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Entre a mamadeira e a camisinha
Gustavo Ioschpe

No momento em que escrevo essas linhas, uma jovem pro-


fessora, de traços suaves e cabelos encaracolados, está detida em
uma penitenciária americana - e por lá ficará mais alguns anos.
Há pouco tempo deu a luz a uma criança, mas perderá boa parte
de seu desenvolvimento por estar encarcerada. Seu crime, como
diz o título de um livro recentemente escrito por ela e o pai de
seus filhos, é um só: o amor. Um amor especial, é verdade, já que
a professora está na casa dos 30 e o Ricardão - aliás, no caso,
Ricardinho - começou sua carreira de Casanova aos 13 anos de
idade. Por sua tenra idade, a relação de ambos é vista como cri-
minosa pela lei, que considera qualquer relação com menores de
16 anos estupro (no Brasil, a idade é de 14 anos).
Agora, não querendo entrar aqui nos meandros da fisiologia
sexual púbere mas, pelo parco conhecimento adquirido ao longo
dos anos habitando um corpo masculino, fica difícil imaginar um
homem praticando o ato sexual contra a sua vontade. Todo mun-
do sabe que, mesmo em época de Viagra, é preciso que haja uma
certa vontade do criminoso para que o delito, digamos, materia-
lize-se. Fosse o caso de um professor tendo uma relação com
uma aluna, vá lá, podia haver a dúvida quanto à consensualidade
do negócio, mas quando a "vítima" é um homem fica difícil de
acreditar.
Os moralistas podem dizer que uma professora ter um rela-
cionamento com um aluno adolescente é um ultraje e deveria ser
punido com a cadeira elétrica. Tudo bem, cada um com a sua opi-
nião. (Não sei qual seria a reação na sua escola, aliás, mas na
minha construiríamos uma estátua ao enfant terrible e lhe daría-
mos condecorações de Honra ao Mérito). Cada um tem o direito

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de achar moralmente incorreto o que quiser. Eu, por exemplo, me podemos - aliás, somos obrigados - alistar-nos na'tIuIiiê dos
oponho moralmente ao pessoal que deixa crescer a unha do min- que se fantasiam de azeitona e temos a obrigação de não,sG,iruvá.
dinho pra tirar cera do ouvido ou as mulheres celulitosas que des- dir o território alheio em caso de guerra, como matar o inimige,
filam em biquínis fio-dental, mas isso não dá a mim ou a qualquer Precisamos de uma certa idade pra abrir conta bancária, praser
outra pessoa o poder de prendê-Ias. Só quem prende é o Estado, candidato a qualquer coisa - até pra ir a show de rock já estão
apoiado não nos gostos ou opiniões de beltrano ou sicrano, mas colocando limite de idade, como se fosse evento destinado ape-
no que diz a lei. E a lei manda que se prendam aqueles que repre- nas a ·senhores em cadeira de rodas. Menores de idade também
sentam um perigo tão grande à sociedade a ponto de merecerem não podemjogar na loteria, casar-se ou entrar em contrato de tra-
essa punição cruel que é a perda. da liberdade. balho. O artigo 5° do Código Civil brasileiro é taxativo, ao qua-
Assim, quando o Estado age com todo seu poder coercitivo lificar como "incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida
para prender essa professora tristemente apaixonada por um civil", os menores de 16 anos. Todo esse aparato legal, claro, é só
púbere, está dizendo que seu crime é da mesma natureza - pas- a ponta do iceberg.
sível de aprisionamento - de um assassino ou um ladrão. E que O grosso mesmo do rebaixamento do jovem a cidadão de
esse menino, por extensão, é tão indefeso' e precisa de tanta pro- segunda categoria acontece no dia-a-dia. Está na cara do vende-
teção quanto as vítimas de um assalto ou homicídio. Tudo isso, dor que faz não lhe ver quando você entra em uma loja pra com-
claro, por apenas um fator: sua idade. A lei o vê como uma víti- prar qualquer coisa que não seja gibi e camiseta, no gesto
ma, cujas vontades devem ser ignoradas - porque, nessa idade, condescendente e patemalista do professor que despreza sua crí-
não podem estar "certas"(e os desejos, relevados. E quando este tica ou sua raiva como sendo manifestações incontroláveis de
menino indaga, como o poeta, "Que pode, pergunto, o ser amo- uma idade assim mesmo, esquizofrênica, irracional. Está na ati-
roso / sozinho, em rotação universal, senão / rodar também, e tude de seus pais que, muitas vezes frustrados com a sua própria
amar ?", os tribunais lhe respondem: "crescer. Só reconhecemos impotência e.mediocridade em seus respectivos mundos,resol-
o amor depois dos 16." vem manifestar sua autoridade tripudiando sobre as vontades
Longe de ser uma exceção, o caso acima é um dentre tantos dos filhos (descabidas), seus atos (inconseqüentes), suas amar-
outros em que a lei - a mesma lei que proíbe discriminação con- guras (coisa da idade) e seus sonhos (sempre ridículos na medi-
tra sexo, raça ou cor - relega o jovem a condição de infantilói- da em que não concordam com os sonhos deles). Está no olhar
de inconseqüente, portanto desprezível e regulável. A tônica incrédulo daqueles que se recusam a levar sua opinião à sério por
desta relação entre o mundo adulto e o adolescente é meramente causa de sua pouca idade, no palavrório adulcorado daqueles que
utilitária: quando lhes convêm somos, jovens, já quase adultos e rejeitam suas paixões por ser ainda "muito novinho". Está nas
maduros que chega para tomar decisões e sair aí vida afora manchetes e artigos das revistas destinadas a jovens, um amon-
matando um leão por dia. Em outras horas, somos crianças inde- toado de asneiras e futilidades, nos programas televisivos desti-
fesas e irresponsáveis, merecedoras de babador, tutela especial e nados aos adolescentes que os tratam como portadores de
muitas restrições. alguma disfunção cerebral, nos fabricantes das roupas e acessó-
Assim é que, aos 16 anos, já somos considerados aptos a rios esdrúxulos destinados ao "público jovem" - como se idade,
escolher os destinos da nação em eleições, mas ainda não pode- afinal, formasse uma massa coesa de robôs idênticos e não um
mos pegar o carro emprestado pra comprar chiclete na padaria. grupo de seres humanos únicos, individuais. A discriminação,
Até os 21 anos, não podemos cruzar as fronteiras nacionais em afinal, está solta por aí. Só não vê quem não quer. Caberia, então,
viagens de turismo sem autorização de nossos pais, mas aos 18já tentar entender o porquê deste preconceito.

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o preconceito contra jovens tem, afinal, algo de particular. são como flores que brotam de uma hora pra outra, mas sim o
Pois os preconceitos são, via de regra, contra aquilo que é dife- resultado de um processo de evolução contínuo.
rente de nós. Ainda que odioso e repulsivo, podemos entender o Mas, em vez desse exercício árduo de usar bolas de cristal
germe da discriminação no estranhamento que sentimos quanto para descobrir o que passa pela cabeça dos mais velhos e, inutil-
mente, tratar de mudá-los, seria mais rentável entender o que pas-
ao diferente. O diferente é desconhecido, nos ameaça; causa uma
sa pela cabeça dos jovens e quais são seus comportamentos e
certa insegurança. Quando temos a oportunidade de conviver
talvez ajudar a entender como é que este jovem discriminado vai
com o diferente e conhecê-lo como pessoa, o preconceito se vai.
se transformar, dali a algumas décadas, no carrasco dos jovens de
Quando mantemos distância, freqüentemente estamos dando
então. Entramos, assim, num terreno perigoso: o de parecer atri-
terra fértil para que o preconceito brote e cresça. Por isso o pre- buirà vítima as causas do preconceito que sofrem, quando este,
conceito contra jovens é peculiar: ao contrário da maioria das na verdade, vêm das cabeças dos que lhe agridem. Não é isso,
outras categorias, o algozjá foi vítima. obviamente, o que desejamos. Mas como, nesse caso, vítima e
Quer dizer: um branco nunca foi negro, um nazista (espera- perpetrador são a mesma pessoa, apenas separadas por um perío-
se) nunca foi judeu, um homofóbico não é homossexual, o do de tempo, talvez haja alguma possibilidade de fazer os mais
machista nunca foi mulher e o jovem jamais foi velho. Assim, velhos se lembrarem de que um dia tambémjá foram jovens - e
desses podemos dizer que sua discriminação - ainda que hor- tambémjá foram eles próprios discriminados. Há algo, então, que
renda - abre uma certa possibilidade de compreensão lógica: O possamos fazer para acabar com esse ciclo? Temos alguma par-
que dizer, então, do adulto que discrimina o jovem - tendo ele cela de responsabilidade na perpetuação desse modelo?
mesmo passado por fase semelhante há não muito tempo? Aí fica Sim, claro que sim. Em grande parte, porque os jovens acei-
complicado. tam a posição de subserviência, de ignorância, de despreparo, de
Pede ser o caso de puro recalque de quem inveja aqueles que inconsequência e de "coitadinho" em que são colocados.
têm a vida toda pela frente. Pode ser a tentativa, de quemjá viveu Cada vez que um estudante fica quieto quando um professor,
e sofreu muito, de proteger os mais novos de um mundo para o indevidamente, humilha-o; cada vez que um filho baixa a cabe-
qual, julgam eles, não estamos preparados. Pode ser, simples- ça (ou arreia as calças) para receber o castigo proveniente do
mente, o resultado de uma mente problemática que, em sua infe- nada que seus pais inventam; cada vez que um comprador sai da
rioridade, discrimina tudo aquilo e aqueles que não podem reagir loja sem dizer um piu ao ser ignorado ou maltratado por vende-
- como são, na sua desigualdade de poder, as relações de pais e dores e gerentes; cada vez que um motorista, ou mesmo um
filhos, professores e alunos. Pode ser - e essa é difícil de acredi- pedestre, baixa a crista pra "otoridade" e se deixa humilhar; cada
tar - que o mundo tenha mudado tão depressa que os mais velhos vez que um eleitor deixa seu representante fazer pouco caso das
acreditem mesmo que os mais novos não entenderiam nada, e por demandas legítimas de sua idade; cada vez que um leitor compra
isso devam ser escudados. Pode ser, finalmente - e essa seria a uma daquelas revistecas destinadas ao "público jovem", inunda-
pior das situações - que o preconceito fosse o resultado de uma do na sua própria baba burra e emburrecedora; cada vez que
descoberta racional dos adultos de que, quando jovens, eram mes- alguém em pleno uso de suas faculdades mentais deixa de expe-
mo imbecis e, agora que cresceram, podem notar isso e portanto rimentar o que quer que seja, porque alguém, imbuído da sabe-
crêem ser os jovens igualmente limitados e merecedores de ferro doria suprema e inquestionável a si outorgadas a partir de uma
e fogo, para que evoluam o mais depressa possível. O que, diga- certa idade; cada e toda vez que acontece qualquer uma dessas, o
se, é difícil de levar a sério, já que personalidades e intelectos não jovem está vendendo a sua dignidade, entregando sua respeita-

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bilidade, conferindo ao opressor o direito de pisoteá-lo, diminuí- O fundamental é ter em mente, sempre, que tanto nos
10, relevá-Io, esquecê-lo. Está, assim, entregando, de mão beija- momentos em que estamos lá, tratando de crescer e de nos meta-
da, a chave da cela em que será preso.E o faz, via de regra, porque morfosear, quanto nos momentos mais difíceis, quando baixa-
assim quer - e não porque precisa. mos a crista e entregamos, temporariamente, os pontos e somos
O aluno puxa-saco quer a nota boa; o filho do pai abusivo ainda e sempre pessoas. Seres humanos com grandezas e fraque-
quer, talvez, o conforto material que este lhe proporciona; a víti- zas, que devem ser ouvidos, respeitados, oxalá compreendidos e
ma da lei opressiva não suporta pagar sua dignidade com um dia incluídos na vida de verdade.
de cadeia; o eleitor tem preguiça de formular um projeto melhor; Quando vêm lhe passar a mão na cabeça, com olhares bene-
o leitor de baboseiras quer, suponho, dar umas férias pros seus volentes e caras de um desprezo comiserado, na tentativa implí-
neurônios. Todos poderiam agir de forma diferente, poderiam cita de rebaixá-Io permanentemente à condição de vítima, de
recusar o lixo, o maltrato, o desprezo que lhe é imposto. Pagari- quem precisa de ajuda, de quem tem um grande futuro mas uma
am um preço? Pagariam, sim, que na vida, fora os sonhos, nada porcaria de presente - esses são os momentos que não podemos
é de graça. Mas é só pagando esse preço que o jovem pode fazer deixar passar em branco. São os momentos de recusar a piedade,
a sua parte para que viva de forma a ser'respeitado, aceito. Pode a benevolência, o afago.frio e insincero e pegar o chapéu e partir
também ficar esperando que os mais velhos finalmente acordem pra estrada à procura de um abraço amigo ou, quem sabe com
de seu estupor e passem a reconhecer o valor dos mais novos, ou sorte, de uma professora simpática. Como disse outro poeta, o
pode esperar o tempo passar e descontar todas suas frustrações dos Anjos:
naqueles que serão mais jovens, mais indefesos, mais impoten- "Se a alguém causa inda pena a tua chaga
tes do que ele próprio. E isso todo mundo já sabe onde vai dar. Apedreja essa mão vil que te afaga
A luta, assim, é necessária. Mas não uma luta agressiva ou Escarra nessa boca que te beija!"
porra-louca, mas uma luta, como dizia o Che, em que não se per-
'II ca a ternura jamais, até por causa do período em que passa o
I! jovem. A adolescência, na verdade, é um período complicado em 1 ;

que todos esperam quase tudo de você. Esperam que saiba estu-
dar e se preparar para o futuro, mas ao mesmo tempo sem deixar
de aproveitar as festas que não voltam mais. Esperam que tome
responsabilidades, mas que venha correndo pro colo materno
quando a barra ficar pesada demais. Esperam, enfim, que o
jovem saiba dividir-se e locupletar-se entre a parte que deve ser
adulta e a que deve ser criança, e que consiga intercambiá-las
numa fração de segundo. Não é das tarefas mais fáceis. A única
saída honrosa - pelo menos a única que conheço - é ser hones-
to. Honesto consigo mesmo e com os outros. Saber quando é hora
de chamar na chincha e dizer "deixa comigo" e quando chega o
momento de admitir as limitações e parar nos boxes pra pedir
ajuda, que ninguém é Super Homem (e até os Super Homens têm
I lá a sua kriptonita). Significa, enfim, se respeitar. '"
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