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Corpo e outras (de)limitações sexuais

Uma análise antropológica da revista Sexuality


and Disability entre os anos de 1996 e 2006*

Nádia Elisa Meinerz

Há mais de vinte anos as abordagens construti- doença crônicas. Ao mesmo tempo, suscita um
vistas vêm se afirmando a partir da contraposição às questionamento sobre a opressão das convenções
leituras médicas e sexológicas da sexualidade. Tais corporais relativas à sexualidade (relação heterosse-
abordagens produziram um importante referencial xual e penetrativa) para as pessoas com “deficiên­
sobre diversidade sexual e de gênero, amplamente cia”. Apesar de constituir uma novidade, muito
utilizado para instrumentalizar a idéia dos direitos poucos pesquisadores dessa área têm se apropriado
sexuais e reprodutivos como direitos humanos. O dos referenciais que enfatizam a variabilidade das
tema das “deficiências”,1 nesse contexto, descortina experiências sexuais e sua potencialidade na produ-
uma “nova pauta” de pesquisa em relação às con- ção de subjetividades para pensar essa temática.
venções corporais relacionadas com sexualidade e Na contramão dessa tendência, pode-se obser-
gênero. Ele remete a uma discussão sobre limites var uma significativa mobilização para a produção
para o exercício da sexualidade no que concerne à de alternativas médico-químicas e psicológicas para
presença de “deficiências” cognitivas e físicas e de viabilizar o exercício da sexualidade entre pessoas
com “deficiências” físicas, bem como estratégias
* Esse artigo foi apresentado no 32º Encontro Anual da para conter os excessos sexuais das pessoas com “de-
Anpocs, no grupo de trabalho “Corpo, Gênero e Sexua­ ficiências” cognitivas. Nesse sentido, o cruzamento
lidade”, coordenado por Júlio Assis Simões e Adriana
Vianna em outubro de 2008 em Caxambu-MG. entre sexualidade e “deficiência” mobiliza a produ-
ção de um conhecimento que dê sustentação à prá-
Artigo recebido em novembro/2008 tica clínica em diferentes áreas, como a sexologia, a
Aprovado em janeiro/2010 medicina de reabilitação, a enfermagem, a fisiote-
RBCS Vol. 25 n° 72 fevereiro/2010

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rapia, a psicologia, além de mobilizar uma série de lidade assume em cada tipo de “deficiência”. Os
outros interesses jurídicos, políticos e tecnológicos. dados apontam para a sexualidade como um dis-
O objetivo desse texto é explorar a emergência positivo de fronteira no que diz respeito ao acesso à
da interface entre sexualidade e “deficiência”, to- normalidade, operando ora como atestado de uma
mando como foco a análise dos artigos de um perió­ reabilitação satisfatória dos sujeitos, ora como evi-
dico internacional, que desde o final da década de dência da anormalidade. Antes, porém, de adentrar
1970 propõe associar as duas temáticas. Publicada essa discussão, explicito o percurso metodológico
pela primeira vez em 1978,2 a revista Sexuality and desse trabalho, com especial atenção para a descri-
Disability propõe abarcar os aspectos médicos, psi- ção da organização formal e uma breve contextuali-
cológicos e sociais da sexualidade relacionados com zação da heterogeneidade de seu conteúdo.
a reabilitação dos mais diversos tipos de “deficiên-
cias”. Em sua origem, a sexualidade é considerada,
essencialmente, parte de um processo mais amplo Uma revista como “campo” de pesquisa
de reabilitação das pessoas com “deficiência”. Os
centros de pesquisa que sustentam as primeiras pu- O interesse pela “deficiência” origina-se nas
blicações são faculdades de medicina e reabilitação, discussões de um grupo de trabalho sobre direi-
entidades de proteção aos veteranos de guerra e tos sexuais e reprodutivos como direitos huma-
centros públicos e privados de reabilitação.3 nos.5 Nesse âmbito, a proposta atraiu a atenção de
Foram selecionados para análise dez volumes uma entidade da sociedade civil vinculada a um
publicados entre os anos de 1997 e 2009, período grupo religioso (evangélico tradicional), a qual
no qual a revista esteve sob a coordenação editorial organizava ações de inclusão social de crianças e
do sexólogo e terapeuta sexual, Stanley Ducharme. jovens com Síndrome de Down. Com uma postu-
Os textos consistem em pesquisas acadêmicas, es- ra bastante progressista, as profissionais da área de
tudos de casos, relatos de prática clínica, questões psicologia, pedagogia e assistência social da insti-
levantadas pelos consumidores,4 programas comu- tuição manifestavam seu desconforto profissional
nitários, programas para vida independente; orien- em utilizar “medidas repressivas” como único re-
tações para prática clínica, desenvolvimentos em curso diante das manifestações “sexuais” de crian-
programas especiais de educação sexual e aconse- ças e jovens Down. Era necessário pois construir
lhamento para pessoas com “deficiência”. Com base alternativas de manejo da sexualidade que tives-
em uma leitura etnográfica dos artigos são identi- sem maior respaldo científico e, ao mesmo tempo,
ficadas quatro perspectivas de articulação entre as amparo legal.
temáticas que remetem a problemas de investiga- Na busca de um embasamento teórico que
ção distintos, a modelos específicos de explicação pudesse contribuir nesse sentido, a revista Sexuali-
da “deficiência”, a diferentes áreas profissionais ou ty and Disability, acessada no portal de periódicos
científicas e ainda a posições variáveis em relação à da Capes, foi privilegiada como fonte bibliográfi-
produção, à aplicação e ao consumo do conheci- ca. No entanto, com o contato mais próximo ao
mento científico. Essas perspectivas foram agrupa- conteúdo dos artigos, a própria revista foi se con-
das em uma proposta tipológica que separa a ênfase vertendo em objeto de reflexão, pela multiplicida-
no funcionamento sexual, a preocupação com as de de abordagens, muitas vezes contraditórias, em
especificidades das mulheres com “deficiência”, a torno das quais são propostas articulações entre as
perspectiva da desabilitação e as redes de suporte duas temáticas. Tais abordagens remetem a uma
e assistência. negociação complexa sobre os limites e as poten-
Discute-se ainda a discrepância numérica em cialidades sexuais colocados pela variação corporal,
favor dos artigos que abordam “deficiências” físicas seja ela resultante de uma “deficiência” cognitiva ou
em relação aos que tematizam “deficiências” cog- física, de origem congênita ou adquirida, seja pela
nitivas e doenças degenerativas relacionadas com o “degradação” relativa aos processos de adoecimento
envelhecimento, sobretudo ao sentido que a sexua­ físico e psíquico. Ao mesmo tempo, elas estabele-

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cem prescrições e proibições no âmbito das intera- construir uma coerência diante da multiplicidade
ções sociais e sexuais entre as pessoas consideradas de abordagens que perpassa a revista.
normais e aquelas portadoras de algum tipo de “de- A inserção nesse “campo” de pesquisa possibi-
ficiência”. A revista pode ser considerada, no senti- lita um diálogo com os estudos de antropologia e
do antropológico do termo, um “campo” profícuo sociologia que têm como objeto a análise da ciên-
para a investigação das perspectivas de articulação cia. Embora não se trate de estudar um tipo espe-
entre as duas temáticas. cífico de produção e prática científica (como a de
Do ponto de vista metodológico, a leitura an- laboratório) nem de um campo disciplinar (como a
tropológica dos artigos publicados nesse periódico medicina), a análise da revista em pauta pode con-
implica uma apropriação da etnografia como fer- tribuir para uma abordagem das dinâmicas sociais
ramenta útil para a descrição e a análise de outros que perpassam a produção de fatos científicos. Isso
objetos que não pessoas em seus valores e práticas porque a revista coloca em evidência disputas e
cotidianas. Para tanto, as análises realizadas a se- alianças entre atores, saberes e campos disciplinares
guir estão fundamentadas na discussão proposta que operam a partir de concepções de ciência e de
por Adriana Vianna (2006) sobre a etnografia de critérios de cientificidade diferentes. Tais relações
documentos. Dirigida a esse campo específico, a concorrem para a emergência de diferentes interfaces
abordagem etnográfica supõe que se persiga a tri- entre sexualidade e “deficiência”.
lha das condições da produção de “verdades”, “in- Para compreender esse processo, privilegia-se
formações”, “práticas”, “dados” e “recomendações” o conceito de problematização, desenvolvido por
enunciados nos artigos analisados. Foucault (2004) na esteira das discussões sobre ciên­
Cada um dos artigos faz parte de um determi- cia propostas por Georges Canguilhein. Seguindo a
nado contexto de produção de conhecimento, está orientação de outros trabalhos que propõem uma
inserido numa certa tradição disciplinar, possui ob- leitura metodológica desse conceito, considera-se
jetivos específicos em relação à publicação e, prin- a noção de problematização uma ferramenta de
cipalmente, constrói a relação entre sexualidade e investigação mais do que uma teoria explicativa.6
“deficiência” de uma maneira particular. Ao mesmo Nesse sentido, o texto remete à maneira pela qual
tempo, todos eles compartilham (como documen- um objeto se torna problema para o pensamento
tos de um arquivo) certa padronização formal e são mediante práticas discursivas e não discursivas que
avaliados a partir do estatuto, ou do lugar que a o inserem num determinado “regime de verdades”
revista ocupa em relação às hierarquias de credibili- (Idem, p. 242). Trata-se de compreender as formas
dade do campo editorial. Importa questionar sobre de articulação entre os discursos sobre sexualidade e
o ato da publicação em si, sobre a seleção do que os discursos sobre “deficiência” na conformação de
merece ser publicado, sobre o “julgamento edito- problemas específicos.
rial” do que contribuirá para a articulação entre as
duas temáticas. Nesse âmbito, não só é necessário
atentar para o que os artigos efetivamente mostram, Descrevendo a revista e contextualizando
mas também questionar sobre o que eles silenciam o “campo”
(Vianna, 2006).
Em suma, pode-se dizer que a proposta aqui Os volumes publicados entre 1997 e 2006
consiste em fazer com os artigos da revista Sexua­ comportam quatro números anuais, em que são
lity and Disability um pouco daquilo que os an- apresentados entre cinco e oito artigos. Embora a
tropólogos fazem com as situações de trabalho de estrutura não seja fixa, há um padrão de apresen-
campo. Isso implica não apenas descrever o maior tação, composto por notas de edição, artigos, rese-
número possível de situações, mas também aten- nhas, anúncios, sumário e listagem de editores con-
tar para detalhes aparentemente banais, selecionar vidados para os próximos volumes. Alguns números
determinados artigos e passagens que se tornaram organizam-se em tópicos especiais para os quais são
marcantes ao longo da leitura porque ajudaram a chamados editores convidados.7 Outros são inteira-

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mente dedicados à transcrição de resumos e princi- logia e pela medicina de reabilitação no campo de
pais artigos apresentados em congressos internacio- lutas por posição, prestígio e recursos biomédicos.
nais. Essas publicações abrangem diferentes tipos Nesse sentido, a medicina de reabilitação pode ser
de eventos, como aqueles realizados por militantes, pensada a partir da diferenciação valorativa entre
ou grupos profissionais além daqueles de caráter disciplinas diagnósticas e terapêuticas proposta por
acadêmico.8 Uma outra modalidade são as compi- Camargo Jr. (2003). Relacionadas com a modalida-
lações bibliográficas, geralmente organizadas pelo de terapêutica, ambas as especialidades são menos
editor convidado dos tópicos especiais. valorizadas e menos reconhecidas do ponto de vista
O caráter menos acadêmico de alguns artigos científico.
pode ser evidenciado principalmente em volumes Mesmo em relação à prática médica, que se-
não organizados em torno de um tópico especial. gundo Camargo Jr. (2003) é lócus privilegiado para
Nestes, não é incomum encontrar textos em estilo mudanças valorativas (no qual a cirurgia, por exem-
de depoimento, de autores qualificados como “con- plo, se destaca em termos reconhecimento) a posi-
sumidores” dos serviços de reabilitação. O relato de ção da reabilitação não é diferente. Isso porque essa
casos ou de estratégias terapêuticas empregados por especialidade é perpassada por uma incontornável
profissionais, principalmente da área da psicologia, tensão entre a expectativa de cura ou erradicação da
também encontram ali um importante espaço de doença (importante objetivo da medicina) e a sua
expressão. impossibilidade ante a deficiência. A prática médi-
Além da sessão de artigos, a revista comporta ca de reabilitação é desprestigiada porque evidencia
ainda uma sessão de resenhas (composta geralmente os limites da atuação médica na superação da “de-
por uma ou no máximo duas resenhas) de livros ou ficiência”, constituindo-se numa espécie de medida
filmes que vinculem de alguma maneira a temáti- paliativa. Assim, pode-se argumentar que o manejo
ca da sexualidade à da deficiência, ou que abordem médico das “deficiências” segue uma tendência de
pelo menos uma das duas. Aqui novamente encon- maior abertura para a multidisciplinaridade, que
tramos o espaço para a realização de comentários, já foi observada por Menezes (2004) em relação à
reflexões e divulgação dos mais diversos tipos de emergência dos cuidados paliativos.
literatura. Uma outra tendência, diante da impossibilidade
A edição fecha com a previsão de tópicos espe- de cura ligada à “deficiência”, é o deslocamento do
ciais e editores convidados, além de anúncios das lugar do paciente dentro da cena médica. Como
mais diferentes ordens: divulgação de eventos, con- ressalta Ducharme, em um de seus editoriais de
cursos acadêmicos e bolsas de pesquisa, propaganda despedida, a própria criação da revista resulta desse
de programas terapêuticos, cursos e ações de forma- deslocamento: do paciente como ouvinte passivo das
ção e treinamento para cuidadores e trabalhadores recomendações clínicas para consumidor dos servi-
da área da saúde, e até convocações dirigidas à po- ços de saúde, dos recursos tecnológicos e do próprio
pulação desabilitada para participação em pesquisas conhecimento científico. Segundo sua descrição:
científicas.
Esse tipo de organização contrasta bastante A idéia de proporcionar educação sobre se-
com outros periódicos da área médica, principal- xualidade é uma coisa única para o campo da
mente no que diz respeito ao grau de especializa- medicina de reabilitação. Na verdade, apenas
ção das temáticas e à homogeneidade dos artigos desde meados da década de 1970 é que as pes-
acolhidos para a publicação. O que marca a revista soas começaram a falar sobre sexualidade como
Sexuality and Disability é justamente a heteroge- parte do processo de reabilitação. Antes disso,
neidade9 de seu conteúdo e a explicitação de uma nem mesmo os médicos consideravam que
complexa rede de articulações entre os atores envol- você pudesse ter uma vida sexual após uma le-
vidos na produção, na aplicação e no consumo do são grave. Eles acreditavam que a sua vida se-
conhecimento científico. Essa característica deve ser xual terminava a partir do momento em que
considerada em relação ao lugar ocupado pela sexo- você se tornava uma pessoa com lesão na co-

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luna vertebral. Em conseqüência, o assunto foi artigos podem conformar a um só tempo mais de
evitado ou ignorado. uma dessas perspectivas e outros, ainda, parecem
Não por acaso, foram as próprias pessoas vin- inclassificáveis.
culadas aos programas pela vida independente
e consumidores com lesão da coluna vertebral A funcionalidade sexual
que começaram a buscar esse tipo de informa-
ção de seus médicos. Os consumidores dos ser- A ênfase majoritária nos processos de reabilita-
viços de reabilitação mudaram o stablichment ção fornece uma pista importante sobre a preocu-
médico. Eles queriam ter uma vida sexual. Seus pação mais típica dos objetos de investigação que
relacionamentos conjugais eram importantes perpassam os artigos da revista: a funcionalidade
pra eles. Os pacientes começaram a falar so- sexual. Nesse sentido, o discurso sexológico des-
bre sexo entre si e apelar aos médicos, quando ponta como principal referencial tanto no campo
tinham dúvidas. Naquela época, os médicos da pesquisa como no da proposição terapêutica,
prestadores de serviço também estavam emba- embora não exclusivamente. As principais áreas
raçados em falar sobre sexo, mas eles não ti- do conhecimento empenhadas na construção des-
nham outra escolha, a não ser responder a esses se tipo de problema são a medicina (com grande
questionamentos (Ducharme, 2005, p. 117, destaque para a urologia) e a psicologia, além da
trad. livre). biologia molecular, cuja expressividade vem au-
mentando nos três últimos anos principalmente no
Resgatando os elementos que desencadearam a campo da disfunção erétil e das patologias relativas
organização da revista, o autor assinala que a inicia- à diferenciação sexual. Nessa perspectiva privilegia-
tiva de abordar a sexualidade nos processos de reabi- se a influência sobre o funcionamento sexual dos
litação é dos próprios pacientes. Essa demanda im- mais diferentes tipos de “deficiência”, tanto no que
pulsionou a realização das primeiras pesquisas sobre diz respeito ao comprometimento corporal e aos
implante peniano entre homens com lesão da coluna limites que este estabelece para o desempenho da
vertebral. Tal técnica foi, até a invenção do viagra, atividade sexual, como no que concerne aos aspec-
uma das mais difundidas nos processos de reabilita- tos psicológicos decorrentes ou não de condições
ção sexual, muito embora sua utilização implicasse físicas. Outro foco privilegiado para esse tipo de
vários riscos para os pacientes. estudo é o impacto sobre o funcionamento sexual
da utilização de medicamentos e técnicas terapêuti-
cas de combate a doenças crônicas. Exemplo disso
Convenções corporais e (de)limitações aparece no quarto número do vigésimo volume,
sexuais publicado em dezembro de 2002, inteiramente de-
dicado ao impacto de diversos tipos de câncer sobre
A emergência da interface entre sexualidade e a sexua­lidade, principalmente no que diz respeito
“deficiência” como objeto de produção de conheci- ao uso de técnicas radio e quimioterápicas.
mento conforma diferentes possibilidades de pro- Ao mesmo tempo, as próprias patologias físicas
blematização relacionadas não só com as diferen- e psíquicas desencadeadoras de comprometimento
ças disciplinares, mas também com uma complexa para a atividade sexual normal (como a disfunção
rede de relações políticas, interesses econômicos e erétil) são consideradas, nessa perspectiva, formas
de normatizações jurídicas. Nesta sessão, apresento de deficiência. Aproveitando-se desse deslizamento
uma proposta tipológica das formas de problema- semântico, a própria psiquiatria ganha espaço em
tização encontradas nos artigos da revista Sexuality meio ao discurso sobre a funcionalidade, ao des-
and Disability. É importante destacar que, a despei- tacar os distúrbios do comportamento sexual as-
to do investimento tipológico realizado, não se tra- sociados à transexualidade, às diferentes formas de
ta aqui de enquadrar cada um dos artigos da revista fetichismo, ao devoteísmo10 e até mesmo à homos-
numa dessas perspectivas. Pelo contrário, muitos sexualidade.11

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Os estudos que assumem a problemática da Além disso, a problematização da funcionalida-


funcionalidade estão empenhados tanto na desco- de sexual alinha-se ao modelo médico de explicação
berta das causas orgânicas e psicológicas de prejuí­ e manejo da deficiência. Isso pode ser observado
zo da atividade sexual (numa atuação mais diag- pela fragmentação e individualização das pesquisas,
nóstica), como na produção de medicamentos, geralmente direcionadas para um tipo específico
técnicas cirúrgicas, desenvolvimento de próteses de “deficiência”. Nesse sentido, a primeira grande
e outras estratégias terapêuticas de reabilitação. divisão realizada do ponto de vista da construção
Também se observa uma preocupação com a re- do objeto é a separação entre desabilidades físicas
dução dos efeitos colaterais de diversos tipos de e mentais/cognitivas e doenças crônicas. Ademais,
medicamentos utilizados em pacientes psiquiá- investigam-se individualmente: lesão na coluna
tricos e com outras doenças crônicas. No campo vertebral, surdez (para a qual é direcionado um nú-
da psicologia, destacam-se o desenvolvimento e a mero especial com cerca de cinco artigos), cegueira,
avaliação de escalas de mensuração da satisfação e Doença de Huntington, diferentes tipos de câncer,
da auto-estima sexuais. afasia, Síndrome de Turner, stoma, demência, Al-
É importante ressaltar que a preocupação zheimer, esclerose múltipla, esquizofrenia, autis-
com o funcionamento sexual no campo da sexo- mo, cistismo, osteoporose, dor crônica, paralisia
logia não se restringe à questão das “deficiências”. cerebral, lúpus, Doença de Peyronie, Síndrome de
Ela deve ser contextualizada em relação às práticas Asperger etc.
mais gerais de medicalização da sexualidade. Estu- Conforme Diniz (2007), esse tipo de aborda-
dos brasileiros recentes sobre sexologia, em espe- gem considera a “deficiência” uma condição corpo-
cial o de Jane Russo (2008), argumentam que uma ral exclusivamente negativa, que traz prejuízos aos
segunda onda de produção sexológica focada nas indivíduos. Em razão disso, ela deve ser enfrentada,
“disfunções sexuais”, inaugurada pelos trabalhos de combatida ou, pelo menos, minimizada em seus
Masters e Jonsons nos anos de 1970, teria substi- reflexos sobre a atividade sexual. Nesse contexto
tuído nos códigos internacionais de doenças os an- observa-se um dos terrenos mais férteis para o de-
tigos desvios da norma heterossexual. Nas palavras senvolvimento dos discursos sexológicos que dão
da autora, na sexologia: sentido à sexualidade por meio de elementos que
sejam válidos universalmente, tais como a idéia de
Não se está mais produzindo identidades des- pulsão sexual.
viantes ou definindo novos sujeitos na cena pú-
blica (como foi o caso, por exemplo, da homos- A especificidade das mulheres
sexualidade), mas alargando e pavimentando o
caminho para a construção médico-psicológica A segunda modalidade de problematização da
da performance sexual como ideal de saúde e relação entre sexualidade e “deficiência” parte da crí-
bem estar (Russo, 2008, p. 7). tica feminista à centralidade dada ao funcionamen-
to sexual, como uma preocupação eminentemente
Para ela, essa psico-medicalização da heteros- masculina, direcionada à reabilitação dos homens.
sexualidade coexiste com a intensa politização da Entre os dez volumes analisados, seis números es-
diversidade sexual. Estes processos estariam in- peciais são dedicados à temática das mulheres, além
terligados na medida em que ambos resultam da de um sobre gênero e vários outros artigos que ao
autonomização da sexualidade em relação à esfera longo das edições regulares também tratam deste
reprodutiva e da ênfase no prazer como objetivo tema. Entre os principais argumentos que susten-
primordial da atividade sexual. Em face desse mo- tam a especificidade da experiência das mulheres
vimento sexológico mais abrangente, a “deficiên- desabilitadas está a idéia de dupla opressão: de um
cia” pode ser pensada como um terreno fértil para lado pela própria condição feminina, de outro, pela
a proliferação do conhecimento e das terapêuticas condição de pessoa com “deficiência”/desabilitada.
sobre “disfunções sexuais”. Ellen Rubin (1997)12, por exemplo, aborda as difi-

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culdades de reabilitação entre mulheres cegas, que médicas como a ginecologia e a obstetrícia que vão
precisam ultrapassar uma dupla barreira (interior e atuar na pesquisa e no manejo do ciclo menstrual,
exterior) para enfrentar suas desabilidades. Os ho- da menopausa, da infertilidade, das complicações da
mens, mesmo sendo cegos, são socializados para gravidez, das doenças sexualmente transmissíveis e
enfrentar as dificuldades relativas à sua condição das estratégias de prevenção e contracepção.
física como desafios exteriores a serem superados. A vulnerabilidade ao abuso e à violência sexual
No caso das mulheres, a incapacidade física tende é outra dimensão importante que se torna objeto de
acentuar elementos de domesticidade e dependên- problematização a partir da perspectiva da vivência
cia que fazem parte da socialização feminina. Além feminina da sexualidade no contexto da “deficiên-
das dificuldades específicas que a reabilitação apre- cia”. Entre as principais razões dessa vulnerabilidade
senta no caso da deficiência visual, colocam-se uma são a proximidade e a maior dependência das mu-
série de barreiras subjetivas relativas à ausência de lheres desabilitadas em relação aos perpetradores do
um estímulo para a auto-suficiência bem como da abuso. Para Beck-Massey é preciso considerar tam-
própria crença na superação das dificuldades. bém a existência de uma espécie de aceitação social
O argumento da dupla opressão torna-se ainda da violência contra mulheres desabilitadas:
mais eficaz na construção desse tipo de problema-
tização à medida que é operacionalizado no âmbi- A mulher com deficiência freqüentemente sofre
to da sexualidade. Nesse caso, a crítica se dirige às todo o tipo de abusos, muitos dos quais perpe-
iniciativas de desenvolvimento de tecnologias de trados sem a consciência e o reconhecimento
reabilitação focadas na disfunção sexual masculina, dessa mulher como ser humano, fato que legi-
como se a sexualidade fosse algo de menor impor- tima o próprio abuso. Sendo vista como uma
tância para as mulheres. No campo da sexologia, pessoa defeituosa, a mulher deficiente é depre-
os autores apontam a inexistência de alternativas ciada, desvalorizada e tratada muitas vezes com
medicamentosas de estímulo à excitação e ao desejo desrespeito (Becck-Massey, 1999, p. 271, trad.
sexual das mulheres. Espera-se que o desenvolvi- livre).
mento de um viagra feminino possa promover uma
revolução tão expressiva no acesso ao desempenho Mesmo os artigos que se contrapõem à percep-
sexual das mulheres quanto aquela que vem pro- ção de uma maior vulnerabilidade, argumentando
movendo entre os homens.13 A menor associação que os índices de abuso não se distanciam da inci-
da mulher à sexualidade seria responsável também dência entre as mulheres em geral, destacam a dife-
pela maior dificuldade das mulheres desabilitadas rença em relação ao acesso às estratégias de enfren-
em acessar informações e educação sexual. Walters, tamento, como condições de expressão e denúncia.
Nosek e Langdon, numa pesquisa que compara as
condições de acesso à educação sexual e às infor- Sexualidades desabilitadas14
mações sobre funcionamento reprodutivo e contra-
cepção, justificam a maior dificuldade das mulheres A preocupação com os aspectos sociais ligados
desabilitadas pela indiferença social e histórica em à deficiência inaugura a participação das ciências
relação à sexualidade feminina: “Historicamente as sociais, da história e da psicologia social na aborda-
mulheres têm sido vistas como empregadas dos ho- gem da interface entre sexualidade e “deficiência”.
mens e potenciais mães e não como seres sexuais. Entre os primeiros elementos destacados por essa
Espera-se delas que ajam como se realmente não perspectiva está a presunção de assexualidade das
tivessem desejo sexual” (2001, p. 168, trad. livre). pessoas desabilitadas, que já vinha sendo pautada
Além de promover a investigação da sexualida- na perspectiva da reabilitação. É vinculado à teoria
de feminina no campo da “deficiência”, essa pers- social da “deficiência” que esse enfoque ganha mais
pectiva aponta para um outro foco de discussões, força, pois a unidade de análise se desloca da limi-
o do acesso à saúde reprodutiva. Desse modo, atrai tação sexual para as expectativas sociais relativas à
para o campo da “deficiência” novas especialidades sexualidade. Tepper (2000), por exemplo, mostra

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como a própria sexologia durante o século XX, ao desabilidade. Segundo Tom Shakespeare (2000),
eleger o orgasmo como determinador do desempe- destacam-se a falta de condições de privacidade
nho e da expressão sexual, além de uma medida da e de condições financeiras decorrentes de situação
saúde sexual instaura uma espécie de profilaxia da de dependência econômica; o estigma vinculado à
sexualidade. Em sua avaliação, os imperativos cultu- imagem corporal; a baixa auto-estima e autocon-
rais do orgasmo e da terapia sexual (no caso da falta fiança; a dificuldade no estabelecimento de relações
dele) reforçam a representação das pessoas desabili- interpessoais; a alta incidência de situações trau-
tadas como assexuadas ou incapazes sexualmente. máticas de abuso sexual (principalmente entre mu-
Nesse sentido, para o autor criticar a presunção de lheres), dificultando o estabelecimento de laços de
assexualidade das pessoas desabilitadas demanda confiança para o exercício da sexualidade.
mais do que um discurso sobre a necessidade de A abordagem relativista da diversidade sexual,
sexo como critério de qualidade de vida. que vem encontrando respaldo e amparo conceitual
Uma das nuanças que podem ser percebidas na teoria queer,15 é uma das principais característi-
nos textos identificados com a teoria social da cas da perspectiva social. Os artigos que discutem a
“deficiência” é a mudança de posição das pessoas situação de pessoas desabilitadas pertencentes a gru-
com “deficiência”, que deixam de ser consideradas pos sexuais minoritários, como faz Odette (1999)
apenas como “pacientes”. Sua atuação não se resu- em relato de sua experiência pessoal como mulher
me ao consumo de tecnologias e serviços de rea- lésbica e desabilitada, apontam para a insuficiência
bilitação e, ela passa a ocupar o próprio espaço da dos padrões binários de gênero para descrever a di-
produção do conhecimento. Nesse sentido, cabe versidade de expressões que perpassam as relações
destacar que o modelo social tem sua origem entre das pessoas.
ativistas políticos ingleses vinculados à Union of A vinculação com a teoria queer permite ques-
Physically Impaired Against Segregation (Upias). tionar a um só tempo as modalidades de interações
Esse grupo defende que os problemas com a “defi- sexuais standard (intercurso penetrativo heterosse-
ciência” não são causados pelas características cor- xual) e os padrões eróticos que elegem como desejá-
porais em si, mas pela forma opressiva por meio veis apenas determinados tipos corporais. A crítica,
da qual a sociedade lida com a diferença corporal. principalmente aos padrões estéticos que organizam
Desse modo, o modelo social procura imprimir a produção de desejo legítimo, vai ao encontro de
um sentido particular ao termo disability, privile- uma posição mais relativizadora de práticas e dese-
giando a distinção entre corpos socialmente habili- jos, como aqueles que pautam o devoteísmo.
tados e desabilitados. Em geral, os artigos constituídos de narrativas
No que tange à interface com a sexualidade, a de experiência, escritos pelos consumidores do co-
aplicação desse modelo implica a tese de que não nhecimento científico veiculado pela revista, tam-
são os elementos físicos e psicológicos imediata- bém podem ser pensados a partir dessa perspectiva
mente decorrentes das condições corporais dife- social de problematização. Isso acontece, em gran-
renciadas que desabilitam as pessoas em relação de medida, porque tanto no campo da teoria queer,
ao exercício da sexualidade, mas sim os padrões de como no interior da escola sociológica de Leeds há
normalidade sexual que não comportam as expe- uma defesa e um reconhecimento da autoridade da
riências das pessoas desabilitadas. Dito de outro experiência como chave para a produção do conhe-
modo, o que desabilita para o sexo para além da cimento sobre o tema.
incapacidade corporal e/ou cognitiva são as normas O destaque aos aspectos sociais desabilitadores
sociais que determinam o que é sexualmente possí- em relação à sexualidade é simultâneo à mudança
vel e aceitável. de uma prática discursiva alicerçada na promoção
A problematização dos aspectos sociais que de- da saúde para um outro tipo de discurso, cuja ênfa-
sabilitam os indivíduos em relação ao exercício da se está no direito, no reconhecimento da cidadania
sexualidade contempla as dificuldades estruturais e na busca por uma não patologização da variação e
que ultrapassam as peculiaridades de cada tipo de da diversidade corporal e sexual.

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Corpo e outras (de)limitações sexuais  125

Redes de suporte e assistência mais ajuda para superar essa expectativa e engajar-se
numa nova dinâmica de interação sexual.
A quarta perspectiva de abordagem contem- A perspectiva das redes delineia uma forma
pla a formação de redes de suporte e assistência ao específica de produção textual, pautada pela coo-
exercício da sexualidade para pessoas com os mais peração entre profissionais acadêmicos e consumi-
diversos tipos de “deficiência”. Esse tipo de abor- dores, sejam eles as próprias pessoas desabilitadas
dagem marca a presença de vários outros grupos sejam seus familiares. Exemplo disso, no campo das
profissionais vinculados à área da saúde, como en- desabilidades cognitivas, é o material produzido
fermagem, fisioterapia, serviço social, além de uma por Robert Strike e David McConnel (2002). Este
contribuição mais efetiva da área de educação espe- trabalho mostra a possibilidade de acesso ao casa-
cial e educação sexual propriamente dita. A questão mento, a uma vida sexual ativa e à parentalidade, o
do suporte e da assistência agrega elementos dos que, na maioria das vezes, são aspectos interditados.
dois modelos teóricos de explicação da “deficiên- Além disso, ele também destoa dos demais artigos
cia”, o médico e o social. Seu foco é a intervenção no que diz respeito à preocupação dos profissionais
direta em face dos mais diferentes tipos de “defi- da saúde (em especial enfermeiros e fisioterapeutas)
ciência” para o exercício da sexualidade. Além da com os excessos sexuais das pessoas com deficiên-
abertura do campo profissional, há que se destacar cias cognitivas ou alguns tipos de doenças crônicas
também a organização das famílias de pessoas desa- associadas à capacidade psíquica.
bilitadas em redes de apoio e solidariedade baseadas O texto é uma co-produção entre um pai com
nas trocas de experiência. desabilidades cognitivas moderadas e um pesquisa-
Nesse tipo de texto há um recorte diferenciado dor (em pós-doutorado) da área do serviço social.
em relação ao universo de estudo. Se a perspecti- Seu propósito é descrever alguns pontos de conflito
va da funcionalidade sexual delimita sua análi- no exercício parental de pessoas com “deficiências
se em torno dos indivíduos desabilitados ou das cognitivas”, principalmente no que concerne à par-
pessoas com “deficiência”, a perspectiva feminista ticipação de agentes de suporte na parentalidade.
preocupa-se especificamente com as mulheres de- Ao longo do artigo, que pode ser descrito como
sabilitadas e a perspectiva social procura dar conta uma entrevista/diálogo entre os dois autores, Ro-
dos elementos que compõe a estrutura social mais bert Strike usa sua experiência como pai que neces-
ampla, os artigos que abordam as redes de suporte sita de suporte para dar sugestões aos profissionais
e assistência privilegiam os agentes de suporte, os que trabalham na assistência. Entre os elementos
profissionais envolvidos nos processos de reabilita- destacados estão: olhar para além do rótulo de defi-
ção e inclusão social, os cuidadores, os parceiros e ciente; falar diretamente com a pessoa desabilitada
os familiares das pessoas desabilitadas. e não por intermédio de outras; apenas ouvir o que
O trabalho de Esmail e Munro (2002), por o pai/mãe desabilitado tem a dizer não é suficiente,
exemplo, sobre o papel dos profissionais da saúde na é preciso escutar e respeitar o que ele está dizendo;
criação de alternativas para a vida sexual de casais em fazer as coisas com e não para as pessoas desabili-
um dos parceiros possui algum tipo de “deficiência”, tadas. Na conclusão do artigo, ele pondera sobre a
aponta para a necessidade de uma abordagem tera- colaboração entre as pessoas desabilitadas e os agen-
pêutica que contemple também os(as) parceiros(as) tes de suporte:
das pessoas afetadas por “deficiências” físicas e cog-
nitivas, bem como por doenças crônicas. Uma das Acho que a primeira coisa que temos a fazer é
principais dificuldades na elaboração de novas for- perguntar o que os pais querem, em vez de de-
mas e sentidos de satisfação sexual é a expectativa de duzir o que eles querem. Certifique-se de que
retomar o mesmo tipo de intimidade que constituía você é capaz de parar o que você está fazendo e
a relação sexual antes da deficiência ou da doença. mostrar-lhes que você está ouvindo. Você pre-
Embora compartilhada pelo casal, muitas vezes é cisa ter certeza de que está entendendo o que a
o(a) parceiro(a) não desabilitado que precisa de pessoa está dizendo. Em vez de colocar palavras

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na boca das pessoas, é preciso deixar que a pes- tópico especial intitulado “Sexualidade entre pes-
soa termine de falar para depois fazer a pergun- soas com Demência e Alzheimer”, publicado no
ta. Penso que é importante para nós mostrar volume 16, número 3, em 1998.
para as pessoas (que trabalham na assistência) Os demais artigos apresentam-se de modo dis-
que podemos trabalhar juntos e não um contra perso, aparecendo de maneira mais significativa a
o outro (Strike e McConnel, 2002, pp. 62-63, partir de 2000. Além disso, muitos deles não se de-
trad. livre). têm especificamente na questão da sexualidade, mas
sim na reprodução e na parentalidade, articulando-
Esta passagem reafirma o argumento central do se assim com uma discussão sobre direitos repro-
texto, qual seja, de que as pessoas com desabilida- dutivos. Destaco os mais afinados com a perspec-
des cognitivas “têm algo importante a dizer” sobre a tiva das redes de suporte e assistência, como o de
sua própria trajetória e sobre o serviço de assistência Strike e McConnel, acima referido, bem como os
que lhes é prestado. A questão que se coloca para textos preocupados com os aspectos sociais. Exem-
as pessoas que trabalham no suporte é justamente plar dessa última perspectiva é o trabalho de Pame-
não fazer as coisas pelas pessoas com deficiência e la Block (2000 e 2002), que analisa as questões de
sim junto com elas. A dependência, portanto, não parentalidade, fertilidade e os processos de esterili-
exclui a possibilidade de fazer escolhas e de tomar zação de mulheres com “deficiências” cognitivas no
decisões, “relativamente autônomas”, como fazem Brasil e nos Estados Unidos. Ao abordar a questão
todas as outras pessoas. da sexualidade, a autora defende a normalidade e a
positividade da atividade sexual entre pessoas com
“deficiência” cognitiva. No entanto, seu trabalho é
Sexualidade como fronteira da normalidade uma exceção quando comparado aos demais textos
que abordam a diversidade cognitiva.
Essa diversidade de perspectivas remete a uma Do ponto de vista etnográfico, tal lacuna pode
complexa negociação dos limites entre normalidade ser considerada um dado de pesquisa, uma vez que
e patologia em relação à experiência da diversidade aponta para um tipo de articulação preferencial en-
corporal, cognitiva e psíquica, à experiência sexual tre as temáticas sobre sexualidade e “deficiência”.
e aos cruzamentos entre elas. O estudo de tais ne- Nesse sentido, abundam investigações quantitati-
gociações não pode estar desvinculado das relações vas e qualitativas destinadas a explorar a hipótese
de poder e das disputas de legitimidade social e de um menor desempenho e satisfação sexuais por
acadêmica entre os diferentes grupos profissionais parte das pessoas fisicamente desabilitadas. Vejamos
que produzem conhecimento nessa área. Procurei alguns exemplos.
descrever em linhas gerais a contribuição de dife- Taleporos e McCabe revisam a literatura so-
rentes atores na construção da interface entre essas bre as implicações físicas e as barreiras sociais que
temáticas, tecendo interpretações sobre as relações comprometem a atividade sexual entre pessoas com
estabelecidas entre eles. desabilidades físicas. Para os autores, o comprome-
Nesta sessão, proponho discutir diferenças na timento físico não implica uma diminuição das ne-
abordagem da sexualidade quanto ao tipo de “de- cessidades sexuais:
ficiência”. Para tanto, inicio retomando a discre-
pância quantitativa em favor da abordagem das Embora esse estudos demonstrem que a ativi-
“deficiências” físicas. Embora eu não esteja fazendo dade sexual das pessoas com deficiência física
um estudo do tipo análise de conteúdo, no qual as sejam limitadas, não há razão para acreditarmos
categorias são mensuradas em relação à freqüência e que as necessidades sexuais e amorosas sejam
ao tipo de referência, parece-me imprescindível res- inferiores às da população em geral. De fato,
saltar o contraste numérico. Dos mais de trezentos Cummins e Deeks mostraram que as necessida-
artigos, menos de trinta abordam especificamente des sexuais das pessoas com deficiências físicas
essa temática. A maior parte está agrupada em um são elevadas. Desse modo, a combinação entre

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Corpo e outras (de)limitações sexuais  127

pouca experiência sexual e elevada necessidade como um importante aliado no controle ou no


interfere facilmente na estima sexual das pessoas enfrentamento da própria deficiência ou patologia.
com deficiência. Entretanto, essa questão vem Em tais casos, é percebida como normal (como uma
sendo amplamente ignorada na literatura (Tale- evidência de melhora) a iniciativa do indivíduo em
poros e McCabe, 2001, p. 113, trad. livre). procurar apoio para a retomada de sua vida sexual,
inclusive no caso da manutenção de vínculos con-
Seu objeto de investigação é a relação entre es- jugais preexistentes.
tima sexual e auto-estima dos sujeitos. Descrevendo Os psicólogos Andrew Walters e Gail William-
experiências individuais em que não há diminui- son defendem a existência de uma forte correlação
ção da satisfação sexual, pelo contrário, em que se entre o exercício da sexualidade e a qualidade de
observa uma aquisição de maior criatividade e ver- vida das pessoas com “deficiências” físicas. Num
satilidade sexuais, os autores concluem que a “defi- estudo com pessoas amputadas (1998), eles desta-
ciência” não pode ser tomada como determinante cam que o incremento da auto-estima, a melhora
de uma baixa estima sexual. Tais exemplos devem da auto-imagem e da imagem corporal estariam di-
ser explorados, segundo eles, no aconselhamento retamente implicados na visão de si como alguém
de pessoas que enfrentam dificuldades dessa ordem atraente e desejável sexualmente. Nesse sentido, os
(Idem). autores encorajam os profissionais a estimularem a
Outro artigo interessante é o de Irzyniek e Lew- expressão da sexualidade.
Starowicz sobre a vida sexual de mulheres com sín- Todos esses exemplos levam a pensar que
drome de Turner. A citação a seguir mostra a discus- quando se trata de “deficiências” físicas, bem como
são decorrente da dos dados sobre a diferença entre doenças fisiológicas crônicas, o interesse pela sexua­
a vida sexual das mulheres com síndrome de Turner lidade, as iniciativas de reabilitação e o exercício
em relação às mulheres que não possuem a doença: da sexualidade em si operam como uma espécie
de fronteira de acesso à normalidade. A prática se-
A vida sexual é uma das atividades mais essen- xual é vista como algo que não traz prejuízos ou
ciais para a mulher e determina sua qualida- agravos para a condição física do indivíduo, pelo
de de vida. O reconhecimento dessa esfera é contrário numa perspectiva mais ampla de saúde,
de grande importância para os médicos que ela é considerada saudável e benéfica. Até mesmo
atendem pacientes com Síndrome de Turner. do ponto de vista da inclusão social, a inserção dos
Como dissemos anteriormente, uma porcen- indivíduos nos programas de educação sexual, a
tagem alta das mulheres com Turner demons- abordagem para prevenção de doenças, a capacida-
tra pouco interesse por homens, retardam sua de de despertar interesse erótico operam de modo
iniciação sexual ou mesmo não se relacionam a diminuir o estigma e a distinção pejorativa das
sexualmente, se comparadas às mulheres que pessoas desabilitadas.
não apresentam essa doença (Irzyniek e Lew- No entanto, quando o assunto são as desabi-
Starowicz, 2006, p. 210, trad. livre). lidades cognitivas ou doenças crônicas que pertur-
bam a sanidade mental (como a demência e o mal
Conforme nos mostra Machado (2005) sobre de Alzheimer, por exemplo) a presença de atividade
as patologias associadas à diferenciação sexual, há sexual aparece nos artigos como um elemento que
uma preocupação especial por parte dos médicos reforça a própria deficiência, ou que coloca entraves
na normalização sexual dessas pacientes, em vista para o seu manejo. Essa tendência é expressa nos
da legitimação do sexo feminino assignado.16 Re- próprios títulos dos artigos, que passam a enfati-
comenda-se uma maior atenção nessa dimensão zar expressões inadequadas, excessivas, impróprias e
sexual da vida dessas pacientes, inclusive para que perversas da sexualidade. Nesses casos, não é a falta
os médicos possam ajudá-las em suas dificuldades. de sexo que é percebida como problemática, já que
Mais do que anular o efeito negativo da “deficiên­ do ponto de vista corporal essas pessoas se encon-
cia” física, a retomada da vida sexual é pensada tram plenamente habilitadas para atividade sexual,

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mas a busca de uma parceria sexual ou a manifes- domesticação de práticas como a masturbação,
tação pública da sexualidade é que é em si conside- inapropriadas entre pacientes com “deficiências”
rada problemática. Prevalece nos artigos a idéia de cognitivas severas. Não se trata de combater a mas-
sexualidade descontrolada, exacerbada e doentia. turbação (que em si é considerada positiva), mas
O texto de Katlen Mayers realiza um survey en- de criar estratégias para que ela aconteça de forma
tre profissionais de saúde que trabalham com idosos mais apropriada. O autor propõe intensificar a pre-
institucionalizados sobre o comportamento sexual ocupação e a responsabilidade dos cuidadores com
dos internos. A ênfase do artigo são os abusos sexuais a melhora dos pacientes, modificando o tipo de
cometidos por internos, homens e mulheres, contra resposta dada à masturbação inadequada.17 Outra
os próprios profissionais de saúde e contra outros “educadora especial”, Rebecca Koller (2000), ao
pacientes. Os dados mostram a freqüência das ocor- abordar a sexualidade entre adolescentes com au-
rências nesse sentido indicadas pelos profissionais de tismo também defende a necessidade de educação
saúde a partir de sua experiência e observação das sexual no que diz respeito à promoção de um auto-
atitudes sexuais dos internos. Práticas como “toques erotismo mais adequado às normas sociais, à auto-
nos seios”, “toques nas nádegas”, propostas de conte- proteção em relação ao abuso e ao suporte ante o
údo sexual, masturbação, de carícias sexuais entre os direcionamento do desejo sexual a outras pessoas.
pacientes, entre outras são percebidas pelas cuidado- A sexualidade masturbatória (e poderíamos
ras como formas de abuso . A análise que empreen- acrescentar também as demais práticas não pene-
dem a partir desses dados tem como principal objeti- trativas), como bem descreve Foucault (2001) no
vo prevenir a vitimização de profissionais e pacientes curso sobre “Os anormais” ministrado na década
em relação aos excessos sexuais: de 1970 no College de France, foi considerada pro-
pulsora de todas as anomalias no século XIX. Po-
Alguns cuidadores acreditam que o compor- de-se observar, nos artigos aqui analisados, que tal
tamento dos pacientes pode predizer atitudes sexualidade continua servindo como manifestação
sexualmente agressivas. Eles afirmam que os e, ao mesmo tempo, como prova de anormalidade.
agressores sexuais verbalizam coisas sobre se- Creio, dessa forma, que as manifestações da sexua-
xualidade, se engajam em atividades de auto- lidade entre pessoas com “deficiências” cognitivas
estimulação, masturbação e inspeção das partes são abordadas muito mais em relação ao descon-
privadas do corpo dos outros. Segundo um forto e à perturbação que causam às outras pessoas,
cuidador, os homens queriam mostrar seus em especial os familiares e cuidadores. O efeito de
genitais para as mulheres e tentaram puxá- fronteira operado pela sexualidade alarga ainda
las para dentro dos quartos. Observar esses mais o espectro de anormalidade que assombra a
comportamentos tem sido útil para prevenir variabilidade cognitiva. Muito raras são as iniciati-
a ocorrência de agressão sexual. Membros da vas que procuram compreender de maneira positiva
equipe indicaram que a maior parte dos com- tais expressões sexuais, ou que investem na reabili-
portamentos preditivos da vitimização sexual é tação e na promoção da sexualidade.
a verbalização sexual e a masturbação (Mayers,
1998, p. 222, trad. livre).
Considerações finais
Nesses casos, as atitudes sexuais são justificadas
pela própria doença, sendo consideradas uma ma- Uma das principais virtudes da etnografia,
nifestação da própria demência. segundo Peirano (1995), é que geralmente os da-
Mesmo entre os artigos que não consideram dos apresentados ultrapassam as interpretações do
patológicas as expressões sexuais socialmente ina- antropólogo. Partindo desse preceito, este artigo
propriadas, como o texto do “educador especial” teve como principal finalidade servir de convite
Anthony Walsh (2000), há um investimento no e estímulo para que estudiosos da sexualidade e
desenvolvimento de estratégias de controle ou das relações de gênero observem mais de perto a

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Corpo e outras (de)limitações sexuais  129

temática das “deficiências” e, principalmente, ana- As aspas indicam a menção ao conceito médico de
lisem com mais acuidade o conteúdo dos artigos, deficiência, o qual não subscrevo ao longo do artigo.
para além daquilo que a leitura apresentada per- Sua referência no texto como designativa do objeto
mite compreender. em questão justifica-se por uma questão de comuni-
cação, tendo em vista que historicamente o conceito
Seguramente, grupos religiosos, entidades fi-
adquiriu um caráter de verdade oficial, sendo incor-
lantrópicas, Ongs, ativistas políticos e associações porado ao senso comum.
de pessoas com “deficiência” aguardam respostas
2 A revista é publicada pela editora Springer, que traba-
cientificamente embasadas sobre as possibilidades lha com periódicos internacionais nas áreas de ciência,
sexuais, bem como sobre estratégias menos repressi- tecnologia, matemática e medicina. Tendo iniciado
vas de manejo da sexualidade e das intenções repro- em 1978, ela seguiu sendo publicada periodicamente
dutivas de pessoas com diferentes tipos de deficiên- até 1984. O oitavo volume foi publicado em 1987
cias físicas, cognitivas ou com doenças crônicas. quando houve uma nova interrupção de três anos. O
A partir da análise dos artigos publicados ao nono volume e a seqüência anual regular foram reto-
longo de dez anos na revista Sexuality and Disabili- mados em 1991. Dos primeiros quinze volumes estão
ty, procurou-se descrever a emergência da interface disponíveis até o momento apenas os títulos dos arti-
sexualidade e “deficiência” com base em quatro di- gos e os autores.
ferentes formas de problematização. é dialogando 3 A organização dessas instituições, principalmente nos
com essas diferentes perspectivas — funcionalidade Estados Unidos e na Inglaterra, ocorreu num contexto
marcado pela industrialização e urbanização das cidades
sexual, especificidade das mulheres, desabilitação e
(cuja conseqüência inevitável é a proliferação de aciden-
redes de suporte e assistência —, é que os cientistas
tes de trânsito e de trabalho) e pela atuação desses países
sociais poderão produzir novas interpretações sobre em diferentes guerras ao longo do século XX.
essa interface. Mais do que isso, a leitura das “defi-
4 Para a revista, são considerados consumidores as pró-
ciências” em termos de variabilidade corporal traz prias pessoas com “deficiência”, à medida que para
novas interpelações sobre as convenções corporais elas é que se dirigem o conhecimento, as técnicas e as
em torno da sexualidade. estratégias terapêuticas apresentadas pela revista.
Ao suscitar discussões em torno da relativiza- 5 Trata-se do Projeto “Difundindo os Direitos Sexuais e
ção do corpo e das potencialidades físicas e cog- Reprodutivos da América Latina” realizado entre 2005
nitivas, essa análise apresenta questões desafiado- e 2007, junto ao Observatório de Direitos Humanos
ras às clássicas teorias do construtivismo social. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a
Acostumadas a privilegiar a dimensão história, coordenação dos professores Daniela Riva Knauth e
contextual e simbólica da sexualidade, as teorias Fernando Sefner.
parecem pouco confortáveis diante da necessida- 6 Refiro-me em especial a Almeida (2005).
de de retorno ao corpo como lócus da diferença 7 Nesses números a nota do editor é sucedida por uma
(Vance e Adress, 1989). Para fazer frente a essas introdução e o prefácio é redigido pelo editor convida-
questões, a discussão construtivista precisa reen- do. Podem ser compostos por artigos produzidos por
contrar o caminho do diálogo com a sexologia e um mesmo grupo de pesquisa, ou o próprio editor
com a medicina, para além das já desgastadas crí- convidado faz contatos com autores estrangeiros que
ticas à abordagem essencialista. trabalham com a temática proposta , além de procurar
abordagens distintas para diversificar as perspectivas.
8 Por exemplo, no primeiro número do volume 15 pu-
blicado em março de 1997, a maior parte foi dedi-
Notas cada ao detalhamento da programação, com resumos
e principais artigos do “Seminário Internacional de
1 A grafia entre aspas da palavra deficiência ao longo do Mulheres e Deficiência”. Havia desde textos políticos
artigo objetiva assinalar a dificuldade de tradução do de militantes feministas, até apresentação dos resul-
termo inglês disability para o português e a imprecisão tados de pesquisas sobre os principais problemas en-
do termo deficiência. Ao mesmo tempo visa estabele- frentados pelas mulheres nos processo de reabilitação
cer uma distinção entre utilização e menção do termo. e também relatos de prática clínica ginecológica.

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130  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 25 N° 72

9 Observação similar é evidenciada na tese de Malcher 16 No contexto das Desordens do Desenvolvimento Se-
(2007) sobre as tentativas de criação da Andrologia xual (DSD), o processo de assignação sexual diz res-
como especialidade médica, distinta da Urologia. peito às decisões tomadas para a designação do sexo e
Tal investimento caracterizava-se pela busca de dife- para a correção dos genitais.
rentes referenciais em fisiologia, psicologia, estudos 17 Inadequada, segundo Walsh (2000), é a masturbação
de patologia sexual, relatos de casos hospitalares e de praticada no lugar e hora errados, que cause qualquer
terapêuticas, entre outros, a fim de justificar a espe- tipo de lesão à genitália, em que a freqüência possa
cificidade e a importância da andrologia dentro da perturbar o exercício de outras atividades, que causa
medicina. desconforto à própria pessoa ou às outras.
10 Devoteísmo é o termo utilizado para descrever atração
ou desejo erótico vinculado à condição corporal dife-
renciada ou deficiência. Do ponto de vista psiquiátri-
co, essa atração é caracterizada como parafilia, ou seja, Bibliografia
um transtorno do desejo sexual.
11 Vale lembrar que não apenas os comportamentos que ADDRESS, Keynote & VANCE, Carole. (1989),
se distanciam da norma heterossexual são tomados em “Social Construction theory: problems in the
si como patológicos, mas também são associados a ou- history of sexuality”, in D. Altman et al. Which
tros tipos de patologias, como a Aids, o uso de drogas homossexuality? Essays from the International
e o alcoolismo. Na próxima sessão analiso em detalhe Conference on Lesbian and Gay studies, Londres,
os deslocamentos entre os limites de normalidade em
GMP Publischer, pp. 13-34.
relação à deficiência a partir da sexualidade.
ALMEIDA, Francis Moraes. (2005), Heranças pe-
12 A autora é coordenadora de programas em prol da rigosas: arquegenealogia da legislação penal bra-
igualdade de educação para pessoas desabilitadas.
sileira. Porto Alegre, dissertação de mestrado
13 Apesar dessa expectativa por parte dos sexólogos, em Sociologia, Universidade Federal do Rio
Ducharme (2005) assinala a existência de uma série Grande do Sul.
de controvérsias relacionadas à desconfiança quanto
BECK-MASSEY, Débora. (1999), “Sanctioned
à participação das indústrias farmacêuticas nas pes-
quisas e também à desconfiança da efetividade do
war: women, violence, and disabilities”. Sexu-
próprio medicamento na resolução do problema, sem ality and Disability, 17 (3): 269-276.
considerar a influência de outros aspectos, tais como BOLCK, Pamela. (2000), “Sexuality, fertility, and
a moralidade sexual, o stress, a emoção, o tipo de re- danger: Twentieth-Century images of women
lacionamento, as condições de conforto, a idade, as with cognitive disabilities”. Sexuality and Dis-
características religiosas e culturais etc. ability, 18 (4): 239-254.
14 A tradução corrente da palavra disability para o por- . (2002), “Sexuality, parenthood, and
tuguês é incapacidade ou deficiência. No entanto, a cognitive disability in Brazil”. Sexuality and
fim de contemplar o sentido proposto no contexto da Disability, 20 (1): 7-28.
teoria social, optei pelos termos desabilitação ou de- CAMARGO Jr., Kenneth. (2003), Biomedicina, sa-
sabilidade, nos casos em que os autores endossam esse ber e ciência. São Paulo, Hucitec.
modelo teórico. Esses termos possibilitam uma leitura DINIZ, Débora. (2007), O que é Deficiência? São
que acentua a arbitrariedade social da divisão entre
Paulo, Brasiliense.
corpos habilitados e desabilitados e, portanto, descre-
vem de forma mais adequada o sentido conferido pela
DUCHARME, Stanley. (2005), “From Editor”.
teoria social à palavra disability. Sexuality and Disability, 23 (3): 117-120.
ELMORE, James. (2000), “Fluoxetine-Associ-
15 O termo queer, que significa “torcido”, “oblíquo”, “es-
quisito”, era usado nos Estados Unidos e na Inglaterra
ated remission of ego-dystonic male homo-
em tom de rejeição e degradação para se referir aos sexuality”. Sexuality and Disability, 20 (2):
gays, lésbicas e transgêneros. Entretanto, no final dos 149-151.
anos de 1980 foi reapropriado de modo afirmativo ESMAIL, Shaniff; ESMAIL, Yashima & MUNRO,
para se referir a todos os indivíduos cuja sexualidade Brenda. (2001), “Sexuality and disability: the
extrapolasse os limites da heterossexualidade binária. role of the health care professionals in provid-

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Corpo e outras (de)limitações sexuais  131

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178  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 25 N° 72

Corpo e outras (de) THE BODY AND OTHER le Corps et d’autres (dÉ)
limitações sexuais: Uma SEXUAL (DE)LIMITATIONS: AN limitations sexuelles: Une
análise antropológica ANTHROPOLOGICAL ANALYSIS analyse anthropologique
da revista Sexuality and OF THE MAGAZINE Sexuality de la revue Sexuality and
Disability entre os anos de and Disability BETWEEN 1996 Disability entre les annÉes
1996 e 2006 AND 2006 1996 et 2006

Nádia Elisa Meinerz Nádia Elisa Meinerz Nádia Elisa Meinerz

Palavras-Chave: Sexualidade; Corpo; Di- Keywords: Sexuality; Body; Diversity; Mots-clés: Sexualité; Corps; Diversité;
versidade; Deficiências; Reabilitação. Deficiencies; Rehabilitation. Insuffisances; Réhabilitation.

O objetivo deste artigo é descrever a This article aims at describing the emer- L’objectif de cet article est de décrire
emergência da interface entre sexuali- gence of the interface between sexuality l’émergence de l’interface entre la sexua-
dade e “deficiências” como problema de and “deficiencies” as both research and lité et les “insuffisances” en tant que
pesquisa e intervenção. Para tanto, são intervention problem. We analyze ar- problème de recherche et d’interven-
analisados artigos de uma revista interna- ticles from the international magazine tion. Pour cela, l’auteur analyse des arti-
cional intitulada Sexuality and Disability, Sexuality and Disability, published be- cles d’une revue internationale intitulée
publicados entre os anos de 1997 e 2006. tween 1997 and 2006. Four articulation Sexuality and Disability, publiés entre les
Foram identificadas quatro perspectivas perspectives have been identified amidst années 1997 et 2006. Il a identifié qua-
de articulação entre as temáticas que re- themes addressing different research tre perspectives d’articulation parmi les
metem a diferentes questões de pesquisa, matters, specific models explaining such thèmes qui renvoient à différentes ques-
modelos específicos de explicação da “de- “deficiency,” as well as variable positions tions de recherche, de modèles spécifiques
ficiência”, além de posições variáveis em regarding production, application, and d’explication de l’“insuffisance”, outre les
relação à produção, aplicação e consumo consumption of scientific knowledge. positions variables par rapport à la pro-
do conhecimento científico. A análise The analysis also points at sexuality as a duction, l’application et la consommation
aponta também para a sexualidade como boundary device, defining the limits be- de la connaissance scientifique. L’analyse
dispositivo de fronteira, definidor dos li- tween normality and pathology relating conduit également vers la sexualité en tant
mites entre normalidade e patologia em to the experience of corporal and psy- que dispositif de frontière, définisseur des
relação à experiência da diversidade cor- chic/cognitive diversity . limites entre la normalité et la pathologie
poral e psíquica/cognitiva. face à l’expérience de la diversité corpo-
relle et psychique/cognitive.

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