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Belo Horizonte
Fevereiro de 2017
Este trabalho consiste em uma revisão crítica e analítica de dois artigos: Cosmologias
do Capitalismo, do antropólogo estadunidense Marshall Sahlins, e El Huevo de la Serpiente,
da arqueóloga brasileira Tania Andrade Lima. Ambos abordam situações e configurações
sociais decorridas do período de expansão do capitalismo no período imperialista entre os
séculos XVII e XIX, em sociedades “periféricas”1, longe do centro de difusão, a Europa
ocidental. Cada uma delas - a sociedade carioca do século XIX estudada por Tania Andrade
Lima; o império Chinês da Dinastia Qing, no mesmo século; os chefes locais das Ilhas
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Entendidos como periféricas por teóricos do “sistema mundial”.
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Sandwich; e os Kwakiutl da costa noroeste dos EUA no período pós contato, estes três
últimos estudados por Sahlins - apresenta uma forma própria de significação e uso das
manufaturas europeias, em outros esquemas de cultura material e práticas cotidianas,
contrastantes à práticas e significados das sociedades de origem destas mercadorias. Para
entender cada uma delas, é preciso também compreender a fundo a sociedade Franco-Inglesa,
para compor as relações e ressonâncias com as outras partes do mundo, e assim, compor o
mosaico que é o capitalismo. O processo de desenvolvimento deste sistema, não é uniforme e
nem padrão, mas sim gerador de tensões e multiplicidades. (LITTLE, Bárbara. 2014)
Segundo Marshall Sahlins, o sistema mundial é, na verdade, a expressão racional de uma
lógica cultural relativa, ele depende das várias maneiras pelas quais as mercadorias são
mediadas nos esquemas culturais globais. Discutiremos mais a fundo a seguir.
“‘Essas coisas são curiosas, mas qual a sua serventia? Os europeus entendem que a
arte do governo é igualmente refinada?’ (Citado em Proudfoot, 1868, p.50)” p.460
Ao ver um navio inglês, por exemplo, os chineses não pensavam que eram
necessariamente advindos de um povo inteligente e portanto de uma civilização elevada. “Se
houve um dia quem tentasse ensinar a missa ao vigário, este era o povo britânico ao levar
signos de civilização para os chineses.” p.459.
Para o capitalismo europeu o desprezo chinês custava caro. Sendo, por quase
trezentos anos, a China um cemitério de prata inglesa, uma vez que a balança comercial era
completamente desfavorável devido ao compulsório e deusificado consumo de chá asiático
na Europa. O rápido sucesso e popularização do consumo dessa bebida quente, logo o tornou
indispensável, fazendo com que os governos europeus investissem em uma corrida
desesperada na busca de mercadorias do pacífico que pudessem interessar aos chineses. A
balança comercial só se demonstrou equilibrada quando os ingleses conseguiram incutir um
vício ainda maior do que aquele do chá: o ópio indiano.
Foi neste contexto de criação de novas rotas comerciais transpacíficas, que os ingleses
também descobriram novas fontes promissoras de mercadorias lucrativas e de valor
significativo para os asiáticos: o sândalo e o comércio de pele.
As ilhas Sandwich, no chamado Havaí, e o povo Kwakiutl, na denominada Costa
Noroeste dos EUA, são casos estudados pelo autor em que o comércio ocidental possibilitou
processos surpreendentes de desenvolvi-gente. em contradição ao desprezo chinês pelas
mercadorias ocidentais, os chefes havaianos, em razão do seu próprio status celestial, nunca
tinham o bastante. O problema político em questão é como diferenciar os poderes sagrados,
uma vez que os poderes ancestrais são unidos em uma só genealogia universal. Eles
disputavam seu status e posição genealógica tradicionalmente através do sistema de
casamentos e sacrifício de inimigos. Mas mesmo depois de o rei ter abolido a antiga religião
a disputa entre os chefes continuava, e agora através da competição por bens estrangeiros,
cada vez melhores e diferentes. Os produtos comerciais eram extensões dos corpos sagrados
dos chefes. Entretanto, com o tempo os chefes estavam obsoletos. A explicação pela lógica
econômica entenderia que o consumo excessivo dos chefes não conseguiu ser sustentado,
pelas explorações comerciais das ilhas, sendo a importação de sândalo insuficiente para
manter tal sistema. Mas outra mirada indica ser um processo nativo em que os chefes
perderam sua importância.
E por uma forma análoga, os índios Kwakiutl conseguiram preservar por quase dois
séculos o sistema de Potlach, mesmo depois das investidas coloniais e “absorção pelo sistema
mundial”. Eram exímios trabalhadores assalariados, mas os brancos enervavam-se com o que
frequentemente faziam de seus rendimentos: empilhar montanhas de cobertores da bahia ou
objetos esquisitos. Para o que? Fazer doações colossais. Não é mesmo um comportamento
factível na cosmologia capitalista. Mas os índios, a partir do sistema do Potlach, “queriam
uma quantidade cada vez maior de um mesmo produto, signo padronizado de poderes
universais, que, ao ser publicamente distribuído, tecia comparações quantitativas de suas
qualidades qualitativas” p.483
Não seria o chá para a Europa também um exemplo de desenvolvi-gente? Sahlins não
faz esta inferência diretamente, mas aponta para o fato de que, como em qualquer outro, a
função prática consiste num modo particular de proporções cósmicas. O fetiche empregado a
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esta mercadoria seria então a maneira nativa de dar uma posição de valor e significado -
dentro do próprio esquema cultural, potencializado pelo sistema comercial capitalista. A
cosmologia burguesa, fez das necessidades humanas - que são construídas social e
temporalmente -uma percepção subjetiva de aflição corporal, sendo necessário empregar
medidas e prata2 para satisfazer o desejo, gerar prazer.
O capitalismo então seria composto pelas fraquezas humanas, passíveis de serem
comercializáveis. É justamente o “fetiche” o que traduziria as ontologias culturalmente
relativas.
O OVO DA SERPENTE
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A prata usada aqui como sinônimo de “dinheiro”, capital, mas também em alusão aos montantes de
prata compulsoriamente retirado das américas para satisfazer o desejo do chá.
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ganhando novos trejeitos, novas estratégias para diferenciação de classe. A incorporação nos
comportamentos, nas etiquetas, nas roupas, nos túmulos. A autora também dialoga com
outros trabalhos de sociologia que estudam a formação da sociedade capitalista (inclusive no
Brasil), trabalhos de antropologia que se voltam para este período, e é impressionante a
diversidade de suas fontes: ela complementa as fontes materiais com fontes históricas
variadas, como diários de viajantes europeus, romances de Machado de Assis, livros de
medicina da época, revistas femininas, manuais de etiqueta, etc.
As partes do artigo de pesquisa, propriamente dita, são apresentadas em três grandes
seções: As representações da morte; As rotinas íntimas com o corpo; A ritualização da vida
cotidiana.
As representações da morte
A primeira pesquisa foi no intuito de tentar perceber mudanças na representação da morte.
Foram analisados mais 2500 túmulos em cemitérios cariocas do século XIX e início do
século XX. Anteriormente localizados próximos às igrejas e aos centros urbanos, e neste
período os cemitérios foram levados para regiões afastadas, um tipo de medida de controle
sanitário realizado nas grandes cidades.
Foram identificados três grandes padrões simbólicos nos túmulos, sendo eles
1) Padrão Inaugural: entre 1850 e 1888
Período de decadência da monarquia escravagista, em que a base da economia ainda era a
produção de café, As sepulturas eram de grande qualidade artística, feitas artesanalmente,
importadas da Europa, expressando valores dos segmentos dominantes. As representações da
morte eram escatológicas, macabras, mórbidas: elementos noturnos, morcegos, caveiras,
ossadas, serpentes, figuras fantasmagóricas. Mais acentuado nas décadas iniciais, este padrão
vai perdendo força na medida que declina o sistema escravagista.
2) Padrão de transição: 1889 - 1902
Período correspondente à ascensão do capitalismo, com o fim do império e a
proclamação da república até o final dos primeiros governos militares. Fase de constante
instabilidade política, econômica e social. Os símbolos escatológicos foram substituídos pelo
símbolo da cruz, que não carregavam o sentido religioso, mas apenas a indicação de que
havia um morto. Há um claro empobrecimento da arquitetura tumular. Não se investia na
morte, a morte não lucrava. Parece haver uma conexão com a ideologia positivista que
impregnou a sociedade da época, com princípios de solidariedade, unidade da espécie
humana e a irmandade entre as classes. O esvaziamento do culto romântico sugere a
ascendência de valores racionais. Estes valores e a representação da morte na verdade
encobriam o seu contrário “Era a imagem invertida de uma sociedade que as desigualdades se
acentuavam mais” p. 196.
3) Padrão de consolidação: 1903 - 1930
Reativação da economia e crescimento econômico. Estávamos em um governo civil e
de grandes invenções. A morte era agora um grande espetáculo para demonstração de forças
e de riquezas. Os anjos são triunfais, as estátuas transmitem emoção, sensualismo, mobilidade
- a mesma mobilidade que a república conferiu às camadas médias. Substitui-se o pudor com
relação ao sexo pelo pudor em relação à morte: a representação da vida no espaço da morte.
Um tabu, um encobrimento, uma sociedade que não suporta o enfrentamento com sua face
sombria - a violência cada vez mais velada e cruel.
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tradução minha.
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O Ritual do Chá:
A Europa com sua grande fascinação pelos produtos asiáticos começou a usar o chá
efetivamente como bebida social a partir século XVIII, a partir da diminuição do preço do
produto e melhor acessibilidade. O ritual do chá, mais precisamente o chá da tarde, sua
modalidade mais significativa, era uma inversão da janta. O primeiro acontecia numa sala de
visitas, com uma mesa pequena, um equipamento próprio para este uso, comidas leves e
doces que podiam ser comidas com a mão, conversas descontraídas, e completamente
conduzido pela senhora da casa, a única que tocava a chaleira. Na década de 1880, na
Inglaterra, começaram a surgir os primeiros vestidos para o chá, que eram frouxos e
confortáveis, em oposição ao uso constante do espartilho. Neste curto período de tempo o
corpo era parcialmente liberado, mas logo voltavam a colocar esta peça para comparecer ao
jantar, território masculino.
No Brasil, o ritual do chá era uma versão torta e patriarcal do chá da tarde. A pequena,
tímida e ousada mesa do chá inglês foi tragada e substituída pela grande mesa de jantar, e
mesmo servido pela mulher, era realizado no comedor. Os vestidos frouxos para o chá
demoraram cem anos para chegar ao Brasil, e mesmo assim não obtiveram sucesso. Esta
sociedade criou um ritual híbrido, aberrante para os europeus. Ela lutava com suas próprias
contradições, tentando dar espaço à sua nova face moderna, liberadora e antiescravagista,
mas ao mesmo tempo retrógrada, aprisionada, ligada a valores e interesses antigos.
Esgotada enquanto estratégia, o chá perdeu sua função paulatinamente, tendo
sucumbido no final do século XX.
A autora conclui costurando todas as três pesquisas, sendo que a análise da cultura
material recuperada do Rio de Janeiro no século XIX, em comparação com a do século
anterior, indica uma forte transformação em todos os âmbitos da vida cotidiana daquela
sociedade, tendo grande relação com a chegada da corte portuguesa no Brasil e abertura ao
mercado capitalista. Os impactos nos pequenos detalhes são claramente visíveis e
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perceptíveis - e aqui ela explica o título - transparente como o ovo da serpente este processo
de imposição de uma nova ordem e com a consolidação de um modo de vida burguês. O
desenvolvimento substancial se dá no século posterior, em que a nação brasileira se vê
integrada - numa posição que é pra ela dependente.
A comparação:
Ambos os artigos estudam situações à “borda”, nas “periferias” do sistema mundial, e
o processo de imposição do esquema capitalista de organização econômica e cultural.
Entendendo estes dois domínios como juntos e separados, quero dizer, que para a história do
poder e do imperialismo, todos estes lugares no século dezoito faziam parte do complexo
sistema globalizado mercantilista, exercendo alguma função na sistemática divisão do
trabalho. Mas o que estes estudos nos contam são as pluralidades e diversidades de formas
únicas e nativas de dar coerência ao sistema estrangeiro: não sendo nunca as mesmas
maneiras e valores que davam os povos europeus do topo da cadeia. A divisão era sobretudo
cultural, mesmo que completamente integrados nunca iguais aos originais. Penso claramente
na sociedade carioca das investigações de Tania Andrade que copiava os costumes europeus
transformando-os em aberrações dignas de riso pelos viajantes do primeiro mundo; ou os
índios Kwakiutl, exímios trabalhadores, mas que com seu salário e tempo livre se dedicavam
às atividades e consumo para o sistema do Potlach; ou os imperadores chineses que apenas
colecionavam as esquisitices advindas dos mundos bárbaros como extensão do seu poder de
civilização.
É interessante reparar o diálogo temporal estabelecido entre os dois artigos, ambos
concentrados a maior parte do tempo no século XIX, período de expansão do comércio
europeu e de grande circulação de mercadorias. Momento de extrema relevância histórica, e.
aparentemente, imbuídos de uma singularidade, quase explícita - que mesmo Tania dizendo
ser transparente, é muito óbvio - na história desses povos.
Apesar do autor americano questionar veementemente o fatalismo histórico das
culturas pelo englobamento e maceração pela ordem mundial, este período é considerado por
ele o melhor “palco” para percepção destes motores históricos nativos. Portanto, o foco do
trabalho é justamente nestes casos localizados temporalmente. Tudo o que está depois é
menos palpável e é mais difícil de identificar os processos de desenvolvi-gente. É importante
sua colocação de que “fracasso” dos modos de vidas tradicionais seriam relativos aos seus
próprios novos modos de vida, crises de seus próprios percursos. Como por exemplos os
chefes hawaianos que se tornaram obsoletos, ou a dinastia Manchu ter decaido por um ciclo
dinástico próprio, e assim como também se parou de usar o chá como ritual no século XX.
Faço um questionamento esse vigésimo século, pensando nas forças desiguais
atuantes nas situações que incidem sobre as possibilidades de escolhas do próprio destino. É
evidente que talvez caiamos no mesmo fluxo de interpretação eurocêntrica da história,
pensando que todas as razões do percurso são devidos aos nossos próprios motivos: leis
econômicas de exploração. Mas relembro uma passagem do “Cosmologias do Capitalismo”
em que os presentes de Macartney ficaram no Palácio de Jehol até que fosse incendiado pelas
investidas coloniais. Quais são os principais motores neste caso? Tania Andrade Lima
também não vai mais além nas conexões com esse futuro do tempo estudado, mas aponta
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pública e confinada ao ambiente familiar) de trazer o homem à casa, para que fizesse ali o
que desfrutavam fora dela. Antigamente o chá era tomado em locais públicos frequentados
por homens. É depois de sua transposição ao ambiente doméstico que as mulheres se
apoderaram deste espaço para estabelecer suas próprias relações sociais e políticas.
Uma última inferência pessoal e sem nenhuma pretensão é de que o açúcar para o amargo do
chá seria como uma representação de uma tentativa de reestabelecer equilíbrio entre os
grandes divisores binários das categorias franco-inglesas-burguesas-capitalistas. Assim como
uma louça negra (masculina)- no meio do equipamento de chá (femininos), o vestido froucho
do afteernoon tea no meio de uma rotina de espartilho, uma cuspideira adornada no meio da
sala (face escatológica junto à face moderna), ou mesmo uma estátua sensualizada em uma
sepultura. Estas tentativas são como remédios para curar as “fraquezas” deste povo: geradas
justamente onde mora a sua contradição e os seus medos. São as necessidades humanas,
culturalmente fabricadas, transformadas em fetiches e compráveis em qualquer esquina.
BIBLIOGRAFIA:
-SAHLINS, Marshall David. “ Cosmologias do capitalismo: o setor transpacífico do “sistema
mundial”. In Cultura na prática. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. 677 p.
-Lima, Tania A. “El Huevo de La serpiente: una arqueologia del capitalismo embrionário en
el Rio de Janeiro del siglo XIX”. in Sed non satiata: teoria social en la arqueologia
latinoamericana contemporanea. Buenos Aires: Ediciones del Tridente, c1999. 287 p.
-Little, Barbara. Povos com história: uma revisão da arqueologia histórica nos Estados
Unidos. Vestígios 8(2). 2014