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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Graduação em Ciências Sociais

CLARISSA TORRES DE AGUIAR

TRABALHO FINAL DA DISCIPLINA:


Arqueologia do capitalismo

Uma revisão crítica e comparativa dos artigos Cosmologias do Capitalismo de


Marshall Sahlins e El Huevo de la Serpiente, de Tania Andrade Lima

Professor: Luiz Claudio Symanski

Belo Horizonte
Fevereiro de 2017

Este trabalho consiste em uma revisão crítica e analítica de dois artigos: Cosmologias
do Capitalismo, do antropólogo estadunidense Marshall Sahlins, e El Huevo de la Serpiente,
da arqueóloga brasileira Tania Andrade Lima. Ambos abordam situações e configurações
sociais decorridas do período de expansão do capitalismo no período imperialista entre os
séculos XVII e XIX, em sociedades “periféricas”1, longe do centro de difusão, a Europa
ocidental. Cada uma delas - a sociedade carioca do século XIX estudada por Tania Andrade
Lima; o império Chinês da Dinastia Qing, no mesmo século; os chefes locais das Ilhas

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Entendidos como periféricas por teóricos do “sistema mundial”.
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Sandwich; e os Kwakiutl da costa noroeste dos EUA no período pós contato, estes três
últimos estudados por Sahlins - apresenta uma forma própria de significação e uso das
manufaturas europeias, em outros esquemas de cultura material e práticas cotidianas,
contrastantes à práticas e significados das sociedades de origem destas mercadorias. Para
entender cada uma delas, é preciso também compreender a fundo a sociedade Franco-Inglesa,
para compor as relações e ressonâncias com as outras partes do mundo, e assim, compor o
mosaico que é o capitalismo. O processo de desenvolvimento deste sistema, não é uniforme e
nem padrão, mas sim gerador de tensões e multiplicidades. (LITTLE, Bárbara. 2014)
Segundo Marshall Sahlins, o sistema mundial é, na verdade, a expressão racional de uma
lógica cultural relativa, ele depende das várias maneiras pelas quais as mercadorias são
mediadas nos esquemas culturais globais. Discutiremos mais a fundo a seguir.

Cosmologias do Capitalismo: o setor transpacífico do “sistema mundial”

O artigo foi publicado em 1988, compondo o livro “Cultura na Prática” de Marshall


Sahlins. Este é um autor pós-estruturalista, que investiga as estrutura na ação, no evento, a
práxis no tempo histórico. Suas pesquisas se debruçam sobre o passado dos sujeitos e
situações pesquisadas, elaborando uma antropologia que dialoga com a história, podendo ser
até uma antropologia histórica.
Neste texto, ele aborda a problemática da formação do sistema mundial se
contrapondo à ideia de que a expansão do capitalismo transformou os povos colonizados em
objetos passivos de sua própria história, tendo sua cultura extorquida. Em sua perspectiva, as
relações e bens do sistema mais amplo adquire lugares de sentido dentro e a partir do próprio
sistema de mundo nativo. Não é negar as forças devastadoras da modernidade, mas entender
que o próprio sistema depende da forma como as forças materiais são entendidas nos
esquemas culturais locais. A ordem global foi sim moldada pelos povos chamados periféricos
pelas maneiras como estes articulavam o que lhes estava acontecendo.
Sua argumentação então se desenvolve em uníssono ao “coro antropológico” que
protesta contra a teoria dos sistemas mundiais - desenvolvida por Immanuel Wallerstein - que
entende o mundo capitalista por sua divisão de trabalho e divisão espacial hierárquica entre
centro e periferia, entendendo os povos não europeus como subjugados e vítimas silenciosas
do próprio fim. Nesta teoria só haveria a estrutura e regras fornecidas pelo capitalismo.
Teóricos como Eric Wolf também questionaram esse unilateralismo da história e o
compulsivo apagamento das outras histórias. Mas Sahlins também se posiciona em crítica às
leituras utilitaristas-marxistas: que entende a cultura como modo de produção. Segundo o
autor, Wolf também operaria nesta chave.
É dialogando com o conceito marxista de produção como apropriação da natureza,
que Sahlins afirma que um modo de produção não especifica nenhuma ordem cultural - é na
verdade uma forma histórica e culturalmente localizada de entender as necessidades
humanas. A cultura é, para o autor - e para toda sua linha teórica - , fruto de circunstâncias
pragmáticas, construída em relação (com a natureza e com pressões de outras sociedades).
O principal conceito a ser desenvolvido no artigo é de desenvolvi-gente, traduzido do
inglês develop-man. Que tem haver com a coerência cultural que vai adquirindo a situação e
elementos estrangeiros, de natureza distinta da sociedade de origem. Em alguns casos o
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processo de crescimento do capitalismo pode gerar um desenvolvimento no termo nativo, em


uma continuidade cultural. Do ponto de vista das populações locais, pode ser que a
exploração do sistema mundial possa significar um enriquecimento social, “mesmo havendo
transferência da força de trabalho para a metrópole, com taxas de câmbio desigual” (p.447)
Entretanto, afirma também que a colonização pode vulnerabilizar o desenvolvi-gente
local a mais longo prazo. Esta questão não foi bem trabalhada ao longo do artigo, sendo a
dimensão do poder apontada, mas obliterada.
Sahlins usa como palco para seu laboratório teórico a expansão do comércio no
pacífico, e usa os estudos de três casos de pesquisas anteriormente realizadas por ele. Para tal,
articula fontes documentais históricas, como relatos de viajantes e expedicionários europeus,
assim como fontes escritas nativas, e também outras pesquisas etnográficas, históricas,
contemporâneas.
No século XVIII, George Macartney é enviado à China pela sua majestade Britânica
George III para presentear o imperador Quianlong em seu octogésimo aniversário, no intento
de fascinar os chineses com as mais novas e esplendorosas mercadorias inglesas - advindas
das últimas invenções industriais. O Imperador Celestial responde em uma carta, endereçada
a um monarca subalterno, reconhecendo humildade e obediência em render homenagem ao
poder da dinastia celestial que governa dentro dos quatro mares - trazendo objetos raros de
terras longínquas - assim como fizeram inúmeros outros. Mas não lhe interessava os objetos
engenhosos nem nenhuma manufatura inglesa. Outros imperadores também descartaram as
coisas do ocidente.
Para entender o insucesso das mercadorias inglesas na China daquela época, é preciso
pesquisar o esquema de significados próprios àquela sociedade que mediava os elementos
externos. O imperador Chinês era a o imperador celestial, o mais alto poder mundano, que
mediava o terreno e o espiritual. O palácio celestial era o berço da civilização, e ponto central
de sua irradiação. Nesta concepção tradicional chinesa, a civilização parte do centro
metropolitano, alcançando as outras partes do mundo em círculos concêntricos: “(a) os
domínios reais, (b) as terras dos príncipes e senhores feudais sob tributo, (c) a ‘zona de
pacificação, (d) a zona de bárbaros aliados e (e) a zona de selvageria sem cultura.” (p.467)
Quanto mais longe do coração imperial, mais afastados os povos da cultura e
civilização. Os ingleses, ao oferecerem suas mercadorias ao imperador Celestial para tentar
persuadi-los à compra, estavam, na verdade, oferecendo tributos e demonstrando devoção e
aliança. Eram, portanto, bárbaros aliados de terras longínquas (quase à borda do mapa)
tentando se voltar à civilização..
Os objetos de sortes mais variadas e esplendorosas esquisitices eram colecionadas
pelos imperadores em seus palácios afastados, localizados nas zonas mais sinistras do
equilíbrio cósmico. A posse desses objetos afirmava a extensão do poder imperial até as
terras de onde eram originários.
Até mesmo a população demonstrava desprezo por tudo que vinha dessa cultura e
terras bárbaras. Sahlins cita Thomas Meadows, que apesar do fato de ser um arqueólogo
funcionalista (vista como uma linha metodológica equivocada), diz que os chineses não
partilhavam da teoria ocidental de associação sistemática entre tecnologia e civilização. Para
os ingleses, os seus presentes eram signos auto-evidentes de sua preeminência. Mas para os
chineses não passavam de esquisitices vindas de um mundo externo e de categorias borradas.
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“‘Essas coisas são curiosas, mas qual a sua serventia? Os europeus entendem que a
arte do governo é igualmente refinada?’ (Citado em Proudfoot, 1868, p.50)” p.460
Ao ver um navio inglês, por exemplo, os chineses não pensavam que eram
necessariamente advindos de um povo inteligente e portanto de uma civilização elevada. “Se
houve um dia quem tentasse ensinar a missa ao vigário, este era o povo britânico ao levar
signos de civilização para os chineses.” p.459.
Para o capitalismo europeu o desprezo chinês custava caro. Sendo, por quase
trezentos anos, a China um cemitério de prata inglesa, uma vez que a balança comercial era
completamente desfavorável devido ao compulsório e deusificado consumo de chá asiático
na Europa. O rápido sucesso e popularização do consumo dessa bebida quente, logo o tornou
indispensável, fazendo com que os governos europeus investissem em uma corrida
desesperada na busca de mercadorias do pacífico que pudessem interessar aos chineses. A
balança comercial só se demonstrou equilibrada quando os ingleses conseguiram incutir um
vício ainda maior do que aquele do chá: o ópio indiano.
Foi neste contexto de criação de novas rotas comerciais transpacíficas, que os ingleses
também descobriram novas fontes promissoras de mercadorias lucrativas e de valor
significativo para os asiáticos: o sândalo e o comércio de pele.
As ilhas Sandwich, no chamado Havaí, e o povo Kwakiutl, na denominada Costa
Noroeste dos EUA, são casos estudados pelo autor em que o comércio ocidental possibilitou
processos surpreendentes de desenvolvi-gente. em contradição ao desprezo chinês pelas
mercadorias ocidentais, os chefes havaianos, em razão do seu próprio status celestial, nunca
tinham o bastante. O problema político em questão é como diferenciar os poderes sagrados,
uma vez que os poderes ancestrais são unidos em uma só genealogia universal. Eles
disputavam seu status e posição genealógica tradicionalmente através do sistema de
casamentos e sacrifício de inimigos. Mas mesmo depois de o rei ter abolido a antiga religião
a disputa entre os chefes continuava, e agora através da competição por bens estrangeiros,
cada vez melhores e diferentes. Os produtos comerciais eram extensões dos corpos sagrados
dos chefes. Entretanto, com o tempo os chefes estavam obsoletos. A explicação pela lógica
econômica entenderia que o consumo excessivo dos chefes não conseguiu ser sustentado,
pelas explorações comerciais das ilhas, sendo a importação de sândalo insuficiente para
manter tal sistema. Mas outra mirada indica ser um processo nativo em que os chefes
perderam sua importância.
E por uma forma análoga, os índios Kwakiutl conseguiram preservar por quase dois
séculos o sistema de Potlach, mesmo depois das investidas coloniais e “absorção pelo sistema
mundial”. Eram exímios trabalhadores assalariados, mas os brancos enervavam-se com o que
frequentemente faziam de seus rendimentos: empilhar montanhas de cobertores da bahia ou
objetos esquisitos. Para o que? Fazer doações colossais. Não é mesmo um comportamento
factível na cosmologia capitalista. Mas os índios, a partir do sistema do Potlach, “queriam
uma quantidade cada vez maior de um mesmo produto, signo padronizado de poderes
universais, que, ao ser publicamente distribuído, tecia comparações quantitativas de suas
qualidades qualitativas” p.483
Não seria o chá para a Europa também um exemplo de desenvolvi-gente? Sahlins não
faz esta inferência diretamente, mas aponta para o fato de que, como em qualquer outro, a
função prática consiste num modo particular de proporções cósmicas. O fetiche empregado a
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esta mercadoria seria então a maneira nativa de dar uma posição de valor e significado -
dentro do próprio esquema cultural, potencializado pelo sistema comercial capitalista. A
cosmologia burguesa, fez das necessidades humanas - que são construídas social e
temporalmente -uma percepção subjetiva de aflição corporal, sendo necessário empregar
medidas e prata2 para satisfazer o desejo, gerar prazer.
O capitalismo então seria composto pelas fraquezas humanas, passíveis de serem
comercializáveis. É justamente o “fetiche” o que traduziria as ontologias culturalmente
relativas.

O OVO DA SERPENTE

Tania Andrade Lima é uma das mais importantes teóricas e pesquisadora em


arqueologia histórica no Brasil. A disciplina vem sendo associada ao estudo do
desenvolvimento e expansão do capitalismo no mundo, a partir do século XV. É uma
disciplina que busca investigar os aspectos materiais em termos históricos, culturais e sociais
concretos, percebendo os efeitos do capitalismo, que continuam em ação até os dias de hoje.
Aproximando mais de sua linha teórica, há uma preocupação em investigar as
relações de poder presentes no sistema no que diz respeito à manipulação da cultura material
dos que impõem, no sentido da dominação - e dos que resistem a este sistema.
Neste artigo, a autora discutirá as drásticas mudanças ocorridas na sociedade carioca
do século XVIII e XIX. período essencial para a formação social do país, quando ocorreu
uma introdução de um modo de vida burguês. É uma forma de comportamento que se
instaura na Europa no período de afirmação da burguesia, mas que já existia mesmo antes das
revoluções. Há uma crescente força das ideologias de privatização, valorização da
individualidade, separação entre público e o privado, ritualização da vida cotidiana,
valorização da família, a fetichização do consumo e ascensão social. (p. 190)
As drásticas mudanças ocorrem nos âmbitos políticas, econômicos, jurídicas, sociais,
e fortemente psicológicos e culturais: são novas formas de pensar, de ser socialmente e de se
compreender. O que transparece na cultura material. A arqueologia histórica vai buscar
justamente a dimensão dos costumes, das práticas rotineiras ocultas aos documentos
históricos e que muito revelam do inconsciente de uma sociedade.
Andrade Lima dialoga muito com Michel Foucault na compreensão do poder e no
conjunto de normas, valores e princípios fundados como instrumentos de poder. Em seu
trabalho ela discute muito a biopolítica, pela percepção de estratégias sutis de dominação,
compreendendo o exercício do controle sobre as mentes através de táticas disciplinares do
capitalismo sobre todos os aspectos da vida humana. Aqui, pesquisada no interior das
residências, nos comportamentos individuais de cuidado com o corpo, na arquitetura, nas
louças. A casa seria o lugar de mediação e ressonância entre os padrões socioculturais e a
realidade intra psíquica das pessoas.
No sociólogo Bourdieu, ela trás a noção de capital cultural - cara à burguesia
ascendente - e de como se dá a formação do habitus, essencial à distinção social, que vai

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A prata usada aqui como sinônimo de “dinheiro”, capital, mas também em alusão aos montantes de
prata compulsoriamente retirado das américas para satisfazer o desejo do chá.
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ganhando novos trejeitos, novas estratégias para diferenciação de classe. A incorporação nos
comportamentos, nas etiquetas, nas roupas, nos túmulos. A autora também dialoga com
outros trabalhos de sociologia que estudam a formação da sociedade capitalista (inclusive no
Brasil), trabalhos de antropologia que se voltam para este período, e é impressionante a
diversidade de suas fontes: ela complementa as fontes materiais com fontes históricas
variadas, como diários de viajantes europeus, romances de Machado de Assis, livros de
medicina da época, revistas femininas, manuais de etiqueta, etc.
As partes do artigo de pesquisa, propriamente dita, são apresentadas em três grandes
seções: As representações da morte; As rotinas íntimas com o corpo; A ritualização da vida
cotidiana.
As representações da morte
A primeira pesquisa foi no intuito de tentar perceber mudanças na representação da morte.
Foram analisados mais 2500 túmulos em cemitérios cariocas do século XIX e início do
século XX. Anteriormente localizados próximos às igrejas e aos centros urbanos, e neste
período os cemitérios foram levados para regiões afastadas, um tipo de medida de controle
sanitário realizado nas grandes cidades.
Foram identificados três grandes padrões simbólicos nos túmulos, sendo eles
1) Padrão Inaugural: entre 1850 e 1888
Período de decadência da monarquia escravagista, em que a base da economia ainda era a
produção de café, As sepulturas eram de grande qualidade artística, feitas artesanalmente,
importadas da Europa, expressando valores dos segmentos dominantes. As representações da
morte eram escatológicas, macabras, mórbidas: elementos noturnos, morcegos, caveiras,
ossadas, serpentes, figuras fantasmagóricas. Mais acentuado nas décadas iniciais, este padrão
vai perdendo força na medida que declina o sistema escravagista.
2) Padrão de transição: 1889 - 1902
Período correspondente à ascensão do capitalismo, com o fim do império e a
proclamação da república até o final dos primeiros governos militares. Fase de constante
instabilidade política, econômica e social. Os símbolos escatológicos foram substituídos pelo
símbolo da cruz, que não carregavam o sentido religioso, mas apenas a indicação de que
havia um morto. Há um claro empobrecimento da arquitetura tumular. Não se investia na
morte, a morte não lucrava. Parece haver uma conexão com a ideologia positivista que
impregnou a sociedade da época, com princípios de solidariedade, unidade da espécie
humana e a irmandade entre as classes. O esvaziamento do culto romântico sugere a
ascendência de valores racionais. Estes valores e a representação da morte na verdade
encobriam o seu contrário “Era a imagem invertida de uma sociedade que as desigualdades se
acentuavam mais” p. 196.
3) Padrão de consolidação: 1903 - 1930
Reativação da economia e crescimento econômico. Estávamos em um governo civil e
de grandes invenções. A morte era agora um grande espetáculo para demonstração de forças
e de riquezas. Os anjos são triunfais, as estátuas transmitem emoção, sensualismo, mobilidade
- a mesma mobilidade que a república conferiu às camadas médias. Substitui-se o pudor com
relação ao sexo pelo pudor em relação à morte: a representação da vida no espaço da morte.
Um tabu, um encobrimento, uma sociedade que não suporta o enfrentamento com sua face
sombria - a violência cada vez mais velada e cruel.
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As rotinas íntimas com o corpo


Com a intenção de saber se o fenômeno encontrado nos cemitérios seria também
detectado em outros domínios, Tania Andrade fez uma pesquisa nas unidades domiciliares
rurais, semi-rurais e urbanas. As escavações foram feitas em locais de depósito de lixo
doméstico e com ênfase nos vestígios de procedimentos de cuidado com o corpo, entendendo
estes costumes como mediadores entre o indivíduo e o mundo. Foram encontrados em todos
os sítios muitos objetos destinados à excreção de líquidos corpóreos, de estímulo à evacuação
(frascos de substâncias laxantes, injeções para a remoção de excrementos) assim como
objetos para recolhimento de excretos: urinóis, cuspideiras, dispostas em vários locais das
casas.
A maneira de lidar com estas exalações e excreções variou muito no tempo e no
espaço, sendo o corpo humano percebido de maneiras muito distintas e associados a culturas
materiais diversificadas. A chegada da corte portuguesa no Brasil incentivou novos hábitos,
sendo extremamente importante para o desenvolvimento do capitalismo e para a indústria
inglesa a quebra de velhos padrões coloniais. Ao longo do século XIX, as emanações do
corpo foram se tornando insuportáveis (a higiene que foi se instaurando mudou
significativamente a percepção do olfato). Daí o hábito da toilette .Neste contexto, a ideologia
de higienização foi uma das maiores sustentações do projeto burguês, valorizando a
regularidade, a ordem. “ (...) o corpo e suas cavidades foram apropriadas pelas sociedades
burguesas do século XIX, que privatizaram e ritualizaram o comportamento - antes público -
a eles associados (...)” p. 201.3
Mas com isso mescla-se a antiga medicina dos humores, de hipócrates, de equilíbrio dos
quatro elementos do corpo. Esta compulsão pela liberação dos fluidos corporais significava
uma desobstrução.
A sociedade escravista do século XIX que começou a ter estratégias de higiênie
pessoal e alguns direcionamentos e restrições para com o corpo - valores modernos
relacionados - em oposição lidava abertamente, de maneira escatológica, com seus
excrementos, sangue e catarro. Diferentemente da sociedade burguesa do século XX, que
dissimulou e escondeu completamente seus fluídos corporais, relegados ao seu lugar certo:
dentro do corpo.

A Ritualização da vida cotidiana


Fragmentos de louça foram os principais vestígios recuperados nas escavações do
século XIX, e devem ser compreendidas não apenas pela sua função, mas pelo lugar
simbólico. Em primeiro lugar, o símbolo aristocrático que elas conferiam acabou gerando
uma febre histérica de compra de louças nessa sociedade que almejava o status social das
elites suisgeneris, europeias. E, além disso, as outras classes copiavam e procuravam
similares mais populares - e a moda se propagava rapidamente de cima pra baixo - ávidas por
sinais de identificação com os mais ricos, com o poder, em um momento de intensa
mobilidade social. Junto a isso, o interesse da indústria inglesa de louças, que em pleno
período escravagista encontrou um mercado de massa promissor no Brasil.

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tradução minha.
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A necessidade fisiológica de se alimentar continuamente de alimentos fez com que a


burguesia se apropriasse disso e fizesse das refeições atos rituais diários, que ordenam e
demarcam os limites sociais.
O jantar: Transformada em cerimônia, com suas muitas e quase imperceptíveis regras, a sala
de jantar era um lugar sagrado para reafirmação dos laços familiares, fazer alianças, e
negociava posições na hierarquia social. Com um crescente aprofundamento das oposições
altamente simbólicas de público e privado, masculino e feminino, frente e fundo, escuro e
claro (associados respectivamente), a casa sofreu modificações arquitetônicas significativas,
separando aquele ambiente de uso exclusivo dos habitantes da casa para suas atividades
privadas - dormir, procriar, fazer higiene pessoal, serviços domésticos (altamente associado
ao feminino) do local público (masculino). A sala de jantar separada do local de preparação
de alimentos, em um lugar mediador entre estes dois domínios, era o limítrofe entre o público
e o privado. As louças de cores fortes, marcadas por desenhos de castelos, brasões familiares,
relacionadas à simbologia do poder, expressa o forte domínio patriarcal sob o ritual da janta,
sendo que as mulheres muito pouco apareciam, ou timidamente participavam. nessas ocasiões
nas casas brasileiras.

O Ritual do Chá:
A Europa com sua grande fascinação pelos produtos asiáticos começou a usar o chá
efetivamente como bebida social a partir século XVIII, a partir da diminuição do preço do
produto e melhor acessibilidade. O ritual do chá, mais precisamente o chá da tarde, sua
modalidade mais significativa, era uma inversão da janta. O primeiro acontecia numa sala de
visitas, com uma mesa pequena, um equipamento próprio para este uso, comidas leves e
doces que podiam ser comidas com a mão, conversas descontraídas, e completamente
conduzido pela senhora da casa, a única que tocava a chaleira. Na década de 1880, na
Inglaterra, começaram a surgir os primeiros vestidos para o chá, que eram frouxos e
confortáveis, em oposição ao uso constante do espartilho. Neste curto período de tempo o
corpo era parcialmente liberado, mas logo voltavam a colocar esta peça para comparecer ao
jantar, território masculino.
No Brasil, o ritual do chá era uma versão torta e patriarcal do chá da tarde. A pequena,
tímida e ousada mesa do chá inglês foi tragada e substituída pela grande mesa de jantar, e
mesmo servido pela mulher, era realizado no comedor. Os vestidos frouxos para o chá
demoraram cem anos para chegar ao Brasil, e mesmo assim não obtiveram sucesso. Esta
sociedade criou um ritual híbrido, aberrante para os europeus. Ela lutava com suas próprias
contradições, tentando dar espaço à sua nova face moderna, liberadora e antiescravagista,
mas ao mesmo tempo retrógrada, aprisionada, ligada a valores e interesses antigos.
Esgotada enquanto estratégia, o chá perdeu sua função paulatinamente, tendo
sucumbido no final do século XX.
A autora conclui costurando todas as três pesquisas, sendo que a análise da cultura
material recuperada do Rio de Janeiro no século XIX, em comparação com a do século
anterior, indica uma forte transformação em todos os âmbitos da vida cotidiana daquela
sociedade, tendo grande relação com a chegada da corte portuguesa no Brasil e abertura ao
mercado capitalista. Os impactos nos pequenos detalhes são claramente visíveis e
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perceptíveis - e aqui ela explica o título - transparente como o ovo da serpente este processo
de imposição de uma nova ordem e com a consolidação de um modo de vida burguês. O
desenvolvimento substancial se dá no século posterior, em que a nação brasileira se vê
integrada - numa posição que é pra ela dependente.

A comparação:
Ambos os artigos estudam situações à “borda”, nas “periferias” do sistema mundial, e
o processo de imposição do esquema capitalista de organização econômica e cultural.
Entendendo estes dois domínios como juntos e separados, quero dizer, que para a história do
poder e do imperialismo, todos estes lugares no século dezoito faziam parte do complexo
sistema globalizado mercantilista, exercendo alguma função na sistemática divisão do
trabalho. Mas o que estes estudos nos contam são as pluralidades e diversidades de formas
únicas e nativas de dar coerência ao sistema estrangeiro: não sendo nunca as mesmas
maneiras e valores que davam os povos europeus do topo da cadeia. A divisão era sobretudo
cultural, mesmo que completamente integrados nunca iguais aos originais. Penso claramente
na sociedade carioca das investigações de Tania Andrade que copiava os costumes europeus
transformando-os em aberrações dignas de riso pelos viajantes do primeiro mundo; ou os
índios Kwakiutl, exímios trabalhadores, mas que com seu salário e tempo livre se dedicavam
às atividades e consumo para o sistema do Potlach; ou os imperadores chineses que apenas
colecionavam as esquisitices advindas dos mundos bárbaros como extensão do seu poder de
civilização.
É interessante reparar o diálogo temporal estabelecido entre os dois artigos, ambos
concentrados a maior parte do tempo no século XIX, período de expansão do comércio
europeu e de grande circulação de mercadorias. Momento de extrema relevância histórica, e.
aparentemente, imbuídos de uma singularidade, quase explícita - que mesmo Tania dizendo
ser transparente, é muito óbvio - na história desses povos.
Apesar do autor americano questionar veementemente o fatalismo histórico das
culturas pelo englobamento e maceração pela ordem mundial, este período é considerado por
ele o melhor “palco” para percepção destes motores históricos nativos. Portanto, o foco do
trabalho é justamente nestes casos localizados temporalmente. Tudo o que está depois é
menos palpável e é mais difícil de identificar os processos de desenvolvi-gente. É importante
sua colocação de que “fracasso” dos modos de vidas tradicionais seriam relativos aos seus
próprios novos modos de vida, crises de seus próprios percursos. Como por exemplos os
chefes hawaianos que se tornaram obsoletos, ou a dinastia Manchu ter decaido por um ciclo
dinástico próprio, e assim como também se parou de usar o chá como ritual no século XX.
Faço um questionamento esse vigésimo século, pensando nas forças desiguais
atuantes nas situações que incidem sobre as possibilidades de escolhas do próprio destino. É
evidente que talvez caiamos no mesmo fluxo de interpretação eurocêntrica da história,
pensando que todas as razões do percurso são devidos aos nossos próprios motivos: leis
econômicas de exploração. Mas relembro uma passagem do “Cosmologias do Capitalismo”
em que os presentes de Macartney ficaram no Palácio de Jehol até que fosse incendiado pelas
investidas coloniais. Quais são os principais motores neste caso? Tania Andrade Lima
também não vai mais além nas conexões com esse futuro do tempo estudado, mas aponta
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para um outro período, marcado pela consolidação e desenvolvimento pleno do capitalismo,


ficando o Brasil completamente integrado e dependente no cenário internacional. Talvez
neste ponto haja uma diferença quanto à orientação teórica e elementos de articulação das
análises dos dois artigos: ela investiga o capitalismo embrionário. Sahlins os desenvolvi-
gente.
A autora brasileira leva bastante em consideração em sua análise os impactos
advindos da mentalidade estrangeira das metrópoles, delineando muito mais as constantes
interações e comunicações entre a Europa e a América, recorrendo até às revistas de moda
feminina, por exemplo. Mas quiçá esta não era uma característica própria a essa população
carioca oitocentista? O vislumbre com os costumes europeus e por isso essa clara referência.
A arqueóloga é muito mais minuciosa em sua análise, descrevendo os padrões da
cultura material encontradas e suas estreitas relações com o contexto político, econômico,
psicológico. Este mapa de entendimento das sociedades passadas, através da arqueologia
histórica, é muito completo e promove sinapses mais profundas. Inclusive todas as três
pesquisas abordadas no artigo são focadas numa mesma sociedade sendo cada uma delas
partes e respostas à um mesmo fenômeno: a transição da sociedade escravista para república
burguesa.
Sahlins busca povos bem distantes em muitos aspectos. É muito impressionante como
o autor consegue fazer a construção de caso, também buscando em variadas fontes e dando
um panorama muito completo, mas em comparação com o artigo de Andrade Lima parece, no
limite, superficial. Senti falta de aprofundamento e detalhismo em cada um dos casos, que
são universos particulares de história. Entretanto, mesmo buscando casos longínquos, sua
teoria desenha uma continuidade entre eles, motivos nativos de mediação de elementos
estrangeiros e interligados por processo de exploração de novos mercados consumidores e
recursos para as indústrias europeias, acionados pelo louco e desesperado fascínio pelo Deus
CHÁ.
O chá é o elemento de maior diálogo entre os dois textos analisados. Sahlins retoma
uma racionalidade burguesa ocidental que transforma o homem em uma máquina do prazer e
dor, que busca o que faz bem e afasta o que faz mal. Compete-lhe um fetiche supremo sobre
tudo que é necessidade humana, modificada em experiência subjetiva de aflição corporal.
(SAHLINS. p.485) O fascínio pelos produtos asiáticos eram, a princípio, o que eles
significavam de cura, eram remédios para uma Europa adoecida e pecaminosa. Mas logo o
chá começou a ser valorado por razões outras que apenas suas substâncias químicas. Aí que
Tania Andrade nos ajuda a compor estas motivações, ao estudar o ritual do chá na Europa.
Importante por ser ritualístico, gerava manutenção dos princípios de organização
social, e significava um respiro essencial de equilíbrio entre oposições: colocava em contraste
o domínio feminino de descontração, intimidade, informalidade com o domínio masculino de
fortes regras, formalidade, negociações com o público, entre muitas outras contradições
daquele mundo. Ambos os autores alertam sobre o fato de, na Europa, o chá sempre ser
servido com o açúcar. Introduzido na Inglaterra e França a partir do século XVI, o seu
consumo se tornou básico, sendo indispensável nas bebidas quentes. A arqueóloga nos conta
da importância desta substância no processo de transformação da casa em lar, lugar
confortável para se viver, aconchegante e adornado, “home sweet home”, uma intensificação
do privado, sendo também parte da estratégia feminina (sendo a mulher excluída da vida
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pública e confinada ao ambiente familiar) de trazer o homem à casa, para que fizesse ali o
que desfrutavam fora dela. Antigamente o chá era tomado em locais públicos frequentados
por homens. É depois de sua transposição ao ambiente doméstico que as mulheres se
apoderaram deste espaço para estabelecer suas próprias relações sociais e políticas.
Uma última inferência pessoal e sem nenhuma pretensão é de que o açúcar para o amargo do
chá seria como uma representação de uma tentativa de reestabelecer equilíbrio entre os
grandes divisores binários das categorias franco-inglesas-burguesas-capitalistas. Assim como
uma louça negra (masculina)- no meio do equipamento de chá (femininos), o vestido froucho
do afteernoon tea no meio de uma rotina de espartilho, uma cuspideira adornada no meio da
sala (face escatológica junto à face moderna), ou mesmo uma estátua sensualizada em uma
sepultura. Estas tentativas são como remédios para curar as “fraquezas” deste povo: geradas
justamente onde mora a sua contradição e os seus medos. São as necessidades humanas,
culturalmente fabricadas, transformadas em fetiches e compráveis em qualquer esquina.

BIBLIOGRAFIA:
-SAHLINS, Marshall David. “ Cosmologias do capitalismo: o setor transpacífico do “sistema
mundial”. In Cultura na prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. 677 p.

-Lima, Tania A. “El Huevo de La serpiente: una arqueologia del capitalismo embrionário en
el Rio de Janeiro del siglo XIX”. in Sed non satiata: teoria social en la arqueologia
latinoamericana contemporanea. Buenos Aires: Ediciones del Tridente, c1999. 287 p.

1994 De morcegos e caveiras a cruzes e livros: a representação da morte nos cemitérios


cariocas do século XIX. Anais do Museu Paulista, Nova Série, História e Cultura Material,
São Paulo, vol.2: 87-150.
1996 Humores e odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século XIX.
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-Little, Barbara. Povos com história: uma revisão da arqueologia histórica nos Estados
Unidos. Vestígios 8(2). 2014

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