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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O

CONTEÚDO DA ESPERANÇA EM
WALTER BENJAMIN E ERNST BLOCH
Bruna de Oliveira Bortolini1
A falta da esperança é, ela mesma, tanto em
termos temporais quanto em conteúdo, o mais intolerável, o
absolutamente insuportável para as necessidades humanas2.

Entender a Esperança a partir de dois filósofos


como Walter Benjamin e Ernst Bloch requer a percepção
de que apesar do modo como ambos3 a trabalham em suas
obras, isto é, através de escritas e dimensões temporais
distintas – Benjamin fala da Esperança sob uma perspectiva
do passado, vista e atualizada sob a ótica do presente, Bloch
o faz olhando para o próprio futuro, a partir daquilo que
ainda sequer foi pensado –, acabam no desenvolver de seus
pensamentos convergindo para o mesmo ponto: o desejo
de mudança do mundo, de transformação de toda realidade
em decadência. Isso porque o conteúdo da Esperança para
eles se constitui, de acordo com as palavras do próprio
Bloch, no “ato contra a angústia diante da vida e as
maquinações do medo”4. Para tanto, este artigo tem como

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da


Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
2 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de

Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 15.


3Walter Benjamin não possui nenhum texto em específico que trate da
categoria da Esperança, pelo menos não do mesmo modo como o faz
Bloch. Entretanto, é possível interpretar a presença deste tema em suas
obras, por meio da abordagem messiânica que alguns escritos, em
específico os das teses Sobre o conceito de história, carregam.
4 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de
Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 13.
RICARDO TIMM DE SOUZA; UBIRATANE DE MORAIS RODRIGUES (ORGS.) | 41

proposta expor a visão dos autores a respeito do tema,


destacando ao longo do texto semelhanças e divergências
entre suas teorias.
Porém, antes de iniciar, é preciso destacar: a
Esperança, ao contrário do que se pode querer imaginar,
não é para esses autores espera passiva, mas definitivamente
momento gestor de ação. A Esperança é caminho que
conduz ao alvo e não mera nostalgia, nem pura
contemplação daquilo que poderia vir a ser. Ela é acima de
tudo preparação para saída da crise, de um momento
conflitante, de uma situação difícil. Razão pela qual a falta
de esperança é, para Walter Benjamin e para Ernst Bloch,
insuportável, ao ponto de que suas obras conduzem sempre
para o enfrentamento dessa insuportabilidade. Grande
parte de seus escritos constituem-se numa exigência de
posicionamento, de decisão, de um colocar-se em
movimento utilizando o desconforto advindo de um
evento-limite, que poderia paralisar, como motor para
transformação. Daí a crença de que Benjamin e Bloch por
tratarem do conteúdo da Esperança abrem caminhos e não
os encerram, incentivam a criação de possibilidades, isto é,
estão atentos, como diria o próprio Benjamin, para “a porta
estreita por onde pode entrar o messias”5. São autores que
não estão preocupados apenas em dar explicações, justificar
racionalmente acontecimentos, mas principalmente em
fazer com que aquilo que ainda não veio a ser ganhe
expressão. Fato que para eles é o que justifica, inclusive, a
existência da filosofia, pois, conforme Bloch, “a filosofia
terá consciência do amanhã, tomará o partido do futuro,
terá ciência da esperança. Do contrário não terá mais
saber”6. A tarefa da filosofia em tempos nefastos, portanto,

5 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história, apêndice B.


In:_____. O Anjo da história. Trad. João Barrento. – 2ª ed. – Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 20.
6 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de
42 | ERNST BLOCH: UTOPIAS CONCRETAS E SUAS INTERFACES: VOL. 2

não é obscurecer ainda mais nossa visão, constranger-nos,


mas trazer luz, clarear o olhar, apontar o horizonte, mesmo
que este seja de pura insegurança, como veremos a seguir
pelas leituras realizadas das obras dos autores: fragmentos
das teses Sobre o conceito de história7 de Walter Benjamin e do
livro O princípio esperança8 de Ernst Bloch.

***

Tal como as flores se voltam para o sol, assim


também, por força de um heliotropismo secreto, o passado
aspira a poder voltar-se para aquele sol que está a levantar-
se no céu da história9.

Walter Benjamin viveu um momento que, segundo


Seligmann-Silva, podemos chamar de “era das
catástrofes”10, período que levou muitos pensadores a
reformularem hábitos positivistas da historiografia,
despertando a necessidade de narrar os acontecimentos de
um ponto de vista outro, que não apenas o dos
“vencedores”. Aspecto que revela uma nova prática de
escritura do passado, a histórico-materialista, que adquiriu
força principalmente pela atenção dada aos fatos que
ficaram submersos nas “representações” convencionais da
história. Na segunda tese Sobre o conceito de História, Walter

Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 17.


7BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In:_____. O Anjo
da história. Trad. João Barrento. – 2ª ed. – Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2013.
8 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de
Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005.
9 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história, tese4. In:_____. O

Anjo da história. Trad. João Barrento. – 2ª ed. – Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2013, p.10.
10 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Atualidade de Walter Benjamin e
Theodor Adorno. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 53.
RICARDO TIMM DE SOUZA; UBIRATANE DE MORAIS RODRIGUES (ORGS.) | 43

Benjamin afirma:

[...] o passado traz consigo um index secreto que o


remete para a redenção. Não passa por nós um
sopro daquele ar que envolveu os que vieram antes
de nós? Não é a voz a que damos ouvido um eco
de outras já silenciadas? As mulheres que
cortejamos não têm irmãs que já não conheceram?
A ser assim, então existe um acordo secreto entre
as gerações passadas e a nossa. Então, fomos
esperados sobre a Terra. Então, foi-nos dada, como
todas as gerações que nos antecederam, uma tênue
força messiânica a que o passado tem direito. Não
se pode rejeitar de ânimo leve esse direito11.

A citação nos leva a pensar sobre essa “tênue força


messiânica que o passado tem direito”, quer dizer, os
acontecimentos do passado na maioria das vezes
representados por uma narrativa dominante, pela narrativa
daqueles que foram vitoriosos – seja na guerra, na luta de
classes, nos espaços públicos de debate e participação social
e política – evidenciam naquilo que deixam de contar, que
deixam de citar, a outra face que lhes é própria. Pois neste
deixar de citar, muitas coisas ficam escondidas e se referem
com frequência àquilo que não se permite aprender ou
identificar, àquilo que escapa às classificações como, por
exemplo, a dor e o grito de desespero ou indignação do
outro, daquele que foi vencido, dominado. Esse grito e essa
dor, que geralmente seguem no tempo sem respostas, são,
segundo Benjamin, ecos por trás das vozes que dominam o
discurso convencional dos fatos. Um discurso que por estar
sempre em destaque não se incomoda com o que muitas
vezes teve de silenciar para continuar sendo ouvido.

11 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história, tese 2. In:_____.

O Anjo da história. Trad. João Barrento. – 2ª ed. – Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2013, p. 10.
44 | ERNST BLOCH: UTOPIAS CONCRETAS E SUAS INTERFACES: VOL. 2

Aspecto que, para o historiador materialista, apresenta-se


como um problema, isto é: como lidar com os conteúdos
outrora exilados? Como falar de eventos-limites, como
ditaduras, guerras, genocídios, pela perspectiva daqueles
que foram expostos ao sofrimento de forma cruel e
esmagadora?
De acordo com Benjamin, foi-nos dada, enquanto
herdeiros do passado, essa responsabilidade, essa tarefa de
mostrar a diferença, de tentar sempre de forma renovada e
paciente trazer à superfície o que foi suplantado. Força e
desejo de justiça, de resposta às vozes que foram silenciadas
e que são tênues, como afirma o próprio autor, exatamente
porque ainda estão por vir: dependem da ação, da luta, no
tempo presente, pela realização de uma promessa do
passado ainda não concretizada. Promessa essa que se dá
pelo ato de recordar. Entretanto, apenas se, conforme
Gagnebin, esse recordar “não for uma simples enumeração
oca, mas tentativa, sempre retomada, de uma fidelidade
àquilo que pedia um outro devir”12. O conteúdo da
Esperança em Benjamin está, portanto, presente nesse ato,
no passado que é presentificado no momento da
recordação e de sua citação no tempo do agora, no passado
herdado que ao ser lembrado aponta a direção futura;
compreendido em sua relação com o presente, fazendo
com que as próprias barreiras atemporais da historiografia
convencional sejam desfeitas, visto que, nas palavras de
Bloch, muito próximas ao pensamento do próprio
Benjamin, “o presente está carregado de memória,
carregado de passado. [...] Em todo o presente, mesmo no
que é lembrado, há um impulso e uma interrupção, uma
incubação e uma antecipação do que ainda não veio a
ser”13. A memória em Benjamim será então, de acordo com

12 GAGNEBIN, J. Marie. História e Cesura. In:_____. História e

Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 97.


13 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de
RICARDO TIMM DE SOUZA; UBIRATANE DE MORAIS RODRIGUES (ORGS.) | 45

isso, elemento fundamental à compreensão do sentido que


a categoria de Esperança irá assumir nas obras do autor e
que pode ser observada a partir de dois pontos: primeiro, a
lembrança como atualização do passado no momento
presente e, segundo, a lembrança como ruptura cronológica
capaz de despertar realidades ainda não conscientes. Isso
porque o recordar em Benjamin não se refere apenas a um
dirigir-se ao passado de forma melancólica ou meramente
nostálgica, mas de imediata atualização, pois a lembrança
mesmo que trate de um conteúdo até então não presente,
por se dar no próprio presente é o que a torna atual. Esse
conteúdo rememorado, no entanto, não vem sozinho, é
como o despregar-se de uma prega que sempre traz
consigo a revelação de algo que estava escondido e que
emerge rompendo com o segmento habitual e “tranquilo”
da história apontando para outras possibilidades de sua
realização. Ponto que, conforme Kothe14, pode não trazer a
felicidade de fato, mas conserva até mesmo em uma
potencial frustração a dimensão de uma felicidade ainda
possível, aquela dimensão alegórica, “outra” do que poderia
ter sido e não foi.
Posto isso, a Esperança não se apresenta como algo
utópico no sentido vulgar da palavra, uma elaboração
abstrata do mundo, como expresso anteriormente, mas
vontade objetiva de transformar o curso “natural” das
coisas, transpor o conformismo e a angústia atrofiante
perante os fatos. A Esperança é utopia, tanto em Benjamin
como em Bloch, no sentido de possibilidade objetiva que
não está definida, mas aberta à sua realização, vinculada à
própria noção benjaminiana do “aqui e agora”. Ela
representa o momento oportuno de ação que está sempre
se iniciando, atrelado a uma constelação de situações que a

Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 22.


14KOTHE, Flávio. A ruína alegórica. In:_____. Para ler Benjamin. Rio
de Janeiro: F. Alves, 1976, p. 42.
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todo o momento, ao configurarem suas relações, abrem


espaço para o novo. E, deste modo, por mais que a utopia
possa remeter a um futuro distante, fazendo-nos enxergar
longe, essa não é a sua verdadeira tarefa. O que pretende de
fato é: a partir de uma promessa de futuro melhor, fazer os
indivíduos transporem situações difíceis, criarem uma nova
experiência que mudará o modo como encaram os
acontecimentos. Porém, é importante destacar que essa
ideia de futuro melhor não se assemelha nem um pouco
com aquela alimentada pela noção progressista da história,
da indústria da felicidade em que temos de aceitar os
acontecimentos, o sofrimento a que muito são submetidos
porque bem lá na frente todos serão recompensados, seja
em função de avanços científicos, tecnológicos ou
econômicos. O futuro melhor, em Benjamin, relaciona-se à
quebra dessa própria lógica que é a responsável pela
fabricação e manutenção do sofrimento que se ergue sobre
vítimas. A Esperança remete a um futuro planejado,
construído e não apenas consequente.
Nesse sentido, no pensamento benjaminiano, a
Esperança é a tentativa de retomar aquilo que na “esteira”
dos acontecimentos pedia outro devir. É instante de
salvação que, de acordo com Gagnebin, ocorre quando
“renunciamos a tudo preencher para deixar que algo de
outro possa dizer-se”15, quando paramos o tempo para
“permitir que uma outra história [possa] vir à tona”16.
Entretanto, sem nunca crer que esta será então plena, feliz e
sem rupturas, pois se constituiria numa contradição, visto
que, conforme o próprio Benjamin, os vitoriosos é que
integram o cortejo triunfal, isto é,
Em cada momento, os detentores do poder

15 GAGNEBIN, J. Marie. História e Cesura. In:_____. História e

Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 98.


16GAGNEBIN, J. Marie. História e Cesura. In:_____. História e
Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 98.
RICARDO TIMM DE SOUZA; UBIRATANE DE MORAIS RODRIGUES (ORGS.) | 47

são os herdeiros de todos aqueles que antes foram


vencedores. Daqui resulta que a empatia [do
historiador] que tem por objeto o vencedor serve
sempre aqueles que, em cada momento, detêm o
poder. [...] Aqueles que, até hoje, sempre saíram
vitoriosos integram o cortejo triunfal que leva os
senhores de hoje a passar por cima daqueles que
hoje mordem o pó17.

Assim colocar-se na contramão dessa tradição dos


vencedores é a tarefa que trará a verdade, é o espaço onde
os conteúdos da esperança podem se concretizar. Não é o
caso, porém, de “vingar-se” daqueles que comandam o
discurso, mas repensar determinados acontecimentos
passados com o objetivo de dar uma resposta aos que
foram oprimidos e lutar pelo fim da repetição dessa
opressão. Motivo pelo qual Benjamin é entendido, segundo
Sarlo, como um autor cujas obras possuem sentido
interminável, “nada pode ser terminado por completo, todo
trabalho supõe uma construção em ruína”18. Afirmação que
poderia nos levar a acusar Benjamin de irracionalismo por,
opostamente à tradição filosófica que busca a essência e a
unidade das ideias, atentar-se exatamente na busca pelo
desmoronar constante de qualquer pretensão de verdade
enquanto identidade. Mas como afirmar uma unidade se a
realidade está a todo o momento nos escapando?
Tal questionamento leva a considerar, portanto, que
racional de fato é o intermitente, ou em palavras muito
próximas às de Benjamin: o ato de parar o ritmo para poder
tomar fôlego, a crítica à aparente e sedutora ideia de um

17
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história, tese 7. In:_____.
O Anjo da história. Trad. João Barrento. – 2ª ed. – Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2013, p. 12.
18SARLO, Beatriz. Verdad de los detalles. In:_____. Siete ensayos sobre
Walter Benjamin. – 1ª ed. – Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores,
2011, p. 39.
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desenrolar harmonioso dos acontecimentos. Pois a


possibilidade latente é que a verdade possa estar
exatamente nessa renúncia “ao percurso ininterrupto da
intenção”19, nesse voltar continuamente ao princípio, isto é,
num sistema de pensamento autocrítico que tende, frente a
toda tentativa de paralisia do pensamento, “ruir a ordem
das palavras e das coisas”20, mostrando suas contradições e
carências. Justamente porque é a partir de nossas
hesitações, de nossas resistências à soberania da intenção
que tudo quer determinar, que o real pode vir a se mostrar
em suas múltiplas expressões e que a verdade de um
discurso, indo ao encontro do que afirma Gagnebin sobre
as Teses benjaminianas, “não se esgota [...] na sua
argumentação sem falhas, nem na sua coerência interna”21,
mas em suas brechas possíveis, ali onde nos falta o
conceito, a palavra, a voz.

***

Somente ao se abandonar o conceito fechado e


imóvel do ser surge a real dimensão da esperança22.

Se a filosofia de Benjamin será esse caminhar em


expansão, Bloch não ficará muito distante. Segundo
Albornoz, a obra deste autor “tem caráter de sistema,
embora nunca se feche. O pensamento de Bloch se

19 BENJAMIN, Walter. Prólogo epistemológico-crítico. In: ____.


Origem do drama trágico alemão. Trad. João Barrento. – 2. ed. – Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p.16.
20GAGNEBIN, J. Marie. História e Cesura. In:_____. História e
Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 97.
21 GAGNEBIN, J. Marie. História e Cesura. In:_____. História e

Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 100.


22BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de
Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 28.
RICARDO TIMM DE SOUZA; UBIRATANE DE MORAIS RODRIGUES (ORGS.) | 49

apresenta como sistema aberto”23. Contudo, apesar da


notável vontade compartilhada por ambos os filósofos de
romper com o modelo de pensamento comum à tradição
ocidental, isto é, um sistema fechado em si mesmo que
busca dizer o que as coisas são, afirmar “aquilo que é”,
Bloch irá dedicar-se a essa questão de forma ainda mais
enfática do que Benjamin. Em oposição à ontologia
tradicional, irá elaborar sua própria ontologia, a qual irá
explorar a questão do Ser a partir da categoria da
possibilidade. Tal categoria, no sistema de Bloch, constitui-
se na negação do Ser como um ser de determinações fixas e
atemporais, de um ser pronto e acabado, para poder afirmar
aquilo que “ainda não é” e que está em vias de ser. Em
Bloch “o ser se dá como ainda-não-ser. No começo está
um não: um ainda-não”24. Com base nesse posicionamento
que contesta a lógica de uma suposta totalidade fechada, o
autor procura mostrar que a essência de algo, ou o
momento em que algo se apresenta em realidade, não está
necessariamente naquilo que pode ser afirmado sobre ele,
mas naquilo que ainda não se sabe a seu respeito, naquilo
que ainda que sequer chegou a ser. Assim, nas palavras do
próprio autor, “a essência mesma do mundo situa-se na
linha de frente”25. É a consciência manifesta de que a
realidade não está plenamente concretizada, de que a
realidade ainda não alcançou o seu fim e nem alcançará,
pois o Ser temporal está a todo o momento em contínuo
processo de mutação. Motivo pelo qual, de acordo com
Albornoz, esse novo modo de visualização do Ser permite
à inteligência perceber “o real de maneira a descobrir as

23ALBORNOZ, Suzana. O enigma da esperança. Petrópolis, RJ: Vozes,


1998, p. 9.
24ALBORNOZ, Suzana. O enigma da esperança. Petrópolis, RJ: Vozes,
1998, p. 11.
25BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de
Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 28.
50 | ERNST BLOCH: UTOPIAS CONCRETAS E SUAS INTERFACES: VOL. 2

perspectivas de sua transformação”26 com base em sua


incompletude.
Tal proposta, de uma ontologia que se constrói a
partir da possibilidade do ser tornar-se aquilo que ele ainda
não é, logrou diversas críticas à Bloch, pois obviamente sua
lógica de pensamento mostra-se amplamente inversa àquela
na qual todo estudante de filosofia foi um dia iniciado, ou
seja, uma lógica que se dedica a investigar o ser a partir do
princípio da unicidade, identidade e não contradição, do ser
concluso e não do “ser-em-possibilidade”, múltiplo, como
coloca o autor. Aspecto que revela sua diferença em relação
a Benjamin. Pois, este a todo o momento fala de
possibilidades em aberto no passado que podem ser
concretizadas no momento presente. Já Bloch,
inversamente, toma como ponto de partida para reflexão as
possibilidades em aberto com que o futuro presenteia
nossas dores mais imediatas, quer dizer, o autor defende, a
partir de uma perspectiva futura, que toda realidade por
mais absurda que possa parecer, contém em si a
potencialidade concreta de ser diferente. Colocando como
questão fundamental de todo projeto revolucionário e
redentor, a consciência dessas possibilidades de luta e de
superação do mal-estar experimentado, acompanhada de
uma ação objetiva no tempo presente (passado do futuro)
como capaz de concretizar o salto em direção àquilo que
deve ser, em direção ao possível objetivo-real. Atitude que,
segundo, Albornoz, “ante a indeterminação, determinável
pelo trabalho e pela ação concretamente mediatizada”27
transforma o mundo. Este desejo de transformação,

26 ALBORNOZ, Suzana. Ética e Utopia: ensaio sobre Ernst Bloch. 2. ed.


Porto Alegre: Movimento; Santa Cruz do Sul, RS: Ed. da Unisc, 2006,
p. 36.
27 ALBORNOZ, Suzana. Ética e Utopia: ensaio sobre Ernst Bloch. 2. ed.
Porto Alegre: Movimento; Santa Cruz do Sul, RS: Ed. da Unisc, 2006,
p. 77.
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atrelado a uma ação que permite a efetivação do desejado,


sem esgotar seus “outros” possíveis, é o que caracteriza a
Esperança em Bloch.
Para Bloch, a partir desse ponto de vista, a
Esperança é então uma atividade “direcionada para um
alvo”28, um querer, o que a difere, por exemplo, do desejo.
Segundo ele, isso ocorre porque no desejo “ainda não há
nada de trabalho ou atividade. [...] Pode-se desejar que
amanhã faça bom tempo, embora em absolutamente nada
se possa contribuir para isso”. Contudo, o querer “é
necessariamente um avançar ativo rumo a esse alvo, dirige-
se para fora, tem de se medir unicamente com coisas
realmente dadas”29, aspecto que faz com que o caminho
trilhado pelo desejar seja acrescido e solidificado pelo
querer. Na visão de Bloch, por mais que tenhamos aí uma
concepção de desejar “passivo”, em última análise “nada se
pode querer além do que é desejado: o desejo interesseiro é
‘o modo da pulsão’, ‘a melodia da pulsão’, que provoca o
querer, que lhe entoa o que ele deve querer”30. Se eu tenho
fome, desejo de alimento, isso move meu querer na busca
por saciar esta fome. O indivíduo que vive a fome procura
de todo modo

[...] modificar a situação que ocasionou o estômago


vazio e a cabeça baixa. O não ao ruim existente e o
sim ao melhor em suspenso são acolhidos pelos
carentes no interesse revolucionário. Em todo o
caso, é com a fome que esse interesse tem início, a
fome se transforma como fome instruída, numa

28BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de


Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 50.
29BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de

Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 50.


30BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de
Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 51.
52 | ERNST BLOCH: UTOPIAS CONCRETAS E SUAS INTERFACES: VOL. 2

força explosiva contra o cárcere da privação31.

Essa força expectante é o que dirige os indivíduos


para uma vida melhor, se ela será ou não melhor, a
preocupação ainda não é essa visto que o objetivo maior é
cultivar as condições para a realização daquilo que se
deseja. É a preparação consciente do campo de
desenvolvimento do ainda-não-consciente que parte de
uma falta da qual se quer se desfazer. O planejamento para
se sair de uma situação aparentemente sem saída. Um
“sonhar acordado”, isto é, um projetar para frente que
pressupõe uma “fuga” da realidade para vislumbrar outras
possíveis, porém sem retirar os olhos do próprio real, do
presente. Assim, um sonho que não pede interpretação,
mas elaboração. Segundo Albornoz, quando Bloch fala dos
“sonhos acordados”, esses que se dão de forma lúcida,
afirma que ali é o futuro que aponta. Pois, o sonhar
acordado, diferentemente do sonho noturno que evoca
imagens do passado,

[...] manifesta uma verdadeira fome psíquica pela


qual o homem imagina planos futuros e outras
situações em que supere os problemas, as
dificuldades e obrigações de um hoje onipresente.
[...] Pelo sonho acordado transcendemos nossa vida
cotidiana, nosso presente, para o futuro. [Ele é a]
primeira imagem de um futuro em que o desejo
poderia se satisfazer32.

Porém, é importante destacar que a imaginação de


planos futuros não pertence ao âmbito da fantasia, de um

31 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de

Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 78.


32 ALBORNOZ, Suzana. Ética e Utopia: ensaio sobre Ernst Bloch. 2. ed.
Porto Alegre: Movimento; Santa Cruz do Sul, RS: Ed. da Unisc, 2006,
p. 27-28.
RICARDO TIMM DE SOUZA; UBIRATANE DE MORAIS RODRIGUES (ORGS.) | 53

impulso indisciplinado e alienante, mas é prospecção de


uma situação futura que possa servir de alternativa a todo o
presente que se mostra de maneira insatisfatória. E embora,
nesse momento, em decorrência da abertura ao que está
por vir, também surjam outros “afetos” além da esperança
como, por exemplo, a angústia, o medo, o desespero, a
confiança, ela, diferentemente, não é apenas um afeto, mas
“ato de direção cognitiva”33, ou seja, um ato de
conhecimento. Por essa razão, a Esperança em Bloch é
infinitamente contrária ao medo, pois o medo não conserva
a mesma amplitude daquela, isto é, o campo aberto para
realizações. O medo encerra toda e qualquer expressão
daquilo que poderia vir a ser, justamente por desconhecer
esse ser que ainda não se concretizou, mas que está a
caminho. O medo é a visão exagerada da realidade, é a
visão distorcida e sem conhecimento, que ao invés de
investir contra os seus causadores, os alimenta e, desta
forma, aniquila tudo aquilo que ainda não existiu, inclusive
aquilo que poderia vir a lhe cessar. O conteúdo da
Esperança em Bloch difere-se do medo exatamente porque
ela é acima de tudo lúcida, clara, não é apenas “emoção
autônoma”34. É consciência objetiva de que existe um
ainda-não-consciente e que é preciso deixá-lo emergir,
mesmo que estejamos sobre ruínas. De que a vida não pode
ser apenas lamento perante os fatos, covardia, mas
caminhar firme em busca daquilo que deve ser. Não é um
utopismo abstrato, pois leva em consideração as carências
humanas, as “possibilidades reais latentes no presente”35.
Pois, como vimos, o real em Bloch, assim como em

33BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de


Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 22.
34BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de

Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005, p. 144.


35ALBORNOZ, Suzana. O enigma da esperança. Petrópolis, RJ: Vozes,
1998, p. 14.
54 | ERNST BLOCH: UTOPIAS CONCRETAS E SUAS INTERFACES: VOL. 2

Benjamin, não está engessado, determinado, mas em


constante elaboração. Desta forma, a filosofia não deve
limitar-se em tratar apenas daquilo que ocorreu tentando
justificar os fatos, afirmando sua necessidade. Segundo
Bloch, a tarefa da filosofia deve ser a de abrir portas,
janelas, frestas que nos permitam explorar aquilo que ainda
não está decidido, que é mutável, que pode modificar-se a
qualquer momento e, nesse sentido, romper com qualquer
noção compactada e limitadora que tenhamos criado da
própria realidade. Aspecto que conserva um espaço
gigantesco de liberdade de ação.

***

Nesse sentido, os sistemas de pensamento tanto de


Benjamin como de Bloch, apesar de estruturarem-se de
forma diferente, convergem, como visto, para a
“antecipação do novo no caos dos fenômenos”36. Benjamin
parte de possibilidades em aberto no porão da história que
anseiam por sua concretização no presente, Bloch trata do
momento futuro ainda não anunciado que exige, assim
como em Benjamin, uma ação no tempo do agora para
revelar suas possibilidades. Autores que por meio de uma
escrita que foge à linearidade do pensamento reconhecem
que o maior perigo para a filosofia não é enganar-se em
alguns momentos, pegar desvios, entrar em contradição,
mas deixar-se persuadir pela sedutora postura positivista de
crer em verdades absolutas e sistemas fechados. Pois é
justamente quando se pensa que tudo está consumado, que
tudo aquilo que podia chegar a ser um dia, já foi, é que
cresce o perigo. O perigo de não conseguir ver que apesar
de tudo, ainda há muito por vir, muitas realidades incubadas

36 BOURETZ, P. Testemunhas do futuro: filosofia e messianismo. Trad. J.


Guinsburg Fany Kon, Vera Lúcia Felício. São Paulo: Perspectiva, 2011,
p. 700.
RICARDO TIMM DE SOUZA; UBIRATANE DE MORAIS RODRIGUES (ORGS.) | 55

apenas esperando pelo momento oportuno de sua


realização. Assim, é possível afirmar que o conteúdo da
Esperança na filosofia de Benjamin e de Bloch caracteriza-
se principalmente por essa força messiânica que faz
reconhecer em cada momento um espaço para o
“acontecer”. E que aquilo “que ainda não é dizível hoje, [...]
talvez o seja amanhã, pelo esforço e o trabalho dos que têm
coragem de falar o que pensam, ou o que sonham”37 e que
exatamente por isso não se dão por vencidos. Aspecto que
faz valer o caminho até então percorrido por cada um de
nós e também a experiência daqueles que, em razão de
condições que reduzem a capacidade de sonhar, já
perderam as esperanças.

Referências

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Vozes, 1998.

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– Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

_____. Sobre o conceito de história. In:_____. O Anjo da história.


Trad. João Barrento. – 2ª ed. – Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2013.

BLOCH, Ernst. O princípio da esperança. Trad. Nélio Schneider.


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BOURETZ, P. Testemunhas do futuro: filosofia e messianismo.

37ALBORNOZ, Suzana. Ética e Utopia: ensaio sobre Ernst Bloch. 2.


ed. Porto Alegre: Movimento; Santa Cruz do Sul, RS: Ed. da Unisc,
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56 | ERNST BLOCH: UTOPIAS CONCRETAS E SUAS INTERFACES: VOL. 2

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de Theodor W. Adorno.

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