eu sou uma pessoa livre: a minha caminhada foi escolha radicalmente minha,
da mulher negra que desceu do Planalto Central, filha de mineiras e sergipanos, sou Centro-
Oeste, Nordeste e Sudeste. Ancestralidade. Carioca nascida em Brasília. Eu também sou
Brasil.

SerTransNejas: no portão principal da Feira de São Cristóvão, chamada "a dos nordestinos",
eu as encontro e nos manifestamos contra mais um feminicídio trans (Figura 2), o da cearense
Dandara dos Santos (LUCON, 2017). Nordestina. Outra Sertransneja assassinada pela
transfobia, em 15 de fevereiro de 2017, em Fortaleza10. Lá está Xica Manicongo, elas são
muitas nordestinas.

9 Termo utilizado, principalmente por transfeministas, para se referir ao sistema cisnormativo e transfóbico que
impede o reconhecimento dos direitos fundamentais de pessoas trans. Para aprofundamento, recomendo as
leituras de Viviane Vergueiro (2014, 2015) e Laporta (2018).
10
http://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Dandara_dos_Santos
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Figura 2. Manifestação Dandara Presente, realizada em 5 de março de 2017.


Fonte: Assessoria de Imprensa da Coordenadoria especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de
Janeiro11.

Uma coletiva de artistas; performers; cantoras; dançarinas; escritoras; cordelistas; trans: eis o
Coletivo Xica Manicongo12, auto-denominado “Movimento de arte, cultura, militância e
ativismo. Coletiva LGBT Interseccional de Transdiversidade Cultural Xica Manicongo”!

A sua produção prolífica, mais do que criativa, é, mais precisamente, inovadora, não só por
empoderar pessoas trans ao promover o seu protagonismo como aquelas que falam de si e do
mundo por si mesmas, mas acima de tudo por suas palavras ditas e escritas gerarem novas
narrativas, que entrecruzam sertão e cidade, gênero e tradição.

De sua rica safra já tivemos os cordéis “Xica Manicongo” “Sertransneja”13 (Figura 3),
“Recortes Visíveis”, “As Sertransnejas: As Peixeiradas da Vida” e “Quilombo Manicongo”.

11
Fonte: http://www.oestadoce.com.br/geral/manifestacao-feira-de-sao-cristovao-abraca-movimento-
trans-dandara-presente
12
Página do coletivo no Facebook: http://www.facebook.com/coletivoxicamanicongo
13
Disponível em http://outraliteratura.com.br/wp-content/uploads/2018/05/cordel-
SERTRANSNEJA.pdf
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Figura 3. Capa do cordel Sertransneja. Xilogravura de autoria de Matheusa Passareli 14 e Tertuliana Lustosa.
Fonte: Coletivo Xica Manicongo (2017).

É um movimento plural, reitero, entretanto, vale lembrar que tem à sua frente, como elas
mesmas já se autodenominaram, a balaieira cearense Wescla Vasconcelos, a atriz potiguar
Biancka Fernandes e a cordelista piauiense, cabeça de cuia, Tertuliana Lustosa!

Há outras pessoas trans que com elas se encontram, como eu (apesar de ser apenas uma
apoiadora e testemunha de suas aventuras, sem contribuir artisticamente com elas), e pessoas
cis também. É muito amor envolvido! É um dos nossos quilombos, que ultrapassou a Cidade
Maravilhosa e encontrou abrigo na Salvador de Xica.

14 Conhecida como Matheusa, ou Theusa, foi uma pessoa não-binária de 21 anos, estudante de Artes Visuais da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 29 de abril de 2018, após ter tido um surto psicótico
durante uma festa de aniversário no bairro do Encantado, tirou as roupas e saiu pelas ruas em direção ao Morro
do 18, onde foi encontrada por traficantes, julgada, executada, esquartejada e teve seus restos mortais
incinerados. Saiba mais em https://www.cartacapital.com.br/diversidade/policia-confirma-assassinato-de-
matheusa-em-favela-no-rio, https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/estudante-matheusa-foi-julgada-antes-
de-ser-morta-por-traficantes-diz-delegada.ghtml, https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/a-gente-nao-
pode-naturalizar-o-sofrimento-diz-irma-de-matheusa-passareli-trans-morta-no-rio.ghtml e
https://oglobo.globo.com/rio/mae-irmao-prestam-homenagem-matheusa-em-ato-ecumenico-na-uerj-22668857.
© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 257 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004
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Assim Ela Voltou à Arca

Xica volta à baila, e à sua cidade, como uma pomba, para anunciar boas novas.

Em janeiro de 2017, o Coletivo das Liliths, grupo teatral sediado em Salvador, estreou o
espetáculo “Xica”, em referência à personagem histórica e sua representatividade (Figura 4).

Figura 4. Divulgação da peça “Xica”.


Fonte: Portal Soteropreta15. Foto: Diney Araújo.

O século XXI testemunha o ressurgimento da Xica, como símbolo, heroína, rainha, nas vozes
e escritos dessa gente trans contemporânea, que a transforma em âncora desse barco que,
pretende-se, prende-nos ao porto tão almejado de algo que se chama “cidadania”. Termo
inseguro e assaz inconsistente, inalcançável há milênios para os grupos historicamente
discriminados, esse “ser cidadã(ão)... Algo que almejamos por ainda sequer sermos
consideradas “gente”. Nós que lutamos para ter reconhecida a nossa mulheridade, estatuto de

15
http://portalsoteropreta.com.br/coletivo-das-liliths-apresenta-xica-historia-de-francisco-manicongo

© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 258 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004


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nossa condição de mulheres, quando mulheres trans. Ou de homens, quando homens trans:

Hoje somos seguidoras de Xica


E fazemos a cada esquina nossa labuta
Não à toa usamos o cordel
Em memória ao nordeste e à sai luta
De tantas Severinas, Marias, Joanas
Somos a voz da Xica que no Brasil se perpetua!
(LUSTOSA, 2017, p. 4).

Xica Manicongo é a mensagem que nos chega do passado e ensina: sigam em frente,
transvestigêneres16! Pois o terreno fértil será para as vozes trans – transformadas em palavras.

À guisa de consideração final, reitera-se o atestado em Jesus (2014a), com relação à


construção de memórias coletivas, e se aponta a apropriação e ressignificação da personagem
histórica Xica Manicongo, particularmente no século XXI, como um momento de inflexão da
consciência da população trans com relação a sua história, e não apenas como um mero
registro formal de uma existência determinada.

Tal reconstrução histórica participa, de maneira relevante, da construção de outras


perspectivas sobre a multiplicidade de experiências relacionadas à vivência de uma identidade
de gênero trans, a partir do protagonismo do próprio grupo social, que apreende seu passado,
questiona o presente e constrói o próprio futuro.

Em suma, a denúncia virou poema: cordel. Teatro: ancestralidade em cena. Artigo científico.

REFERÊNCIAS
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GONZALEZ, Lélia. A Categoria Político-Cultural de Amefricanidade. Tempo Brasileiro, n.


92/93, 1988, p. 69-82.

16
Termo criado pelas ativistas Érika Hilton e Indianare Alves Siqueira, em uma mesa de bar, para se referirem
de forma coletiva a pessoas transexuais, travestis e demais pessoas transgêneras, segundo depoimento da atriz
Renata Carvalho.
© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 259 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004
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JESUS, Jaqueline Gomes de. A Verdade Cisgênero. Blogueiras Feministas, 2015.


Disponível em http://blogueirasfeministas.com/2015/01/a-verdade-cisgenero

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Inclusão Racial. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN),
v. 7, n. 15, 2014a. p. 4-24. Disponível em
http://www.abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/article/view/112

JESUS, Jaqueline Gomes de. Transfeminismo: Teorias e Práticas. Rio de Janeiro:


Metanoia Editora, 2014b.

LAPORTA, Lucci Del Santos. Do Cis-Tema à Soberania Transfeminista.


Transfeminismo – feminismo intersecional relacionado às questões trans*, 2018.
Disponível em http://transfeminismo.com/do-cis-tema-a-soberania-transfeminista

LUCON, Neto. Quem era Dandara dos Santos, A Travesti que Mostrou a Cara da
Transfobia no Brasil ao Mundo. NLucon, 2017. Disponível em
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LUSTOSA, Tertuliana. Xica Manicongo foi Rainha. Em: Coletivo Xica Manicongo, Xica
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MOTT, Luiz. Homossexuais da Bahia: Dicionário Biográfico (Séculos XVI-XIX).


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QUIMBANDA DUDU – Grupo Gay Negro da Bahia. Boletim do Quimbanda Dudu –


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TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: A Homossexualidade no Brasil, da


Colônia à Atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2007.

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© Redoc Rio de Janeiro v. 3 n.1 p. 260 Jan/Abr. 2019 e-ISSN 2594-9004

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