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1 May, 2019 | created using FiveFilters.

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A aura da ironia (II) — “escolha” é uma tirada de humor negro. Na verdade, toda a peça de
trinta segundos é gozadora, irônica, autodepreciativa. Como

Todoprosa, de Sérgio argumenta Miller, não é uma escolha que o anúncio está vendendo a
João Bobão, “mas a completa negação das escolhas. Na verdade, o

Rodrigues próprio produto é, no fim das contas, incidental no discurso vendedor.


O comercial não exalta a Pepsi em si, mas a recomenda ao sugerir que
Dec 22, 2010 10:00AM muita gente foi convencida fraudulentamente a comprá-la. Em outras
palavras, a mensagem central desse anúncio de sucesso é que a Pepsi
Segunda parte do trecho de um ensaio de David Foster Wallace, com foi anunciada com sucesso.”
tradução minha.
Há coisas importantes a se compreender aqui. Em primeiro lugar, esse
Eu já afirmei – por enquanto de maneira um tanto vaga – que o que comercial é profundamente informado pelo medo do controle remoto,
torna a televisão tão resistente às críticas da nova Ficção da Imagem do zapping e do desdém do telespectador. Anúncio publicitário sobre
é o fato de que ela cooptou as formas distintivas da própria literatura anúncios publicitários, ele usa a autorreferência como forma de
cínica, irreverente, irônica e absurdista do pós-Segunda Guerra que parecer descolado demais para que o odeiem. Protégé-se do desprezo
os novos Imagistas usam como pedras de toque. Ocorre que a que os iniciados televisivos de hoje devotam tanto aos comerciais de
reciclagem, pela TV, do cool pós-moderno evoluiu como uma solução venda direta com locução acelerada que Dan Aykroyd parodiou à
inspirada para o problema de manter-João-ao-mesmo-tempo-alienado- exaustão no Saturday Night Live quanto aos anúncios quixotescos que
da-e-integrado-à-multidão-de-um-milhão-de-olhos. A solução implicou associam o consumo de refrigerante com romance, beleza e inclusão
uma gradual mudança de expressão, do excesso de candura para uma comunitária, anúncios que o espectador antenado de hoje considera
espécie de irreverência de menino mau, na Grande Face que a TV nos antiquados e “manipuladores”. Em contraste com um despudorado
exibe. Isso por sua vez refletiu uma transformação mais ampla na “compre isto”, o comercial da Pepsi vende a paródia. O anúncio é
percepção americana sobre como a arte deve funcionar, uma inteiramente escancarado a respeito daquilo que leva os anúncios
transição da arte como representação criativa de valores reais para a televisivos a serem desprezados, i.e., lançar mão de apelos primais
arte como rejeição criativa de valores fajutos. E essa transformação enganadores para vender lixo açucarado a pessoas cuja identidade
mais ampla, por seu lado, caminhou em paralelo ao desenvolvimento não vai além do consumo de massa. O comercial consegue
da estética pós-moderna e a certas mudanças graves e profundas no simultaneamente rir de si mesmo, da Pepsi, da publicidade, dos
modo como os americanos optaram por encarar conceitos como publicitários e da grande multidão americana de consumidores. Na
autoridade, sinceridade e paixão em termos de nosso desejo de verdade, é untuoso na bajulação de apenas uma pessoa: o espectador
satisfação. Não apenas a sinceridade e a paixão estão hoje “fora de solitário, João B., que mesmo tendo um cérebro mediano não pode
moda” no que diz respeito à TV, mas a própria ideia de prazer foi deixar de discernir a contradição irônica entre a “escolha” do slogan
minada. Como diz Mark C. Miller, a televisão atual “já não solicita (som) e a orgia pavloviana ao redor da van (imagem). O comercial
nossa absorção enlevada ou concordância fervorosa, mas – como os convida João a “ver através” da manipulação que a horda praiana
comerciais que a financiam – na verdade nos congratula pelo próprio engoliu furiosamente. Demanda cumplicidade entre sua própria ironia
tédio e pelo próprio descrédito que nos inspira”. espirituosa e o reconhecimento cínico dessa ironia pelo veterano
espectador João, que não é homem de se deixar enganar tão
Deride and Conquer (Ridicularize e Conquiste), de Miller, de 1986 – de facilmente. Convida João a compartilhar de uma piadinha interna às
longe o melhor ensaio já publicado sobre a publicidade das grandes custas da Audiência. Parabeniza João Bobão, em outras palavras, por
redes – detalha vividamente um exemplo de como funciona o tipo de transcender a própria multidão que o define. Multidões inteiras de
apelo que a TV contemporânea exerce sobre o espectador solitário. Joões corresponderam: o anúncio impulsionou o crescimento da
Refere-se a um anúncio de 1985–86 que ganhou o prêmio Clio e ainda participação de mercado da Pepsi por três trimestres consecutivos.
vai ao ar de vez em quando. Trata-se daquele comercial da Pepsi em
que um carro de som especial da Pepsi estaciona junto a uma praia A campanha da Pepsi não é um caso isolado. A Isuzu Inc. descobriu um
lotada sob o sol escaldante e, dentro dele, um rapaz de ar maroto liga bom filão no fim dos anos 80 com a série de comerciais “Joe Isuzu”,
um luxuoso sistema de som antes de abrir uma Pepsi e virá-la num estrelada por um vendedor melífluo de aparência satânica que mentia
copo perto do microfone. Quando o denso som efervescente do líquido deslavadamente sobre o estofado de pele de lhama do Isuzu ou sua
gasoso se espalha no ar ressequido da praia, as cabeças voltam-se na capacidade de rodar com água da bica no tanque de gasolina. Embora
direção da van como se fossem puxadas por cordinhas, enquanto os os comerciais nunca dissessem quase nada sobre por que os Isuzus
ruídos do rapaz que bebe, seus goles e aaahs de frescor, são são de fato bons carros, as vendas e os prêmios se acumularam. Eram
transmitidos pelos alto-falantes. A tomada final revela que o carro de bem-sucedidas paródias dos melífluos e satânicos anúncios de
som é também um caminhão de venda, ao redor do qual a bela automóveis. Convidavam os espectadores a parabenizar os anúncios
população da praia está agora inteiramente reduzida a uma massa da Isuzu por serem irônicos, parabenizar-se a si mesmos por entender
ululante, todo mundo pulando e implorando para ser servido primeiro, a piada e parabenizar a Isuzu Inc. por ser suficientemente
enquanto o ponto de vista da câmera recua para uma tomada de cima “destemida” e “irreverente” para reconhecer que a publicidade de
da multidão e o slogan é enunciado em tom neutro: “Pepsi: a escolha carros é ridícula e que a Audiência é idiota de acreditar nela. Os
de uma nova geração”. Sem dúvida, um esplêndido comercial. Mas anúncios instavam o espectador solitário a dirigir um Isuzu como uma
será preciso dizer – como faz o ensaio de Miller com certa medida de espécie de manifesto anti-publicidade. Associavam com êxito a
detalhismo – que o slogan final é uma gozação? Há tanta “escolha” compra de um Isuzu ao destemor, à irreverência e à capacidade de
envolvida nesse comercial quanto no canil de Pavlov. O uso da palavra desmascarar fraudes. Hoje, para qualquer lado que se olhe, é possível
encontrar comerciais de TV bem-sucedidos que zombam das de ironia autorreferencial da TV significa que ninguém pode acusá-la
convenções da publicidade televisiva, dos anúncios de Settlemeyer de tentar impor nada a ninguém. Como aponta o ensaísta Lewis Hyde,
para o Federal Express e o Wendy’s, com seus personagens a autodepreciação é sempre “sinceridade com um motivo”.
publicitários mofados de fala burlescamente acelerada, àquelas peças
espertinhas de Doritos à base de colagens de locutores comerciais e Ademais, para voltar ao argumento original, quando a televisão
clipes ironicamente cafonas de Beaver e Mr. Ed. consegue atrair João Bobão para dentro dela pela porta das piadas
cifradas e da ironia, alivia aquela dolorosa tensão entre a necessidade
Além disso, pode-se ver essa tática de zombar das pretensões à que João sente de transcender a multidão e sua condição inescapável
virtude da autoridade e da sinceridade exibidas por aqueles velhos de membro da Audiência. Na medida em que a TV é capaz de
comerciais – desse modo (1) blindando contra a zombaria o autor da congratular João por “enxergar através” da pretensão e da hipocrisia
zombaria e (2) felicitando o decodificador da zombaria por se dos valores antiquados, consegue induzir nele precisamente o
destacar da massa que ainda acredita nessas pretensões fora de moda sentimento de superioridade astuta em que o viciou, mantendo-o
– empregada com grande êxito em muitas das atrações televisivas que dependente de uma assistência televisiva que detém a exclusividade
os comerciais financiam. Programa após programa, há anos, tem sido na indução de tal sentimento.
uma de duas coisas: uma suposta celebração pós-moderna de alusões
e poses, imagética e vazia, ou, o que é ainda mais comum, uma guerra Na medida em que consegue adestrar os espectadores para rir dos
discursiva desigual entre algum ineficaz porta-voz da autoridade oca e intermináveis foras que os personagens dão uns nos outros, para
seus filhos precoces, sua esposa mordaz ou seus colegas sarcásticos. encarar o ridículo como modelo de interação social e forma de arte
Compare-se o tratamento televisivo dado a figuras de autoridade nos definitiva, a televisão reforça sua própria e estranha ontologia da
programas pré-irônicos – Erskine de The FBI, Kirk de Jornada nas aparência: para o telespectador bem condicionado, a perspectiva mais
Estrelas, Beaver de Ward, Shirley da Família Dó-Ré-Mi, McGarrett de ameaçadora passa a ser abrir o flanco ao escárnio dos outros pelo uso
Havaí 5–0 – ao retrato que a TV faz de Al Bundy em Married… with de expressões que traiam valores, emoção ou vulnerabilidade. Os
Children, do Sr. Owens em Mr. Belvedere, de Homer nos Simpsons, de outros viram juízes; o crime é a ingenuidade. O espectador treinado
Daniels e Hunter em Hill Street Blues, de Jason Seaver em Growing fica então ainda mais alérgico às pessoas. Mais solitário. O exaustivo
Pains, do Dr. Craig em St. Elsewhere. treinamento de João nas angústias da impressão que pode provocar
nos outros, de como será visto por olhos vigilantes, torna ainda mais
O sitcom moderno, em particular, baseia quase inteiramente seu assustadores os encontros humanos genuínos. Mas a ironia televisiva
humor e seu tom no ataque feroz – inspirado em M*A*S*H – a algum tem a solução para isso: assistir mais TV começa a ser quase como
porta-voz caricatural de valores hipócritas, pré-descolados, uma pesquisa obrigatória, aulas sobre as expressões faciais vazias,
empreendido por insurgentes de língua afiada. Do mesmo modo que entediadas, já-vi-de-tudo-neste-mundo que João precisa decorar para
Hawkeye foi atacado ferozmente por Frank e depois por Charles, usar amanhã em sua viagem penosa no metrô fortemente iluminado,
Herb é atacado ferozmente por Jennifer e Carlson por J. Fever em onde multidões de pessoas de expressão vazia e entediada têm pouco
WKRP, o Sr. Keaton por Alex em Family Ties, o chefe pela equipe de a fazer além de olhar umas para as outras.
secretárias em Nine to Five, Seaver por toda a família em Pains,
Bundy por todo o planeta em Married… (sitcom que é a paródia O que a institucionalização televisiva da ironia descolada tem a ver

definitiva do gênero sitcom). Na verdade, pode-se dizer que os únicos com a ficção produzida nos Estados Unidos? Bem, em primeiro lugar, a

personagens de autoridade que retêm alguma credibilidade nos literatura americana de ficção sempre tematizou a cultura do país e

programas pós-80 (além daqueles como o Furillo de Hill Street e o as pessoas que o habitam. Em termos culturais, será que devo gastar

Westphal de Elsewhere, acossados de forma tão incansável por muito do seu tempo apontando o grau de influência dos valores

pressões e todo tipo de sordidez que o simples fato de se aguentarem televisivos sobre a atmosfera contemporânea de entediada

semana após semana os torna heroicos) são aqueles que, sendo melancolia, materialismo autodepreciativo, indiferença apática e

bastiões de valores, conseguem comunicar alguma medida de auto- ilusão de que o cinismo e a ingenuidade são mutuamente excludentes?

ironia, rindo de si mesmos antes que algum Grupo impiedoso lhes pule Seremos capazes de negar as conexões entre, de um lado, um meio de

em cima – como Huxtable em Cosby, Belvedere em Belvedere, o comunicação de poder consensual sem precedentes que sugere não

agente especial Cooper em Twin Peaks, Gary Shandling da Fox TV haver diferença real entre imagem e substância e, do outro, a

(cujo show tem uma música-tema que diz: “Esta é a música-tema do ascensão de presidentes Teflon, a consolidação de mercados nacionais

show do Gary”) e o verdadeiro Anjo da Morte dos anos 80, o irônico para o bronzeamento artificial e a lipoaspiração, a popularidade de um

Sr. D. Letterman. estilo “Vogue” cinicamente sintetizado na ordem “faça pose”? Acaso
diremos, sobre a arte contemporânea, que o desdém televisivo por
A institucionalização do cinismo diante da autoridade trabalha a favor retrovalores “hipócritas” como originalidade, profundidade e
da televisão em diversos níveis. Em primeiro lugar, na medida em que integridade não tem nada a ver com aqueles estilos de “apropriação”
consegue ridicularizar convenções antiquadas e varrê-las do mapa, a e recombinação em arte e arquitetura nos quais o “passado vira
TV é capaz de criar um vácuo de autoridade – e adivinhe o que o pastiche”, ou com as solmizações repetitivas de um Glass ou um Reich,
preenche depois disso. A verdadeira autoridade num mundo que agora ou com a catatonia contrafeita de um batalhão de sonhadores de
vemos como construído, e não mais retratado, passa a ser o meio que Raymond Carver?
constrói nossa visão de mundo. Em segundo lugar, na medida em que
consegue se referir apenas a si mesma e expor os padrões (Continua…)
convencionais como ocos, a TV fica invulnerável aos críticos que
Leia a continuação em A aura da ironia (final).
atacam seu conteúdo como superficial, grosseiro ou ruim, uma vez
Leia o início em A aura da ironia (I).
que tais julgamentos remetem a padrões convencionais e
extratelevisivos de profundidade, gosto e qualidade. Além disso, o tom
http://todoprosa.com.br/a-aura-da-ironia-ii/

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