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TRADIÇÃO E RUPTURA:
RIO DE JANEIRO
2015
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TRADIÇÃO E RUPTURA:
RIO DE JANEIRO
FEVEREIRO DE 2015
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TRADIÇÃO E RUPTURA:
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RIO DE JANEIRO
FEVEREIRO DE 2015
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RESUMO
O nosso trabalho concentra-se na literatura produzida por Raduan Nassar, que abarca o
romance Lavoura arcaica, a novela Um copo de cólera e a reunião de contos Menina a
caminho e outros textos, com o objetivo de encontrar o espaço ocupado pelo escritor na
literatura brasileira. Procuramos, então, compreender a complexidade das obras a partir
da cicatriz como marca da escrita e dos narradores nassarianos, de modo a entender
como a tradição e a ruptura se dão através das vozes que resultam do silêncio. A
estrutura lacunar das narrativas, os arquétipos e os consequentes contra-arquétipos
característicos dos narradores e a concepção de razão foram os norteadores da nossa
pesquisa. Como elo, a marca da ruptura, presente nesses três tópicos, foi analisada como
tradição, que, mascarada pela sua contradição ao assumir-se como tradição e ruptura
simultaneamente, deixa sua cicatriz, no corpo dos personagens e no do texto, fazendo da
sua (in)visibilidade o grito não dito da literatura. Autores cuja leitura a respeito dos
eixos ruptura e razão se atualiza a partir dos conflitos modernos, tais como Octavio Paz
e Hannah Arendt, foram utilizados como fundamento teórico. Diante da cicatriz literária
ocupada por Raduan Nassar, o nosso trabalho inclina-se ao estudo das demais cicatrizes
de sua escrita, buscando compreendê-la como espaço nassariano na literatura brasileira.
RESUMEN
Nuestro trabajo se concentra en la literatura producida por Raduan Nassar, que abarca el
romance Lavoura arcaica, la novela Um copo de cólera y la reunión de cuentos Menina
a caminho e outros textos, con el objetivo de encontrar el espacio ocupado por el
escritor en la literatura brasileña. Buscamos, entonces, comprender la complejidad de
las obras a partir de la cicatriz como marca de la escritura y de los narradores
nasarianos, el modo de entender como la tradición y la rotura se dan a través de las
voces que resultan del silencio. La estructura de espacios de la narrativa, los arquetipos
y los consecuentes contra-arquetipos característicos de los narradores y la concepción
de la razón fueron el norte de nuestra investigación. Como enlace, la marca de la
ruptura, presente en esos tres tópicos, fue analizada como tradición, que, mascarada por
su contradicción al asumirse como tradición y ruptura simultáneamente, deja su cicatriz,
en el cuerpo de los personajes y en el del texto, haciendo de su (in) visibilidad el grito
no dicho de la literatura. Autores cuya lectura al respecto de los ejes, ruptura y razón se
actualiza a partir de los conflictos modernos, tales como Octavio Paz y Ana Arendt,
fueron utilizados como fundamento teórico. Delante de la cicatriz literaria ocupada por
Raduan Nassar, nuestro trabajo se inclina al estudio de las demás cicatrices de su
escritura, buscando comprenderla como espacio nassariano en la literatura brasileira.
AGRADECIMENTOS
Só agora, quando coloquei o último ponto final no texto, entendi por que os
agradecimentos vêm antes de qualquer letra maiúscula: jamais teríamos conseguido
concluir a escrita sem estas pessoas. Por isso, agradeço
CAPES, que me permitiu, com a bolsa cedida, maior conforto e dedicação à realização
do mestrado;
Professora orientadora Anélia Pietrani, que, com seu acolhimento e os seus “beijos de:”,
esteve sempre ao meu lado, acolhendo-me quando precisava ouvir uma voz doce e me
orientando quando eu não sabia para onde mirar meu norte.
Àqueles que não estão mais entre nós, mas se mantêm cada vez mais vivos:
Caio, que, sendo inteiro um mistério, passou pela minha vida para me dizer qual
caminho seguir;
Minha irmã Silka Mara, que, com seu (a)braço generoso, provou-me que o mundo
estaria pronto para me receber; que, ao abrir a porta da sua casa, abriu também as portas
de uma cidade inteira; que, ao partir, deixou um lugar vazio à mesa, mas capaz de
provar que o silêncio ainda diz muito;
Meu avô Paschoal, que, em meio aos seus cochilos de fim de tarde, fez-me prometer o
que não podia cumprir e, nisso, descobrir que muitos desejos são desejos de desejar;
Tia Eniura, que dividiu comigo, enquanto pôde ensinar, um dos maiores bens humanos:
o desejo de aprender; que, com a sua generosidade, disse-me que eu era maior do que as
pessoas poderiam enxergar; que, com o seu amor, disse a todos que o mundo era
pequeno para o meu desejo de vencê-lo;
Pedro Bicalho, meu primeiro grande amor, que, ao nos deixar na reta final da
dissertação, relembrou-me de que olhar para trás nos faz entender quem somos e quem
ainda queremos ser.
9
Minha avó Lucy, que, com o afeto maior do mundo, fez-me entender que é possível
passar pela vida sem sentir nenhum sentimento ruim e sentir por alguém todo o amor do
mundo;
Minha mãe Lúcia, que, sendo minha versão além de mim, mostrou-se capaz de se
renovar inteira para garantir meu futuro;
Meu pai José, que, com sua proteção e postura reservada, acabou por me lembrar que o
amor move o mundo e muda as pessoas;
Meu irmão Diego, que, com o seu-nosso sorriso, fez da minha infância uma fase muito
bem acompanhada e faz da minha vida uma saudade dos dias em Angra;
Meu sobrinho Dalay Martins, que, sendo a melhor herança de minha irmã, não me deixa
perder seu sorriso e me relembra que, todos os dias, renascemos;
Meus tios Paulo e Marco, que sempre me apoiaram e fizeram do orgulho que sentem
uma forma de afeição;
Meus primos May, Vinícius e Mayara, que me relembram que o carinho e as boas
memórias não dependem de laços sanguíneos;
Meu cachorro Bartolomeu e minha gata Tinha, que dividem comigo as horas de estudo
e as de diversão e me ensinam tantas formas de amor.
Mariana Peixoto, Luísa Peixoto e Monique Valverde, por terem feito parte, às vezes
mais, às vezes menos, de todo o meu percurso de formação;
Mariana Rego, Juliana Rego e Luana Ramos, por terem me recebido em um emprego,
uma cidade e um coração; por terem, com sua generosidade, me transformado em uma
das Birous; e por terem me mostrado que existia uma família no Rio à minha espera;
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Mariana Cabra, por ter levado nossa amizade da Praia do Sono à porta de casa, quando,
por duas vezes, dividiu seu apartamento e sua vida comigo;
Lais Rodrigues, por se revelar o melhor e o maior presente que o mestrado me deu; por
dividir viagens, histórias e tantos afetos; por me acolher, com seus pais Ricardo e Beth,
naquele que se revelou um dos melhores lugares no mundo;
João Carvalho, por ter preenchido de alegria o início e grande parte do meio;
Jhone Carlos, por ter me dado a sua sincera amizade e, junto, ter me ensinado a ver o
mundo de outra forma;
Filipe Manzoni, por compartilhar comigo, em tantas conversas à distância, a sua forma
de ser esquisito como eu;
Yasminni Bianor, por não se negar a ser minha sina e permanecer na minha vida;
Fernanda Gerbis, por se revelar uma grande amizade que a implicância alimenta;
Nira Santos, por ser uma companhia diária e me relembrar o quanto ainda posso e devo
crescer;
Ana Crélia Dias e Maria Coelho, por serem os melhores presentes que a licenciatura me
deu;
Adriana Freitas, por me receber com generosidade e compartilhar comigo não apenas
um espaço, como também uma concepção de ensino;
Márcia Xavier, por me ensinar tanto em tão pouco tempo e me mostrar que ser mãe não
se restringe aos cuidados dos filhos que saem de nós;
Turmas de 2013, por terem me formado como professora, e turmas de 2014, por terem
me ensinado, todos os dias, a aprender;
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 13
“O VENTRE SECO” 80
SEDA” 102
4.1 A TERRA QUE NÃO ABRIGA, A FAMÍLIA QUE NÃO ACOLHE, O VENTRE QUE
LITERATURA 119
5 CONCLUSÃO 139
1 INTRODUÇÃO
1
Os trechos foram retirados da sessão “Folha de rosto” dos Cadernos de literatura brasileira, número 2,
página 5, cuja autoria é atribuída ao diretor editorial, Antonio Fernando de Franceschi.
14
Embora não tenha sido abandonado pela crítica literária desde o lançamento do
seu primeiro livro, o seu isolamento e a sua recusa são bastante sintomáticos quanto à
sua postura diante do mundo e, por conseguinte, da literatura. Um dos contos que
compõem o livro Menina a caminho e outros textos, cujo título é “Mãozinhas de seda”,
demonstra como essa discussão é cara a Nassar, que traz como narrador uma voz
relativamente autoral. Por meio dela, a recusa à intelectualidade e às suas formas de
apresentação é matéria da narrativa, que mais se aproxima de uma reflexão crítica do
que de um percurso ficcional. As mãozinhas de seda, no conto, podem ser entendidas
como as mãos dos intelectuais ou as das jovens de Pindorama. Enquanto estas usavam
pedra-pome para afinar as mãos desgastadas para se prepararem para o Baile da
Primavera, que ocorria apenas uma vez por ano, aqueles se utilizavam da mesma pedra
para polir as mãos usadas no cumprimento de outros intelectuais, mas, nesse caso, o ato
de vaidade se alongava por todo o ano. Esse conto, que aparece, na organização
macroestrutural do livro, como o último e foi escrito, inicialmente, para compor a
sessão “Inédito” dos Cadernos (1996), esclarece-nos aquilo que tantos críticos buscam
explicar: não foi a literatura que se afastou de Nassar; foi Nassar, pelo contrário, que se
afastou da literatura. A sua explicação, embora pouco imperativa, aparece quando o
escritor responde a uma das perguntas feitas pelos Cadernos:
E depois, todas essas disputas por valores estéticos são feitas em nome de
quê? Que é que acrescentam na zorra que é este mundo? É a espécie que tem
melhorado com isso? Ou querem ser reconhecidos como a elite? É isso que
querem? Sentem-se mais seguros, mais felizes assim? Ótimo. No que me
toca, como bom caipira, lhes concedo sem qualquer dificuldade o título de
aristocratas (NASSAR, 1996, p. 34).
Com o objetivo de explicar um pouco da alma desse escritor que tanto se propôs
a falar da alma humana, José Carlos Abbate, Augusto Nunes e Milton Hatoum,
amizades conquistadas pelo escritor ao longo de seu percurso acadêmico e literário, têm
seus depoimentos a respeito do amigo de Pindorama recolhidos pelos Cadernos. Neles,
falam a respeito da forma como Raduan Nassar se portava diante do mundo e de suas
certezas, deixando claro, a todo momento, o traço de autoria presente em sua obra e na
sua forma de lidar com a literatura. José Carlos Abbate, com quem Nassar não concluiu
a Faculdade de Direito, caracteriza o percurso do colega da entrada na universidade à
desistência, assinalando como, ao longo desse trajeto, algumas certezas foram
abandonadas:
Essa fusão entre a racionalidade e a emoção, cujo conflito quebrado por Nassar
propiciou o seu mergulho na narrativa, aparece em todos os seus livros, tendo a sua
maior representação em Um copo de cólera (1978). Se, para Abbate, foi a superação
dessa cisão inicial que assinala a derrota do iluminismo que fez parte das pretensões de
Nassar, para Augusto Nunes, um dos colaboradores do Jornal do Bairro – um dos
negócios da família Nassar –, “foi o personagem Raduan quem criou o escritor, como
antes criara o acionista de uma empresa comercial e o diretor de jornal de bairro, como
depois criaria o homem que semeia pipocas” (NUNES, 1996, p. 17). Para Nunes, o
movimento de Raduan inverte a lógica canônica criador-criatura, passando à lógica de
“criatura que, em vez de ser por ele criada, cria o criador” (1996, p. 17). O personagem
André, pois, não foi por Raduan criado: em vez disso, André cria o escritor de Lavoura
arcaica.
Raduan parece ter concordado com isso: a guerra conjugal é um pretexto para
que o narrador comente o mandonismo, o autoritarismo, os laços que o unem
a uma família patriarcal. O tempo da narrativa é o tempo do regime
autoritário, mas este é visto através de uma experiência vital dos narradores-
personagens, de modo que o regime militar a que aludem pode situar-se no
Brasil ou em outras latitudes (HATOUM, 1996, p. 21).
Como assinala Hatoum, a ruptura proposta por Nassar não se dá apenas no plano
estrutural, no qual o escritor abre mão da objetividade e admite a implosão de um
suposto iluminismo, mas principalmente no plano temático, em que o escritor se utiliza
de temáticas tradicionais, como a sensibilidade dos laços que unem as famílias
patriarcais, para questionar o autoritarismo e o mandonismo que, inevitavelmente, muito
têm a dizer a respeito da velha ordem militar que tanto foi pauta de obras pós-64. Para
isso, Raduan precisou, de acordo com a própria fala, abdicar de sua visão maniqueísta a
respeito da razão:
(...) eu também, também pensava, quando esbarrei nos sofistas que a razão
não era exatamente aquela donzela cheia de frescor que acaba de sair de um
banho numa tarde de verão. Ao contrário, era uma dama experiente que não
resistia a uma única cantada, viesse de onde viesse, concedendo inclusive os
seus favores a quem pretendesse cometer um crime. O aporte ético, que
tentaram colar nela desde os tempos antigos, lhe é totalmente estranho. A
razão não é seletiva, ela é uma belíssima putana, mas vem daí o seu grande
charme, se bem que esse charme venha mais da sua humildade, passando
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De donzela cheia de frescor, a razão passa, para Nassar, a uma dama experiente
que não resiste a uma única cantada, independentemente de sua origem. Aquela razão
pressuposta pelo fajuto iluminista que o estudante de filosofia pretendia ser, ainda nos
anos 60, revela-se em sua nova forma, que foge de qualquer visão cartesiana e, portanto,
ocidental de cisão. Em vez de justificar a não realização de um crime, a razão
descoberta por Raduan seria capaz de entregar ao criminoso seus favores. Emprestando
a sua roupagem feminista ao questionamento dessa razão seletiva, a jornalista da novela
Um copo de cólera serve de exemplo: assumindo racionalista, ela se manifesta
incoerente à geometria passional que, inevitavelmente, conecta-a ao chacareiro, que,
capaz de enxergar na razão uma putana, justifica a desordem do mundo pela incessante
tentativa ocidental de limitar a razão à lógica cartesiana. No ensaio que compõe os
Cadernos, Leyla Perrone-Moisés assinala, inclusive, o tema da desordem como uma das
passagens subterrâneas das obras de Nassar, mas que tem a sua manifestação mais
evidente em Um copo de cólera:
literatura, quando você lê um texto que não toca o coração, é que alguma coisa está indo
pras cucuias” (NASSAR, 1996, p. 28), ao falar da literatura de seu tempo. A busca do
escritor, portanto, será voltada para a recuperação de uma ingenuidade, de um tocar o
coração. Para isso, recorrerá a temas que fogem do recorte proposto pelos escritos da
década de 70. Uma vez distante dessas influências de tempo, Nassar é questionado a
respeito das suas preocupações como escritor, cuja resposta esclarece essa recusa:
o disfarce de temas amplos que fazem parte do Livrão de Raduan e convergem sua
preocupação à gema das palavras, evitando se esquivar do perigo de permitir que a
violência sobreponha-se à inocência literária.
2
A saber: JOZEF, Ruth Rissin. A palavra do desejo e o desejo da palavra (mestrado em Teoria Literária).
Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1988.
21
extensão, no gênero novela. A pequena narrativa divide-se em curtos capítulos, cuja voz
predominante é a do chacareiro, personagem inominado, que, em primeira pessoa do
singular, discorre a respeito do embate travado com a sua amante, uma jornalista
também inominada. Essa voz feminina, reproduzida na narrativa pela incorporação do
discurso dele, assume o último capítulo da narrativa, que carrega o mesmo nome que o
primeiro: “A chegada”. Ciclicamente, a visita à chácara do amante é narrada,
ressaltando um cenário muito parecido com o que é apresentado no primeiro capítulo,
com a voz masculina. Nessa mudança de vozes, o que se percebe é o outro olhar, capaz
de desconstruir as certezas apresentadas pelo chacareiro com relação à jornalista. O
poder que um exerce sobre o outro se torna, portanto, suscetível às manipulações do
discurso – e, no pano de fundo, o fascismo é recuperado como prática cotidiana, de
modo que “aí também, longe dos estereótipos da literatura engajada, o que se vê é a
insidiosa contaminação das relações individuais pelo discurso do poder, o discurso
fascista” (PERRONE-MOISÉS, 1996, p. 69). Por meio de sua literatura, Nassar
reafirma o caráter autônomo da arte, destacado por Antônio Candido, em Formação da
literatura brasileira:
(...) uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que
obteve para plasmar elementos não literários: impressões, paixões, ideias,
fatos, acontecimentos, que são a matéria-prima do ato criador. A sua
importância quase nunca é devida à circunstância de exprimir um aspecto da
realidade, social ou individual, mas à maneira por que o faz. (...) Esta
autonomia depende, antes de tudo, da eloquência de sentimento, penetração
analítica, força de observação, disposição de palavras, seleção e invenção das
imagens; do jogo de elementos expressivos, cuja síntese constitui a sua
fisionomia, deixando longe os pontos de partida não literários (1959, p. 27).
a teoria subjacente à obra de Raduan Nassar, buscando interpretá-la por meio dos
instrumentos literários. A teoria, aqui, não virará uma bolinha de papel e não será
isolada com um piparote, como sugere o próprio autor. Em vez disso, o que se pretende
é encontrar, a partir de todas as obras – o romance Lavoura arcaica, a novela Um copo
de cólera e todos os contos que compõem Menina a caminho e outros textos –, o seu
espaço na literatura brasileira, marcado pela cicatriz que, embora queira ter feito menos
visível, comporta-se como as dos filhos de Caim, de André, do chacareiro: levando-a na
testa, Nassar e sua cicatriz apenas nos convencem de que, sem pretensões de curá-la, é
necessário torná-la uma marca visivelmente literária.
O primeiro capítulo, que tem como título “À flor da pele e da página: estrutura à
luz da ruptura”, dedica-se ao estudo, a partir da forma de organização das narrativas
nassarianas bem como de seus percursos ficcionais, das formas de ruptura. Os
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local percorrido pela menina e sua lente cinematográfica, que empresta ao narrador uma
forma de ver o mundo, decupa-se3, em uma espécie de mosaico, o cotidiano de uma
pequena cidade, capaz de revelar, no conto “Menina a caminho”, o próprio caminho
como destino. Transitando por três dos principais gêneros da prosa literária, o escritor
brasileiro vai do romance ao conto, passando pelo que se consagrou de forma limítrofe
como novela, e, nesse percurso, prova não apenas sua versatilidade literária como
também sua preocupação com o desvio a quaisquer limitações – de gênero, de
personagens, de arquétipos.
3
Aqui, referimo-nos ao verbo não dicionarizado “decupar”, que se origina do termo francês découpage –
em português, “decupagem” –, técnica cinematográfica que corresponde ao ato de recortar dando forma à
matéria.
27
entendimento de que essa forma de organização nos releva outra perspectiva de mundo
– que, como se verá, porta-se como a recuperação de uma tradição tradutora de rupturas.
Uma totalidade simplesmente aceita não é mais dada às formas: eis por que
elas têm ou de estreitar e volatizar aquilo que configuram, a ponto de poder
sustentá-lo, ou são compelidas a demonstrar polemicamente a
impossibilidade de realizar seu objeto necessário e a nulidade intrínseca do
único objeto possível, introduzindo assim no mundo das formas a
fragmentariedade da estrutura do mundo (LUKÁCS, 2012, p. 36).
Toda a ética representada pela arte da Grécia Antiga cede espaço para a sua
segmentação, cabendo à forma, diante da impossibilidade de totalizá-la, representar
esteticamente os fragmentos encontrados no mundo degradado. O romance, nesse
contexto, não deverá se inclinar sobre a história coletiva de uma nação ou à vitória de
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um herói regido por deuses e representante de uma nação. Em vez disso, ele se
debruçará sobre os conflitos do homem moderno, cuja consciência do caos exige a
consciência da fragmentação. André, em Lavoura arcaica, protagoniza essa crise ao
desconstruir os dogmas da união familiar; o chacareiro, em Um copo de cólera, ao
submeter a razão à emoção; a menina, em “Menina a caminho”, ao subverter a infância
em experimentação sexual.
é mais que um acaso histórico que o Dom Quixote tenha sido concebido
como paródia aos romances de cavalaria, e sua relação com eles é mais do
que ensaística. O romance de cavalaria sucumbiu ao destino de toda épica
que quis manter e perpetuar uma forma puramente a partir do formal, depois
de as condições transcendentais de sua existência já estarem condenadas pela
dialética histórico-filosófica; ele perdeu suas raízes na existência
transcendental, e as formas, que nada mais tinham de imanente, tiveram de
estiolar, tornar-se abstratas, uma vez que sua força, destinada à criação de
objetos, teve de chocar-se com a própria falta de objeto; em lugar de uma
grande épica, surgiu uma literatura de entretenimento (2012, pp. 103-104).
a vida faz-se criação literária, (...) com isso o homem torna-se ao mesmo
tempo o escritor de sua própria vida e o observador dessa vida como uma
obra de arte criada. (...) O romantismo torna-se cético, decepcionado e cruel
em relação a si mesmo e ao mundo; o romance do sentimento de vida
romântico é o da criação literária desiludida (2012, p. 124).
Embora haja uma clara distinção quanto ao exílio e à sua subsequente fuga
vividos por Crusoé e Quixote, ambos se assemelham não somente como romances
fundadores, mas também como descendentes de uma herança que oscila entre a lucidez
e a perplexidade, de modo que “o romance não existe mais sem a fissura que deve
agora enfrentar; pelo menos não há mais história pretensamente verdadeira que não
escolha como tema os conflitos do herói consigo mesmo em seu aprendizado da vida”
(2007, pp. 99-100). Tanto nas caminhadas do cavaleiro errante quanto na ilha que se
quer independente, Quixote e Crusoé vivenciam o cerne do problema moderno: “(...) no
Novo Mundo, ser homem significa ser solitário” (LUKÁCS, 2012, p. 34).
Solitários em sua relação com o novo mundo e a nova realidade embutida nele,
os personagens buscam soluções distintas: o cavaleiro de Cervantes passa a habitar a
loucura como forma de existência, sendo a transcendência a única forma de lidar com o
mundo sem sentido; o naufragado de Defoe, em contrapartida, busca olhar a realidade
da ilha deserta como uma das formas de ascensão, sendo o sonho individual uma das
maneiras de dar um novo sentido ao mundo. O quarto inviolável e a chácara isolada, no
romance e na novela de Nassar, nada mais são do que uma solução, ainda que ilusória,
encontrada pelos narradores-personagens para lidar com seus conflitos. Espaços da
solidão, é ali que se espera vencer as forças internas.
ele, de uma interação viva e tensa.”4 (BAKTHIN, 1988, p. 88) Vivacidade e tensão,
portanto, assinalam bem o espírito primeiro do romance: com sua força e limites
amplos, seu caráter democrático permite sua constante transformação.
4
A respeito das concepções de enunciado e enunciação sob a ótica bakhtiniana, ver Capítulo 3.
34
meio da sua forma, a fragmentariedade do sujeito moderno. Nos contos que compõem
Menina a caminho e outros textos, essa manutenção se torna evidente: com extensões
variadas, todos se voltam à apresentação de uma perspectiva de mundo consciente do
caos, tais como Lavoura arcaica e Um copo de cólera – este último, inclusive, é
classificado como novela, que, como veremos, radicaliza a duvidosa distinção entre
romance e conto.
Um dos valores assinalados por Gotlib diz respeito à voz narrativa: “estes
embriões do que pode ser uma arte só se consolidam mesmo numa obra estética quando
a voz do contador ou registrador se transforma na voz de um narrador” (2006, p. 13,
grifos no original). A voz narrativa, nesse contexto, é vista como uma manifestação
estética e um dos responsáveis por transformar uma “forma simples” em uma “forma
artística”, segundo nomenclatura recuperada do estudo Morfologia do conto
35
Continuando seu percurso por teóricos do conto, tais como Propp, o segundo
valor é identificado: a economia dos meios narrativos, que corresponde ao paradoxo de
se “conseguir, com o mínimo de meios, o máximo de efeitos” (2006, p. 35). Há, nesse
sentido, a supressão de tudo aquilo julgado como excedente para conquistar o interesse
do leitor. Esse interesse, também nomeado como efeito, deverá ser o questionamento
inicial do contista ao desenvolver o conto: o efeito que se quer gerar será a chave-mestra
da escrita. Em virtude das dimensões reduzidas, o foco do desenvolvimento do conto é
projetado em sua conclusão, no seu desfecho, em que repousa o clímax, o forte acento
final. Para isso, o que Tchekhov chama de compactação é essencial – e vai além de
tantas outras características apontadas por ele como essenciais, tais como clareza,
novidade e força, presentes também em outros gêneros textuais.
Quando se refere a esse valor, Gotlib busca sua fonte não só em Tchekhov como
também em Cortázar, cujos estudos, que compõem a reunião de ensaios Valise de
36
Cronópio, trazem uma visão esclarecedora quanto ao gênero, compreendido ora pelo
Cortázar contista ora pelo Cortázar crítico. Nos dois ensaios que nos interessam,
“Alguns aspectos do conto” e “Do conto breve e seus arredores”, o crítico argentino
destaca o fato de o conto ser um gênero pouco explorado pela teoria, que se debruça
sobre o romance. O caráter limítrofe do conto é, então, novamente assinalado, acabando
por cair em uma (quase) indefinição: “esse gênero de tão difícil definição, tão esquivo
nos seus múltiplos e antagônicos aspectos, e, em última análise, tão secreto e voltado
para si mesmo, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do
tempo literário” (CORTÁZAR, 2006, p. 149).
Gênero literário recente na percepção da maior parte dos teóricos, o conto habita
ainda um espaço que oscila entre o romance e a novela – além da poesia, cuja relação se
faz fraternal –, sendo a sua extensão um dos poucos e exatos critérios para definição, de
modo que, em comparação a estes gêneros, aquele se distancia pela sua capacidade de
síntese, “uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada” (2006, p. 150).
Em sua forma fechada, que o crítico argentino chamará de “esfericidade” (2006, p.
230), o conto age do interior para o exterior. É nesse sentido que a compactação,
associada à curta extensão, firma-se como valor de distinção entre os gêneros.
“porque em literatura não há temas bons nem temas ruins, há somente um tratamento
bom ou ruim do tema (...) Um conto é ruim quando é escrito sem essa tensão que se
deve manifestar desde as primeiras palavras ou desde as primeiras cenas” (2006, p.
152). Soma-se ao limite físico do conto, dessa forma, o tratamento com o tempo e o
espaço, que o ensaísta chamará de tensão e intensidade, em uma corrida contra o relógio
– “o sempre assombroso dos contos contra o relógio está no fato de potenciarem
vertiginosamente um mínimo de elementos” (2006, p. 229).
O tema, ainda segundo Cortázar, não precisa alcançar grandes dimensões para
que tenha uma boa recepção do público, visto que a sua variação confere uma
impossibilidade de correspondência entre as hierarquias de gosto pessoal e de gosto
coletivo. Um tema que provoca humor e causa riso ao escritor pode não ser assim
recebido pelo seu público ou pode, inclusive, ser assim recebido por apenas parte desse
mesmo público. O que confere, para ele, valor ao conto está na tensão e na intensidade
do trabalho empreendido com o tema. Nas palavras do ensaísta, “o que chamo
intensidade num conto consiste na eliminação de todas as ideias ou situações
intermédias, de todos os recheios ou fases de transição que o romance permite, e mesmo
exige” (2006, p. 153), enquanto tensão é por ele definido como “uma intensidade que se
exerce na maneira pela qual o autor nos vai aproximando lentamente do que conta.
Ainda estamos muito longe de saber o que vai ocorrer no conto, e, entretanto, não nos
podemos subtrair à sua atmosfera” (2006, p. 154). Os pilares que edificam a estrutura do
conto fazem-se, portanto, mais claros: por meio da intensidade, vê-se a capacidade
seletiva, e por meio da tensão, percebe-se a organização do conteúdo pelo escritor.
Para tratar com mais clareza de tais critérios, Julio Cortázar, no ensaio “Do
conto breve e seus arredores”, dedica-se à compreensão do conto de breve extensão e
analisa outra aproximação do conto quanto à sua indefinição enquanto forma: “irmão
misterioso da poesia”, o seu mistério está no fato de que “certa gama de contos nasce de
um estado de transe” (2006, p. 231). Ainda que trate apenas dos contos breves quando
tece essa caracterização, deve-se notar que Cortázar concebe tanto para o contista como
para o poeta um estado de transe, cuja motivação não possui origem determinada. Mais
adiante, ele acrescenta:
O caráter limítrofe do conto, assinalado tanto por Gotlib quanto por Cortázar,
ratifica a definição movediça: dependendo da extensão, único critério próximo à
objetividade e empiria, o conto pode se aproximar mais da prosa ou da poesia. Essa
indefinição é confirmada, também, tematicamente: Poe se rende aos contos de
acontecimentos extraordinários, nos quais o horror aparece como um dos temas
protagonistas; Maupassant se debruça sobre os contos de acontecimentos noticiados,
que têm a realidade como fonte temática; Tchekhov volta-se aos contos em que nada
parece acontecer, “abandonando a construção tradicional, que previa uma ação, com
desenvolvimento, clímax e desenlace” (GOTLIB, 2006, p. 47).
Os personagens centrais dessa implosão são André e Iohána, seu pai, que, tal
qual sinônimo, desdobra-se na figura e nos ensinamentos de Pedro, o filho mais velho.
Junto com a transgressão daqueles que partem, o evangelho da família ocupa um papel
central na narrativa, cultivado por aqueles que insistem no retorno. André, no entanto,
não se opõe ao pai apenas na trajetória da partida solitária e na narrativa em primeira
44
pessoa: na mesa, ao seu lado, encontram-se a mãe, inominada, Ana e Lula, o irmão mais
novo; do outro lado, enfileiram-se, em extensão ao braço direito do pai, Pedro, Rosa,
Huda e Zuleika. O incesto entre André e Ana, representante máximo dessa implosão,
serve à partida do narrador-personagem como motivador, uma fome insaciável e
incabível ao faminto que se tornara.
Pouco tempo antes – o narrador não nos deixa ter conhecimento a respeito desse
período –, André havia saído de casa, em uma fazenda, onde dividia o teto com seus
cinco irmãos, Pedro, Huda, Zuleika, Rosa, Ana e Lula, o pai, Iohána, e a mãe, único
membro da família não nomeado. Em primeira pessoa do singular, o narrador-
personagem, André, deixa evidente que a sua fuga se relaciona com a dificuldade de
reconstituição de sua identidade, formada por “cacos” desfeitos de um velho “jarro”,
diante das imposições e dos preceitos do pai, que, exercitando diariamente o evangelho
da família durante as refeições, transforma a mesa de união familiar em mesa de
sermões. Insurgindo-se contra isso, o narrador não vê outra possibilidade de continuar
fazendo parte, visto que não identifica o seu lugar à mesa. E é exatamente utilizando-se
do principal sermão de Iohána – a fábula do faminto – que o filho “arredio”,
“tresmalhado” entende o seu não pertencimento: sendo ele um faminto, o pão servido à
mesa seria incapaz de saciar sua fome, tão somente estenderia a sua existência e, por
conseguinte, a sua insaciabilidade.
45
cinzeiro no cesto, dei uma alisada no lençol da cama, dobrei a toalha na cabeceira”
(2004, p. 16), sem logo se dar conta, entretanto, de que “eu estava era escuro por dentro,
não conseguia sair da carne de meus sentimentos” (2004, p. 16). E, estando escuro por
dentro, as suas venezianas se encontram fechadas; o seu quarto é habitado por um poço
de penumbra; os seus olhos baixos, dois bagaços, opõem-se à clareza dos olhos do
irmão, que, cheios de luz, incitam o dito, mas calam o não-dito:
(...) e foi uma onda curta e quieta que me ameaçou de perto, me levando
impulso quase a incitá-lo num grito “não se constranja, meu irmão, encontre
logo a voz solene que você procura, uma voz potente de reprimenda,
pergunte sem demora o que acontece comigo desde sempre, componha
gestos, me desconforme depressa a cara, me quebre contra os olhos a velha
louça lá de casa”, mas me contive (grifos nossos, 2004, p. 17).
dado histórico e social para Paz, a contradição é assumida como jogo dialético que
edifica a sua argumentação. Sua concepção de tempo, nesse percurso, contará com os
mesmo pares, a princípio, antagônicos de Nassar: tradição e ruptura.
Com alguns pares aparentemente contraditórios, Octavio Paz preza por provar
sua complementaridade: tradição e ruptura, que norteiam o conceito de modernidade
empreendido por ele, encontram-se e formulam, a partir desse encontro, um novo
conceito. Logo que se inicia o estudo Os filhos do barro, o ensaísta afirma que “existe
uma poesia moderna, mas também que o moderno é uma tradição” (PAZ, 2013, p. 15,
grifo no original), ao anunciar a tradição moderna da poesia como tema central do livro.
Mais adiante, caracteriza “uma tradição feita de interrupções e na qual cada ruptura é
um começo” (2013, p. 15). A tradição, nesse sentido, deixa de ser o eco de um passado
que se mantém vivo por meio da repetição e reprodução e passa a ser, em virtude das
diversas interrupções, um eterno e novo começo. A negação se torna, assim, um dos
seus princípios básicos, de modo que “a tradição da ruptura não implica só a negação da
tradição, mas também a negação da ruptura” (2013, p. 15).
Ainda que se faça uma distinção entre o novo e o velho a partir da noção de
ruptura, mesmo o velho pode ter acesso à modernidade, visto que pode se apresentar
como negação à tradição imperante e propor outra diferente. Nesse viés, a pluralidade,
acima apontada como uma das condenações da modernidade, manifesta-se a todo
momento sem que o retorno ao “velho” seja um retorno ao simples passado. Quando,
em 1975, o Brasil vivenciava uma literatura dedicada ao engajamento político em um
país cujos ecos da Ditadura Militar e suas censuras se faziam tão presentes, produzir
uma literatura usando como matéria as vísceras humanas, como fez Raduan Nassar,
50
pode esclarecer o que Octavio Paz entende como o “velho” que se faz moderno. Em
outras palavras, Raduan Nassar retorna, ao publicar Lavoura arcaica, ao texto que se
preocupa com os “vínculos profundos com a vida” (JABOR, Folha de São Paulo, p. 5),
preocupações que pululam na obra de Clarice Lispector na década de 1950. Com seu
texto-iceberg, como caracteriza Sedlmayer, Nassar entende que “fiz os meus dois
textinhos [Lavoura arcaica e Um copo de cólera] sem levar em conta a zoeira aí fora,
fiz lirismo quando o lirismo estava fora de moda” (JABOR. Folha de São Paulo, p. 5).
Inserindo o “velho” como manifestação momentânea, Raduan Nassar rompe com uma
tradição e, ao fazer isso, insere-se na tradição e literatura moderna.
(...) nossa literatura é uma crítica não menos apaixonada e total a si mesma.
Crítica do objeto da literatura: a sociedade burguesa e seus valores; crítica da
literatura como objeto: a linguagem e seus significados. Em ambos os casos,
a literatura moderna se nega e, ao negar-se, afirma-se e confirma a sua
modernidade (2013, p. 42).
52
Na leitura do mexicano, a poesia possui, desde a sua compreensão como mito até
a visão contemporânea, uma relação com o tempo: a partir do momento em que a poesia
é uma produção humana e o homem é fruto de seu tempo, a poesia se torna, também,
uma manifestação temporal. A civilização ocidental, ao estabelecer uma relação
aferrada com o tempo, em virtude de suas mudanças e da História, compreende-o como
linear, sucessivo e irrepetível. Não sendo o tempo cíclico, o futuro se torna um abrigo
humano: é sempre nele que serão projetadas as perfeições a que nunca se chega, de
modo que “nosso futuro é simultaneamente a projeção do tempo sucessivo e sua
negação” (2013, p. 51). Somente em um cenário como este a ideia de revolução se torna
viável. A destruição do antigo para a construção do novo funciona como uma das
formas de se lidar com o tempo, fixo e inalcançável, na Idade Moderna.
53
O embate traz, então, uma nova acepção para “esporro”: a relação estabelecida entre os
dois, um conflito de poder e domínio, já espera o gozo do embate. Esse poder de
manipulação, que nasce na discussão e na narrativa dessa discussão, é descontruído
quando a jornalista assume a voz narrativa e evidencia sua consciência e resposta
combativa quanto ao ato manipulativo.
por mais veterano, por mais hábil que seja um contista, se lhe faltar uma
motivação entranhável, se os seus contos não nasceram de uma profunda
vivência, sua obra não irá além do mero exercício estético. Mas o contrário
será ainda pior, porque de nada valem o fervor, a vontade de comunicar a
mensagem, se se carecer dos instrumentos expressivos, estilísticos, que
tornam possível essa comunicação. (...) escrever para uma revolução, (...)
escrever revolucionariamente, não significa, como creem muitos, escrever
obrigatoriamente acerca da própria revolução. (...) creio que o escritor
revolucionário é aquele em que se fundem indissoluvelmente a consciência
do seu livre compromisso individual e coletivo, e essa outra soberana
liberdade cultural que confere o pleno domínio do ofício (2006, p. 160).
Como já se sabe, em sua curta obra, o escritor brasileiro desdobra-se, de acordo com a
teoria crítica, em romancista, novelista e contista. Embora opte por ignorar tais títulos, a
sua oscilação evidencia ora a desimportância que atribui às distinções de gênero, ora a
sua versatilidade ao migrar entre os seus limites. Na sua antologia de contos, Menina a
caminho e outros textos, constam apenas cinco contos, sendo o que intitula o livro o
único considerado não breve. Todos os demais pertencem ao grupo de contos
intempestivos e nascidos de um estado de transe, segundo a leitura do contista
argentino. De forma distinta, porém, toda a sua antologia de contos conta com pequenas
rupturas estruturais, o que nos leva à percepção de um “escritor revolucionário”.
a mãe às vistas de seus filhos. Em vez de se dedicar à narração desse evento, o narrador
aproxima a sua câmera – e, por extensão, a nossa – do caminho percorrido pela menina.
Quarto conto da compilação, “Aí pelas três da tarde” foi concebido em 1972, um
pouco antes de Raduan Nassar se tornar conhecido pela sua literatura. Veiculado
inicialmente como uma matéria no Jornal do Bairro, que tinha como diretor o seu autor,
o conto será futuramente republicado em outros veículos de comunicação. Mais curto
dos cinco contos divulgados pelo escritor paulista, sua narrativa se restringe a pouco
58
largue tudo de repente sob os olhares à sua volta, componha uma cara de
louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas
mais severos, dê um largo ‘ciao’ ao trabalho do dia, assim como quem se
despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora
tão insólita, os que estiverem em casa ocupados na limpeza dos armários, que
você não sabia antes como era conduzida (2010, p. 72).
texto, que de ficcional tem um grande questionamento. Tal como uma despedida e uma
justificativa, o conto em questão encerra o livro pontuando uma crítica ríspida ao
universo intelectual, do qual o seu narrador busca se esquivar, silenciando-se na
superfície (e no subsolo) do texto.
Revolucionário, portanto, Raduan Nassar faz, para a literatura de seu tempo, uma
dupla ruptura: a primeira delas se encontra no lirismo fora de moda e a segunda, na sua
60
ausência literária. Em uma ponta do iceberg, Lavoura arcaica, com sua prosa lírica que
nos faz desconfiar ainda mais dos limites entre gêneros, insere Nassar no rol de
escritores brasileiros e, em outra ponta, “Mãozinhas de seda”, com a sua ambiguidade
(a)crítica, retira-o desse ambiente, do qual, usando pela última vez a sua mãozinha de
seda, despede-se. Esse curto percurso, no entanto, não se faz invisível à literatura
brasileira; em vez disso, marca claramente o seu lugar: como uma cicatriz, Raduan
Nassar aparece cada vez menos, ainda que incomode cada vez mais. Os ecos de suas
rupturas, que vão da variedade formal à desconstrução dos arquétipos de personagens e
juízos, ensurdecem nossos ouvidos com “certas histórias que não se perderam”,
firmando-se como uma tradição a ser compreendida, para além do silenciamento do
autor.
61
No presente capítulo, voltaremos nosso estudo aos livros que compõem a obra
de Raduan Nassar, estabelecendo, entre eles, diálogos. Para isso, levaremos em
consideração os arquétipos construídos e desconstruídos por meio das narrativas,
buscando observar como uma ordem é rompida e, em seu lugar, surge uma nova, sem,
no entanto, negar a primeira. Embora, na organização do capítulo, o romance Lavoura
arcaica e o extenso conto “Menina a caminho” sejam analisados separadamente,
faremos, em seu estudo, diálogos breves com os demais. Em um mesmo bloco,
abordaremos a novela Um copo de cólera e os contos “Hoje de madrugada” e “O ventre
seco”, sob o viés da (in)fertilidade. Mais a seguir, os contos “Aí pelas três da parte” e
“Mãozinhas de seda” também serão trabalhados de forma comparativa, com o objetivo
de analisar o desabrigo literário, temática que se revela cara a Nassar.
Para isso, escolhemos como elemento norteador a voz narrativa. Como já se viu,
as distinções entre os gêneros pelos quais transita Nassar são pouco claras e possuem
grande dissonância, a depender do crítico. Diante desse conflito, resolvemos entender os
gêneros a partir de seu princípio narrativo, levando em consideração sobretudo a sua
organização, reconhecendo em todas as obras uma transgressão quanto às opções
tradicionais, uma vez que “(...) o narrar é o próprio real se manifestando como
Linguagem” (CASTRO, 2002, p. 71). O herói problemático, demoníaco e moderno do
qual trata Lukács se manifesta na obra nassariana de forma nuclear e propõe, em seu
percurso, diversas rupturas. Já que a voz narrativa se mantém a mesma em todas as
narrativas, com duvidosa exceção apenas em “Menina a caminho”, o narrador em
primeira pessoa encaminhará a nossa análise, orientando-nos a entender mais
especificamente a nova ordem estabelecida a partir da instauração e consciência da
desordem.
o narrador parece fundar um espaço interior que lhe poupa o passo em falso
no mundo estranho, um passo que se manifestaria na falsidade do tom de
quem age como se a estranheza do mundo lhe fosse familiar.
Imperceptivelmente, o mundo é puxado para esse espaço interior – atribui-se
à técnica o nome de monologue intérieur – e qualquer coisa que se desenrole
no exterior é apresentada da mesma maneira como (...) um pedaço do mundo
interior, um momento do fluxo de consciência, protegido da refutação pela
ordem espaciotemporal objetiva (2012, p. 59).
Ainda que essa mudança seja concebida como uma morte gradativa do ato de
narrador, nela fica evidente apenas uma mudança quanto à matéria narrada e à forma de
narrar. Essa expectativa, empreendida no período entreguerras, assume em sua
concepção o pessimismo que girava em torno dos frutos da guerra e da consequente
mistura entre narração e ficção. Ítalo Calvino, ao tratar da literatura pós-guerra no texto
“Usos políticos certos e errados da literatura”, que pertence ao livro Assunto encerrado
– discursos sobre literatura e sociedade, propõe outra perspectiva, aproximando-se
mais da visão que se assume nesta dissertação:
Assim como, para nós, Nassar instaura uma nova ordem a partir da desordem, a
obra literária se estrutura novamente a partir de uma desestruturação. Nessa nova forma,
novos também serão o comportamento do narrador e as opções por ele feitas.
Assumindo-se como parte do texto, o arquiteto da linguagem passa a deixar claro o jogo
que engendra e a consciência do ato narrativo. Sendo assim, “a narrativa, (...) uma
forma artesanal de comunicação, (...) não está interessada em transmitir o ‘puro em si’
da coisa narrada, (...) imprime-se na narrativa a marca do narrador” (BENJAMIN, 2012,
p. 221), inevitável. Essa marca não se restringe, como voltará a assinalar Benjamin, à
voz narrativa,
5
A respeito do não-dito em Raduan Nassar, ver a sessão 2 do Capítulo 3.
64
Reconhecendo, porém, que “não faz sentido, eu pensei, largar nestas pobres
mãos cobertas de farinha a haste de um cravo exasperado” (2004, p. 67), André
restringe-se ao não-dito à mãe, mas, naquele momento, dito a seu irmão. Justificando a
sua partida, André vê na doçura e no acolhimento da mãe o princípio de sua fuga: a
sensação de pertencimento à família se limitava ao contato com a figura materna, que,
contudo, era entendida como uma anomalia, a extensão canhota, o galho quebrado da
fonte paterna. As mesmas mãos de onde vinham o pão, responsável pelo alimento, e o
afeto, alimento da transgressão, não poderiam segurar o peso de sua fuga, a haste de um
cravo exasperado: “tudo o que pude ouvir, sem que ela dissesse nada, foram as trincas
na louça antiga do seu ventre, ouvi dos seus olhos um dilacerado grito de mãe no parto”
(2004, p. 68). Esse parto, diferentemente daquele que o havia trazido ao mundo, lhe
65
mostraria um mundo além das divisas da fazenda, mas deixaria nelas o ventre trincado,
infértil para aninhar um filho em sua palha.
Aquilo que “não era impossível eu dizer” acaba por não ser dito à mãe, mas é
dito ao irmão: “eu e a senhora começamos a demolir a casa” (2004, p. 68). E se, naquele
momento, a casa não estava mais de pé, a culpa não se encontrava apenas na fuga de
André; mais do que isso, a culpa estava no cerne dele, no ventre materno acolhedor –
“se o pai, no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no
seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição” (2004, p. 136, grifos nossos).
Com os olhos sempre escuros e noturnos, o silêncio do narrador-personagem só foi
rompido com a sua partida; sua inexistência só pode ser notada quando, de fato, ela se
instalava na casa.
Ainda que reconhecesse “desde a mais tenra puberdade quanta decepção me
esperava fora dos limites da nossa casa” (2004, p. 69), como pregava seu pai, e não
buscasse estradas e festas para seus sentidos, era longe da fazenda que a sua comunhão
acontecia: em fugas cotidianas, eram as prostitutas que traziam alento aos desejos
sombrios de André – “era lá que eu, escapulindo da fazenda nas noites mais quentes, e
banhado em fé insolente, comungava quase estremunhado” (2004, p. 71). Delas, o
narrador-personagem guarda a mais lúdica coleção de seu escuro poço: uma caixa com
pequenas lembranças de suas noites vadias longe dos olhares atentos do pai; a mesma
caixa que, em sua convulsão e fúria insurgidas contra a herança trazida pelo irmão,
deseja enviar à família, por meio de Pedro: “carregue essas miudezas todas pra casa e
conte entre os olhares de assombro como foi se erguendo a história do filho e a história
do irmão” (2004, p.74), incluindo, entre os presentes, um riso de escárnio.
Em resposta, Pedro buscava ensaiar a sucessão da mão do pai, segura de seus
movimentos, mas o que emitiu foram os olhos dilacerados, semelhantes ao grito da mãe.
O primogênito, nesse momento, tomava consciência da loucura de seu irmão, a lúcida
escuridão habitada por André e originada pela mesma mãe. Na mesma escuridão
habitada por André, cabia a lucidez; na mesma desunião instaurada na família, cabia a
união; na mesma mesa em que o pai anunciava o aprendizado da justiça, todos
praticavam um ritual de austeridade somado ao de prodigalidade, três vezes ao dia.
O aprendizado da justiça se fazia presente ao lado da austeridade e da
prodigalidade, e como maior evidência dessa conciliação estava a fábula do faminto. Na
voz integral do pai, o capítulo 13, retomando as palavras que finalizam o 9, conta a
história de um faminto que, na mesa com o poderoso ancião, precisou provar sua
66
paciência, encenando nutrir-se dos alimentos que, invisivelmente dispostos à sua frente,
deveriam saciar sua fome. O faminto, pensando que “os pobres deviam mostrar muita
paciência diante dos caprichos dos poderosos” (2004, pp. 81-82), venceu o desafio e, na
mesa imaginária, cessou imaginariamente a sua fome. O ancião, depois de fazer o
faminto experimentar a invisível variação de vinhos, anuncia:
Finalmente, à força de procurar muito pelo mundo todo, acabei por encontrar
um homem que tem espírito forte, o caráter firme, e que, sobretudo, revelou
possuir a maior das virtudes de que um homem é capaz: a paciência. Por tuas
qualidades raras, passas doravante a morar nesta casa tão grande e tão
despojada de habitantes, e está certo de que alimento não te há de faltar à
mesa. (2004, pp. 85-86, grifo nosso)
Assim como o ancião, Iohána também prega que a paciência deve ser a maior
das virtudes humanas, em oposição ao filho “torto”, que entende que a impaciência
também tem direitos. Ao fim da narração da fábula do faminto, André abre parênteses e,
dirigindo-se a Pedro, questiona: “como podia o homem que tem o pão na mesa, o sal
para salgar, a carne e o vinho contar a história de um faminto?” (2004, p. 86).
Acrescenta, ainda, que havia, nessa narração, uma omissão:
o faminto – com a força surpreendente e descomunal da sua fome, desfechara
um murro violento contra o ancião de barbas brancas e formosas, explicando-
se diante de sua indignação: “Senhor meu e louro da minha fronte, bem sabes
que sou teu escravo, o teu escravo submisso, o homem que recebeste à tua
mesa e a quem banqueteaste com iguarias dignas do maior rei, e a quem por
fim mataste a sede com numerosos vinhos velhos. Que queres, senhor, o
espírito do vinho subiu-me à cabeça e não posso responder pelo que fiz
quando ergui a mão contra meu benfeitor”. (2004, pp. 86-87)
naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinos graves marcando as horas” (2004,
p. 49 e p. 53), a família ouve o sermão do pai:
O tempo é o maior tesouro que um homem pode dispor; embora
inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o
conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo,
não tem fim; é o pomo exótico que não pode ser repartido, podendo
entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em
tudo (2004, pp. 53-54).
Na mesa dos ensinamentos, Iohána, com o seu peito de madeira, a cabeça grave,
o pescoço sólido e a mão de dorso largo, ensina o valor do tempo aos familiares,
deixando clara a sua propriedade antagônica: sendo o maior alimento, não é possível
consumi-lo. Em respeito ao tempo, continua:
por isso, ninguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais largo que a
perna: dar o passo mais largo que a perna é o mesmo que suprimir o tempo
necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa casa há de colocar nunca o
carro à frente dos bois: colocar o carro à frente dos bois é o mesmo que
retirar a quantidade de tempo que um empreendimento exige; e ninguém
ainda em nossa casa há de começar ainda as coisas pelo teto: começar as
coisas pelo teto é o mesmo que eliminar o tempo que se levaria para erguer
os alicerces e as paredes de uma casa (2004, p. 55, grifos nossos).
poderia receber novas acepções, não apenas se restringir aos limites de significados
cerceados nos sermões.
No desfecho do romance, o conceito do tempo é retomado pelo narrador, que
destaca as suas artimanhas:
O tempo, o tempo, o tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não
cansa de correr, lento e sinuoso, ele próprio conhecendo seus caminhos,
recolhendo e filtrando de vária direção o caldo turvo dos afluentes e o sangue
ruivo de outros canais para com eles construir a razão mística da história, (...)
não cabendo contudo competir com ele o leito em que há de fluir, cabendo
menos ainda a cada um correr contra a corrente, (...) o tempo, o tempo, o
tempo e suas mudanças, sempre cioso da obra maior, e, atento ao
acabamento, sempre zeloso do concerto menor, presente em cada sítio, em
cada palmo, em cada grão, e presente também, com seus instantes, em cada
letra desta minha história passional, transformando a noite escura do meu
retorno numa manhã cheia de luz (2004, p. 185).
que “Never did anybody look so sad”6 na trivial cena de medição da meia. Tal
afirmação, que se comporta também como uma incerteza, distancia-se, no entanto, da
objetividade associada ao narrador e busca na subjetividade o seu espaço de existência.
“O escritor, como narrador de fatos objetivos, desaparece quase que completamente;
quase tudo o que é dito aparece como reflexo na consciência das personagens do
romance” (AUERBACH, 2004, p. 481). De acordo com o crítico alemão, a figura de
Virgínia Woolf se ausenta e a de Mrs. Ramsay ganha lugar na apresentação e
conhecimento objetivo de personagens, como a criada suíça, ou do espaço habitado,
como a casa da família Ramsay. A escritora, ao assumir a voz de narrador em terceira
pessoa, acaba por assumir também uma outra voz.
6
Em tradução livre para a Língua Portuguesa: “Nunca alguém pareceu tão triste”.
70
Por meio da opção narrativa empreendida por Nassar 7, ganham espaço os vários
sujeitos, amiúde cambiantes, destacados por Auerbach como característicos de uma
narrativa não-tradicional. O romance, cuja modernidade se faz pré-requisito para seu
surgimento, uma vez que nasce de diversas rupturas de gêneros8, bifurca-se, para o
7
Vale relembrar que, em entrevista aos Cadernos de literatura brasileira do Instituto Moreira Sales,
Nassar salienta que Lavoura arcaica vem da implosão de uma narrativa objetiva e, portanto, próxima às
opções tradicionais, tais como o narrador em terceira pessoa. No seu processo de escrita, a terceira pessoa
cede lugar à voz de André, que, dominando o impulso inicial do escritor, ressuscita como narrador-
personagem e implica a reconstrução do romance.
8
Optamos por entender “moderno” à luz da concepção de Octavio Paz. Como já mencionado no Capítulo
1, o ensaísta mexicano concebe o termo como adjetivo que insere na literatura e na sociedade a ruptura
constante à tradição, transformada, por fim, em uma espécie de tradição. Já que o romance surgiu, como
destacado por Lukács e Robert, com a morte e os empréstimos de tantos outros gêneros, entendemos que
71
Ana, sua irmã mais nova, também instalada no tronco esquerdo da família, era a
única capaz de frequentar aquela mesma igreja, pois, “como eu, mais que qualquer
outro, trazia a peste no pescoço” (2004, p. 30), “minha irmã que tinha as plantas dos pés
em fogo imprimindo marcas que queimavam dentro de mim...” (2004, p. 33). Aos 17
anos, ainda na adolescência, André “pela primeira vez senti o fluxo da vida” (2004, p.
89), ao fundar a sua própria igreja, único lugar em que poderia frequentar associando o
querer e o poder.
tenho dezessete anos e minha saúde é perfeita e sobre esta pedra fundarei
minha igreja particular, a igreja para o meu uso, a igreja que frequentarei de
pés descalços e corpo desnudo, despido como vim ao mundo, e muita coisa
estava acontecendo comigo pois me senti num momento profeta da minha
própria história, não aquele que alça os olhos para o alto, antes o profeta que
toma o olhar com segurança sobre os frutos da terra, e eu pensei e disse sobre
esta pedra me acontece de repente querer e eu posso! (2004, pp. 89-90, grifo
nosso)
espera de Ana envolve um outro tempo, que se encontra na transição entre ser ágil e
aguardar, sem, no entanto, encontrar contundência na sua prática.
Ana, tal como a pomba da infância – “o corpo de campônia, os pés descalços, a
roupa em desleixo cheia de graça, branco branco o rosto branco e eu me lembrei das
pombas, das pombas da minha infância” (2004, p. 97) –, aguarda à janela, buscando, em
seu próprio tempo, admitir seus passos ao encontro do irmão. Com a consciência de sua
escravidão ao tempo de aguardar, André vive “o tempo de surgirem novas penas e
novas asas” (2004, p. 98), o tempo de renovação, reconstrução, comandado não pela
paciência, como tanto insistia o pai, mas pela impaciência, que alimenta uma outra
fome. Embora a ciência de menino tenha ensinado a André que existia um tempo para
aguardar, ele vacila:
existia o tempo de aguardar, mas eu já tropeçava, voltando impaciente da
janela, chutei com violência a palha que eu, no bico, dia-a-dia, tinha
amontoado no meio do quarto, e foi uma ventania de cisco na cabeça, por um
instante me perdi naquele redemoinho, contemplando confuso a agitação do
meu próprio ninho: era a vida dentro do quarto! voltei a espreitar pela fresta,
e ela já não estava debaixo do telheiro e eu já não estava dentro de mim, tinha
voado pra porta de entrada: o tempo, o tempo, esse algoz às vezes mais
terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda
hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo (2004,
p. 99).
A ciência de menino havia dado certo: “ela, em algum lugar da casa, imóvel, de
asas arriadas, se encontraria esmagada sob o peso de um destino forte” (2004, p. 103,
grifo nosso). Nesse momento, André retoma as palavras de seu avô, já mencionadas
anteriormente – no capítulo 15, o narrador, em memória de seu avô, relembra que ele
“respondia sempre com um arroto tosco que valia por todas as ciências, por todas as
igrejas e por todos os sermões do pai: ‘Maktub’” (2004, p. 91), traduzindo o vocábulo
em nota de pé de página como “está escrito” –, reconhecendo que, ultrapassando as
ciências, as igrejas, os sermões do pai, “estava escrito: ela estava lá, deitada na palha, os
braços largados ao longo do corpo, podendo alcançar o céu pela janela, mas seus olhos
estavam fechados como os olhos fechados de um morto” (2004, p. 103). Uma vez tendo
aberto mão do tempo de espera,
me joguei por inteiro numa só flecha, tinha veneno na ponta desta haste, e
embalando nos braços a decisão de não mais adiar a vida, agarrei-lhe a mão
num ímpeto ousado, mas a mão que eu amassava dentro da minha estava em
repouso, não tinha verbo naquela palma, nenhuma inquietação, não tinha
alma aquela asa, era um pássaro morto que eu apertava na mão (2004, pp.
103-104).
Diante de uma resposta que envolve uma ausência, André sente se bifurcar de
sua fé, com que havia seguido de mãos dadas até então. Com mais uma ruptura, André e
sua fé deixam de ser apenas um, de modo que a evocação de um milagre, um pedido
destinado a Deus – e a Ana, consequentemente – toma conta do verbo do narrador. Em
troca de uma manifestação vívida de sua irmã, sua paixão, seu delírio, promete como
recompensa o sacrifício de um animal, para que festejem o seu retorno à família, cuja
única forma de reinserção se daria por meio do amor por e de Ana.
um milagre, um milagre, eu ainda suplicava em fogo quando senti assim de
repente que a mão anêmica que eu apertava era de súbito coração de pássaro,
pequeno e morno, um verbo vermelho e insano já se agitando na minha
palma! cheio de tremuras, cegado de muros tão caiados, esmaguei a água dos
meus olhos e disse sempre em febre Deus existe e em Teu nome imolarei um
animal para nos provermos de carne assada, e decantaremos numerosos
vinhos capitosos, e nos embriagaremos depois como dois meninos, e
subiremos escarpas de pés descalços (que tropel de anjos, que acordes de
cítaras, já ouço cascos repicando sinos!) e, de mãos dadas, iremos incendiar o
mundo (2004, pp. 107-108, grifos nossos).
“Nesse repouso de terras e tantas águas” (2004, p. 115, grifos nossos), nesse
repouso de consumo do sexo, na palha, na terra, e com a germinação do gozo, em tantas
águas, André, “que não sabia que o amor requer vigília”, aprende que “não há paz que
não tenha fim, supremo bem, um termo, nem taça que não tenha um fundo de veneno”
(2004, p. 116). Ao despertar, vê-se sozinho com o corpo desnudo em contato com a
palha aninhada que serviu de palco para a consumação do incesto entre André e Ana.
Tendo que provar a sua paciência, André chama por Ana e, na ausência de resposta, vai
à capela, onde a encontra em frente ao oratório, de joelhos, estática. “Fui me pôr atrás
dela, passando eu mesmo, num murmúrio denso, a engrolar meu terço, era a corda do
meu poço que eu puxava, caroço por caroço, ‘te amo, Ana’ ‘te amo, Ana’ ‘te amo, Ana’
eu fui dizendo num incêndio alucinado, como quem ora.” (2004, p. 119) Pedindo para
ser ouvido, começa a tecer a sua confissão:
foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos bastamos dentro dos
limites da nossa própria casa, confirmando a palavra do pai de que a
felicidade só pode ser encontrada no seio da família; foi um milagre, querida
irmã, e eu não vou permitir que este arranjo do destino se desencante, pois eu
quero ser feliz, eu, o filho torto, a ovelha negra que ninguém confessa, o
vagabundo irremediável da família, mas que ama a nossa casa, e ama esta
terra, e ama também o nosso trabalho, ao contrário do que se pensa; foi um
milagre, querida irmã, foi um milagre, eu te repito, e foi um milagre que não
pode reverter: as coisas vão mudar daqui para frente (2004, p. 120).
quero fazer parte e estar com todos, eu, o filho arredio, o eterno
convalescente, o filho sobre o qual pesa na família a suspeita de ser um fruto
diferente, saiba, querida irmã, que não é por princípio que me rebelo, nem
por vontade que carrego a carranca de sempre; (...) quero resgatar, querida
irmã, o barro turvo desta máscara, eliminando dos olhos a faísca de demência
que os incendeia, removendo as olheiras torpes do meu rosto adolescente,
limpando para sempre a marca que trago na testa, essa cicatriz sombria que
não existe, mas todos pressentem, (...) vou (...) misturar a minha vida à vida
de todos eles; (...) não voltarei a destilar veneno na fonte dos meus impulsos
afetivos (2004, pp. 26-27).
Sentindo sua irmã temendo, sofrendo e chorando por seus pedidos e lamentos,
André vê-se novamente sozinho, abandonado por Ana na capela, que ao anúncio de que
“estou morrendo” (2004, p. 141), responde com o seu silêncio contínuo. Pela primeira
77
vez, sentia-se sozinho no mundo e via como única saída deixar as terras da fazenda para
trás. Mesmo acreditando que a felicidade estava dentro das divisas paternas, reafirmada
pelo discurso de união da família, que mais à frente se fará absolutamente contraditório,
André sente o peso de sua cicatriz quando da ausência de resposta da irmã. Risonha e
corrosiva, a marca invisível na testa só poderia se tornar visível em sua ausência à mesa.
Retornando ao espaço violável do quarto, André finalmente confessa ao irmão
por que havia se tornado um faminto, tendo o pão à mesa: “Era Ana, era Ana, Pedro, era
Ana a minha fome, (...) era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu
respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o asseio impertinente dos meus
testículos” (2004, p. 109). Ana, deixando de alimentar sua paixão, tornava-o um
faminto, dava fundamento à sua loucura: sendo ela a única capaz de trazê-lo de volta ao
seio familiar e uma vez se isentando dessa obrigação, André não suporta mais estar
presente, mas não fazer parte, e vê como solução a fuga da fazenda. Pedro, “assombrado
pelo impacto do meu vento, (...) buscava com certeza a terra sólida e dura” (2004, p.
110) e se recolhia na tentativa do exercício da paciência, apreendido diariamente. O
leitor não tem acesso à reação do primogênito, tomando conhecimento apenas do desejo
de tornar pública a conclusão a que André cuidadosamente chega:
eu tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a
sabedoria do pai, que a minha enfermidade me era mais conforme que a
saúde da família, que os meus remédios não foram jamais inscritos nos
compêndios, mas que existia outra medicina (a minha!), e que fora de mim eu
não reconhecia qualquer ciência, e que era tudo só uma questão de
perspectiva, e o que valia era o meu e só o meu ponto de vista, e que era um
requinte de saciados testar a virtude da paciência com a fome de terceiros
(2004, p. 111).
“Virando a mesa dos sermões num revertério” (2004, p. 111), o narrador conclui
que existe na sua loucura e enfermidade a semente da sabedoria e saúde do pai, capazes
de emancipá-lo na criação de novas ciências, vindas de uma medicina própria. Com a
sua fome, André, “o epilético, o possuído, o tomado, eu, o faminto” (2004, p. 112),
assumia em seu suposto delírio a prática do incesto, o seu verdadeiro alimento. Nessa
série de rupturas, o narrador-personagem, ora narrando sua dor presente, ora retornando
ao passado para edificá-la, em uma descontinuidade contínua, apenas aparentemente
trata do incesto como evento central. A relação incestuosa, todavia, e resultado de uma
série de outras rupturas: do tempo, da religião, da fome, da lavoura semeada.
O retorno de André a casa, narrado no segundo momento, sugere, inicialmente,
um retorno à tradição e um distanciamento das rupturas. A lavoura na qual residia a
família, arcaica em sua construção e sustentação, todavia, já estava semeada pelo verbo
78
9
O apelido atribuído a André, recuperado pelos irmãos quando de seu retorno, reúne o braço esquerdo da
família. Como observado por Sabrina Sendlmayer, “Andrula”, que significa “eu” em árabe, a do avô, é
formado por André, Ana e Lula (1997, p. 54).
79
aos ombros as quinquilharias conquistadas pelo irmão em suas noites com prostitutas,
surgindo no centro da roda dos dançarinos e “fazendo a vida mais turbulenta,
tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação” (2004, p. 189). À reação dos
convidados, caracterizados pela “voz surda de um coro ao mesmo tempo sacro e
profano que subia” (2004, p. 190), Pedro traz à margem a confissão de André: o incesto
é relatado pelo primogênito a Iohána, “era a ferida de tão doída, era o grito, era a sua
dor que supurava” (2004, p. 192). A essa dor supurada, o pai responde com outra dor:
atinge com o alfanje ao alcance de suas mãos, com a sua ira, “a dançarina oriental (que
vermelho mais pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais torpe dos meus
olhos!)” (2004, p. 192, grifos nossos), e, em seguida, atinge-se com o silêncio fúnebre
da própria morte, ali então encenada.
A festa de celebração da páscoa de André se encerra, portanto, sem nenhuma
possibilidade de ressurreição: extrapolando a morte simbólica que se faria sentida com a
partida de Lula10, Iohána é responsável pela própria morte, após o assassinato de Ana.
Ao desfalecer do pai, a narrativa de André recupera o dilaceramento de tudo que o
acompanha nessa queda: “onde a nossa segurança? onde a nossa proteção? (...) onde a
união da família?” (2004, pp. 1993-194). Organizados de modo a evidenciar esse duplo
desmoronamento, os questionamentos são intercalados pelos apelos “Pai! Pai!” (2004,
pp. 193-194), não respondidos, porém. Ao fim, “a mãe passou a carpir em sua própria
língua, puxando um lamento milenar que corre ainda hoje a costa do Mediterrâneo:
tinha cal, tinha sal, tinha naquele verbo áspero a dor arenosa do deserto” (2004, p. 194).
Aquele deserto, diferente do anterior e instaurado com a morte da figura
patriarcal, recupera diversas ausências: a da segurança, da proteção, da união familiar,
mas, também, a da mudez, da ruptura, da partida. Ao fim da narrativa de André, o
discurso de seu pai, recuperado pelo narrador em meio às lembranças da infância e da
adolescência, no capítulo 9, traz à superfície uma das lições doutrinadas à mesa: “o gado
10
Na noite em que retorna a casa, André ouve de Lula os planos empreendidos a partir de sua fuga.
Assim como o irmão mais velho, Lula planejava fugir aos olhos do pai. O motivo, no entanto, não era o
mesmo: embora possuísse o lirismo da fuga do irmão “acometido”, não contava com a sua convulsão, sua
paixão, seu delírio: “– Não aguento mais esta prisão, não aguento mais os sermões do pai, nem o trabalho
que me dão, e nem a vigilância do Pedro em cima do que eu faço, quero ser dono dos meus próprios
passos; não nasci para viver aqui; sinto nojo dos nossos rebanhos, não gosto de trabalhar na terra, nem
nos dias de sol, menos ainda nos dias de chuva, não aguento mais a vida parada desta fazenda imunda...
(...) quero fazer coisas diferentes, ser generoso com meu próprio corpo, ter emoções que nunca tive; (...)
vou sair de casa para abraçar o mundo, vou partir para nunca mais voltar, não vou ceder a nenhum apelo,
tenho coragem, André, não vou falhar como você...” (2004, pp. 179-181).
80
sempre vai ao poço” (2004, p. 62 e p. 196). Se, segundo a lição do pai, o gado sempre
vai ao encontro do poço, fonte inesgotável de água que pressupõe um abismo a ser
superado para ser alcançado, naquele momento toda a família dirigia-se ao mesmo e
simbólico poço, que, circularmente, indicava o abismo experimentado pela família na
páscoa de André, mas, inevitavelmente, serviria de nova nascente e fonte inesgotável.
(...) tudo o que pude ouvir, sem que ela dissesse nada,
foram as trincas na louça antiga do seu ventre,
ouvi dos seus olhos um dilacerado grito de mãe no parto.
Raduan Nassar. Lavoura arcaica.
É “sabendo que” que todos os seus movimentos são orientados, tendo a mira dos
olhos dela como objeto de observação. Embora seja ela a câmera a acompanhá-lo e
vigiá-lo, a consciência do ato se faz evidente, aparentemente, apenas para ele. Antes um
objeto a ser observado, ao se tomar consciência disso, torna-se ele, o chacareiro, o
manipulador e, por extensão, espectador de suas próprias ações. Tal encenação não se
restringe, porém, ao primeiro contato, momento no qual eles se encontram. No ambiente
marcado pela intimidade, o quarto dele, essa (auto)vigilância ocupa um papel central:
81
“Por uns momentos lá no quarto nós parecíamos dois estranhos que seriam observados
por alguém, e este alguém éramos sempre eu e ela, cabendo aos dois ficar de olho no
que eu ia fazendo, e não no que ela ia fazendo” (2009, p. 12, grifos nossos). Os
movimentos dos dois expressam a consciência do ato, mas o narrador deixa claro que o
objeto de observação constante permanecia sendo ele próprio.
Mais uma vez, para melhor compreender o texto de Nassar, vale-nos recorrer a
Erich Auerbach, que, ao tratar, no artigo “A meia marrom”, do livro Mimesis, da
trivialidade da cena em que Mrs. Ramsay mede a meia que está cosendo para o filho, do
livro To the lighthouse de Virginia Woolf, afirma que “o tempo da narração não é
empregado para o processo em si – este é reproduzido com bastante brevidade –, mas
82
para as interrupções” (AUERBACH, 2004, p. 484). Com isso, o crítico alemão retoma a
importância das reflexões, que antecede a das ações, que se tornam desvalorizadas para
o narrador que faz parte desse processo. Instrumento de reflexão, o tempo de
desenvolvimento da ação pode ser resumido a poucas linhas, cabendo às demais o
desenvolvimento de digressões e suas variações. Os acontecimentos exteriores, então,
não acompanham o tempo dos interiores, servindo-lhes apenas como suporte de
interpretação e não como explicação. Ao tratar da distinção proposta na obra analisada
de Virginia Woolf com relação aos demais escritores que se propuseram a tratar do
tempo em suas narrativas, Auerbach pontua:
11
Como será analisado no subcapítulo “A infância desabitada em ‘Menina a caminho’”, o ensaísta
Silviano Santiago, em “O narrador pós-moderno”, propõe como uma das configurações para o narrador a
experiência do olhar.
83
(...) queria era o silêncio, pois estava gostando de demorar os olhos nas
amoreiras de folhas novas, se destacando da paisagem pela impertinência do
seu verde (bonita toda vida!), mas meus olhos de repente foram conduzidos, e
essas coisas quando acontecem a gente nunca sabe bem qual o demônio, e,
apesar da neblina, eis o que vejo: um rombo na minha cerca-viva, ai de mim,
amasso e queimo o dedo no cinzeiro. (2009, p. 30)
Essa ruptura, portanto, virá a ser uma ruptura também contra o silêncio instituído
por ele desde a noite anterior ao evento: desordeiro de suas reflexões, o chacareiro
questiona a dona Mariana, caseira, onde se encontra seu Antônio, responsável pelo
85
e apelidos, dá-se pela marca da diminuição, a ironia dela se dá por meio da intenção
superlativa, ao chamá-lo de “mestre”.
Em sua fala, o narrador assinala que “não tive sequer o sopro necessário, e,
negando o respiro, me foi imposto o sufoco” (2009, p. 54). A esse sufoco, a sua resposta
é o isolamento, o exílio na chácara, onde a ordem estabelecida tinha como única
autoridade a sua própria voz. O que ela vê como fuga aos conflitos sociais, assumidos
como pauta de sua prática feminista no jornalismo, é ressignificado por ele, de modo
que a marginalização não corresponde a estar ao relento, e sim a estar em um relento
acalentador: “já disse que a margem foi um dia meu tormento, a margem agora é a
minha graça”, sob a justificativa de que, “rechaçado quando quis participar, o mundo
hoje que se estrepe! caiam cidades, sofram povos, cesse a liberdade e a vida” (2009, p.
12
A respeito disso, no subcapítulo “Os irmãos de Caim em Lavoura arcaica”, afirmamos que “o
chacareiro, ao travar com a jornalista um embate passional e político, evidencia o estabelecimento de uma
nova ordem, diferente da anterior, mas capaz de reproduzir, no espaço do sítio, todo o autoritarismo que
existia para além dele” (p. 70).
87
sexual sobre ela para invalidar sua emancipação: “a mesma femeazinha que ela era, a
mesma igual à maioria, que me queria como filho, mas (emancipada) me queria muito
mais como seu macho” (2009, p. 77). A emancipação dela é vista, aqui, como um
abandono ao desejo materno.
Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma
parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu
andar. Pode ser que ela simplesmente se remetesse então a uma tarefa trivial
a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não
entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua
memória (2010, p. 58).
existencial. Não se apresenta com clareza, no entanto, a configuração desse conflito, que
passa a depender de seu leitor para ter sua compreensão mais clara, embora nunca
inquestionável. Acompanhando Um copo de cólera, o conto permanece investindo nas
lacunas a serem preenchidas, nos espaços em branco à espera da significação que,
impossível de ser atribuída por seus personagens, só pode ser sugerida pelo leitor, que
deixa de ser espectador para participar da narrativa.
O conto que segue a coletânea, “O ventre seco”, é por Leyla Perrone-Moisés 13
considerado uma espécie de embrião de Um copo de cólera. A sua organização, no
entanto, sugere pensa-lo à parte, visto que traz em sua forma e em seu conteúdo novos
tópicos. Organizado em parágrafos topicalizados, que vão do 1 ao 15, o narrador reserva
o primeiro à declaração de que não se importa em ser sujeito ou objeto do ato de
manipular, atribuindo a Paula a autoria plena da ação. Colocando-se como ferramenta
de manipulação, o narrador segue para o segundo item, no qual insere um
agradecimento à personagem por ela tê-lo cumulado de atenções, “(excedendo-se, por
sinal)” (2010, p. 62), bem como tê-lo arrastado “pra lugares que acabei não indo” (2010,
p. 62). Em seguida, o narrador define essas tentativas de Paula como ato de
generosidade, mas deixa claro que “não quero discutir os motivos da tua generosidade,
me limito a um agradecimento” (2010, p. 62). E, entre o sarcasmo, a agressividade e a
velocidade de suas declarações, segue a narrativa, caracterizando-se como alguém que
“não chego sequer a conservador, sou simplesmente um obscurantista” (2010, p. 62) e
que, à beira dos 40, está fazendo seu voto de castidade.
Despreocupado em fazer proselitismo, como anuncia ao fim do terceiro item, o
narrador passa a tratar da juventude da qual Paula faz parte, caracterizando-a como
reivindicadora que abarca em si uma contradição: “devo te dizer quer não tenho nada
contra esse feixe de reivindicações que você carrega, a tua questão feminista (...). É
preciso saber ouvir os gemidos da juventude: em geral, vocês reclamam é pela ausência
de uma autoridade forte” (2010, pp. 62-63). Anunciando a ausência, também, do desejo
de governá-la, o narrador diz achar graça nos ruídos feitos pelos jovens, assumindo um
tom crítico e denunciando, desde então, o esvaziamento previsto no discurso de sua
interlocutora. No item 5, o narrador dedica-se a corroborar o que havia dito, atribuindo a
Paula uma “precária superioridade”, dizendo que lhe “causa enjoo a juventude, me
13
Aqui, referimo-nos ao texto já mencionado “Da cólera ao silêncio”.
91
causa muito enjoo a tua juventude”, embora peça que acredite que “não me doem os
cotovelos” (2010, p. 63).
A narrativa segue e apresenta a aparente oposição mais significativa da qual trata
o conto e, futuramente, tratará a novela Um copo de cólera: o amor em contraste com a
razão. Ao amor, soma-se a liberdade; à razão, o chão movediço. No item 6, o narrador
anuncia que “você me levava a supor às vezes que o amor em nossos dias, a exemplo do
bom senso em outros tempos, é a coisa mais bem dividida deste mundo” (2010, p. 64),
de modo que as pessoas são tomadas por um arroubo corriqueiro, quando ouvem falar
desse sentimento. Tendo “todas as medidas cheias dos teus frívolos elogios do amor”
(2010, p. 64), o narrador apresenta-se descrente de um sentimento que, aparentemente,
dedicou-se a construir ao lado de sua interlocutora, esvaziando, inclusive, o seu
significado como libertário.
Em seguida, a razão é definida pelo irônico obscurantista como “muito mais
humilde que certos racionalistas; você pode continuar carreando areia, pedra e tantas
barras de ferro, Paula, embora qualquer criança saiba que é sobre um chão movediço
que você há de erguer seu edifício” (2010, p. 65, grifo nosso). A compreensão a respeito
da razão, aqui, extrapola aqueles que fazem uso dela: mais humilde do que os
racionalistas, a razão serve a estes como um chão movediço, uma terra na qual só se
pode confiar aparentemente, responsável por sustentar “este mundo simulado que não
perde essa mania de fingir que está de pé” (2010, p. 65). Todas as certezas, portanto, de
uma juventude precariamente superior, segundo o narrador, estão edificadas sobre as
incertezas do discurso racional. E é, ironicamente, utilizando-se da razão, da
organização estrutural que ele constrói, pontua cartesianamente seus argumentos – ainda
que, para ele, Paula, e tão equivocadamente, tenha arrumado “com criterioso zelo todos
os seus conceitos” em suas prateleiras.
Em oposição ao excesso de atenção acusado em Paula, “sempre atenta à sobra
mínima da minha língua, assim como ao movimento mais ínfimo do meu polegar”
(2010, p. 65), o “velho obscurantista”, como se autointitula, pede que Paula encontre
um lugar, também, para a sua paixão, “rejeitada na vida” (2010, p. 65), nas prateleiras
nas quais organiza seus conceitos. Dizendo-se um grande indiferente, que tem como
estigma no rosto uma cicatriz sempre presente, o narrador esclarece já ter chegado “a
um acordo perfeito com o mundo: em troca de seu barulho, dou-lhe o meu silêncio”
(2010, p. 66). Em sua suposta harmonia com o mundo, marcada pela oposição entre o
barulho e o silêncio, ele segue silenciosamente o seu percurso, contrastando com o
92
barulho feito não somente pela juventude de Paula como também de todo o mundo.
Sendo, no entanto, uma forma de existência, o silêncio imposto com a ruptura proposta
por ele a Paula é capaz de estender a sua existência.
A narrativa segue a caminho da conclusão, na qual o narrador revela que
“encontrei, Paula, esquivo, o meu abrigo: coração duro, homem maduro” (2010, p. 66),
pedindo a ela que, “versátil como você é, desempenhe mais este papel: o de mulher
resignada que sai de vez do meu caminho” (2010, p. 67). Ele, com o coração duro,
responsável pelo coração maduro, cada vez mais esquivo do mundo-pardieiro que
possui tão somente seu silêncio; ela, mulher versátil, feminista, racional, mas, ao mesmo
tempo, resignada em sua rejeição: o silêncio, aqui, cruza a narrativa, servindo a ambos
os personagens como uma instituição, uma imposição.
No item 14, a conclusão ganha um formato mais evidente, no qual o narrador
pede que “entenda, Paula: estou cansado, estou muito cansado, Paula, estou muito, mas
muito, mas muito cansado, Paula” (2010, p. 67). A repetição, nesse momento, indica
circularmente a ausência do que pode ser dito, o silêncio sendo instaurado por meio do
esgotamento do que dizer: sem ter mais o que dizer, o narrador pede que sua
interlocutora entenda o seu cansaço e que, consciente dele, apenas deixe-o em paz. Um
novo item, entretanto, aparece introduzido pelo advérbio “ainda”, destacando que ainda
há o que ser dito:
“a velha aí do lado”, a quem você se referia também como “a carcaça
ressabiada”, “o pacote de ossos”, “a semente senil” e outras expressões que o
teu talento verbal sempre é capaz de forjar mesmo para falar das coisas
mirradas da vida, nunca te revelei, Paula, te revelo agora: “aquele ventre
seco” é minha mãe, faz anos que vivemos em kitchenettes separadas, ainda
que ao lado uma da outra (2010, p. 67).
Se, antes, o narrador havia pedido que Paula “não me telefone, não estacione
mais o carro na porta do meu prédio, não mande terceiros me revelarem que você ainda
existe, e nem tudo o mais que você faz de costume, pois recorrendo a esses expedientes
você só consegue me aporrinhar” (2010, pp. 66-67), com a revelação de que “aquele
ventre seco” era a sua mãe acompanhada do pedido de que Paula iguale a sua resposta à
dela, ele passa a pedir que Paula se torne, também, um ventre seco. O pedido final
encerra o conto, inclusive, reproduzindo as palavras do “ventre seco”:
Quero antes lembrar o que minha mãe te dizia quando você, ao cruzar com
ela, e “só para tirar um sarro”, perguntava maliciosamente por mim, te
sugerindo eu agora a mesma prudência, se acaso amanhã teus amigos
quiserem saber a um respeito. Você pode dispensar “a ridícula solenidade da
velha”, mas não dispense o seu irrepreensível comedimento, responda como
ela invariavelmente te respondia: “não conheço esse senhor” (2010, p. 68).
Retomando o título, vê-se uma opção vocabular que marca uma distinção
importante: no desfecho do conto, a mãe do narrador é designada como “aquele ventre
seco”, enquanto o título refere-se a “o ventre seco”. Levando-se em consideração o
pedido final do narrador, vê-se o desejo de que Paula iguale-se ao “ventre seco” quando
se referir a ele, tornando-se, também, um ventre seco. O pronome demonstrativo
“aquele” marca a distinção existente do referente com relação às duas pessoas presentes
no diálogo; já o artigo definido “o” apenas define e antecede o substantivo, sem, no
entanto, marcar a sua referência próxima ou distante. Ao pedir que Paula iguale sua
resposta à de sua mãe, vista como ventre seco o narrador sugere que a partir de então,
sem ele, o ventre de sua interlocutora também havia de secar. Ambas, ao fim, tornam-se
ventres secos, compartilhando a mesma contrapartida: portam-se ou se portarão como
desconhecidas.
Se, no conto “Hoje de madrugada”, o leitor é exigido por seus narradores à
medida que as lacunas a serem preenchidas são propostas pela escrita nassariana, nesse
conto o leitor ganha um novo papel, não menos importante: aqui, ele deve desconfiar da
narrativa proposta, questionando, por fim, o poder de manipulação de um narrador. Em
primeira pessoa, a narrativa é edificada sob diversas contradições: o narrador,
manipulado e manipulador, diz responder ao mundo com seu silêncio, embora construa
um discurso embebido pela verborragia e marcado pela violência e agressão,
provocando tanto barulho contra o qual se impõe. Racionalmente construída, pois, a
narrativa esquemática e estruturalmente objetiva insurge, tal qual a razão apropriada
pelos racionalistas, em cima de um chão movediço: cabe ao leitor, então, esquivar-se do
suposto silêncio e buscar um novo sentido ao dito e, para além disso, ao não-dito.
94
Nessa primeira cena, essa protagonista toma conhecimento de um fato que irá
percorrerá toda a sua trajetória: o seu Américo, pela primeira vez naquela pequena
cidade, fechara o armazém antes da finalização do expediente. O possível motivo será
reconhecido, também, a caminho: o filho de seu Américo, para quem a mãe adúltera
deseja que “o senhor vai ver agora como é bom ter um filho como esse que o senhor
tem” (NASSAR, 2010, p. 44). Essa especulação atravessa a narrativa, seguindo o
caminho percorrido pela menina: na conversa entre os meninos que carregavam sacos
de palha, no diálogo carregado de sarcasmo entre Zuza e dona Ismênia, na barbearia
cheia de calendários com mulheres nuas, na sala de aula de dona Eudóxia com a
violência cotidiana, no bar entremeado pelo discurso político de devoção a Getúlio
Vargas. Em todos esses ambientes, a menina identifica um discurso preocupado em
trazer à cena e, ao mesmo tempo, não pôr em termos claros o acontecimento que
envolve o filho de seu Américo.
96
começa a tomar ciência do impulso sexual que, no entanto, situa-se entre a cena de
espancamento da mãe e a saída em busca de brincadeira com as demais crianças. No
caminho percorrido, ela conhece parte dos antagonismos humanos, dos quais tira uma
conclusão imagética: vendo o seu sexo em meio à moldura de santo, o profano aparece
ao lado do sagrado, sem que, porém, identifique-se com clareza se o sagrado se situa na
imagem do santo ou na do sexo. Nesse momento, a visão da menina – de um quadro
sagrado cuja protagonização se faz por meio do mais profano, o sexo – revela um
desantagonismo.
14
Vale lembrar que, embora o conto tenha sido publicado apenas em 1994 pela primeira vez, a sua
confecção se dá em 1961 e, por isso, figura como obra pioneira na literatura nassariana.
99
medindo a menina, assim surpreendida seguindo a velha [dona Engrácia]” (2010, p. 35).
Como em poucos momentos da narrativa, o leitor e o narrador abandonam a narração e
a experiência ocular da menina e se alocam para fora da cena inicial: a menina segue a
velha dona Engrácia enquanto é seguida por seu Tio-Nilo.
“A narrativa pode expressar uma ‘sabedoria’, mas esta não advém do narrador: é
empreendida da ação daquele que é observado e não consegue mais narrar – o jovem. A
sabedoria apresenta-se, pois, de modo invertido.” (1989, p. 45) Em virtude dessa
inversão, o narrador aproxima-se do leitor, de maneira a se tornar, também, um
espectador, visto que a desvalorização da ação em si indica uma valorização maior à
palavra experimentada.
Essa ponte edificada com palavras parece ser a garantia de que a experiência
vivida pela menina, inominada em sua apresentação, possa ser compartilhada, já que a
personagem apresenta-se delas privada. Uma vez que é o narrador o portador da
palavra, à menina é reservada a comunicação imediata e centrada sobretudo no olhar.
Suas palavras restringem-se às respostas dadas de forma pontual aos questionamentos
feitos pelos demais personagens, sem que, com elas, seja capaz de construir um
raciocínio doutrinador ou passar adiante alguma sabedoria. Essa responsabilidade é
atribuída ao narrador, que transforma a experiência em autêntica com a sua “passividade
prazerosa” e “imobilismo crítico” (1989, p. 51). À menina, cabe “a experiência do ver.
102
Do observar. Se falta à ação representada o respaldo da experiência, esta, por sua vez,
passa a ser vinculada ao olhar. A experiência do olhar” (1989, p. 51).
O título escolhido para dar nome ao último livro lançado por Raduan Nassar já
anuncia a distância do caráter ficcional: dois textos que compõem Menina a caminho e
outros textos brincam ainda mais com os limites entre os gêneros literários, sobretudo
103
quando abdicam da apresentação de enredo claro. A estrutura dos textos nos indica o
pertencimento ao conto, visto que se caracteriza pela curta extensão e preza pela
intensidade e tensão. Diferentemente do gênero, no entanto, a voz narrativa não se
preocupa com a apresentação de um acontecimento, em torno do qual giram os eventos.
Em vez disso, “Aí pelas três da tarde” funciona como uma espécie de tutorial,
orientando e indicando ao leitor, em um diálogo explícito, salientados pelas marcas
pronominais, como se libertar da prisão cotidiana do escritório. Já “Mãozinhas de seda”,
que sintomaticamente fecha o livro e marca a despedida de Nassar, aproxima-se do
questionamento dos limites ficcionais, à medida que traz dados que pertencem à vida do
escritor, como a infância em Pindorama. Em ambos os contos, assim como em toda a
literatura nassariana, os narradores são repensados, de forma que a ruptura, aqui, diz
respeito ao limite entre o narrador e o escritor.
Na série de sugestões que preenchem as linhas de “Aí pelas três da tarde”, o
narrador, em primeira pessoa do singular, sugere que o leitor, interlocutor a quem se
dirige diretamente, desnude-se das obrigações cotidianas, começando pelo abandono da
mesa do escritório e finalizando deitado na rede de casa. Ao longo desse caminho, o
interlocutor deverá se desnudar de outras tantas coisas, como o peso das obrigações
diárias, o pudor de se apresentar ao mundo, a surpresa pela fuga à rotina. Assim como
em “Menina a caminho”, nesse conto novamente o caminho se revela como destino,
sendo o percurso do conto o percurso de duas travessias: a do interlocutor e a da escrita,
que se liberta do compromisso assumido, desde o surgimento do romance e conto
literário, com a narração de ações e acontecimentos.
Do escritório à rede de balanço, o interlocutor deve se despir por completo. Em
vestes mínimas ou em pelo, ele não poderá infringir o pudor – e, para que fique claro, o
narrador pontua “(o seu pudor, bem entendido)” (NASSAR, 2010, p. 72) –, tornando
nítido que o ato de retirar a importância das coisas corresponde, direta ou indiretamente,
não importa, à instauração de um novo pudor, de uma nova forma de entender as
trivialidades da vida cotidiana, “aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade
provisória, toda mudança de comportamento” (2010, p. 72). Novas verdades provisórias
são, portanto, instauradas à medida que o interlocutor se dirige ao seu destino, que se
encontra em uma “rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço” (2010, p.
73). Sem grandes lances, o narrador pede cautela ao interlocutor, advertindo-o de que os
familiares, “pobres” e “coitados”, devem naturalmente se espantar com a sua
104
transgressão, reconhecendo seu movimento pela casa, “aí pelas três da tarde”, como
atípico.
Sob o comando de finalizar seu percurso pela casa calado, permanecendo com a
“cara de louco ainda não precipitado” (2010, p. 73), o interlocutor deve se dirigir à rede
e “largue-se nela como quem se larga na vida (...): cerre as abas da rede sobre seus olhos
e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir
embalado pelo mundo” (2010, p. 73). Como quem se larga na vida, as abas da rede, ao
se fecharem sobre seus olhos, devem encerrar, também, aquele entorno de colegas de
trabalho interrogadores e familiares espantados e, sem que importe o apoio – do
impulso para embalar a rede, do impulso em direção contrária ao cotidiano e às suas
normas, do impulso ao fim do texto –, sinta-se embalado pelo mundo, que se
movimenta no vai e vem da rede, uma fantasia.
Nessa espécie de admoestação à experimentação do mundo, do corpo, do outro,
o narrador dirige-se a um possível interlocutor, reconhecido por meio do pronome
“você” e dos verbos de ordem, conjugados no modo imperativo. Embora se possa
pressupor um único interlocutor a quem o narrador se dirige, é tendencioso pensar o
breve conto como um convite à reflexão a respeito das imposições cotidianas, dos
movimentos repetidos sem nenhum questionamento. O narrador, aqui, dirige-se a todos
que sentem viver uma vida moderna, uma vez que se entende como homem moderno.
Todos eles, na sua visão, precisam de uma ruptura da automatização trazida pela
modernidade que os direcione ao centro do mundo, ao cerne invisível da vida:
instaurando seu próprio pudor, em roupas mínimas ou em pelo, o homem moderno deve
se desviar das interrogações daqueles a quem causa estranhamento e se dirigir ao
embalo do mundo, à libertação do corpo na fantasia que é se sentir seduzido por si
próprio.
O “você”, no conto, assume o papel de interlocutor genérico, e não mais
particular, de maneira que o leitor passa a fazer parte da narrativa diretamente.
Diferentemente de “Menina a caminho” e “Hoje de madrugada”, no entanto, essa
participação não tem mais como fim a significação, a atribuição de sentido às lacunas
sugeridas pelos seus narradores. Em vez disso, é a interlocução que possibilita a
interação com o leitor, que se vê como interlocutor direto, tocado pelos comandos do
narrador. Um homem moderno, certamente o leitor se identifica com os conflitos
existenciais trazidos na rebarba de uma vida moderna. A ruptura, então, não se restringe
ao narrador em primeira pessoa, que não narra ações e seus eventos: ela se estende ao
105
No último texto que compõe o livro Menina a caminho e outros textos, esse
narrador em primeira pessoa que pouco narra a respeito da ação é recuperado. A figura
do bisavô é retomada pelo narrador, inserindo a narrativa no espaço físico de
Pindorama, cidade natal de Raduan Nassar. Advertindo aos leitores de que “a maior
aventura humana é dizer o que se pensa” (2010, p. 77), o conto se desenvolve tratando
das “mãozinhas de seda”, bifurcadas, então, nas delicadas mãos das moças de
Pindorama, que se preparavam para o Baile da Primavera uma vez ao ano, e nas tão
cuidadas mãos dos intelectuais brasileiros, que as afinavam com pedra-pome por todo o
ano. Do diminutivo carinhoso, no primeiro caso, ao pejorativo, no segundo, o narrador
relembra as falas do bisavô, que se manifestam em um passado, sempre a pedir que não
cometesse nenhuma porraloquice.
pudendas de alguém, fossem essas partes roxas, pretas ou de cor ainda a ser
declinada. Seria o êxtase! (2010, pp. 80-81)
bisavô poderia, então, assumir duas facetas: a de entrega ao mundanismo com linha ou a
do silenciamento da página não-escrita. O desfecho, no entanto, vai aparentemente
contra a crítica imposta pelo narrador: sendo, enfim, um diplomata, ele chegou lá,
compartilhando com o seu avô a sua indumentária e, por extensão, as reflexões.
O último parágrafo, em contrapartida, evidencia uma saudade de si próprio,
indicada entre parênteses e seguida de uma exclamação, sugerindo que o aparente
diplomata sente saudade de si próprio, quando, possivelmente, não-diplomata. Além da
recuperação do teor irônico, o narrador, nesse momento, muito se aproxima do escritor
do conto, Raduan Nassar. Ambos, naturais de Pindorama, fundam uma própria
diplomacia, regida pela consciência crítica de que os interesses contam e a importância
de fazer média, de modo que o mundanismo com linha só traz à tona o silenciamento da
página, edificada em uma ironia cortante. Questionando a necessidade de falar de ética,
o narrador (ou o autor) instaura, aí, uma nova ética a serviço daquele leitor que,
interrogando-se quanto à saída de Raduan Nassar do cenário de produção literária, tem
como resposta a crítica àqueles que em algum momento fizeram parte desse cenário a
par do narrador, com suas mãozinhas de seda – necessárias, inclusive, ao leitor disposto
a compreender a pequena narrativa.
Os dois contos em questão, portanto, tratam de um duplo abandono: o primeiro
desabrigo diz respeito ao enredo – abandono do escritório e o do trato intelectual –
enquanto o segundo conecta-se à forma literária – transformação do leitor em
personagem e a aproximação entre o escritor e o narrador. Esse desabrigo retoma a série
de rupturas empreendidas pela literatura de Nassar, já que dizem respeito, radicalmente,
a um narrador distante do tradicional; distância que toma outras direções. Todos os
demais textos, do romance ao breve conto, propõem rupturas que se manifestam por
meio da figura do narrador; esses dois, no entanto, trazem essa ruptura em sua forma
extrema, levando-nos a questionar, inclusive, a existência desse narrador. A literatura,
como nos sugere a epígrafe, torna-se espaço de reflexão, no qual é questionado “até
onde posso ir”. Nassar descobriu essa resposta cedo: até “Mãozinhas de seda”, seu
adeus literário.
108
15
Referimo-nos à “literatura-reportagem” produzida no Brasil na década de 1970, identificada por
Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira e detidamente recuperada na sessão 1 do
Capítulo 1 desta dissertação, como contraponto simbólico à Ditadura Militar (2006, p. 464).
110
educação pautada na cultura libanesa, é uma marca muito forte em Lavoura arcaica,
embora não se mantenha nas demais obras. Em vista disso, prezaremos pelas rupturas
que se fazem evidentes nas formas literárias, na superfície do texto, e manifestam como
a modernidade que se desdobra em Nassar.
Ao caracterizar a tradição da ruptura, Octavio Paz retoma o romantismo alemão
como cerne e, ainda em Os filhos do barro, assinala o caráter revolucionário da
literatura moderna:
(...) uma das correntes mais poderosas e persistentes da literatura moderna: o
gosto pelo sacrilégio e pela blasfêmia, o amor pelo estranho e pelo grotesco,
a aliança entre o cotidiano e o sobrenatural. Numa só palavra, ironia – a
grande invenção romântica. Justamente a ironia – no sentido de Schlegel:
amor pela contradição que cada um de nós é e consciência dessa
contradição – define de modo admirável o paradoxo do romantismo alemão.
Ele foi a primeira e a mais ousada das revoluções poéticas, a primeira a
explorar os domínios subterrâneos do sonho, do pensamento inconsciente e
do erotismo; a primeira, também, que faz da nostalgia do passado uma
estética e uma política (PAZ, 2013, p. 50, grifos nossos).
16
A respeito dessa concepção, ver sessão 2 do Capítulo 1, na qual tratamos das formas de ruptura, que se
estendem da inovação à recuperação do velho para negar a tradição predominante e atual.
111
o sentido e a verdade não se dá numa relação com a obra, mas com o outro,
como diálogo. O diálogo é a condição de toda obra, assim como o sujeito é a
condição de todo objeto, e o objeto é a condição de todo sujeito. Entre sujeito
e objeto há uma relação, entre eu e o outro há uma referência, referenciada
pela Linguagem. Na referência, há uma tensão de não contrários da qual
resultam os vestígios do que somos. (...) A narrativa estruturada dentro de um
diálogo não aparece como um recurso formal, mas como a condição
fundamental do próprio fazer a obra, pois trata-se de construir a obra como
sentido e verdade, e estes só se dão como interpretação, nunca como análise.
E a interpretação só se dá no entretecer da Linguagem como verdade e
sentido de memória e história, ou seja, no diálogo: no diálogo temos o eu e o
tu, o presente e o passado, a história e a memória, o discurso e a Linguagem.
A presença do outro é a própria condição histórica e de memória de fazer
eclodir o sentido e verdade (CASTRO, 2002, p. 65).
17
Consideramos, em nossa leitura, que essa proposta dialoga com as de Georg Lukács e Marthe Robert.
Ainda que o teórico húngaro e a ensaísta francesa vejam na forma romanesca a dissolução do gênero
épico apenas, é inevitável a identificação dos gêneros líricos e dramáticos na formação do gênero. A título
de exemplo, ver o estudo O romance tragicômico de Machado de Assis, no qual Ronaldes de Melo e
Souza vê na origem do narrador o gênero dramático.
112
de que ela abre, (...) humilde, o homem abandona sua individualidade para
fazer parte de uma unidade maior, que é de onde retira sua grandeza; só
através da família é que cada um em casa há de aumentar a sua existência,
(...) nossa lei não é retrair mas ir ao encontro, não é separar mas reunir,
onde estiver um há de estar o irmão também... (2004, pp. 147-148, grifos
nossos).
A fome ali evidenciada por André era diferente daquela anunciada pelo pai. O
apetite, vital para ambos, ia do alimento pragmático trazido à mesa ao inacessível,
embora envolvesse tanto ou mais trabalho que o necessário para plantar e colher. A
fome do filho pródigo, diferentemente da do pai austero, requisitava outro alimento e,
por mais que tivesse trabalhado, gemido e se esgotado por ele, não era possível
apaziguar sua fome, saciar-se como faminto – o real, o que infere um murro contra o seu
benfeitor, o da fábula ressignificada pelo filho desgarrado.
– Eu também tenho uma história, pai, é também a história de um faminto, que
mourejava de sol a sol sem nunca conseguir aplacar sua fome, e que de tanto
se contorcer acabou por dobrar o corpo sobre si mesmo alcançando com os
dentes as pontas dos próprios pés; sobrevivendo à custa de tantas chagas, ele
só podia odiar o mundo (2004, pp. 159-160).
admitindo que “nunca, nem antes e nem depois de ter partido, eu pensei que pudesse
encontrar fora o que não me davam aqui dentro” (2004, p. 160). As vísceras que haviam
sobrado de sua fome só trariam dor àquela família que não deixava o pão faltar à mesa.
Iohána, com a sua “sintaxe própria, dura e enrijecida pelo sol e pela chuva”
(2004, p. 44), não conseguia entender as palavras do filho, que, em seu lirismo,
revelavam a poderosa semente da (in)sanidade:
– Você está enfermo, meu filho, uns poucos dias de trabalho ao lado de teus
irmãos hão de quebrar o orgulho da sua palavra, te devolvendo depressa a
saúde de que você precisa.
– Por ora não me interesso pela saúde de que o senhor fala, existe nela uma
semente de enfermidade, assim como na minha doença existe uma poderosa
semente de saúde (2004, pp. 161-162, grifos nossos).
O trabalho, o cuidado com a lavoura, para o pai, é capaz de trazer saúde ao filho
enfermo, que, em contrapartida, diz não precisar dessa saúde, pois a possui já em sua
enfermidade, assim como seu pai possui sua enfermidade em sua própria saúde. Diante
dessas contradições, o narrador se vê de mãos atadas, sem querer atar também os seus
pés ao semear da terra, ao peso das gerações no cultivo das sementes da vida:
– E pode haver tanta vida na semente, e tanta fé nas mãos do semeador, que é
um milagre sublime que grãos espalhados há milênios, embora sem germinar,
ainda não morreram.
– Ninguém vive só de semear, pai.
– Claro que não, meu filho; se outros hão de colher do que semeamos hoje,
estamos colhendo por outro lado do que semearam antes de nós. É assim que
o mundo caminha, é esta a corrente da vida (2004, p. 163).
Desse legado, entretanto, André sente não possuir seu bocado e reconhece que,
rompendo essa corrente, existem aqueles que colhem apenas do que não plantaram,
embora tenham semeado e não colhido de sua própria semente. Mais à frente,
acrescenta:
– Não se pode esperar de um prisioneiro que sirva de boa vontade na casa do
carcereiro; da mesma forma, pai, de quem amputamos os membros, seria
absurdo exigir um abraço de afeto; (...) Fica mais feio o feio que consente o
belo... (...) Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam,
acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros, e nem entendo como se
vê nobreza no arremedo dos desprovidos; a vítima ruidosa que aprova seu
opressor se faz duas vezes prisioneira, a menos que faça essa pantomima
atirada por seu cinismo (2004, p. 164).
Para André, a menos que haja consciência e manipulação no ato submisso, fica
mais prisioneiro o prisioneiro que serve ao seu carcereiro, fica mais submisso o
submisso que abaixa a cabeça ao seu opressor, fica mais faminto o faminto que se
alimenta do pão que não sacia sua fome. A família, então, torna-se hostil ao faminto que
vê seus direitos negados: “todo meio é hostil, desde que negue o direito à vida” (2004,
118
p. 166). Embora o pai negue a hostilidade presente na casa, o narrador afirma que
“apesar de tudo, nossa convivência sempre foi precária, nunca permitiu ultrapassar
certos limites” (2004, p. 167), e, ao restringir limitações do direito à vida, o amor com o
qual sempre pode contar em casa deixa de ser suficiente:
– O amor que aprendemos aqui, pai, só muito tarde fui descobrir que ele não
sabe o que quer; essa indecisão fez dele um valor ambíguo, não passando
hoje de uma pedra de tropeço; ao contrário do que se supõe, o amor nem
sempre aproxima, o amor também desune; e não seria nenhum disparate eu
concluir que o amor na família pode não ter a grandeza que se imagina (2004,
p. 168).
Admitindo sua confusão, o filho convulso assenta a sua sintaxe e promete, para
receber o amor do pai e, por extensão, conquistar o seu lugar à mesa, substituir a
religião da emancipação pela do trabalho, a embriaguez do vinho pela do cansaço.
“Cansado de subir serras, tudo o que eu queria era uma relva plana, me entorpecer no
sono, dormir todos os meus sonhos, todos os meus pesadelos, acordando no dia seguinte
com os olhos claros.” (2004, p. 176) O diálogo inicialmente proposto pelo pai e
desenvolvido por André passa a ser substituído pelo monólogo que religiosamente era
119
18
Ainda que o texto fale também sobre “enunciado concreto”, tal conceito não se faz relevante para a
nossa pesquisa, visto que diz respeito ao ato comunicativo, de modo que ele “nasce, vive e morre no
processo da interação social entre os participantes da enunciação. Sua forma e significado são
determinados basicamente pela forma e caráter desta interação” (BRAIT & MELO, 2013, p. 68, grifos
nossos).
121
ainda, que essa concepção não é consensual, admitindo distinções conforme os estudos
e, inevitavelmente, a prática dessa teorização.
Essa concepção nos permite concluir que o enunciado, por ter início e fim
absolutos, só pode ser emitido uma vez, mas pressupõe o antes e possibilita o depois. Já
a enunciação depende da situação social imediata e dos participantes, correspondendo à
forma e ao estilo. Nesse sentido, o não-dito que identificamos como recorrente em
Lavoura arcaica e Um copo de cólera pertence ao enunciado, mas transforma-se em
dito na enunciação 19. Aquilo que os narradores-personagens – André e o chacareiro –
optam por calar no ato interativo com seus interlocutores predominantes – Pedro e a
jornalista, respectivamente – manifesta-se no ato narrativo. Desse último ato, nasce uma
relação de confiabilidade entre narrador e leitor, que passa a compartilhar do desejo de
dizer e cria significados a partir do que não foi dito. Nesse sentido, o leitor passa a ser
parte explícita da formação de significados das narrativas.
19
Para isso, entenderemos como enunciação o ato da escrita, cujos participantes são o narrador-
personagem e o leitor, e como enunciado os eventos narrados. Embora reconheçamos que, no ato
comunicativo estabelecido entre André e Pedro e entre o chacareiro e a jornalista, existam, também,
outros níveis de concepção de enunciado e enunciação, interessa-nos identificar como o silêncio se
manifesta como gerador de significados, nascidos, então, da relação narrador-leitor.
122
“olhos”, “coração”, “cordeiro”. Pedro, no entanto, promete à mãe que “a senhora vai ver
como as coisas vão voltar a ser o que eram, tudo vai ser de novo como era antes”
(NASSAR, 2004, p. 38) e, em busca do irmão, discursa em “sua incansável lavoura”
(2004, p. 39). Era a mão de Iohána que André via e era a ele que respondia: “eu sou um
epilético” (2004, p. 41),
Atirado ao chão, André pede ao irmão que revele à sua família a sua demência, a
peste que traz no corpo, e, na repetição do recado a ser dado: “traz o demônio no
corpo”, entoado em um coro sombrio e rouco de uma massa amorfa, o narrador faz
pública a sua insanidade, a sua loucura, uma escuridão lúcida. O jarro de sua velha
identidade, uma vez elaborado com o barro das suas próprias mãos, vindo da terra
sempre acolhedora, faz-se um chão de cacos, de fragmentos: ao trazer o demônio no
corpo, o narrador assume a crise de sua identidade, de sua individualidade. Ao confessar
a Pedro a sua epilepsia, reconhece a suprema aventura de desfazer a sua velha
identidade, a de um irmão à mesa dos sermões, que, de cabeça baixa, ouve junto aos
demais as palavras do pai. Em cacos, o jarro não pode ser mais recomposto e a única
possibilidade de sobrevivência, para André, é distante da vigilância do pai.
O diálogo estabelecido entre André e Pedro, ou entre André e Iohána, evidencia,
na fala do irmão, a voz inaudita do pai. Assim, o não-dito por Iohána se faz dito por
Pedro e o não-dito por André permanece no silêncio, na voz inaudita, diante da
autoridade (in)visível do pai. Logo que o diálogo entre os dois se inicia, um dos maiores
conflitos de André se faz presente: sem um lugar à mesa, a sua individualidade é
anulada.
(...) era esta pelo menos a parte que cabia a cada membro, o quinhão a que
cada um estava obrigado, pois bastava que um de nós pisasse em falso para
que toda a família caísse atrás; e ele falou que estando a casa de pé, cada um
123
de nós estaria também de pé, e que para manter a casa erguida era preciso
fortalecer o sentimento do dever, venerando os nossos laços de sangue, não
nos afastando da nossa porta, respondendo ao pai quando ele perguntasse,
não escondendo nossos olhos ao irmão que necessitasse deles, participando
do trabalho da família, trazendo os frutos para a casa, ajudando a prover a
mesa comum (2004, p. 23).
Para que todos estivessem de pé, era preciso que a casa também estivesse: em
uma assimilação entre a casa e os seus membros, a existência da família dependia de um
funcionamento adequado das obrigações diárias instituídas cotidianamente pela figura
do pai. Nessa lógica, bastaria apenas a transgressão de um deles para que a casa
tombasse e, com ela, toda a família: “se condenava a um fardo terrível aquele que se
subtraísse às exigências sagradas do dever” (2004, p. 23). Para isso, “era preciso refrear
os maus impulsos, moderar prudentemente os bons, não perder de vista o equilíbrio,
cultivando o autodomínio” (2004, pp. 23-24). André, a contrapelo de todos esses
ensinamentos, torna-se símbolo da transgressão aos preceitos essenciais para que a casa
permanecesse erguida: afasta-se da porta de casa, não responde às expectativas do pai,
não participa do trabalho da família, subtrai-se, por fim, das exigências do dever,
distantes de serem consideradas sagradas por ele. Toda felicidade que André poderia ter
vislumbrado para além das divisas do pai não passaria, entretanto, de uma ilusão,
segundo o discurso de Pedro.
Essa angústia, crise identitária de pertencimento, permanece, no entanto,
desconhecida. À afirmativa de Pedro de que “tinha começado a desunião da família”
(2004, p. 26), André deseja replicar que
eu também tinha coisas para ver dentro de mim, eu poderia era dizer “a nossa
desunião começou muito mais cedo do que você pensa, foi no tempo em que a
fé me crescia virulenta na infância e em que eu era mais fervoroso do que
qualquer outro em casa” eu poderia dizer com segurança, mas não era a hora
de especular sobre os serviços obscuros da fé, levantar suas partes devassas, o
consumo sacramental da carne e do sangue, investigando a volúpia e os
tremores da devoção (2004, p. 26, grifos nossos).
20
Vale ressaltar que esta não é a primeira manifestação do não-dito. Conforme destacamos no capítulo 2,
p. 46, esse silenciamento diante do irmão aparece quando começam a dialogar: “(...) e foi uma onda curta
e quieta que me ameaçou de perto, me levando impulso quase a incitá-lo num grito “não se constranja,
meu irmão, encontre logo a voz solene que você procura, uma voz potente de reprimenda, pergunte sem
demora o que acontece comigo desde sempre, componha gestos, me desconforme depressa a cara, me
quebre contra os olhos a velha louça lá de casa”, mas me contive” (NASSAR, 2004, p. 17, grifos nossos).
124
21
A respeito disso, ver sessão 3 do Capítulo 3, “Ironia e implosão: as lacunas da razão cartesiana”.
125
atuação: ele está no entrepalavras, visto que “o silêncio não se reduz à ausência de
palavras. As palavras são cheias, ou melhor, são carregadas de silêncio. Não se pode
excluí-lo das palavras assim como não se pode, por outro lado, recuperar o sentido do
silêncio apenas pela verbalização” (ORLANDI, 1995, p. 69). Assim, não é somente
dando espaço a uma palavra que se silencia outra; mais do que isso, é a seleção de
palavras que nos mostra, também, a impossibilidade do silêncio ausente de significação.
Ainda segundo Eni Orlandi, o silêncio é a “iminência”, visto que “o silêncio do
sentido torna presente não só a iminência do dão-dito que se pode dizer mas o indizível
da presença: do sujeito e do sentido.” (1995, p. 72). O sujeito e o sentido são
construídos a partir do dizível, que escolhemos chamar de “dito”, e o indizível, que
optamos designar por “não-dito”. Em ambas as manifestações, não só o discurso como
também as personagens são construídos a partir de renúncias. Decifrados em seus
significados por Nassar, elas passam a ser cifradas nessas duas narrativas, ganhando
significantes – enfim, um signo linguístico a ser novamente decifrado pelo seu leitor.
Duas são, novamente, as histórias contadas: a das trajetórias de suas personagens e a do
silêncio nascido dessas mesmas trajetórias. Em ambas, o exílio físico – a fuga de André
e a reclusão do chacareiro – torna-se exílio discursivo – o não-dito a Pedro e o não-
dito/não feito à jornalista.
Tratando da violência e, também, do silêncio, o que não deixa de ser uma forma
de se violentar, Ronaldo Lima Lins, em Violência e literatura, recupera Adorno e
sugere que “a única forma realmente enfática de protesto seria o silêncio. É este um
instante em que toda a racionalidade se deixou derrotar, de nada adiantando a ação e a
militância para lutar a favor dela” (1990, p. 32). Deve-se destacar, nesse sentido, que o
silêncio funciona como um instrumento dialético: ao mesmo tempo em que serve como
uma forma de protesto, serve também como uma forma de mudez. Essa dialética,
porém, não possui uma síntese; pelo contrário, essa é uma dialética sem síntese, em que
a mudez funciona como um protesto ao mesmo tempo em que o protesto funciona como
uma mudez.
(...) se o último séculos assistiu à eclosão de uma literatura atenuante e
perseverante (uma literatura que, aconteça o que acontecer, acredita na
transformação do mundo), assistiu também a uma criação literária cada vez
mais sufocada pelas próprias palavras e cada vez mais descrente das palavras
– uma literatura, enfim, inclinada ao silêncio da abstração (LINS, 1990, p.
32).
Sufocada, então, pelas palavras, ou pela limitação que cada palavra sugere, por
calar as tantas outras possíveis e por ter o silêncio em seu próprio significado, como
128
especula Eni Orlandi, a literatura inclina-se ao silêncio como forma de significar. Desse
silêncio, nascem o sujeito e o sentido, bem como o sentido do sujeito. Nesse trajeto,
percorrido por Raduan Nassar por meio da transgressão e do anacronismo, vê-se, então,
a engrenagem da linguagem.
Nenhuma narrativa é natural, presidem sempre ao seu aparecimento uma
escolha e uma construção; é um discurso e não uma série de acontecimentos.
Não existe narrativa “própria” a par das narrativas “figuradas” (como
também não há sentido próprio); todas as narrativas são figuradas
(TODOROV, 1979, p.71).
consciência crítica, a duvidar dele. Aproxima-se, com isso, de uma espécie de suicídio:
fazendo-se consciente da negação, sabe que caminha, em um futuro próximo, ao
encontro da autonegação.
O não-dito, portanto, que aparece na forma “eu poderia ter dito”, insere-se nas
duas narrativas, ressaltando a existência, ainda que muda, de uma outra voz, que poderia
ter sido dita, mas não foi. No plano do enunciado, o não-dito existe apenas como
possibilidade; já no da enunciação, a sua manifestação é realizada. O leitor, que tem
acesso tanto ao dito quanto ao não-dito, tem em mãos mais uma ferramenta para a
construção daquela realidade, de maneira a se esquivar das verdades prontas, encerradas
em si. A voz do não-dito, então, representa uma consciência pluripessoal, capaz de
trazer não apenas um narrador que dá voz aos diversos sujeitos, identificado por
Auerbach como componente de um processo moderno, mas principalmente um narrador
que traz ao leitor a possibilidade de participar ativamente da narrativa, pois será ele,
também, um construtor de realidades. Das diversas vozes, aquela inaudita se manifesta
como forma de ressignificação das narrativas.
Hannah Arendt, ao longo de seu percurso pela filosofia e também fora dela,
tocou em muitos temas frutíferos da modernidade, que se aproximam de reflexões a
130
respeito dos conflitos de uma sociedade que se estrutura a partir do bem capital. Para
isso, ela cruza com muitas teorias revisitadas e reafirmadas que se originam de
Immanuel Kant e Martin Heidegger, buscando, nesse contexto, uma inclinação à
compreensão do homem como ser social e, então, dotado de verdades e dogmas. Sua
leitura, porém, orienta-se por uma redefinição de algumas atividades, tais como o
pensar, o querer e o julgar. Assim como o eu lírico de Manoel de Barros em “Infantil”,
ela entende que não precisa “fazer razão” como se espera que seja feito: o menino não
pode ser comido pela onça e um caminhão passar por dentro de seu corpo; ou, em
Arendt,
22
Embora Hannah Arendt advirta, na introdução do livro A vida do espírito, que “não pretendo nem
ambiciono ser ‘filósofo’” (1995, p. 5), iremos designá-la por esse título em virtude da concepção de um
livro que, inevitavelmente, propõe reflexões filosóficas sobre o comportamento humano e revisita
filósofos incontestáveis como Kant e Heidegger.
131
aqui por meio de Octavio Paz, mas que podem ser explicitamente enumeradas por Ítalo
Calvino:
somos o que os homens sempre foram – seres pensantes. Com isso quero
dizer apenas que os homens têm uma inclinação, talvez uma necessidade de
132
pensar para além dos limites do conhecimento, de fazer dessa habilidade algo
mais do que um instrumento para conhecer e agir. (1995, p. 11)
Enquanto, para Kant, o pensar tem como matéria aquilo que está além do
conhecimento e que projeta um fim, para Arendt a razão não se restringe a isso. Para
ela, “a distinção entre as duas faculdades, razão e intelecto, coincide com a distinção
entre as duas atividades espirituais completamente diferentes: pensar e conhecer; e dois
interesses inteiramente distintos: o significado, no primeiro caso, e a cognição, no
segundo” (1995, p. 13). A razão, nesse sentido, tem como atividade espiritual o pensar e
como interesse o significado, distinguindo-se, portanto, a atividade do intelecto, o
conhecer, cognitivo e, por fim, prático.
A filósofa salienta que aquela conhecida verdade, abraçada pelos gregos por seu
caráter finito, parte-se em correntes de veracidades. A noção de progresso ilimitado,
então, alimenta a infinitude, projetando sempre à frente o melhor. Esse futuro se torna,
nesse viés, inalcançável e garante à ciência a permissão do erro no presente: “toda a
ciência ainda se move no âmbito da experiência do senso comum, sujeita ao erro e à
ilusão corrigíveis” (1995, p. 43). Nesse cenário especulativo, “a principal fraqueza do
senso comum (...) sempre foi não possuir as salvaguardas inerentes ao mero
pensamento, a saber: sua capacidade crítica que, como veremos, guarda em si uma forte
tendência autodestrutiva” (1995, p. 44). Essa salvaguarda, cuja autodestruição registra o
133
Nessa abordagem, a filósofa alemã evidencia que não há verdade além da factual
e, portanto, coercitivamente limitada, distanciando-se, então, na verdade irrefutável.
Esse questionamento servirá de gancho para outra revisitação: “a necessidade da razão
não é inspirada pela busca da verdade, mas pela busca do significado. E verdade e
significado não são a mesma coisa” (1995, p. 14). Abandonando o compromisso com a
lógica, a razão deixa de ser concebida como cartesiana e admite em sua construção o
não compromisso com a verdade, e sim com as verdades – para Arendt, sempre factuais.
Inexaurível, é o pensar – relacionado não à busca da verdade do conhecimento, e sim à
busca do significado do pensamento – que constitui ao ser humano a sua condição
interrogante:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
23
Ainda que a intertextualidade não seja uma de nossas ferramentas de análise, achamos relevante a
recuperação integral do poema pessoano, visto que a relação que se quer empreender – entre razão e
emoção – faz-se evidente apenas em uma leitura completa.
136
Há, no poema de Pessoa, três dores: a sentida pelo eu lírico, a fingida pelo eu
lírico e a sentida pelo leitor. Nesse fingir completamente, tem-se uma outra dor, que
alcança o estatuto da verdade. Da mesma forma, o personagem nassariano de Um copo
de cólera alcança, também, uma outra verdade, reinventada na encenação e no
fingimento daquele embate. Quando afirma sentir a dor que realmente lhe doía, o
narrador reconhece-se como autor daquela dor, consciente de que, sempre fingindo,
sabia que tudo aquilo era verdadeiro. É exatamente por ser verdadeiro que lhe atinge
diretamente, na medida em que coloca em xeque a sua atitude manipulativa e, por isso,
autoritária.
Na última estrofe do poema pessoano, o eu lírico assinala o domínio da emoção
sobre a razão: é o comboio de corda que se chama coração que gira, nas calhas da roda,
a entreter a razão. Subverte-se, assim, a divisão ocidental estabelecida entre a razão e a
emoção. Da mesma forma, Raduan Nassar recupera esses pares, atualizando a sua
relação: é exatamente a capacidade de ordenamento das formigas que será responsável
pela instabilidade do chacareiro, que, avesso àquela perfeição, assume em si a mistura
alquímica da emoção à razão.
A jornalista, representante dessa lógica racional, recupera a necessidade da
ordem, embora envolva ruptura, e será esta a sua arma para se opor à figura do
chacareiro: “abastecendo com lenha enxuta o incêndio incipiente que eu puxava (eu que
vinha – metodicamente – misturando razão e emoção num insólito amálgama de
alquimista)” (NASSAR, 2009, p. 39). Ela, “me atirando de novo a razão na cara” (2009,
p. 64), afirma ser ele a representação momentânea do fascismo,
se metera a regular também o mercúrio da racionalidade, sem suspeitar que
minha razão naquele momento trabalhava a todo vapor, suspeitando menos
ainda que a razão jamais é fria e sem paixão, só pensando o contrário quem
não alcança na reflexão o miolo propulsor, pra ser isso é preciso ser
realmente penetrante (2009, p. 35, grifos nossos).
A razão, então, não se porta de forma fria e desvinculada da paixão, tão caras
para o chacareiro que, em seu amálgama, funde razão e emoção. A jornalista, nesse
137
que André, em Lavoura arcaica, entende haver na efemeridade uma semente de saúde e
na saúde uma semente de efemeridade, o chacareiro, em Um copo de cólera, diz ser
impossível conceber a razão sem a incorporação das paixões, não admitindo, assim, a
“pocilga que está aí”, mas instaurando, ali, uma nova ordem. Sendo, ao fim, uma
(des)ordem, a razão proposta pelo chacareiro faz-se crítica e nega a si mesma: embora
ele não admita a razão desincorporada de suas paixões, é contra a voz da paixão – a da
jornalista, ordeira, racional – que ele edifica todo o seu discurso. Se questionado, no
entanto, ele poderia dizer em sua sintaxe também lírica: “só queria inventar uma poesia/
Eu não preciso de fazer razão”.
139
5 CONCLUSÃO
Essa atualidade dos temas trazidos por Raduan Nassar recupera o espelho
mágico que sugerimos ao fim da introdução desta dissertação: rompendo com o seu
tempo, o escritor muda o mundo e se insere nele como uma cicatriz. Impossível de ser
anulada, faz-se uma eterna marca, que não deixa esquecer o passado e, nisso, apresenta-
se presente no futuro. Nessa marca, a produção do escritor aproxima-se do conceito de
contemporaneidade segundo Giorgio Agamben em “O que é o contemporâneo?”, texto
integrante do livro O que é o contemporâneo? e outros ensaios:
Em toda a sua obra, como buscamos assinalar, Nassar propõe diversas rupturas,
que vão da tradição estrutural que pensa a forma romanesca e suas variações à tradição
temática que revisita as relações afetivas à luz do incesto, da infertilidade, do desabrigo.
140
Esse retorno à tradição para romper com o presente, então, é uma das grandes
marcas das obras nassarianas, é um mergulho nas trevas do presente, é escrever sem
conseguir desabitar a sombra:
(...) contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para
nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem
deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é,
justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever
mergulhando a pena nas trevas do presente (AGAMBEN, 2009, p. 63).
Em Lavoura arcaica, seu primeiro e mais repercutido livro, o escritor traz à tona
uma temática ultrapassada, mas com um traço moderno: ao tratar da composição da
família tradicional – cujo patriarcalismo se faz como peça-chave –, a crise instaurada
pelo personagem André, também narrador de seu próprio conflito, denuncia a cisão da
identidade humana. Quando o personagem assume que a única forma possível de se
manter como parte da família é instituindo o incesto como realidade cotidiana, todas as
certezas da casa, construídas por Iohána em torno da mesa dos sermões, colocam-na
abaixo. Junto a casa, implode também a objetividade do romance tradicional, em que a
voz do narrador assume o dito da narrativa: pelo não-dito, André deixa seu conflito mais
claro ao leitor; pelo não-dito, Iohána assume a desunião da família; pelo não-dito, Pedro
entende a falência da velha ordem; pelo não-dito e pelo não-nome, a mãe frutifica essa
implosão; pelo não-dito, Ana evidencia a não edificação dos ensinamentos do pai.
O único conto que não assume o mesmo foco é o que dá nome ao livro, “Menina
a caminho”; há, nele, outra espécie de ruptura: como em uma câmera cinematográfica, o
narrador acompanha os passos e o percurso da menina, que flana pela cidade
interiorana. As percepções dela são, por meio do discurso em terceira pessoa,
repassadas ao leitor, que capta as suas emoções e projeta sobre elas o olhar inocente. A
caminho, a menina vai se formando como personagem e, emprestando a sua lente ao
narrador, traz ao leitor a sensação de ler e ver a sua narrativa, de modo a participar
ativamente da construção de sentidos.
Nesse percurso entre as três obras de Raduan Nassar, buscamos, a partir dos
vieses tradição e ruptura, entender a narrativa do escritor de Pindorama, assumindo o
lugar daqueles que, eventualmente – ou cotidianamente –, interessam-se pela obra
nassariana. A cicatriz da qual partimos inicialmente – que habitava o corpo do texto e o
corpo do homem – revelou-se, portanto, como uma marca do escritor: o seu espaço na
literatura brasileira, embora queira ter feito dessa cicatriz menos visível, comporta-se
como as dos filhos de Caim, de André, do chacareiro, que a levam na testa. Nessa
marca, a construção dos personagens se origina da desconstrução dos narradores, que,
diante do outro, implodem suas certezas e instauram-se em dúvidas: André se faz André
ao negar Iohána, assim como o chacareiro se faz ordeiro ao negar a velha ordem, em um
dialogismo que pressupõe mais críticas que certezas. É nesse sentido que podemos
reafirmar a contemporaneidade de Nassar em sua obra, visto que
A lavoura que fica clara ao leitor não é aquela arcaica, que dá título ao livro, e
sim aquela anacrônica: entre o semear e o colher, o tempo passado pode ser o da
ruptura, o do pensamento, o da razão crítica. E é por isso que as palavras, tão bem
semeadas pela mãe, são colhidas por André como estratégias de transgressão:
emprestando a sua voz à narrativa, é no livro-lavoura que ele semeia novas palavras, a
serem colhidas pelo leitor. Dessa mesma forma o chacareiro empreende o seu esporro,
trazendo à superfície do copo a sua cólera e fazendo-a transbordar por meio do gozo do
texto: escorrendo pelo copo e pelo corpo, as palavras do chacareiro procuram uma nova
ordem em meio à desordem afetiva e racional à qual estava exposto. E é somente
transformando-as em narrativa que ele consegue estabelecer uma (des)ordem, já
entendida, pelo leitor, como dupla.
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