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A posigao do Municipio no Direito Constitucional federal brasileiro Raut Macuapo Horta Professor Catedratico da Faculdade de Direlto da Universidade Pederal de Minas Gerais SUMARIO Duas constantes do Direito Constitucional federal O desdobramento da concepedo constitucional de 1891 |. Autonomia municipal, prinetpio constitucional da Unido © conteido da autonomia municipal na Constituigdo Fe- al A defesa judiciéria da autonomia municipal © Municipio no perlodo constituctonal pés-196¢ - Uniformidade e diversificagéo da organizacio local © Municipio e a competéncia de auto-organizagto Municipio e regido 1. aldo Federal, Estados, Aeunicipios ¢ Repidee Metropoti- Il. Redefinigdo da posieéo constitucional do Municipio 1. Em quase um século de experigncia constitucional republicana, a partir do texto classico de 24 de fevereiro de 1891, 0 Municipio tornou-se uma presen- ga constante no quedo de nossas instituigdes ¢ converteu-se em grande tema de debates e estudos constitucionais. O tratamento dispensado a esse importante — Conferéncia proferida no VIII Encontro Nacional de Procuradores Municipais, em 4 de janeiro de 1982. R. Inf, legisl, Brasilia a. 19 n. 75 [ub/set, 1982 107 nivel de governo local tem comportado variagdes de concepgdes, ora mais restritas, ora mais amplas na edificagao juridico-constitucional do Muniefpio, sem prejuizo, todavia, de sua presena nos textos constitucionais federais, Iden- tificando a presenga crescente do Municipio nos documentos constitucionais, pela expansao normativa da matéria a ele consagrada nas Constituigdes federais € estaduais do periodo republicano, assinalo, de inicio, a exclusio do Muniefpio entre os entes que compoem a Unido Federal, a Federagio ou a Reptblica Federativa, Essa exclusio é outra constante ¢ revela a coeréncia de principio da doutrina federal que as nossas Constituigdes sempre acataram, Esse com- portamento do constituinte federal, que ¢ incensurdvel no plano da estrutura jurfdico-constitucional da forma de Estado, contrasta com a absorgéo ascendente do Municipio pela Constituigéo Federal, 0 qual se tornon objeto de numerosas normas constitucionais relativas 4 organizagio, 20 funcionamento, A competén- cia e até A criagio de Municipios, indicando a expansio do enquadramento normativo do Municipio pela Constituigéo Federal, com a correspondente Simi- tagao da autonomia constitucional do Estado-Membro na sua fungdo organiza- téria do Municipio, no exercicio dos poderes reservados. O contraste entre a auséncia do Municipio no grupo dos entes publicos constitutivos da Federagao e a progressiva dilatagio das normas constitucionais federais relativas aos entes locais configuram duas tendéncias constantes na posicio do Municipio no quadro do Direito Constitucional brasileiro. Essa exclusio, que tem a intensidade de regra definidora da concepeao federal de Estado, realizou-se, originariamente, na Constituigao Federal de 24 de fevereiro de 1891 (art. 1°) e prosseguiu, sem interrupgées, nas Constituigdes Federais de 1934 (art. 19), 1987 (art. 3°), 1946 (art. 19 ¢ § 12) e 1967 (art. 1°). A auséncia do Municipio na composicio da Uniao Federal néo constitui originalidade do Direito Constitucional brasileiro. Trata-se de regra geral nas Constituiges dos Estados federais, 0 que confere singular eficdcia a esse principio universal da organizacio federativa, A Federagdo ou a Unido Federal sem a presenca dos Municfpios na sua composigao esté consagrada na Constituigdo Federal dos Estados Unidos Mexicanos, de 5 de fevereiro de 1917 (art. 43); na Constituigio Federal da Argentina, de 1° de maio de 1853; na Constituigdo Federal da Vene- zuela, de 23 de janeiro de 1961 (art. 9%); na Constituigio Federal da Austria, de 1? de outubro de 1920; na Lei Fundamental da Republica Federal da Ale- manha, de 23 de maio de 1949 (art, 20); no Ato Constitucional do Canad4, de 1867 (arts. 3° e 5¢); na Constituigao Federal da India, de 26 de janeiro de 1950 (1.1(2).(3)); na Constituigac Federal da Suiga, de 29 de maio de 1874 (art, 2°); na Constituigao da Repiblica Socialista Federativa da Iugoslévia, de 21 de fevereiro de 1974 (arts. 1° e 2°); na Constituicio Federal da Australia, de 19 de janeiro de 1901 (art, 106), e na Constituiggo Federal da Unido Sovié- tica, de 7 de outubro de 1977 (art. 70). A Constituig&io norte-americana, de 17 de setembro de 1787, que assinalou a passagem da Confederagio “uma uniio mais perfeita’, como se declara nas suas palavras introdutérias, cupou-se com as relagées entre os Estados e o Governo da Unido (art. IV), nos 7 artigos de seu texto origindrio, quase bissecular, nio se contém uma sé referéncia aos Municipios ou ao governo local, tema’ estranho ao documento jue se transformou, gracas A interpretagao judicidria da Suprema Corte e a0 funcienamento das instituigdes, no modelo mais antigo de organizagao federal do mundo moderno. 108 R. Inf. legisl. Brasilia a. 19 n, 75 jul./set, 1982 2. O desdobramento légico da concepgao constitucional que desconhecia 0 Municipio no plano da Uniéo Federal ou da Federagéo — por ser a Unido, historicamente, como no caso brasileiro, a resultante da aglutinagio de provin- cias que se tornaram Estados-Membros — deveria conduzir 4 excluséo do Mum- efpio do dominio da Constituigao Federal. Dentro dessa perspectiva, 0 Munici- pio seria “assunto doméstico das provincias”, retomando-se na Republica Fe- deral a versio liberal do Ato Adicional de 12 de agosto de 1834. Dai adveio a retraida posigao da Constituigao Federal de 1891, que, concebendo a Federagio como o produto da unio indissoltivel das antigas provincias, deferiu aos Esta- dos a otganizagio dos Municipios, tarefa apenas limitada pelo respeito “ao peculiar interesse ”, que o famoso artigo 68 da Constituigao de 1891 nao definiu. Os Estados esgotaram na amplitude de sua autonomia a organizagio municipal, submetendo 0 governo local aos rigores do controle hierérquico, como é visivel na permitida “anulagao das deliberagoes, decisoes ou quaisquer outros atos das CAmaras Municipais” por érgios do Estado, pratica que se generalizou no Di- reito Constitucional estadual da Primeira Republica (cf. FELIsBELLO FRETRE — As Constituigées dos Estados e a Constituigaéo Federal — Rio de Janeito — Im- prensa Nacional — 1998, pag. 69) . Praticas desse estilo geraram “o confisco geral da municipalidade” pelo Estado, a que se referiu Rut Barsos, ao analisar a legislagao ordindria do Es- tado do Cearé, em matéria de organizagio municipal (Obras Completas de Rui Barbosa — vol. XXV — 1898 — tomo II — A Imprensa, pag. 190). Reedita- va-se a versio mondrquica das Camaras Municipais, corporagées meramente administrativas, para cuidar do “governo econdmico das cidades e vilas”, sem dispor de fungéo legislativa propria e confinadas, as CAmaras, @ edigio de posturas sobre matérias de alcance reduzido, para cada caso, como detalhavam ‘as minuciosas atribuigdes administrativas da Lei Imperial de 1° de outubro de 1828, também chamada de - Regimento das Camaras Municipais do Império. A anizagio vertical do Municipio, que ¢ dominante no perfodo republicano, admitiu abrandamentos, pare autorizar na Constituigaio do Estado o principio da auto-organizagio municipal, mediante a elaboragio pelas Camaras locais das cartas préprias ou leis orgdnicas, como nos casos isolados das Constituicdes Es- taduais do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, na Primeira Republica (cf. a pe Castro Nunes — Do Estado Federado — Editores Leite Ribeiro e jaurillo — 1920, pags. 129-30). Com essas leis organicas locais criava-se verda- deira comunidade juridica descentralizada, um ordenamento juridico parcial, responsivel pela expedigao de normas dotadas de validez para esse ordena- mento local. 3. A indiferenga da Constituigo Federal de 1891 pela organizagio munici- Pal provinha da rejeigio pela Constituinte de 81 das solugdes que propuseram a fixagio prévia das bases do regime municipal (cf. AGENoR pz Roure — A Constituinte Republicana — vol. I] — Imprensa Nacional — Rio de Janeiro — 1018, pigs. 205 ¢ 208). Preferiu-se o enunciado genérico do artigo 68: “Os Estados organizar-se-fo de forma que fique assegurada a auto nomia dos Municfpios em tudo quanto respeite ao seu peculiar inte- Tesse.” Re Inf, legis! Brasilia a, 19 n. 75 jul./set. 1982 109

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