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X Encontro Nacional de Educação Matemática

Educação Matemática, Cultura e Diversidade


Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010

EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E DEMOCRACIA

Ledo Vaccaro Machado


Rede Estadual do Rio de Janeiro
ledovm@gbl.com.br

Resumo: Considerando que democracia é construída pela prática democrática dos


cidadãos no exercício da cidadania e partindo das referências feitas nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) à relevância da Matemática na formação do cidadão,
tentemos distinguir o que é a democratização do ensino da Matemática e o que é a
democratização do conhecimento Matemático. Buscando resposta à pergunta ―quanto um
cidadão deve saber de Matemática para o exercício da cidadania?‖, apresentamos o
resultado de uma sondagem feita com vinte pessoas. A sondagem não pretende enquadrar-
se no perfil de uma pesquisa, tendo, apenas, cunho ilustrativo.
Palavras-chave: Democracia; Educação Matemática; Cidadania; Avaliação.

Vou me atrever a falar o que é Educação Matemática e, mais ainda, dizer o que é
Democracia: Educação Matemática é aquilo que nós fazemos em nossas salas de aula, em
nossas escolas; Democracia é o regime no qual vivemos, regime construído e ratificado
pelos cidadãos de nosso país. Ir para além do que fiz aqui, tentar, de fato, definir Educação
Matemática e Democracia é uma tarefa, se exequível, árdua demais para enquadrá- la nessa
mesa redonda. Isto posto, aceitemos como conhecidos os significados dos termos
Educação Matemática e Democracia. Resta- nos estabelecer uma correlação entre os dois
termos.

Buscando esta correlação nos PCN, não destacamos a palavra democracia, mas a
palavra cidadania. Ora, a democracia é constituída pelos cidadãos no exercício da
cidadania. Encontramos:

Os Parâmetros Curriculares Nacionais indicam como objetivos do ensino fundamental que


os alunos sejam capazes de:

• compreender a cidadania como participação social e política, assim como exercício de


direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de
solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o
mesmo respeito; (BRASIL 1997, p.9)

Os Parâmetros Curriculares Nacionais para a área de Matemática no ensino fundamental


estão pautados por princípios decorrentes de estudos, pesquisas, práticas e debates
desenvolvidos nos últimos anos. São eles:
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— A Matemática é componente importante na construção da cidadania, na medida em que


a sociedade se utiliza, cada vez mais, de conhecimentos científicos e recursos tecnológicos,
dos quais os cidadãos devem se apropriar.

— A Matemática precisa estar ao alcance de todos e a democratização do seu ensino deve


ser meta prioritária do trabalho docente. (BRASIL 1997, p.18)

O papel que a Matemática desempenha na formação básica do cidadão brasileiro norteia


estes Parâmetros. Falar em formação básica para a cidadania significa falar da inserção das
pessoas no mundo do trabalho, das relações sociais e da cultura, no âmbito da sociedade
brasileira.
( ... )
A compreensão e a tomada de decisões diante de questões políticas e sociais
também dependem da leitura e interpretação de informações complexas, muitas vezes
contraditórias, que incluem dados estatísticos e índices divulgados pelos meios de
comunicação. Ou seja, para exercer a cidadania, é necessário saber calcular, medir,
raciocinar, argumentar, tratar informações estatisticamente, etc. (BRASIL 1997, p.25)

Surgiu- nos, então, uma pergunta: quanto de Matemática (e qual a Matemática) é


necessário para o exercício da cidadania? Fizemos essa pergunta a um de nossos mestres
da UFRJ, o Prof.: Luis Carlos Guimarães. Ele nos disse ter tido acesso a uma pesquisa feita
com cidadãos de alguns países de primeiro mundo buscando verificar o quanto de
Matemática eles dominavam. O resultado revelou que tais cidadãos dominavam
pouquíssimo do conteúdo matemático. Resolvemos, a título de ilustração e não com o rigor
que exigiria uma pesquisa, sondar o que acontece por aqui, por perto de nós. Selecionamos
cinco questões aplicadas em avaliações de larga escala no Brasil. Consideramos que tais
avaliações têm, como um de seus objetivos, verificar o quantos os alunos estão prepa rados
para o exercício da cidadania. Escolhemos questões que não envolvessem pontos muito
técnicos da Matemática, ou seja, questões que julgamos que um cidadão comum deveria
ser capaz de resolver. Vamos reproduzir estas questões abaixo.

1) Em uma fila, a décima quinta pessoa ocupa o lugar central da fila. Quantas pessoas há
na fila?

( A ) 28 ( B ) 29 ( C ) 30 ( D ) 31 ( E ) 32

2) Em uma festa estão presentes 25 pessoas. Pode-se afirmar que:

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( A ) há homens e mulheres na festa;

( B ) há mais homens do que mulheres na festa;

( C ) a quantidade de homens na festa é um número ímpar;

( D ) pelo menos três pessoas fazem aniversário no mesmo mês;

( E) pelo menos duas pessoas têm a mesma idade.

3) Num posto de combustíveis, a gasolina sofreu um aumento de 10%, passa ndo a custar
R$2,09 por litro. O preço do litro de gasolina antes do aumento era de:

( A ) R$1,90 ( B ) R$1,96 ( C ) R$2,00 ( D ) R$2,02 ( E ) R$2,04

4) Uma pesquisa de opinião foi realizada para avaliar os níveis de audiência de alguns
canais de televisão, entre 20h e 21h, durante uma determinada noite.

Os resultados obtidos estão representados no gráfico de barras abaixo.

O número de residências atingidas nessa pesquisa foi APROXIMADAMENTE de:

( A ) 100

( B ) 135

( C ) 150

( D ) 200

( E ) 220

5) Vinte anos depois da formatura, cinco colegas de turma decidem organizar uma
confraternização. Para marcar o dia e o local da confraternização, precisam comunicar-se
por telefone. Cada um conhece o telefone de alguns colegas e desconhece o de outros. No
quadro abaixo, o número 1 indica que o colega da linha correspondente conhece o telefone
do colega da coluna correspondente; o número 0 indica que o colega da linha não conhece

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o telefone do colega da coluna. Exemplo: Beto sabe o telefone do Dino que não conhece o
telefone do Aldo.

O número MÍNIMO de telefonemas que Aldo deve fazer para se comunicar com Carlos é:

(A)1

(B)2

(C)3

(D)4

(E)5

Montado o teste com as cinco questões, convidamos vinte pessoas de nosso


relacionamento para respondê- lo. Informamos que o teste era uma pesquisa para uma
palestra, que os participantes não seriam identificados e pedimos que fosse respondido com
o maior empenho possível. Todas as pessoas convidadas têm mais de 25 anos, trabalham e
votam. Terminaram, pelo menos, o ensino médio e foram capazes de ler e responder as
questões sem qualquer ajuda minha ou de terceiro. Quase todas são casadas e com filhos e
declaram imposto de renda. Nenhuma delas exerce atividades diretamente ligadas a
Matemática. Dentre os convidados encontra-se advogado, professor de português,
professor de história, professor de educação física, orientador educacional, operador de
áudio e vídeo, dona de casa, empregada doméstica, comerciante, comerciário, músico,
técnico em eletrônica, dentista, garçom, jornaleiro, veterinário, eletricista e mestre de obra.
Os resultados da sondagem estão expostos na tabela que se segue.

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Acertos Erros Branco

Questão 1 7 (35%) 13 ( 65%) 0 (0%)

Questão 2 2 (10%) 18 (90%) 0 (0%)

Questão 3 11 (55%) 8 (40%) 1 (5%)

Questão 4 9 (45%) 11 (55%) 0 (0%)

Questão 5 6 (30%) 13 (65%) 1 (5%)

Total 35% 63% 2%

Apenas a questão 3 foi acertada por mais de 50% dos respondentes, e mesmo assim
teve apenas 55% de respostas corretas. Do total de 100 questões, houve somente 35
acertos, e olhe que são questões de múltipla escolha com 5 alternativas. Se fosse uma
prova para passar de série, a reprovação seria em massa.

Mas os convidados são os cidadãos, que exercem a cidadania e constroem a


democracia. Como podem ter um desempenho tão ruim em Matemática? Notemos que as
questões selecionadas estão bastante distantes de poder ser consideradas difíceis. É tão
frágil a relação entre a Matemática e a democracia?

A bem da verdade, para ser um cidadão é preciso conhecer pouca Matemática. Não
é ela que pode servir de critério para separar aqueles que exercem conscientemente a
cidadania daqueles que não o fazem. Nem de longe estamos querendo dizer que é
indiferente, para o posicionamento e participação de um indivíduo no mundo, o
conhecimento de Matemática que cada um carrega e é capaz de usar. A Matemática
permite uma leitura mais ampla e acurada dos fatos, dos fenômenos. Num mundo
dominado pela tecnologia, ela pode trazer grandes vantagens à colocação profissional de
um indivíduo, e a profissão é um importante plano de participação social. Mas para o

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exercício consciente da cidadania o quão importante também não é a História, a Geografia,


a Filosofia, a língua materna? É possível defender a importância de qualquer disciplina
acadêmica para o exercício da cidadania. Por que destacar a Matemática? Ou será que para
ser um bom cidadão é preciso ser uma enciclopédia ambulante?

Não são os indivíduos que devem dominar os conhecimentos, e em especial a


Matemática, para que possamos ter uma democracia. A sociedade como um todo deve
dominá- los. Deve dominá-los como conhecimento especializado presente nos centro de
pesquisas, nas universidades e nas mãos dos especialistas e deve dominá- lo como
conhecimento médio de seus cidadãos. O direito de cada cidadão ter acesso ao ensino de
Matemática não deve ser confundido com o dever de conhecer Matemática. O direito ao
ensino de Matemática é a possibilidade de cada um decidir até que ponto a Matemática
fará parte de seu projeto de vida. Cabe-nos, como educadores ligados a Matemática,
apresentar as seduções e as dificuldades no trato da Matemática. No espaço democrático,
portas devem ser abertas, mas quais delas serão transpostas é decisão de cada um.

Por outro lado, é certo que todos precisarão de Matemática diversas vezes na vida:
imposto de renda; conta a pagar; prestações; tomar a decisão se é melhor comprar à vista
ou a prazo; organização de uma planilha eletrônica; cálculo da média para passar de ano;
cálculo da área de uma sala ou de um terreno e mais uma infinidade de casos. Se não há
domínio da Matemática, como abordar essas questões? Lembramo- nos de um texto de
Yves Chevallard.

ANOTAÇÃO DO JORNALISTA

Começo a reportagem visitando o dispos itivo que mais me chamou a atenção ao ler o
folheto de apresentação do Instituto de Educação Secundária ―Juan de Mairena‖: A Tenda
de Matemática. Quem me atendeu é Eduardo, um professor.

Jornalista: Desde quando existe a tenda de Matemática?

Eduardo: Bem, acho que desde a criação do Instituto. Embora não saiba muito
bem, trabalho aqui somente há três anos.

J.: E para que serve?

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E.: Ah, isso eu sei: ―A Tenda de Matemática pretende responder às necessidades


matemáticas do...‖

J.: ―...do conjunto de membros do Instituto e de seu entorno‖. Eu já li isso no


folheto. Mas como funciona na prática?

E.: Veja, vamos supor que você tenha de fazer algo e surja um problema. Se for um
problema essencialmente matemático, o melhor que tem a fazer é vir até a Tenda.

J.: e então eu apresento o problema. Não é isso?

E.: Exato. Se você quiser, posso dar um exemplo...

J.: Espere. Talvez eu possa propor um para você. Um exemplo de verdade. Outro
dia eu fui comprar um varal para roupas. Um desses pequenos para apartamento. Havia
dois modelos. Olhe, eu trouxe o catálogo... (Mostro-lhe o desenho dos varais.)

Modelo A Modelo B

E.: E daí?

J.: No final, me decidi por este...(mostro-lhe o modelo A). Achei mais simples,
mais clássico. Mas, em seguida, fiquei pensando que talvez o outro fosse melhor, que
talvez coubesse mais roupa. Isso é uma questão de matemática? Isso é, isso é uma questão
para a tenda de matemática? O que você acha?

(CHEVALLARD 2001, p. 17 e 18)

Lembramo- nos, também, de algumas campanhas com slogans do tipo ―não assine
nada sem antes consultar um advogado‖ ou ―não se automedique, procure um médico‖. Se
tivermos dúvidas sobre a natureza de um documento, vamos a um advogado. Se o
computador começa a apresentar problemas, chamamos um técnico. Se nos sentirmos mal,
vamos a um médico. É certo que devemos ter um conhecimento mínimo de nossa anatomia
e fisiologia para que possamos procurar a ajuda médica adequada. Com dor no estômago,
não é adequado procurar um oftalmologista. Mesmo assim, em caso de dúvidas, vai-se a
um clínico geral e ele nos encaminha ao especialista recomendado. Se tivermos um
problema de cunho matemático, a quem devemos procurar? Não estou pensando na

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solução do problema que deve cair na próxima prova. Esse problema o professor de
Matemática resolve para o aluno na escola. Refiro- me a problemas como o do varal
presente no texto de Chevallard , ou à análise de uma conta de luz, ou à organização de
uma planilha, ou ao quanto de linha deve-se gastar a mais se o tamanho da figura a ser
bordada for dobrado. A quem uma pessoa com uma dúvida ligada à Matemática deve
procurar? Se alguém responder que deve ser procurado o professor de Matemática,
complete a resposta informando onde e quando. As escolas não estão preparadas para
atender a comunidade com este tipo de serviço, não há tendas de Matemática nas escolas.
Não há escritórios de professores de Matemática. E como os professores serão pagos por
este serviço? Além disso, esse tipo de serviço não é uma aula nem orientação de estudo.
Portanto, de forma geral, os professores precisam de um treinamento específico para este
tipo de serviço.

Já citamos, anteriormente, os Parâmetros Curriculares Nacionais:

— A Matemática precisa estar ao alcance de todos e a democratização do seu ensino deve


ser meta prioritária do trabalho docente. (BRASIL 1997, p.18)

O que estamos tentando destacar é que existe uma diferença entre ―a Matemática
estar ao alcance de todos‖ e ―o ensino da Matemática ser democratizado‖. A medicina estar
ao alcance de todos, ou seja, democratizar a medicina, não significa que todos serão
médicos ou que todos terão grande conhecimento de medicina. Significa que todos terão
acesso ao especialista em medicina e aos produtos que a medicina produz. Da mesma
forma, a Matemática estar ao alcance de todos, democratizar a Matemática, não significa
que todos terão de ser matemáticos ou conhecer muita matemática. Significa que todos
devem ter acesso ao especialista em Matemática e aos produtos gerados pela Matemática.
Por outro lado, democratizar o ensino da Matemática é dar oportunidades a todos de
decidir até que ponto a Matemática estará presente no seu projeto de vida. É claro que há
um conhecimento matemático desejável, e mais do que isso, necessário a qualquer cidadão.
No problema do varal presente no texto de Chevallard, q uantas pessoas o identificariam
como problema pertinente à Matemática? É verdade... Mas atrevo- me a dizer que o
conhecimento desejável quase sempre é maior do que o necessário.

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Não identificamos preocupação de nossa sociedade com a democratização da


Matemática no sentido que expusemos. De forma geral, quem tiver um problema ligado à
Matemática permanecerá com ele sem ter a quem recorrer. As escolas não disponibilizam
seus conhecimentos às comunidades nas quais estão inseridas. Não existem tendas de
Matemática para auxiliar o entorno das escolas. Esse é um problema que deve ser
percebido e atacado. Entretanto, há uma preocupação com a democratização do ensino de
Matemática. Mas democratizar o ensino de Matemática não é transformar as pessoas em
matemáticos. Nem é cabível supor que o que se aprende nas escolas é suficiente (e com
frequência nem mesmo é necessário) para resolver os problemas que surgem
cotidianamente.

Se democratizar o ensino da Matemática é abrir portas para que cada um escolha


quais delas vai transpor, democratizar a Matemática é permitir o intercâmbio entre aqueles
que cruzaram portas diferentes.

Bibliografia

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais, vol. 3 /Matemática – Brasília : MEC/SEF,


1997.

CHEVALLARD, Yves, BOSCH, Mariana, GASCÓN, Josep. Estudar Matemática: o elo


perdido entre o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2001.

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