Luta cruel e desigual: o homem teimava em viver, julgava que tinha o
direito de viver para sempre, por isso nunca pensara em enriquecer, em fazer nada que não fosse pura e belamente “viver”. Fazia tudo o que tinha vontade e no dia em que completou 90 anos foi comer o angu do Gomes, na Praça Quinze, com bastante pimenta e abrideiras que nunca fechavam seu apetite. Depois entrou numa agência de viagens e assuntou complicada viagem pela Amazônia. Foi parar na Terra do Fogo, três meses mais tarde. Essa fome de viver acabara no último Natal: ele quis descer para a sala, fazer a ceia com muito vinho e castanhas – adorava castanhas e rabanadas, que ele molhava no vinho do Porto. A fraqueza o impediu: ficou lá em cima e mastigou sem alegria algumas passas, olhando as paredes – sobram sempre as paredes para aqueles que vão morrer. Depois, a etapa derradeira: o corpo pifara, somente as mãos se mexiam, querendo abraçar as pessoas que o cercavam. Agora tudo acabara. As mãos estão quietas, pousadas sobre o peito, no formato final e imóvel. Mãos que se gastaram em 50 anos de jornalismo antigo: apareceram as máquinas de escrever nas velhas redações, ele tivera dificuldade, tentara se adaptar, mas só sabia pensar “a lápis”. Mãos espertas em muitos ofícios do viver, faziam presépios encantados, a cada final de ano. Em junho, seus balões eram famosos, vinha gente de fora, de São Paulo e Minas, ver as lanternas imensas e iluminadas que ele soltava para a noite. Mãos que ensinaram o filho a escrever: até hoje – e depois de tantos trancos e barrancos – o filho ainda tem a mesma letra inclinada e confusa do pai. Sim, ali estão aquelas mãos, quietas, para nunca mais. Mãos que nem pareciam cansadas: apenas repousavam sobre o peito, finda a maravilhosa aventura. Mãos que começaram a ficar mais brancas e mais quietas. Dentro delas, o nada. O nada cheio de tudo o que ele fora, o que ele quisera ser, o que ele soubera viver. Mãos que, antes que se apagassem definitivamente, pareciam as mesmas: mãos de um homem. Mãos de meu pai. Carlos Heitor Cony, in Folha de São Paulo, Junho de 1993. Primeiro parágrafo: 1. Qual é a “luta cruel e desigual” a que o autor se refere na abertura da crônica? R A luta do homem contra a morte. Ela é cruel, pois não se preocupa com seus sentimentos e desigual porque o homem não tem forças para superá-la. 2. Quais as conseqüências da crença da personagem em “viver para sempre” que o autor enumera no texto? R Desapego às coisas materiais e busca do “viver” plenamente. 3. Qual o possível sentido da palavra “abrideiras”? Por quê? R Abrideiras podem significar doses de bebida destilada (cachaça?), porque é uma leitura da expressão popular “Tomar uma para abrir o apetite”. 4. A frase “... no dia em que completou 90 anos foi comer o angu do Gomes... ”, passa a idéia de algum traço da personalidade do ancião em questão? R Não estava preocupado com saúde, tinha bom apetite e era atrevido, pois a uso do artigo definido antes do “angu” mostra que este era famoso por seus temperos. 5. A Terra do Fogo é uma grande ilha que fica ao sul da América do Sul, próxima do gelado Continente da Antártida. O velhinho saiu de onde morava (Rio de Janeiro?) para a Amazônia e foi parar, depois de três meses, nesta ilha. Que características podemos atribuir a este personagem? R Era corajoso, aventureiro e curioso. No mesmo parágrafo já foi dito que não era rico, portanto tinha também que ser muito econômico, comunicativo, criativo e possuir uma boa quantidade de conhecidos ou amigos. 6. Relacione os tópicos abordados pelo autor neste primeiro parágrafo. - Fala sobre a vida e a morte - Homem de mais de noventa anos - Grande apetite pela vida - Ousadia, saúde e inteligência, com doses de inconseqüência. Segundo parágrafo 7. Qual fato o autor usa para indicar o fim “da fome de viver” do personagem? R No “último Natal” “mastigou sem alegria algumas passas, olhando as paredes”. 8. Quais interpretações podem ser dadas à afirmação do autor “- sobram sempre as paredes aos que vão morrer.”? R As pessoas doentes ou idosas ficam isoladas, por vontade própria ou por conveniência dos outros; o isolamento pode ser físico: uma cama em um quarto fechado ou um canto para qual ninguém olha; mas também pode ser psicológico: o doente isola-se do mundo ou é ignorado pelo mundo. Também no túmulo o corpo está limitado por paredes. 9. A palavra derradeira tem qual sentido? R Última, final. 10. Qual o sentido da palavra pifara? R Segundo o dicionário Houaiss: Verbo 1 beber em excesso <o homem pifou a noite toda e quase morreu> 2 subtrair de maneira fraudulenta; roubar <o ladrão pifou o dinheiro da moça> <o ladrão pifou ao rapaz todas as suas economias> 3 Brasil informal sofrer avaria; escangalhar, quebrar <o motor do carro pifou> 4 Brasil informal não ter o resultado que se esperava; fracassar <o projeto pifou> SIN/VAR ver sinonímia de morrer. No caso específico funciona como metáfora de paralisia, o corpo parou de obedecer aos comandos do personagem. 11. A expressão “... querendo abraçar as pessoas que o cercavam”, passa qual idéia? R O personagem, impedido de movimentar-se, queria sentir o movimento dos que o cercavam. Contaminar-se com a vida presente nas pessoas. Dar e receber carinho. 12. Faça um resumo do segundo parágrafo. R O idoso perde o apetite de viver quando não consegue mais realizar seus desejos por fraqueza, ainda assim apega-se às pessoas que o cercam até a morte. Terceiro parágrafo 13. Qual era a profissão do personagem? Cite uma curiosidade a respeito deste profissional. R Jornalista, que não conseguiu escrever à máquina porque pensava “a lápis”. 14. Que outras habilidades, importantes do ponto de vista do autor, tinham as mãos do personagem? R Fazia presépios mágicos, soltava balões famosos e ensinou o filho a escrever. Quarto parágrafo 15. Considerando a frase “... finda a maravilhosa aventura” o que podemos afirmar sobre o autor? R É uma pessoa que gosta da vida. 16. Há algum vinculo, na vida real, entre o cronista e seu personagem? R O personagem retratado é pai do cronista.