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GONCALVES Felipe - Enterrando Ruy Barbosa PDF
GONCALVES Felipe - Enterrando Ruy Barbosa PDF
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estudos históricos. 2000 - 25
Creio ser possível entender o gosto por esse tema pela própria idéia de
sacralização e imortalização do homenageado. Sendo ele um ente sagrado, fora
de circulação, intocável, sua existência manifesta como indivíduo concreto, como
pessoa dotada de corpo como as demais, não deixaria de ser incômoda. O próprio
do sagrado é precisamente não ser manifesto, sensível - esses são os atributos
definidores do profano. A manifestação corporal, perecível, de Rui poderia ser
incongruente com sua sacralidade, a eternidade de seu valor. Ademais, afirmar
sua imortalidade passava por reconhecer a mortalidade de uma parte de seu eu,
do corpo que se associava a uma inteligência imortal.
Quatro anos depois consumou-se finalmente o desaparecimento de Rui
Barbosa em sua manifestação física. Realizaram-se então grandiosos funerais,
com honras de chefe de Estado e às expensas do governo federal. O corpo
embalsamado permaneceu em Petrópolis até a tarde do dia 2 de março e recebeu
a visita de inúmeros amigos e autoridades vindas do Rio especialmente para a
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Enterrando Rui Barbosa
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ocasião. Foi também grande a movimentação de jornalistas e populares, ficando
a casa da rua Ipiranga repleta de coroas de flores. Um cortejo atravessou Petrópolis
pouco antes das 15 horas, quando partiu para o Rio o comboio mortuário, com
um dos vagões convertido em câmara ardente. Além da família e do esquife, o
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trem trazia algumas preeminentes figuras da elite carioca.
O local do velório foi proposto pelo médico, escritor e educador baiano
Afrânio Peixoto: a Biblioteca Nacional. O prédio havia muito já se identificava
com Rui. Em 1903, uma charge de Alfredo Cândido que se tornaria uma das mais
populares de Rui identificava o homem e a instituição : sob o título de Biblioteca
observe o envol-
Nacional, mostrava Rui com uma enorme cabeça, repleta de escadas e estantes de vimento
S
livros. E na Biblioteca se realizara uma das principais solenidades do Jubileu de dos próprios
baianos com
1918, organizada pelos correligionários baianos de Rui. Na ocasião, foi inaugu ele.
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coche fúnebre puxado por três parelhas de cavalos negros. Eram eles guarnecidos
por um pelotão de lanceiros em coluna dupla. Atrás, vinham os automóveis
trazendo a família, os ministros, o representante do presidente, as comissões das
duas casas do parlamento, membros do corpo diplomático estrangeiro e do
Supremo Tribunal Federal, representantes da imprensa.
Foi um desfile portentoso da elite para o povo, que lotou as calçadas do
trajeto: praças Onze e da República, rua Marechal Floriano e avenida Rio Branco.
Os prédios ostentavam bandeiras a meio pau e faixas negras, e um vendedor de
folhetos de cordel anunciava, na porta do Colégio Pedro 11, uma trova sua sobre
o falecido. A multidão era grande até a praça Floriano, onde populares lotavam
as proximidades da Biblioteca e as escadarias do Teatro Municipal e do Conselho
,
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Enten'ando Rui Barbosa
República, dos ministros estrangeiros, dos ministros do governo etc. Era mais
um pomposo e cerimonioso desftle da elite que atraía o povo. No caminho, os Artur Bernardes
pode ter-se
postes estavam cobertos de crepe negro, transformando a cidade em palco ausentado por
medida de
fúnebre. Entrando em Botafogo pela rua São Clemente, o cortejo fez uma parada segurança
silenciosa em frente ao palacete de Rui Barbosa, onde ele residira desde 1895.
No cemitério, muitos populares contidos por cordões de isolamento da
Guarda Civil já aguardavam havia muito, debaixo de forte sol, e assistiam a
discursos espontâneos, ao longo do dia. A massa terminou por subir nos túmulos
para ver o cortejo, que atingiu o local ao cair da noite. Desde a rua Dona Mariana
a multidão se convulsionava, disputando o direito de puxar um pouco a carreta
funerária. Entrando o cortejo no São João Batista, os membros da elite oficial se
misturaram à multidão, enquanto o caixão era levado até a capela no alto do
cemitério. Ali, ao som dos tiros disparados na baía, monsenhor Rangel abençoou
o corpo e vários oradores discursaram. Foram oito no total, incluindo o cônsul
da Argentina, João Mangabeira e Evaristo de Morais. Só depois dos discursos é
que entrou o caixão na capela, à qual a multidão continuou em romaria até que
os zeladores forçaram o fechamento do cemitério, passando das oito da noite. O
corpo de Rui ficou na capela até o ano seguinte, quando foi transferido para um
suntuoso mausoléu construído para ele.
Como se pode imaginar a partir das inúmeras homenagens recebidas em
vida pelo Conselheiro, as homenagens póstumas não se restringiram a um
grandioso funeral. Na própria capital federal, em abril, suntuosas exéquias foram
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celebradas na Candelária pelo arcebispo coadjutor Sebastião Leme. Em São
Paulo e Salvador foram organizados grandes cortejos cívicos com ampla partici
pação das autoridades, dos estabelecimentos de ensino e de associações, seguidos
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minutos de silêncio solene nas escolas públicas da Polônia.
O discurso criado em torno da morte de Rui seguiu basicamente as linhas
de sua consagração em vida: ele era afilmado como o maior defensor da liberdade
e do direito no Brasil, o arquiteto da República, a súmula da cultura e da erudição
brasileiras, a perfeita união entre o Verbo e a Moral. Era erigido como o grande
homem, superior, polivalente, capaz de fazer uma nação com suas próprias forças.
Era o símbolo de nossa civilização.
Para exemplificar a continuada deificação de Rui, evoco um artigo de
Vicente de Medeiros, em O Dia de 4 de março: "Eras bom, eras justo, e eras
perfeito; eras o gênio integralizado numa criatura humana, a quem retirou todas
as falhas, todos os defeitos e todas as imperfeições humanas; eras até mesmo
semelhante aos deuses, porque eras um deus-criatura moral, que viverá para
sempre com a imortalidade dos gênios que são deuses!" E concluía assim o artigo:
"Tu, Mestre augusto, Apóstolo divino, Templário da Bondade, Cavaleiro da Fé,
Vigilante do Direito, Defensor da Ordem, Guia, Imperador, Formador e Mentor
da Mentalidade Brasileira, último e mais alto escalão da Mentalidade Latina,
não! não morrerás!"
Menos exaltado era o jornal A Rua, que, no dia seguinte à morte de Rui,
escrevia: "Extinguiu-se ontem a maior luz mental do Brasil contemporâneo.
Quem era maior:
Desapareceu o homem que mais fúlgido relevo já teve no cenário nacional, Rui ou o Barão do
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como "figura tutelar do ciclo político [atual]", por ter atuado diretamente e com
amplas responsabilidades "na orientação dos destinos nacionais".
O Gênio fizera a Pátria - eis o que diziam, em suma, as narrativas míticas
em torno de Rui. Ele era como um herói solitário, capaz de civilizar um país com
seu próprio talento. No dizer de O País (3/3), ele realizara as "maiores campanhas
renovadoras e dinamizadoras da nossa civilização", e suas "cinzas augustas serão
sempre a representação simbólica da Pátria".
Para além disso, é importante observar que a morte de Rui ocasionou
uma enxurrada de anedotas, memórias e curiosidades a seu respeito nos jornais,
a maior delas revelando traços excepcionais de seu caráter e talento. Um jornal
narrava impressionantes casos reveladores de sua memória prodigiosa, contando
ainda que ele lera todos os dicionários de português existentes e que era um leitor
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universal à Goethe. Outro contava que Rui era sempre assediado nas calçadas,
e que "se detinha bondosamente" p'ara receber homenagens de populares, sem
. . ' 29
permlt1r que Ihe tirassem
' o chapeu.
A edição especial de O Tempo de 15 de janeiro de 1924 apresentava uma
verdadeira coleção de casos similares, cabendo talvez destacar dois artigos que
falavam sobre duas grandes virtudes atribuídas a Rui - o trabalho e a bondade.
O primeiro contava como Rui era capaz de trabalhar doente e mesmo com febre,
tendo escrito em tais condições alguns de seus trabalhos mais famosos. O
segundo, intitulado ''A grande alma de Rui", narrava a vez em que Rui, recém
mudado para a Corte, dera o Único dinheiro que ele e a esposa tinham a um rapaz
que precisava de fundos para se preparar para os exames da faculdade. Com tais
casos, ia-se construindo a imagem póstuma de um Rui prodigioso, genial e
caridoso.
O último ponto a destacar quanto às idéias e valores relacionados aos
funerais de Rui Barbosa é a grande atração exercida pelo corpo do morto. Antes
de mais nada, cumpre observar que jornalistas e oradores tinham um cuidado
muito grande em separar Rui Barbosa em si mesmo, sua "individualidade", de
seus restos mortais. Em nenhum momento se diz, por exemplo, que Rui seria
enterrado, ou que Rui estava no caixão. Sempre se referiam aos "despojos
sagrados", aos "venerandos restos", ao "corpo frio e inerte" de Rui. Rui Barbosa
era aquele que desaparecera, que falecera com a saída da vida daquele corpo.
Tome-se como exemplo dessa distinção as palavras de um jornalista ao definir o
cadáver: "despojos sagrados da mais genial, complexa e perfeita individualidade
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que jamais passou pela superfície do nosso planeta. ,,
Esses dois eram aliás os grandes protagonistas dos funerais - o corpo frio
e inerte e a individualidade, o vulto de Rui Barbosa. O contraponto constante da
imortalização desta última, do seu espírito e da sua obra, era a referência ao físico
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E1Iterra1ldo Ruí Barbosa
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coco da Bahia, ,: "E quem não se descobria, como diante de um ídolo, ante essa
grande cabeça, por sob cujos cabelos, já cobertos de neve, crepitava o lume do
gênio, tal nas entranhas dos altos montes de cimos gelados arde o fogo vul
cânico?" O grande tamanho da cabeça de Rui fora a festa dos caricaturistas ao
longo de sua vida, e pretexto para vários exercícios de poesia laudatória. Ela
permitia uma sede física condizente com as fenomenais inteligência e cultura
que se atribuíam a Rui.
Mas no funeral a grande preferência foi pelos contrastes, que se poderiam
definir em alguns pares de homólogos: individualidade : corpo :: vigor : morte
:: cabeça : corpo : : gigante : franzino :: calor : frio : : ação : inércia : : mente :
físico.
Esses pares não eram separados, mas sim cruzados todo o tempo, em
jogos de contrários que aumentavam o sabor barroco da retórica. O País de 4 de
março evocava um evento ocorrido no velório de José do Patrocínio, para dizer
que frases semelhantes à pronunciada então devem ter passado pela mente de
muitos dos que viam Rui morto. O caso era o de um popular que entrara no velório
do jornalista e pondo as mãos sobre a testa do cadáver, dissera: "Como está frio
3
este vulcão!,,
Já Coelho Neto, em artigo publicado no Jornal do Brasil de 4 de março,
referia-se a Rui como "a Força Humana, que jaz na Biblioteca Nacional, lar do
Pensamento... " e dizia que ele efetivara, além dos conhecidos milagres de essên
cia, um de substância. E justificava: "De substância, por ser o corpo desse ente
prodigioso um quase nada e suportar nos Ombros todo o Destino de uma nação,
toda a responsabilidade de uma era..." (o artigo era intitulado "O Atlante"). Mas
fixava-se mais na cabeça, que estava do lado gigantesco de Rui Barbosa: ''A cabeça
desse homem predestinado, pelo que continha, lembrava esses globos geográfi
cos, imagens do mundo, nos quais se congregam, flutuando nos oceanos e
reticulados de rios, todos os continentes da terra e as ilhas que deles se aberram,
porque todas as grandezas do mundo tinham ali seu lugar assinalado... " Mesmo
sendo o trecho exemplo do estilo de metáforas caras ao escritor, seu conteúdo não
era fortuito num repertório onde o corpo e o cérebro de Rui eram assuntos
privilegiados. 34
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de práticas cívicas mais gerais da época que interessa o enterro de Rui Barbosa.
E claro que esse gênero de consagração fúnebre-cívica antecedia de
,
muito a época da morte de Rui (tendo inclusive forte inspiração em eventos fora
do Brasil) e sobreviveu muito além de 1930. Atenho-me primordialmente à
República Velha por não querer generalizar as características do caso estudado
para outros períodos, e já que este é o recorte natural do qual o caso em questão
pode ser legitimamente considerado representativo. Ademais, creio que o
período pode ser particularmente interessante por ter certo caráter de inten·egno
simbólico entre os períodos de predomínio de dois chefes de Estado vistos como
heróis máximos da Nação: dom Pedro II e Getúlio Vargas. O Imperador, como
mostra Schwarcz (1998), fora como um "grande pai" para o Brasil, e seu lugar
simbólico só viria a ser plenamente ocupado, com semelhante carisma e premên
cia, pelo presidente de origem gaúcha. Entrementes, os chefes de Estado não se
marcaram por elevada popularidade e estiveram longe de se constituir em heróis
nacionais tão ardente e amplamente venerados como o velho ocupante do trono.
Assim, pululavam candidatos à posição simbólica de dom Pedro na República
Velha, sem que nenhum a alcançasse de modo pleno. Ou seja, esse interregno se
coloca como importante laboratório para o estudo da tentativa de construção de
heróis nacionais, por ter servido como um celeiro de "grandes homens" que não
foram subsumidos, na época, por nenhuma figura hierarquicamente superior,
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como nos períodos anterior e posterior.
De qualquer forma, a República Velha foi marcada por uma abundância
de faustosos funerais cívicos de homens que então se afirmavam como heróis
nacionais. Notadamente homens de letras e políticos eram assim celebrados no
momento de sua morte. Para tentar entender esses rituais fúnebres-cívicos,
abordarei alguns funerais ocorridos no Rio de Janeiro na República Velha.
A referência básica aqui são os funerais cariocas, sobre os quais realizei
rápida pesquisa em periódicos como O País, A Razão e o Correio da Manhã, de
personalidades que foram enterradas na capital federal (Machado de Assis, em
1908; Afonso Pena e Euclides da Cunha, em 1909; Barão do Rio Branco em 1912;
Osvaldo Cruz em 1917) e de outras que, embora enterradas alhures, por alguma
razão tiveram funerais no Rio Qoaquim Nabuco, em 1910; Pinheiro Machado,
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em 1915; Rodrigues Alves, em 1921). Trabalhos acadêmicos que me forneceram
importantes subsídios sobre enterros na Primeira República foram os de Regina
Abreu (1998), sobre a "imortalização" de Euclides da Cunha; de Valéria Costa e
Silva (1999), sobre a consagração de Machado de Assis, e de Luiz Antônio Simas
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(1994), sobre o enterro de Floriano Peixoto.
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Entcn-alldo R ui Barbosa
Outro caso que investiguei em jornais da época deve ser agregado aos já
citados: o traslado dos despojos dos imperadores Pedro II e Teresa Cristina para
o Rio, em 1921. Fez-se então urna festa impressionante, ocorrida no seio de um
processo de reabilitação de Pedro II corno herói nacional. 38 O episódio foi
marcado por verdadeiro delírio popular no centro do Rio, com cenas de velhos
súditos desmaiando e chorando diante dos corpos de seus venerados impera
dores, que passaram a ficar em exposição numa capela da Catedral. 39
Várias características unem os diversos rituais fúnebres citados. Longos
cortejos com urna rígida ordem hierárquica, a assistência de numerosos populares
se a hierarquia
era importante,
e a participação de autoridades e pessoas de destaque da mais elevada elite carioca então o lugar
são os traços mais evidentes. Com maior ou menor concorrência, mas sempre designado para
com grande pompa, repetiam-se em todos os casos os luxuosos carros fúnebres,
Miguel também
o era.
os carros com figuras importantes, as bandas militares tocando marchas fúnebres,
os tiros de canhão dos navios e fortalezas, os batalhões militares em trajes de
honra, os postes cobertos de crepe negro e as ruas repletas de populares.
Vários, corno Machado de Assis e Osvaldo Cruz, tiveram os funerais
pagos pelo Estado. Mas, dos casos citados, apenas Rui e Rio Branco tiveram
honras de chefe de Estado sem o ser - Afonso Pena, que morreu no Catete, e
Rodrigues Alves, presidente eleito, também as tiveram. Isso deu a seus funerais
especial pompa e circunstância, já que, inclusive nos demais casos, era a presença
de autoridades e figuras de destaque que dava o tom de urna festa nacional. Com
as honras de chefe de Estado, esse componente aumentava - a começar pelas
numerosas e literalmente estrondosas saudações militares que se faziam.
Os cortejos transcorriam tipicamente entre o local da morte e o do
velório, e entre este e o do enterro. Mas o grande lugar era o do velório, objeto de
cuidadosas escolhas simbólicas por parte dos celebrantes - deveria haver uma
grande identidade entre o morto e o local. Assim, Rio Branco foi velado no
Itamarati; Machado e Euclides na Academia Brasileira de Letras; Pinheiro
Machado na sua casa do Morro da Graça e no Senado; Afonso Pena no Catete, e
Rodrigues Alves em seu palacete da rua Senador Vergueiro. Todos se cobriam de
muito fausto - veludos negros cobrindo paredes e fachadas inteiras, crepes sem
fim, lágrimas e iniciais em ouro e prata, ricos altares e catafalcos, dosséis de cobre,
guardas de honra. Além de expressar a própria especificidade das vidas e obras
dos extintos, essas instituições eram verdadeiras manifestações materiais de
setores da elite nacional, que subitamente se abriam à visitação pública.
Não surpreende a fenomenal acorrida da população a esse locais, não
necessariamente para adorar seus mortos, mas também para poder ver espaços
Eita Thompson!
normalmente a ela interditados. Nessas ocasiões a elite se mostrava em verdadeira
performance pública. Quando, senão aí, poderiam "pessoas modestas" entrar
livremente na mítica mansão do Morro da Graça, no Itamarati, ou na casa do
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chefe da oligarquia paulista, e ver tantas fardas e casacas reunidas, para não falar
de tão abundante luxo funerário? O assim chamado "povo" era convidado a
penetrar nos recintos da elite e aí se extasiar com a circunstância, com o fausto e
o respeIto.
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como tendo contribuído para a nação, mas com obras e qualidades próprias que
as distinguiam umas das outras.
Na verdade, percebe-se uma dupla diferenciação dos personagens imor
talizados. Primeiramente, sua separação em relação aos "mortais" era a base
comum das várias celebrações - antes de mais nada, eles se distinguiam das
pessoas não glorificadas. Todos se destacavam porque eram superiores aos demais.
Num segundo plano, distinguiam-se internamente dentro do panteão cívico
porque demonstravam valores e faculdades distintos uns dos outros. Desse ponto
de vista, os funerais eram local privilegiado de afirmação de um individualismo
da singularidade. E a singularidade, no caso, supunha uma desigualdade tida por
natural que separava os grandes heróis da própria humanidade. Eles eram
super-homens, naturalmente predestinados a cumprir um papel na história.
A construção dessa singularidade hierarquizante marcava toda a retórica
fúnebre-cívica. O esforço dos que celebravam os mortos era no sentido de traçar
perfis psicológicos que demonstrassem a unicidade da contribuição de cada um
deles. Isso se fazia geralmente pela atribuição de qualidades extraordinárias
inatas, dadas na constituição dessas individualidades, para usar o termo nativo
recorrente. A tra· etória de cada um era narrada como o desenvolvimento dos
esses são meros exemplos, e não são atribuições exclusivas, consensuais e unívo
cas - çada morto podia representar mais de uma idéia, e havia múltiplas inter
pretações possíveis sobre cada um. Ademais, a mesma idéia poderia estar sem
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En terrando Rui Barbosa
contradição em vários corpos: Rui, Rio Branco e Osvaldo Cruz eram corno que
facetas distintas de nossa civilização; Rui, Machado de Assis e Euclides repre
sentavam a nossa cultura; Rui e Rio Branco eram o próprio Brasil.
O que importa, menos que estabelecer uma espúria tabela de corres
pondências, é verificar qual o esforço subjacente a tão cultivadas associações.
Todas exploravam as singularidades atribuídas aos indivíduos falecidos para
torná-los espécies de alegorias às avessas. As alegorias faziam parte do repertório
cotidiano da época - em anÚncios, prédios, monumentos, jornais, caricaturas,
ilustrações, peças de teatro, livros, apareciam os mais variados substantivos
abstratos tornando formas humanas. Era assim com a Música, a Glória, a Paz, a
Poesia, a Inteligência, o Estudo, a República, a Nação, o Carnaval etc.; todos eram
representados a toda hora corno pessoas concretas, dotadas de corpo. Ora, os
ilustres falecidos de que falo aqui eram mobilizados quase corno alegorias, como
indivíduos específicos que passavam a representar, por seus atributos e por sua
vida, idéias, coletividades ou épocas. Só que, ao invés de caber à imaginação dar
um corpo inexistente às idéias, corpos reais já estavam disponíveis - bastava
transformá-los retoricamente em manifestações dessas idéias. Ganhando corpos,
essas idéias podiam efetivamente se individualizar. Assim corno a pessoa mo
derna tem seu fulcro na noção de um corpo que a porta, que lhe dá limites e a
singulariza (corno observou Maurice Leenhardt em seu Do Kamo), tal noção
permite a corporificação de noções abstratas, lidas assim num viés individualista.
Destarte, os funerais acabavam quase constituindo uma espécie de
politeísmo cívico, com várias figuras sagradas "abençoando" uma ou outra virtude,
urna ou outra "fase da evolução nacional". Isso é enfatizado pela onipresença da
linguagem religiosa na consagração dos heróis cívicos. A idéia de que se tratava
de estabelecer-lhes um culto, de que eles são semideuses ou apóstolos aparece com
freqüência em quase todos os casos. E mesmo se nem todos fossem, corno Rui,
expressamente identificados corno santos pelos cultuadores, sua imortalização
tendia a torná-los sagrados, fora de circulação, porque estavam acima dos demais
homens, que não se imortalizariam da mesma forma.
Não é à toa que as vidas desses personagens se tornavam amiúde vidas
exemplares, similares às vidas de santos, publicadas em biografias consagratórias.
Os cultos a várias dessas figuras não eram incompatíveis, mas complementares.
Todos podiam ser heróis nacionais ao mesmo tempo, embora, bem entendido,
com algumas imprecisas e inarticuladas hierarquias. Poucos, corno Rui Barbosa
e Rio Branco, chegaram ao nível máximo de se identificar com a própria nação.
Para completar a interpretação desses funerais, cumpre desenvolver o
fato de serem eles desfiles da elite para o povo. Eles eram urna demonstração
pública e teatral do mundo das letras e do poder político, dois dos maiores
símbolos da elite de então. Sua firme associação simbólica e ritual com os poderes
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militares apenas salientava o caráter de reforço das hierarquias que tinham essas
festas.
Na célebre tríade ritual brasileira analisada por DaMatta (1990) - car
naval, dia da Pátria, procissão -, os enterros cívicos estavam duplamente ligados
ao segundo pólo, o da solenidade, da afirmação de hierarquias. Para começar, os
enterros comuns já fazem parte dessa segunda categoria ritual, devido ao ambi
ente de respeito e de ordem que os caracteriza. Os funerais cívicos têm esse caráter
redobrado, por terem como objeto os Grandes Homens, encarnações dos setores
sociais superiores a que se conectam. Tratando-se de heróis cívicos, o respeito é
redobrado. Afinal, ali repousa uma personificação da Pátria. Esta identifica-se,
assim, com seus estratos superiores e cultos. Era naqueles homens de fala difícil
e vestimentas taciturnas que devia repousar a Nação.
Os enterros eram então aquilo que pretendiam ser: verdadeiros dias da
Pátria, devido à ênfase na ordem, na hierarquia, na solenidade, no respeito. Que
houvesse contato entre várias camadas da população não significava sua comun
hão, ou sua mistura temporária. Ao contrário, elas estavam juntas reforçando as
diferenças entre elas, as hierarquias que as separavam. Mais uma vez, nas práticas
e na retórica rituais, faltavam dimensões que enfatizassem a communitas; eram
festas da estrntura, no sentido de Turner.
O discurso sobre o morto era menos para separá-lo da vida do que para
separá-lo da humanidade normal. Menos que um rito de passagem, era um rito
de instituição, para usar o conceito de Pierre Bourdieu (1992). Esse conceito
designa aqueles rituais que têm o poder de separar definitivamente categorias de
pessoas, atribuindo a elas essências, tidas por naturais, radicalmente distintas.
Transformando continuidades em descontinuidades, ou criando diferenças ar
bitrárias naturalizadas pelos participantes, os ritos instauram e legitimam hie
rarquias simbólicas que tendem a se tornar reais. São, a rigor, ritos de separação:
"The separation brought about by the ritual (which itselfenacts a separation) brings about
a consecration. (. . .) In this case to institute is to consecrate, that is, to sanction and to
sanctifY, a state ofaffairs, an established order .. " (1992 : 82). A crença na naturalidade
.
das essências atribuídas aos agentes é crucial para a eficácia simbólica do ritual.
Esta reside na criação de uma categoria dos melhores, do mistos; no caso, dos
grandes homens da nação.
O que se salientava não era a humanidade do morto, sua matéria-prima
comum aos outros (que a morte biológica poderia pôr em evidência, poder-se-ia
pensar), mas sua supra-humanidade, seu caráter excepcional. A retórica fúnebre
os alçava a um nível superior ao resto da humanidade e afirmava como natural
sua posição hierarquicamente superior, no fundo a posição de todo o setor social
de que faziam parte os "excelsos defuntos". Ademais, a prática das cerimônias
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Enten'ando Rui Barbosa
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estudos históricos . 2 000 - 25
Conclusão
O que se quis destacar aqui foram alguns elementos centrais dos rituais
fúnebres de construção de heróis cívicos na Primeira República, a partir da
etnografia dos funerais de um dos mais celebrados heróis da época, o senador Rui
Barbosa. Entre tais elementos figuram a construção e a naturalização de hierar
quias, o reforço da estrutura social, o desenvolvimento de um individualismo da
distinção.
Esta análise deve valer como uma defesa da necessidade de se tomar
rituais de consagração (como os enterros cívicos) em seu conjunto, e não apenas
interpretá-los caso a caso. Cada etnografia de enterro cívico vale, sem dúvida,
para a compreensão da construção de um herói nacional em particular. Mas
apenas tomando os rituais em conjunto, ou tomando cada um como exemplo de
um fenômeno mais amplo, pode-se realmente compreender o sentido desses
rituais. Não se deve isolar a interpretação de cada evento em si mesmo, como se
não fitesse parte de uma prática costumeira que tem um sentido comum em suas
várias manifestações.
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E1I terra1ldo Rui Barbosa
E
ingenuidade esperar dos cultuadores de um herói completa adesão ao pen
samento e aos valores do ídolo.
Por isso, são os traços formais da construção dos heróis que cabe com
preender, em lugar de nos limitarmos ao estudo isolado de um ou outro herói.
Sem uma perspectiva mais ampla, qualquer um deles parecerá mais venerado do
que realmente foi. Trata-se antes de ver o que está envolvido na construção dos
heróis em geral, e é para isso que este estudo de caso pretende ter contribuído.
Rui Barbosa, sob esta ótica, foi um ruibarbosa entre outros.
Notas
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não era apenas o seu centenário, eram os 400 anos de Salvador.
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EJlterrando Rui Barbosa
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grande defensor de tal reabilitação, tendo 48. O termo ganha assim conotação
em duas ocasiões discursado na Liga da metonímica, tendo-se originado de um
Defesa Nacional a favor do traslado e de herói cívico mais antigo.
homenagens póstumas (ver A Razão, 1 6 e
49. Faço aqui um uso bastante livre do
22/ 1 2/1 920). Essas foram as primeiras
termo "hierarquia", que não se refere à
ocasiões em que Rui foi à Liga, em que
categoria analítica de Dumont ( 1 990), à
ocupava cargos de honra nunca
sua definição de "englobamento do
realmente exercidos; Rui presidiu a
contrário". Hierarquia tem aqui um
primeira dessas sessões, no dia 1 5 de
sentido mais usual, não se opondo
dezembro de 1 920.
portanto a "individualismo". Faço
40. Ver O País, 1 4/2/ 1 9 1 2 . minhas as palavras de Gilberto Velho:
41. Idem, 1 2/4/ 1 9 1 0. "No caso em pauta sugiro que estamos
lidando com um sistema que apresenta
42. Diário de Notícias, apud Simas ( 1 994: hierarquia e individualismo como ordens
92). simbólicas alternativas, ora
43. O País, 30/9/1 908. complementares, ora contraditórias. Por
.
ISSO mesmo, as propnas noçoes
" -
ABREU, Regina. 1 998. O enigma de "Os COSTA E SILVA, Valéria Torres da. 1 999.
sertões ". Rio de Janeiro, Rocco/Funarte. "Os segredos da imortalidade: uma
emografia da Academia Brasileira de
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