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para a crise?
o lançamento da cerveja brahma
chopp no verão de 1934
Teresa Cristina de Novaes M a r q u e s
Faculdade União Pioneira de Integração Social
M a r i a Teresa R i b e i r o de Oliveira
Universidade de Brasília
RESUMO ABSTRACT
Este ensaio explora a história da indústria This essay examines the history of Brazil's
da cerveja, um produto de largo consumo b e e r industry with a particular focus on
no Brasil. Em particular, examina a história o n e of its best k n o w n trademarks, Brahma
de uma marca — a Brahma C h o p p - ainda C h o p p . Presented by the advertising cam-
hoje lembrada pelos apreciadores da bebida. paign made at the time of its launching as
Exaltada na propaganda de seu lançamento a product innovation, the n e w brand of
c o m o uma inovação, fruto de investimento beer represented, on o n e hand, an answer
tecnológico, o surgimento da nova marca of Brahma C o . to the c o n s u m m e r market
representou, por um lado, uma resposta da crisis brought by the 1929 crash. On the
empresa à expressiva queda nas vendas sen- other hand, the advertising campaign re-
tida desde o início da crise econômica no flected the process of B r a h m a s public i m a -
segundo semestre de 1929. Por outro lado, ge nationalization. F o u n d e d as a G e r m a n -
indicou a profunda reformulação da imagem o w n e d enterprise in the of nineteenth cen-
pública da Brahma, encerrando um processo tury, the company felt the pressures of the
de nacionalização em curso desde meados anti G e r m a n public opinion m o o d during
da Primeira Guerra. Assim, a partir de um the First World War. By studying Brahma
caso exemplar de p r o d u t o de sucesso, exa- C h o p p s success, we examine a set of issues
minamos um conjunto de problemas perti- related to the history of c o n s u m m e r goods
nentes à história da indústria de bens de industry in Brazil: the long lasting political
consumo no Brasil: os efeitos duradouros da effects of the War, the impact of the 1929
Guerra, o impacto da crise dos anos 1930 so- crisis on that industry, competition in the
bre essa indústria, a competição no mercado beer market of R i o de Janeiro, and the role
de cerveja na cidade do R i o de Janeiro e, played by marketing and advertising in the
por fim, o papel da propaganda na consolida- economic and symbolic affirmation of an
ção econômica e simbólica de uma empresa. enterprise in its market.
1
Este trabalho constitui u m a versão m e l h o r a d a do capítulo VII da tese de d o u t o r a d o
de Teresa C r i s t i n a Novaes M a r q u e s (2003) Capital, Cerveja e Consumo de Massa: a
trajetória da Brahma, 1888-1933, U n i v e r s i d a d e de Brasília, cuja e l a b o r a ç ã o m u i t o se
beneficiou da leitura crítica feita p o r Elizabeth C a n c e l l i , o r i e n t a d o r a da tese. A
Hildete Pereira de M e l o e a J o s é L u c i a n o de M a t t o s Dias as autoras a g r a d e c e m as
críticas e c o m e n t á r i o s , q u e lhes p e r m i t i r a m a p r i m o r a r seu trabalho.
2
De acordo c o m W o l f g a n g F. H a u g (1997), Crítica da Estética da Mercadoria, São Paulo:
U N E S P , a marca é u m a estetização da m e r c a d o r i a . A p r o p a g a n d a q u e p r o m o v e u m a
marca apresenta a m e r c a d o r i a ao c o n s u m i d o r sob o invólucro de camadas simbólicas
(a estética, o formato do p r o d u t o ) , q u e o b s t r u e m a visão do c o n t e ú d o de trabalho
social p r e s e n t e n o objeto.Trata-se, p o r t a n t o , d e u m discurso ideológico. E m t e r m o s
operacionais, a c o n s t r u ç ã o de u m a marca — isto é, o processo de afirmação simbólica
de u m a m e r c a d o r i a no m e r c a d o — t o r n a ú n i c o e revestido de identidade o p r o d u t o
de massa, p r o d u z i d o em larga escala e indiferenciado. Se a o p e r a ç ã o c o m e r c i a l e
ideológica for b e m sucedida e os c o n s u m i d o r e s se t o r n a r e m fiéis a u m a dada marca,
e n t ã o seu p r o d u t o r p o d e r á sustentar u m p r e ç o d e m o n o p ó l i o .
3
Carl H. Miller (1998), Breweries of Cleveland. Cleveland: S c h n i t z e l b a n k Press, 1998.
4
Wolfgang H a u g (1997), Crítica da Estética da Mercadoria. São P a u l o : U n e s p .
5
Até o m o m e n t o de serem engarrafados, n ã o há diferença e n t r e o c h o p e e a cerveja,
desde q u e resultem d o m e s m o processo d e p r o d u ç ã o , c o m a m e s m a p r o p o r ç ã o d e
m a t é r i a - p r i m a p o r c e n t í m e t r o c ú b i c o da b e b i d a . Na etapa do envasamento, o c h o p e
é a c o n d i c i o n a d o em barris retornáveis. A cerveja, p o r sua vez, é a c o n d i c i o n a d a em
garrafas q u e são submetidas ao processo de pasteurização. N o s p a d r õ e s t e c n o l ó g i c o s
da época, pasteurizar significava s u b m e t e r a cerveja engarrafada a um b r u s c o c h o q u e
t é r m i c o : p r i m e i r o e m água fervente, depois e m água fria. C o m esse p r o c e d i m e n t o ,
a fermentação do líquido é suspensa e seus c o m p o n e n t e s orgânicos m o r r e m . A
cerveja engarrafada, após ter sido pasteurizada, p o d i a ser c o n s e r v a d a p o r vários
meses, e n q u a n t o o chope, j u s t a m e n t e p o r n ã o ser s u b m e t i d o ao m e s m o processo,
devia ser c o n s u m i d o em 72 horas, sob p e n a de se deteriorar. No e n t a n t o , o processo
de pasteurização implicava u m a elevada p e r d a de garrafas, u m a m e r c a d o r i a escassa
e cara naqueles dias.
6
A C i a . Antártica Paulista surgiu, c o m o s o c i e d a d e anônima, em 1 8 9 1 ; já a B r a h m a
foi fundada em 1 8 8 8 , s u b s t a n c i a l m e n t e e x p a n d i d a a partir de 1 8 9 6 e convertida em
sociedade anônima em 1904.
7
A partir da aquisição de sistemas de refrigeração, as cervejarias p o d e m f e r m e n t a r a
cerveja sob baixas t e m p e r a t u r a s , possibilitando retardar o processo de f e r m e n t a ç ã o
e m e l h o r controlar a qualidade final do p r o d u t o . C o m o c o m p l e m e n t o , as cervejarias
de baixa f e r m e n t a ç ã o u s a m levedo de d e p ó s i t o , q u e produz m e l h o r e s resultados na
f e r m e n t a ç ã o em t e m p e r a t u r a s frias. Já as cervejarias de alta f e r m e n t a ç ã o usavam
levedo superficial, mais eficiente em t e m p e r a t u r a s elevadas, ou ambientais.
No e n t a n t o , há vivas controvérsias q u a n t o à qualidade e ao paladar da cerveja p r o -
duzida desta ou daquela forma, e n ã o há m e i o s q u e levem a afirmações definitivas
10
Em verdade, os relatórios de p r o d u ç ã o da B r a h m a e m p r e g a m o t e r m o qualidade
para descrever os três tipos de cerveja p r o d u z i d a s pela empresa.
11
Os fabricantes de cerveja de alta f e r m e n t a ç ã o n ã o e r a m auto-suficientes na p r o d u ç ã o
de gelo, de q u e precisavam tanto para a p r o d u ç ã o q u a n t o para o f o r n e c i m e n t o aos
salões c o n t í g u o s à fabrica o n d e a cerveja era vendida aos c o n s u m i d o r e s .
12
O p t o u - s e p e l o valor da p r o d u ç ã o , em vez de considerar a q u a n t i d a d e p r o d u z i d a ,
p o r q u e os dados publicados na Estatística da Produção Industrial só estão desagregados
p o r Estado, na tabela referente a v a l o r e s . T a m b é m a partir dela, é possível discriminar
entre os valores da produção das cervejarias de alta das de baixa fermentação. B R A S I L .
Ministério do Trabalho, Indústria e C o m é r c i o , D e p a r t a m e n t o N a c i o n a l de Estatística,
Estatística da Produção Industrial, 1915-1929. R i o de Janeiro: Tipografia do D e p a r -
t a m e n t o N a c i o n a l de Estatística, 1 9 3 3 , pág. 119.
13
O G o v e r n o Federal fez inserir um a r t i g o na lei o r ç a m e n t á r i a elaborada em 1922
q u e proibia as fábricas de cerveja de alta f e r m e n t a ç ã o de v e n d e r seus p r o d u t o s em
espaço c o n j u g a d o às instalações da fábrica. A m e d i d a tinha o p r o p ó s i t o de evitar a
F o n t e s : vendas da B r a h m a , r e c o n s t i t u í d a s a p a r t i r d o s r e l a t ó r i o s da D i r e t o r i a ao C o n s e l h o Fiscal,
m ê s a m ê s [ A B ] ; Estatística da Produção Industrial, p á g . 1 1 9 .
A crise de 1929-1933
Os efeitos da depressão econômica, deflagrada no final do ano de
1929, não foram sentidos da mesma forma em todos os setores da
economia. O impacto foi mais intenso no setor cafeeiro, cuja renda
declinou e não mais se recuperou no restante da década, e n q u a n t o a
produção industrial sofreu menos o impacto da crise e, em meados da
década de 1930 já mostrava sinais de recuperação do seu nível de ativi-
17
dade. Mas, t a m b é m , essa recuperação não se deu c o m a mesma inten-
sidade n e m de forma sincrônica em todos os setores. Os produtores de
bens de c o n s u m o popular foram os mais afetados pela conjuntura reces-
siva. Em particular aqueles que produziam bens cuja elasticidade-renda
18
era mais elevada, c o m o era o caso da cerveja. No entanto, as diferen-
tes variedades de cerveja — as já mencionadas cervejas de primeiro, se-
gundo e terceiro tipo — apresentavam elasticidades-renda distintas, donde
se conclui que a crise econômica teve impactos diferenciados entre
elas.
N o s anos de 1929-1932, o nível de produção na indústria de b e b i -
das, no qual predominavam as cervejarias, não declinou de m o d o tão
17
Ao avaliar o i m p a c t o da política de c o m p r a do café, a partir de 1 9 3 1 , na m a n u t e n ç ã o
da renda real do setor cafeeiro, E d m a r B a c h a mostra q u e a parcela do café no P I B
brasileiro caiu, de fato, ao l o n g o da década de 1 9 3 0 . E . Bacha (1992), Política brasileira
do café, em M a r c e l i n o M a r t i n s & E . J o h n s t o n , 150 anos de Café, São Paulo:Salamandra
Editorial.
18
Veja-se a este respeíto:Annibal V. Villela e W i l s o n Suzigan (1973), Política do Governo
e Crescimento da Economia Brasileira, 1 8 8 9 - 1 9 4 5 , R i o de J a n e i r o : I P E A / I N P E S , p.
191-199.
19
A taxa anual de c r e s c i m e n t o da p r o d u ç ã o industrial dos setores de vestuário e
calçados, bebidas e f u m o d e c l i n o u , em m é d i a , 8,7%, entre 1 9 2 9 e 1932. No p e r í o d o
s e g u i n t e , de 1 9 3 3 a 1939, esses três setores elevaram a sua taxa de c r e s c i m e n t o à
m é d i a d e 7 , 8 % a o a n o , m o s t r a n d o capacidade d e r e c u p e r a ç ã o . N o e n t a n t o , seu
c r e s c i m e n t o foi bastante inferior ao c o n j u n t o do setor industrial, cujo i n c r e m e n t o
nesses anos esteve na m é d i a de 1 1 , 2 % , ao ano.Villela e Suzigan (1975), Política do
Governo e Crescimento da Economia, tabelas V I . 7 e V I . 8 , págs. 1 9 3 - 1 9 4 .
20
N o a n o d e 1929, a s bebidas r e p r e s e n t a r a m 3 2 % d o total arrecadado pelo I m p o s t o
d e C o n s u m o . B R A S I L . Ministério d o Trabalho, Indústria e C o m é r c i o , D e p a r t a m e n t o
N a c i o n a l de Estatística, Estatística da Produção Industrial, 1915-1929. R i o de J a n e i r o :
T i p . d o D e p . N a c i o n a l d e Estatística, 1 9 3 3 , pág. 7 , tab. 2 .
21
Charles K i n d l e b e r g e r (1993) A Financial History of Western Europe. N e w York: O x f o r d
U n i v e r s i t y Press, pág. 3 7 1 .
22
Ao l o n g o dos anos v i n t e , a empresa d e s t i n o u a m a i o r parcela de seus investimentos
a m á q u i n a s novas no setor de engarrafamento, o n d e e r a m elevadas as perdas ocorridas
d u r a n t e o processo industrial, e s p e c i a l m e n t e de garrafas. Se c o n s i d e r a r m o s o total
do dispêndio c o m máquinas novas, entre 1922 e 1934, e n c o n t r a m o s o valor expressivo
d e R s . 3 : 3 4 3 : 6 5 3 $ 0 0 0 . Desse total, 6 3 % dos recursos d a B r a h m a foram e m p r e g a d o s
no s e t o r de e n g a r r a f a m e n t o . Balanço Geral da Cia. Brahma, 3 1 / 1 2 / 1 9 3 4 ; cx. 3 0 ,
port.,AB.
23
Entre 1917 e 1930, vários projetos de lei foram apresentados no C o n g r e s s o p r e v e n d o
medidas para limitar o c o n s u m o de bebidas alcoólicas no País. Q u a s e s e m p r e os
projetos p r o p u n h a m sobretaxas sobre bebidas alcoólicas, e s p e c i a l m e n t e sobre a
aguardente de cana e a cerveja de alta fermentação. Entretanto, n e n h u m deles c h e g o u
a se t o r n a r lei, pois os produtores de álcool e aguardente c e r r a v a m fileiras c o n t r a
propostas q u e atingissem seus interesses. Há razões para p e n s a r q u e t a m b é m as
cervejarias de baixa fermentação pressionavam o C o n g r e s s o para rejeitar projetos
p r ó - t e m p e r a n ç a . Cf.Teresa Cristina de Novaes M a r q u e s (2003), Capital, Cerveja e
Consumo de Massa, capítulo V.
24
N o t í c i a sobre a visita de u m a comissão composta p o r m e m b r o s da Liga Brasileira
de H i g i e n e M e n t a l , da Sociedade de M e d i c i n a e C i r u r g i a e da A c a d e m i a N a c i o n a l
de M e d i c i n a ao Presidente da R e p ú b l i c a , O Imparcial, 2 5 / 1 2 / 1 9 2 8 .
25
B R A S I L , I B G E / C o n s e l h o N a c i o n a l de Estatística, Armário Estatístico do Brasil, 1 9 3 9 /
1940, pág. 3 3 .
26
O n ú m e r o de p r o d u t o r e s de a g u a r d e n t e é i n f o r m a d o pelo C e n s o de 1920 na versão
p u b l i c a d a em 1 9 2 7 . B R A S I L , M i n i s t é r i o da Agricultura, Indústria e C o m é r c i o .
D i r e t o r i a Geral de Estatística. Recenseamento Geral do Brasil, 1 ° / 9 / 1 9 2 0 . A g r i c u l t u r a
e Indústrias, vol.V, 1ª. p a r t e , p á g . V I , 1 9 2 7 . Em 1920, a p r o d u ç ã o n a c i o n a l de álcool
declarada ao i m p o s t o de c o n s u m o c o r r e s p o n d i a a 2 7 , 2 % do valor da p r o d u ç ã o de
a g u a r d e n t e . B R A S I L , I B G E / C o n s e l h o N a c i o n a l de Estatística, Anuário Estatístico
do Brasil, 1939/40, p á g . 3 3 .
27
N o capítulo i n t r o d u t ó r i o d o C e n s o d e 1920, o s organizadores a d m i t i r a m n ã o ter
recenseado, e n t r e o u t r o s e s t a b e l e c i m e n t o s , destilarias vinculadas a estabelecimentos
rurais no D i s t r i t o Federal. Recenseamento Geral do Brasil, 1 º / 9 / 1 9 2 0 , A g r i c u l t u r a e
Indústrias - D i s t r i t o Federal, vol. II, 1ª parte, 1924.
28
C o n s i d e r a m o s a q u a n t i d a d e p r o d u z i d a declarada pelas fábricas aos fiscais do I m p o s t o
de C o n s u m o e n t r e 1925 e 1 9 2 9 . No Estado de São Paulo, o n d e se sabe q u e havia
p o u c a s cervejarias de baixa f e r m e n t a ç ã o c o n t r a m u i t o s p r o d u t o r e s de aguardente,
era de se esperar q u e a p r o d u ç ã o de aguardente de cana superasse a de cerveja, o
q u e n ã o acontecia. Ressalve-se q u e a estatística do I m p o s t o de C o n s u m o somava à
a g u a r d e n t e de cana, bebidas alcoólicas derivadas de m a n d i o c a e do álcool de uva.
100 I Teresa Cristina de Novaes Marques & Maria Teresa Ribeiro de Oliveira
da cerveja e da aguardente, há que se considerar a tecnologia adotada.
Ao contrário da cerveja, a produção de aguardente de cana não implicava
elevados gastos de investimento c o m instalações e equipamentos e não
requeria matérias primas importadas. Além de custos de produção r e -
lativamente mais baixos, outro fator aumentava a competitividade da
aguardente no mercado consumidor de bebidas alcoólicas: sua distri-
buição comercial nos mercados urbanos se fazia p o r canais informais,
facilitando a sonegação de impostos. C o m menores custos, os preços
da aguardente eram bastante menores que os da cerveja, daí a preferência
popular pela cachaça.
A crise veio acirrar a competição pela demanda do c o n s u m i d o r p o -
pular de bebidas alcoólicas. No início dos anos trinta, m e s m o os que se
mantiveram fiéis ao c o n s u m o de cerveja tenderam a optar p o r marcas
mais baratas, c o m o nitidamente se observa na evolução das vendas da
Brahma entre 1927 e 1937, mostrada no Gráfico 1.O declínio das v e n -
das para o Interior — ou exportações, c o m o os relatórios da Diretoria d e n o -
minavam as vendas a mercados onde a cerveja chegava por via férrea ou
por cabotagem —, a partir do primeiro trimestre de 1930, p o d e ser visto
2 9
no Gráfico 3 . Face à conjuntura de crise, a Brahma precisou reformular
a sua estratégia de vendas no perímetro da cidade do R i o de Janeiro para
compensar sua perda de mercados no Interior. O consumidor carioca
era disputado pelas muitas cervejarias de alta fermentação locais e por
cervejarias de baixa fermentação — c o m o a Antártica Paulista, a Hanseá-
tica, a Polônia (essas duas últimas eram empresas cariocas) e a Ritter, do
R i o Grande do Sul. Isso, para m e n c i o n a r apenas as fábricas mais i m p o r -
tantes, que buscavam vender seus produtos no Distrito Federal.
B R A S I L . M i n i s t é r i o d o Trabalho, Indústria e C o m é r c i o , D e p a r t a m e n t o N a c i o n a l
de Estatística, Estatística da Produção Industrial, 1915-1929. R i o de Janeiro, T i p . do
D e p . N a c i o n a l de Estatística, 1 9 3 3 , págs. 119 e 132.
29
A o e x a m i n a r m o s u m a amostra d o saldo d e vendas a fregueses d o I n t e r i o r e m d e -
zembro de 1 9 3 1 , constante da Lista de fregueses do interior ( c x . 0 8 , p o r t . , A c e r v o Brahma),
observamos q u e as remessas de m e r c a d o r i a s a localidades situadas no E s t a d o de
Minas Gerais representaram 6 7 , 2 % do c o n j u n t o estudado.As remessas para o Estado
do R i o de Janeiro s o m a v a m 17,2%, a São Paulo, 5,18%, ao Espírito Santo, 7%, e os
demais estados p a r t i c i p a v a m c o m 3 , 2 5 % do total. L e v a n t a m o s as vendas para 2 3 4
municípios, c o m o q u e c h e g a m o s ao total de Rs 2 . 1 1 6 : 6 3 9 $ 0 9 4 , s e n d o q u e a soma
total das vendas interioranas e costeiras, em 1 9 3 1 , atingiu Rs 1 1 . 9 9 7 : 3 3 8 $ 0 0 0 . A
identificação do estado de o r i g e m da localidade, foi baseada em registros do I B G E .
B R A S I L , I B G E , Cadastro de Cidades e Vilas do Brasil, 1996; Divisão territorial do Brasil,
1945.
Inovação de produto ou saída para a crise? O lançamento da cerveja Brahma Chopp I 101
As cervejas mais caras, as do primeiro tipo, predominavam nas vendas
para o Interior. Nas vendas locais, as cervejas de m e n o r preço eram as
preferidas, o c u p a n d o o c h o p e um lugar estável, com oscilações sazonais
de venda, c o m o mostra o Gráfico 3. C o n t u d o , as vendas de exportação
respondiam p o r uma parcela muito expressiva dos resultados da Brahma
no período examinado, janeiro de 1927 a j u n h o de 1937. Há que se
considerar, entretanto, que as vendas das cervejas do primeiro tipo —
que predominavam nas vendas de exportação — eram responsáveis pela
maior fatia das receitas de venda da Brahma. Assim, c o m o era de se
esperar, as alterações nos mercados do Interior afetaram fortemente os
resultados da cervejaria, c o m o indicam os Gráficos 1 e 2.
No entanto, os problemas das cervejarias não se limitaram à redu-
ção das vendas para o Interior. Muitas fronteiras no mercado de cerveja
se diluíram durante os anos de crise, a começar pela fronteira entre os
grandes produtores — as cervejarias de baixa fermentação, que dispunham
de ganhos de eficiência produtiva em função da tecnologia que adotavam
— e os pequenos produtores, as cervejarias de alta fermentação. O avanço
das cervejas populares foi possível porque o mercado consumidor passou
a preferir as cervejas mais baratas e de m e n o r qualidade. As grandes cer-
vejarias, antes da crise, compensavam a ausência de barreira tecnológica
à entrada no mercado de cervejas populares c o m o domínio do mercado
das cervejas mais caras. C o m a crise, todos os produtores se m o v e r a m
para ocupar o m e s m o espaço do mercado — o das cervejas populares.
Em conseqüência, a vantagem competitiva da Brahma e de suas c o n -
gêneres tendeu a enfraquecer-se, c o m o admitiu a Diretoria ao C o n s e l h o
30
Fiscal da empresa, em novembro de 1930.
30
R e l a t ó r i o da D i r e t o r i a ao C o n s e l h o Fiscal, 1 0 / 1 1 / 1 9 3 0 , cx. 9 3 , p o r t . Acervo Brahma,
102 I Teresa Cristina de Novaes Marques & Maria Teresa Ribeiro de Oliveira
D u r a n t e as primeiras décadas do século X X , as grandes cervejarias
buscaram pactuar os preços de cervejas mais caras — as de primeiro e
segundo tipos — em níveis suficientes para garantir grandes margens de
lucros. Entretanto, no início da década de 1930, a retração geral da d e -
manda provocada p o r uma queda da renda impediu que essa estratégia
de a u m e n t o combinado de preços fosse mantida. A saída encontrada
foi o lançamento de novos produtos, c o m o a Brahma C h o p p .
Inovação de produto ou saída para a crise? O lançamento da cerveja Brahma Chopp I 103
o
Gráfico 3 E v o l u ç ã o das vendas de cerveja de 1 tipo, j a n . / 1 9 2 7 a j u n . / 1 9 3 7 (por vasilhame;
valores e m mil-réis)
31
Os r e l a t ó r i o s da D i r e t o r i a ao C o n s e l h o Fiscal d i s c r i m i n a m o valor e a q u a n t i d a d e
104 I Teresa Cristina de Novaes Marques & Maria Teresa Ribeiro de Oliveira
própria B r a h m a contribuiu para esse maior crescimento da produção
de cervejas mais baratas. Ao final de 1927, a empresa recolocou no
mercado a marca A B C , cuja p r o d u ç ã o havia sido suspensa durante a
Primeira G u e r r a . E, ao que parece, a A B C atraiu consumidores de cer-
veja de s e g u n d o tipo, c o m o , por exemplo, os consumidores da Fidalga,
32
marca essa que, praticamente, desapareceu do m e r c a d o .
A A B C era produzida pelo sistema de alta fermentação e estava sujeita,
portanto, ao m e n o r valor do imposto de c o n s u m o q u e incidia sobre
esse tipo de cerveja. No entanto, diferentemente dos produtos das p e -
quenas fábricas, a A B C era submetida ao processo de pasteurização e
contava c o m o prestígio de ser um produto da Brahma. Assim, o c o n -
sumidor de cerveja de alta fermentação dispunha de uma alternativa à
cerveja barata que bebia cotidianamente, c o m a vantagem de ser p r o d u -
zida mediante procedimentos que acreditava fossem higiênicos. A falta
de controle sobre a higiene foi sempre o ponto levantado pelas cervejarias
de baixa fermentação para depreciar os produtos dos concorrentes. O
discurso das grandes cervejarias sobre as vantagens da cerveja pasteuriza-
da - c o n t i n u a m e n t e repetido e sob diferentes formas — acabou atraindo
consumidores de cerveja de alta fermentação para os produtos das
grandes cervejarias. Na Brahma, contribuiu para atrair apreciadores de
suas cervejas de m e n o r preço. É o que explica o crescimento das vendas
de terceiro tipo a partir de 1932 em d e t r i m e n t o das vendas de cerveja
de segundo tipo, c o m o mostra o Gráfico l . A A B C foi capaz inclusive
de atrair consumidores de cerveja de segundo tipo da própria Brahma.
C o m o a A B C era muito p o u c o vendida no Interior, p o d e m o s c o n -
siderar o d e s e m p e n h o das vendas dessa modalidade de cerveja c o m o
um dos principais indicadores da competição no mercado popular da
cidade do R i o de Janeiro. A A B C era o produto mais barato da Brahma:
chegava ao varejista carioca ao preço de $625 réis a garrafa, enquanto
outra cerveja similar, a Cavaleira, custava 1$083 a garrafa. U m a marca
Inovação de produto ou saída para a crise? O lançamento da cerveja Brahma Chopp I 105
de primeiro tipo, c o m o a Teutônia, custava, então, 1$333 mil réis, e o
chope era vendido ao comerciante a 1$500 mil réis o litro, o que cor-
33
responderia a $900 réis a garrafa. N ã o admira, portanto, que fosse tão
consumido: reunia suposta qualidade (a Brahma o classificava c o m o
produto de primeira qualidade), o prestígio da empresa e preço atraente.
E um b o m preço era um fator m u i t o relevante em conjuntura de crise.
Dados sobre a evolução das vendas da Brahma à época são fornecidos
pelos Relatórios da Diretoria ao Conselho Fiscal da empresa. Esses re-
latórios eram d o c u m e n t o s de circulação interna que informavam os
membros do Conselho Fiscal sobre o desempenho das vendas, calculadas
a preços básicos, isso é, excluídas as margens de comercialização, trans-
p o r t e e imposto de consumo. Assim, o exame da evolução dos preços
básicos dos diferentes tipos de cerveja entre novembro de 1928 e janeiro
de 1937 nos p e r m i t e traçar o perfil da política de preços adotada pela
Brahma nesse período. O preço do chope, produto do primeiro tipo,
era 30% superior ao da A B C , a cerveja mais barata da Brahma. Já o
preço da cerveja de segundo tipo era 4 5 % maior do que o da A B C , o
que p o d e causar surpresa ao leitor, u m a vez que as cervejas de segundo
tipo eram produzidas a m e n o r custo. Lembremos, p o r é m , que elas eram
comercializadas em garrafas, ao contrário do chope, vendido em barril.
Desse m o d o , há q u e se considerar o peso dos custos de aquisição das
garrafas, mercadoria cara, escassa e frágil, no preço final do produto.
A manutenção de preços baixos para a A B C relativamente aos preços
outros produtos revela a estratégia adotada pela empresa para ampliar
sua participação no mercado popular, mas essa decisão se mostrou
problemática à época da crise. O que parecera conveniente no final de
1928 — relançar u m a marca a preços acessíveis — perdera seus atrativos
sob a conjuntura de retração do volume de vendas, pois não interessava
à Brahma vender apenas produtos baratos para o mercado popular.
Assim, c o m o objetivo de ampliar seu mercado, a Brahma lançou
uma nova marca no verão de 1 9 3 3 / 1 9 3 4 : a Brahma C h o p p . Essa nova
marca visava a ampliar um determinado segmento do mercado consu-
midor: o c o n s u m o nas residências. O lançamento da Brahma C h o p p ,
34
embora sob a r o u p a g e m de uma nova estratégia de marketing, deve ser
33
U m a garrafa de cerveja c o n t i n h a em média 6 0 0 ml da bebida. A tabela de preços de
venda da B r a h m a se refere a preços de cerveja colocada nos p o n t o s de varejo. C o m o
n ã o se c o n h e c e a m a r g e m de c o m é r c i o , não há c o m o estimar o p r e ç o final pago
p e l o c o n s u m i d o r . Tabela de preços, posto cm domicílio, janeiro de 1931;cx. 1 1 , p o r t ; AB.
34
E n t e n d e - s e p o r estratégia de marketing o c o n j u n t o de ações q u e visam a p r o m o v e r
106 I Teresa Cristina de Novaes Marques & Maria Teresa Ribeiro de Oliveira
entendido, a nosso ver, c o m o u m a estratégia empresarial adotada em
função de u m a circunstância adversa de mercado. Ao insistir nas vendas
da A B C , a Brahma poderia ter permanecido limitada aos parâmetros
do mercado de baixa-renda, o n d e não haveria espaço para crescimento
dos lucros, dada a concorrência acirrada e o limite de renda dos consu-
midores potenciais.
Cabe observar que as vendas de c h o p e estavam estagnadas em todo
o período analisado, c o m o mostra o Gráfico 3. Desse m o d o , a Brahma
C h o p p buscava abrir u m a nova fonte de receitas, a despeito de colocar
em risco a reputação de excelência técnica da empresa ao insistir em
oferecer um produto que, de fato, não poderia existir: chope em garrafa.
No seu lançamento, o preço por litro da Brahma C h o p p era 8,5% mais
caro do que o preço por litro de chope e 3 8 % mais caro do que o da
ABC. Se t o m a r m o s o período entre janeiro de 1934 e janeiro de 1937,
o preço da Brahma C h o p p era 3 9 % mais caro, em média, do que o da
35
A B C , e 1 1 % mais caro do que o c h o p e propriamente dito. C o m o p o -
deria um produto mais caro alcançar a preferência dos consumidores,
deslocando do mercado, inclusive, outros produtos da mesma empresa
e,tudo isso, sob uma conjuntura econômica ruim? A resposta está contida
na idéia de inovação. N ã o era exatamente u m a inovação tecnológica,
embora a propaganda da Brahma assim o afirmasse, mas u m a inovação
de produto, capaz de atrair a curiosidade dos consumidores, desejosos
de experimentar a novidade no m u n d o das cervejas brasileiras. Eis u m a
propaganda da Brahma C h o p p publicada na imprensa carioca, em março
36
de 1934, exaltando a inovação tecnológica contida no p r o d u t o :
as vendas de um p r o d u t o . A B r a h m a C h o p p buscava a t e n d e r à d e m a n d a p o r c h o p e
fora dos espaços públicos de diversão. Philip Kotler (1996), Marketing, São P a u l o :
Atlas.
35
Essa relação foi calculada a partir dos relatórios da D i r e t o r i a ao C o n s e l h o Fiscal,
q u e i n f o r m a m a q u a n t i d a d e v e n d i d a e o valor a r r e c a d a d o p o r tipo de cerveja.
Relatórios da Diretoria ao Conselho Fiscal, caixas 06, 0 5 , 22, AB.
36
Jornal A Sentinela, 5 / 3 / 1 9 3 4 .
Inovação de produto ou saída para a crise? O lançamento da cerveja Brahma Chopp I 107
de todos — Brahma C h o p p em garrafas, de gosto, cor e leveza iguais
ao Brahma C h o p p em barril.
37
Aponianwntoi de 1894-1934, cx. 9 5 , p o r t . ; AB.
38
As vendas da B r a h m a C h o p p i n c l u e m as remessas para o Interior.
39
N e m s e m p r e foi assim, dados de venda relativos ao p e r í o d o de j u l h o de 1912 a
j a n e i r o de 1919 r e v e l a m o p r e d o m í n i o das cervejas de segunda qualidade nas receitas
de venda da B r a h m a . O q u e parece ter havido durante os anos 1920 foi o investimento
em vendas de cerveja de p r i m e i r a qualidade aos fregueses do Interior. Para alcançar
b o n s resultados nesse m e r c a d o , a B r a h m a precisou adotar estratégias de c o m e r c i a l i -
zação específicas, c o m o a m a n u t e n ç ã o de u m a e q u i p e p e r m a n e n t e de representantes
comerciais a p e r c o r r e r n u m e r o s a s localidades do i n t e r i o r e da costa brasileira.Teresa
Cristina de Novaes M a r q u e s (2003), Capital, Cerveja e Consumo de Massa, capítulo IV.
108 I Teresa Cristina de Novaes Marques & Maria Teresa Ribeiro de Oliveira
campanha de lançamento do produto trouxe inovações importantes
em matéria de mensagem publicitária.
Para o n d e quer que se voltasse, o consumidor carioca deparava c o m
mensagens que o induziam a c o n s u m i r a bebida: cartazes dispostos em
lugares públicos, stands da Brahma em grandes festas populares, anúncios
em jornais e revistas. Após a liberação da propaganda comercial no
rádio, em 1932, t a m b é m esse veículo passou a ser usado na campanha
40
promocional, atingindo um público m u i t o maior. Assim, a cerveja
envolvia o cotidiano da população, e seu c o n s u m o passava a ser visto
c o m o natural. Ao expor a idéia de beber cerveja c o m insistência — de
diversas formas e em muitos lugares —, a propaganda fez parte do processo
de afirmação da liderança das grandes cervejarias no mercado. Na ausên-
cia de propaganda, a demanda por cerveja no Brasil não teria, certamente,
evoluído da mesma maneira.
Neste p o n t o , devemos retomar a questão do consumo, já anunciada
na primeira seção deste ensaio. Cabe, aqui, fazer uma breve reflexão
sobre os significados sociais do c o n s u m o de massa.
Estudiosos do marketing e da propaganda não vêem problemas teóricos
no consumo. As pessoas consumiriam bens para satisfazer suas necessi-
dades: desde as mais elementares, ligadas à sobrevivência, às aspirações
de ordem emocional. Esses autores aplicam conceitos originados da
Psicologia à sua disciplina, e basta. A eles importa apenas elaborar os
procedimentos a serem cumpridos pelos profissionais que se dedicam a
41
promover as vendas das mercadorias de uma empresa.
Mas o c o n s u m o é, simultaneamente, uma operação econômica e
cultural. Buscando definir, inicialmente, qual a natureza do c o n s u m o
no processo econômico, vejamos de que forma a tradição do pensamento
marxiano tratou o assunto. Marx criticou seus contemporâneos por
conceberem o consumo c o m o uma etapa externa ao processo de p r o -
dução. A seu ver, produção e c o n s u m o são partes integrantes de um
mesmo processo e se alimentam m u t u a m e n t e . Na etapa do consumo,
dá-se a realização da mercadoria, a qual, finalmente, converte-se em
capital monetário. Assim, na esfera da circulação, completa-se o processo
40
Em m a r ç o de 1932, o G o v e r n o Provisório b a i x o u d e c r e t o a u t o r i z a n d o e r e g u -
l a m e n t a n d o a propaganda nas transmissões de rádio. ( D e c r e t o n° 2 1 . 1 1 1 , de l ° / 3 /
1932). I n i c i a l m e n t e , os comerciais p o d i a m o c u p a r até 10% das transmissões. Luiz A
Ferraretto (2001), Rádio: o veículo, a história e a técnica. P o r t o A l e g r e : Sagra Luzzatto.
41
Veja-se, p o r exemplo, o livro de Philip Kotler, m u i t o usado nas escolas de a d m i n i s -
tração: Philip Kotler(1996), Marketing, São P a u l o : Atlas.
Inovação de produto ou saída para a crise? O lançamento da cerveja Brahma Chopp I 109
42
de reprodução do capital industrial. Esse é o m u n d o do capitalismo, o
m u n d o da produção de coisas. Mais e mais coisas, e para quê? Para res-
p o n d e r a necessidades, diriam os profissionais de marketing. Marx tem
uma visão mais complexa sobre o processo de indução ao consumo.
Afirma ele que o consumidor age sob o apelo sedutor daquele que
produz, pois este produz a mercadoria e t a m b é m o m o d o c o m o ela
deve ser consumida. Além disso, o produtor gera no consumidor a n e -
cessidade dos produtos. Segundo Marx: "a produção não produz, pois,
unicamente o objeto do consumo, mas t a m b é m o m o d o de consumo,
ou seja, não só objetiva, c o m o subjetivamente. Logo, a produção cria o
43
consumidor".
Entretanto, essas respostas não esgotam o problema, uma vez que a
noção de necessidade apresenta dificuldades teóricas não superadas na
tradição marxiana. E n t e n d e H a u g que a mercadoria é concebida para
atender ao que o p r o d u t o r supõe sejam as necessidades do público
consumidor, mas, ao m e s m o tempo, o p r o d u t o r elabora um conjunto
múltiplo de estratégias para fazer surgir no consumidor a necessidade
de consumir um determinado bem.Voltamos a indagar: existem neces-
sidades inatas ou tudo não passa de um discurso de emulação ao consumo,
concebido, deliberadamente, para realizar o valor de troca das merca-
44
dorias?
De fato, não há solução satisfatória para esse problema no âmbito da
tradição de p e n s a m e n t o marxiano, embora possamos encontrar, no
p r ó p r i o Marx, uma visão sutil sobre a relação entre o produtor e o
45
consumidor:
42
Karl M a r x (1983), O Capital.São Paulo:Abril Cultural, vol.III, t. I , p á g . 2 0 4 . [Coleção
Os Economistas].
43
Karl M a r x (1974), Para a crítica da E c o n o m i a Política. C o l e ç ã o Os Pensadores. São
P a u l o : Abril C u l t u r a l , vol. X X X V , pág. 116.
44
A função da valorização sempre à procura de u m a resposta para a questão da realização
e n c o n t r a expressão j u s t a m e n t e na aparência exagerada do valor de uso, i m p e l i n d o
o valor de troca c o n t i d o na m e r c a d o r i a ao e n c o n t r o do dinheiro. Ansiosa p e l o
d i n h e i r o , a m e r c a d o r i a é criada na p r o d u ç ã o capitalista à i m a g e m da ansiedade do
p ú b l i c o c o n s u m i d o r . Essa i m a g e m será divulgada mais tarde pela propaganda, separada
da m e r c a d o r i a . W o l f g a n g F. H a u g (1996), Crítica à Estética da Mercadoria, pág. 3 5 .
45
Karl M a r x (1974), Op. cit., pág. 116.
110 I Teresa Cristina de Novaes Marques & Maria Teresa Ribeiro de Oliveira
produção que se mantivesse n u m estádio de primitiva rudeza —, o
próprio consumo, enquanto impulso, é mediado pelo objeto. A n e -
cessidade que sente deste objeto é criada pela percepção do mesmo.
(...) Portanto,a produção não cria somente um objeto para o sujeito,
mas t a m b é m um sujeito para o objeto."
46
Teresa C r i s t i n a de Novaes M a r q u e s (2003), Capital, Cerveja e Consumo de Massa,
capítulo V I .
47
A inserção das massas no Estado c o m o c o n s u m i d o r e s oferece u m a falsa relação de
p e r t e n c i m e n t o , pois a verdadeira consciência dos interesses dos trabalhadores e m e r g e
da ação política em prol de ganhos salariais. [ H a u g (1996), Crítica à Estética da Mer-
cadoria, apêndice.]
Inovação de produto ou saída para a crise? O lançamento da cerveja Brahma Chopp I 111
funções se realizam, deveremos buscá-los em outros autores. Em um
ensaio, U m b e r t o Eco mapeia o sistema de referências contido na m e n -
sagem publicitária. Adverte este autor que o discurso da propaganda se
reparte em soluções visuais e verbais, sendo cada u m a delas submetida
a convenções próprias. E, a despeito de manipular idéias de um sistema
de códigos de r e c o n h e c i m e n t o convencionado, c o m base nos quais o
receptor da mensagem formula suas expectativas, o discurso da propa-
ganda tem p o r ambição causar surpresa ou, no mínimo, emoção, atraindo
48
a atenção do consumidor para as virtudes do p r o d u t o .
Para Eco, o discurso da propaganda se vale de recursos de retórica
consagrados: metáfora, hipérbole e, principalmente, a antonomásia,
q u a n d o um indivíduo é t o m a d o c o m o representante do c o m p o r t a m e n -
to de todos os outros. Esses artifícios são empregados para que o receptor
da mensagem identifique os códigos culturais que estão em jogo.Vários
desses recursos de retórica p o d e m ser encontrados na propaganda da
Brahma C h o p p , c o m o as duas primeiras imagens mostradas mais adiante.
Se, em termos técnicos, o novo p r o d u t o não trazia inovações, trazia,
c o m o novidade, a promessa de que o apreciado chope dos bares e res-
taurantes estava disponível, também, para o c o n s u m o doméstico. Nisso,
a B r a h m a seguiu a tendência que já se manifestava em outros países:
ampliar os espaços de c o n s u m o da cerveja. Estava em disputa a fronteira
comercial do lar. N o s E U A , p o r exemplo, a partir de 1932, as cervejarias
pretenderam ampliar o mercado alvo de seus produtos induzindo o
c o n s u m o doméstico da bebida. N o s anos que se seguiram ao fim da Lei
Seca, a publicidade de cerveja empregou todos os recursos de imaginação
para sugerir novas formas de inserção da bebida no cotidiano dos consu-
49
midores, c o m o lembrou o historiador Stanley B a r o n :
48
E c o e n t e n d e p o r c ó d i g o u m a estrutura elaborada sob a forma d e u m m o d e l o e
postulada c o m o regra subjacente a u m a série de mensagens concretas e individuais
q u e a ela se ajustam e só em relação a ela se t o r n a m c o m u n i c a t i v a s . U m b e r t o E c o
(1997), A Estrutura Ausente: introdução à pesquisa semiológica. São P a u l o : Perspectiva,
pág. 3 9 .
49
Stanley B a r o n (1962), Brewed in America, The History of Beer and Ale in the United
States. B o s t o n : Litte, B r o w n & C o . , pág. 3 2 8 .
112 I Teresa Cristina de Novaes Marques & Maria Teresa Ribeiro de Oliveira
No Brasil, a propaganda das cervejarias adotou a mesma estratégia
de diversificar as situações sociais em que a cerveja pudesse tomar parte
c o m o elemento aglutinador das relações humanas, embora sob outras
motivações.
N o t o r i a m e n t e , a indústria cervejeira norte-americana saíra da e x p e -
riência amarga dos anos de proibição c o m a necessidade de encontrar
novas formas e lugares para o c o n s u m o de seus produtos, uma vez que,
durante os anos da campanha pró-temperança, os bares foram alvo de
severa vigilância. No auge da campanha pró-temperança nos E U A ,
tornou-se c o m u m grupos de ativistas acamparem em frente a bares
50
para constranger os freqüentadores. Durante o período da Lei Seca, a
freqüência a bares clandestinos era assunto de polícia. No Brasil, os m é -
dicos higienistas partidários da temperança não criticaram de forma
tão c o n t u n d e n t e os bares e seus freqüentadores. Centraram seus esforços
primordialmente na condenação das bebidas destiladas.
A campanha promocional da Brahma C h o p p se valeu substantiva-
mente da mídia impressa e, t a m b é m , do rádio, após a liberação da p r o -
paganda comercial neste veículo. No rádio, a publicidade da Brahma
usou a música c o m o aliada e alcançou um público m u i t o mais amplo.
Para atingir esse propósito, a B r a h m a e n c o m e n d o u u m a marchinha ao
compositor Ary Barroso, c o m letra do jornalista Bastos Tigre. C o n s i d e -
rando a estratégia publicitária, o lançamento da Brahma C h o p p inovou
ao empregar u m a composição inédita, produzida especialmente para a
campanha. A curiosa letra dessa música revela que a idéia de chope e n -
51
garrafado sofria constestação:
O Brahma C h o p p em garrafa
Q u e r i d o em todo o Brasil
C o r r e longe, a banca abafa
É igualzinho ao de barril
(Refrão)
C h o p p em garrafa
Tem justa fama
É o mesmo chopp
C h o p p da Brahma
50
Carl M i l l e r (1998), Breweries of Cleveland. Cleveland: S c h n i t z e l b a n k Press.
51
F o l h e t o da p r o p a g a n d a da B r a h m a C h o p p , preservado no Acervo Brahma.
Inovação de produto ou saída para a crise? O lançamento da cerveja Brahma Chopp I 113
Q u a n d o o t e m p o está abafado
O que o t e m p o desabafa
É o Brahma C h o p p gelado
De barril ou de garrafa
(Refrão)
Q u e m o contrário proclama
Diz uma coisa imbecil
Inveja do C h o p p Brahma
De garrafa e de barril
114 I Teresa Cristina de Novaes Marques & Maria Teresa Ribeiro de Oliveira
Figura l . A t é d e P o r t u g a l v ê m elogios a o g o s t o d a B r a h m a C h o p p .
Inovação de produto ou saída para a crise? O lançamento da cerveja Brahma Chopp I 115
Figura 2. A toda h o r a p o d e - s e b e b e r c h o p p . . .
52
S e g u n d o W. H a u g (1996, Op. cit., pág. 38) a marca é a estetização da m e r c a d o r i a .
T o r n a ú n i c o e revestido de i d e n t i d a d e o p r o d u t o de massa, p r o d u z i d o em larga
escala e indiferenciado. Se a o p e r a ç ã o comercial é b e m sucedida e os c o n s u m i d o r e s
se t o r n a m fiéis a u m a dada marca, sustenta-se o p r e ç o de m o n o p ó l i o .
116 I Teresa Cristina de Novaes Marques & Maria Teresa Ribeiro de Oliveira
Figura 3 . Ó p t i m o ! A g o r a t a m b é m h á B r a h m a C h o p p e n g a r r a f a d o .
117
Figura 4. N ã o t o m e g a t o p o r lebre, o v e r d a d e i r o c h o p e é de b a r r i l e da A n t á r t i c a .
118 I Teresa Cristina de Novaes Marques & Maria Teresa Ribeiro de Oliveira
público c o m o herdeira das tradições cervejeiras alemãs, c o m o no folheto
53
produzido para a Exposição Nacional de 1 9 0 8 . D u r a n t e a Guerra, a
empresa foi alvo de retaliações políticas em razão de seus vínculos c o m
a comunidade de negócios alemã no Brasil, e, a partir de então, foram
abandonados os recursos textuais e imagéticos que a relacionassem à
Alemanha. Os ícones costumeiros que remetiam à tradição cervejeira
européia, tão freqüentemente evocados nas peças de propaganda elabo-
radas até a Primeira Guerra, desapareceram. O m o n g e medieval, a estre-
la de seis pontas, os ramos de lúpulo e de cevada e a fortaleza medieval
deram lugar a cenas prosaicas, em que o ato de beber cerveja ocupa o
papel de elemento aglutinador das relações sociais, tendo p o r cenário
de fundo imagens da cidade do R i o de Janeiro. Ressalvemos que essa
mudança é menos perceptível nos rótulos das garrafas do que nos cartazes
e demais peças de propaganda impressa.
Poder-se-ia argumentar que a renovação do c o n t e ú d o faz parte do
discurso publicitário, que busca encontrar novas formas para realizar
seu propósito de manter o interesse do consumidor pelo produto. Mas,
sem dúvida, o lançamento da cerveja Brahma C h o p p representou mais
do que u m a mudança estética e de conteúdo, representou uma ruptura
simbólica definitiva c o m a tradição cervejeira alemã.
Considerações finais
53
Lê-se no folheto assinado pelo m é d i c o Pires de Almeida, identificado c o m o higienista,
a vinculação da B r a h m a ao p a d r ã o científico de p r o d u ç ã o de cerveja v i g e n t e na
Alemanha:
Todas estas delicadas transformações que vão aqui resumidas, se g u a r d a m e
observam no fabrico de diferentes marcas da Cervejaria B r a h m a , s e n d o q u e a elas
presidem dois q u í m i c o s de n o m e a d a , a m b o s i g u a l m e n t e abalizados c um dos quais
dirigiu, no caráter de diretor-técnico, u m a das mais afamadas cervejarias da A l e m a n h a .
Dr. Pires de A l m e i d a (1908),A C o m p a n h i a Cervejaria B r a h m a p e r a n t e a indústria,
o c o m é r c i o e a higiene. R i o de J a n e i r o : C a n t o n & Beyer, pág. 10.
Inovação de produto ou saída para a crise? O lançamento da cerveja Brahma Chopp I 119
A situação se apresentava da seguinte maneira: havia uma grave crise
de vendas e poucos recursos disponíveis para superá-la. M e s m o sob o
risco de macular a reputação de excelência de seus produtos, tão cultivada
nas três primeiras décadas de existência da empresa, valia a pena incentivar
o c o n s u m o doméstico de chope, conquistando a fronteira do lar. Ao
m e s m o tempo, a Brahma amplia sua presença no mercado consumidor
de maior renda, agora que a sua A B C ganhara posições no mercado
popular.
120 I Teresa Cristina de Novaes Marques & Maria Teresa Ribeiro de Oliveira