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Ir além de não discriminar

Da Redação

20 de junho de 2019

Valorizar a diversidade é também uma exigência ética

Talvez seja pura e simplesmente por uma reação própria do ser humano em
não querer sair de uma zona de conforto. O que é conhecido é mais fácil e
menos amedrontador. Talvez seja por medo mesmo, de encarar o diferente
e, a partir dele, também se conhecer por essa diferença. Como diz Reinaldo
Bulgarelli, sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação, educador atuante na
área social desde 1978, sobretudo com direitos humanos, por algum motivo,
“nossa educação no campo de valores humanos privilegia o que temos em
comum”. “O bom é fingir que as diferenças não existem e buscar apenas o que
temos em comum. Isso é ensinado como padrão de respeito e é incompleto”,
diz ele.

Confira, na entrevista a seguir, por que levar em conta o outro é importante


para melhorar seu nível de autoconhecimento, as razões para pensar em
inovação e diversidade como faces da mesma moeda e como lidar com vozes
dissonantes sem fomentar o preconceito.

Reinaldo Bulgarelli, sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação | Foto:


Divulgação

Lidar com o outro é algo complicado para o ser humano. Sartre já


disse que eles, os outros, eram o nosso inferno (sempre jogamos
nossa responsabilidade para as mãos alheias), mesmo sendo
parecidos conosco. E lidar com o outro quando ele é diferente então?
Por que é tão complicado transformar em um inferno lidar com o
outro diferente?
Por isso é importante a questão da valorização da diversidade. É mais do que
apenas a exigência ética de não discriminar. É desenvolver nas pessoas, em
uma organização, o gosto pela diversidade de características, o que envolve
aspectos físicos, histórias de vida, perspectivas, culturas, enfim,
o conjunto de pessoas que ali interagem para cumprir a missão da organização.
Isso também é uma exigência ética, com alto impacto sobre as
combinações das formas de vivermos juntos e “escolhermos o que convém
para a vida digna de todos”, como nos ensina o educador Bernardo Toro. O
inferno que o outro representa pode ser visto também de forma positiva,
como adição de valor, possibilidade de sermos melhores como pessoas
e como organização. Ainda estamos longe de transformar esse desafio do
cuidado com a qualidade das relações, que a valorização da diversidade inspira,
em práticas educativas em qualquer organização. Daí a complicação para
enxergarmos inferno e paraíso nas relações com os outros.

Construímos nossa identidade no contato com os outros. São eles que


dão sinais de quem somos, do que nos ajuda (ou deveria ajudar) a nos
entender melhor. Ao priorizar, mesmo que inconscientemente, quem é
“igual” (viés cultural), a pessoa não corre o risco de ficar sem se
conhecer melhor? Apenas reforçaria um traço seu, podendo se tornar
uma caricatura de si mesmo com o tempo?
Perfeito! Nossa cultura empresarial, por exemplo, fala muito de
autoconhecimento como algo essencial. E é mesmo, mas o autoconhecimento
nessa interação e com gosto pela diversidade é pouco incentivado. Por algum
motivo, nossa educação no campo de valores humanos privilegia o que temos
em comum. O bom é fingir que as diferenças não existem e buscar apenas o
que temos em comum. Isso é ensinado como padrão de respeito e é
incompleto. Precisamos aprender a
nos relacionar com base nas diferenças e semelhanças. Olhar apenas o que
temos em comum não nos educa o olhar e o coração para lidarmos com os
desafios que ambos nos oferecem. Uma das consequências é essa do
narcisismo, de buscarmos espelhos ou de estabelecermos relações dominadoras
nas quais o outro deve ser nossa imagem e semelhança para ser aceito como
amigo, normal, bom, bonito, confiável…

Não há como negar que vivemos um clima de extremismos, em


especial nas redes sociais digitais, que deram voz a muitas opiniões –
em alguns casos, discriminatórias. Na sua opinião, como reverter
isso?
Não sei se seria o caso de reverter isso. Há beleza nesse momento em que
estamos lidando com uma pluralidade de vozes, visões, interesses ou projetos
de mundo. Não é fácil conviver com quem pensa diferente, com quem defende
outros valores e propõe coisas que podem ser inaceitáveis. O conflito é muito
ruim, sobretudo nessa fase em que um projeto de país não aparece, mas
aparecerá, espero. A fase de expor posições de forma tão agressiva é muito
ruim, mas vamos ser capazes, em algum momento, de propor saídas, construir
uma nova visão sobre o futuro e nos dedicarmos a isso, considerando nossas
diferenças. Por isso, precisamos de líderes que integrem, que sejam capazes de
considerar essas diferentes visões de mundo e articulá-las em um projeto. O
mesmo vale para dentro de qualquer
organização, não apenas para o país. Se sairmos dessa fase aprendendo a
dialogar melhor, terá valido a pena.

Os casos extremos, que configuram crime, estão sendo enfrentados e isso


tem sido essencial para ajustarmos o tom do debate.

Leia também:

Respeitar a diversidade
O valor da diversidade nas organizações
Futuro do trabalho: diversidade e inclusão

Como algumas empresas podem e devem abraçar verdadeiramente a


questão da diversidade, sem se preocupar com o marketing
dessas ações?
E será que se preocupam com o marketing? Acredito que ainda temos muito a
percorrer para que empresas enxerguem valor em ser ou parecer ser a favor da
diversidade, com todas as suas questões e implicações. As empresas aqui têm
receio de vincular suas marcas a posturas e práticas de valorização da
diversidade. Quando chegarmos a esse ponto, com um grande grupo de
empresas fingindo gostar de diversidade, o que implica assumir postura pró-
equidade de gênero e raça, por exemplo, estaremos bem porque indicará que o
tema é relevante para um conjunto ainda maior de empresas. Hoje, temos uma
tímida manifestação de quem pratica a valorização da diversidade, uma ou
outra empresa oportunista ou bastante equivocada. Elas são logo criticadas,
ajustam a conduta ou fogem de cena sem nenhuma explicação. É cedo ainda
para instalarmos uma referência sobre o tema empresas, marketing e
diversidade, o que seria “verdadeiramente” abraçar a questão da diversidade e
definir
parâmetros para a conduta. Adiantar essa conversa quando ainda estamos
caminhando, e muito lentamente, pode assustar, inibir, criar a ideia de que há
quem saiba tudo sobre o tema e tem respostas prontas para dar. Isso também
é oportunismo ou falta de visão estratégica. Não ajuda em nada, portanto.

Diversidade e inovação: uma dupla perfeita?


Trabalho com valorização da diversidade no meio empresarial nos últimos 20
anos. Vivi muitas ondas do tema no país e estou gostando dessa nova onda
porque ela trouxe, finalmente, o vínculo mais explícito de diversidade com
inovação. É uma dupla perfeita! A diversidade é essencial para a inovação, mas
começamos há mais tempo a falar de inovação e quase nada de diversidade,
muito menos enxergando o nexo causal entre as duas. Eu sempre procurei falar
de inovação a partir dos desafios e possibilidades da diversidade, por exemplo,
com a inclusão de pessoas com deficiência na empresa. Se não nos damos ao
trabalho de lidar com um colega cego ou surdo, encontrar formas de tornar
essa relação produtiva, interessante e com adição de valor para todos, como
podemos dizer que queremos uma organização inovadora, em sintonia com o
mundo VUCA, com os novos tempos da 4ª revolução industrial, mundo digital e
tudo mais?

Para fechar: como lidar com as vozes dissonantes em relação a


programas de diversidade e inclusão em uma empresa sem fomentar
a intolerância e, ao mesmo tempo, respeitando essa visão diferente
(diversidade de ideias)? Imagine: é possível lidar com quem não goste
de trabalhar com um transgênero, por exemplo, e respeitar essa
posição dele?
Esse é o meu dia a dia. Procuro checar se minhas ideias podem ser aplicadas
na prática, se produzem resultados e como a liderança valida e
incorpora essas ideias e práticas. Uma das ideias que propus diante de desafios
como esse, envolvendo religião e pessoas LGBT+, é a de que deve prevalecer a
identidade organizacional da empresa. É em torno da missão,
visão e valores que nossa diversidade criadora se expressa dentro da
organização. Podemos até alargar os limites dados, repensar missão, visão e
valores, como sempre está acontecendo. Mas, a identidade organizacional se
expressa no Código de Ética, algo como a constituição da empresa para nos
ajudar a lidar melhor com a diversidade de posturas, valores individuais,
interesses, visões de mundo que estão interagindo nela. Muitos
presidentes de empresa, por exemplo, me dizem que enfrentaram melhor um
conflito envolvendo colaboradores que utilizavam sua religião para pedir a
exclusão de colaboradores travestis, homens ou mulheres trans. Quem define a
conduta na organização é a identidade e o Código de Ética, não o texto
religioso que a pessoa adota. Podemos e devemos dialogar com os textos
religiosos, interesses político-partidários ou qualquer outra manifestação que
um ou alguns colaboradores trazem para a organização, mas o que definirá a
forma de agir e a tomada de decisão é o Código de Ética. Não estamos apenas
defendendo uma pessoa de uma prática absurda de discriminação, mas
estamos defendendo a empresa para que ela se mantenha como um espaço
plural, que tem apreço pela diversidade, que não toma partido a não ser pelos
valores que escolheu para orientar suas decisões e cumprir com sua missão.

*Conteúdo publicado na edição Abril/2018, da Revista Melhor Gestão de


Pessoas.

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