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A aura da ironia (II) — “escolha” é uma tirada de humor negro. Na verdade, toda a peça de
trinta segundos é gozadora, irônica, autodepreciativa. Como
Todoprosa, de Sérgio argumenta Miller, não é uma escolha que o anúncio está vendendo a
João Bobão, “mas a completa negação das escolhas. Na verdade, o
definitiva do gênero sitcom). Na verdade, pode-se dizer que os únicos com a ficção produzida nos Estados Unidos? Bem, em primeiro lugar, a
personagens de autoridade que retêm alguma credibilidade nos literatura americana de ficção sempre tematizou a cultura do país e
programas pós-80 (além daqueles como o Furillo de Hill Street e o as pessoas que o habitam. Em termos culturais, será que devo gastar
Westphal de Elsewhere, acossados de forma tão incansável por muito do seu tempo apontando o grau de influência dos valores
pressões e todo tipo de sordidez que o simples fato de se aguentarem televisivos sobre a atmosfera contemporânea de entediada
semana após semana os torna heroicos) são aqueles que, sendo melancolia, materialismo autodepreciativo, indiferença apática e
bastiões de valores, conseguem comunicar alguma medida de auto- ilusão de que o cinismo e a ingenuidade são mutuamente excludentes?
ironia, rindo de si mesmos antes que algum Grupo impiedoso lhes pule Seremos capazes de negar as conexões entre, de um lado, um meio de
em cima – como Huxtable em Cosby, Belvedere em Belvedere, o comunicação de poder consensual sem precedentes que sugere não
agente especial Cooper em Twin Peaks, Gary Shandling da Fox TV haver diferença real entre imagem e substância e, do outro, a
(cujo show tem uma música-tema que diz: “Esta é a música-tema do ascensão de presidentes Teflon, a consolidação de mercados nacionais
show do Gary”) e o verdadeiro Anjo da Morte dos anos 80, o irônico para o bronzeamento artificial e a lipoaspiração, a popularidade de um
Sr. D. Letterman. estilo “Vogue” cinicamente sintetizado na ordem “faça pose”? Acaso
diremos, sobre a arte contemporânea, que o desdém televisivo por
A institucionalização do cinismo diante da autoridade trabalha a favor retrovalores “hipócritas” como originalidade, profundidade e
da televisão em diversos níveis. Em primeiro lugar, na medida em que integridade não tem nada a ver com aqueles estilos de “apropriação”
consegue ridicularizar convenções antiquadas e varrê-las do mapa, a e recombinação em arte e arquitetura nos quais o “passado vira
TV é capaz de criar um vácuo de autoridade – e adivinhe o que o pastiche”, ou com as solmizações repetitivas de um Glass ou um Reich,
preenche depois disso. A verdadeira autoridade num mundo que agora ou com a catatonia contrafeita de um batalhão de sonhadores de
vemos como construído, e não mais retratado, passa a ser o meio que Raymond Carver?
constrói nossa visão de mundo. Em segundo lugar, na medida em que
consegue se referir apenas a si mesma e expor os padrões (Continua…)
convencionais como ocos, a TV fica invulnerável aos críticos que
Leia a continuação em A aura da ironia (final).
atacam seu conteúdo como superficial, grosseiro ou ruim, uma vez
Leia o início em A aura da ironia (I).
que tais julgamentos remetem a padrões convencionais e
extratelevisivos de profundidade, gosto e qualidade. Além disso, o tom
http://todoprosa.com.br/a-aura-da-ironia-ii/