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Enterrando Rui Barbosa:

um Estudo de Caso da Construção


Fúnebre de Heróis Nacionais na
Primeira República
João Felipe Gonçalves

Os funerais de Rui Barbosa: uma etn ografia

Quando o senador, jurista, jornalista e diplomata Rui Barbosa morreu,


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em 1 de março de 1923, em Petrópolis, já era tratado como herói nacional. Em
suas campanhas políticas, suas derrotas eleitorais foram compensadas simboli­
camente pela inaudita aclamação das ruas; Rui havia muito acumulara os mais
prestigiosos títulos do Brasil da época (como presidente da Academia Brasileira
de Letras e do Instituto dos Advogados do Brasil), e no final da vida se tornara
um nome internacionalmente reconhecido, o que aumentava ainda mais o
gigantesco prestígio de que gozava em seu país.
Em agosto de 1918, realizara-se em todo o Brasil, mas com especial
concentração no Rio e em Salvador, o Jubileu Cívico-Literário de Rui Barbosa, Foi o jubileu que
consagrou Rui
que comemorava o suposto cinqüentenário de seu primeiro discurso público Barbosa
(Gonçalves, no prelo). Nunca o país parara de tal forma para celebrar um

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personagem vivo e consagrá-lo de forma tão grandiosa. Consolidou-se então a


prática de tratar Rui como "gênio", "semideus", "apóstolo", "super-homem" e
outros epítetos do gênero. Rui consolidara na ocasião seu prestígio de prócer da
civilização nacional e de ápice da cultura brasileira, por ser o homem que trazia o
Brasil para o nível daquelas que então se chamavam as nações adiantadas.
Rui foi então expressamente sagrado imortal, pois assim foi concebido o
Jubileu por seus agentes: como uma cerimônia de imortalização. E, consoante
com isso, muitos de seu consagradores passaram a demonstrar certa ansiedade
por sua morte. Evoco dois exemplos. Em uma conferência no Gabinete Português
de Leitura de Salvador sobre "Rui em face da religião", um padre jesuíta clamou
aos céus que abençoassem Rui, usando as seguintes palavras : "Ora bem, Senhor!
Tu, que és o Sol eterno de justiça, despeja os teus raios esplendorosos sobre esse
sol terrestre que já vai declinando para o ocaso (...). Atrai-o para T i ( ...) para que
adormecendo em teu seio lo�re trocar as misérias desta vida pelos gozos inenar­
ráveis da celeste Jerusalém." Note-se também o poema que o próprio autor, o
estudante Rafael Dias dos Santos, declamou em praça pública, num concorrido
cortejo cívico em Salvador :

Prossegue, ó lutador sublime e forte!


Com teu talento em prol da Humanidade
Antes que ao nada te conduza a morte!. ..

Morrerás? Não! Tua glória se não finda


Oh! grande! Oh! nobre herói da liberdade!
. . 2
, am da.,
E mesmo morto VIveras

Creio ser possível entender o gosto por esse tema pela própria idéia de
sacralização e imortalização do homenageado. Sendo ele um ente sagrado, fora
de circulação, intocável, sua existência manifesta como indivíduo concreto, como
pessoa dotada de corpo como as demais, não deixaria de ser incômoda. O próprio
do sagrado é precisamente não ser manifesto, sensível - esses são os atributos
definidores do profano. A manifestação corporal, perecível, de Rui poderia ser
incongruente com sua sacralidade, a eternidade de seu valor. Ademais, afirmar
sua imortalidade passava por reconhecer a mortalidade de uma parte de seu eu,
do corpo que se associava a uma inteligência imortal.
Quatro anos depois consumou-se finalmente o desaparecimento de Rui
Barbosa em sua manifestação física. Realizaram-se então grandiosos funerais,
com honras de chefe de Estado e às expensas do governo federal. O corpo
embalsamado permaneceu em Petrópolis até a tarde do dia 2 de março e recebeu
a visita de inúmeros amigos e autoridades vindas do Rio especialmente para a

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ocasião. Foi também grande a movimentação de jornalistas e populares, ficando
a casa da rua Ipiranga repleta de coroas de flores. Um cortejo atravessou Petrópolis
pouco antes das 15 horas, quando partiu para o Rio o comboio mortuário, com
um dos vagões convertido em câmara ardente. Além da família e do esquife, o
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trem trazia algumas preeminentes figuras da elite carioca.
O local do velório foi proposto pelo médico, escritor e educador baiano
Afrânio Peixoto: a Biblioteca Nacional. O prédio havia muito já se identificava
com Rui. Em 1903, uma charge de Alfredo Cândido que se tornaria uma das mais
populares de Rui identificava o homem e a instituição : sob o título de Biblioteca
observe o envol-
Nacional, mostrava Rui com uma enorme cabeça, repleta de escadas e estantes de vimento
S
livros. E na Biblioteca se realizara uma das principais solenidades do Jubileu de dos próprios
baianos com
1918, organizada pelos correligionários baianos de Rui. Na ocasião, foi inaugu­ ele.

rado um busto do homenageado - e até hoje ele é o único personagem a merecer


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um busto no prédio exclusivamente devido à sua condição de homem de letras.
Rui era celebrado por sua cultura vasta, consagrado como um depositário do saber
nacional, e por isso era como a versão humana da Biblioteca. Ambos eram a
conciliação perfeita das idéias de cultura e nação.
A mesma simbologia presidiu a escolha da Biblioteca como local do
velório. O País (4/3/1923) saudava a escolha dizendo que a "cidadela do saber" se
transformara assim "em templo, onde está se cultuando a religião do Patri­
otismo". No discurso que pronunciou ao final do velório, o médico e jornalista
Constâncio Alves desenvolveu o tema tornado lugar comum: a adequação do
prédio ao velório de Rui, pois "aqui vive o Brasil nos documentos da sua história;
aqui fulge no pensamento dos seus escritores; aqui palpita no sentimento dos
seus poetas" ? Rui e a Biblioteca Nacional eram a materialização do Brasil culto.
O traslado do corpo de Rui da estação da Leopoldina, na Praia Formosa,
até a Biblioteca foi feito num grande cortejo com muita participação popular.
Antes mesmo da chegada do trem, a estação já estava repleta de membros da elite
nacional : ministros, secretários dos ministérios, deputados, senadores, altos
oficiais das duas forças armadas, o corpo diplomático nacional e estrangeiro, além
de comissões de escolas, associações e clubes literários. Predominava o alto
mundo da burocracia, mas havia ampla participação de agremiações de cunho •

educacional e cultural. Quatro ministros de Estado, o prefeito do Distrito Federal


e o vice-presidente do Senado pegaram as alças do caixão para transportá-lo para
o coche fúnebre, encimado por colunas envoltas em crepe que sustentavam uma
cúpula negra.
O cortejo que se seguiu, ao som de bandas militares tocando marchas
fúnebres, tinha uma ordem hierárquica rigorosa. Duas carretas antigas, que
carregaram os despojos dos imperadores do Brasil quando de seu traslado para o
país dois anos antes, iam à frente carregando as coroas de flores, seguidas pelo

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coche fúnebre puxado por três parelhas de cavalos negros. Eram eles guarnecidos
por um pelotão de lanceiros em coluna dupla. Atrás, vinham os automóveis
trazendo a família, os ministros, o representante do presidente, as comissões das
duas casas do parlamento, membros do corpo diplomático estrangeiro e do
Supremo Tribunal Federal, representantes da imprensa.
Foi um desfile portentoso da elite para o povo, que lotou as calçadas do
trajeto: praças Onze e da República, rua Marechal Floriano e avenida Rio Branco.
Os prédios ostentavam bandeiras a meio pau e faixas negras, e um vendedor de
folhetos de cordel anunciava, na porta do Colégio Pedro 11, uma trova sua sobre
o falecido. A multidão era grande até a praça Floriano, onde populares lotavam
as proximidades da Biblioteca e as escadarias do Teatro Municipal e do Conselho
,

Municipal. A chegada do cortejo, às 18: 15h, duas bandas militares tocaram a


marcha fúnebre de Chopin.
No saguão da Biblioteca o corpo seria velado até o dia 4 de março, data
de seu traslado para o cemitério. Ainda na noite do dia 2, o presidente Artur
Bernardes fez uma visita oficial ao velório, acompanhado de todos os ministros,
do prefeito da capital e de altas patentes militares. Foi recebido pela família de
Rui e mereceu todas as pompas militares. Novo espetáculo para a multidão que
acompanhava, de fora, o movimento.
Mas maior cenário a esperava depois do evento, quando a suntuosa
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câmara ardente foi aberta à visitação pública. Um severo luxo a caracterizava :
do teto pendiam longas tiras de veludo preto; as paredes eram cobertas de pano
preto, com as iniciais RB bordadas em prata; os lustres estavam cobertos de crepe
E quem herdou negro; um enorme catafalco circundava a eça, coberto de veludo negro e com
tudo isso?
lágrimas de prata incrustadas. No alto da escadaria do saguão, estava o busto de
Rui inaugurado em 1918, coberto de crepe e com a base envolta na bandeira
nacional. Um altar de quatro metros de altura estava ao fundo do catafalco.
Imensas e numerosas coroas de flores abarrotavam o recinto. Todo o tempo velou
o corpo uma guarda de honra, composta por soldados da Marinha e do Exército,
ao lado de duplas de senadores que se revezavam. A teatralidade do local era
exacerbada, em uma demonstração tanto de luxo estatus quanto de luto. O cenário
inspirava um respeito grandioso, condizente com as alturas a que chegara a
glorificação do "venerando extinto". A ele acorreu grande multidão, durante duas
noites, um dia inteiro e a manhã do dia 4.
Nesse dia, a família do morto e muitas pessoas ilustres (como ministros,
o corpo diplomático, representantes de Artur Bernardes) assistiram a algumas
cerimônias: uma missa de corpo presente, a encomendação do corpo, discursos
de despedida. Depois disso, sob grande movimentação, levou-se o corpo até uma
caneta do Arsenal de Guerra. Depois de todas as saudações dos militares e
escoteiros, formou-se um grandioso cortejo pela avenida Beira-Mar até Botafogo,

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ao som de repetidas salvas dos navios e fortalezas da baía, e de marchas fúnebres


tocadas por bandas. O número de populares era grande em todo o percurso, como
narra O País (5/3/1923) : "De fora a fora, num raio de círculo enorme, abrangido
em cheio pelo olhar, a multidão se comprimia, saindo de todos os pontos, das
esquinas das ruas, repontando nas janelas ... ". As pessoas subiam aos bancos,
postes e árvores, dando a "impressão maravilhosa de uma onda h1lmana sem fim,
que crescesse e serpeasse pela via pública".
A ordem do cortejo era, mais uma vez, rígida, tendo sido anunciada pelos pode ser
jornais do dia. Na frente vinham a escolta de honra, um esquadrão da cavalaria interessantes,
quando estiver no
em primeiro uniforme e o carro do monsenhor Rangel, seguido pela carreta Rio (talvez possa ser
puxada por estudantes, soldados e populares e acompanhada por algumas figuras feito isso na Bib.
Barris) investigar
de destaque, como Miguel Calmon. Atrás, vinham caminhões com as grandes para o trabalho de
Dilton
coroas de flores e muitos automóveis em ordem estrita - da família, dos em­ especificamente o
baixadores, de Azeredo e do presidente da Câmara, das comissões parlamentares, destaque ou papel
de Miguel Calmon
do presidente e dos membros do STF, do representante do presidente da no enterro

República, dos ministros estrangeiros, dos ministros do governo etc. Era mais
um pomposo e cerimonioso desftle da elite que atraía o povo. No caminho, os Artur Bernardes
pode ter-se
postes estavam cobertos de crepe negro, transformando a cidade em palco ausentado por
medida de
fúnebre. Entrando em Botafogo pela rua São Clemente, o cortejo fez uma parada segurança
silenciosa em frente ao palacete de Rui Barbosa, onde ele residira desde 1895.
No cemitério, muitos populares contidos por cordões de isolamento da
Guarda Civil já aguardavam havia muito, debaixo de forte sol, e assistiam a
discursos espontâneos, ao longo do dia. A massa terminou por subir nos túmulos
para ver o cortejo, que atingiu o local ao cair da noite. Desde a rua Dona Mariana
a multidão se convulsionava, disputando o direito de puxar um pouco a carreta
funerária. Entrando o cortejo no São João Batista, os membros da elite oficial se
misturaram à multidão, enquanto o caixão era levado até a capela no alto do
cemitério. Ali, ao som dos tiros disparados na baía, monsenhor Rangel abençoou
o corpo e vários oradores discursaram. Foram oito no total, incluindo o cônsul
da Argentina, João Mangabeira e Evaristo de Morais. Só depois dos discursos é
que entrou o caixão na capela, à qual a multidão continuou em romaria até que
os zeladores forçaram o fechamento do cemitério, passando das oito da noite. O
corpo de Rui ficou na capela até o ano seguinte, quando foi transferido para um
suntuoso mausoléu construído para ele.
Como se pode imaginar a partir das inúmeras homenagens recebidas em
vida pelo Conselheiro, as homenagens póstumas não se restringiram a um
grandioso funeral. Na própria capital federal, em abril, suntuosas exéquias foram
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celebradas na Candelária pelo arcebispo coadjutor Sebastião Leme. Em São
Paulo e Salvador foram organizados grandes cortejos cívicos com ampla partici­
pação das autoridades, dos estabelecimentos de ensino e de associações, seguidos

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de concorridas cerimônias religiosas. lO Seria impossível, aqui, dar conta da


profusão de homenagens fúnebres que se realizaram Brasil afora - inúmeras
sessões cívicas, missas solenes, inaugurações de retratos, de ruas com o nome de
Rui eram noticiadas seguidamente pelos jornais. Delas nos chegam notícias
também através de pastas do Arquivo de Rui Barbosa que contêm correspondên­
cias que contavam à família homenagens prestadas ao "ilustre morto". Câmaras
municipais de lugares como Macapá, PA, Sumidouro, RJ, Jaboticabal, Sp, or­
ganizaram sessões solenes em homenagem a Rui.ll Em Franca, Sp, o dia 20 de
março foi dedicado a homenagens a ele, que incluíram uma missa campal, uma
passeata, a inauguração de um busto e conferências num teatroY Uma cidade
de Santa Catarina recebeu seu nome ainda em março de 1923Y
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Um jornal de São Paulo anunciava em fins de março "Uma Surpresa
Tocante". Narrava ele que a comitiva do secretário estadual de Justiça passava
numa vila de umas 20 casas, a 30 km de distância da estrada de ferro e a 500 km
da capital do estado, e deparou-se com uma câmara ardente montada no pequeno
hotel local. Ali se reuniam diariamente uns habitantes para rezar junto a "uma
mesa coberta de negro, improvisada em altar, um retrato de Rui Barbosa,
encostado à parede, também forrado de negro, rodeado de flores, algumas das
quais murchas e outras já secas". Mesmo que bastante romantizada, a notícia é
indicativa da penetração da figura de Rui no interior do Brasil.
Uma agremiação literária de Belém enviou à família de Rui um grande
cartaz com pinturas à mão representando Rui, uma águia, a bandeira nacional
enlutada e uma guirlanda de flores. Um texto embaixo notificava a inauguração,
em sua sala de honra, de um retrato de Rui. A Associação dos Novos dizia lutar
pelo "soerguimento lítero-artístico da Amazônia" e decretava luto oficial de 30
dias para seus membros. Isso indica como era forte a ligação do culto a Rui com
associações culturais e com a mocidade.
Além de tantas homenagens cujo desfile poderia ser interminável, re­
meto ainda às páginas e páginas dos jornais cariocas que relacionam as coroas e
telegramas de pêsames enviados à família, ao presidente Artur Bernardes e ao
ministro Félix Pacheco. Provavelmente esses telegramas se contariam aos mi­
lhares, e as coroas que chegaram ao velório vinham em grande parte de políticos
e de associações estudantis, grêmios literários, empresas, associações cívicas etc.
Chegaram ainda telegramas de presidentes de outros países (inclusive da França),
do rei da Bélgica, 15 de embaixadores, de chanceleres, de parlamentos estrangeiros
- o que indica que também fora do país Rui foi tratado como virtual chefe de
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Estado.
A pasta DCl do Arquivo da FCRB contém 1.351 missivas dirigidas
apel\as a Maria Augusta e filhos, organizadas em 26 pastas. Constam aí telegramas
de colégios, faculdades, institutos científicos e literários, associações comerciais,

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prefeitos, conselhos municipais, juízes federais, grêmios estudantis, clubes de


elite, deputados, famílias ilustres (como as de Inglês de Souza e Osvaldo Cruz),
empresas, associações étnicas, instituições beneficentes etc. Como curiosidades,
talvez cumpra destacar os telegramas do general Rondon e do prefeito de Juazeiro
!7
do Norte, Padre Cícero, além de poemas e músicas fúnebres executadas no
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profundo interior do Brasil.
No exterior, as homenagens a Rui foram também notáveis, incluindo
uma sessão especial no Institut de France (de que Rui era sócio correspondente) Isso indica que a
com a presença do presidente da França; discursos na abertura da sessão da Corte de que o sucesso de
afirmação de Freyre,
19
Permanente de Justiça de Haia; uma rua com o nome de Rui no centro de Rui em Haia foi uma
Montevidéu; um editorial especial e laudatório do New York Times; e cinco
farsa, não procede?

20
minutos de silêncio solene nas escolas públicas da Polônia.
O discurso criado em torno da morte de Rui seguiu basicamente as linhas
de sua consagração em vida: ele era afilmado como o maior defensor da liberdade
e do direito no Brasil, o arquiteto da República, a súmula da cultura e da erudição
brasileiras, a perfeita união entre o Verbo e a Moral. Era erigido como o grande
homem, superior, polivalente, capaz de fazer uma nação com suas próprias forças.
Era o símbolo de nossa civilização.
Para exemplificar a continuada deificação de Rui, evoco um artigo de
Vicente de Medeiros, em O Dia de 4 de março: "Eras bom, eras justo, e eras
perfeito; eras o gênio integralizado numa criatura humana, a quem retirou todas
as falhas, todos os defeitos e todas as imperfeições humanas; eras até mesmo
semelhante aos deuses, porque eras um deus-criatura moral, que viverá para
sempre com a imortalidade dos gênios que são deuses!" E concluía assim o artigo:
"Tu, Mestre augusto, Apóstolo divino, Templário da Bondade, Cavaleiro da Fé,
Vigilante do Direito, Defensor da Ordem, Guia, Imperador, Formador e Mentor
da Mentalidade Brasileira, último e mais alto escalão da Mentalidade Latina,
não! não morrerás!"
Menos exaltado era o jornal A Rua, que, no dia seguinte à morte de Rui,
escrevia: "Extinguiu-se ontem a maior luz mental do Brasil contemporâneo.
Quem era maior:
Desapareceu o homem que mais fúlgido relevo já teve no cenário nacional, Rui ou o Barão do

destacando-se, durante cerca de meio século, pelas extraordinárias irradiações de


Rio Branco??

sua mentalidade portentosa." Um breve passeio por algumas manchetes de jornal


do dia 2 de março pode ajudar a dar uma idéia do discurso então criado em torno
de Rui: ''Apagou-se o Sol!" (Gazeta de Notícias); "O eclipse de um gênio"
(Rio-Jornal); "A morte do maior gênio da raça" (A Pátria); ''A grande catástrofe"
(A Notícia).
Mas nem tudo era re etição da retórica consagratória que se dera em vida

tindo a especificidade do momento de homenagens fúnebres. O primeiro traço

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específico, que era apenas residual na glorificação em vida, foi a afirmação da


sobrevivência de Rui ao falecimento de seu corpo. Bem como, na monarquia
inglesa medieval e renascentista, a doutrina dos dois corpos do rei visava a
assegurar a continuidade simbólica da vida do soberano para além do perecer de
seu corpo de indivíduo biológico (Kantorowicz, 1957), também quando da morte
de Rui fizeram-se esforços nesse sentido. A superposição de fenômenos então
verificada talvez tenha sua base primeira no dualismo ocidental entre corpo e
alma. Oposto por Lucien Lévy-Bruhl (1963) à dualidade entre matéria e espírito
verificada nos "primitivos", o dualismo de base cristã coloca como rito de
passagem central nos funerais ocidentais modernos a desconstituição do eu entre
esses dois elementos constituintes básicos. Van Gennep, em seu clássico livro
sobre os ritos de passagem (1992), comenta como, em outras sociedades, se realiza
nos funerais uma separação entre várias "almas"; no Ocidente, esse processo foi
substituído pela separação dos destinos que devem ter o corpo e a alma. Afirma-se
a imortalidade da última contra a finitude do primeiro.
No caso de Rui, um problema adicional se colocava: o que se queria
imortalizar não era apenas a alma de um cristão, como se pretende para os mortos
em geral. Tratava-se de imortalizar uma figura política, um herói cívico e literário.
Como no caso dos soberanos ingleses, havia que se afirmar a sobrevivência de
um verdadeiro símbolo coletivo personificado. Mas, se o pensamento político
inglês optou por proclamar a existência de um outro corpo do rei, distinto de seu
corpo perecível de indivíduo biológico, os celebradores de Rui se serviram do
dualismo entre corpo e alma para associar a esta muito daquilo que queriam fazer
viver: a obra de Rui, suas lições morais, seu gênio. Era uma dimensão de Rui que
se proclamava "espiritual" e que cumpria assim tornar imortal, tal qual sua alma.
Assim, entende-se que um traço formal dos funerais já verificado por
Van Gennep - a preeminência, em comparação com outros ritos de passagem,
dos ritos de incorporação - tenha sido exacerbado no funeral de Rui. Este foi
sobretudo um ritual que reforçava a incorporação de seu nome ao templo dos
imortais brasileiros, dos Grandes Homens da nação. Todos os discursos fúnebres
enfatizavam essa dupla imortalidade de Rui Barbosa, pois a construção da
imortalidade de Rui era objetivo expresso, consciente, dos que se reuniam para
dele se despedir.
Veja-se, por exemplo, o que afirmou em discurso no cemitério o cônsul
da Argentina: "Rui Barbosa não desaparece, senhores, ficam suas obras, seus
ZZ
discursos, seus escritos forenses, suas conferências, sua ação parlamentar... " E
disse Constância Alves ao final do velório: "O teu nome não é dos que se apagam
ou dos que se riscam. Para que desaparecesse, seria preciso suprimir quase 50
Z3
anos do nosso século de vida nacional."

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Enterrando Rui Barbosa

o deputado baiano João Mangabeira, o último a discursar no cemitério,


foi particularmente dramático ao afirmar a imortalidade de Rui, que para ele se
daria principalmente pela continuação de sua obra política por seus seguidores.
Afirmou: "E agora, e sempre, nós te vemos luzir liberto das tábuas do esquife,
pelo espaço infinito, e pelo tempo sem fim!" Depois de dizer que a própria Igreja
a presença não realizava cerimônias fúnebres para pessoas como ele, mas sim "festividades
de 2 baianos ruidosas" que marcariam "o momento divino da santificação", entrava a tergiver­
sar sobre o crepúsculo que caía, afirmando que o poente "para nós, para a Pátria,
é o crepúsculo dourado da manhã, em que tua imortalidade alvorece!" Afinal, a
seu ver, "o gênio dá apenas por algumas horas a impressão da morte, para
24
ressurgir, como Jesus, do sepulcro vazio".
Outro aliado baiano de Rui, o ministro Miguel Calmon, liderou uma
interessante iniciativa. Calmon mandou confeccionar um coração de cravos de
25
3 m de altura, com a inscrição: ''A cidade de Salvador ao maior de seus filhos".
Esse que se tornou então conhecido como "o coração da Bahia" foi carregado em
préstito por Calmon e outros baianos ilustres do centro da cidade até o São João
Batista. Isso expressou visualmente um dos temas mais recorrentes dos funerais
de Rui: as emoções de seus admiradores e as do próprio homenageado.
Todos os discursos e quase todos telegramas enfatizavam com dramati­
cidade a tristeza da perda de Rui; abundavam frases como gigantesco pesar,
profunda tristeza etc. E claro que isso faz parte do ritual fúnebre brasileiro, mas
,

merece ser destacado porque distingue bastante a consagração fúnebre daquela


feita em vida. Tratava-se de verdadeira construção social da dor, do luto.A Notícia
de 2 de março fornece um exemplo dessas afirmações, ao dizer que a morte de
Rui chegara "oprimindo-nos os corações, fazendo-nos sangrar nas torturas de
uma dor sem limites e nos enchendo de uma tristeza infinita".
A fala de um juiz de direito na sessão especial do Paço Municipal de
Macapá em homenagem a Rui revela como se conectavam as corriqueiras
manifestações de dor da parte dos admiradores de Rui e os sentimentos atribuídos
a ele próprio. Dizia o juiz que, "como um redentor, morreu justo. Os seus
discípulos, os seus amigos de sempre, estiolados com tão cruel acontecimento,
vivem acabrunhados, faltos como os apóstolos da escritura, chorando o seu
Mestre. Morreu (... ) cercado do carinho de seu povo, ministrando-o os últimos
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afetos de seus bons sentimentos".
Ou seja, depois de morto os elogios a Rui passaram a enfatizar bastante
a sua singularidade do ponto de vista afetivo. Os sentimentos se associavam
àqueles campos em que Rui já era antes celebrado: a moral, a inteligência, as
letras. O coração se adicionava ao cérebro e ganhava cada vez mais importância
para traçar seu perfil de homem acima dos demais. Porque seus sentimentos,
como seus dotes cerebrais, não eram afirmados apenas como singulares, mas

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como superiores. Se os brasileiros o cercavam de "carinho" e o "pranteavam com


saudade", é porque sua vida fora marcada "pela candura e pureza da [sua] alma
de apóstolo", como escreveu o jornal O Dia, em 4 de março.
Que a veneração a Rui se fundamentava também em crenças sobre sua
vida afetiva singular revela-se ainda no discurso que José Joaquim da Palma
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preparou para ler no cemitério. O autor começava dizendo que as flores da
saudade que depositava sobre o caixão de Rui estavam "molhadas das lágrimas
outro baiano...
de meu coração, despedaçado por uma dor tão funda, quanto imenso era o amor
que a ele me prendia". E entrava a descrever longa e laudatoriamente os senti­
mentos que animavam a Rui: ''Aqueles que, como eu, conheceram a riqueza
inesgotável de afetos e de bondade que entesoirava a sua alma, sempre inclinada
à prática do bem e à felicidade dos outros, manifestando na simplicidade e doçura
de sua vida íntima todos os sentimentos que constituíam a generosidade sem
limites de seu espírito, feito de ternura e de valentia, de ternura para os oprimidos,
os vencidos e os fracos, de valentia para combater o mal (... ) podem bem aquilatar
da grande dor que me enluta o coração com o seu desaparecimento. "
O trecho, além de mais uma vez conectar as emoções que se atribuíam a
Rui e as que se afumava sentir em torno de sua morte, mostra como aquelas eram
quase as de um santo - bondade, prodigalidade, compaixão, amor pelos oprimi­
dos etc. As emoções são também elencadas como fatores de sua glorificação
porque remetem invariavelmente às virtudes cristãs por que Rui fora celebrado
em vida. E mais palavras de Palma corroboram o ponto. Dizia ele: "E, como era
justo, sabia também ser clemente. Não guardava ódios, tendo sempre a pender­
lhe dos lábios o perdão para os que o ofendiam. Por essas duas virtudes - ser justo
e ser clemente - ele se aproximava da divindade... "
Cumpre lembrar que os necrológios de Rui Barbosa formaram verdadei­
ras bases de mitos a seu respeito, pois o mostravam como virtual herói civilizador
que construíra o Brasil de então. Muitos artigos faziam expressamente coincidir
a vida de Rui com a própria trajetória política do país. Ele era repetidamente
afumado como herói da abolição e da República. O próprio Brasil moderno era
tido como a obra de Rui, o legado pelo qual ele merecia ser consagrado. O Jornal
de 2 de março o apontava como "única verdadeira escola de educação cívica que
jamais conheceu nosso povo".
Luís Murat, em artigo noJornal do Brasil de 8 de março, advogava a idéia
de que Rui era um desses Grandes Homens capazes de intervir de fato no destino
das sociedades, por ser marcado por uma "vontade coordenadora e impulsora"
que lhe permitia enfrentar sozinho a sociedade conservadora e prepará-la para a
transição para uma nova fase. Isso exemplifica a associação de Rui com umafase
da1vida nacional - a modernização a partir do fim da monarquia. A idéia defase
aparece também, por exemplo, em O Dia de 4 de março, que mostra Rui Barbosa

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Enterrando Rui Barbosa

como "figura tutelar do ciclo político [atual]", por ter atuado diretamente e com
amplas responsabilidades "na orientação dos destinos nacionais".
O Gênio fizera a Pátria - eis o que diziam, em suma, as narrativas míticas
em torno de Rui. Ele era como um herói solitário, capaz de civilizar um país com
seu próprio talento. No dizer de O País (3/3), ele realizara as "maiores campanhas
renovadoras e dinamizadoras da nossa civilização", e suas "cinzas augustas serão
sempre a representação simbólica da Pátria".
Para além disso, é importante observar que a morte de Rui ocasionou
uma enxurrada de anedotas, memórias e curiosidades a seu respeito nos jornais,
a maior delas revelando traços excepcionais de seu caráter e talento. Um jornal
narrava impressionantes casos reveladores de sua memória prodigiosa, contando
ainda que ele lera todos os dicionários de português existentes e que era um leitor
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universal à Goethe. Outro contava que Rui era sempre assediado nas calçadas,
e que "se detinha bondosamente" p'ara receber homenagens de populares, sem
. . ' 29
permlt1r que Ihe tirassem
' o chapeu.
A edição especial de O Tempo de 15 de janeiro de 1924 apresentava uma
verdadeira coleção de casos similares, cabendo talvez destacar dois artigos que
falavam sobre duas grandes virtudes atribuídas a Rui - o trabalho e a bondade.
O primeiro contava como Rui era capaz de trabalhar doente e mesmo com febre,
tendo escrito em tais condições alguns de seus trabalhos mais famosos. O
segundo, intitulado ''A grande alma de Rui", narrava a vez em que Rui, recém­
mudado para a Corte, dera o Único dinheiro que ele e a esposa tinham a um rapaz
que precisava de fundos para se preparar para os exames da faculdade. Com tais
casos, ia-se construindo a imagem póstuma de um Rui prodigioso, genial e
caridoso.
O último ponto a destacar quanto às idéias e valores relacionados aos
funerais de Rui Barbosa é a grande atração exercida pelo corpo do morto. Antes
de mais nada, cumpre observar que jornalistas e oradores tinham um cuidado
muito grande em separar Rui Barbosa em si mesmo, sua "individualidade", de
seus restos mortais. Em nenhum momento se diz, por exemplo, que Rui seria
enterrado, ou que Rui estava no caixão. Sempre se referiam aos "despojos
sagrados", aos "venerandos restos", ao "corpo frio e inerte" de Rui. Rui Barbosa
era aquele que desaparecera, que falecera com a saída da vida daquele corpo.
Tome-se como exemplo dessa distinção as palavras de um jornalista ao definir o
cadáver: "despojos sagrados da mais genial, complexa e perfeita individualidade
30
que jamais passou pela superfície do nosso planeta. ,,
Esses dois eram aliás os grandes protagonistas dos funerais - o corpo frio
e inerte e a individualidade, o vulto de Rui Barbosa. O contraponto constante da
imortalização desta última, do seu espírito e da sua obra, era a referência ao físico

145
estudos históricos. 2 000 - 25

que perecia. Todos os discursos o mencionam a qualquer pretexto e os artigos


dissertativos se referem a ele todo o tempo.
O jornalista Lemos Brito, por exemplo, em seu discurso à saída do corpo
da Biblioteca, para falar da tristeza geral dos presentes, disse: "Soergue a cabeça
de sobre o teu sarcófago, e verás que não há, neste mundo de povo, uma alma que
31
não chore a tremenda desgraça de perder-te., , A impressão é de uma generali­
zada morbidez barroca, que alguns certamente exacerbavam. Foi o caso do
colunista Chrysantheme, que, em O País de 4 de março, comentava o enterro e
as virtudes de Rui a partir de seu físico, descrevendo o triste fim daquele corpo
que tantos prodígios efetivara: "A passagem do leito sombrio, onde, sobre o
,

travesseiro de cetim descansa aquele cérebro forte, de idéias maravilhosas, de


ambições naturais (... ) Em vão, as flores, que ele tanto amou, se amontoam sobre
seu cadáver, abafando-o do seu perfume que tantas vezes, ele vivo, o embriagou.
Debalde, lágrimas mornas e amargas lhe roçam pelos dedos, que tanto traba­
lharam, e pela fronte cor de cera, que tanto se franziu no ardor do pensamento e
na ânsia da cólera humana.( ... ) Com os olhos cerrados, o grande brasileiro dorme
o sono de que jamais se desperta e, da sua boca de lábios tristes, nunca mais sairá
uma frase de vitória para a Pátria, de afeição para a Família, nem de consolo para
os amigos!"
O contraste é forte entre o corpo morto e as ações grandiosas que seu
antigo ocupante realizara, entre a potência cerebral e sua presente inatividade.
Esse contraste era uma derivação, na verdade, de algo que sempre chamara a
atenção dos contemporâneos de Rui, o contraste entre seu "gigantismo" cívico e
literário e seu corpo mirrado, diminuto. A desproporção entre a individualidade
e o físico que a portava, entre o grande vulto e seu corpo, fora objeto de comentários
durante toda a sua vida. Os caricaturistas haviam fartamente explorado o tema
durante toda a vida de Rui. Mas essa desproporção nunca foi tão comentada como
no funeral, sendo ela agora dramatizada pela oposição entre uma "individuali­
dade" imortal e um corpo perecível.
Luís Murat, em seu mencionado artigo noJornal do Brasil de 8 de março,
comentava que o fato "assombra os que nunca acreditaram que em um corpo tão
exíguo se ocultasse o maior espírito do seu tempo". No mesmo artigo con­
trapunha ainda os dois outros pólos que a esses se sobrepunham: "Com a gelidez
do corpo nada tenho que ver. E no espírito, que revive e se agita, ainda na mortalha
,

das dores, que reside o meu culto."


Mas ainda no plano físico havia um compensador simbólico para o corpo
minguado. E o que se vê, por exemplo, em O Brasil de 2 de março, em que se lê
,

um artigo sobre "esse velhinho, cujo corpo a natureza reduzira a um mínimo


físico, para transmudar todos os valores materiais na espiritualidade da grande
cabeça". E o articulista desenvolve o tema daquilo que um dia se chamou "o maior

146
E1Iterra1ldo Ruí Barbosa

32
coco da Bahia, ,: "E quem não se descobria, como diante de um ídolo, ante essa
grande cabeça, por sob cujos cabelos, já cobertos de neve, crepitava o lume do
gênio, tal nas entranhas dos altos montes de cimos gelados arde o fogo vul­
cânico?" O grande tamanho da cabeça de Rui fora a festa dos caricaturistas ao
longo de sua vida, e pretexto para vários exercícios de poesia laudatória. Ela
permitia uma sede física condizente com as fenomenais inteligência e cultura
que se atribuíam a Rui.
Mas no funeral a grande preferência foi pelos contrastes, que se poderiam
definir em alguns pares de homólogos: individualidade : corpo :: vigor : morte
:: cabeça : corpo : : gigante : franzino :: calor : frio : : ação : inércia : : mente :
físico.
Esses pares não eram separados, mas sim cruzados todo o tempo, em
jogos de contrários que aumentavam o sabor barroco da retórica. O País de 4 de
março evocava um evento ocorrido no velório de José do Patrocínio, para dizer
que frases semelhantes à pronunciada então devem ter passado pela mente de
muitos dos que viam Rui morto. O caso era o de um popular que entrara no velório
do jornalista e pondo as mãos sobre a testa do cadáver, dissera: "Como está frio
3
este vulcão!,,
Já Coelho Neto, em artigo publicado no Jornal do Brasil de 4 de março,
referia-se a Rui como "a Força Humana, que jaz na Biblioteca Nacional, lar do
Pensamento... " e dizia que ele efetivara, além dos conhecidos milagres de essên­
cia, um de substância. E justificava: "De substância, por ser o corpo desse ente
prodigioso um quase nada e suportar nos Ombros todo o Destino de uma nação,
toda a responsabilidade de uma era..." (o artigo era intitulado "O Atlante"). Mas
fixava-se mais na cabeça, que estava do lado gigantesco de Rui Barbosa: ''A cabeça
desse homem predestinado, pelo que continha, lembrava esses globos geográfi­
cos, imagens do mundo, nos quais se congregam, flutuando nos oceanos e
reticulados de rios, todos os continentes da terra e as ilhas que deles se aberram,
porque todas as grandezas do mundo tinham ali seu lugar assinalado... " Mesmo
sendo o trecho exemplo do estilo de metáforas caras ao escritor, seu conteúdo não
era fortuito num repertório onde o corpo e o cérebro de Rui eram assuntos
privilegiados. 34

Os anticarnaJJais da morte: ritos de instituição e de reforço

Esta rápida etnografia dos funerais de Rui Barbosa certamente se pre­


tende uma contribuição para o estudo do processo de transformação desse
indivíduo em herói nacional, processo do qual tais funerais são parte importante.
Contudo, o principal objetivo deste artigo não é mostrar como Rui se consolidou
como herói da nação no momento de sua morte, e sim apresentar um caso

147

estudos h is tóricos . 2000 - 25

específico capaz de revelar traços importantes da consagração fúnebre de heróis


nacionais, muito especialmente durante a Primeira República. E como revelador
,

de práticas cívicas mais gerais da época que interessa o enterro de Rui Barbosa.
E claro que esse gênero de consagração fúnebre-cívica antecedia de
,

muito a época da morte de Rui (tendo inclusive forte inspiração em eventos fora
do Brasil) e sobreviveu muito além de 1930. Atenho-me primordialmente à
República Velha por não querer generalizar as características do caso estudado
para outros períodos, e já que este é o recorte natural do qual o caso em questão
pode ser legitimamente considerado representativo. Ademais, creio que o
período pode ser particularmente interessante por ter certo caráter de inten·egno
simbólico entre os períodos de predomínio de dois chefes de Estado vistos como
heróis máximos da Nação: dom Pedro II e Getúlio Vargas. O Imperador, como
mostra Schwarcz (1998), fora como um "grande pai" para o Brasil, e seu lugar
simbólico só viria a ser plenamente ocupado, com semelhante carisma e premên­
cia, pelo presidente de origem gaúcha. Entrementes, os chefes de Estado não se
marcaram por elevada popularidade e estiveram longe de se constituir em heróis
nacionais tão ardente e amplamente venerados como o velho ocupante do trono.
Assim, pululavam candidatos à posição simbólica de dom Pedro na República
Velha, sem que nenhum a alcançasse de modo pleno. Ou seja, esse interregno se
coloca como importante laboratório para o estudo da tentativa de construção de
heróis nacionais, por ter servido como um celeiro de "grandes homens" que não
foram subsumidos, na época, por nenhuma figura hierarquicamente superior,
35
como nos períodos anterior e posterior.
De qualquer forma, a República Velha foi marcada por uma abundância
de faustosos funerais cívicos de homens que então se afirmavam como heróis
nacionais. Notadamente homens de letras e políticos eram assim celebrados no
momento de sua morte. Para tentar entender esses rituais fúnebres-cívicos,
abordarei alguns funerais ocorridos no Rio de Janeiro na República Velha.
A referência básica aqui são os funerais cariocas, sobre os quais realizei
rápida pesquisa em periódicos como O País, A Razão e o Correio da Manhã, de
personalidades que foram enterradas na capital federal (Machado de Assis, em
1908; Afonso Pena e Euclides da Cunha, em 1909; Barão do Rio Branco em 1912;
Osvaldo Cruz em 1917) e de outras que, embora enterradas alhures, por alguma
razão tiveram funerais no Rio Qoaquim Nabuco, em 1910; Pinheiro Machado,
36
em 1915; Rodrigues Alves, em 1921). Trabalhos acadêmicos que me forneceram
importantes subsídios sobre enterros na Primeira República foram os de Regina
Abreu (1998), sobre a "imortalização" de Euclides da Cunha; de Valéria Costa e
Silva (1999), sobre a consagração de Machado de Assis, e de Luiz Antônio Simas
37
(1994), sobre o enterro de Floriano Peixoto.

148
Entcn-alldo R ui Barbosa

Outro caso que investiguei em jornais da época deve ser agregado aos já
citados: o traslado dos despojos dos imperadores Pedro II e Teresa Cristina para
o Rio, em 1921. Fez-se então urna festa impressionante, ocorrida no seio de um
processo de reabilitação de Pedro II corno herói nacional. 38 O episódio foi
marcado por verdadeiro delírio popular no centro do Rio, com cenas de velhos
súditos desmaiando e chorando diante dos corpos de seus venerados impera­
dores, que passaram a ficar em exposição numa capela da Catedral. 39
Várias características unem os diversos rituais fúnebres citados. Longos
cortejos com urna rígida ordem hierárquica, a assistência de numerosos populares
se a hierarquia
era importante,
e a participação de autoridades e pessoas de destaque da mais elevada elite carioca então o lugar
são os traços mais evidentes. Com maior ou menor concorrência, mas sempre designado para
com grande pompa, repetiam-se em todos os casos os luxuosos carros fúnebres,
Miguel também
o era.
os carros com figuras importantes, as bandas militares tocando marchas fúnebres,
os tiros de canhão dos navios e fortalezas, os batalhões militares em trajes de
honra, os postes cobertos de crepe negro e as ruas repletas de populares.
Vários, corno Machado de Assis e Osvaldo Cruz, tiveram os funerais
pagos pelo Estado. Mas, dos casos citados, apenas Rui e Rio Branco tiveram
honras de chefe de Estado sem o ser - Afonso Pena, que morreu no Catete, e
Rodrigues Alves, presidente eleito, também as tiveram. Isso deu a seus funerais
especial pompa e circunstância, já que, inclusive nos demais casos, era a presença
de autoridades e figuras de destaque que dava o tom de urna festa nacional. Com
as honras de chefe de Estado, esse componente aumentava - a começar pelas
numerosas e literalmente estrondosas saudações militares que se faziam.
Os cortejos transcorriam tipicamente entre o local da morte e o do
velório, e entre este e o do enterro. Mas o grande lugar era o do velório, objeto de
cuidadosas escolhas simbólicas por parte dos celebrantes - deveria haver uma
grande identidade entre o morto e o local. Assim, Rio Branco foi velado no
Itamarati; Machado e Euclides na Academia Brasileira de Letras; Pinheiro
Machado na sua casa do Morro da Graça e no Senado; Afonso Pena no Catete, e
Rodrigues Alves em seu palacete da rua Senador Vergueiro. Todos se cobriam de
muito fausto - veludos negros cobrindo paredes e fachadas inteiras, crepes sem
fim, lágrimas e iniciais em ouro e prata, ricos altares e catafalcos, dosséis de cobre,
guardas de honra. Além de expressar a própria especificidade das vidas e obras
dos extintos, essas instituições eram verdadeiras manifestações materiais de
setores da elite nacional, que subitamente se abriam à visitação pública.
Não surpreende a fenomenal acorrida da população a esse locais, não
necessariamente para adorar seus mortos, mas também para poder ver espaços
Eita Thompson!
normalmente a ela interditados. Nessas ocasiões a elite se mostrava em verdadeira
performance pública. Quando, senão aí, poderiam "pessoas modestas" entrar
livremente na mítica mansão do Morro da Graça, no Itamarati, ou na casa do

149
estudos históricos . 2000 - 25

chefe da oligarquia paulista, e ver tantas fardas e casacas reunidas, para não falar
de tão abundante luxo funerário? O assim chamado "povo" era convidado a
penetrar nos recintos da elite e aí se extasiar com a circunstância, com o fausto e
o respeIto.

Certamente, uma grande demonstração dos membros da elite para si


Pedro
mesmos e para o povo, nesses momentos, residia nos grandiloqüentes e Calmon em
laudatórios discursos fúnebres. Os funerais eram grande ocasião para a ostentação sua
da verborragia complicada e do vocabulário difícil, grandes símbolos de supe­
memória
dizia que o
rioridade social. Os discursos eram tão numerosos quanto longos, e visavam povo não
explicitamente à imortalização do "preclaro morto" e a seu ingresso no panteão ligou a
da Nação. mínima
para os
Com isso, entra-se em outra dimensão onde se encontram elementos discursos
comuns a todos os funerais citados, uma dimensão mais cognitiva e valorativa, (se não me
menos ligada à prática ritual propriamente dita. Que idéias e valores se expres­ engano)
savam nos grandes rituais fúnebres-cívicos, nos discursos que neles se faziam,
nos artigos jornalísticos por eles suscitados?
Nota-se, como já foi dito, um tom grandiloqüente muito próximo
Isso tudo
explica ao
daquele que se verificou em torno de Rui Barbosa. Isso não significa que todos mesmo
os "ilustres defuntos" recebessem os mesmos graus de louvação conferidos a Rui. tempo em
A julgar pela comparação dos textos dos jornais, que sempre reproduziam os
que é
explicado
discursos feitos nos velórios e enterros, creio ser possível dizer que apenas o Barão pelo fato
do Rio Branco recebeu epítetos tão grandiosos quanto os atribuídos a Rui. Ambos de Ruy
foram chamados de "o maior dos brasileiros" e alçados a patamares de verdadei­ ser às
vezes
ros santos da Nação. Frases ditas a respeito do chanceler aproximam-se das ditas elogiado
sobre Rui: "era uma glória humana"; "era um prodígio na intensidade fenomenal mesmo
0
do trabalho, como era o mais doce e o mais ameno no convívio da amizade".4 por
adversário
Nenhum dos outros mortos foi tão celebrado assim; basta notar o s seus.
número de páginas dedicadas nos jornais a homenagens ao Barão e a Rui, muito Tavez os
superior ao daquelas dedicadas a qualquer dos outros falecidos. Nenhum se
baianos
como um
identificava, ademais, tão abstratamente com a Nação, de que os dois foram ditos todo
ser a própria encarnação e o ponto máximo da inteligência. Ambos eram vistos vissem as
como os verdadeiros construtores do Brasil, seja em seu arcabouço jurídico vantagens
de
liberal, seja em seu território e fronteiras. promovê-l
Mas grandes títulos não faltaram aos outros nomes, erigidos como heróis o, ao
nacionais, ainda que num patamar inferior, com uma veneração menos exaltada
mesmo
tempo em
e mais limitada a uma ou outra esfera. Todos eram "insignes mortos", seus que se
despojos eram sempre venerandos ou excelsos, ou, em casos como Machado e rendiam à
Nabuco, sagrados. Suas mortes eram sempre descritas como catástrofes. Ne­
força
dessa
croló,gios míticos, à semelhança dos que descrevi sobre Rui, eram sempre repeti­ promoção,
dos em artigos e discursos, louvando as obras e as qualidades inatas dos extintos. da qual
outros
certament
150 e
participav
am
Enterralldo Rui Barbosa

o cultivo retórico da dor, do pesar dilacerante, estavam sempre presentes, em


graus diversos, geralmente inferior àquele manifestado em relação a Rui e a Rio
Branco. O desejo expresso de imortalização era também constante - em todos os
casos, afirmava-se a sobrevivência além dos corpos inertes. Isso era explícito;
tratava-se sempre de demonstrar retoricamente que os heróis sobreviveriam além
de seus corpos.
O mais notável, porém, é a recorrente associação de todos aqueles nomes
com a Nação, com a Pátria. Os enterros estudados eram invariavelmente cele­
brações da Nação, e o Brasil era a referência mais presente. A retórica era toda
cívica. Todos os falecidos eram descritos, no mínimo, como grandes patriotas, e
seus trabalhos nas mais diversas áreas eram sempre remetidos ao engran­
decimento da nação - ainda que de uma nação estrangeira, como no caso de Del
Prete. Por isso chamo esses enterros de rituais cívicos.
Destarte, Osvaldo Cruz teria sido um herói da civilização brasileira,
contribuindo para o respeito das outras nações pelo Brasil ao livrá-lo da febre
amarela e sanear sua capital. Joaquim Nabuco também teria sido um exemplo de
"bem servir à humanidade e à Pátria". 4 1 O cadáver de Floriano Peixoto era
42
descrito como "relíquia sagrada da república"; Machado de Assis era o "chefe
incontestado da nossa literatura", "o primeiro homem de letras que o Brasil tem
43
produzido"; em Afonso Pena a nação teria perdido "um dos seus mais dignos
filhos e um dos seus mais dignos guias". 44 No dizer de João do Rio, Pinheiro
Machado, além de ser a "mais empolgante, mais incisiva, mais poderosa" das
grandes "individualidades" brasileiras, era a "encarnação da República, Defesa,
Baluarte do Regime. Era a Ordem.". 45 Rodrigues Alves também teria feito uma
contribuição específica para o Brasil, sendo tanto o "elo que manteve contínua a
cadeia da evolução constitucional da Nação" quanto, "em toda a história
brasileira, o homem que tem revelado maior poder de adaptação às circunstân­
46
cias. ,, Regina Abreu (1998) salienta como nos elogios fúnebres a Euclides da
Cunha apareciam constantes referências a suas virtudes morais e cívicas, às quais
era amiúde remetido seu mérito literário.
Assim, era antes de tudo a Pátria que se via em cada um dos heróis
celebrados, fossem eles literatos ou políticos. Quando não encarnavam esferas ou
aspectos do Brasil, procedia-se a um corte diacrônico, e o morto passava a
representar a Nação em um de seus momentos históricos. Era isso inclusive que
possibilitava a celebração republicana do monarca deposto: ele era o símbolo de
um Brasil passado que, embora não devesse voltar, merecia ser comemorado por
ter contribuído para a formação da Pátria.
Deve-se contudo notar que essa singularização dos aspectos ou momen­
tos da Pátria nas homenagens fúnebres associa-se intrinsecamente com a cons­
trução de grandes figuras individuais singulares, específicas. Todas eram tomadas

151
estudos históricos . 2000 - 25

como tendo contribuído para a nação, mas com obras e qualidades próprias que
as distinguiam umas das outras.
Na verdade, percebe-se uma dupla diferenciação dos personagens imor­
talizados. Primeiramente, sua separação em relação aos "mortais" era a base
comum das várias celebrações - antes de mais nada, eles se distinguiam das
pessoas não glorificadas. Todos se destacavam porque eram superiores aos demais.
Num segundo plano, distinguiam-se internamente dentro do panteão cívico
porque demonstravam valores e faculdades distintos uns dos outros. Desse ponto
de vista, os funerais eram local privilegiado de afirmação de um individualismo
da singularidade. E a singularidade, no caso, supunha uma desigualdade tida por
natural que separava os grandes heróis da própria humanidade. Eles eram
super-homens, naturalmente predestinados a cumprir um papel na história.
A construção dessa singularidade hierarquizante marcava toda a retórica
fúnebre-cívica. O esforço dos que celebravam os mortos era no sentido de traçar
perfis psicológicos que demonstrassem a unicidade da contribuição de cada um
deles. Isso se fazia geralmente pela atribuição de qualidades extraordinárias
inatas, dadas na constituição dessas individualidades, para usar o termo nativo
recorrente. A tra· etória de cada um era narrada como o desenvolvimento dos

é aliás consoante num universo discursivo em que toda a ênfase é dada à


construção da singularidade individual. O individualismo aí é claramente do tipo
qualitativo (Simmel, 1993).
E importante observar que o forte individualismo evidenciado nos
,

funerais cívicos da Primeira República corrobora a idéia de Louis Dumont (1990)


de que há uma afinidade eletiva entre os fenômenos modernos do individualismo
e do nacionalismo. Segundo o antropólogo, a Nação é concebida como um
indivíduo coletivo, idealmente constituído por uma associação de indivíduos
biológicos. Ora, o discurso das celebrações fúnebres aqui analisadas sustenta
precisamente que os grandes homens enterrados construíram a Nação, literal­
mente fizeram na com seus dotes inatos e únicos. O Brasil era visto como um
-

grande artifício dessas vontades individuais, como um produto desses homens


com qualidades acima do normal.
Cada um desses indivíduos era aliás tido como materialização de uma
idéia, valor ou instituição. Eles davam literalmente um corpo a noções abstratas
que os sobreviventes queriam celebrar. Pinheiro Machado era a Ordem; Ro­
drigues Alves, a Conciliação; Rui, a Liberdade e o Direito; Machado de Assis, a
Literatura; Osvaldo Cruz, a Ciência; Rio Branco, o Território etc. E claro que
,

esses são meros exemplos, e não são atribuições exclusivas, consensuais e unívo­
cas - çada morto podia representar mais de uma idéia, e havia múltiplas inter­
pretações possíveis sobre cada um. Ademais, a mesma idéia poderia estar sem

152
En terrando Rui Barbosa

contradição em vários corpos: Rui, Rio Branco e Osvaldo Cruz eram corno que
facetas distintas de nossa civilização; Rui, Machado de Assis e Euclides repre­
sentavam a nossa cultura; Rui e Rio Branco eram o próprio Brasil.
O que importa, menos que estabelecer uma espúria tabela de corres­
pondências, é verificar qual o esforço subjacente a tão cultivadas associações.
Todas exploravam as singularidades atribuídas aos indivíduos falecidos para
torná-los espécies de alegorias às avessas. As alegorias faziam parte do repertório
cotidiano da época - em anÚncios, prédios, monumentos, jornais, caricaturas,
ilustrações, peças de teatro, livros, apareciam os mais variados substantivos
abstratos tornando formas humanas. Era assim com a Música, a Glória, a Paz, a
Poesia, a Inteligência, o Estudo, a República, a Nação, o Carnaval etc.; todos eram
representados a toda hora corno pessoas concretas, dotadas de corpo. Ora, os
ilustres falecidos de que falo aqui eram mobilizados quase corno alegorias, como
indivíduos específicos que passavam a representar, por seus atributos e por sua
vida, idéias, coletividades ou épocas. Só que, ao invés de caber à imaginação dar
um corpo inexistente às idéias, corpos reais já estavam disponíveis - bastava
transformá-los retoricamente em manifestações dessas idéias. Ganhando corpos,
essas idéias podiam efetivamente se individualizar. Assim corno a pessoa mo­
derna tem seu fulcro na noção de um corpo que a porta, que lhe dá limites e a
singulariza (corno observou Maurice Leenhardt em seu Do Kamo), tal noção
permite a corporificação de noções abstratas, lidas assim num viés individualista.
Destarte, os funerais acabavam quase constituindo uma espécie de
politeísmo cívico, com várias figuras sagradas "abençoando" uma ou outra virtude,
urna ou outra "fase da evolução nacional". Isso é enfatizado pela onipresença da
linguagem religiosa na consagração dos heróis cívicos. A idéia de que se tratava
de estabelecer-lhes um culto, de que eles são semideuses ou apóstolos aparece com
freqüência em quase todos os casos. E mesmo se nem todos fossem, corno Rui,
expressamente identificados corno santos pelos cultuadores, sua imortalização
tendia a torná-los sagrados, fora de circulação, porque estavam acima dos demais
homens, que não se imortalizariam da mesma forma.
Não é à toa que as vidas desses personagens se tornavam amiúde vidas
exemplares, similares às vidas de santos, publicadas em biografias consagratórias.
Os cultos a várias dessas figuras não eram incompatíveis, mas complementares.
Todos podiam ser heróis nacionais ao mesmo tempo, embora, bem entendido,
com algumas imprecisas e inarticuladas hierarquias. Poucos, corno Rui Barbosa
e Rio Branco, chegaram ao nível máximo de se identificar com a própria nação.
Para completar a interpretação desses funerais, cumpre desenvolver o
fato de serem eles desfiles da elite para o povo. Eles eram urna demonstração
pública e teatral do mundo das letras e do poder político, dois dos maiores
símbolos da elite de então. Sua firme associação simbólica e ritual com os poderes

153
estudos históricos . 2000 - 25

militares apenas salientava o caráter de reforço das hierarquias que tinham essas
festas.
Na célebre tríade ritual brasileira analisada por DaMatta (1990) - car­
naval, dia da Pátria, procissão -, os enterros cívicos estavam duplamente ligados
ao segundo pólo, o da solenidade, da afirmação de hierarquias. Para começar, os
enterros comuns já fazem parte dessa segunda categoria ritual, devido ao ambi­
ente de respeito e de ordem que os caracteriza. Os funerais cívicos têm esse caráter
redobrado, por terem como objeto os Grandes Homens, encarnações dos setores
sociais superiores a que se conectam. Tratando-se de heróis cívicos, o respeito é
redobrado. Afinal, ali repousa uma personificação da Pátria. Esta identifica-se,
assim, com seus estratos superiores e cultos. Era naqueles homens de fala difícil
e vestimentas taciturnas que devia repousar a Nação.
Os enterros eram então aquilo que pretendiam ser: verdadeiros dias da
Pátria, devido à ênfase na ordem, na hierarquia, na solenidade, no respeito. Que
houvesse contato entre várias camadas da população não significava sua comun­
hão, ou sua mistura temporária. Ao contrário, elas estavam juntas reforçando as
diferenças entre elas, as hierarquias que as separavam. Mais uma vez, nas práticas
e na retórica rituais, faltavam dimensões que enfatizassem a communitas; eram
festas da estrntura, no sentido de Turner.
O discurso sobre o morto era menos para separá-lo da vida do que para
separá-lo da humanidade normal. Menos que um rito de passagem, era um rito
de instituição, para usar o conceito de Pierre Bourdieu (1992). Esse conceito
designa aqueles rituais que têm o poder de separar definitivamente categorias de
pessoas, atribuindo a elas essências, tidas por naturais, radicalmente distintas.
Transformando continuidades em descontinuidades, ou criando diferenças ar­
bitrárias naturalizadas pelos participantes, os ritos instauram e legitimam hie­
rarquias simbólicas que tendem a se tornar reais. São, a rigor, ritos de separação:
"The separation brought about by the ritual (which itselfenacts a separation) brings about
a consecration. (. . .) In this case to institute is to consecrate, that is, to sanction and to
sanctifY, a state ofaffairs, an established order .. " (1992 : 82). A crença na naturalidade
.

das essências atribuídas aos agentes é crucial para a eficácia simbólica do ritual.
Esta reside na criação de uma categoria dos melhores, do mistos; no caso, dos
grandes homens da nação.
O que se salientava não era a humanidade do morto, sua matéria-prima
comum aos outros (que a morte biológica poderia pôr em evidência, poder-se-ia
pensar), mas sua supra-humanidade, seu caráter excepcional. A retórica fúnebre
os alçava a um nível superior ao resto da humanidade e afirmava como natural
sua posição hierarquicamente superior, no fundo a posição de todo o setor social
de que faziam parte os "excelsos defuntos". Ademais, a prática das cerimônias

154
Enten'ando Rui Barbosa

fazia delas verdadeiras ostentações de luxo, de dinheiro, de força, de saber, de


retórica difícil. A dimensão da sociedade brasileira ali enfatizada era a hierarquia.
Assim, elas se aproximavam de outras grandes manifestações públicas
da época que também eram espetáculos da elite para o povo. Bons exemplos foram
o já citado Jubileu de Rui Barbosa e as recepções grandiosas - centradas em
solenidades públicas e imensos cortejos - aos reis dos belgas, em 1920, e ao
presidente de Portugal, em 1922. Essas festas, os funerais e o 7 de Setembro eram
espécies de celebrações do respeito às autoridades e à elite num universo cultural
marcado por uma ampla carnavalização das relações com o poder. Eram a
afirma ão das distâncias contra a licença, das separações contra a mistura, dos
4ã No caso do
caxias contra os malandros, do respeito contra a brincadeira. O que a análise dos príncipe, há
enterros demonstra é que, no primeiro pólo, encontrava-se o indivíduo, o ser um
singular, contra a massa, supostamente senhora do carnaval. O individualismo momento
entrava do lado da separação, do reforço, da hierarquia.49
em que o
jornal trata
Este não era um desafio simbólico de pouca importância no Rio de das pessoas
Janeiro da Primeira República, pois a carnavalização não era traço secundário
que ficam
do lado do
das atitudes populares para com a elite, especialmente a elite política. Esta era Palácio
objeto privilegiado da chacota popular. José Murilo de Carvalho (1996) reconhece observando
a importância do fenômeno. Depois de investigar os limites de outras variáveis
os senhores
de casaca
que poderiam dar conta da especificidade da vivência política popular no Rio da chegando à
Primeira República - como a tradição ibérica, o familismo, o legado escravista, noite
a onipresença da burocracia - conclui: "O que marcava, e marca, o Rio é antes a
carnavalização do poder como, de resto, de outras relações pessoais" (1996: 157).
Associando isso com a convivência fluida entre as classes sociais (o velho
hibridismo freyreano) e as possibilidades de "desordem" aí contidas, fala ele
sobre a época: ''A lei era então desmoralizada de todos os lados, em todos os
domínios. Esta duplicidade de mundos, mais aguda no Rio, talvez tenha con­
tribuído para a mentalidade de irreverência, de deboche, de malícia. De tribofe"
(1996: 159).
Para a elite propriamente política, Isabel Lustosa (1989) nos dá uma
preciosa coleção de manifestações dessa generalizada atitude irreverente e de
licença. Os exemplos são de vários tipos: caricaturas, piadas, canções carnavales­
cas, filmes, depoimentos etc. Não devem eles ser tomados como folclore político
presente em qualquer parte e tempo, mas como um importante documento sobre
uma forma carioca de conviver com o político, que estava logo ali na esquina. Era
uma forma de troça, gozação, licença.
A autora mostra, por exemplo, como a tradição do corso de carnaval
surgiu de um passeio automobilístico da senhora Afonso Pena e filhas, e como o
grande tema do carnaval de 1915 foi uma certa figura de nome Dudu, de que as
pessoas se fantasiavam e brincavam nos blocos e músicas. Dudu não era ninguém

155
estudos históricos . 2 000 - 25

senão o presidente Hermes da Fonseca. E todos os outros presidentes tiveram


apelidos brincalhões: Biriba (Prudente de Morais), Baiacu e Pavão (Campos
Sales), Soneca (Rodrigues Alves), T ico-T ico (Afonso Pena), Moleque Presepeiro
(Nilo Peçanha), Seu Lalá ou Mineirinho (Venceslau Brás) etc. Demonstrações
de insatisfação tomavam às vezes formas como a chuva de caroços de jaca que
Venceslau Brás recebeu ao passar pelo Campo de Santana chegando à cidade para
tomar posse - o que só foi possível pelo trânsito usual dos políticos pelo espaço
promíscuo e livre do centro da cidade. Não longe dali ficavam, por exemplo, o
Itamarati e o Senado.
Exemplos de carnavalização não faltariam, inclusive com alguns dos
citados "mortos ilustres". O que cabe enfatizar aqui é que a esse clima a elite
contrapunha, de forma não necessariamente consciente, rituais de reforço que
eram, a rigor, anticamavais. Entre esses rituais, certamente estavam os grandes
enterros, ocasiões de extremado respeito e reafirmação simbólica de hierarquias.
A nação, para a elite, não podia residir num carnaval, e sim em cerimônias de
respeito e de reforço da estrutura. Contra as brincadeiras que transgrediam as
hierarquias, cortejos, discursos, homenagens e funerais que as enfatizavam.
Contra os carnavais, enterros solenes e paradas militares. Contra a festa do povo
que seduzia as elites, as festas das elites que deslumbravam o povo. E, muito
importante: contra a festa da massa, a festa do indivíduo, do indivíduo único,
singular.

Conclusão

O que se quis destacar aqui foram alguns elementos centrais dos rituais
fúnebres de construção de heróis cívicos na Primeira República, a partir da
etnografia dos funerais de um dos mais celebrados heróis da época, o senador Rui
Barbosa. Entre tais elementos figuram a construção e a naturalização de hierar­
quias, o reforço da estrutura social, o desenvolvimento de um individualismo da
distinção.
Esta análise deve valer como uma defesa da necessidade de se tomar
rituais de consagração (como os enterros cívicos) em seu conjunto, e não apenas
interpretá-los caso a caso. Cada etnografia de enterro cívico vale, sem dúvida,
para a compreensão da construção de um herói nacional em particular. Mas
apenas tomando os rituais em conjunto, ou tomando cada um como exemplo de
um fenômeno mais amplo, pode-se realmente compreender o sentido desses
rituais. Não se deve isolar a interpretação de cada evento em si mesmo, como se
não fitesse parte de uma prática costumeira que tem um sentido comum em suas
várias manifestações.

156
E1I terra1ldo Rui Barbosa

Menos que consagrar tal ou tal personagem, o que se faz na Primeira


República é um movimento geral de criação de heróis. Talvez um período sem
um grande "pai" simbólico como Pedro II ou Vargas seja particularmente
interessante para enfatizar a necessidade de se compreender tal movimento de
uma perspetiva mais ampla.
E a maior lição a se retirar da construção desses heróis na República Velha
talvez seja a de que cultuar um herói não necessariamente implica adotar seus
valores políticos e compartilhar sua visão básica de mundo. Provavelmente
importa mais em um herói celebrá-lo enquanto tal do que realmente imortalizar
suas idéias e bandeiras. E isso que permite a convivência fluida de vários heróis
,

em um só politeísmo cívico: importa mais que sejam "grandes homens" do que


que sejam militaristas ou civilistas, concebam a civilização como empreendi­
mento moral ou técnico, defendam a vida da metrópole ou a do sertão. Importa
mais construir um amplo panteão do que dotá-lo de uma suposta coerência
"ideológica". Indivíduos que em vida se opõem fortemente deixam de estar em
conflito quando acedem à imortalidade. Aí, são só Grandes Homens, que encar-
nam valores diversos mas nunca incompatíveis. Seu culto os une a todos.
,

E
ingenuidade esperar dos cultuadores de um herói completa adesão ao pen­
samento e aos valores do ídolo.
Por isso, são os traços formais da construção dos heróis que cabe com­
preender, em lugar de nos limitarmos ao estudo isolado de um ou outro herói.
Sem uma perspectiva mais ampla, qualquer um deles parecerá mais venerado do
que realmente foi. Trata-se antes de ver o que está envolvido na construção dos
heróis em geral, e é para isso que este estudo de caso pretende ter contribuído.
Rui Barbosa, sob esta ótica, foi um ruibarbosa entre outros.

Notas

1. Citado no jornal baiano O Imparcial, presidente da República, o jornalista


1 3/8/19 1 8. baiano Lemos Brito, Dunshee de
2. Idem, 14/8/1918.
Abranches, o ministro Viveiros de Castro
e outros.
3. Estiveram ali, por exemplo, o grande
aliado de Rui, Miguel Calmon (então 4. A família decidiu que o corpo seria
ministro da Agricultura), Aurelino Leal enterrado na capital federal, embora
(interventor no Estado do Rio, ex-chefe chegassem telegramas da Bahia natal
de polícia do DF), o deputado João exigindo que Rui fosse enterrado ali. Os
Mangabeira, o chanceler Félix Pacheco, o protestos vinham de jornais e de nomes
deputado Pedro Lago, representantes do como Otávio Mangabeira, mas a família

157
estudos his tóricos . 2000 - 25
não era apenas o seu centenário, eram os 400 anos de Salvador.

resistiu a eles. No centenário de 11. Ver série DC 2 do Arquivo Rui


nascimento de Rui, em 1 949, seus Barbosa, da Fundação Casa de Rui
despojos foram transferidos com grande Barbosa (FCRB), respectivamente docs.
pompa para sua cidade natal, Salvador. 3, l -a e 4.
5. Essa charge, publicada na revista Larva 12. Série DC 2, doc. 7.
de 1 8/9/1 903, está disponível em Herman 13. Ver O País, 24/3/1 923.
Lima ( 1 950: 1 2).
14. Esse jornal não está identificado, mas
6. Os demais bustos presentes na consta a notícia na pasta de recortes da
Biblioteca são de pessoas a ela ligadas Biblioteca da FCRB referente ao ano de
institucionalmente: seu fundador, dom 1 923. O caso foi também publicado em O
João VI; um de seus principais diretores, Pais de 1 5/3/1923.
frei Camilo de Montserrat ( 1 8 1 8-70) e o
15. O rei Alberto da Bélgica fizera
construtor do edifício que a abriga,
questão de conhecer Rui Barbosa quando
Francisco de Souza Aguiar (ver site da
Biblioteca, http://www. bn.brl). de sua visita ao Brasil, em 1 920, mesmo
não tendo sido tal encontro programado
7. Citado na revista O Tempo, n. 1 3, ano 3, pelo governo de Epitácio Pessoa.
1 5/1/1 924, dedicado inteiramente a Rui
16. O Tempo de 1 5/1/1 924 faz um resumo
Barbosa e sua morte.
dos principais telegramas recebidos pelo
8. Note-se a separação das categorias: os presidente e pelo chanceler.
populares entravam e saíam pelas portas 1 7. Respectivamente, DC 1/7, doc. 3 1 5 e
laterais da entrada principal, sendo a DC 1/2 1 , doc. 1 070.
porta do meio reservada a visitas oficiais.
1 8. Ver, por exemplo, DC 2, doc. 5, 6 e 9.
9. Ver Gazeta de Notícias, 1 0/4/1923. A
1 9. Em 1 92 1 , Rui fora eleito membro da
igreja, ricamente decorada, era dominada
citada Corte Internacional, com a mais Sendo
por um retrato em tamanho natural de verdadeira, essa
elevada votação, mas não pôde assumir
Rui em pé, rodeado de cravos e informação
seu lugar devido à sua má condição de contradiz a
hortênsias. No veludo roxo, liam-se em
saúde (ver FCRB, 1 995: 1 82). sugestão de
letras douradas "Ao Sol", epíteto já antigo Freyre, de que a
de Rui, e suas datas de nascimento e 20. Esses exemplos foram retirados do sucesso de Rui
em Haia fora
falecimento. Ao lado ficavam o busto da número especial da revista O Tempo mais ou menos
República e os escudos da Justiça, da ( 1 5/1/1 924), que traz um grande painel de uma farsa?
Liberdade, da Eloqüência, das Letras e homenagens a Rui no exterior.
das Ciências. Foi uma grande festa da
21. Até o fim da vida, Rui Barbosa foi
elite carioca, com a presença do
designado por esse título imperial, que importante
presidente e de bandas militares à frente
recebera em 1 884. A constante utilização
do templo. Uma grande orquestra tocou
do título demonstra a persistência de
durante a cerimônia, a que se seguiu um
hierarquias simbólicas imperiais ainda na
longo discurso de monsenhor Rangel.
República.
1 0. Ver, sobre a capital paulista, O Estado 22. Citado em O País, 5/3/1923.
de S. Paulo, 26/3/1 923 ; e, sobre Salvador,
a Gazeta de Notícias, 1 3/3/1 923 e A Pátria, 23. Citado em O Tempo, 1 5/1/1 924.
5/4/ 1 923. Note-se que o governador 24. O País, 6/3/192 3 e Arquivo da FCRB,
baiano era o antigo adversário político de DC2, doc. l
Rui, J. J. Seabra, que decretou luto oficial
25. Ver O País, 4/3/1 923.
e maI1dou celebrar exéquias pelo
arcebispo primaz do Brasil. 26. Série DC2, doc.3.

158
EJlterrando Rui Barbosa

27. O discurso está transcrito em O Tempo demonstra a importância dos funerais


de 1 5/1/1924, que muito cívicos. Pinheiro Machado e Rodrigues
interessantemente dizia que o autor não Alves morreram na capital federal, mas
pudera pronunciá-lo "em virtude da foram depois enterrados,
grande comoção de que estava possuído". respectivamente, em Porra Alegre e
Palma era um político baiano que J. J. Guaratinguetá.
Seabra havia pouco propusera a Rui
3 7. Este último, ocorrido em 1 895 no
Barbosa como candidato de ambos ao
bojo da agitação jacobina contra
governo da Bahia, como possibilidade de
Prudente de Morais e o modelo liberal de
reconciliação.
República que supostamente
28. Jornal do Comércio, 8/3/1923. representava, parece ter sido de fato
29. A Notícia, 9/3/1 923. sensacional, alimentado pela
efervescência simbólica e política da
30. Rio-Jornal, s.d., pasta de recortes de época da consolidação da República.
1 923 da FCRE. O articulista, Antônio Além dos costumeiros discursos
Maciel, se referia ao cérebro de Rui como verborrágicos, dos grandiosos cortejos e
"relicário divino". velório que se tornariam tão freqüentes
31. Citado em O Tempo, 15/1/1924. no período que se iniciava, os funerais do
ditador compreenderam uma exposição
32. A expressão foi utilizada em uma
do cadáver em câmara ardente durante
caricatura de Vieira da Cunha na revista
três meses (Simas, 1994: 93). O ritual se
O Malho de 5/4/1919, reproduzida em
prolongava para garantir maior
Herman Lima ( 1 950: xxi).
durabilidade ao culto àquele que os
33. Não deixa de ser curioso que o jacobinos tomavam como "o Salvador da
próprio Patrocínio tivesse dito em 1 885: República".
"Deus acendeu um vulcão na cabeça de
Rui" (apud Herman Lima, 1950: xxv). 38. O capítulo 19 de Schwarcz ( 1 998) dá
importantes ind icações sobre esse
34. Valéria Costa e Silva ( 1999) conta que fenômeno, completado no governo
quando da morte de Machado de Assis Vargas. Porém, comete o importante erro
sua cor escura levantou problemáticas de dizer que o traslado dos restos ocorreu
similares às levantadas pelo físico em 1922. Não há dúvida de que eles
franzino de Rui. No universo racista de chegaram ao Rio em fevereiro de 1 92 1 ,
então, a pele do escritor não parecia à quando foram depositados na Catedral
maioria de seus admiradores condizente para exposição pública, depois de cortejo
com seu talento e espiritualidade. Seu na cidade a partir da praça Mauá.
atestado de óbito, por exemplo, Ademais, ao contrário do que afirma a
descrevia-o como de cor branca. autora, o Conde d'Eu chegou ao Brasil
35. Isso não significa que presidentes não acompanhando os corpos, o que causou
fossem apresentados como possíveis grande comoção popular (a viagem em
que morreu, no ano segulllte,

heróis nacionais. O que ocorreu foi o


insucesso parcial de tal empreitada. mencionada por Schwarcz, seria sua
Abaixo cito enterros de três presidentes segunda visita ao Brasil republicano).
como momentos de tentativa de sua Acompanhava o Conde seu filho, o
consagração como heróis nacionais. príncipe dom Pedro. Ver A Razão, 8 e
9/2/1 922.
36. Nabuco morreu em Washington, mas
seu corpo foi pomposamente velado no 39. Note-se aliás que Rui Barbosa, único
Rio antes de seu enterro no Recife, sobrevivente dos signatários do decreto
concluindo um grandioso périplo que de banimento da família imperial, foi

159
estudos históricos . 2000 - 25

grande defensor de tal reabilitação, tendo 48. O termo ganha assim conotação
em duas ocasiões discursado na Liga da metonímica, tendo-se originado de um
Defesa Nacional a favor do traslado e de herói cívico mais antigo.
homenagens póstumas (ver A Razão, 1 6 e
49. Faço aqui um uso bastante livre do
22/ 1 2/1 920). Essas foram as primeiras
termo "hierarquia", que não se refere à
ocasiões em que Rui foi à Liga, em que
categoria analítica de Dumont ( 1 990), à
ocupava cargos de honra nunca
sua definição de "englobamento do
realmente exercidos; Rui presidiu a
contrário". Hierarquia tem aqui um
primeira dessas sessões, no dia 1 5 de
sentido mais usual, não se opondo
dezembro de 1 920.
portanto a "individualismo". Faço
40. Ver O País, 1 4/2/ 1 9 1 2 . minhas as palavras de Gilberto Velho:
41. Idem, 1 2/4/ 1 9 1 0. "No caso em pauta sugiro que estamos
lidando com um sistema que apresenta
42. Diário de Notícias, apud Simas ( 1 994: hierarquia e individualismo como ordens
92). simbólicas alternativas, ora
43. O País, 30/9/1 908. complementares, ora contraditórias. Por
.
ISSO mesmo, as propnas noçoes
" -

44. Idem, 1 5/6/ 1 909. hierarquia e individualismo passam a ter


45. Idem, l l/9/19 1 5 . conotação específica, diferente, creio, de
situações estudadas por Louis Dumont"
46. Idem, 1 6/1/1 9 1 9.
( 1 987: 53). Nesses teIIIlOS, um
47. Isso está bem analisado, no caso de individualismo que cause desigualdades é
Euclides, por Regina Abreu ( 1 998). visto como hierarquizante.

R eferên c i a s b i b l i ográfi cas

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Enterrando Rui Barbosa

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