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Implementação da Reforma Sanitária: a formação

de uma política 1
Health Reform Implementation and Policy Formation 1

Telma Maria Gonçalves Menicucci Resumo


Doutora em Ciências Humanas: Sociologia e Política
Professor/pesquisador da Fundação João Pinheiro Este artigo procura interpretar o processo de imple-
Email: telma.menicucci@fjp.mg.gov.br mentação da reforma do sistema de saúde ocorrida na
1 O artigo é extraído da tese de doutorado da autora cujo título
década de 1990. A implantação de uma política é do-
é: Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: tada de autonomia e envolve decisões, além de ser um
atores, processos e trajetória, defendida na UFMG em 2003 e processo de adaptação em função das mudanças do
contemplada com Menção Honrosa no concurso CNPq-ANPOCS contexto, portanto, sua implementação exige decisão
de obras científicas e Teses Universitárias em Ciências Sociais, e iniciativa governamental, e instrumentos para efe-
Edição 2004. Versão preliminar foi apresentada como Texto para
Discussão n. 19 da Escola de Governo da Fundação João Pinheiro
tivá-la, entre os quais a disponibilidade de recursos
em outubro de 2005. financeiros e o suporte político organizado, particu-
larmente, por parte dos grupos sociais afetados posi-
tivamente. O processo de implementação da reforma
da política de saúde não é simplesmente a tradução
concreta de decisões, mas um processo ainda de for-
mulação da política de saúde. Durante esse processo,
tiveram grande importância não apenas os efeitos do
contexto político-econômico de ajustes e a reconfigu-
ração da agenda pública, mas principalmente os efei-
tos de feedback das políticas de saúde anteriores, que
se traduziram na ausência de suporte político, no
subfinanciamento e na incapacidade de publicização
da rede de serviços, os quais funcionaram como cons-
trangimentos à implementação completa da reforma
nos termos de seus formuladores. Dentro desses limi-
tes, foram tomadas decisões cruciais que redefiniram
a reforma, sendo as mais significativas o estabeleci-
mento do marco regulatório da assistência privada,
que explicita a segmentação e derruba formalmente
as pretensões universalistas, e as relacionada ao fi-
nanciamento, que ainda configurava objeto de dispu-
ta. O resultado foi a consolidação de um sistema de
saúde dual – público e privado.
Palavras-chave: Política de saúde; Implementação;
Suporte político; Financiamento; Efeitos de feedback.

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Abstract Introdução
This paper analyses the process of implementation of A literatura mais recente no campo da análise de polí-
the health system reform in the 1990s. The starting ticas públicas tem chamado a atenção sobre a centra-
point is the proposition that policy implementation lidade dos problemas de implementação, questionan-
is endowed with autonomy and involves decisions, do a visão clássica de que a implementação é uma das
apart from being a process of adaptation to changes fases do ciclo das políticas públicas, as quais execu-
in context; implementation requires governmental tam as atividades necessárias para obtenção de me-
decision and initiative and tools to make it effective, tas definidas no processo de formulação. De acordo
among them the availability of financial resources com essa perspectiva, problemas na implementação
and organized political support, especially from those são considerados “desvios de rota”, sem que seja pro-
groups that benefit more directly. The process of blematizada sua própria formulação. A crítica a essa
implementation of the health system reform was not visão linear tem chamado a atenção sobre o aspecto
simply a concrete translation of decisions, but also a processual do ciclo das políticas e sobre os efeitos
process of health policy design. In it, the effects not retroalimentadores da implementação sobre a própria
only of adjustments in the political and economic con- formulação, de tal forma que o processo de formação
texts and of the reconfiguration of the public agenda, de uma política se dá a partir da interação entre for-
but mainly the feedback effects of previous health mulação, implementação e avaliação (Pressman e
policies could be felt. The latter translated themselves Wildavisky, 1984; Lipsky, 1980, Lindblon, 1980; Bar-
into the absence of political support, underfinancing ros e Melo, 2000; Molina, 2002; Grindle e Thomas,
and the incapacity to create a public network of servi- 1991; Meny e Thoenig, 1992).
ces. They acted as constraints to the full implemen- Dado o caráter autônomo do processo de imple-
tation of the reform, as it was conceived by its formu- mentação, não há uma relação direta entre o conteú-
lators. Within these limits, crucial decisions were do das decisões, que configuraram uma determinada
made, which redefined the reform, the most important política pública, e os resultados da implementação,
being, on the one hand, the creation of a regulatory que podem ser diferentes da concepção original. Seu
framework for private assistance that made the seg- sucesso está associado à capacidade de obtenção de
mentation explicit, formally abandoning any univer- convergência entre os agentes implementadores em
salistic intent, and, on the other hand, those related torno dos objetivos da política e, particularmente, do
to financing, which still are an object of dispute. The suporte político dos afetados por ela. Além de ser um
result is the consolidation of a dualistic health system processo de adaptação, em função das mudanças do
- public and private. contexto, a implementação envolve decisões e, nesse
Keywords: Health Policy; Implementation; Political sentido, é um processo que pode criar novas políticas.
Support; Financing; Feedback Effects. Este artigo procura interpretar o processo de im-
plementação da reforma do sistema de saúde ocorrida
na década de 1990, quando se colocou a tarefa de
transformar em realidade os dispositivos formais/le-
gais, definidos na Constituição de 1988, que, como se
sabe, trouxe importantes inovações no campo da saú-
de, ao consagrar o direito à saúde e ao definir princí-
pios e diretrizes para orientar a política setorial, os
quais, formalmente, alteraram significativamente o
padrão anterior, ao garantir o acesso universal, igua-
litário e gratuito às ações e aos serviços de saúde, con-
siderados o objetivo fundamental da reforma da políti-
ca de saúde.

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Algumas análises identificam o fracasso do Siste- uma mera tradução prática de decisões, a implanta-
ma Único de Saúde (SUS), expressão institucional da ção da reforma configurou-se, de fato, como um pro-
política de saúde, na medida que sua implementação cesso de formulação da política de saúde, cujo resul-
se deu paralelamente à expansão e à consolidação do tado seria a consolidação de um sistema híbrido –
sistema privado (ou supletivo) de assistência à saúde. público e privado –, apesar da definição legal de um
Esse processo foi algumas vezes visto como um efeito sistema único, público, universal e gratuito. Nessa
inesperado do processo de expansão de cobertura da perspectiva, a implementação envolve decisões que
assistência pública, configurando uma “universaliza- podem redirecionar a política definida formalmen-
ção excludente” (Faveret Filho e Oliveira, 1990; Men- te, e nesse processo a questão da viabilidade política
des, 1993, 1996, 2001; e Draibe, 1999). A maioria dos é crucial, pois a sustentação política e a legitimida-
estudos sobre a implementação do SUS dá ênfase à de da política são variáveis fundamentais para a im-
questão do financiamento como ponto de estrangula- plementação.
mento na medida que o subfinanciamento do sistema Para a análise do processo de implementação da
de saúde não estaria garantindo a implantação dos reforma da política de saúde, parte-se do argumento
princípios constitucionais, que deveriam garantir tan- de que a implantação de uma política exige decisão e
to a universalização do acesso quanto à ampliação da iniciativa governamental, e instrumentos para efeti-
rede prestadora, esta última condição para a primei- vá-la, entre os quais a disponibilidade de recursos fi-
ra. Na medida que a implantação do SUS coincide com nanceiros e suporte político organizado, particular-
uma conjuntura de crise e reformas econômicas, os mente, por parte dos grupos sociais afetados positi-
efeitos das políticas de ajuste dos anos 1990 e o con- vamente pela política. Foram analisadas as possibili-
texto nacional e internacional de reordenamento do dades de atendimento dessas exigências para a
papel do Estado e de crítica às políticas universalistas implantação do SUS, interpretando-as a partir da con-
tendem a ser vistos como responsáveis pelos estran- fluência dos efeitos da trajetória da política de saúde
gulamentos no processo de implementação da políti- com fatores conjunturais de natureza econômica e po-
ca constitucionalmente definida e justificariam tanto lítica, em contexto de reformas econômicas e desfa-
o subfinanciamento quanto os incentivos à “privati- vorável à ampliação da atuação do Estado e de políti-
zação”. Nesse último caso, o estabelecimento da polí- cas universalistas. Os efeitos de feedback da configu-
tica regulatória voltada para o segmento privado de ração prévia de uma determinada estrutura institu-
assistência à saúde, ocorrido paralelamente ao pro- cional para a assistência à saúde manifestam-se de
cesso de implementação do SUS, sinalizaria um redi- várias maneiras, afetando a disposição e a capacidade
recionamento das atribuições públicas no sentido de governamental e conformando as preferências e a in-
privatização, refletindo a inflexão da agenda da saú- terpretação da realidade dos atores que poderiam dar
de, justificável nos termos do debate internacional, suporte político mais ativo à implantação da reforma.
que passou a enfatizar políticas voltadas para o mer- Expressando a trajetória da política de saúde e
cado, levando a uma convergência entre países (Lau- seus efeitos institucionais, a implantação da reforma
rell, 1995; Eibenschutz, 1995; Almeida, 1995, 1997; foi um processo cheio de contradições, pois, ao mes-
Viana, 1997). mo tempo que o SUS de fato se institucionalizou e se
Sem negar esses constrangimentos financeiros, tornou uma realidade, contando inclusive com o apoio
políticos e ideológicos, é necessário interpretar o pro- de novos atores constituídos a partir dele, sua implan-
cesso de implementação da reforma do sistema de saú- tação se fez em condições precárias e de forma incom-
de, problematizando essas explicações, relativizando pleta, desvirtuando a concepção de seus formuladores.
a influência das variáveis contextuais, que levaram à Na acomodação entre as definições legais, que deve-
configuração de uma nova agenda, e enfatizando os riam ser implantadas, e o legado institucional ante-
efeitos institucionais de dependência da trajetória da rior, configurou-se a política de saúde atual.
política de saúde prévia, particularmente, seus efei- Este artigo é estruturado da seguinte forma: em
tos políticos. O ponto de partida para a construção do primeiro lugar, são analisadas as condições políticas
argumento defendido neste artigo é que, mais do que de implementação da reforma da política de saúde nos

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anos 1990, considerando os efeitos institucionais das ampliação dos serviços de saúde, necessária para ga-
políticas prévias, reforçados pela conjuntura de recon- rantir a universalização efetiva. Para os gasto públi-
figuração da agenda nacional e internacional; em se- co isso funcionou como freio objetivo e ideológico
gundo lugar, é analisada a questão do financiamento para a atuação redistributiva do Estado.
do SUS, qualificando a justificativa de ausência de A regulamentação do texto constitucional foi re-
recursos, vista aqui como expressão da ausência de tardada, existindo setores contrários à implementa-
uma disposição uniforme no âmbito governamental ção do SUS dentro do próprio governo, além de diver-
de implementação da reforma e não apenas como uma gências intra-burocráticas sob a forma de sua opera-
limitação de recursos, o que pressuporia uma dispo- cionalização. A aprovação da Lei Orgânica da Saúde
sição efetiva de materializar a assistência à saúde uni- ocorreu dois anos depois da promulgação da Consti-
versal; em terceiro lugar, são analisados outros lega- tuição e, apenas em 1992, o Executivo deu início ao
dos das políticas prévias sobre a capacidade governa- processo de operacionalização do SUS. Na sua regu-
mental, o perfil dos usuários e os efeitos cognitivos, lamentação, por meio de uma Norma Operacional, fo-
considerando seus efeitos sobre a sustentabilidade ram estabelecidos mecanismos que contrariavam dis-
política do SUS e, particularmente, sobre a configura- positivos constitucionais, apontando a resistência à
ção da rede prestadora de serviços; por fim, são sinteti- reforma no âmbito burocrático (Carvalho, in Goulart,
zadas as principais conclusões. 1996; Gerschman, 1995, entre outros).
A reforma fora resultado da ação política decor-
As Condições Políticas de rente da emergência e da organização de novos sujei-
tos políticos, que, se aproveitando de uma conjuntura
Implementação da Reforma favorável de democratização, foram bem-sucedidos no
O contexto político nacional e internacional de im- processo de transformação de uma comunidade epis-
plantação do SUS não se mostrou favorável. A confi- têmica, organizada em torno de uma concepção de
guração conservadora dos governos que se sucederam saúde, em um grupo de ação política, capaz de definir
no período da transição democrática estava em per- um objetivo institucional. Para isso, aglutinaram ali-
feita sintonia com o ambiente internacional, marca- ados e interesses, como membros da academia, movi-
do pela rediscussão do papel do Estado, e se traduzia mento médico, movimento popular, parlamentares,
em propostas de novos modelos de políticas sociais. etc. A heterogeneidade na composição e nos posiciona-
A partir do questionamento da universalização de di- mentos políticos desse “movimento sanitário” eviden-
reitos, proliferaram propostas de focalização do gas- ciou-se na implantação da reforma, quando se atuali-
to público nos setores mais pobres da população, dei- zaram as divergências de interesses, que durante o
xando para o mercado a produção de serviços sociais movimento pela redemocratização do país tinham
destinados aos setores mais favorecidos. Ao processo sido escamoteados em função da agregação em torno
de democratização seguiram-se os de ajuste e de es- da retomada do regime democrático e da reforma sani-
tabilização econômica, acompanhados das reformas tária, enquanto projeto ético de caráter coletivo. Parti-
estruturais, em sentido inverso à ampliação das atri- cularmente, acirram-se as divergências partidárias
buições governamentais e dos direitos sociais recém- em decorrência do fortalecimento e da diversificação
consagrados na Constituição, em sintonia com o re- das identidades partidárias, propiciados pela demo-
ceituário internacional. Como destacou Draibe (1995, cratização e aprofundaram-se o corporativismo entre
p.219), antes que se implementassem as diretrizes da o movimento médico que se distanciava do projeto bá-
agenda de reforma social da transição democrática, sico da reforma sanitária no momento crucial de sua
desenhava-se outra agenda de reformas. implementação (Gerschman, 1995). O movimento po-
A conjuntura de crise fiscal, com suas conseqüên- pular em saúde (MOPS), por sua vez, não foi capaz de
cias sobre o financiamento dos serviços públicos, as- garantir o apoio dos usuários dos serviços de saúde.
sociada ao fortalecimento de posições conservadoras Contribuiu para isso não apenas sua fraca mobiliza-
e voltadas para o mercado, colocou constrangimentos ção política, mas a própria característica da reforma,
à implantação do SUS, limitando a possibilidade de que fez com que os seus benefícios fossem muito

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dispersos e só perceptíveis a longo prazo pelo conjunto vernamentais, e os cobertos pela assistência pública,
da população, o que fez com que os responsáveis pela não favoreceu a constituição de uma identidade co-
reforma não pudessem contar com o apoio mobiliza- letiva e de valores que enfatizassem a solidarie-
do do público alvo da política de saúde. dade e o igualitarismo que pudessem dar suporte à
Como expressão de seu enfraquecimento, após a reforma, que, pelo seu caráter redistributivo, deman-
aprovação da Lei Orgânica da Saúde, o movimento daria coalizões mais amplas. Concomitante à im-
sanitário não teve mais uma atuação contínua e re- plementação da reforma a demanda por assistência
gular na legislação infraconstitucional, afastando-se médica diferenciada da pública transformou-se em
do debate parlamentar (Rodrigues Neto, 1997). item da agenda de negociação coletiva de diversas
Acresce-se a isso o fato de alguns atores, apesar categorias de trabalhadores, constituindo-se um
de garantirem o apoio formal à reforma sanitária, não “veto implícito” ao modelo público e universal e for-
se constituírem de fato seus apoiadores efetivos, mer- talecendo a assistência diferenciada prestada pelas
gulhados nas contradições entre a postura ideológi- empresas (Costa, 1995).
ca igualitária e a defesa de seus interesses corpora- O projeto de ruptura no padrão de intervenção es-
tivos. Entre esses, destacou-se o movimento sindical tatal na área da saúde e a concretização da agenda
mais combativo, cujas categorias, em grande parte, redistributiva e universalista confrontaram-se com o
cobertas por planos privados de saúde, no âmbito das desenho histórico da cidadania regulada, ao mesmo
empresas e instituições públicas como efeito das po- tempo que não existia “um projeto nacional de desen-
líticas anteriores, não eram diretamente beneficiadas volvimento que tomasse a questão da desigualdade e
com a implantação do SUS e, nessa medida, não ti- da exclusão como o cerne da questão democrática”
nham incentivos concretos para apoiar de forma mais Fleury (1997, p.34)
efetiva o sistema público. Embora a postura oficial do movimento sindical
A proposta de um sistema de saúde igualitário mais combativo, representado pela Central Única dos
chocou-se com o legado histórico de uma sociedade Trabalhadores, seja a de defesa do sistema público e
marcada pela diferenciação e pela segmentação no de direitos igualitários, na prática, isso não se traduz
próprio campo da atenção à saúde, no qual o proces- em mobilização efetiva pela concretização dos prin-
so de inclusão se deu pela incorporação de segmen- cípios do SUS. A discussão da saúde no cotidiano dos
tos privilegiados dos trabalhadores assalariados. sindicatos tem se centrado nas questões da saúde do
Como destaca Mendes (2001), as reformas sanitári- trabalhador, vinculadas às condições de trabalho e aos
as possuem um forte componente ideológico e ex- benefícios previdenciários, que passaram a consumir
pressam valores solidaristas vigentes, que, grosso muito das energias do movimento sindical, diante da
modo, opõem-se a valores individualistas e auto-in- sua vulnerabilidade e do acúmulo de perdas com o
teressados. No caso brasileiro, a reforma foi de ins- aumento do desemprego desde os anos 1990. Pela par-
piração claramente solidarista, mas não se pode di- ticipação nos fóruns colegiados da estrutura do SUS,
zer que esses valores eram generalizados tanto na as lideranças do movimento sindical integram-se ao
elite governante como na sociedade organizada. Ao SUS, mas a questão não parece ter atingido a catego-
contrário, como herança de políticas anteriores, ti- ria como um todo, demonstrando contradição entre
nham se desenvolvido práticas e, conseqüentemen- os interesses imediatos e a orientação político-ideoló-
te, valores pouco solidaristas e não se constituíra gica de defesa das ações públicas de cunho universa-
uma demanda de atenção universal entre os segmen- lista. Cada vez mais desenvolve-se o que uma lideran-
tos organizados dos trabalhadores. A origem da as- ça sindical chamou de “cultura de planos de saúde”,
sistência à saúde, calcada na diferenciação, primei- que se tornou uma demanda dos trabalhadores e que
ro no âmbito da assistência pública através dos Ins- dificilmente encontra resistência das empresas
titutos de Aposentadoria e Pensão até os anos 1960 (Sintel, 2002).
e, posteriormente, a partir da distinção entre traba- Esse paradoxo se evidencia mais expressiva por
lhadores cobertos por planos privados no âmbito das se tratar de atores encarregados da operacionalização
empresas, também como resultado de incentivos go- da assistência médica pública, nas entidades repre-

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sentativas dos servidores públicos das instituições A questão do financiamento tornou-se o “calca-
previdenciárias, que são cobertos pela GEAP, o maior nhar de Aquiles” para a efetivação da reforma, pois
plano de saúde na modalidade de autogestão do país e não foi garantido maior aporte de recursos necessá-
um dos mais antigos. Apesar da defesa radical de um rios para efetivar a universalização de cobertura e a
sistema único e público nos fóruns formais da catego- realização dos investimentos necessários à ampliação
ria, na prática, os beneficiários da GEAP sempre defen- da rede pública de serviços. A ausência de fontes es-
deram duramente o que consideravam “direitos adqui- táveis de financiamento, os constantes atrasos nos
ridos” de uma assistência médica diferenciada e de repasses da União para estados e municípios levou a
maior qualidade (GEAP, 1990; Menicucci, 1987 2). uma degradação da qualidade dos serviços bastante
A descentralização tem provocado o surgimento acentuada nos primeiros anos do SUS.
de novos apoiadores do SUS no nível das prefeituras e Às deficiências do financiamento têm sido credi-
das instâncias colegiadas, que se organizaram a par- tadas as principais dificuldades para a implantação
tir de definições legais no sentido de incluir a partici- do SUS. Em um contexto de programas de estabiliza-
pação da sociedade na gestão do SUS. Esse processo ção e de ajuste fiscal, caracterizado por cortes nas
de constituição de novos sujeitos na arena da saúde é despesas públicas, particularmente, nos gastos soci-
muito recente para que possa surtir resultados que ais, tornou-se sedutor atribuir a esse panorama geral
alterem a dinâmica política para reforçar o SUS em a deficiência de recursos para a viabilização do SUS.
detrimento do processo de segmentação das cliente- Reconhecendo esses constrangimentos, cabe inda-
las decorrente do fortalecimento do setor privado a gar em que medida havia de fato a intenção governa-
partir dos anos 1960 e, de forma acentuada, nas déca- mental de implantar os dispositivos formais da polí-
das seguintes. Ainda nessa arena local, funcionários tica de saúde, mas que seria inviabilizada pelas limi-
das prefeituras e membros dos conselhos de saúde, tações financeiras. O argumento desenvolvido neste
em muitos casos, também estão cobertos por planos artigo é que mesmo não negada no discurso, nem mes-
de saúde coletivos, assumindo freqüentemente posi- mo tendo sido objeto de uma redução programática, a
ções corporativas (Fundação João Pinheiro, 1998). atenção à saúde universal e igualitária foi objeto de
veto implícito e de inviabilização sistêmica, por ana-
O Financiamento do SUS como logia com a noção de redução sistêmica das políticas
do estado de bem-estar, utilizada por Pierson (1994).
Forma de Inviabilização Sistêmica Com essa expressão, Pierson refere-se às estratégias
A operacionalização da reforma da política de saúde indiretas para a redução de políticas cujas conseqü-
implicava transformações político-institucionais e ências são sentidas apenas em longo prazo e que pa-
organizacionais de grande envergadura, sendo o gran- recem ter sido muito mais importantes nas tentati-
de esforço inicial promover a descentralização. Para vas de desmantelamento do Estado de bem-estar do
o alcance dos objetivos finalísticos da reforma, o fi- que nos esforços de redução programática explícita
nanciamento é um recurso imprescindível, envolven- dos programas sociais.
do não apenas o volume, mas a forma de repasse dos A ausência de mecanismos efetivos e estáveis para
recursos do governo federal para estados e municípi- o financiamento do SUS funcionou como um mecanis-
os, uma vez que a descentralização se fez na depen- mo indireto para a redução de seu alcance e efetivi-
dência dos recursos federais, principais responsáveis dade mesmo que no discurso dominante, em geral, não
pelo financiamento das ações de saúde: cerca de 80% são questionados os fundamentos básicos do SUS.
até o final da década de 1980 e 70% na década de 1990 Algumas tentativas de mudanças estruturais no SUS,
(MS/Secretaria de Gestão de Investimentos em Saú- relacionadas aos princípios da universalidade e da
de, 2001:5); reduzindo-se recentemente para 52% (MS/ integração da atenção, partiram do governo federal,
SCTIE-DES, apud Conasems, 2004). mas não lograriam apoio para serem encaminhadas,

2 MENICUCCI, Telma M. G. Assistência patronal: a negação da previdência social no seu próprio seio. Belo Horiozonte: Departamento
de Sociologia e Antropologia da FAFICH-UFMG, 1987.

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como a PEC 32, que propunha alterar o artigo 196 da de pagamento para o custeio das ações de saúde. Nesse
Constituição e que visava estabelecer limites ao direi- mesmo ano, o presidente da República vetou o artigo
to à saúde e restringir o dever do Estado na provisão da Lei de Diretrizes Orçamentárias, que destinava 30%
das condições para seu exercício (Barros, 1998). dos recursos do Orçamento da Seguridade Social para
Com o panorama político, normativo e institucio- a saúde, conforme previsto nas disposições transitórias
nal descrito, não é razoável supor que houvesse, de fato, da CF, sob a alegação de ser contrário ao interesse na-
a intenção de reverter as características do modelo de cional.
atenção à saúde. Dado o custo político de uma redução Outras fontes do Orçamento da Seguridade Social,
programática das propostas do SUS, em um quadro de como a contribuição sobre o Lucro Líquido e a Contri-
consolidação da democracia, a estratégia indireta de buição do Financiamento Social, além de disputados
inviabilização sistêmica, não garantindo o aporte de por outras áreas do governo, enfrentaram questiona-
recursos necessários à operacionalização do SUS, pa- mento jurídico no meio empresarial no início dos anos
rece consistente. A descrição da trajetória do financia- 1990, cuja conseqüência foi a indisponibilidade des-
mento feita a seguir esclarece este argumento. ses recursos por algum tempo. A crise gerada nesse
Ao definir um orçamento específico para a Seguri- momento provocou uma discussão sobre a necessida-
dade Social, que, além da Saúde, inclui a Previdência de de novas e estáveis fontes de financiamento para a
e a Assistência, a Constituição buscou assegurar fon- saúde. Mesmo supondo que a efetivação da reforma
tes para seu financiamento, mas às restrições orçamen- sanitária nos termos propostos por seus idealizadores
tárias, somou-se o desvio de recursos da seguridade não figurasse na agenda concreta de ações e escolhas,
social por diferentes mecanismos, como: sonegação ou o mau funcionamento do sistema de saúde público
inadimplência por parte das empresas; utilização de passou a ser uma das faces mais vulneráveis da polí-
recursos da seguridade social para cobrir despesas do tica social do governo. Apesar dos avanços expressi-
orçamento fiscal ou de outros Ministérios; e retenção vos em termos de cobertura, da realização de servi-
de recursos do seu orçamento. Em função das perdas ços, dos ganhos nos indicadores de saúde e da maior
decorrentes do novo federalismo fiscal, após a Cons- racionalidade e eficiência na gestão dos recursos pro-
tituição de 1988, que transferiu recursos para esta- piciadas pela descentralização e incorporação do con-
dos e municípios, a União passou a disputar os recur- trole democrático por meio do modelo de gestão par-
sos das contribuições sociais que representam mais ticipativa que fez parte da reforma, os problemas do
da metade da sua receita tributária. SUS ganharam muita visibilidade e passaram a ser
A própria configuração institucional da destina- denunciados em diferentes perspectivas.
ção de recursos para o segmento saúde tornou-o fragi- A partir de um diagnóstico da crise, centrado no
lizado diante do segmento previdenciário da Seguri- financiamento, na segunda metade da década de 1990,
dade Social e do Executivo Federal, na medida que não as evidências e as críticas sobre insuficiência e irre-
era o arrecadador de nenhuma de suas receitas e não gularidade dos recursos destinados ao SUS ganharam
foram definidas vinculações explícitas para a saúde maior visibilidade e propostas alternativas entraram
dentre as diversas fontes que compõem o orçamento na agenda pública. Sob forte pressão do então minis-
da seguridade. A partir de 1988, houve um crescimen- tro da Saúde, Adib Jatene, para a criação de uma fonte
to acentuado dos valores arrecadados pela Seguridade adicional de recursos para financiamento do SUS, que
Social, mas que não se refletiu na mesma proporção redundou em sua demissão por incompatibilização
no segmento saúde, o qual se caracterizou por gran- com a área econômica do governo, e contando com for-
de instabilidade na alocação de recursos federais (Fun- tes resistências tanto no Congresso quanto nos dife-
dação João Pinheiro, 1999; Lucchesi, 1996). rentes segmentos sociais a serem afetados, foi insti-
Sob a alegação de que tinham designação exclusi- tuída, em 1996, a Contribuição Provisória sobre Mo-
va para o pagamento dos benefícios previdenciários vimentação Financeira (CPMF), mediante a Emenda
(aposentadorias e pensões), a partir de maio de 1993, Constitucional nº. 12/1996 que, na sua primeira ver-
o Ministério da Previdência Social suspendeu são, definia que a receita proveniente dessa arrecada-
unilateralmente o repasse dos recursos sobre a folha ção deveria ser destinada integralmente para o finan-

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ciamento das ações e dos serviços de saúde. Sua apro- após obter o apoio explícito do presidente da Repúbli-
vação ocorreu sem mobilização social ampla. Ao con- ca e por pressão do então ministro da Saúde, José Ser-
trário, grupos de pressão ligados ao empresariado, à ra, oriundo da área econômica e pertencente ao parti-
mídia e a outros posicionaram-se contrários ao vigor do do presidente, que exerceu o papel de policy advo-
(Goulart, 1996). A oposição era previsível, uma vez que, cate da Emenda.
ao ser uma nova tributação a incidir sobre as movi- A mobilização pela obtenção de recursos para o
mentações bancárias, atingiria exatamente os seto- financiamento do SUS envolveu principalmente os
res que, na sua maioria, não se constituíam em usuá- gestores municipais e estaduais, os Conselhos de Saú-
rios do SUS – a estimativa é de que a CPMF atingisse de dos três níveis de governo, os conselhos de secretá-
aproximadamente 18% da população, apenas a parce- rios de saúde e as entidades representativas de pres-
la que mantém contas na rede bancária nacional. Con- tadores de serviços e de profissionais de saúde, atores
siderando que cerca de 25% da população é coberta que, direta ou indiretamente, seriam beneficiados pela
por planos de saúde privados e que essa cobertura tem EC, embora por diferentes razões: os gestores, por es-
uma relação com níveis de renda e qualidade do em- tarem premidos pela demanda de serviços e pela es-
prego (PNAD, 1998), é razoável supor que exista uma cassez de recursos, e os prestadores de serviço, insa-
sobreposição entre esses dois grupos. tisfeitos com a remuneração de seus serviços pelo Po-
Entretanto, a nova fonte, que deveria constituir um der Público, vendo nessa PEC uma possibilidade de
recurso supletivo, tornou-se substitutivo, na medida aumentar seus rendimentos pela garantia de maior
que passaram a ser desviados recursos de outras fon- estabilidade no financiamento da saúde. No Congres-
tes do orçamento da Seguridade Social, que em gran- so, contou-se com o apoio da Frente Parlamentar
de parte se destinavam ao setor saúde, como o Cofins de Saúde, de caráter informal e multipartidária, além
e a Contribuição Social sobre o Lucro de Pessoas Jurí- de outras entidades, como a CNBB e o Fórum de Tra-
dicas. Em 1996, a execução orçamentária do Ministé- balhadores.
rio da Saúde foi de 14,4 bilhões de reais, sem a CPMF. Com a pressão do chefe do Executivo, quando era
Em 1997, esse orçamento passou a ser de 20,5 bilhões muito criticado por ter negligenciado as questões so-
de reais, com uma estimativa de arrecadação inicial de ciais, e sob a condução do presidente da Câmara, foi
aproximadamente 5,3 bilhões de reais da CPMF. To- realizado um acordo suprapartidário para aprovar, em
davia, a arrecadação da CPMF no ano de 1997 foi de 6,7 tramitação acelerada, tal como queria o ministro da
bilhões, valor 1,4 de bilhão superior ao inicialmente Saúde e com modificações consensuadas entre lide-
previsto. Soma-se a este fato o contingenciamento de ranças partidárias e governo, a PEC nº. 82/95, do de-
1,7 bilhão no orçamento do Ministério da Saúde, que putado Carlos Mosconi, do partido governista. Ape-
executou apenas 18,8 bilhões em 1997. Isso significa sar da existência de divergências entre ministros e
que, em 1997, a saúde teve 3,1 bilhões de reais a menos, forte resistência de governadores, por significar a vin-
sendo 1,4 bilhão de excesso de arrecadação da CPMF e culação de recursos em um quadro de difícil situação
1,7 bilhão de corte no orçamento aprovado no Congres- financeira dos estados, a PEC foi aprovada, com enca-
so Nacional (Fundação João Pinheiro, 1999, p.129). minhamento unânime de todos os partidos. Veja de-
A ausência de fluxos regulares de recursos para a poimento colhido em entrevista com Rafael Guerra
saúde gerou um movimento nacional, conhecido como (2002), médico, deputado federal integrante da Fren-
“Movimento SOS SUS”, em torno da vinculação de re- te Parlamentar da Saúde:
cursos para o setor. Contando com a resistência da Fomos ao Presidente do Congresso, ao Presidente da
área econômica do governo, a proposta só se consti- Câmara, ao Ministro da Saúde, ao Ministro do Plane-
tuiu norma legal com a aprovação da Emenda Consti- jamento, ao Secretário da Casa Civil, ao Secretário
tucional nº. 29/2000, que garantia recursos mínimos Geral da Presidência, ao José Serra (...) e a movimen-
para o financiamento do SUS, sob a forma de vincula- tação foi se ampliando, com a participação da Pasto-
ção de recursos orçamentários dos diversos níveis de ral da Igreja, da Associação Médica Brasileira, Con-
governo. Após sete anos de tramitação de várias PECs, selho Federal de Medicina e os outros Conselhos de
a discussão só avançou no Congresso a partir de 1998, Especialidades, o Conass (Conselho dos Secretários

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Estaduais de Saúde), o Conasems (Conselho Nacional ria como contrapartida o estabelecimento de nova fon-
de Secretários Estaduais de Saúde). Houve audiênci- te de custeio para o setor. A tentativa de tramitação
as públicas, passeatas, reuniões com bancadas dos acelerada da EC coincide com a aproximação do tér-
partidos (...) Isso durou quase um ano. Ao final, de- mino da vigência da CPMF, aprovada inicialmente
pois de todas as resistências do Ministério da Fazen- para ser provisória e destinada à saúde, mas que, de
da e do Ministério do Planejamento – que eram contra fato, tornara-se uma importante fonte de receitas para
as vinculações orçamentárias, por engessar o orça- o governo federal. Prorrogada, por meio da EC 21/1999,
mento e impedir o Ministro do Planejamento de tomar os recursos decorrentes da arrecadação da CPMF pas-
decisões sobre as prioridades do Governo –, depois de saram a ser direcionados para o custeio da Previdên-
vencer todos os problemas, de discutir exaustivamen- cia Social, deixando legalmente de ter a destinação
te o assunto, o Presidente da Republica apoiou a vota- exclusiva para a saúde, que justificara sua criação. As
ção da emenda constitucional, com a condição de que intenções do governo federal transparecem em depo-
ela implicasse também o financiamento pelos Esta- imento do ministro da Saúde em audiência pública
dos e Municípios. realizada em maio de 1998, durante os trabalhos da
Embora a EC 29 não tenha sido proposta direta- Comissão Especial constituída para proferir parecer
mente pelo Executivo, ele não deixou de definir a agen- à PEC 29, conforme estabelece a legislação, realizada
da tanto no conteúdo substantivo quanto no ritmo de antes da alteração da CPMF:
sua aprovação. A emenda sofreu as alterações propos- (...) além da necessidade de um mínimo Nacional [para
tas pelo Executivo que conseguiu definir uma descen- financiamento do SUS], seria muito importante um
tralização dos encargos financeiros com saúde e pre- mínimo federal para que tivéssemos proporções entre
servar a União de uma vinculação mais explícita de União, Estados e Municípios... A CPMF não é uma re-
recursos para a saúde. Substantivamente, apenas para ceita específica da saúde. Aliás, o Congresso Nacio-
os estados, municípios e Distrito Federal foi estabele- nal não a aprovou como tal. O Congresso aprovou uma
cida uma vinculação de recursos orçamentários, me- receita da Seguridade Social. Portanto, a CPMF, hoje,
diante a destinação de um percentual definido dos está financiando déficit da Previdência.
seus orçamentos para o custeio das ações de saúde a Essa mudança foi mais um veto implícito ao setor
ser atingido de forma gradual. Para a União, a EC 29/ saúde, ao mesmo tempo que, por meio de um jogo de
2000 definiu provisoriamente uma ampliação percen- contradições, defendia-se e conseguia-se, aparente-
tual dos gastos absolutos efetuados pela União no ano mente, a aprovação de mais recursos para a saúde. A
anterior e remeteu para uma Lei Complementar a de- desconfiança sobre a intenção do governo de solucio-
finição dos percentuais mínimos a serem alocados na nar o problema de financiamento do SUS foi claramen-
saúde. Com esse adiamento, a definição dos encargos te expressa por parte dos parlamentares oposicionis-
federais com saúde foi deixada ao sabor da conjuntu- tas e até os da base governista durante a tramitação
ra política, mantendo-se, em certa medida, a vulnera- da “PEC Saúde”. Essa desconfiança baseava-se em um
bilidade do orçamento da saúde, na medida em que os conjunto de ações em sentido contrário, como os cons-
recursos federais ainda eram majoritários para o cus- tantes contingenciamentos do orçamento da saúde, a
teio das ações de saúde. utilização dos recursos arrecadados com a CPMF fora
A mudança de postura do Executivo federal, ao do setor saúde e a retenção de recursos da seguridade
passar a defender a aprovação da vinculação de recur- social para o Fundo de Estabilização Fiscal. Além dis-
sos para a saúde, não sugere uma intenção de ampliar so, outras decisões governamentais não sugeriam
os gastos federais para o custeio do sistema de saúde. uma postura de fortalecimento do setor público, como:
Ao contrário, evidencia, em primeiro lugar, o propósi- a regulamentação dos planos e seguros de saúde,
to de deslocar a questão do financiamento da saúde concomitantemente à discussão da vinculação de re-
do nível federal para as instâncias subnacionais de cursos para o financiamento do SUS, que apontou o
governo, forçando-as a ampliar sua participação no interesse de alavancar o crescimento do mercado pri-
gasto em saúde e, em segundo lugar, a intenção de des- vado de assistência à saúde; a abertura de hospitais
vincular da saúde os recursos da CPMF, o que exigi- públicos, particularmente os universitários, para cli-

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entelas privadas via convênios como forma de arreca- tando a interpretação do TCU. A transferência de parte
dar recursos adicionais e que tinha como conseqüên- da responsabilidade do custeio da saúde para as ins-
cia a restrição de vagas para pacientes do SUS; e a pro- tâncias subnacionais de governo vem ocorrendo de
posta de transformar os hospitais públicos em orga- forma acentuada para os municípios que, em grande
nizações sociais juridicamente privadas, a fim de parte, desde o ano de 2000 já vêm cumprindo o pre-
torná-los mais eficientes e auto-sustentáveis. visto na EC 29 (SIOPS). Grande parte dos estados não
A forma de cumprimento da EC 29 sugere a falta está cumprindo as determinações da emenda, em fun-
de empenho governamental para solucionar o proble- ção da falta de disponibilidade de recursos, em uma
ma do subfinanciamento do SUS. Uma forma de frear conjuntura caracterizada pelo endividamento e pelo
o aumento de recursos da União para o sistema de saú- alto comprometimento das suas receitas.
de público deu-se mediante conflito intraburocrático Tudo indica que os aportes adicionais de recursos,
entre diferentes interpretações da legislação. Se, no esperados a partir da EC 29, não têm sido significati-
caso da vinculação dos recursos estaduais e munici- vos a ponto de reverter o quadro de subfinanciamento
pais a legislação foi auto-aplicável, para os recursos do SUS, particularmente, para garantir recursos para
da União, exercícios 2001/2004, período de transição investimentos – ponto frágil do sistema. Está também
até a definição de Lei Complementar, a implemen- na dependência da Lei Complementar a definição das
tação foi polêmica. No momento de implantação da formas de fiscalização, avaliação e controle das des-
reforma, Embora o texto legal não sugerisse dúvidas pesas com saúde nas esferas federal, estadual e mu-
sobre a forma de cálculo dos recursos mínimos a se- nicipal. Em 2004, terminou o período de transição
rem aplicados pela União, houve um choque entre duas previsto na EC 29 e começou a tramitar um Projeto de
interpretações jurídicas. Por um lado, coincidiam as Lei que a regulamenta. O projeto prevê a aplicação de,
interpretações da Procuradoria Geral da Fazenda Na- no mínimo, 10% das receitas correntes da União, o que
cional/Ministério da Fazenda, apoiada por parecer da significaria um aumento do montante que vem sendo
Advocacia Geral da União e, por outro, a interpretação aplicado. A julgar pelo debate recente durante a tra-
da Consultoria Jurídica e da Subsecretaria de Plane- mitação da proposta de Reforma Tributária, ocasião
jamento e Orçamento do Ministério da Saúde, do Con- em que os estados tentaram alterar as vinculações de
selho Nacional de Saúde e do Tribunal de Contas da receita, parece pouco provável que essa vinculação
União, defendida pela chamada “Bancada da Saúde” também de recursos da União seja aprovada dessa for-
no Congresso Nacional. A controvérsia está centrada ma. Isso mostra que a participação dos entes federa-
principalmente na base de cálculo a ser utilizada para dos no financiamento do SUS continua sendo contes-
os valores sobre os quais a União deverá aplicar os tada. Caso essas questões não sejam resolvidas, a EC
aumentos anuais dos recursos aplicados na saúde. 29 corre o risco de ser mais uma definição meramen-
A divergência intraburocrática relativa à interpre- te formal para a viabilização dos princípios constitu-
tação da forma de aplicação da emenda constitucional cionais relativos à saúde, persistindo a sua inviabili-
na definição concreta dos montantes a serem alocados zação sistêmica.
pelo governo federal aponta para a inexistência de um
projeto global de governo para a concretização do SUS, Constrangimentos Institucionais:
explicitada pela divergência entre as agências encar-
regadas da política econômica e da saúde. Na prática, efeitos de feedback sobre a rede de
o governo tem adotado como referência para a fixação serviços e perfil dos usuários, e
dos tetos orçamentários para o setor saúde a interpre-
efeitos cognitivos
tação da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e da
Advocacia Geral da União, decisão que se traduz em Em função de sua própria natureza, a efetivação da
prejuízos para o setor. Um documento do Conasems política de saúde implica a existência de uma rede
(2004) apontou o valor de R$ 1,8 bilhão como diferença prestadora de serviços. As características e a evolu-
acumulada no não-cumprimento, por parte do governo ção dessa rede evidenciam que as conseqüências das
federal da EC 29, nos anos de 2001, 2002 e 2003, ado- decisões governamentais anteriores constituem en-

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traves de natureza estrutural à efetivação dos dispo- mais forte para, de fato, publicizar a rede privada dis-
sitivos constitucionais. As políticas estabelecidas a ponível para o SUS, fazendo valer o interesse público
partir dos anos 1960 forneceram incentivos e recur- em função do imperativo legal de garantir o acesso
sos que facilitaram a expansão da rede prestadora pri- universal. As limitações para uma regulação mais efe-
vada, o que teve como seu principal efeito a consoli- tiva são grandes e incluem dificuldades operativas do
dação de uma forte dependência do setor privado para sistema público para definir sua demanda, negociar
a realização de procedimentos de maior complexida- serviços, implantar e fiscalizar contratos, o que im-
de. A opção do passado pela compra de serviços, prin- põe fortes custos de transação em uma relação que
cipalmente hospitalares, tendeu a ser readotada, na ainda não tem regras definidas nem desenvolveu a ca-
medida que não se desenvolveram capacidades esta- pacidade reguladora entre os gestores públicos. As
tais para uma opção diferente. A forte penetração dos restrições políticas são também significativas na me-
interesses dos prestadores privados nas instituições dida que o setor privado, com forte tradição de auto-
governamentais, através dos anéis burocráticos da regulação ou de regulação governamental, limitada à
Previdência Social, garantiu que esses interesses fos- definição de preços e controle da produção dos servi-
sem protegidos, e não se desenvolveu uma ação regu- ços e impõe fortes resistências. A resistência dos pres-
ladora eficiente para garantir a preservação do inte- tadores, a falta de atuação concertada dos agentes
resse público na compra de serviços. públicos para uma regulação mais rigorosa e efetiva
A universalização da assistência e a definição da das relações com a rede privada e a repetição inercial
saúde como relevância pública, que caracterizaram a dos padrões de regulação anterior caracterizam a per-
reforma do final dos anos 1980, não foram acompa- sistência de uma relação ainda bastante frágil, que
nhadas da efetiva publicização da rede prestadora, se- garanta a regularidade na prestação pelo sistema pú-
ja pela expansão da rede estatal em níveis e na diver- blico dos serviços de saúde de maior complexidade,
sidade exigidos seja pela incorporação da rede priva- para os quais é grande a dependência da rede privada.
da de acordo com critérios públicos. Ao longo das duas Essas resistências são favorecidas pelo formato
últimas décadas, ocorreu a ampliação da rede pública, dual da assistência à saúde, constituída por essa mis-
principalmente, ambulatorial, que cresceu aproxima- tura de privado e público, pois aos prestadores de ser-
damente 80%, após 1988, bem mais do que o cresci- viços existe a alternativa do mercado de planos de saú-
mento dos estabelecimentos com internação, que tive- de, que permite prescindir do SUS. A trajetória da as-
ram uma expansão de aproximadamente 42% (AMS/ sistência à saúde no Brasil levou ao desenvolvimento
IBGE, 1988, 1989, 1990, 1992, 1999, 2002)3. Essa de um mercado de serviços de saúde com vários agen-
expansão mostra o esforço efetivo para a universali- tes privados tanto para a demanda como para a pro-
zação da assistência, a partir da garantia de acesso à dução de serviços. Nesse mercado, o setor público aca-
atenção primária e pode também ser relacionada ao bou se tornando mais um, embora maior, agente com-
aprofundamento do processo de descentralização, ge- prador de serviços, na medida em que não se configu-
rando maior pressão sobre os governos locais para o rou uma assistência pública de fato universal, mas um
atendimento das demandas de assistência, sendo esse modelo híbrido. Embora a natureza jurídica dos esta-
tipo de atenção prescindível de investimentos de maior belecimentos hospitalares não impeça por si só a
vulto, inacessíveis a esses governos. A expansão da re- publicização da rede ou dos serviços contratados, a
de hospitalar é apenas pontual, e não há indícios de que configuração institucional do sistema de saúde colo-
a situação possa se alterar, tanto em função da limi- ca constrangimentos para que se consiga fazer preva-
tação de recursos destinados a investimentos como por lecer o interesse público sobre o privado. A implanta-
não ser considerada questão na agenda pública. ção do contrato de direito público na relação com o
O legado dessa escolha do passado gerou, na atua- setor privado, definido na Constituição, ainda não se
lidade, a necessidade de regulação governamental tornou realidade nacional ou geral. Mesmo com sua

3 PEQUISA de Assistência Médica Sanitária - AMS/IBGE. Anos: 1976, 1977, 1978, 1979, 1980, 1981, 1982, 1983, 1984, 1985, 1986, 1987,
1988, 1989, 1990, 1992,1999.

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existência não há alteração significativa na relação altos. A inserção na assistência privada aparece não
governo–prestador privado, que ainda ocorre com uma como uma opção pelo mercado, mas como uma neces-
priorização da lógica privada da oferta, e não a lógica sidade diante da “baixa qualidade” da assistência pú-
da demanda ou das necessidades da população. A fal- blica, e é o desejo da maioria dos entrevistados. A
ta de controle sobre o setor privado expressa-se tam- ambigüidade jurídico-institucional da assistência à
bém na persistência de mecanismos para garantir o saúde do país acaba, assim, por se reproduzir no dis-
acesso a atendimentos hospitalares, que fogem às re- curso da população, também crivado de ambigüidades.
gras universalistas do SUS, e favorecem o atendimen- Essa análise das imagens e das opiniões sobre a
to de segmentos privilegiados da população, caracte- assistência pública e privada, embora seja extraída
rizando uma forma perversa de interpenetração en- de uma amostra não representativa, sem condições
tre o sistema público e o privado. de generalização, sugere a hipótese de que essa per-
Como outro efeito de feedback da política de saú- cepção dos dois sistemas assistenciais tenha como
de, sugerido a partir de pesquisa qualitativa com uma conseqüência o baixo apoio fornecido pela população
amostra de pessoas (Menicucci, 2003), a trajetória ao sistema público, mesmo que no nível formal re-
dual da assistência e a experiência com os seus dois produzam a noção consagrada na Constituição, ao
formatos têm efeitos cognitivos sobre os usuários e reafirmarem que a prestação de serviços de saúde é
não apenas sobre os gestores, ao influenciar a percep- um direito que deveria ser garantido pelo Poder Pú-
ção e conformar as imagens sobre o sistema de saú- blico ao cidadão. É logicamente plausível supor que
de. Embora existam diferenças acentuadas entre a a contrapartida do fraco apoio ao sistema público
avaliação dos serviços de saúde efetivamente utiliza- seja o reforço do privado, se não como integrado ao
dos e a opinião sobre eles, a imagem geral sobre o sis- ideário da assistência, mas a partir de uma descren-
tema público, construída a partir da comparação com ça no público. Atuaria, também, como alternativa su-
o privado, é bastante negativa. A falta de sintonia en- postamente “realista”, ou mais adequada do ponto
tre as avaliações sobre a qualidade dos serviços pú- de vista da relação meios/fins, mas que, de fato, tra-
blicos utilizados, na sua maioria bastante positivas, duz as imagens construídas a partir da inserção no
e as opiniões expressas sobre eles apontam para a for- sistema privado, e não necessariamente como decor-
ça de representações construídas e alimentadas so- rência da utilização do sistema público, o que nunca
bre o “caos da saúde” no Brasil, entendendo-se, por foi uma realidade para uma expressiva parcela da po-
isso, a partir de uma redução sumária, os serviços pulação que transitou da medicina liberal para os
prestados pelo SUS. planos privados.
Expressões das restrições ao acesso são as queixas Expressão e consolidação dessa dualidade, bem
reiteradas sobre filas e demora no atendimento, ele- como do volume e importância que o segmento priva-
mentos que acabam caracterizando o sistema público, do assumiu, concomitantemente às mudanças institu-
em contraponto à imagem explicitada a respeito do cionais no sentido de implantação do SUS, na década
sistema privado, cujas principais qualidades identi- de 90 ganhou relevo o debate envolvendo diferentes
ficadas são exatamente a comodidade e a presteza do atores, tanto governamentais quanto da sociedade ci-
atendimento. vil, sobre a regulamentação da “assistência médica
A diferença entre a imagem e a realidade do aten- supletiva”. Esse debate culminou com a promulgação
dimento expressa-se de forma mais aguda entre aque- da Lei 9665, em 6/1998, que dispõe sobre os planos
les que não são usuários do sistema público, que, em privados de assistência à saúde. Em vez de um in-
geral, são os que têm a pior opinião sobre ele, o que é dicativo simplista de “fracasso” do SUS, a regulamen-
a justificativa para a inserção no sistema privado para tação mostra que se tratou de colocar sob o controle
quem tenha condições para isso. Por sua vez, as opi- governamental atividades que já estavam suficiente-
niões sobre os planos privados não são muito positi- mente institucionalizadas, de forma que o dispositi-
vas, pois recebem críticas quanto ao seu caráter lucra- vo constitucional que garantiu a assistência pública
tivo em detrimento da preocupação assistencial, o que a todos por si só não desmoronaria. A regulamentação
se traduz em restrições de cobertura e preços muitos não fará nada mais do que completar o processo de

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consolidação do sistema de saúde dual do país, con- conjuntura autoritária, que permitiu a minimização
frontando a lógica da assistência médica como uma dos interesses particularistas, mas mostrou sua fra-
mercadoria ou um produto à lógica do SUS, baseada gilidade e descontinuidade no momento de implanta-
na noção de direito de cidadania, formalizando as con- ção da reforma sanitária, quando as alianças mais
seqüências de processos e de decisões anteriores e, amplas não lograram se sustentar. Após a redemocra-
principalmente, o arranjo dual. tização, as diferentes clivagens explicitaram-se e não
se conseguiu mais uma homogeneidade de propostas,
Conclusões tanto pelas fraturas ideológicas internas do movimen-
to sanitário e do movimento popular quanto pela re-
O processo de implementação da reforma da política tomada das questões meramente corporativas de ato-
de saúde definida na CF 1988 teve início na década de res que se tinham aglutinado ao movimento, particu-
1990 e é simplesmente a tradução concreta de deci- larmente, os profissionais médicos e os trabalhado-
sões, mas um processo ainda de formulação da políti- res e os sindicatos com maior nível de organização e
ca de saúde. Neste sentido, refletem não apenas os maior poder de barganha. Esses, embora mantivessem
efeitos do contexto político-econômico de ajustes e a o apoio ideológico ao SUS, no período de implemen-
reconfiguração da agenda pública, mas principalmen- tação, de fato não tinham muitos incentivos para uma
te os efeitos de feedback das políticas de saúde ante- transformação publicista da assistência à saúde que,
riores, que se traduziram na ausência de suporte po- pelo menos em curto prazo, lhes traria perdas objeti-
lítico, no subfinanciamento e na incapacidade de vas, na medida em que, na sua maioria, deveriam es-
publicização da rede de serviços, os quais funciona- tar vinculados a planos de saúde empresariais, a essa
ram como constrangimentos à implementação com- altura institucionalizados e constituindo-se, muitas
pleta da reforma da política de saúde nos termos de vezes, em objeto de negociação coletiva.
seus formuladores. Dentro desses limites, foram to- Por sua vez, os prováveis usuários do SUS, os seg-
madas decisões cruciais que redefiniram a reforma, mentos excluídos da assistência privada, seja pela
sendo as mais significativas, o estabelecimento do menor renda ou pela forma de inserção mais precária
marco regulatório da assistência privada, que explici- no mercado de trabalho, não demonstraram capaci-
ta a segmentação e derruba formalmente as preten- dade de mobilização que pudesse dar sustentação à
sões universalistas, e, as relativas ao financiamento, reforma, que, por suas características redistributivas,
que ainda são objeto de disputa. demandaria coalizões mais amplas, particularmente
No momento de implantação da reforma, a falta em uma situação institucionalizada de diferenciações
de suporte político efetivo de categorias sociais rele- e privilégios.
vantes, seja por sua atuação no setor saúde, ou seja, Essa falta de suporte refletiu na ausência de uma
por sua maior capacidade de mobilização, pode ser demanda universalista entre os trabalhadores e as ca-
visto como um efeito da trajetória da política de saú- tegorias profissionais que traduzisse a existência de
de, que teve como resultado a configuração de um sis- uma identidade coletiva e o desenvolvimento de valo-
tema dual, público e privado, que segmentou os usuá- res solidaristas que pudessem se expressar no apoio
rios a partir de sua inserção em cada um deles. Como efetivo à proposta do SUS. Nada disso foi favorecido
umas das conseqüências dessa segmentação, consti- pela trajetória de expansão dos direitos sociais no
tuíram-se preferências e representações sobre o públi- país, entre eles a assistência à saúde. Esta, ao contrá-
co e o privado pouco favoráveis ao SUS. rio, se deu com base em um modelo meritocrático, de-
O movimento sanitário, mentor principal da mu- senvolveu-se favorecendo as demandas corporativas
dança, não se constituiu como grupo de interesse, mas no âmbito das instituições previdenciárias e, após o
como conjunto de pessoas e instituições que em um surgimento e desenvolvimento da assistência empre-
momento singular de refundação democrática, parti- sarial, tornou-se um benefício particularizado, depen-
lharam um conjunto de valores éticos e de propostas dendo da forma de inserção no mercado de trabalho.
políticas e técnicas com o objetivo de democratização O veto implícito à implantação da reforma em sua
do sistema de saúde. Essa “identidade” foi forjada na completa acepção não veio dos segmentos favoreci-

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dos pela assistência privada. Por meio de mecanismos os costumes e os códigos de conduta, desenvolvidos no
indiretos, particularmente, a indefinição e a ausência contexto de experiências com o sistema dual, oferecem
de fontes estáveis de financiamento, o próprio gover- limitações informais, podendo ser impenetráveis a mu-
no não garantiu a viabilização dos objetivos da refor- danças no sentido de unificação da assistência à saúde.
ma. A aprovação da EC 29/2000, que teoricamente vin- De algum modo, as escolhas do passado naturalizam-
cula recursos dos três níveis de governo para a saúde, se e conformam a preferência por serviços privados.
não demonstra que a questão terá uma solução satis- Entretanto, apesar das restrições, o SUS foi se ins-
fatória. Como a principal fonte de recursos para cus- titucionalizando, inclusive pelo reconhecimento pú-
teio da assistência pública é de origem federal, as di- blico do direito à saúde. Nesse processo, outros atores
vergências relativas à base de cálculo para a definição se constituíram e passaram a disputar espaço na are-
da contribuição da União têm se traduzido em aloca- na da saúde, particularmente os gestores municipais
ção de recursos aquém do esperado com a aprovação e estaduais e os conselhos paritários, formados nos
da EC. A transferência dos encargos financeiros para três níveis de governo como exigência da legislação.
as unidades subnacionais de governo sugere o menor Além desses, dada a importância do SUS como o prin-
comprometimento do governo federal com o financi- cipal comprador de serviços de saúde, ele (o SUS) con-
amento do SUS, caracterizando um processo de invia- segue apoio, pelo menos nas questões relativas ao fi-
bilização sistêmica, mesmo que não se manifestem nanciamento, dos prestadores privados e dos profis-
propostas explícitas de redução programática do es- sionais de saúde, cujos interesses são diretamente afe-
copo do SUS. Por sua vez, o descumprimento da EC 29 tados pela política de saúde. Esse apoio é cheio de
por muitos estados sugere que as ações de saúde ain- ambigüidades, na medida que é dispensado da mes-
da não se tornaram uma prioridade. ma maneira ao segmento privado uma vez que os seg-
A conjuntura econômico-financeira não foi favo- mentos público e privado partilham, em grande parte,
rável à implantação do SUS, que, para sua efetivação, a mesma rede de serviços.
necessitaria de uma ampliação de recursos proporcio- Duas lógicas operam no processo de implementa-
nal à expansão da clientela e de suas atribuições, o ção da política de saúde: uma publicista, que visa via-
que não foi propiciado pela situação de recessão eco- bilizar o SUS, processo que de certa forma se tornou
nômica. Entretanto, isso não significa que o proble- irreversível, e outra privatista, que visa ampliar a co-
ma seja apenas a falta da capacidade de implemen- bertura por planos e seguros de saúde, constituindo,
tação, particularmente, financeira, pois isso pressu- ou consolidando dois segmentos diferenciados, que
põe que existiria, o objetivo estatal de implantação dos se traduzem em duas estruturas institucionais. Os
dispositivos constitucionais, ou seja, um sistema pú- dois processos confluem e conformam a política de
blico de caráter universal e igualitário. Ao que tudo saúde vigente, em um movimento ainda em formação
indica, um projeto publicista para a saúde não se cons- e que aponta para vários desfechos possíveis. As deci-
tituiu como objetivo governamental. Os princípios do sões dos implementadores no contexto econômico, po-
SUS conseguiram ser definidos como política de go- lítico e institucional em que operam apontam para a
verno em função de uma conjuntura privilegiada, ca- distância entre a concepção dos formuladores inici-
racterizada pela redemocratização, mas sua implan- ais da reforma e sua implementação, que tem sido, de
tação ocorreu em um quadro político dominado por fato, a consolidação de um sistema de saúde dual.
forças políticas conservadoras e em contexto marca-
do pela perda de apoio e legitimidade de políticas so- Entrevistas
ciais universalistas e pela valorização do mercado em
1. Rafael Guerra, médico, Deputado Federal pelo PSDB-
detrimento da ampliação da esfera de atuação do Po-
MG, em 26/5/2002.
der Público.
Outros efeitos da trajetória da política de saúde 2. Ruth de Lourdes da Conceição Costa. Diretora de
impuseram constrangimentos objetivos na consolida- Saúde do SINTEL e membro do Coletivo de Saúde
ção de um sistema de saúde de fato único. Se a ausên- Intersindical da CUT/MG, em dezembro de 2002.
cia de uma rede de serviços coloca limitações formais, 3. 90 moradores de Belo Horizonte, em junho de 2002.

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Recebido em: 24/02/2006


Aprovado em: 06/06/2006

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