Você está na página 1de 15

LITERATURA INFANTO-JUVENIL E EDUCAÇÃO: OLHARES

SOBRE O TEXTO LITERÁRIO NA FORMAÇÃO DO LEITOR

CHILDREN'S LITERATURE AND EDUCATION: GLANCES ON


THE LITERARY TEXT IN THE READER’S TRAINING
Gilliale de Souza Jeremias1

RESUMO

Partindo dos estudos e pesquisas nas áreas dos Estudos Literários e da Educação, neste artigo
buscamos a intersecção entre diferentes domínios que pensam e tomam o texto literário
infanto-juvenil como objeto de análise no processo de formação do leitor. Através dos tempos
e dos anos escolares, percebemos que as obras literárias passam pelas mãos de leitores que
estão inseridos cada vez mais em ambientes virtuais e fazem uso de diferentes plataformas
para o exercício da leitura que também foi ressignificada em tempos modernos. Desse modo,
buscamos discutir a importância do contato com o texto literário infantil e juvenil na
formação do leitor no século XXI através de diferentes meios e práticas de leitura em
ambiente escolar e fora dele.

Palavras-chave: Literatura Infanto-Juvenil, Educação Contemporânea, Formação do Leitor.

ABSTRACT

Starting from studies and research in the areas of Literary Studies and Education, in this
article we seek the intersection between different domains that think and take the children’s
literary text as an object of analysis in the process of reader’s training. Through the times and
school years, we realize that literary works go through the hands of readers who are
increasingly inserted in virtual environments and make use of different platforms for the
exercise of reading that was also reframed in modern times. In this way, we seek to discuss
the importance of contact with the child and youth literary text in the formation of the reader
in the 21st century through different means and practices of reading in the school
environment and outside of it.

Key words: Children's literature, contemporary education, training of the reader.

INTRODUÇÃO

O texto literário já foi tomado como objeto de análise em diversas áreas como a
Linguística, a Psicologia, a História e a Educação. A própria Literatura, por sua vez, não se
14
Página

1
Licenciado em Letras (Habilitação em Português e Inglês) pela Universidade Estadual “Júlio de Mesquita
Filho”, especialista em Educação e mestrando em Estudos Literários.

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
resume aos campos literários e aos seus admiradores e pesquisadores, mas abrange infinitos
segmentos que a pensam e nos deixam ainda mais intrigados com tamanha pluralidade e
significação dos seus constituintes.

Através dos tempos, o homem, por meio de imagens e símbolos, vai expressando seus
pensamentos e significando através de diferentes artefatos que tem ao seu dispor, como a
tinta, a pedra, o som, a palavra etc. São recursos que o possibilitam comunicar-se com o
mundo exterior e perpetuar concepções de mundo. A literatura, por meio da palavra, assim o
faz. Livros, textos e postagens apresentam conteúdos tão particulares, recortes de um espaço
e tempo singulares que desvelam ao leitor um mar de possibilidades sem sair do conforto do
seu assento. Com a literatura infanto-juvenil não é diferente. Inicialmente adaptada dos
moldes da literatura adulta e logo após criada especificamente para o mundo da criança e do
jovem, a literatura infanto-juvenil se desenvolve a partir do momento que a atenção se volta
para a ciência da criança e do adolescente e surge a necessidade de um texto que fale
diretamente com eles. O texto literário, desde então, é repensado em seus constituintes
formais e substanciais. Surge a oportunidade de um mundo totalmente novo em que o jovem
pode se aventurar, explorar seus interiores e até mesmo recriá-lo. Por essas oportunidades de
“viagem” que a literatura infanto-juvenil entra no âmbito escolar e atua de modo individual
no processo de formação do leitor.

Buscando dialogar os conceitos de texto literário na Literatura infanto-juvenil e a


formação inicial do leitor, neste texto procuramos discutir e refletir as relações
correspondentes entre texto e leitor que, conforme Wolfgang Iser (1996), surgem das lacunas
do texto que são preenchidas pelo ato da leitura e requerem o poder imaginativo daqueles
que se predispõe ao ato de ler. Assim, vemos nos textos literários infanto-juvenis e no ato da
leitura (seja a leitura no ambiente escolar ou fora dele) importantes ferramentas no processo
de formação do leitor.

LITERATURA INFANTO-JUVENIL: DA ADAPTAÇÃO À CRIAÇÃO

O texto destinado ao público jovem nem sempre se apresentou da maneira que o


15

conhecemos hoje. A literatura infanto-juvenil começou a estabelecer-se no início do século


Página

XVIII, mais precisamente nos últimos anos do século XVII, com a publicação dos Contos da

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
Mamãe Gansa de Charles Perrault. Segundo Oliveira (1958), as fábulas de Esopo
inauguraram textos que conseguiam alcançar a mentalidade infantil, mas apenas em 1697,
com a publicação dos contos de Perrault, esse texto passa a dialogar diretamente com a
criança. Antes disso, os textos literários eram destinados ao mundo do adulto e suas
consequentes implicações. Ao jovem, quase nada existia em termos de literatura escrita até
então, restringindo-o às histórias orais populares.

A partir do momento que as preocupações sociais começam a se voltar para a criança


e ao jovem, os indivíduos pertencentes à tenra idade começam a desempenhar um novo papel
na sociedade e atraem novos olhares sobre si, “motivando o aparecimento de objetos
industrializados (o brinquedo) e culturais (o livro) ou novos ramos da ciência (a psicologia
infantil, a pedagogia ou a pediatria) de que ela é destinatária” (LAJOLO; ZILBERMAN,
1988, p. 17). É nesse período que surge a necessidade de uma literatura destinada à criança,
pois os interesses da sociedade estavam finalmente apontados para ela. A fundamentação
dessa literatura é, inicialmente, uma adaptação dos moldes adultos ao contexto infantil.

Os materiais pré-existentes, os textos literários destinados ao público adulto, são


tomados e servem de componentes básicos dos primeiros textos infantis. São narrativas que
vão sendo apropriadas à realização do texto para a criança por serem de caráter fantástico e
moralizante em sua maioria, mas não designam ainda uma literatura, digamos, exclusiva do
mundo infanto-juvenil. A adaptação do texto do mundo adulto para a realidade da criança e
do jovem, neste período, abre caminhos para a arte e a ciência daquele universo. São livros,
quadros, pinturas e pesquisas exclusivos daquele contexto que iniciam um período de intensa
produção.

Seguindo regimentos católicos que predominavam nas instituições daquele período,


a escola e seus conteúdos eram ministrados para pessoas nobres e participantes do corpo
ministerial religioso. A cultura erudita se servia da ordem moral. Com a valorização da
infância, o texto literário passa a contribuir para a formação do indivíduo com fins
primariamente pedagógicos e que condicionavam a criança aos padrões sociais quase
catequizantes de sua época. O espaço para a interpretação construtiva e formadora viria logo
16

após esse momento em um período que as adaptações textuais serão questionadas e


Página

reavaliadas.

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
A ludicidade da literatura infanto-juvenil vai tomando espaço quando os estudos em
Psicologia e Psicanálise infantil e juvenil são desenvolvidos e acompanham os conceitos da
fruição da leitura para a formação do indivíduo. Tais concepções se propagam com o advento
dos jornais (folhetins) na França do século XIX e a produção em série da literatura infanto-
juvenil difundida para fins ainda pedagógicos, mas finalmente tomando caminhos mais
amplos através de seus leitores.

No contexto brasileiro, Robinson Crusoé (1885) e Viagens de Gulliver a terras


desconhecidas (1888) são alguns exemplos dos primeiros textos que marcam um período de
intensa produção literária destinada aos jovens, embora Oliveira (1958) aponte o livro Contos
da Carochinha de Alberto Pimentel em 1896 como o trabalho inicial deste período seguido
por A filha da floresta de Thales Castanho de Andrade em 1918. Divergindo entre críticos e
teóricos da área, as adaptações, criações e traduções de histórias europeias que inauguram e
marcam esse período no Brasil são de ordem estrangeira e certamente falam de maneira
escassa sobre a nação brasileira, pois são textos adaptados de moldes previamente
estabelecidos com temáticas e estilos igualmente definidos.

A partir de então, adentrando o século XX, a literatura infanto-juvenil vai perdendo


seu caráter pedagógico e moralizante para dar lugar ao texto em que as temáticas e estilos
seriam finalmente destinados ao contexto da criança. O mundo textual infanto-juvenil foi
explorado em sua estrutura e significação, trazendo imagens, sons e cores dentro de um texto
polissêmico, isto é, com sentidos diversos. Neste período, temos Olavo Bilac, Coelho Neto e
outros nomes da literatura infantil e juvenil que, como Monteiro Lobato (considerado o maior
escritor brasileiro de contos infantis por Oliveira (1958), dentre outros), marcam um
momento de intensa produção literária infanto-juvenil no Brasil que iria enfrentar altos e
baixos nas próximas décadas.

Do texto padrão europeu aos contemporâneos, vemos que o texto literário sempre
circulou entre os cânones e as massas, foi difundido e permeou a sala de aula. Seus
componentes são derivados de inúmeras implicações linguísticas e sociais imbricadas na
palavra e, por conseguinte, no texto. Sua complexidade e resistência são resultados de uma
17

formação rígida e moralizante, talvez por demasia, mas que inseriu o texto literário na escola
Página

e na formação leitora. A sua veiculação se dá em almanaques, apostilas, cartilhas e

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
enciclopédias escolares que são usados, maiormente, no ambiente escolar. A atuação do texto
literário infanto-juvenil na escola e fora dela, desde então, não deixa de ser presente e
significativa, constituindo-se como elemento chave para todo o processo de formação do
leitor.

O TEXTO LITERÁRIO INFANTO-JUVENIL E A LEITURA ESCOLAR

A leitura ofertada pela escola em tempos atuais raramente apresenta uma sequência
linear e evolutiva em termos de texto literário adaptado ao ano escolar que o leitor está
inserido. Isto dito, as práticas pedagógicas que visam a formação leitora na escola passam a
entrar nos currículos escolares com o intuito da uma ampla promoção da autonomia do
discente diante dos textos literários.

Quando nos referimos ao progresso dos textos literários no ensino regular desde seus
anos iniciais, primeiramente, vemos textos lúdicos que apresentam neologismos,
onomatopeias e mundos imaginários que atraem o olhar da criança para a narrativa e seus
componentes estruturais. O leitor percebe a realização de mecanismos formais que permitem
que o texto fique leve, interativo e, muitas vezes, verossímil com a realidade imaginativa do
indivíduo. As princesas, os magos, os dragões e as fadas são criaturas percebidas como
participantes de uma literatura fantástica e criativa, mas que, através da construção da
personagem textual, interage com o leitor e o aproxima de seus anseios e indagações próprios
da sua idade. O leitor iniciante (o discente, a criança) se vê afeiçoado à obra e apreende aquilo
que, implícita ou explicitamente, deve ser apreendido. Aventuras por terras desconhecidas,
seres mágicos com capacidades sobre-humanas e conquistas homéricas (vide Homero) são
apenas os temas iniciais e o ponto de partida para narrativas que permitem ao leitor uma
liberdade imaginativa em textos igualmente abertos à leitura criativa. Neste contato inicial,
os aspectos subjetivos na trajetória do leitor literário são considerados para sua formação
como tal. Nos anos que seguem o ensino regular, os textos literários vão perdendo esses
aspectos formativos e lúdicos em direção ao texto canônico denso, esteticamente elaborado
e reconhecidamente literário. Caso o leitor não esteja habituado aos meios e modos de leitura
literária para este tipo de obra, provavelmente encontrará dificuldades no processo de
18

apreensão do texto e na construção de conhecimento a partir do mesmo.


Página

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
O contato regular com o texto literário inicialmente propiciado pela escola oferece ao
leitor uma experiência única e intransferível. Segundo Ferreira (2015), essa leitura contínua
e subjetiva, isto é, a leitura que se faz presente no cotidiano do leitor e ativa as suas memórias
pessoais advindas das experiências literárias das leituras anteriormente feitas, pode ser
considerada sua biblioteca vivida. A biblioteca vivida, conforme explicita a autora, é a
construção individual de memórias de leitura que são realizadas e armazenadas pelo
indivíduo para embasar outros textos e contextos, permitindo melhores abordagens e
compreensões das leituras subsequentes. Aplicando o conceito à leitura de uma literatura
fantástica mundialmente conhecida, por exemplo, a professora e pesquisadora Eliane
Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”, conceitua a leitura da seguinte maneira:

No processo de formação do leitor, o despertar de sua consciência para a


possibilidade de diálogo entre textos faculta-lhe perceber que a leitura requer
emprego da memória: sua biblioteca vivida. Justifica-se, então, a leitura de Harry
Potter e a pedra filosofal, porque estimula esse exercício cognitivo de formação.
(FERREIRA, 2015, p. 8)

No seguimento da formação leitora, o emprego da memória, conforme pontua


Ferreira (2015), é significativo para que a sua biblioteca vivida esteja sempre ativa. Os textos
literários que foram lidos e, portanto, vividos por esse leitor são retomados, reativados e
rediscutidos pelo indivíduo em contato com outros textos. Esse processo, popularmente
conhecido como intertextualidade, é visto pela pesquisadora como o acionamento das leituras
anteriores que embasa as leituras futuras. Em outras palavras, o processo da formação do
leitor depende das suas experiências conscientes com leituras prévias significativas e que
serão reelaboradas em outras leituras.

Ao lermos, cada texto nos permite que o reelaboremos e construamos outros


significados a partir dele em atitudes conscientes do ato de ler. A consciência da leitura é, ao
mesmo tempo, formadora, social e política.

De acordo com Lajolo (1996):


19

A leitura é, fundamentalmente, processo político. Aqueles que formam leitores –


Página

alfabetizadores, professores, bibliotecários – desempenham um papel político que


poderá estar ou não comprometido com a transformação social, conforme estejam

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
ou não conscientes da força de reprodução e, ao mesmo tempo, do espaço de
contradição presentes nas condições sociais da leitura, e tenham ou não assumido
a luta contra aquela e a ocupação deste como possibilidade de conscientização e
questionamento da realidade em que o leitor se insere (1996, p. 28).

A leitura, segundo Lajolo (1996), se faz estratégia eficaz no processo de ensino e


aprendizagem dentro da escola, pois suscita diferentes impressões e significados em cada
indivíduo em um ambiente de formação que não se restringirá ao ambiente escolar quando
atingir o seu principal objetivo: formar leitores autônomos, críticos e conscientes da leitura
que fazem. Fora do contexto escolar, assim sendo, a leitura ainda despertará emoções,
possibilitará viagens e o conhecimento do outro, atuará na formação do indivíduo de modo
que ele busque e conviva com a leitura. No ato da leitura do texto literário, o indivíduo ainda
estará agindo ativamente no mundo, seja na escola ou em casa.

Com mais ou menos acesso à leitura de textos literários, o estudante que está inserido
nos anos iniciais do ensino fundamental regular deve se predispor ao ato de apreciar a obra
literária através das mediações que acontecem inicialmente em ambiente escolar ao mesmo
tempo que leva essa apreciação para fora da escola. Embora não seja o único a mediar os atos
de leitura, o mediador escolar é aquele que, muitas das vezes, apresenta o texto literário,
media os primeiros contatos entre leitor e obra e expõe meios de acesso à Literatura que não
se restringem ao círculo educacional. Aqui, partindo das primeiras leituras mediadas que
fomentam a biblioteca vivida do leitor, temos bases envolventes e expressivas na formação
desse indivíduo. Sobre isso, Foucambert (1994) assinala:

Para aprender a ler, enfim é preciso estar envolvido pelos escritos os mais variados,
encontrá-los, ser testemunha de e associar-se à utilização que os outros fazem deles
- quer se trate dos textos da escola, do ambiente, da imprensa, dos documentários,
das obras de ficção. Ou seja, é impossível tornar-se leitor sem essa contínua
interação com um lugar onde as razões para ler são intensamente vividas [...]
(Foucambert, 1994, p. 31).

Desde leitores que já se aventuraram por adaptações ou pelos versos originais de


Homero nos seus poemas épicos Ilíada e Odisseia do século VIII A.C. e aqueles que se
debruçaram nas narrativas fantásticas de J. R. R. Tolkien na trilogia de O Senhor dos Anéis
20

do século XX, assim como sugere Ferreira (2015), temos leitores ativos e envolvidos no ato
Página

da leitura em contextos distintos, porém dialógicos. São aproximações e distanciamentos

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
entre textos mais antigos, como os de Homero, e textos modernos e contemporâneos, como
os de Tolkien, C. S. Lewis (em As Crônicas de Nárnia) e J. K. Rowling. O leitor, ao
aproximar textos, vai percebendo as temáticas e estilos que se assemelham no processo de
criação textual e, ao distingui-los, compreende as singularidades de cada produção e as
mudanças que ocorreram no modo de ler e receber esses textos em tempos atuais. Como já
mencionado, a não linearidade dos textos literários na escola e a mediação inconsistente
diminuem parte da fruição dos leitores e estigmatizam um senso comum sobre a Literatura
no âmbito escolar, embora não sejam os únicos pontos a nortearem esse consenso. O contato
permanente com o texto literário, seja clássico ou pós-moderno, canônico ou de massa,
possibilitará que o seu leitor faça associações e construa conhecimento de maneira autônoma.

No que tange a leitura na escola e o papel da literatura no ensino, segundo Zilberman


(2008), desde a virada dos anos 70 para os anos 80 do século XX com a desconstituição do
regime militar e da redemocratização da nação, verificamos movimentos amplos de
professores e pesquisadores das áreas de Letras e Pedagogia preocupados com os caminhos
da escola brasileira e a qualidade do ensino em um país que pouco lê literatura. É neste
contexto que surge o I Congresso de Leitura (COLE) em Campinas no ano de 1978, o I
Encontro de Professores Universitários de Literatura Infantil e Juvenil no Rio de Janeiro em
1980 e a Primeira Jornada Sul-Rio-Grandense de Literatura em Passo Fundo em 1981.
Associações emergenciais como a de Professores de Língua e Literatura (APLL) e de Leitura
do Brasil (ALB), no final dos anos 70 e adentrando os anos 80, também sinalizam o
engajamento de educadores e pesquisadores na abordagem de problemáticas de ensino e
aprendizagem no âmbito da escola.

Da alfabetização, tarefa que a escola desempenhou burocraticamente desde seus


inícios, passou-se à necessidade de letramento, sobretudo de letramento literário
(ZILBERMAN, 2008, p. 15). É assim que, ano após ano, série após série, percebeu-se a
necessidade do letramento na formação do leitor e não necessariamente de textos adaptados
ao seu ano escolar.

Os textos abordados pelos professores dos anos iniciais do ensino fundamental são,
21

em sua maioria, de caráter imaginativo e lúdico, muitas vezes fantástico, permitindo leituras
Página

abrangentes e criativas que dialogam diretamente com outras artes como a música, a pintura

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
e o cinema. São processos que viabilizam construções de conhecimento e formam leitores
conscientes se forem tomados textos relacionados com outras áreas e lidos por diferentes
ângulos e plataformas. O texto infanto-juvenil é plural e expressivamente amplo se tomado
em ambientes de leitura contínua. A pluralidade do letramento através de textos desta ordem
permite, desde a formação inicial do leitor, uma emancipação do mesmo diante do
enrijecimento do sistema educacional que o possibilita transitar por textos que, ainda que não
“adequados” ao seu grau escolar, se fazem legíveis e compreensíveis. O leitor tardio
(entendemos como o indivíduo que é letrado tardiamente na escola ou fora dela) só consegue
essa subversão da leitura através do preenchimento das lacunas que compõem a sua formação
escolar e leitora, entrando em contato com textos variados em diferentes contextos
educacionais. A atuação da escola no processo de formação do leitor letrado é
reconhecidamente importante, mas transcende as paredes da sala de aula.

O TEXTO LITERÁRIO INFANTO-JUVENIL NA CONTEMPORANEIDADE

O que as crianças leem, de fato, hoje em dia? Quais os textos que circulam
predominantemente nas escolas? A juventude contemporânea lê menos? Essas indagações
são recorrentemente feitas por professores, pesquisadores e críticos da área da Literatura
Infantil e da Educação, concomitantemente. Por vezes, parecemos falar sobre literatura e
acabamos no âmbito educacional e vice-versa. O texto literário infanto-juvenil e seu canal
associado, a escola, são indissociáveis quando o assunto é formação do leitor e as questões
levantadas a partir da intersecção Literatura e escola.

Sabendo das alterações sistêmicas sofridas pela escola através da história e das
demandas sociais e culturais, começamos a pensar na “função”, se existente, do texto literário
na escola do século XXI. Esse ponto perpassa os questionamentos feitos acima acerca da
Literatura e da leitura na contemporaneidade. Indagamos, pois, se há uma função para a
Literatura infanto-juvenil nos dias de hoje.

Segundo Arena (2003), criamos o hábito de leitura porque temos precisões que nos
são instigadas nas relações sociais estabelecidas em grupo. Afirma que, da mesma forma,
22

não lemos fora da escola por costumes que são socialmente aceitos e instaurados. O papel da
Página

instituição escolar e daqueles que participam da formação do indivíduo enquanto criança

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
seria o de motivar esses momentos de leitura, propiciando situações de consciência e
experiência textual que criarão o hábito de ler. A educação literária se encontra nessas bases
(DA SILVA, 2012, p. 5). Nesse sentido, a literatura infanto-juvenil deve adentrar o cenário
da formação leitora enquanto ferramenta de contribuição na formação de indivíduos leitores
e não “ledores”, ativos no processo de leitura e que certamente sentirão a necessidade da
mesma em seu cotidiano. Perrotti (1999) explica a distinção entre o ledor e o leitor com o
seguinte argumento:

O ledor prefigura aquele ser passivo, imobilizado, que pouco ou nada acrescenta
ao ato de ler. O texto para o ledor não tem aberturas porque ele decifra
mecanicamente os seus sinais. Não há mistério, nem criação. A leitura é definitiva.
O leitor, no entanto, é móvel e tem um olhar indefinido, errante e criativo sobre o
texto, que se permite ler em suas linhas e entrelinhas, desvelando seus sinais visuais
e invisíveis. Isto só ocorre quando se dá o pacto entre texto e leitor, que o ledor não
se arrisca a fazer.

Em outras palavras, o texto literário é tomado por ledores como uma leitura de fruição
e relaxamento sem qualquer empenho de análise, leitura ou participação social efetiva. Os
textos são lidos a partir de uma visão rasa e limitada sem fruição e/ou sentido. Aos leitores,
destinamos o olhar mais atento e preocupado com a estrutura e a significação daquele
conteúdo a ser lido, apurando os sentidos, estabelecendo relações intertextuais e construindo
conhecimento a partir daquele texto.

Embora inúmeros textos, neste momento, estejam sendo escritos e lidos por crianças,
jovens e adultos do mundo inteiro, sabemos que pessoas escrevem e são lidas todos os dias.
A preocupação não é essa. O que nos alerta, como educadores e pesquisadores, é a rapidez
que esses textos são gerados e consumidos sem quaisquer preocupações estéticas e
formativas, mas unicamente utilitaristas, por ledores textuais, não leitores.

Receitas de bolo, manuais de aparelhos eletrônicos e textos técnicos são exemplos de


textos utilitários que, em sua função primária, apresentam o intento de transmitir uma
informação pragmática e, portanto, utilitária. A composição desses textos em sua estrutura
sintática e semântica é essencialmente direta e simples para que o seu leitor consiga ler,
compreender e executar seus comandos. Com o texto literário, essa atitude de leitura deve
23

ser repensada, pois o próprio texto apresenta diferentes constituintes internos se comparado
Página

ao texto técnico.

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
O texto considerado literário, isto é, o texto que apresenta certo grau de literariedade,
é aquele que converge os componentes linguísticos, semióticos e sociológicos em sua
composição interna. Seus constituintes linguísticos (fonemas, morfemas, vocábulos,
sintaxes, etc.) não são meras palavras dispostas a transmitirem uma informação ou, como se
popularizou em literatura infanto-juvenil, uma moral. O texto literário vai explorar os
mecanismos possíveis em torno da palavra para que a sua função, dentro do texto, seja ampla,
plural e significativa.

A palavra é para a Literatura o que a pedra é para a escultura, a tinta para a pintura e
o vídeo para o cinema. A palavra literária, como já dito, é plural em sua essência e, em cada
trabalho, apresenta seus significados de maneira única. O autor e o leitor do texto literário,
juntos, compõem o todo da obra. São coautores. O autor, com suas implicações, redige o seu
texto e monta um objeto estético que, ao chegar no leitor, deve ser analisado, lido e
significado através da leitura. Não há como excluirmos desse processo a importância do
letramento e da leitura escolar para que possamos assumir outros olhares acerca do texto
literário, entretanto, percebemos que não somente a escola atua na formação leitora na
contemporaneidade, mas diversos fatores internos e externos ao processo.

Desinteresses dos alunos, educadores sem contato com textos literários e instituições
escolares sem recursos ou com foco mercadológico exacerbado são apenas exemplos rápidos
de fatores que possivelmente influenciam na falta de indivíduos letrados na sociedade
brasileira do século XXI. A tecnologia não é a vilã principal. O texto literário, seja lido em
papel ou tela, ainda se apresenta e se faz texto literário em seu caráter mais amplo. Seus
componentes internos serão ativados e elaborados assim que forem lidos. Assumimos
posturas sociais e políticas ao lermos.

Na escola contemporânea na atual situação histórica, política e social do Brasil, a


leitura escolar e os processos de formação do leitor que estão inseridos na estrutura escolar
regular são ferramentas de uma formação não somente leitora, mas social e política e que
deve permanecer no cotidiano da criança e do adolescente.
24

Celulares, tablets, redes de relacionamento e mídias sociais. Séries, novelas, músicas


Página

e fotografia. O século XXI proporciona ao jovem uma variedade de instrumentos de

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
socialização e propaganda. O comércio e o marketing adentram as salas e os quartos em telas
minúsculas e atuam sutilmente no pensamento coletivo. Os mediadores da leitura escolar,
estando atentos ao cenário contemporâneo instalado, devem repensar os próprios meios de
recepção da obra literária e dos processos de leitura. Busca-se a heterogeneidade textual:

[...] não podem a escola nem os professores optar por desenvolver habilidades de
leitura de apenas um determinado tipo ou gênero de texto: a escola deve formar o
leitor da ampla variedade de textos que circulam nas sociedades grafocêntricas em
que vivemos, e são diferentes processos de leitura e, portanto, diferentes modos de
ensinar; é preciso desenvolver habilidades e atitudes de leitura de poemas, de prosa
literária, de textos informativos, de textos jornalísticos, de manuais de instrução,
de textos publicitários etc. etc. (SOARES, 2014, p. 31)

E a concomitante variação dos meios em que os textos são veiculados, indo do contato
físico ao digital, do texto escrito ou impresso ao texto em tela. Independente dos gêneros
textuais e meios de veiculação dos mesmos, a presença de uma abordagem diversa e
significativa é elemento basilar na formação do leitor contemporâneo que é, ele também,
heterogêneo em sua essência.

Quanto mais contato e interação o leitor inicial tem com a literatura maior será o seu
domínio sobre ela e suas realizações discursivas, assim como já pontuou Bakhtin sobre as
relações dialógicas que podemos estabelecer durante as leituras. Para ele, existe a
interatividade no âmbito da linguagem, as trocas estabelecidas nestes processos dinâmicos
entre indivíduos e culturas que geram outros discursos reelaborados e que fomentam uma
postura leitora atenta e crítica (DA SILVA, 2012, p. 11).

Ao considerarmos tais concepções e abordagens, pensamos que o hábito de leitura


deve ser iniciado desde a idade mais tenra e, concomitantemente, desde a Educação Infantil.
Os mediadores das leituras iniciais, sejam educadores, professores e/ou responsáveis, devem
também se integrar dos textos literários para a criança e o jovem para uma melhor
compreensão do universo leitor e dos meios mais atualizados e recentes que esses textos
ocupam na contemporaneidade. É criar hábitos que farão da literatura não somente um
passatempo corriqueiro, mas um instrumento de humanização e cultura.
25

CONCLUSÃO
Página

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
Procurando as relações existentes entre a formação leitora e o papel do texto literário
infanto-juvenil neste processo, buscamos, neste artigo, retomar conceitos já estabelecidos nas
áreas da Literatura e Educação acerca da Literatura para a criança e o adolescente como ponto
de partida significativo na formação do leitor contemporâneo.

Dos anos iniciais da Educação Infantil e Fundamental, percebemos que os leitores,


independente do grau escolar, estabelecem relações expressivas e realizam leituras
emancipatórias quando colocados em ambientes educacionais cotidianos igualmente
significativos, isto é, importantes para todo o processo de formação leitora. A biblioteca
vivida deste leitor (Ferreira, 2015), os atos de leitura (Iser, 1996; 1999) e uma postura
consciente diante de todo esse processo (Lajolo, 1996) permitirão que o indivíduo possa se
formar com autonomia, criticidade e fruição em decorrência das vivências que tiveram em
seus primeiros contatos com o texto literário.

A formação do leitor contemporâneo habituado com textos destinados ao público


infantil e jovem, a partir de uma visão emancipatória e humanizadora da Literatura, nos faz
acreditar que as relações cotidianas dialógicas e intertextuais acontecem no processo de
apropriação da leitura para uma subversão de sistemas enrijecidos de ensino e aprendizagem
que irão formar leitores ativos e críticos diante dos textos que lhes serão apresentados.
Leitores que, dentro ou fora da escola, atuarão e participarão efetivamente do processo de
construção de conhecimento a partir do texto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENA, D. B. Nem hábito, nem gosto, nem prazer. In: M. R. L. Mortatti (Org.). Atuação
de professores: propostas para a ação reflexiva no ensino fundamental. (pp. 53-61).
Araraquara: JM, 2003.

CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual. Trad.
Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2003.
CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura infantil: teoria & prática. 18. ed. São Paulo:
Ática, 2003.
26
Página

DA SILVA, Greice Ferreira. O pequeno leitor e o processo de mediação de leitura


literária. Periódico Álabe, n. 6. Disponível em: [www.revistaalabe.com], 2012.

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
FERREIRA, Eliane Aparecida Galvão Ribeiro. Uma cinderela moderna e seus
encantamentos: análise da obra Harry Potter e a pedra filosofal, de J. K. Rowling. In:
DEBUS, Eliane; MICHELLI, Regina (orgs.). Entre fadas e bruxas: o mundo feérico dos
contos para crianças e jovens. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2015, p.107-129.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschmer.
São Paulo: Ed. 34, 1996. vol.1.

______. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschmer. São
Paulo: Ed. 34, 1999. vol.2.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história &
histórias. 4. ed. São Paulo: Ática, 1988.

______. Livro didático: um (quase) manual de usuário. Em Aberto, Brasília, n. 69, v. 16,
jan./mar. 1996.

MAGNANI, Maria do Rosário Mortatti. Leitura, literatura e escola: sobre a formação do


gosto. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

OLIVEIRA, Antenor Santos de (Org.). Curso de literatura infantil. São Paulo: Santos de
Oliveira, p.9-35, 1958.

PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.

______. Leitores, ledores e outras afins (apontamento sobre a formação ao leitor) In:
PRADO, J.; CONDINI, P. (org). A formação do leitor: pontos de vistas. Rio de Janeiro:
Argus, 1999, pp. 31-40.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. Leitura na escola e na biblioteca. 3. ed. Campinas, SP:
Papirus, 1991.

SILVA, Lilian Lopes Martin. Às vezes ela mandava ler dois ou três livros por ano. In:
GERALDI, J. W. (Org.). O texto na sala de aula: leitura & produção. 4. ed. Cascavel, PR:
Assoeste, 1984. p. 71-76.

SOARES, Magda. Ler, verbo intransitivo. In: PAIVA, Aparecida et al. (Orgs.). Leituras
literárias: discursos transitivos. Belo Horizonte: Ceale; autêntica, 2014.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 5. ed. rev. ampl. São Paulo: Global,
27

1985.
Página

______. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 2.ed. São Paulo: Ática, 1984,
p.135-152.

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018
______. O PAPEL DA LITERATURA NA ESCOLA. Via Atlântica, São Paulo, n. 14, p.
11-22, dec. 2008. ISSN 2317-8086. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/50376/54486>. Acesso em: 16 de
Junho de 2018.

28
Página

Notório Saber : Votorantim, vl.1, n.1, p.14-28,

2018

Você também pode gostar