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A UMBANDA, AS NOTÍCIAS E OS NÚMEROS

dossiê
Maria Helena Villas Bôas Concone

Resumo Abstract
A Umbanda, as Notícias e os Números”, fala Umbanda, the News and the Numbers”,
da umbanda em São Paulo – Brasil, a partir speaks of Umbanda in São Paulo – Brazil,
de duas fontes: números dos censos e notí- from two sources: census figures and news-
cias coletadas em jornais. Os números reve- paper reports. The figures revealed by the
lados pelos censos mostram mudanças no censuses show the change in the Brazilian
panorama religioso brasileiro e o lugar aí religious situation and the place where Um-
atribuído à Umbanda; são mudanças signifi- banda is situated here; these censuses show
cativas no perfil religioso da população na- significant changes in the religious profile
cional. O noticiário recolhido nas páginas de of the Brazilian population. The newspaper
jornais cobrem cerca de cem anos (das últi- reports cover around one hundred years
mas décadas do século XIX às últimas do sé- (from the last decades of the 19th Century
culo XX). Nas décadas finais do século pas- to the last decades of the 20th Century). By
sado, destacamos um período de grande vi- the last decades of the last Century, we
sibilidade da Umbanda em São Paulo, nos highlight a period of great visibility of Um-
jornais; a esse período seguiu-se (e segue-se) banda in São Paulo, in the newspapers’
outro de relativa invisibilidade dessa religião pages; following this period there was an-
nas páginas dos mesmos jornais, corrobora- other of relatively invisibility of this reli-
da, aparentemente, pelos dados censitários. gion, corroborated, apparently, by the cen-
Este percurso “dos holofotes às sombras” é suses data. This journey “from the spotlight
de fato o desafio desta reflexão. to the shadows”, is indeed the challenge of
this reflection.

Palavras-chave Keywords
Religiões. Umbanda. Dados censitários. Notí- Religions. Umbanda. Census figures.
cias jornalísticas. Newspasper reports.

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1 À guisa de introdução te estratégica no empreendimento humano
de construção do mundo” (BERGER, 1985).
Este pequeno artigo se move em torno Vê-se que a reflexão sobre mudanças nas
de números e de notícias. definições religiosas, sociais e individuais,
Começando com os números. não é nova; a relação cultura, sociedade e
Os dados dos últimos censos sobre as religião é estreita, e as mudanças sociocul-
opções religiosas brasileiras mostram revi- turais devem forçosamente repercutir na
ravoltas até previsíveis, mas, nem por isso, definição religiosa, ou, por outro ângulo, a
menos capazes de nos colocar questões so- redefinição religiosa poderia nos dizer algo
bre seus significados. Em termos religiosos, sobre a realidade sociocultural.
alguns autores bastante palmilhados pelos Aqueles que estudam o movimento da
pesquisadores já deram algumas direções. religiosidade nacional desde algumas déca-
É o caso de Berger (1985), na sua reflexão das devem ter presente na memória o in-
seminal em The Sacred Canopy de 1969 (O teresse despertado nas décadas de setenta,
Dossel Sagrado, Paulinas, 1985) que diz, oitenta e noventa pelos temas da “diver-
simplificando ao máximo, que quando uma sidade religiosa” nacional, da “mobilidade
religião perde a capacidade de oferecer res- religiosa” brasileira e da “dupla pertença”.
postas, de contribuir para dar significado à É ai que os grandes números são sugesti-
vida dos adeptos estes buscam outros espa- vos. Quando a mobilidade religiosa é fixa-
ços que consigam preencher o vazio. Em, da em números e nos é apresentada, pode-
Geertz (1978), encontramos um contrapon- se sugerir que tal mobilidade, pelo menos
to igualmente fertilizador na sua reflexão nas últimas décadas, tendeu a se definir por
sobre a “Religião como Sistema Cultural”, uma escolha mais permanente? A dupla
publicado em The Interpretation of Cul- pertença teria recuado? A diversidade reli-
tures, 1973 (A Interpretação das Culturas, giosa diminuiu frente à proporção de cris-
Zahar, 1978). O autor afirma que há desa- tãos? O que significam, em termos identitá-
fios que toda religião tem que enfrentar, se rios nacionais, tais mudanças?
pretende subsistir; são desafios que podem As mudanças no Brasil têm sido de fato
mergulhar o crente no caos, caso não en- de toda ordem, econômicas, políticas, so-
contre respostas que reponham a explica- ciais, culturais, e de composição etária da
bilidade. Destaca três grandes desafios, que população. Nesse quadro de amplas e va-
se colocam ao crente: qual o limite de sua riadas mudanças é que se desenha o novo
capacidade analítica, qual o limite da sua perfil religioso brasileiro. Quais as relações
capacidade de suportar a dor e qual o limite entre tais mudanças? Que cara nova é essa
para a sua introspecção moral? que o país mostra?
Ambos se fazem herdeiros da tradição Continuando, agora com as noticias de
sociológica de Durkheim, Weber e Marx. Jornais.
Entendem a sociedade e a cultura como Realizando um extenso levantamento de
construtos humanos e a religião como notícias sobre Umbanda, entre outros cultos
sendo um “complexo sistema de símbolos afro-brasileiros, em jornais paulistanos, en-
sagrados que funcionam para sistematizar tre outros, verificamos que as notícias que
o ethos e a visão de mundo de um povo” conseguimos reunir sobre esse tema, eram
(GEERTZ, 1978), ou desempenhando “par- frequentes desde o final do século retrasado

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até as primeiras décadas do século passado Olhando atentamente os números apre-
e as mais fartas e longas eram de meados do sentados, pode-se ver que, estrito senso, a
século XX, estendendo-se até os anos 80 e diversidade religiosa brasileira, em termos
início dos 90. Nestas últimas, encontramos percentuais e no quadro abaixo, configura-
textos que avaliavam a Umbanda de modo da como “Outras”, não teve de fato muito
positivo (esse nome aparece nesse conjunto), espaço nesse período de 50 anos! Somando
com algumas exceções, enquanto, nos recor- católicos e evangélicos, reunindo-os como
tes de períodos anteriores, a referência era cristãos, obtemos:
sempre negativa (às “feitiçarias” - as mais
antigas e à Macumba e ao “baixo espiritis- Ano Cristãos S/ Religião Total Outras
mo” - as dos períodos intermediários). Hoje, 1950 96,8% 0,5% 97,4% 2,6%
os mesmo jornais praticamente não falam 1960 97,1% 0,5% 97,6% 2,4%
de cultos afro-brasileiros ou de Umbanda. 1970 97,0% 0,8% 97,8% 2,2%
O silêncio reflete provavelmente o rearranjo 1980 95,6% 1,6% 97,2% 3,2%
religioso da população e o interesse da im- 1991 92,4% 4,8% 97,2% 3,2%
prensa por esses “fatos novos”. 2000 89,1% 7,4% 96,5% 3,5%
Entre esses dois parâmetros, números
e teor das notícias, vamos nos questionar
sobre as mudanças e a visibilidade na im- De 1950 a 2000, o espaço das “outras”
prensa escrita e o lugar da Umbanda nesse religiões, um campo bastante variado, foi
novo panorama. de cerca de 2,5% para 3,5%. Parece de fato
um percentual muito magro para acolher a
2 Os números decantada diversidade religiosa nacional.
Claro está que este quase “instantâneo”
Nos comentários relativos aos números exige inúmeros refinamentos: os dados
dos censos de religião para todo o território são globais, portanto, há, entre tantas ou-
nacional, entre 1950 e 2000, encontrados tras razões que não poderíamos elencar,
em site do Instituto Brasileiro de Geografia diferenças regionais (e locais) que não
e Estatística (IBGE, 2000)1, foram destaca- podem ser desconsideradas e, evidente-
das as mudanças em três setores mais no- mente, também não se pode desconsiderar
táveis: catolicismo, religiões evangélicas e a famosa “dupla pertença” possibilitada
“sem religião”: pelo catolicismo brasileiro e pela própria
umbanda, campo que nos interessa neste
Ano Católicos Evangélicos Sem Religião artigo. As autodefinições como “católico
1950 93,5% 3,4% 0,5% e...”, “espírita e...”, “umbandista e...” (ca-
1960 93,1% 4,0% 0,5%
tólico e umbandista; católico e de santo...;
ou outras: como umbandista e de candom-
1970 91,8% 5,2% 0,8%
blé ou de “linha cruzada”; umbandista e
1980 89,0% 6,6% 1,6%
espírita…) não aparecem nesses números.
1991 83,3% 9,1% 4,8%
Mesmo com reconfigurações políticas e/
2000 73,7% 15,4% 7,4%
ou ideológicas e também culturais (movi-

1. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: <http//www.ibge.gov.br/home/es-


tatística/população/censo2000/tendências demográficas/tendências/pdf>. Acesso em: 30 jan. 2013.

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mento de anti- sincretismo, por exemplo; De qualquer maneira os números não são
movimento negro, por exemplo...), é pou- “frios”, convidam a pensar.
co provável que essa prática do pertenci- Usando o mesmo procedimento acima,
mento duplo por parte de crentes e adep- podemos ver as porcentagens totais para
tos tenha sido completamente erradicada. 2010:

Ano Católicos Evangélicos Outras Religiões Sem Religião


2010 64,6% 22,2% 5,2% 8,0%

De novo, temos maioria cristã:

Ano Cristãos Sem Religião Total Outras


2010 86,4% 8,0% 94,4% 5,2%

Como se vê, houve uma queda na por- “crença numa força superior”2, portanto, a
centagem das declarações de pertença ao persistência de um ethos religioso, pode-se
Cristianismo, de cerca de 89% da popula- dizer que o brasileiro se define sobretudo
ção no censo de 2000 para cerca de 86% como religioso.
no último censo. Somados estes e os que Alguns detalhamentos podem dar a me-
se declaram “Sem Religião” destacamos o dida da complexidade do campo religioso
acréscimo na porcentagem de declarações nacional.
de pertença a outras religiões: de 3,5 % em No mesmo comentário do IBGE acima
2000 para pouco mais de 5% em 2010. referido, lemos que a maior predominância
Olhando estas mesmas porcentagens to- de católicos é no Nordeste (NE) brasileiro
tais por outro ângulo, pode-se ver que, não que, por outro lado, também é apontado
obstante as alterações no perfil religioso como de “menor taxa de crescimento” de
nacional, a porcentagem de declarações de católicos com 3,5% ao ano; nessa região
pertença a alguma religião somava, no últi- aponta-se ainda a Bahia, Pernambuco e
mo censo, 91,6% (cristãos e pertencentes a Paraíba como os estados que apresentam
“outras” religiões) e esta talvez seja a infor- declínio no número de católicos. A maior
mação mais significativa de todas: mais de taxa de crescimento de católicos é no
90% dos brasileiros se declaram religiosos; Amapá, região Norte, com 4,0% ao ano.
acrescente-se que (como veremos) “sem re- Também na região Norte do Pais é que se
ligião” para muitos declarantes pode signi- encontra a maior taxa de crescimento dos
ficar “não pertencimento a uma instituição “Sem Religião” com 12,0% ao ano. A me-
religiosa, ou Igreja”, mas continuidade da nor taxa de crescimento anual dos “Sem

2. Lopez Villaseñor (2013), em artigo publicado em 2013, destaca nas manifestações dos “Sem Religião”,
na ORKUT (site de rede social e discussões operado na internet pelo Google), a existência da “Comunida-
de Virtual Cristãos Sem Igreja”, além de manifestações que atestam uma religiosidade própria.

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Religião” é apresentada em Sergipe (5,1% patamar dos 90% da população total para
ao ano). Os estados do Rio de Janeiro, Es- 89,0% em 1980 e nas duas décadas se-
pírito Santo e Rondônia têm as menores guintes, 1990 e 2000, para 83,3% e 73,7%
proporções de católicos na população to- respectivamente.
tal, com destaque para Rondônia. No Rio O senso de 2010 reafirma essas tendên-
de Janeiro e em Rondônia encontram-se cias de mudança no perfil confessional da
as maiores proporções de “Sem Religião”; população brasileira. O movimento mais
com 15,5% no Rio de Janeiro e 12,5% em dramático é, sem dúvida, no número de
Rondônia. Nestes estados também estão declarados católicos que surgem no últi-
grandes proporções de evangélicos. O Rio mo censo com 64,6% da população total.
de Janeiro é ainda indicado como a uni- Lembrando os dados dos cinquenta anos
dade federativa com maior diversidade nas anteriores, pudemos ver que houve uma
declarações de religião. queda contínua de cerca de 2,0% a cada
Quanto aos evangélicos, a sua maior dez anos até 1980; de 1980 a 1991 a queda
concentração está no extremo Norte do foi de 6%; de 1991 a 2000 a queda foi de
País: Amazonas, Rondônia, Roraima, Acre e 9% e de 9,2% de 2000 a 2010. Recuando a
também em Goiás (além do Rio de Janeiro 1940, quando o Brasil contava com 95,3%
e Espírito Santo). Os comentários do IBGE de católicos na população, e seguindo até
indicam na região Norte a “ativa presença 2010, num intervalo de 70 anos, a que-
de novos cultos evangélicos”. Imigração da na porcentagem de católicos declara-
de evangélicos e forte atividade de conver- dos na população total foi de 30,7%. No
são, típica desses grupos, responde por essa mesmo período de 70 anos, os evangélicos
concentração, sendo Rondônia um exemplo (campo bastante variado) foram de 2,6%
dessas mudanças mais recentes: o grande em 1940 para 22,2% da população em
crescimento populacional até a década de 80 2010 (graças ao crescimento notável das
foi alimentado pela intensa migração inter- confissões pentecostais em anos mais re-
na e nela o significativo contingente de gaú- centes). O crescimento deste contingente
chos em busca de áreas agrícolas que não foi paulatino, cerca de 1,5% a cada déca-
pode ser esquecido, especialmente porque o da, até o salto de 6% de 1990 a 2000 e de
Rio Grande do Sul era na época um estado quase 7% de 2000 a 2010.
com grande concentração de evangélicos. No quesito “outras religiões” (também
Dois pontos merecem destaque: primei- heterogêneo), fomos de 1,9% em 1940 para
ro, o mapeamento por região já se mostra 5,2% em 2010. No total, um acréscimo de
menos eficaz para destacar semelhanças 2,3% no intervalo de 70 anos. Este também
em termos religiosos, a diversificação pede é um dado importante, embora o campo
análises locais que levem em conta aspec- considerado destas confissões seja enorme
tos socioculturais e históricos de cada espa- e especialmente variado (um cotejamento
ço; segundo, o período dos últimos 20 anos com taxas de imigração de anos mais re-
do século passado mostrou-se marcante no centes, para não corrermos o risco de con-
processo de reconfiguração religiosa. siderar apenas rearranjos e redefinições in-
Na década de 1980, iniciou-se a queda ternas, poderia ser revelador).
mais significativa do número de católicos Mais impressionante talvez seja o con-
declarados no Brasil, quando saímos do tingente de pessoas que se declaram “Sem

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Religião”3, que saíram da marca pouco signi- brados para explicar a saída do catolicismo e
ficativa de 0,2% em 1940 para 8,0% da popu- migração para as Igrejas Pentecostais, dada
lação em 2010. O crescimento marcante neste a condenação da Igreja Católica ao aborto,
caso foi também de 1970 a 1980, quando a ao controle de natalidade ligado ao uso de
porcentagem dobrou (de 0,8% a 1,6%); de 80 inibidores de gravidez (condom ou pílulas) e
a 90, a porcentagem cresceu três vezes (1,6% à liberdade sexual. Ao que indicam alguns
a 4,8%); de 1990 a 2000, saltou-se de 2,5% pesquisadores, a aceitação desses comporta-
para 7,3%, chegando aos 8% em 2010. Em mentos no campo Evangélico (em algumas
70 anos, de 0,2% para 8% da população to- das Pentecostais, pelo menos) já existe.
tal é de fato impressionante. Como dissemos A porcentagem de homens entre os Pen-
antes, mesmo que “Sem Religião” signifique tecostais é menor que das mulheres e a que-
“apenas” ruptura com instituições religiosas bra de seu vínculo com “outras religiões”
e não com o ethos religioso, essa mudança (incluindo umbanda e candomblé) é menor
continua a impressionar. que a das mulheres (homens “permanecem”
Outros ângulos de análise por gênero, ida- mais nas suas opções). A declaração de “sem
de, geração, nível educacional, renda e classe religião”, por outro lado, além de mostrar
revelam diferenças ainda mais marcantes: a diferenças de gênero (maior porcentagem
queda no número de católicos foi maior no de homens), mostra também diferenças se-
contingente feminino da população total e a gundo a idade: as maiores porcentagens de
declaração de “sem religião,” foi maior en- declarantes nessa categoria são de pessoas
tre os homens. As mulheres mostram maior de menos de 60 anos. Em avaliação gera-
continuidade na filiação a uma religião ou na cional, estudos da Fundação Getúlio Vargas
manifestação de religiosidade (quaisquer que (FGV) de 2005 e 20074, baseados em dados
sejam) do que os homens e as suas maiores censitários, mostram que acompanhando
opções foram pelas confissões evangélicas. uma mesma geração no decorrer dos censos,
As mudanças nos papéis sociais da mulher, pode-se ver que as mesmas pessoas se decla-
sua inserção no mercado de trabalho, a dimi- ram sem religião em porcentagens crescen-
nuição do número de filhos, a maior liberdade tes até mais ou menos os 50 anos; a partir
sexual, entre outros fatores, podem ser lem- dai esses números decrescem5. Em termos

3. Não se deve pensar que esta declaração seja “simples” ou homogênea, de fato engloba desde aqueles
que realmente não partilham nenhuma crença de cunho religioso ou místico, até aqueles que dizem não
pertencer a nenhuma Igreja (manifestando uma ruptura com as religiões institucionalizadas), mas “acre-
ditar numa força superior” como já apontei. A esse respeito, veja-se o doutorado de Rafael Lopez Villa-
señor defendido em 2012 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), sob o título: Os Sem
Religião nas comunidades do ORKUT, e o artigo acima citado (LOPEZ VILLASEÑOR, 2013).
4. Disponível em: <http://www.fgv.br/cps/religiões/início.htm>. Acesso em: 30 jun. 2013. Disponível em:
<http://www.fgv.br/cps/simulador/site_religioes2/>. Acesso em: 30 jun. 2013.
5. Merecem reflexão alguns dados numéricos: os censos revelam o “envelhecimento” da população nacional
graças à queda da natalidade e ao aumento da expectativa de vida ao nascer com aumento da longevidade,
revelam, por outro lado, o crescimento das declarações de “sem religião” que, segundo estudo citado, tem um
forte vínculo com a idade do declarante; no estudo de acompanhamento geracional, as declarações desse ti-
po são mais frequentes até os 50 anos, decrescendo depois. Não há espaço (nem competência suficiente) pa-
ra a análise desta e de outras filigranas, mas vê-se que realmente os números convidam a pensar.

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econômicos, as análises feitas pelos mesmos gélicos pentecostais e religiões afro-brasi-
pesquisadores do Centro de Políticas Sociais leiras dentre as quais a Umbanda; de fato,
(CPS/FGV), são igualmente instigantes: reto- podemos dizer que além de disputarem
mando a tese de Weber como hipótese para as mesmas faixas do mercado religioso, a
analisar as novas configurações religiosas lógica da Umbanda e da Igreja Universal
no Brasil, sugerem os autores que os Pente- do Reino de Deus (IURD), por exemplo, é
costalismos podem estar representando hoje, a mesma com sinais trocados: o positi-
entre nós, papel semelhante ao do Protes- vo em uma é negativo na outra. Voltando
tantismo histórico no desenvolvimento do aos números, vemos que o Nordeste (NE)
capitalismo europeu no século XIX. mostra 0,1% em 2000 e 0,2% em 2010 de
Esta talvez seja a aproximação que bus- umbandistas e candomblecistas na popula-
cávamos para responder a um dos nossos ção total da região; em ambos os censos o
questionamentos iniciais: que cara é esta Centro-oeste (CO), conta com e 0,1% desses
do Brasil a partir das últimas décadas do adeptos. Pode-se, sem dúvida, levantar crí-
século XX? Voltaremos a este ponto. ticas ao modelo de coleta de informações,
Como vimos, apesar do relativamente entretanto, ver o NE brasileiro praticamen-
estreito espaço ocupado pelas “outras re- te não mostrando religiões afro-brasilei-
ligiões”, ele cresceu nos últimos censos: ras é uma surpresa. Pode-se supor que Sul
mesmo levando em conta a maioria cristã, (S) e Sudeste (SE) mostram proporções um
a pluralidade religiosa existe e aumentou; pouco maiores nesse campo, graças à de-
claro está que os dados de dupla pertença claração de umbandistas, religião (ou nome
não podem ser percebidos por números que acordado) originária dessas regiões, e de
acolhem uma declaração apenas. Os dados adeptos do candomblé de caboclo (bastante
de Umbanda e Candomblé (infelizmen- associada à anterior). Mas estas são especu-
te reunidos nas tabelas do IBGE) mostram lações não corroboráveis a partir dos infor-
porcentagens mínimas no censo de 2000, mes censitários. Vale lembrar que também
0,3% da população total, porcentagem que os espíritas são mais numerosos nas popu-
se mantém no censo de 2010. Regional- lações do Sul e Sudeste do País.
mente nos dois últimos censos, o sudeste Passaremos agora a discutir outro registro.
(0,4% em 2000 e 2010) e o sul (0,5% em
2000 e 0,6% em 2010) têm as maiores pro- 3 As notícias6
porções de umbandistas e candomblecistas.
A região norte que mostra as maiores pro- A Umbanda que se desenhou no Brasil
porções de evangélicos apresenta 0,0% de com esse nome a partir da terceira década
umbandistas e candomblecistas em 2000 e do século passado fez um percurso ascen-
0,1% no censo seguinte; estas porcentagens sional de meados até por volta da década
parecem confirmar a rivalidade entre evan- de 80 do século XX. Este percurso ascen-

6. As notícias aqui referidas foram buscadas na Hemeroteca do jornal “O Estado de São Paulo”. Lá encon-
tramos recortes de outras publicações (revistas e/ou jornais do Rio) e exemplares do próprio “Estado”. Con-
seguimos reunir mais de uma centena de notícias (notícias, reportagens, editoriais) que cobriram do final
do século XIX (jornal então chamado: A Província de São Paulo) até a década de 1980. Foi feito um le-
vantamento sistemático por amostragem dado o volume do material. Notícias posteriores (década de 90)

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sional pode ser constatado na imprensa, (como festas a Ogum ou de Iemanjá) nos
embora os censos não mostrem números calendários da Secretaria Estadual de Es-
tão auspiciosos. Vamos, portanto, cotejar porte e Turismo.
números e notícias: os números mostram o Nos dias de hoje, tal visibilidade se
quadro das declarações, as notícias envol- transformou no seu oposto (ou quase). De
vem representações sociais. fato hoje a própria religião em geral tem
O crescimento e a grande visibilidade menos espaço do que já teve na “midia”
da Umbanda nos jornais do Rio e de São impressa salvo quando eventos religio-
Paulo (para falar destes e especialmente sos são portentosos como a visita do Papa
do segundo) gerou no período polêmicas Francisco e o Encontro Internacional da
de caráter religioso e político-ideológico. Juventude Católica, ou são impactantes
Do ponto de vista religioso, a preocupação como as porcentagens do último censo de
foi manifestada pela Igreja Católica, seja religiões no País ou mesmo uma Passea-
condenando (anos 50 e 60), seja buscan- ta de Adeptos Pentecostais em São Paulo,
do entender os motivos da adesão popular bloqueando o acesso ao aeroporto de Gua-
à Umbanda (60 e70); a partir daí, a Igreja rulhos; de qualquer modo, atualmente as
Católica passou a considerar a necessidade Igrejas Evangélicas Pentecostais gozam de
de mudanças nas próprias formas de atrair/ maior visibilidade que as chamadas “Afro”
manter seus fiéis. Outra polêmica, esta de ou mesmo Espíritas e a menor visibilidade
caráter político-ideológico, dizia respei- é paralela às porcentagens dos dois últimos
to ao que se considerava uma verdadeira censos que se mostram diminutas para a
louvação da “Macumba”, entendida como Umbanda que além do mais aparece soma-
“primitiva”, em evidente contradição com da ao Candomblé. As maiores porcentagens
as “pretensões de modernidade do País”; desse conjunto, como vimos, ainda estão
estas críticas acerbas foram publicadas ini- nas regiões sul e sudeste do Brasil, mas mal
cialmente como editorial no Jornal “O Es- chegam a 1%.
tado de São Paulo” na década de 50, envol- É este percurso “dos holofotes às sombras”
vendo a visita de Huxley ao Rio de Janeiro que apresentaremos a seguir, trabalhando
e seu passeio “organizado por intelectuais”, com notícias de jornal, e outros dados.
pelos morros e casas de Umbanda cariocas.
O mesmo teor foi mantido nesses editoriais 3.1 Da Macumba à Umbanda
por um longo período de anos. Nos anos 70
e 80, a polêmica envolveu o apoio oficial Defendemos a interpretação de que a
de governantes estaduais paulistas, do pe- Umbanda é herdeira de velhos cultos de
ríodo da ditadura militar, aos umbandistas origem banto (como a Cabula) que, no
em cerimônias do Estado e ao acolhimen- início do século passado, eram chamados
to de comemorações e festas umbandistas genericamente de Macumba e de “baixo es-

foram obtidas em levantamento posterior e pontual. O levantamento total tanto quanto uma primeira aná-
lise do material foram apresentados como trabalho para concurso de professora Titular do Departamento
de Antropologia da PUCSP em 1994, sob o título: “A Memória Cristalizada. Lendo os Jornais”. Outras aná-
lises resultaram desse material que permite muitas abordagens.

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piritismo”, ou ambos. Por isso preferimos que narrava as “batidas”, as devassas e as
dizer, como acima, que a Umbanda se dese- prisões, ora alertando “a sociedade” e os
nhou com esse nome a partir das primeiras governantes contra e o perigo representado
décadas do século XX, transitando entre por aquelas manifestações, ora elogiando
pressões socioculturais e políticas que en- as ações de delegados, ora cobrando uma
volviam o recorte de classes, o preconceito atuação mais efetiva, ora ainda, usando um
de marca (cor e classe), desvalorização das tom jocoso e desqualificante para falar das
origens africanas e particularmente das ori- manifestações religiosas “afro-brasileiras” e
gens banto (vale lembrar que, na literatura de seus adeptos. É bom lembrar que o uso
acadêmica, a influência banto foi, durante que faço da expressão “afro-brasileiras” e a
muito tempo, praticamente ignorada frente menção a “manifestações religiosas” não se
à força e à pujança atribuídas às influên- apoia, evidentemente, naquelas notícias, nas
cias sudanesas), condenação de práticas e quais os termos bruxaria, magia negra, pri-
de rituais epitetados como primitivos ou mitivo ou bárbaro seriam os escolhidos e o
bárbaros. Assim, a estrutura flexível e in- reconhecimento da dimensão propriamente
clusiva da Umbanda foi sendo construída religiosa das reuniões “de negros forros e es-
entre eixos de possibilidades, de desejos cravos” estava ainda muito longe.
e de criatividade dos seus praticantes. A Fazendo alguns cortes bastante severos
prática religiosa umbandista comporta um no material levantado, vamos começar com
campo bastante diversificado que exibe a exemplos de notícias do século XIX, 12 no-
composição de um vasto universo simbóli- tícias no total, das quais 7 diziam respeito
co e ritual que sintetiza elementos culturais a cidades do interior paulista e litoral (San-
de diferentes proveniências7. tos, Sorocaba, São Roque, Campinas, Tietê,
O extenso levantamento, já referido, de Bragança, Ribeirão Preto), e 5 vieram da
notícias veiculadas em jornais paulistas e cidade do Rio. Algumas das notícias:
outros, revelam os embates entre o campo A primeira notícia encontrada foi de
das “feitiçarias”, da “macumba” e do “baixo 1876 e vinha de Sorocaba. De conteúdo
espiritismo” e a sociedade hegemônica; tais policial e sensacionalista, contava a prisão
acusações persistentemente evocadas nos de “certo Felisberto Cabinda” apresentado
deram confiança para assumir as interpre- como “um dos sábios propagadores dos
tações acima e, creio, as justificam. Os em- segredos do famoso Juca Rosa e que fa-
bates aparecidos nas notícias do século XIX zia noturnas preleções perante numeroso
e primeiras décadas do século XX tinham auditório de escravos em sua casa na Rua
como protagonista, de um lado, aquelas ma- Supirity”. A notícia louvava o delegado e
nifestações religiosas e, de outro, as forças dizia que Felisberto Cabinda havia confes-
policiais que assumiam a defesa da “ordem sado ser “feiticeiro de profissão” e realizava
estabelecida” e da “sociedade”. Outro prota- “sessões de cura”; contava ainda que F.C.
gonista importante era a própria imprensa havia estado preso por 14 anos em Campi-

7. São numerosos os trabalhos que tratam do sincretismo nas religiões. Dada a diversidade populacional
brasileira, a diversidade das heranças religiosas não é de estranhar; não se pode esquecer inclusive o sin-
cretismo entre as religiões de origem africana. Arrolei na bibliografia apenas alguns trabalhos sobre o te-
ma, mais ou menos recentes.

A Umbanda, as notícias e os números 67


nas por ter sido considerado culpado de um co frequentador). Encontramos notícias do
assassinato naquela cidade. mesmo teor vindas tanto da província de
Outra notícia do mesmo ano - 1876 e São Paulo quanto do Rio e, com alguma
referente à cidade de Tietê, de conteúdo po- frequência, referência a pessoas de dife-
licial e teor alarmista, fala de “reunião de rentes procedências nacionais (São Paulo,
chefes propagadores de venenos, realizada Bahia, Rio) e de diferentes nações, reuni-
na casa de Mamã Catarina.” das no mesmo espaço em São Paulo ou no
Em 1878, outra notícia policial de conte- Rio. Quero destacar a referência a Cabinda,
údo pejorativo, falava em “sacerdote do pai província africana da região banto de An-
Quilombo” e se refere à “santíssima indústria gola (que aparece qualificando Felisberto,
da qual foi herói o famoso Juca Rosa.” numa prática comum ao período escravis-
Em 1879, em notícia procedente de Bra- ta). O tom alarmista e acautelador é a tôni-
gança Paulista, um comentário de conteú- ca deste conjunto de publicações saídas no
do acautelador fala de “um preto velho tido período que antecedeu e sucedeu de perto a
como o tal”, cuja casa é muito procurada Abolição. Desconfiança, desmerecimento e
“por forros e cativos que vão consultar ou medo são as marcas que aparecem de modo
receber lições de bruxaria.” O comentário explícito e implícito. Nestas, podemos dizer
alerta para o perigo que representam os que o medo tem “cor” (e condição).
conhecimentos de “venenos” que servem As notícias obtidas para a década de
“para assassinar senhores e desafetos.” 1930 (60 ao todo) já mostram a referência
Finalmente, para encerrar os exemplos, abundante ao termo Macumba associado a
uma notícia policial de 1889, procedente “espiritismo” e “baixo espiritismo”. Alguns
de Santos e de conteúdo pejorativo fala exemplos:
da prisão de Benedito Rosário, que teria No jornal “O Estado” de 1931, notícia
se mostrado “arrogante” e se identificado da capital sob o título de “Macumba na Pe-
como “doutor em ervas do mato e curan- nha,” diz que
deiro com o auxílio das almas.” Não obstante a campanha que permanente-
O conjunto destas notícias é de cunho mente as autoridades policiais movem contra
policial na maior parte das vezes e dá conta os charlatães e curandeiros que armam suas
de prisão de pessoas ditas “feiticeiras”, “bru- tendas na cidade sob a forma de centros es-
xas”, “conhecedoras de venenos”. As notí- píritas, que dão consultas em sessões cole-
cias, como já dissemos, nunca se referem tivas, fechando corpos ou fazendo benzedu-
a estas manifestações como “religiosas”. ras e exortações e dando receitas para todo e
Algumas vezes encontramos termos que qualquer outro mal, […] eles continuam.
persistem hoje nas religiões afro-brasileiras
como “Mãe de Santo” (também chamada Em outra notícia do mesmo ano - 1931
“Gunhodê” em notícia procedente do Rio). e no mesmo jornal, o título foi “A polícia
Muitos nomes próprios de líderes religio- contra o baixo espiritismo”; o jornal se
sos e seguidores eram publicados; fazia-se congratula com a polícia que
um rol de objetos de culto apreendidos; ha- em boa hora está iniciando uma campanha
via inúmeras referências a sessões de cura contra os chamados centros espíritas que se
e à presença de “escravos e forros” (uma multiplicam de modo assombroso nesta capital.
vez, houve referência a um homem bran-

68 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


A notícia destaca Diz a notícia que está sofrendo processo o “co-
o perigo desses centros que além de extor- nhecido macumbeiro, residente no Caminho do
quirem dinheiro, transformam homens váli- Chora Menino, chamado Valentim Borges […].”
dos acostumados ao trabalho em verdadeiros Para encerrar os exemplos, outra notícia
fantasmas dominados da ideia de suicídio ou da Folha da Manhã de 1939 traz o título:
de prática de outros desatinos. “Surpreendidos em flagrante na prática
de Magia Negra”. Diz de denúncia recebida
Este é o gancho para falar de pela polícia contra “Urbano de Tal e sua
um rapaz que frequentando um desses cen- mulher” moradores de Rua na Vila Anastá-
tros e não resistindo à perseguição dos espí- cio, que se “entregavam à prática de magia
ritos, depois de abandonar o trabalho acabou negra e baixa medicina” (sic).
se atirando sob um trem. No trabalho “A Memória Cristalizada”
(VILLAS BÔAS CONCONE, 1994), apontamos
A notícia continua dando conta da na década de 30 a continuidade das notícias
prisão de Amaro Cardoso, também co- de prisão de “macumbeiros” “feiticeiros”,
nhecido por João Amaro, “curandeiros”, embora este conjunto mos-
de 57 anos e quinze filhos, denunciado por tre maior heterogeneidade entre aqueles que
duas mulheres que haviam frequentado suas foram presos: encontramos italianos, ciga-
sessões. Este homem é dado ao baixo espiri- nos e até um faquir hindu. Outra diferença
tismo, magia negra e outras aventuras significativa entre este período e o anterior
diz respeito ao conteúdo das acusações: não
é chefe de um centro que se intitula são mais o feitiço ou os venenos que preo-
(“pomposamente”) “Centro Democrata cupam, ou a possibilidade de assassinato de
Maria da Caridade, onde promove im- senhores e desafetos por conhecedores de ve-
pressionantes sessões”. Nestas, nenos, são o “bem estar público”, “a saúde”,
com a fisionomia transtornada, a pular co- e principalmente “a saúde mental” da “popu-
mo um macaco, vai cutucando e as vezes lação” que estão na ordem do dia; são estas
até ferindo o incauto que caia nas malhas de as preocupações reiterativas e a acusação que
sua horrenda magia. prevalece é de “exercício ilegal da medicina”,
acusação ainda mais frequente na década de
Em notícia datada de 1936, da Folha da 40. As décadas de 30 e de 40 do século pas-
Manhã (São Paulo), outra das muitas notí- sado (XX) são duas décadas importantes na
cias policiais, de teor factual, sob o título construção de um campo de atuação para a
“Campanha policial contra o baixo espi- Medicina científica. Assim, práticas de cura
ritismo”, avisa de uma ordem da Delegacia comuns, aceitas ou toleradas na colônia e
de Costumes para que diretores de centros nos períodos imperiais, são agora severamen-
espíritas (“cujo número de eleva a mais de te condenadas. De qualquer modo, o uso do
200”) regularizem os alvarás dos seus res- nome Macumba e sua associação com “bai-
pectivos centros. A finalidade seria “evitar xo espiritismo” como sinônimo de perigo e
a prática do baixo espiritismo.” de ignorância teve forte rebatimento entre os
Do mesmo ano - 1936, na Folha da Manhã, adeptos dessas manifestações (setores espíri-
a notícia policial e sensacionalista estampa: “A tas e macumbeiros). No trabalho “A Memória
doente morreu nas mãos do Macumbeiro”. Cristalizada”, registramos:

A Umbanda, as notícias e os números 69


Se formos considerar apenas a frequên- médico na marinha mercante, radicado no
cia do noticiário sobre manifestações como Rio e autor de livro sobre o tema) a sugestão
‘macumba’, ‘baixo espiritismo’, ‘feitiçaria’, do nome Umbanda durante reunião de reli-
‘curandeirismo’, etc., temos que reconhecer giosos no Rio de Janeiro, em 1931. Segun-
que elas conseguiram manter o interesse dos do Pai Jaú, Cavalcante Bandeira trouxe o
jornais e a demanda dos leitores. [...] A pe- nome, explicou sua origem e significado na
riodicidade nestes anos aqui apresentados é África (banto). Disse ainda o velho umban-
reveladora de uma relação que chamarei ne- dista que, como Cavalcante “era reconhecido
gativa com a sociedade abrangente (VILLAS como o mais culto”, a sugestão foi acatada8.
BÔAS CONCONE, op. cit. p.77). Da década de 40, vamos dar alguns
exemplos colhidos nas páginas de jornais e
Prefiro dizer hoje ao invés de “socieda- que mais uma vez reforçam a tese da busca
de abrangente”, segmentos da sociedade de legitimidade e legitimação associada ao
abrangente, representados aqui por leitores afastamento (inicialmente nominal) da Ma-
dos periódicos que são tanto “O Estado de cumba e do “baixo espiritismo”:
São Paulo” quanto a “Folha da Manhã” ou Na Folha da Manhã no ano de 1940,
o “Correio Paulistano” que contavam com aparece notícia sob o titulo: “Prisão de um
público leitor bastante diverso. A avalia- Curandeiro em Carvalho de Araújo”. No-
ção negativa, entretanto, era praticamente tícia policial de teor sensacionalista, conta
universal em todos esses jornais variando da prisão feita pela Polícia de Costumes, em
apenas o vocabulário. São Paulo, do
Assim, entre os adeptos da Macumba e [...] indivíduo Manoel Tavares, curandeiro
congêneres, surge a necessidade premente que vinha clinicando sem mesmo se impor-
de garantir, ou melhor, de conquistar a legi- tar com a polícia, pois morava defronte à De-
timação religiosa e social. Na década de 30, legacia local; recebia comissão por remédios
o nome Umbanda foi sugerido e passou a receitados (1 mil reis o vidro) do Laboratório
recobrir um campo diferenciado; o umban- Vegetal Brasília, que ficava na Praça da Sé.
dista Cavalcante Bandeira, por mim entre-
vistado no Rio, em 1969, arrolava três tipos Também de 1940, na Folha da Manhã,
de Umbanda: Umbanda Branca, Umbanda notícia da capital do estado com o título:
de Palmas e Umbandomblé. Embora haja “Fechado pela Polícia mais um Centro Es-
diferentes versões sobre a História da Um- pírita”. Teor sensacionalista, fala de prisão
banda, quero registrar que, também em en- de Italvino Benassi que dirigia o Centro Es-
trevista realizada na década de 1980 com o pírita Justiça Divina do qual a secretária
Pai Jaú (umbandista da primeira hora, Pai de caia em transe sob influência dos espíritos
Santo da capital paulista), ele atribuiu a Ca- dando gargalhadas horríveis que impressio-
valcante Bandeira (importante umbandista, navam os incautos geralmente sugestionáveis.

8. Entrevista realizada na década de 1980 por Marisa Riccitelli Santana, aluna de Graduação em Ciências
Sociais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e bolsista I.C. da Fundação de Amparo
a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). A entrevista fez parte do projeto “Umbanda em São Paulo:
Memória e Atualidade”, que reuniu como pesquisadores Liana Salvia Trindade e Lisias Nogueira Negrão,
ambos da USP, e eu mesma, da PUCSP.

70 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


Filial desse Centro também foi fechado Neste caso, um homem “dominado pela
na Rua Tucuruvi. prática da feitiçaria eliminou em cenas dan-
Ainda em 1940, a “Folha da Manhã” tescas a família.” Diz ainda que a polícia que
estampa: “Vinte e um curandeiros proces- tenta combater “as macumbas”, encontra, às
sados pela polícia”. De conteúdo factual, vezes, rija resistência dos “fanáticos”, travan-
refere-se à campanha iniciada pelo Delega- do com eles combates de horas dos quais re-
do de Costumes, Dr. João Cataldi Jr., com sultam mortos e feridos. Segundo a notícia:
a cooperação do Delegado Leandro Bezerra [...] no interior do estado se formam verda-
e do Sub-Delegado Vicente Parasi, contra deiros quistos e delinquentes perigosos atra-
“curandeiros de todas as espécies, explo- em para eles gente simples e crédula, trans-
radores de baixa medicina e do falso es- formando caboclos fortes acostumados ao
piritismo”. A notícia arrola os 21 nomes, amanho da terra em jornadas de sol a sol, em
idades e acusações. verdadeiros trambolhos humanos irrespon-
Também de 1940, outra edição da Fo- sáveis ou dementes furiosos.
lha da Manhã diz: Presas pela Secreta-
ria de Costumes duas Feiticeiras. As duas Um último recorte, datado de 1943, no
feiticeira presas foram Maria Di Chirico jornal “A Noite”. Trata-se de uma reporta-
Atte e Paula Bico Alcana, moradoras na gem policial de conteúdo alarmista sob o
capital do estado, uma na rua Canindé e a título: “Exploradores da Crendice Popular
outra na rua Maria Marcolina; dizia ainda nas mãos da Polícia.” A reportagem é en-
que Maria tinha, como “médium em de- cimada por um pequeno resumo: “Organi-
senvolvimento”, o fotógrafo Bruno João zavam sessões de macumba e preparavam
Francisco (da Praça da Sé), o qual ignora- garrafadas para os incautos.” O corpo da
ria seus trabalhos por meio de “bruxaria e reportagem refere-se a “Adalgisa farma-
baixo espiritismo.” cêutica do amor”, e ao “espírito de Exu
Do mesmo ano – 1940, outra notícia fazendo curas por intermédio do tintureiro
da Folha da Manhã: “Preso um casal de Galdino.” Continua dizendo que
macumbeiros”. Notícia policial e de cunho o mulato Galdino Galvão, sempre foi dado
sensacionalista. O casal, Josefina e José à prática da macumba, além disso, dizia-se
Barbosa, foi preso “em razão de inúmeras médium e fazia sessões de baixo espiritismo.
queixas” e com “várias passagens registra- Com o correr do tempo resolveu fazer a ma-
das na Delegacia por prática de baixo espi- cumba seu meio de vida.
ritismo e exercício ilegal da medicina.”
Em 1940, a Gazeta estampa: “As tragé- Teria feito
dias Horríveis da Macumba”. Notícia poli- sociedade com Olímpia Soares, dona de pen-
cial de teor sensacionalista e alarmista, diz são na Major Diogo, onde passou a morar.
que, “de vez em quando”, os jornais dão Encarnava o espírito de Exú” (sic).
conta de “espantosas tragédias”, […]
tendo como atores indivíduos dominados pe- Finalmente, dá conta de outra diligên-
la prática das feitiçarias, inutilizados para o cia que prendeu Ivan Kranz Perin “que se
convívio na coletividade pela macumba que intitulava militar e usa o nome de Tenente
campeia livre por aí afora. Ivan.” Foi preso “mais de uma vez por ma-
cumba e curandeirismo” e

A Umbanda, as notícias e os números 71


cumpriu 6 meses por prática ilegal da medi- o médico viu que ele trazia um colar de “20
cina. Preparava garrafadas pelas quais exigia dentes de alho”; foi informado pela mãe da
de seus clientes nada menos que 10 cruzeiros. criança que
toda a vizinhança estava a sua espera na noite
As notícias vão nesse diapasão e apa- anterior e que foram feitas rezas, benzimentos
recem nas páginas da Folha da Manhã, e queima das roupas usadas pela criança.
da Gazeta, de A Noite e de A Tribuna de
Santos. Não obtivemos, na época, ne- O médico, em artigo quase pedagógico,
nhum recorte do “Estadão”. Os exemplos lamenta a estupidez, tendo inclusive dito à
mostrados apontam um evidente aumen- mãe do menino que “essas práticas macum-
to na heterogeneidade das acusações, beiras são uma tolice” (“alho é tempero”,
quando comparadas às das notícias an- disse jogando o colar no lixo). Termina o
teriores; há também maior variedade das longo artigo, aparentemente “conformado,
pessoas envolvidas (note-se a presença de mas ciente de ter cumprido seu dever”, con-
sobrenomes de origem italiana associados siderando que,
ao “baixo espiritismo”, por exemplo); a como a criança sarou, daí para cá as sabi-
Macumba, entretanto, continua a apare- chonas deverão estar convencidas que o que
cer em notícias sensacionalistas de modo curou o menino foram os dentes de alho, as
altamente pejorativo (uma das notícias rezas, a incineração das vestes.
de 1943, por exemplo, saída no jornal “A
Noite”, tem o título “De pai de santo a Termina com a frase: “Deus nos proteja
perigoso D. Juan”). se quisermos convencê-las do contrário.”
Duas das notícias coletadas nesse período Vale dizer que a criança citada poderia
merecem mais alguns comentários: aquela ter sito atendida, talvez, por benzedeiras;
resumida acima (“As tragédias horríveis da não parece haver, pela apresentação do ar-
macumba”) que parece inspirada nas publi- ticulista, um “trabalho de Macumba”, mas
cações relativas à guerra de Canudos (dado este artigo atesta, que para muitos, macum-
o tom e a escolha das palavras: ba era (é?) um nome genérico que recobre
a polícia trava batalha com os fanáticos, um campo diversificado, embora sempre
etc.”) e o artigo assinado, mas sem título, suspeito, ignorante e condenável.
aparecido na Gazeta em 1940, na seção “Hi- Se o nome Umbanda ainda não apa-
giene e Puericultura. rece nos recortes paulistanos da década
de 40, aparecerá sem dúvida nas décadas
Este é bastante ilustrativo da relação seguintes. Vale lembrar que o registro de
tensa, à qual nos referimos antes, entre a uma casa de Umbanda em São Paulo, ao
medicina científica (e oficial) e as práticas contrário do Rio, só foi possível em 1953;
populares de cura. O médico signatário do para evitar o registro no 1º Cartório, hou-
artigo conta o caso de uma criança trazida à ve forte oposição da Curia de São Paulo.
noite pelos pais, e com urgência, à sua casa; De fato, a partir dos anos 50, os jornais
o menino, que foi diagnosticado com “fe- estamparão a preocupação com o cresci-
bre alta e intenso estado gripal”, foi por ele mento da Umbanda. Mas, vamos com mais
medicado com bons resultados; quando o vagar, lembrando que, depois da incômoda
paciente voltou no dia seguinte com a mãe, notoriedade policial das décadas anteriores,

72 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


a notoriedade nos anos 50 não é menos mento de “altas autoridades”, garantindo o
incômoda, mas revela elementos novos: o apoio às religiões afro-brasileiras, aparece
nome Macumba ainda aparece como “caso em editoriais do Estadão: o governo de
de polícia”, mas já figura o nome Umbanda, Getúlio Vargas teria incentivado o cresci-
que não é mostrada da mesma forma; as mento da Umbanda de modo direto e indi-
notícias, entretanto, revelam a preocupa- reto. O presidente é referido como “amigo
ção crescente de setores da sociedade seja dos cultos afro-brasileiros.” Esta afirmação
com o crescimento da Umbanda, seja com não corresponde estritamente à relação de
o seu envolvimento político, real ou supos- Vargas com tais cultos; de fato, durante os
to. Note-se que, à medida que a Umbanda 15 anos de ditadura, houve ferrenha per-
ganha notoriedade de forma não (ou me- seguição a todos os cultos afro-brasileiros.
nos) pejorativa, tende a diminuir também Quando eleito, após a queda da ditadura
a referência alarmista ou sensacionalista à e no interregno democrático, entretanto,
Macumba e os epítetos de barbárie, primi- Vargas, comprometido com uma imagem
tividade, magia negra, etc., são transferidos popular do governo, realmente acabou com
para a Quimbanda. a repressão sistemática e apoiou muitas das
Lembremos que a preocupação com a pretensões da recém-nascida Umbanda.
dimensão propriamente política, isto é, de Esta fase lhe valeu de modo duradouro o
poder e poder subversivo da religiosida- epíteto de “amigo dos cultos afro-brasilei-
de afro-brasileira, aparece no século XIX, ros” (como também, por outras razões, de
embora de maneira episódica (nos nossos “pai dos pobres”). Em São Paulo, a figura
recortes); em dois números consecutivos de Ademar de Barros mostrou igualmente
de “A Província de São Paulo” dos anos essas duas facetas: repressão quando no-
70 daquele século, reproduz-se o seguinte meado interventor, e amigo, quando eleito.
comentário: “estas confrarias (de negros e Para a década de 1950, que pode ser vista
de escravos) procuram reunir dois pode- como do surgimento oficial da Umbanda em
res – o espiritual e o temporal”. No século São Paulo (isto é, com registro em cartório e
seguinte, em 1939, a questão é o “tráfico alvará de funcionamento), a leitura dos jor-
de influência.” Noticiando a prisão de Luis nais revela três tipos de preocupações básicas,
Spadoni, chefe do “Tribunal Espírita Jus- que correspondem a três tipos de conteúdo:
tiça Divina”, o jornal Folha da Manhã es- 1 - Preocupação com o que foi definido
tampa a acusação de “tráfico de autorida- como “problema do negro” e como “proble-
de”. Spadoni, “que tratava de assunto de ma social” mais amplo; neste caso, discu-
advocacia”, teria um álbum com nome de tem-se as consequências da Abolição feita
“altas autoridades.” Considerou-se, na re- sem o devido compromisso com a inclusão
portagem, que as cartas contidas no álbum dos libertos (especialmente via educação).
haviam sido conseguidas de forma estraté- Assim, negros e descendentes não são mais
gica e dolosa, servindo como “chantagem” “um perigo social”, mas vítimas da socie-
e modo de ludibriar seus clientes. dade que os escravizou e privou de condi-
Nos anos 50, do século XX a questão ções para se colocar no mesmo patamar de
política é retomada pelo viés do uso da in- outros segmentos populacionais. Especial-
fluência de autoridades e pelo poder “cor- mente competir em igualdade de condições
rosivo” da Macumba/Umbanda. O envolvi- no mercado de trabalho com trabalhadores

A Umbanda, as notícias e os números 73


nacionais e imigrantes. A Umbanda retrata- “umbandista com muito orgulho” e situa
da nos jornais, dentro dessa linha, foi vista essa tônica umbandista no “seu trabalho de
como “religião das classes populares”, “ca- velho radialista” cerca de dois anos antes
madas pobres” e “não instruídas”, morado- da reportagem. Percebe-se que, no Rio, o
ras da periferia das grandes cidades ou fa- nome Macumba (pelo menos nessas déca-
velas (como no Rio). Como dissemos antes, das de 50 e seguintes) não tem o mesmo
a Umbanda não aparece mais como “caso peso negativo que em São Paulo; é quase
de polícia”, mas é vista como “carente”, como um “apelido familiar e carinhoso” da
porque religião das camadas menos favo- Umbanda. Ainda nesta linha, a notícia de
recidas e carentes. A antiga “primitividade” setembro de 1961 no Diário de São Paulo,
da Macumba é transvestida em “problema sob o significativo título de “Saravá meu
social” e de “ignorância” [...] O artigo saído pai Xangô, Saravá Mamãe Oxum”, descre-
em 1951, no Diário de Notícias, sob o título ve sessão assistida pelos repórteres “a con-
de “Macumba reminiscência do cativeiro”, vite do deputado gaúcho Moab Caldas.” Em
é um bom exemplo deste conjunto. Mal- 1966, de novo no Diário, publica-se artigo
grado o tom entre acautelador e alarmista relativamente extenso de análise do cres-
do título (e do subtítulo), o corpo do artigo cimento da Umbanda lembrada como “Re-
abraça um tom “solidário” ao negro, pro- ligião Brasileira” e onde são apontadas as
clamando a necessidade de integrá-lo de- qualidades julgadas responsáveis pela sua
finitivamente, “destruindo pela educação o “extraordinária difusão”: a) não incompa-
que de africano persiste na sua alma e em tibiliza os adeptos com a prática de outras
sua mentalidade.” O nome Umbanda tam- religiões, não exclui outras; b) seus adeptos
bém aparece no contexto do artigo. não são meros expectadores; c) consequên-
2 - Preocupação com a informação jor- cia da anterior, a Umbanda “elimina a dis-
nalística detalhada sobre o “fenômeno das tância que nas outras religiões é fixa entre
religiões afro brasileiras”, especialmente a dirigentes e adeptos comuns”. A este artigo,
Umbanda. Nesta linha, temos grandes re- seguem-se numerosos outros de igual teor
portagens que apresentam descrição minu- que apresentam verdadeiras análises e onde
ciosa e colorida de sessões de culto, ilus- são chamados a opinar sobre “as razões do
tradas com muitas fotos e adiantando de- crescimento da Umbanda”, teólogos, cien-
talhes do ritual e do universo simbólico da tistas sociais e psicólogos.
Umbanda; tais artigos revelam o interesse 3 - Preocupação que engloba o temor
e a curiosidade que essa religião desperta do crescimento da “Macumba/Umbanda”,
no público em geral. A dimensão religiosa que não é nova, pois dá continuidade às
é reconhecida, mas talvez a dimensão do acusações de anos anteriores à Macumba e
“exótico” seja a mais reforçada. De qual- inclui agora, também, a Umbanda. O edi-
quer modo, é atribuída à Umbanda um torial do jornal “O Estado” saído em 1958,
valor positivo. Em 1956 (11/8), a Revista é um exemplo dessa postura; nesse caso, a
do Rádio (Rio) publica matéria sobre Áti- Umbanda é vista como potencial ou real-
la Nunes sob o título: “O Rádio invade os mente perigosa e nociva do ponto de vista
Terreiros de Macumba, ou é a Macum- ético, religioso, político, cultural e da saú-
ba que invade o Radio.” Na reportagem, de, especialmente mental. Nesse sentido é
Atila Nunes (radialista carioca) se declara apontado o “poder de corrosão” da política

74 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


e da própria Umbanda, num movimento de anos e, em décadas seguintes, ele chega a ser
dupla mão, pois a ditadura tendo causado apresentado em reportagens como “o Frei que
um “enfraquecimento moral”, teria sido compreende” (a Umbanda).
responsável por criar as condições do cres- Igreja e Estado, cada um a sua manei-
cimento dessa religião. A preocupação cen- ra, lidam com o “fenômeno umbandista.”
tral dos textos dessa editoria (são vários por A atitude da Igreja Católica mudará a partir
cerca de 30 anos!) é mostrar a existência do Vaticano II e de Medellin, mas chega-
da Macumba “em plena capital da Repú- rá o momento em que a própria I.C. será
blica”, fato considerado um “contrassenso acusada por alguns analistas de contribuir
frente ao desenvolvimento pelo qual passa para o crescimento da Umbanda. Nos anos
o País”; o mais grave seria que 60, alguns artigos saídos em jornais, vincu-
compromete o desenvolvimento, além de larão de modo decisivo “o afastamento da
mostrar ao consenso das nações desenvolvi- Igreja do seu papel de religião” (numa clara
das que o Brasil não merece credibilidade. alusão ao novo papel social e político da
I.C.) com a abertura de espaço para “formas
Como dissemos antes, há ainda a preocu- espúrias de religiosidade.”
pação da Igreja Católica com o crescimento A abertura dos jornais à Umbanda como
da Umbanda, e tal preocupação com a perda uma religião, entretanto, já se faz nítida em
de adeptos se expressa na perfeição, nos ar- 1961, quando o “Estadão” dá noticia da re-
tigos do Frei Boaventura Kloppenburg. “Au- alização no Rio de Janeiro do II Congresso
torizado pelo cardeal Câmara”, no Rio, e res- de Umbanda. A notícia meramente factual
pondendo a uma preocupação do Secretário indica que “a preocupação central do Con-
Nacional de Defesa da Fé “com a expansão gresso parece ser de elaborar uma Carta Si-
das heresias”, Frei Boaventura se volta para nódica da Umbanda”. Este foi um momento
uma análise da Umbanda “apontando seus importante da história da Umbanda que,
vícios e problemas.” Várias reportagens saí- naquele momento, buscava certa unifica-
das em diferentes veículos (Globo e Gazeta, ção de princípios teológicos e rituais, além
por exemplo), em 1956, têm a preocupação de aventar a constituição de um Conselho
de “informar” e “desmistificar.” O tom desses Ético e de uma centralização de comando
textos é bastante agressivo e sensacionalista: (uma espécie de papado). O modelo de or-
fala-se em “demonolatria”, em “despachos ganização religiosa eficiente era, sem dúvi-
que pegam em crédulos” (dando exemplo da, o modelo da Igreja Católica.
edificante do oposto: um “Convento que se Ouso dizer que o esforço de unifica-
alimenta de feijão recolhido dos despachos”), ção e, sobretudo, de comando centralizado
condena-se os umbandistas pela “confusão pode ter sido um dos motivos que aborta-
em que mergulham os católicos com evidente ram parte das intenções do II Congresso; a
má-fé” (pois usariam o sincretismo para “en- própria multiplicação das Federações Um-
gambelar os incautos”) e finalmente, apon- bandistas (que, em princípio, deveriam ser
ta-se para a condenação definitiva (excomu- idealmente uma por estado) é reveladora do
nhão) daqueles que frequentam terreiros ou seu caráter religiosamente aberto e avesso a
mesmo centros kardecistas. O papel do Frei centralizações temporais. Cada Pai ou Mãe
Boaventura na luta contra a Umbanda (e es- de Santo, mesmo relacionado genealogica-
piritismos) muda radicalmente no correr dos mente a uma Casa ou filiado a uma Fede-

A Umbanda, as notícias e os números 75


ração, era muito cioso de sua autoridade atitude pragmática da Umbanda e também
no seu Terreiro e da sua relação com seus o legalismo de alguns de seus setores (espe-
Guias; estes sim, capazes de orientações cialmente lideranças federativas) levou-a a
inquestionáveis porque emanadas de uma explorar, a seu modo, a nova aliança como
dimensão não temporal. Arrisco ainda dizer reforço da busca de legitimação social. Os
que o caráter livre e criativo da Umbanda anos 70 e 80 viram o apoio oficial (com en-
sempre foi uma de suas marcas e sua for- volvimento e publicidade variável segundo
ça. Uma investigação desse universo hoje cada governador do período) às festas um-
seria importante para revelar quais mudan- bandistas que foram incluídas nos calen-
ças internas aconteceram e quais mudan- dários da Secretaria de Estado de Esporte e
ças poderiam ser entendidas como fatores Turismo. As festas de Ogum no Ibirapuera
de enfraquecimento da religião e da dimi- com cortejo e imagem levada em carro dos
nuição de abertura de novas Casas. Claro Bombeiros foram exemplos importantes.
que, nesse caso, estaríamos falando a partir Nestes anos 70, além de sua aproxi-
apenas da Umbanda, mas, para compreen- mação de governos estaduais paulistas, a
der sua trajetória, há que considerar todo o Umbanda continuou fazendo seu caminho
entorno sociocultural. Nesse sentido, as no- através das Secretarias de Turismo para
tícias e os números, articulados à História os centros de poder em municípios como
recente do País, podem ajudar. Osasco, Mauá, Santo André. A proximidade
No que concerne ao crescimento numé- do poder constituído trazia para a Umban-
rico e à visibilidade crescente da Umbanda, da um significativo ganho simbólico.
no estado de São Paulo, podemos recolher Claro que havia “controvérsias” nos
alguns ecos saídos em exemplar do “Esta- segmentos mais conservadores da socie-
dão” de 1967 (17/5): “Festival de Xangô dade. Em publicação de 1981 (27/04), no
gera Controvérsias”; sem esquecer as reite- Jornal da Tarde, a manchete estampava:
rativas catilinárias na editoria desse Jornal, Festa Política para OGUM. Segundo a no-
setores da sociedade viam no crescimento tícia, a “festa em homenagem a São Jorge
umbandista e no apoio por eles recebido do ou Ogum” reuniu cerca de 6000 adeptos no
governo do Estado, um perigo. Os governos Ibirapuera, mas
estaduais pós 1964 de fato buscaram apro- o acontecimento foi mais político que reli-
ximar-se da Umbanda. A perda do apoio da gioso: governantes e membros do Partido
I.C. (histórica referência do poder civil) le- Social Democrático (PDS) e do Partido Tra-
vou à busca de apoio em outros espaços. A balhista Brasileiro (PTB) fizeram fila para
Umbanda, avaliada como religião popular, discursar e ganhar votos.
foi o espaço escolhido pelo poder consti-
tuído. Conjunturalmente, houve então um Por outro lado, a relação entre Federa-
duplo movimento de inversão e de conflu- ções e Pais de Santo com governos da Alian-
ência de interesses: no primeiro movimento ça Renovadora Nacional (ARENA) e depois
vemos que é o Estado que buscava legitima- do PDS não se estendiam automaticamente
ção popular e por isso se aproxima da Um- aos adeptos. Em entrevistas com Pais e Mães
banda; o segundo movimento é protagoni- de Santo, realizadas nos anos 80 do século
zado pela Umbanda que aproveita a brecha passado pudemos encontrar declarações da
oferecida para garantir sua legitimidade. A inexistência do “voto de cabresto” nos seus

76 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


terreiros. Em cada situação, o entrevistado armas. No período de instalação das primei-
dizia respeitar a liberdade de escolha dos ras igrejas Pentecostais em São Paulo, quase
seus frequentadores, adeptos e religiosos, sempre pequenos espaços, antes ocupados
justificando sua própria aproximação do po- por atividades comerciais, notava-se a pre-
der, seja para conseguir melhorias no bairro ferência por lugares próximos de Centros
e no Terreiro (Pai Jaú), seja para correspon- Públicos de Saúde ou Hospitais públicos.
der ao apoio recebido do governo estadual A cura de males do corpo e da alma foi o
(Pai Abrão). Este último Pai de Santo, com carro chefe do movimento Evangélico Pen-
um Terreiro no piso superior de um peque- tecostal, e não podemos deixar de lembrar
no prédio comercial no bairro central de Sta. que a cura, também de espetro amplo, foi
Cecília, era, por ocasião da entrevista, can- tônica da Macumba e da Umbanda desde
didato a deputado estadual pelo PDS. E, em- o seu início. Pode-se apontar, ainda, que o
bora reconhecesse que esse era um partido bispo Macedo, tendo sido umbandista (em
impopular - “ruim de voto”, retoricamente Niterói), conhecia o suficiente do universo
peguntava: “Porque então o PDS”? Respon- da Umbanda para falar a mesma linguagem;
dia no mesmo tom: “Porque é o partido do como disse antes, havia aqui uma inversão
Governo”. Considerava, ainda, ter uma obri- de sinais: o que era positivo na Umbanda
gação em relação à Umbanda. Um cargo no (transe de possessão, relação com Guias e
legislativo (qualquer que fosse o nível) era Entidades protetoras) passava a negativo
visto, por ele e por outras lideranças, como no campo Pentecostal (exorcismos; e Guias
sendo importante para a defesa da sua reli- transmudados em Demônios, manifestações
gião9. Este Pai de Santo, que era também ju- de Satanás). As décadas seguintes mostra-
deu (um pequeno rolo da Cabala repousava ram o surgimento (ou ressurgimento) da in-
na sua escrivaninha) e que já fora vereador tolerância religiosa: fiéis pentecostais, cha-
em outras épocas, contando para nós sua mados genericamente de crentes, entravam
trajetória como umbandista, disse-nos enfa- em guerra contra os umbandistas.
ticamente: “[...] e mais uma vez, coube a este A narrativa que fizemos dos movimen-
judeu, defender a Umbanda.” tos da Umbanda, apoiada em notas e re-
Os anos 80 (até meados dos 90) do sécu- portagens da Imprensa escrita de São Pau-
lo XX foram importantes para o movimen- lo, além de fragmentos de entrevistas, dá
to umbandista em São Paulo, já a década ideia da história da Umbanda no estado e
seguinte (90) viu o crescimento das Igrejas principalmente na capital do estado. Creio
Evangélicas Pentecostais, crescimento que ter justificado, também, a escolha de aliar
já se fazia sentir na década anterior, mas os a trajetória da Umbanda à busca de legi-
anos 90 foram a década de “virada” para a timação social e religiosa. O afastamento
Umbanda. Igrejas como a IURD, por exem- da Macumba e de algumas práticas con-
plo, disputavam a mesma clientela com a sideradas “primitivas” (que, sem dúvida,
Umbanda e praticamente com as mesmas persistem em muitas Casas ou “linhas” de

9. A presença em cargos legislativos e mesmo executivos, foi estratégia importante para o conjunto das
Evangélicas Pentecostais e Neo Pentecostais; essa presença já mereceu trabalhos de peso de Flávio Pieruc-
ci e Reginaldo Prandi., como a análise da presença Evangélica na Assembléia Nacional Constituinte.

A Umbanda, as notícias e os números 77


Umbanda) abriram um espaço para nova Não obstante os ganhos da Umbanda e
diversidade interna e, às vezes, para a dis- também do Candomblé (notícia do Jornal da
tinção entre “falsa” e “verdadeira” Umban- Tarde de 21 de abril de 1977, fala do rece-
da (uma distinção difícil de sustentar). bimento de comenda do Itamaraty – Ordem
No processo de construção de uma do Rio Branco – pela mãe de Santo baia-
identidade nova, algumas reinterpretações na Olga de Alaketo; talvez esta seja a mais
foram importantes: as perseguições po- forte indicação das mudanças na sociedade
liciais passaram a ser vistas como cons- brasileira), a religiosidade afro-brasileira, ou
tituindo a fase heroica da religião (asse- as atividades a ela relacionadas (devida ou
melhada à “fase” dos mártires cristãos). O indevidamente), ou o próprio negro, ainda
sincretismo e a miscigenação são valori- se mostram no imaginário nacional como
zados (em contraponto à noção de “pu- perigosos e maléficos. Basta para isso que
reza”); o sincretismo permite, no campo um fato de impacto seja noticiado. Assim,
umbandista, muitas leituras, todas elas de quando em 1992 as dramáticas ocorrências
caráter positivo: capacidade de inclusão, de Guaratuba, Paraná, envolvendo possível
paralelismo à história brasileira, autentici- sacrifício de crianças, foram conhecidas,
dade. A Umbanda seria propriamente bra- imediatamente a imprensa fez um paralelo
sileira, graças ao seu panteão de figuras entre estes fatos e a feitiçaria, a Macumba,
míticas da brasilidade (índios e negros) ou a magia negra e o satanismo. A Folha de
tomadas de extratos populares ou margi- Londrina de 1993 (23/7) publica: “Folha
nais da sociedade nacional (prostitutas, descobre área de magia negra”, manchete
malandros, boiadeiros, ciganos). Religião que abre para a reportagem sobre “a desco-
democrática (conta com adeptos de dife- berta em Cambé de local usado para rituais
rentes classes sociais, profissões, educação de macumba e magia negra.” Sem entrar
e poder aquisitivo); religião de democracia no mérito dos fatos, quero apenas lembrar
racial (incorpora no seu panteão e entre a relação profundamente arraigada no ima-
os adeptos figuras e pessoas de diferentes ginário e nas representações nacionais en-
etnias em igualdade de condições). tre malefícios e Macumba. A Umbanda foi
No período compreendido entre os anos igualmente relacionada aos fatos nefandos,
70 e início dos anos 90 do século XX, a quando se falou de “um pai-de-santo um-
Umbanda se apresentava, inclusive, como bandista como oficializador dos sacrifícios.”
religião que “conta com milhões de adep- Entretanto, foram ouvidas autoridades reli-
tos.” Lideranças e também publicações giosas que se pronunciaram sobre o assunto
jornalísticas falavam de 20 ou 30 milhões e, entre elas, uma novidade: foram ouvidos
de adeptos, números nunca demonstrados, não apenas representantes da Igreja Católi-
mas com grande poder de impacto. ca e do Conselho de Pastores Evangélicos,
Tudo isso criava para os umbandistas e mas também representantes da Umbanda e
para o entorno social a ideia de uma reli- do Candomblé. Todos condenaram os sa-
gião autenticamente brasileira, leal às raí- crifícios e os dois últimos ainda negaram
zes e legítima herdeira do título de “Reli- enfaticamente qualquer relação entre os
gião do Brasil”, substituindo-se ao catoli- eventos e suas respectivas religiões e la-
cismo. Esse foi o discurso que prevaleceu mentaram que “fatos como esses prejudi-
entre líderes e praticantes. cam as nossas religiões.”

78 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


4 A nova cara do Brasil: Outra questão ligada particularmente à
Qual a cara da Umbanda? Umbanda é: como explicar a discrepância
entre as notícias das décadas de 50, 60,70
Voltando aos números. e 80 e os números? Na imprensa, o aumen-
Qual o significado dos números aqui to dos umbandistas era tratado como um
discutidos? Eles representam sem dúvida fenômeno – o “extraordinário crescimento
uma mudança drástica nas declarações fei- da Umbanda”, diziam os jornais; a Igreja
tas aos agentes do censo. Mas tais declara- Católica se sentia ameaçada; segmentos
ções são confiáveis? conservadores da sociedade também a viam
Este seria um questionamento sem sen- como ameaça; políticos buscavam na Um-
tido. Pode-se desejar um refinamento que banda o apoio popular necessário. Aquele
levasse em conta, por exemplo, o duplo crescimento, portanto, não pode ter sido
pertencimento ou motivações para a mu- um “factoide”, uma “invenção jornalísti-
dança e assim por diante, mas não podemos ca”. Seria um tanto forçado depositá-lo na
fugir do fato de que existe realmente uma conta da imprensa e de “grupos interessa-
drástica mudança no panorama religioso dos” (quais seriam?). Houve realmente um
brasileiro retratado nos vários censos. Os fortalecimento da Umbanda que os censos
dados censitários mostram que o avanço universais não puderam captar. Na entre-
dos novos Pentecostais corresponde a um vista concedida a nós em 1969, Cavalcante
recuo seja do Catolicismo seja das religiões Bandeira, ao se referir aos umbandistas no
afro-brasileiras; mostram ainda o aumento Rio, dizia: “Nós somos 100 mil votos.” Em
daqueles que se definem “sem religião” que apenas uma frase, sublinhava a grandeza
poderiam representar à primeira vista um numérica e a força política da Umbanda.
mergulho mais significativo na moderni- Alguns umbandistas ocuparam cargos eleti-
dade laica. “Sem Religião”, contudo, como vos como deputados federais e estaduais ou
mostram pesquisas pontuais e pesquisas re- como vereadores, é o caso de Moab Caldas
alizadas na internet, recobrem um campo do Rio Grande do Sul, Atila Nunes no Rio
de grande diversidade que engloba ateus e (que dizia não precisar “fazer propaganda
pessoas que não se filiam a instituições re- porque tinha amigos certos na Umbanda”),
ligiosas; nesse caso, “sem religião” seria de Samir Achoa em São Paulo, além de Naylor
fato “sem igreja.” O movimento de crítica e de Oliveira (vereador, SP) para citar só es-
afastamento das Igrejas estabelecidas pare- tes. Dizia-se, na época, que a Umbanda,
ce ter seu paralelo num processo de descren- pelo menos no Rio, contava com número
ça da política, do sistema socioeconômico, suficiente de adeptos para conseguir eleger
dos “modos de levar o país” e, de modo ao menos um deputado a cada pleito.
muitas vezes difuso, descrença do “mode- Creio que as únicas maneiras de enten-
lo” civilizatório. Ao desconforto gerado por der a discrepância entre os números e a per-
essas descrenças parece corresponder uma cepção via imprensa (não podemos perder
religiosidade difusa, autônoma, mutante. de vista que, mesmo nos picos de visibili-
Por outro lado, à desconfiança frente às dade da Umbanda, a discrepância existia),
instituições religiosas contrapôs-se também seria a dupla pertença e a preferência pela
a multiplicação de igrejas (de instituições, religião “guarda-chuva” (catolicismo ou
portanto) no campo Evangélico. espiritismo) na declaração. Não falamos de

A Umbanda, as notícias e os números 79


uma adesão “pró forma”, o catolicismo ou dadas para o movimento retratado pelos
o espiritismo eram de fato religiões de ade- números. Como vimos, em pesquisa da
são de umbandistas e candomblecistas. Se FGV, sugeriu-se que o Pentecostalismo de-
correto esse raciocínio, podemos vincular o sempenharia hoje no Brasil o mesmo papel
decréscimo dos católicos ao decréscimo de desempenhado pelo protestantismo no nas-
adeptos afro-brasileiros que se diziam, ou cimento do capitalismo, tal como percebeu
melhor, que eram também católicos. Mais Weber. De fato, no universo dos novos cul-
uma vez parece que os destinos do catoli- tos Evangélicos, à busca da cura, seguiu-se
cismo e da Umbanda estão interligados. uma Teologia da Prosperidade que vem ao
Os dados censitários, ao mostrar as al- encontro da sociedade de consumo. Nes-
terações no panorama religioso brasileiro, se contexto, talvez o universo encantado
o aumento dos que se autodefinem “Sem e relacional da Umbanda e do Candomblé
Religião” e da porcentagem de “Outras Re- só possa perder terreno. Desde o início dos
ligiões”, deixam claro igualmente a face anos 80, Fry (1982) já falava num conflito
religiosamente majoritária do Brasil: como entre duas visões de Brasil: moderna que
apontamos mais acima, 91,6% das declara- acredita nas possibilidades racionais do bi-
ções são de católicos, protestantes, evangé- nômio trabalho/estudo e seu oposto que vê,
licos e “outras.” nas relações pessoais, as responsáveis pelo
Quanto às mudanças, a metáfora da mo- bom êxito individual. Resumindo, contra-
dernidade líquida, insistentemente visitada põe o Brasil favorável à magia e o Brasil
por Bauman (2001), poderia servir para que a condena.
traduzir esses movimentos da religiosida- Ainda retomando as declarações de per-
de e das religiões no Brasil. Diz Bauman tença e o descompasso entre elas e outras
(2001) que o que está acontecendo hoje é, manifestações dos campos retratados nos
por assim dizer, uma redistribuição e alo- censos: o campo do Espiritismo Kardecista
cação dos poderes de derretimento da mo- também figura com números pouco expres-
dernidade. Tais “poderes de derretimento” sivos nos diversos censos nacionais e con-
afetaram, diz ele, as instituições existentes, trapõe a esses números pouco expressivos
enquanto que as pessoas “foram libertadas os números extremamente expressivos do
de suas velhas gaiolas” apenas para serem seu mercado editorial. Conta com publi-
censuradas se não conseguissem se realocar cações que chegam aos milhões de exem-
através de seus próprios esforços “nos ni- plares, portanto, com milhões de leitores,
chos pré-fabricados da nova ordem” (BAU- quer se definam ou não como Espíritas. Só
MAN, 2001, p. 13). Ora, essa colocação Chico Xavier alcança a cifra de 25 milhões
parece servir apenas parcialmente ao qua- de exemplares vendidos. Chico Xavier tam-
dro encontrado, pois há um número não bém foi objeto de série de TV e filme (sem o
pequeno de pessoas que ao inventarem ou recorte religioso, TV e cinema também fo-
reinventarem a sua religiosidade, fazem-no ram atraídos pelo Candomblé e Umbanda).
com fluidez, mas não parecem ocupar ni- Assim, os dados censitários nos colo-
chos pré-fabricados. São antes bricoleurs cam inúmeras questões e nos dão um qua-
da religiosidade. dro “bem comportado” da realidade, que,
Outras interpretações, mais preocupadas visto de perto, perde bastante da nitidez.
em buscar explicações conjunturais, foram De qualquer forma, há um novo cenário.

80 R. Pós Ci. Soc. v.11, n.21, jan/jun. 2014


E, neste novo cenário contemporâneo, qual nem sempre bem aceita por alguns Kar-
seria a cara da Umbanda? decistas; entretanto, este vínculo existe, e
Esta é, para mim, uma pergunta reitera- os umbandistas falam num campo amplo
tiva que se associa a outra: se a Umbanda do “Espiritualismo” (que englobaria, entre
já foi vista como a “cara do Brasil”, que outros, o próprio Kardecismo). Os umban-
cara é essa do Brasil hoje? distas também fazem uso da internet, seja
Algumas pinceladas foram dadas acima, para comentar notícias de interesse reli-
mas, carregando nas tintas, temos: socieda- gioso ou os resultados do último censo,
de informatizada e sociedade de consumo, seja para criar sites específicos. Finalmen-
na qual ter e ser se confundem, são marcas te, não se pode deixar de fazer referência
da contemporaneidade às quais algumas à Faculdade de Teologia Umbandista na
confissões religiosas parecem se adequar cidade de São Paulo, fato que aponta na
melhor, ou, são fruto desse novo perfil. direção da constituição de um quadro de
Como a Umbanda responde ao novo adeptos (praticantes, membros do corpo
desenho da sociedade brasileira? Não obs- ritual, chefes de Casas) intelectualizados
tante, os pequenos números, ela aparece e com formação universitária; a Faculda-
em pesquisas e em publicações acadêmi- de oferece cursos de Pós-Graduação lato
cas recentes que reafirmam a sua força de senso contando com número significativo
renovação. Ao lado de formas tradicionais de alunos. A publicação de livros sobre a
de Umbanda (como o “Umbandomblé”), a religião é outra atividade importante da
Jurema, a Umbanda exotérica, que não é FTU, e alguns adeptos também publicam
nova, mas se mostra hoje como um veio por outros meios (arrolamos algumas des-
importante (aparentemente fortalecido na sas publicações na Bibliografia). Vê-se que
retomada de W.W. Mata e Silva na Facul- o esforço de legitimação continua, agora
dade de Teologia Umbandista - FTU, ou- em outro patamar.
tras composições como a “Umbandaime” A crer em algumas falas contemporâne-
(Umbanda e Daime) (VELA, 2012) vieram as a Umbanda ainda se coloca como a “cara
à luz. Entre os que se definem como es- do Brasil”. Nessa linha, a editora Arché se
píritas, há também umbandistas (Umban- apresenta em publicação de livro de Ferretti
da de Mesa Branca) e espíritas que “psi- (2013, p.7) como:
cografam” livros em defesa da Umbanda editora nascida da vontade e disposição de
dirigidos, aparentemente, a leitores kar- editar livros de excepcional qualidade, em
decistas. É o caso de Robson Pinheiro, primeira instância vinculados à tradição
cujos livros alcançam a casa dos cem mil oral […] com o foco na brasilidade e na tra-
(e mais) exemplares10.. A parceria entre a dição herdada de outras matrizes formado-
Umbanda e o Espiritismo é antiga, embora ras do povo brasileiro […], realizou parceria

10. Alguns dos títulos de Robson Pinheiro são ilustrativos dessa relação (no caso, vista como positiva) com
a Umbanda: Tambores de Angola, Casa dos Espíritos Editora, 1ª edição 1989; (2 edições e 22 reimpres-
sões); Sabedoria de Preto Velho, Casa dos Espíritos Editora, 2003; Aruanda, Casa dos Espíritos Editora,
2006. São textos psicografados que mostram uma interpretação da Umbanda e do seu papel no aperfeiço-
amento do espírito, por um autor que se identifica como espirita kardecista.

A Umbanda, as notícias e os números 81


com o bacharelado em Teologia da Faculda- REFERÊNCIAS
de de Teologia Umbandista (FTU), com ên-
fase na tradição oral afro-brasileira, autori- ARRUDA CAMARGO, M. T. L. de. As plantas me-
zado e credenciado pelo MEC e reconhecido dicinais e o sagrado. São Paulo: Ícone Editores,
em 2013. 2014.

ASSUNÇÃO, L. O reino dos mestres: a tradição


Festeja ainda o reconhecimento da da Jurema na umbanda nordestina. Rio de Janei-
FTU, publicado em Diário Oficial da União ro: Editora Pallas, 2006.
(17/4/13), pontuando com entusiasmo: “O BAUMAN, Z. A modernidade líquida. Rio de
primeiro (bacharelado desse tipo) do País e Janeiro: Zahar, 2001.
do mundo!” Note-se ainda que as publicações
BERGER, P. O dossel sagrado. São Paulo: Pauli-
da Arché são especialmente bem cuidadas.
nas, 1985.
A capacidade de inventar, de incluir, de
incorporar o velho, tornando-o novo, de BURGOS, A. Jurema sagrada: do nordeste bra-
juntar, de costurar, que atribuímos à reli- sileiro à Península Ibérica. In: PORDEUS Jr., I.
giosidade difusa contemporânea, é histori- (Org.). Laboratório de estudos da oralidade. For-
taleza: Expressão Gráfica, 2012.
camente a capacidade que encontramos na
Umbanda. Esta frase de Rivas Neto (FTU, FERRETTI, S. Repensando o sincretismo. 2. ed.
“sacerdote, mago e médico”) sintetiza o que São Paulo: ARCHÉ, 2013.
os umbandistas querem da Umbanda: “A FRY, P. Para inglês ver: identidade e politica na
Umbanda é representada pela unidade na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
diversidade” (mote semelhante ao do Her-
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Economia das
metismo no século II d.C.!). Não obstan-
religiões. 2007. Disponível em: http://www.fgv.
te, essa ideia mãe, o efeito da FTU sobre
br/cps/simulador/site_religioes2/. Acesso em:
o campo multifacetado da religião, pelo Acesso em: 30 jun. 2013.
menos no SE, será algo a considerar; por
______. Retratos da religião brasileira. 2005.
ora só podemos especular, mas do pouco
Disponível em: http://www.fgv.br/cps/religioes/
que conhecemos da Faculdade e de sua fi-
início,htm. Acesso em: 30 jun. 2013.
losofia, ela parece manter (na sua vertente)
a capacidade de inclusão, que sempre foi GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de
uma das forças da Umbanda. Janeiro: Zahar, 1978.
Uma resposta cabal (se é que se pode GOMES CONSORTE, J. Sincretismo e africanidade
chegar a uma) sobre a Umbanda no século em terreiros Jeje Nagô de Salvador. In: CHAIA,
XXI ainda está por ser dada. M.; SILVA, A. M. (Org.). Sociedade cultura e
política: ensaios críticos. São Paulo: EDUC, 2004.
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