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O advento da “pós-verdade”

Eduardo Jorge Madureira Lopes

A quantidade de vezes que, em Portugal, agora, se fala da “pós-verdade” – impropriamente,


em não raras ocasiões – ajudará a notoriedade desta nova palavra, eleita, como se soube na
semana que finda, a palavra do ano para os dicionários Oxford. A “pós-verdade” – há quem
use a palavra “pós-factual” para dizer o mesmo – indica que a verdade – ou os factos – foi
derrotada, vencida pela emoção, que agora se apresenta como valor em alta.

As notícias disseram que a palavra terá sido criada há pouco mais de duas décadas, não
referindo que é mais antigo o que pretende designar, nem que o seu uso se generalizou graças
a um longo artigo da jornalista Katharine Viner, publicado no diário britânico The Guardian, no
passado dia 12 de Julho.

“Como a tecnologia afectou a verdade” enumera diversas ocorrências que sinalizam o advento
da “pós-verdade”. A primeira diz respeito a uma notícia sobre uma obscenidade protagonizada
pelo ex-primeiro-ministro David Cameron. Foi publicada no Daily Mail, no ano passado, e teve
ampla repercussão nos media tradicionais. Como é costume, foi amplificada através de
milhões de publicações nas redes sociais. O que caracterizou a notícia foi não ter sido
acompanhada por qualquer elemento susceptível de sustentar a sua veracidade.

A jornalista que a divulgou, Isabel Oakeshott, reconheceria na televisão que ignorava se o


relato que reproduziu era verdadeiro. Confrontada com pedidos de provas da denúncia que
transcrevera, reconheceu que as não tinha. Com inexcedível irresponsabilidade jornalística,
disse ela que apenas se limitara a reproduzir uma descrição não comprovada, feita por uma
fonte não identificada, cabendo aos leitores decidirem se conferem ou não credibilidade à
história. Ficando ao critério de cada um, ainda hoje muita gente acreditará que a notícia é
verdadeira, constata Katharine Viner.

O segundo momento “pós-verdadeiro” ocorreu durante a campanha para decidir se a Grã-


Bretanha sairia da União Europeia. Comprovando com exemplos, a jornalista e editora do
jornal britânico escreve que, durante meses, a imprensa eurocéptica noticiou factos falsos e
amplificou denúncias duvidosas. Depois, cita o financiador da campanha pela saída da União
Europeia, Arron Banks, que explicou que a exposição de factos não teria ajudado a ganhar o
referendo. Em declarações ao jornal The Guardian, foi eloquente: “Os fatos não funcionam e
ponto final”. Segundo ele, “a campanha pela permanência na União Europeia apresentou
factos, factos, factos, factos, factos. Isso simplesmente não funciona. É necessário estabelecer
uma conexão emocional com as pessoas. É o que faz o sucesso de Trump”. Tinha razão e a
campanha de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos da América correspondeu
a um terceiro momento em que a verdade, pura e simplesmente, não contou. Com uma
amplidão inaudita, a banalidade da mentira acabaria por ditar a eleição de um chefe de
Estado.

As pessoas desconfiam de grande parte daquilo que lhes é apresentado como um facto,
sobretudo se os factos forem incómodos ou não estiverem em sintonia com aquilo em que
elas acreditam, afirma Katharine Viner. Esta atitude pode revelar-se avisada, umas vezes, e
errónea, em outras. Avisada porque, na era digital, é cada vez mais fácil publicar informações
falsas, rapidamente partilhadas e consideradas verdadeiras, como frequentemente ocorre em
situações de emergência, quando as notícias são transmitidas em tempo real. Errónea porque
verdade e mentira acabam por se equivaler. Os boatos e as mentiras valem o mesmo que os
factos devidamente comprovados. De resto, até podem ter mais valor, por serem mais
extravagantes do que a realidade e mais excitantes para compartilhar.

Neetzan Zimmerman, especialista em matérias de tráfego viral, é citado para apontar o


cinismo do que está a suceder: “Hoje em dia, não importa se uma história é verdadeira. O que
realmente importa é que as pessoas cliquem para a ler”. Neetzan Zimmerman sentencia que
os factos acabaram. “São uma relíquia do tempo da tipografia”. Hoje, “se uma pessoa não
compartilha uma notícia é porque, na sua essência, não é uma notícia.”

Esta mudança, em vez de fortalecer os vínculos sociais, criar um público informado e


considerar a notícia como um bem cívico, como uma necessidade democrática, cria gangues
que disseminam falsidades instantâneas, que reforçam as crenças de cada um.

Katharine Viner coloca questões que, não sendo novas, são essenciais para o futuro da nossa
vida em comum. Defende ela que o jornalismo sério, de interesse público, é exigente e
actualmente é mais necessário do que nunca. “Ajuda a manter honestos os poderosos; ajuda
as pessoas a compreenderem o mundo e o seu lugar nele”. Sem uma informação em que se
possa confiar, o espaço público é bem menos democrático, justo e livre.

Diário do Minho, 19.11.2016

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