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André Ricardo Valle Vasco Pereira

Ayala Rodrigues Oliveira Pelegrine


Dinoráh Lopes Rubim Almeida
Márcio Gomes Damartini
Maro Lara Martins
Pedro Ernesto Fagundes
Rossana Gomes Britto
(Organizadores)

DAS UTOPIAS
AO AUTORITARISMO:
HISTORIOGRAFIA, MEMÓRIA E CULTURA

Editora Milfontes
Das Utopias
ao Autoritarismo:
historiografia, memória e cultura
Copyright © 2019, André Ricardo Valle Vasco Pereira, Ayala Rodrigues Oliveira
Pelegrine, Dinoráh Lopes Rubim Almeida, Márcio Gomes Damartini, Mara Lara
Martins, Pedro Ernesto Fagundes, Rossana Gomes Britto (Org.).
Copyright © 2019, Editora Milfontes.
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André Ricardo Valle Vasco Pereira
Ayala Rodrigues Oliveira Pelegrine
Dinoráh Lopes Rubim Almeida
Márcio Gomes Damartini
Maro Lara Martins
Pedro Ernesto Fagundes
Rossana Gomes Britto
(Org.)

Das Utopias
ao Autoritarismo:
historiografia, memória e cultura

EDITORA MILFONTES
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Marcha dos Cem mil - Rio de Janeiro - 1968.
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Bruno César Nascimento - Aspectos

Projeto Gráfico e Editoração


Wesley Ribeiro dos Santos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


UT91 Das utopias ao autoritarismo: historiografia, memória e cultura./André
Ricardo Valle Vasco Pereira; Ayala Rodrigues Oliveira Pelegrine; Dinoráh
Lopes Rubim Almeida; Márcio Gomes Damartini; Maro Lara Martins;
Pedro Ernesto Fagundes; Rossana Gomes Britto (organizadores).
Serra: Editora Milfontes, 2019.
568 p. : 20 cm
Livro Eletrônico - PDF
Modo de acesso: www.editoramilfontes.com.br/publicações.

Inclui Bibliografia.
ISBN: 978-85-94353-41-2

1. Historiografia 2. História política 3. 1968 I. Pereira, André Ricardo


Valle Vasco [et. al.] II. Título.

CDD 981.063
Sumário
Apresentação..........................................................................................9
Parte I
A Ditadura Civil-Militar: trabalhadores, mulheres, repressão,
transição e memória
O sindicato dos bancários do Espírito Santo durante a ditadura civil-
militar (1964-1985)................................................................................15
André Ricardo Valle Vasco Pereira

Movimento Feminino Pela Anistia e as mobilizações pela Anistia


nos núcleos do Ceará, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e de
Minas Gerais (1975-1979)....................................................................33
Maria Heloiza Batista Lourenço &Pedro Ernesto Fagundes

Abusos da ditadura militar contra as mulheres: o uso da categoria


violência de gênero................................................................................51
Ayala Rodrigues Oliveira Pelegrine

A atuação da imprensa no contexto ditatorial (1968-1978)............67


Davi Elias Rangel Santos

Atestado de Ideologia Política: repressão e ideologia política na


ditadura militar (1964-85)....................................................................85
Amarildo Mendes Lemos

A Atuação dos Órgãos de Repressão no Espírito Santo (1964-1985)... 113


Márcio Gomes Damartini

Os 50 anos do XXX Congresso da UNE: 1968..................................135


Pedro Ernesto Fagundes

A recorrente “ameaça vermelha” e seus efeitos no contexto da


transição para a democracia.................................................................147
Maxlander Dias Gonçalves
A cultura política e a justiça de transição no Brasil: um estudo de
história do tempo presente...................................................................161
Guilherme Gouvêa Soares Torres

A história do tempo presente: um balanço da justiça de transição no


Brasil........................................................................................................179
Dinoráh Lopes Rubim Almeida

“Nossa bandeira jamais será vermelha”! – As disputas em torno do


controle da narrativa na sociedade brasileira polarizada e a afirmação
de um passado que não passa...............................................................199
Ariel Cherxes Batista

Parte II
A América Latina: Indígenas, dirigentes e cultura
Da utopia à conquista do direito à livre determinação. As
comunidades indígenas mexicanas e seus processos de construção
das autonomias.................................................................................... 215
Antonio Carlos Amador Gil

Representações e imaginário da cultura política comunista cubana na


década de 1950.......................................................................................233
Ana Paula Cecon Calegari

“Somos los reformistas, los revolucionarios, los antiimperialistas de


la Universidad”: relações entre o movimento estudantil e a Nueva
Canción no Chile entre 1964 e 1973....................................................251
Ulisses Malheiros Ramos

Parte III
Espírito Santo: Indígenas, território e cultura
Sob os ditames da modernidade: a ressignificação dos rituais
funerários na Vitória da segunda metade do século XIX................269
Júlia Freire Perini
O Barão do Itapemirim e a política indigenista no sul do Espirito
Santo .......................................................................................................289
Tatiana Gonçalves de Oliveira

Uma região de fronteira: anomia, grilagem e desordem na Zona


Contestada..............................................................................................309
Leonardo Zancheta Foletto

Parte IV
Brasil: Cultura, poder e religião (Séculos XVIII e XIX)
A Irmandade de Nossa Senhora das Mercês de Mariana: vivência da
fé, dinâmica associativa e composição social (Minas Gerais, Brasil,
séculos XVIII-XIX)...............................................................................331
Vanessa Cerqueira Teixeira

A Fazenda Imperial: independência e organização das instituições


fazendárias..............................................................................................357
Daiane de Souza Alves

Dom Frei José da Santíssima Trindade, um bispo reformador......379


Anna Karolina Vilela Siqueira

A tradição doutrinária no Tribunal da Relação do Rio de Janeiro


durante o Segundo Reinado.................................................................399
Renan Rodrigues de Almeida

Parte V
Historiografia, Patrimônio, Educação e Cultura
Ensaio, historiografia e experiência intelectual periférica...............427
Maro Lara Martins

Espaço, paisagem e fronteira na História de Heródoto: a representação


do território dos citas como uma heterotopia...................................447
Gabriela Contão Carvalho
O Mediterrâneo como mar e forma da história: suas representações
na Odisseia..............................................................................................465
Martinho Guilherme Fonseca Soares

Patrimônio e educação: a visita técnica e o estudo do meio a partir de


uma abordagem interdisciplinar.........................................................487
Rossana G. Britto & Adriana N. Campos

O testemunho presente na ata das mártires africanas Perpétua e


Felicidade e seu uso no ensino de história da África........................501
Camila Fagundes Ribeiro

História Oral: contribuições para uma pesquisa sobre o pós-abolição


no Brasil...................................................................................................515
Geisa Lourenço Ribeiro

Comer e dietética: alimentação para Francisco da Fonseca Henriques


pela Âncora Medicinal (1721)..............................................................531
Mariana Costa Amorim

A Belle Époque, as mudanças sofridas após a Primeira Guerra


Mundial e as influências sobre a moda e a carreira do costureiro Paul
Poiret........................................................................................................545
Natália Dias De Casado Lima
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Apresentação
Entre os dias 6 e 8 de novembro de 2018, a Associação
Nacional de História, Seção Espírito Santo (ANPUH-ES), realizou
o seu XII Encontro Regional, nas dependências da Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES). O tema do evento foi 1968: Das
Utopias ao Autoritarismo. A proposta adveio dos 50 anos passados
desde os eventos de maio de 1968, que abalaram o mundo, trazendo
para o primeiro plano uma geração de jovens inspirados por variadas
utopias. A seu modo, cada uma ambicionava transformações radicais
nos sistemas de poder, de trabalho, de comportamentos, ideias e
atitudes. Em parte, correspondiam a reações contra autoritarismos que
já se encontravam instalados, como no caso do Brasil, enquanto que,
nos países capitalistas avançados, pressionavam por mudanças mais
profundas do que a ordem congelada do pós-II Guerra oferecia. Seus
resultados foram muito diversos, porém suficientemente relevantes
para marcar uma época na qual a mudança era representada por
jovens idealistas. Só isso, a comparação deste momento com o que se
passa no mundo e no Brasil 50 anos depois, já nos inspira a refletir
sobre o que aconteceu para que estejamos vivendo hoje uma situação
contrária, na qual assistimos a uma verdadeira “rebelião dos velhos”,
dos homens brancos, de classe média, nível educacional superior e
meia idade que compõem as hordas de manifestantes que desejam o
retorno a um passado idealizado, necessariamente inventado, ordeiro,
hierárquico, machista, racista, homofóbico, islamofóbico, antissemita,
anticomunista, xenófobo, seja nas passeatas do PEGIDA alemão, seja
nas demonstrações que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff e,
mais recentemente, nas perseguições perpetradas por seguidores deste
triste fenômeno chamado de bolsonarismo.

9
Das utopias ao Autoritarismo

As utopias de 1968 já conviviam com formas autoritárias,


que tentaram combater, com níveis variados de sucesso. Numa visão
geral, os conservadores venceram, mas a um preço que teve que ser
pago depois. Na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, as gerações
seguintes se alimentaram daquela experiência e daquele espírito
para fazer avançar lutas no seio da Sociedade Civil: o feminismo, o
pacifismo, a ecologia, os gays, os negros, os latinos. Em muitos casos,
as vitórias que conseguiram se deram por meio de práticas reformistas,
como no caso das cotas em universidades e até nos estúdios de
cinema. Em outros, foram transformações culturais que mudaram as
representações de família, de gênero, étnicas e ampliaram os espaços
na arena pública.
Já na América Latina, a geração dos “rebeldes” de 1968 teve
que amargar derrotas mais duras, um aprendizado nos porões das
ditaduras apoiadas pelos EUA, e se aproximar dos novos movimentos
sociais que emergiram da modernização conservadora. Sua pauta,
num primeiro momento, teve que ser a da democratização. Ali,
o espaço para ouros tipos de lutas acabou sendo reduzido. Não é à
toa que, apenas após a consolidação das democracias de massas no
continente é que um novo momento, vivido pelos países avançados
do capitalismo nos anos 1970, como rescaldo das rebeliões de 68, teve
condições de emergir, sempre com as dificuldades inerentes a cada
processo nacional.
Porém, nesta década de 10 do século XXI, uma verdadeira
regressão se apresenta em vários lugares e aquelas poucas conquistas,
tão ansiadas por alguns dos militantes de 1968, mostram fragilidades
que estimulam a nós, os que estudamos o passado, a refletir sobre os
fatores que nos levam a temer espectros que voltam a rondar, não
o do comunismo na introdução do famoso texto de Marx e Engels,
mas o do fascismo, do populismo de direita e dos extremismos
conservadores. Para realizar esta tarefa coletivamente, contamos com
três conferências. Daniel Aarão Reis falou sobre os Entrelaçamentos e
contradições entre paradigmas de mudança social - os anos 1960. No
seu dia, infelizmente, faltou luz no campus de Goiabeiras. Mesmo
assim, o professor se dispôs a adiantar sua fala para aproveitarmos a

10
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

luz diurna. Marieta de Moraes Ferreira e Angélica Müller abordaram


a experiência dos estudantes de 1968. Já Carlos Fico apresentou uma
fala sobre a moldura institucional do Regime Militar. Para não tirar
um pouco do suspense que cercou o evento, o avião dele quase não
conseguiu pousar em Vitória...
Além deles, a ANPUH-ES contou com 29 trabalhos, dos
quais 25 são de filiados pelo Espírito Santo, três por Minas Gerais e
uma pelo Rio de Janeiro. Estas comunicações foram avaliadas por
uma Comissão Científica e submetidas à Editora Milfontes, com o fito
de publicar um E-book com perfil acadêmico. Desde o XI Encontro
Regional que a ANPUH-ES optou por não publicar Anais eletrônicos,
mas sim editar um livro, submetido à Comissão Científica (formada
pelos organizadores), e a uma editora com Conselho Editorial. A
publicação possui ficha catalográfica e o registro no ISBN. Estamos
falando, portanto, de capítulos de livro acadêmico, prestando, desta
forma, um valioso serviço aos seus sócios e à comunidade acadêmica
no geral.
Dos 29 capítulos, 11 lidam diretamente com a Ditadura
Civil-Militar no Brasil. Outros três abordam temas relativos ao conflito
entre utopias e o autoritarismo na América Latina. Desta forma, o
núcleo central da proposta do evento foi muito bem representado aqui,
trazendo contribuições variadas. Ao mesmo tempo, sendo a ANPUH
uma entidade multifacetada, não poderíamos deixar de abrir espaço
para outros aspectos da História. Neste sentido, há três capítulos sobre
o Espírito Santo nos séculos XIX e XX. Outra parte reúne quatro
trabalhos sobre cultura, poder e religião no Brasil dos séculos XVIII
e XIX. Por fim, pudemos contar com uma rica contribuição sobre
os laços entre Historiografia, Patrimônio, Educação e Cultura. A
História, como sabemos, é o estudo do passado, mas a forma como
este conhecimento é produzido (historiografia) e os impactos do
que ocorreu antes no presente, ou seja, a memória que construímos,
também são relevantes, ainda mais diante do tema do evento que,
como dito acima, se propôs a estimular uma comparação do que
houve 40 anos atrás com o quadro atual.
Temos certeza que os leitores encontrarão aqui contribuições

11
Das utopias ao Autoritarismo

mais que adequadas e pertinentes sobre este conjunto de problemas.


Por fim, nós, organizadores desta obra, não poderíamos deixar de
lembrar a cooperação que tivemos a oportunidade de levar a cabo
com os estudantes do curso de História da UFES, por meio de uma
parceria que resultou na combinação do nosso evento com a XII
Semana de História. No caso da ANPUH-ES, apenas associados
puderam apresentar trabalhos. Já a Semana de História trouxe 54
comunicações de estudantes de graduação e demais profissionais. A
ANPUH-ES contribuiu com recursos para a realização deste evento e
para a hospedagem dos seus trabalhos no nosso site. Agradecemos aos
organizadores, em particular a Pietro Esquincalha Margoto, Juliana
Anjos Zaninho, Guilhermy Pereira Duarte e João Paulo dos Santos de
Souza, pela disposição em dividir conosco a esperança de que o nosso
trabalho coletivo possa, quem sabe, dar frutos positivos.
Os organizadores

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Parte I
A Ditadura Civil-Militar: trabalhadores,
mulheres, repressão, transição e memória
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

O sindicato dos bancários do Espírito


Santo durante a ditadura civil-militar
(1964-1985)
André Ricardo Valle Vasco Pereira1

Introdução
O Sindicato dos Bancários do Espírito Santo (Sindibancários/
ES) foi fundado em 1934 (TOSI; COLBARI; ALVES, 1995). Sua
história pode ser dividida em quatro grandes fases. A primeira vai
da fundação até 1953, quando se constituiu um grupo dirigente que
defendia uma leitura moderada do trabalhismo (PEREIRA, 2014).
Desta data até 1964, deu-se a passagem para uma fase de progressiva
radicalização política e alinhamento com o projeto das Reformas de
Base. Neste momento,
as elites sindicais articularam aspectos mais amplos com a
realidade local, de forma a apelar aos bancários capixabas
como membros da classe trabalhadora, sendo este o sentido
instrumental das Reformas de Base. Foi tal estratégia que
permitiu, ao mesmo tempo, mobilizar a categoria com
base tanto em suas condições de trabalho quanto em um
sentido mais geral (PEREIRA, 2018, p. 1).
Com o Golpe de 1964, aquela experiência de autonomia
de classe foi suprimida. Assim, iniciou-se a terceira fase, que vai de
1964 a 1985. Ela foi caracterizada pela presença de lideranças de perfil
conservador, associadas, por vezes, a indivíduos mais progressistas, mas
que não tinham condições de realizar uma militância política aberta. O
resultado foi o recuo da prática sindical de enfrentamento ao patronato,
da fase anterior, para a prestação de serviços aos filiados (KAREPOVS,
1994), juntamente com a inserção da entidade em um modelo
nacionalizado de representação de empregadores e empregados.
Durante o Regime Militar, este fenômeno não resultou

1  Professor Adjunto do Departamento de História da UFES, Doutor em Ciência


Política de IUPERJ, andre.r.pereira@ufes.br

15
Das utopias ao Autoritarismo

em maiores ganhos à categoria, mas deixou um padrão que viria


a ser explorado posteriormente, quando uma nova liderança, à
esquerda, retomou formas mais combativas de ação sindical. Desta
vez, porém, numa linha mais “corporativa”, no sentido de que greves
autenticamente nacionais passaram a ser possíveis, com pautas e
mesas unificadas de negociação, o que não ocorria no momento que
foi até 1964. É desta forma que se pode falar, então, de uma quarta
fase, iniciada em 1985 e que se mantém até hoje.
Da fundação da entidade até a década de 1970, o Espírito
Santo foi uma sociedade agrário-exportadora, com a maior parte da
população vivendo no campo (ROCHA; MORANDI, 2012). Naquele
momento, o perfil da profissão de bancário exigia uma formação
educacional superior à maior parte dos setores assalariados e o
contato destes profissionais com a população mais pobre era reduzido.
Durante o Regime Militar, tais aspectos foram sendo transformados
e, com eles, as características da categoria. Tais mudanças e suas
consequências políticas serão abordadas neste texto, que se baseou
em pesquisa sobre documentos da entidade e entrevistas feitas com
lideranças sindicais.

A fase conservadora e pragmática (1964-1985)


Quando aconteceu o Golpe Civil-Militar de 1964, uma das
primeiras medidas do novo regime foi a de cassar, por 10 anos, os
direitos políticos de 100 pessoas (BRASIL, 1964). Desta lista, fizeram
parte o presidente da Federação dos Bancários do Rio de Janeiro e
Espírito Santo, Luiz Viégas da Motta Lima, militante do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), e o presidente da Confederação Nacional
dos Trabalhadores em Empresas de Crédito (CONTEC), Aluísio
Palhano Pedreira Ferreira. Isto mostra a imagem de perigo que era
atribuída pelos golpistas ao sindicalismo bancário (MELO, 2013).
No Espírito Santo, o Sindicato dos Bancários sofreu
intervenção, interrompendo a experiência que estava em curso, com
suas contradições, limites e qualidades, principalmente no que se
refere à elaboração de uma prática de autonomia de classe, buscando

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

aliar o plano nacional com o local. O silêncio que se abateu empurrou


esta tarefa para adiante.
Para presidir a Junta Governativa do Sindibancários/
ES (responsável pela intervenção no Sindicato) foi indicado, pelo
Comandante do 3º Batalhão de Caçadores, um advogado do Banco do
Brasil, Ary Lopes, que convidou dois antigos militantes da entidade,
Jurandy Ângelo e Osny Soares, para ajudá-lo.
A seguir, em 1966, houve eleições sindicais, iniciando-se
uma sequência de 7 mandatos, até 1985, que resultaram na formação
de um novo grupo dirigente. Vale notar que, em 1969, as diretorias
passaram a ter uma duração de 3 anos e não mais de dois, como antes.
Dos 7 mandatos em consideração, algumas pessoas tiveram
presença mais constante nas diretorias executivas: Sebastião Vieira
Rangel, por 6 vezes; Adauto Santos Pedrinha, por cinco vezes; Antonio
Carlos Viera da Silva, por 4 vezes, das quais 3 como Presidente; José
Theodomiro Casa Grande, por 4 vezes, sem contar a presidência, que
não chegou a exercer em 1982; José Antonio Bonela, por 3 vezes; e
Marilda Baião Motta, por 3 vezes, uma delas como Presidente, sendo
a primeira e a única mulher até a atualidade a assumir a presidência
do Sindicato.
Assim como nos períodos anteriores, não podemos falar
de um grupo ideologicamente unido. O Regime Militar não buscou
constituir uma liderança de trabalhadores no mesmo sentido que o
Estado Novo o fez, associada a um projeto conservador em condições
de sobreviver a ele e disputar a representação da base. O que se fez foi
afastar os dirigentes progressistas e reforçar o modelo corporativo. Em
sua tese de doutorado, Larissa Rosa Corrêa (2013) estuda a relação do
sindicalismo norte-americano com o brasileiro durante da Ditadura.
Ela mostra que houve um esforço dos norte-americanos no sentido
de treinar e influenciar lideranças brasileiras naquilo que defendiam
como um sistema de livre negociações, o que implicaria em eliminar
a legislação que começou a ser criada em 1930. Ocorre, porém, que
o Regime preferiu manter o corporativismo, pois lhe dava melhores
condições para intervir nos sindicatos.

17
Das utopias ao Autoritarismo

A autora chegou a documentar uma série de iniciativas no


sentido de estabelecer aproximações entre direções sindicais norte-
americanas e brasileiras, como no caso de viagens aos EUA para
conhecer a experiência local, mas o impacto concreto de tais medidas
foi mínimo, a ponto de terem sido acusadas de funcionaram como
“turismo sindical”, ou seja, apenas viagens de lazer, com poucos
efeitos concretos. Isto se devia ao fato de que não foram realizadas
mudanças que viabilizassem a negociação coletiva livre, entre patrões
e empregados, no interior da qual os norte-americanos esperavam
formar seus colegas brasileiros.
Assim, na prática, o que restou foi um clima de repressão,
que dificultou a militância sindical politicamente aberta e abriu espaço
para que algumas pessoas afastadas do perfil anterior assumissem as
entidades. Alguns compraram o projeto conservador da Ditadura,
outros assumiram uma postura pragmática. Militantes de esquerda
que conseguiram sobreviver às perseguições tiveram que manter uma
atitude discreta por bastante tempo, até que, no fim da década de
1970, o ambiente se tornasse mais livre para manifestações.
Os depoimentos orais colhidos para esta pesquisa
afirmam que não havia uma base do partido da Ditadura, a Aliança
Renovadora Nacional (ARENA), no Sindicato e que seus dirigentes
sequer buscavam proximidade com o Regime, o que não significa
que não houvesse ali pessoas conservadoras. O fato é que a prática
desenvolvida foi assistencialista e centrada nas ações jurídicas. Na fase
da transição para a democracia é que surgiram novos atores na base e
as dissensões na diretoria se tornaram evidentes.

Os impactos da reforma bancária durante a ditadura e


conjuntura econômica estadual
A reforma bancária que entrou em funcionamento em
1965 teve um importante desdobramento em 1968, quando os bancos
privados tiveram o direito de obter empréstimos externos para repasse
de crédito ao mercado interno, resultando em aumento da dívida

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

externa. O que houve foi o seguinte: criou-se um Banco Central e um


Conselho Monetário Nacional com forte presença dos empresários.
Uma série de medidas facilitou a concentração financeira, resultando
na eliminação de bancos pequenos ou médios (GRISCI; BESSI, 2004).
Enquanto o capital bancário privado teve forte estímulo, os
bancos estatais foram destinados a realizar funções que não eram de
interesse daqueles. O Banco do Brasil continuou sendo importante
financiador da agricultura, a Caixa Econômica Federal – que era
constituída inicialmente por várias Caixas estaduais que depois
foram unificadas – atuou no setor da poupança popular, o Banco
Nacional da Habitação foi agente da urbanização, o Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico (só virou BNDES em 1982) teve
ampliadas as funções de financiamento de empreendimentos mais
complexos e os bancos estaduais cresceram por meio do acesso a
linhas específicas de financiamento federal (JINKINS, 1995). No
Espírito Santo, o Banco de Crédito Agrícola (Ruralbank) virou Banco
do Estado do Espírito Santo S. A. (Banestes) em 1969. Nesta nova
fase, a instituição passou por um processo de profissionalização e
crescimento.
A Federação das Indústrias do Espírito Santo (FINDES),
criada em 1958, deu início a um processo de organização dos
empresários locais que coincidiu com a passagem da Companhia Vale
do Rio Doce para uma nova fase de expansão de suas atividades, que
resultaram no Porto de Tubarão (1966) e no início da construção de
suas usinas pelotizadoras (1969). A mesma empresa promoveu estudos
e articulações que dariam origem à Aracruz Celulose, em 1967, e à
Companhia Siderúrgica de Tubarão, iniciada em 1973 e concluída em
1983 (SILVA, 2004). Na década de 1960, o governo federal promoveu a
erradicação dos cafezais improdutivos no Espírito Santo, o que afetou
a imagem de um suposto “destino agrário” (VILLASCHI, 2011). Esses
elementos criam um clima favorável à criação de um agente financeiro
para projetos estruturais.
É nesse contexto que surge o Banco de Desenvolvimento
do Espírito Santo (Bandes), em 1969 – órgão que passou a atuar
na pesquisa, planejamento e financiamento da industrialização e

19
Das utopias ao Autoritarismo

urbanização do Estado. Ele contou com repasses federais e com o


controle de recursos advindos do Fundo de Desenvolvimento das
Atividades Portuárias (FUNDAP) e do Fundo de Recuperação
Econômica do Espírito Santo (FUNRES)2.
O Espírito Santo tradicional, rural, coronelista, foi
morrendo e dando lugar a uma sociedade mais urbanizada, com
grandes empresas atuando no mercado internacional. Até então,
havia, no estado, uma presença significativa de bancos mineiros de
porte pequeno e médio. Estes foram, aos poucos, perdendo espaço,
enquanto, conforme se verá adiante, houve uma nacionalização da
representação dos banqueiros, o que alterou a forma de lidar com as
questões trabalhistas. Até então, as greves “nacionais” dos bancários
não passavam de eventos que ocorriam no mesmo momento, mas que
implicavam em negociações parcelarizadas, por estado.
E os bancos estatais, tanto os federais quanto os dois
estaduais, cresceram de importância e passaram a exigir um novo perfil
do funcionário, a partir dos concursos nacionais nos bancos públicos
federais, da ampliação do serviço e da entrada de empregados com
melhor nível educacional. Por fim, em 1985, no mesmo ano em que
os militares deixaram o poder, o Sindibancários/ES passou a contar
com um novo tipo de orientação política que derivou, em parte, das
mudanças que ocorreram enquanto caia a longa noite da Ditadura.

A consolidação das estruturas de organização nacionais de


bancos e bancários
Durante muito tempo, os banqueiros não possuíram
organização representativa nacional. O que mudou esse quadro foi o
avanço da luta política dos trabalhadores por uma versão progressista
da Reforma Bancária. Para lutar contra este projeto, os patrões
realizaram, em 1960, o primeiro Congresso Nacional dos Bancos
(MINELLA, 1988).
2 FUNDAP: recolhe o ICMS sobre vendas e devolve a maior parte como
financiamento de longo prazo às empresas importadoras/exportadoras. FUNRES:
destina parte do imposto de renda cobrado no Estado à operações de crédito.

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A seguir, em 1966, foi criada a Federação Nacional dos


Bancos (FENABAN) e, em 1967, a Federação Brasileira das Associações
de Bancos (FEBRABAN). Na prática, o Sindicato dos Bancos do
Estado da Guanabara (SBEG, que passou a ser do Rio de Janeiro –
SBERJ – em 1974) tinha mais força na FENABAN, e a Associação de
Bancos do Estado de São Paulo (ASSOBESP) influenciava os rumos
da FEBRABAN. Até a metade dos anos 1970, as duas Federações
não passavam de fachadas do SBEG/SBERJ ou da ASSOBESP. Foi
o processo de concentração do setor bancário em São Paulo que
mudou o quadro. Em 1983, a FENABAN foi integrada à FEBRABAN
e ficou com a responsabilidade de lidar com as questões trabalhistas,
enquanto a FEBRABAN assumiu a condição de comando político do
sistema financeiro.
Ao mesmo tempo, a Ditadura controlou os sindicatos,
impediu as greves e impôs uma política salarial única, com aumentos
oficiais, de forma que as negociações se resumiam a melhorias nas
condições de trabalho. A formação de entidades nacionais de bancários
e de banqueiros estimulou, então, um início da nacionalização do
conflito capital x trabalho. Para tanto, houve fases. A primeira foi
de 1964 até a metade dos anos 1970, quando a CONTEC negociava
formalmente com a FENABAN. Ou seja, no que se refere ao
Sindibancários/ES, este fazia parte da Federação dos Bancários do RJ/
ES que lidava com o SBEG/SBERJ, tentando negociar as campanhas
salariais.
Ocorre que os patrões não se dispunham a conversar, de
forma que o único caminho possível era o dissídio coletivo. Havia
uma dinâmica de encontros nacionais e regionais dos bancários,
nos quais se formava uma pauta de reivindicações para a campanha
salarial, que deveria ser votada em assembleias de cada sindicato. Nas
condições em que a entidade capixaba encontrava, em uma Federação
na qual o Sindicato do Rio de Janeiro era mais forte e se enfrentava
diretamente com os patrões no Tribunal Regional do Trabalho (TRT),
cuja sede carioca englobava o Espírito Santo, o resultado foi uma
postura de timidez, transferindo para o setor jurídico da Federação
a tarefa de lutar pelo que fosse possível. Não é à toa que os dirigentes

21
Das utopias ao Autoritarismo

do Sindibancários/ES, nesta fase, não viam muita importância na


CONTEC e não se esforçavam para ter posições de destaque na
Federação. Sobre isso, disse José Theodomiro Casa Grande: “A
Federação coordenava toda a campanha salarial” (CASA GRANDE,
2014). Outro dirigente sindical, Valmir Castro Alves, que trabalhava
no BANESTES, traz uma lembrança sobre o papel de Ivan Pinheiro,
que era filiado ao PCB:
A influência da Ivan Pinheiro no ES foi total. Eu já
estava na direção do Sindicato e com a presença do Ivan
no Sindicato do RJ foi um elo, era um ponto de ligação
direta com o Espírito Santo. Tinha a Federação, mas a
concentração política, a discussão política, ficava com o
Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, onde o Ivan
estava na frente. E ele vinha para cá, debatíamos, fazíamos
estratégia juntos. Politicamente estávamos alinhados com
o Rio de Janeiro (ALVES, 2014).
Uma vez impetrado o dissídio, o costume dos patrões era o de
tentar modificá-lo no TRT. Após o julgamento, entravam com recurso
no Tribunal Superior do Trabalho. Isto ia empurrando a decisão para
frente. Quando, finalmente, não havia mais saída, era comum que os
bancos não respeitassem vários itens do dissídio, forçando o Sindicato
a ingressar na justiça contra instituições específicas. Além disso, as
denúncias à Delegacia Regional do Trabalho (DRT) por desrespeito às
leis trabalhistas ou ao dissídio não costumavam dar muito resultado.

A prática sindical: assistencialismo, justiça e esportes


Com o fechamento político, todo o movimento sindical
brasileiro foi forçado a abandonar o enfrentamento direto com os
patrões e passou a lidar apenas com a prestação de serviços aos seus
associados, além da assistência jurídica, que era uma característica da
estrutura sindical já em vigor antes do Golpe e foi reforçada. Sobre isso,
Sebastião Vieira Rangel disse: “O departamento jurídico sustentou o
sindicato na sua luta política” (RANGEL, 2014).
No caso dos bancários, a grande mudança veio por conta do
fim do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Bancários (IAPB),

22
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

em 1966, que era tido como o melhor prestador de benefícios médicos


e habitacionais entre todos no país (OLIVEIRA, 1999). A Ditadura
fez a unificação dos IAPs ao criar o Instituto Nacional de Previdência
Social (INPS), que ficou sob controle do Ministério do Trabalho. O
órgão passou a ter uma natureza técnica, com o fim da representação
classista. Após este processo, porém, o Ministério se dispôs a fazer
convênios com os sindicatos para que eles fornecessem serviços
médicos, dentários e cursos de capacitação. Muitas entidades também
participaram da criação de cooperativas habitacionais ou de consumo.
Foi o caso do Sindicato capixaba, com a Cooperativa de Consumo,
que funcionou de 1966 a 1972. De início, teve 343 membros. O seu
armazém ficava na Vila Rubim, em Vitória. Ela chegou a receber
empréstimos do Sindicato, mas foi fechada por falta de capacidade
administrativa e devido a compras que não atendiam às necessidades
imediatas dos cooperados.
No campo dos serviços de saúde, entre outras coisas, o
Sindibancários/ES chegou a contar com um laboratório de análises
clínicas, instalado na sede da entidade, no edifício Ouro Verde, na
Avenida Jerônimo Monteiro, no centro de Vitória, em 1973. No ano
anterior, a entidade demonstrava possuir um ambulatório próprio,
contando com 6 médicos. Mesmo assim, convênios foram feitos com
outros especialistas e com serviço dentário. O mesmo Sebastião Vieira
Rangel lembrou que:
Rubens3 criou um consultório dentário, uma área de
datilografia e curso de corte e costura. Interessante que
quando ele falou de corte e costura, ninguém acreditou.
Mas as mulheres dos bancários vieram e aprenderam, as
mulheres gostaram. E associaram-se várias pessoas por
causa disso (RANGEL, 2014).
Desde seu início, a entidade promoveu atividades esportivas,
principalmente o futebol. Muitos dirigentes sempre argumentaram
que era uma forma de aproximação com a base. No período da
ditadura, não foi diferente. José Theodomiro Casa Grande cita a
relevância de tais atividades:

3  Rubens Rocha de Azevedo foi presidente do Sindibancários/ES no biênio 1966-67.

23
Das utopias ao Autoritarismo

Nós tínhamos bons times e campeonatos de futebol. Cada


banco tinha um time. Os times dos maiores bancos sempre
levavam vantagem, porque podiam selecionar excelentes
jogadores. Tinha jogador profissional que trabalhava no
banco. Era muito importante a parte social do banco.
Tinha basquete, vôlei, mas era menor (CASA GRANDE,
2014).
Por fim, o Departamento Jurídico ganhou enorme destaque,
graças à necessidade de fazer valer as cláusulas das campanhas salariais.
Neste caso, a geração da Ditadura se orgulha de uma vitória obtida em
1971, quando o advogado da entidade, Durval Cardoso, notou que
houve um erro no acordo firmado no TRT, com a concessão de 3¬/3
de gratificação (acrescida de juros e correção monetária) aos salários
de quase todos os bancários ao invés de 1/3, que era a proposta oficial
dos bancos. O sindicato, então, entrou com uma ação de cumprimento
da cláusula contra um banco pequeno (Banco Nacional do Norte).
Depois de ganharem a primeira causa, o setor jurídico entrou com
ações contra todos os bancos, o que gerou um efeito cascata. Este foi o
ponto alto daquela prática sindical.

A oposição sindical e a unidade sindical (PCB, PCdoB)


Durante a década de 1970, o Brasil e o Espírito Santo
mudaram. A urbanização avançou, o modelo educacional foi alterado,
surgindo a divisão entre primeiro e segundo graus; e a Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES) completou a transferência de quase
todos os seus cursos para o Campus de Goiabeiras. Vale destacar que
essa reforma educacional e a expansão universitária teve relação direta
com o projeto de desenvolvimento da ditadura militar.
O papel dos bancos na economia se solidificou, com a
financeirização da dívida pública, o crescimento do BANESTES e
início do funcionamento do BANDES (MORAES, 1992). Assim,
aos poucos, a profissão de bancário foi deixando de ser o que era
no passado, pois as agências passaram a oferecer mais serviços ao
público e clientes de renda mais baixa foram sendo progressivamente
incorporados. Com isso, houve aumento do pessoal empregado

24
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

e iniciou-se uma mudança geracional, com os novos contratados


tendendo a possuir um nível de educação formal maior. Entre eles,
universitários egressos da nova fase da UFES.
A ditadura reprimiu drasticamente o movimento estudantil
capixaba, que sofreu um refluxo no início dos anos 1970 e foi recuperado
na segunda metade da década (PELEGRINE, 2016; ATHAYDES,
2017). Dentro da Universidade, várias organizações políticas surgiram
ou foram reestruturadas. Alguns de seus militantes ou pessoas de
alguma forma influenciadas pelas mudanças políticas que estavam
acontecendo, se tornaram bancários. Outros vieram do movimento
social católico, que teve grande importância na formação de uma
militância com perfil progressista. A teologia da libertação foi influente
na criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), apoiadas
pela hierarquia católica capixaba (BANCK, 2011). Além disso, duas
instituições foram relevantes para oferecer formação teórica e prática a
militantes: a confederação humanitária católica Cáritas e a organização
não governamental FASE (Federação de Órgãos para a Assistência
Social e Educacional). Elas também proveram meios materiais, como
locais de reunião, impressão de folhetos e boletins, etc.
Quando os metalúrgicos de São Bernardo, em São Paulo,
fizeram sua primeira grande greve, em 1978, o movimento estudantil
da UFES já contava com grupos atuantes do Partido Comunista
Brasileiro (PCB), do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e de
organização de perfil leninista ou trotskista. No ano seguinte, em 1979,
foi conquistada a anistia aos presos políticos e fundou-se o Partido dos
Trabalhadores (PT), que contou com a forte presença de militantes
católicos e de organizações de esquerda.
Naquele momento, todos os grupos de esquerda, incluindo
o PCB e o PCdoB, atuavam dentro do Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB). A leitura que faziam era a de que
seria necessário manter uma aliança com forças contrárias à Ditadura
e não a enfrentar diretamente. No campo sindical, a proposta viria
a originar o grupo conhecido como Unidade Sindical. Já as forças
que criaram o PT defendiam uma atitude de organização autônoma
dos setores populares e de luta direta tanto contra os patrões quanto

25
Das utopias ao Autoritarismo

contra o Regime Militar. Era a defesa de uma concepção de luta


transformadora, classista, com independência e autonomia em
relação ao Estado, a patrões, governos, partidos políticos e instituições
religiosas; contrária à estrutura varguista, colaboracionista, verticalista,
assistencialista e atrelada ao Estado. Este projeto acabaria dando base
ao novo sindicalismo e gerando, anos depois, a Central Única dos
Trabalhadores (CUT).
No caso do sindicato capixaba, membros do PCB e PCdoB
buscaram atuar dentro das diretorias na qual predominava o grupo
pragmático citado acima. Uma das razões para isso era a proximidade
com setores do MDB (depois PMDB). Já os militantes do PT formaram
a Oposição Bancária.

Organizações e lideranças
Quando falamos de organizações políticas nesta fase,
devemos ter em mente que elas eram ilegais e perseguidas pela
Ditadura. Por esta razão, encontramos pessoas que possuíam graus
variados de proximidade com relação a elas. Alguns eram militantes
orgânicos. Outros seguiam as diretrizes dos grupos, mas não faziam
parte deles, sendo identificados como “área de influência”. E havia as
pessoas que eram vistos como membros, mas nunca foram de fato.
Entre os grupos que ingressaram no PT, vale destacar
alguns. Foi o caso da Ação Popular Marxista Leninista (APML),
surgida nacionalmente em 1971 (DIAS, 2009). No Espírito Santo, ela
teve uma base no movimento estudantil da UFES. Em 1982, boa parte
de seus membros decidiu se diluir no PT, enquanto outros criaram a
Organização Comunista Democracia Proletária (OCDP). Por outro
lado, temos o Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP),
de 1976, com presença no movimento estudantil e proximidade
com os católicos. No plano nacional, em 1985, o MEP, a OCDP e
a organização Ala Vermelha se fundiram, criando o Movimento
Comunista Revolucionário (MCR). Em 1989, o MCR resolveu se
transformar em tendência interna do PT, passando a se chamar Força
Socialista (FS).

26
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Para a base sindical, porém, as organizações não se


apresentavam com seus nomes. A identidade principal esteve na
defesa da criação da CUT e na linha de enfrentamento aos patrões que
ela trazia consigo. Na prática, o destaque ficava com certas lideranças,
que viravam referência. Tendo em conta todos os grupos que estão
sendo considerados, as pessoas mais conhecidas entre os bancários
capixabas foram:
a) Adauto Santos Pedrinha: identificado com o Partido
Comunista do Brasil (PCdoB) e ligado ao grupo do
deputado federal do MDB (depois PMDB), Max Mauro.
Pedrinha fez parte de quase todas as diretorias da fase da
Ditadura, mas só assumiu uma postura mais crítica no fim
do período.
b) João Amorim, que entrou na categoria como jornalista
do BANDES em 1974. Foi filiado ao PCdoB, mas chegou a
fazer parte de uma dissidência do partido, a Ala Vermelha,
no fim dos anos 1960, tendo retornado posteriormente
(AMORIM, 2014).
c) Valmir Castro Alves, do BANESTES, no qual entrou em
1978. Era filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). A
organização formou duas células entre os bancários: uma no
BANESTES e outra em bancos particulares (ALVES, 2014).
d) Carlos Uliana, que ingressou no Banco Nacional em
1976. Era militante do MEP (ULIANA, 2014).
e) Paulo Pinto, que era funcionário do Banco do Brasil e
chegou ao Espírito Santo em 1975. Ingressou na APML
por volta de 1978. Não seguiu para a OCDP. Por volta de
1983, se desfiliou do PT e cogitou a entrada no PCdoB, o
que acabou não ocorrendo. Retornou ao PT em 1985 e se
tornou a principal liderança do MCR entre os bancários
(PINTO, 2014).
f) Teodora Bragato, conhecida como Dora, que entrou
no BANESTES em setembro de 1978. Foi militante
do movimento social da Igreja católica. Acabou se
aproximando do MEP (OLIVEIRA, 2014).
g) Lucio Faller, que entrou no BANESTES em fevereiro de
1978. Atuou em proximidade com Eduardo Machado, do
MEP, e Paulo Pinto, da APML (FALLER, 2014).

27
Das utopias ao Autoritarismo

h) Eduardo Machado, que ingressou o Banestes em 1978,


foi um dos fundadores do PT no Espírito Santo e atuou
no MEP.

A virada para um sindicalismo combativo


O censo populacional de 1980 indicou que, pela primeira
vez, o Espírito Santo passava a ter uma população mais urbana do
que rural. Os “Grandes Projetos” estavam quase todos finalizados,
faltando apenas inaugurar a Companhia Siderúrgica de Tubarão,
o que ocorreu em 1983. Já existiam o Fundo de Desenvolvimento
das Atividades Portuárias (FUNDAP) e o Fundo de Recuperação
Econômica do Espírito Santo (FUNRES), ambos administrados pelo
BANDES. Com isso, concluiu-se a transição para o capitalismo no
estado. A economia cafeeira havia se revitalizado, mas, ao contrário
do passado, o financiamento via bancos se tornava dominante.
Assim, no Espírito Santo, as antigas oligarquias rurais
começaram a ceder espaço para as novas oligarquias urbanas, que se
aliaram ao grande capital. Antes disso, o Sindibancários/ES dirigia
uma base pequena, numa realidade na qual os bancos serviam mais ao
comércio e aos “coronéis”. Nestas circunstâncias, a participação nas
lutas sociais dependia bastante do advento de conjunturas nacionais
favoráveis ao tensionamento político. Na década de 1980, porém,
as mudanças ocorridas criaram condições para o surgimento de
um projeto alternativo de mobilização social, do qual os bancários
capixabas tomaram parte. Foi a primeira vez na história do país que os
trabalhadores e trabalhadoras conseguiram criar uma central sindical
nacional, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), referenciada nos
princípios de igualdade e solidariedade, e com o objetivo de dirigir a
luta dos trabalhadores da cidade e do campo por melhores condições
de vida e de trabalho e por uma sociedade mais justa e democrática.
Fez parte desse contexto também a criação e fortalecimento do
Partido dos Trabalhadores (PT), que propunha na época um projeto
de socialismo para o Brasil, além dos movimentos de luta pela terra,
como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

28
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Desta forma, se constituiu a proposta de um sindicalismo


combativo. A oposição começou a se organizar entre os bancários
em 1979, com presença nas assembleias, que se tornaram mais
concorridas, por conta da onda inflacionária. Em 1982, deu-se a
eleição mais concorrida da história da entidade, com a participação de
três chapas. Uma delas representava a continuidade da linha política
anterior, mas com uma diferença, que foi a incorporação do PCB,
por intermédio de Valmir Castro Alves. Outra chapa contava com
militantes do PT (MEP e APML), encabeçada por Eduardo Machado,
enquanto a terceira vinha com o PCdoB e uma dissidência do PCB, e
foi encabeçada por João Amorim Coutinho.
O pleito foi muito disputado, resultando em dois escrutínios
e acusações de manipulação dos votos. O fato é que a divisão entre PCB,
PCdoB e PT deu sobrevida ao grupo que assumiu a entidade durante a
Ditadura. Após esta experiência, os membros da chapa que perderam
as eleições iniciaram uma aproximação e começaram a se organizar
conjuntamente. Como instrumento de debate e disputa, esse grupo
lançou o jornal Mobilização Bancária (MoB). As críticas veiculadas em
suas páginas eram respondidas pelo periódico do Sindicato, o Correio
Bancário, criado em 1979, mas que só passou a ter regularidade em
1983, o mesmo ano de criação do MoB. As críticas faziam menção ao
investimento em assistencialismo e aos projetos sindicais, mas o pano
de fundo era o debate de projeto político, sobre a concepção e prática
sindical do grupo dirigente – principal divergência com a oposição.
A diretoria acabou tendo divisões internas. Uma delas foi
provocada, inclusive, pelo “direito” que seus membros tinham de
indicar cargos no BANESTES. Na eleição de 1985, Valmir Castro
Alves encabeçou a chapa da situação, que, por sua vez, não teve o apoio
de todos os setores conservadores. Enquanto isso, PT e PCdoB, por
estratégia da CUT, optaram por disputar a eleição de forma unificada,
vencendo o pleito. Vale notar que, enquanto os militantes do PT
tomaram a decisão de disputar espaço nas estruturas estabelecidas
implantando uma nova concepção sindical, com uma perspectiva
democratizante, classista e transformadora, o PCdoB seguia a lógica
do seu projeto de transição democrática, moderado, buscando ocupar

29
Das utopias ao Autoritarismo

espaços na direção de entidades para acumular forças e formar


quadros.
Foi assim que o Sindibancários/ES ingressou numa nova
fase, caracterizada por uma linha política mais à esquerda, que teria
posteriores evoluções, e em conexão com a novidade que surgiu
durante a Ditadura, que foi a unificação do sindicalismo bancário,
de patrões e empregados, nacionalmente. Este aspecto teve grande
importância para o desenvolvimento de uma prática política-sindical
voltada para a realidade da categoria no país, mesmo tendo em vista
as especificidades locais.

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Movimento Feminino Pela Anistia e as


mobilizações pela Anistia nos núcleos do Ceará, do
Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e de Minas
Gerais (1975-1979)
Maria Heloiza Batista Lourenço1
Pedro Ernesto Fagundes2

“Força ninguém tem, força se cria, e espaço


político a gente conquista.”
Therezinha Godoy Zerbini

Introdução
O surgimento do Movimento Feminino pela Anistia
(MFPA) coincide com a celebração do Ano Internacional da Mulher
(1975), data escolhida pela ONU, e com as comemorações dos 30
anos da anistia política após o fim da ditadura do Estado Novo (1937-
1945). É impossível falar do MFPA sem associar essa organização a
figura de sua fundadora: Therezinha Zerbini. Em 1975, declarado
ano Internacional da Mulher pela Organização das Nações Unidas
(ONU), criou junto com outros familiares de presos desaparecidos
políticos do Movimento Feminino Pela Anistia (MFPA). Therezinha
Zerbini proferiu uma fala durante essa Conferência Internacional
sobre as mulheres, realizada na cidade do México.
Participar do evento, organizada pela Organização das

1  Graduada em História pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES,


desenvolve pesquisa sobre o período da Lei da Anistia no Brasil no Grupo de Estudos
sobre a Ditadura Militar.
2  Pedro Ernesto Fagundes é Doutor em História Social pela UFRJ. Atualmente
é professor de História e Memória do Departamento de Arquivologia da UFES.
Também é professor permanente do Programa de Pós-Graduação em História da
mesma universidade (PPGHIS/UFES). Essa pesquisa contou com apoio da Fundação
de Amparo à Pesquisa do estado do Espírito Santo (FAPES), por meio do edital
Pesquisador Capixaba.

33
Das utopias ao Autoritarismo

Nações Unidas (ONU), como um dos marcos do Ano Internacional


das Mulheres, serviu de inspiração para a futura líder das militantes da
Anistia. De fato, pouco depois, em 23 de junho de 1975, Therezinha
Zerbini junto com um grupo de mulheres paulistas, fundou o primeiro
núcleo da entidade.
Nesses primeiros momentos as militantes concentraram
suas atividades em reuniões, visitas á outras lideranças políticas e
religiosas. Também foram adotadas outras atividades, entre elas: atos
públicos, lançamento de manifestos, coleta de abaixo-assinados e até
mesmo a edição de um jornal, em 1977, chamado “Maria Quitéria”.
Uma das primeiras atividades do movimento foi lançar um documento
apresentando as principais propostas e objetivos da organização.
Assim, surgiu o chamado “Manifesto da Mulher Brasileira em favor
da Anistia”, texto que marca a fundação do MFPA:
Nós, mulheres Brasileiras, assumimos nossas
responsabilidades de cidadãs no quadro político nacional.
Através da História, provamos o espírito solidário da
Mulher, fortalecendo aspirações de amor e justiça. Eis
porque, nós nos antepomos aos destinos da nação, que
só cumprirá a sua finalidade de Paz, se for concedida a
ANISTIA AMPLA E GERAL a todos aqueles que foram
atingidos pelos atos de exceção. Conclamamos todas as
Mulheres, no sentido de se unirem a este movimento,
procurando o apoio de todos quantos se identifiquem com
a ideia da necessidade da ANISTIA, tendo em vista um dos
objetivos nacionais: A UNIÃO DA NAÇÃO! (ZERBINE,
1979, p.27).
O aparecimento do MFPA evidenciou o pioneirismo
feminino na campanha pela Anistia no Brasil (BARRETO, 2011).
Internamente, a conquista da Anistia, segundo os documentos da
entidade, seria um direito do povo. Ou seja, logo, não resultaria de
uma mera concessão do regime militar. Nesse prisma, essa meta seria
alcançada através da pressão da sociedade. Dessa forma, a Anistia
seria um passo fundamental para o retorno do Estado Democrático
de Direito no país.
Entretanto, é sempre importante destacar o contexto

34
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

político carregado da criação do MPFA para compreendermos os


limites políticos que marcaram a época da fundação da organização.
O mandato do general Geisel estava ainda em seus primeiros anos,
ou seja, a censura, a Lei de Segurança Nacional (LSN), a cassação
de mandatos de parlamentares da oposição e, sobretudo, o aparato
regressivo estava em pleno funcionamento.
Segundo Fabíola Brigante Del Porto, na visão dessas
mulheres, a Anistia não era entendida como um pedido de perdão,
mas sim um “[...] instituto de Direito, um ato que promoveria a
reconciliação da nação consigo mesma” (DEL PORTO, 2002, p. 84).
Nesse momento, o grupo já é constituído por 10 mulheres. Além
de Therezinha Zerbine e sua filha Eugênia Cristina, faziam parte do
Movimento: Aldenora de Sá Porto, Virgínia Lemos Vasconcellos,
Neusa Cunho Mello Franco, Margarida Pereira Neves Fernandes, Lila
Galvão Figueiredo, Yara Peres Santestevan, Cristina Sodré Dória e
Ana Lobo.
Em 15 de dezembro de 1975 é eleito o concelho diretor do
Movimento, sediado em São Paulo. Terezinha Zerbini é oficializada
como presidente. Rapidamente o MFPA se espalha pelo país em
formato de núcleos. Mas, antes de tratarmos da organização da
entidade, gostaríamos de apresentar alguns dados de uma das
personagens mais importantes da transição democrática: Thezerinha
Zerbini.

Therezinha Zerbini
E impossível falar do MFPA sem associar essa organização
a figura de sua fundadora: Therezinha de Godoy Zerbini. Nascida em
12 de dezembro de 1928, em São Paulo, Therezinha Zerbini, como era
mais conhecida, casou-se em 1951, com Euryale de Jesus Zerbini, um
militar de carreira que, em 1964, ocupou a posição de comandantes da
guarnição de Caçapava (LEITE, 2012).
Como inúmeros militares que se opuseram ao Golpe de 1964,
o general Euryale de Jesus Zerbini sofreu uma serie de perseguições

35
Das utopias ao Autoritarismo

e teve sua carreira militar afetada por defender a legalidade. Por


esse motivo, Therezinha Zerbini nunca concordou com a prisão do
companheiro, pois afirmava que ele havia sido preso por se recusar a
participar do golpe militar de 1964. A situação do marido, um militar
cassado, serviu para aproximar Therezinha Zerbini da oposição ao
governo militar.
A prisão do general Euryale Zerbini somado as primeiras
ações reivindicatórias de Zerbine contra o regime militar, permitem
que ela e seu esposo tenham contato com alguns seguimentos de
resistência a ditadura, entre eles setores progressistas assim como
a Igreja e o movimento estudantil. Em 1968, Frei Tito, através de
contatos com a família Zerbini consegue um sítio para a realização de
um congresso – que viria a ser o XXX Congresso Nacional da União
Nacional dos Estudantes.
Como destacou numa entrevista para Paulo Moreira
Leite, em diversas oportunidades, a futura líder do MFPA arrecadou
dinheiro para colaborar com perseguidos políticos (LEITE, 2012).
Numa dessas ocasiões. Therezinha Zerbini encaminha o pedido a um
amigo de seu esposo, que concede um sítio no interior do estado de
São Paulo, na cidade de Ibiúna.
Em outubro de 1968 centenas de jovens se encontram no
sítio para a realização do congresso. No entanto, durante os trabalhos
dos agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) a
maioria dos estudantes foi presa, inclusive Frei Tito. A “queda” do
Congresso de Ibiúna motivou Therezinha Zerbini a colaborar na
criação do movimento das Mães Paulistas contra a violência, depois
das prisões dos estudantes.
Em decorrência dessa militância e das investigações sobre
o congresso, em novembro de 1969, Therezinha Zerbini foi presa.
Alguns meses depois Zerbini foi libertada. Entretanto, em 1970,
despois de condenada com base da Lei de Segurança Nacional (LSN),
a futura líder do MFPA, passou mais alguns meses na prisão.
A frente do MFPA, segundo DUARTE (2012), Therezinha
Zerbini ficou marcada por sua postura considerada por alguns como

36
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

“durona” e “autoritária”. Por essa razão, sua posição e forma de


ação dentro do MFPA causaram discordância com integrantes de
alguns núcleos pelo país, como veremos de forma mais detalhada no
tópico sobre o núcleo cearense. Nos próximos tópicos, procurando
“reencontrar” a história da participação dessas militantes e a transição
democrática brasileira, pretendemos analisar os núcleos da entidade
nos seguintes estados; Ceará, Minas Gerias, Rio Grande do Sul e Santa
Catarina.

Os núcleos do MFPA: Ceará


O núcleo cearense, do Movimento Feminino pela Anistia
em Fortaleza, foi fundado no dia 16 de março de 1976, em Fortaleza.
A frente do MFPA/CE, como presidente, estava Nildes Alencar Lima,
irmã do Frei Tito. Como muitos outros católicos de sua geração, Nildes
Lima iniciou sua atuação política Juventude Estudantil Católica (JEC)
e na Juventude Independente Católica.
No ano de 1975, Lima foi convidada por Zerbini
para participar do MFPA, quando seu irmão já havia falecido.
Contrariando sua família que receava que outro membro da família
sofresse perseguição. Até 1979 Lima foi a única presidente do núcleo.
Profissionalmente atuava como pedagoga.
Uma peculiaridade do núcleo MFPA/Ceará foi o fato
de, internamente, existirem dois grupos que atuavam na entidade.
Duarte (2012) indica que um desses grupos adotava uma postura
mais politizada. Essas militantes eram conhecidas como o “Grupo da
Maria”. O nome era uma menção a Maria Luíza Menezes Fontenele,
uma das líderes do grupo.
Ainda segundo Duarte (2012), Fontenele era professora
universitária da Universidade Federal do Ceará (UFCE). Destacou-
se por ser uma figura carismática e popular da política cearense. Em
1978 foi candidata à deputada estadual pelo MDB, e vinculou-se a
causa da anistia. Engajou-se na política formal juntamente ao MFPA/
Ceara como uma forma de escapar da repressão.

37
Das utopias ao Autoritarismo

Durante o período de militância no MFPA, o “Grupo da


Maria” identifica-se com ideias ligadas ao Partido Comunista do Brasil
(PC do B), apesar de possuir algumas “dissemelhanças com o Partido
e apontar uma atuação mais independente” (DUARTE, 2012, p. 161).
Para Maria Luíza Fontenele, o Grupo teria percebido na fundação
do núcleo local do MFPA a possibilidade de criar e articular outros
movimentos sociais. Obviamente que a noção de luta pela Anistia era
partilhada pelo “Grupo da Maria”, porém, havia o interesse em outras
bandeiras políticas, bem como a derrubada do sistema capitalista.
Por outro lado, o outro grupo era composto pelos familiares
de presos políticos. Estas militantes interpretavam a ação do “Grupo
da Maria”, no interior do MFPA/Ceará, de forma crítica. Isto porque,
pensavam que essas práticas mais radicais poderiam comprometer o
objetivo central da entidade: a libertação dos seus parentes. Na visão
do grupo de familiares, o posicionamento do Grupo subvertia a
bandeira principal do MFPA.
As ações do Movimento eram decididas em reuniões feitas
inicialmente de forma quinzenal. Posteriormente, esses encontros
passaram a acontecer semanalmente, que ocorriam primeiramente
em Igrejas, salões paroquiais e na sede do MDB, e posteriormente,
na escola infantil Instituto Alencar, estabelecimento que pertencia a
Nildes Alencar. Na opinião de Duarte (2012) a questão da visibilidade
do MFPA/CE era uma das fontes de discordância: para os familiares
era necessário agir de forma discreta; para as mais politizadas, era
preciso reunir mais pessoas a fim de ganhar mais visibilidade e apoio
público, como estratégia política.
Um aspecto em comum acordo para todo o Movimento
seriam as manifestações públicas, porém, havia discordância em
como se colocar nos espaços escolhidos. Um exemplo de manifestação
pública seriam as vigílias, feitas em solidariedade as greves de fome
realizadas pelos presos políticos, e essas dividiam muitas opiniões
e conflitos. Os eventos se transformavam em ato de protesto, mas
também de sofrimento familiar explícito, e a disputa se iniciava ainda
nas reuniões de preparação, e davam-se pela escolha de canções, ou
até mesmo sobre os discursos que seriam expostos.

38
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

No MFPA/Ceará, a relação estabelecida entre as militantes


da Anistia e a Igreja é feita através da pessoa de Dom Aloísio
Lorscheinder que “estava à frente da Arquidiocese de Fortaleza, da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do Conselho
Episcopal Latino-Americano” (DUARTE, 2012, p. 175).
O apoio de Dom Aloísio também se tornou outro ponto
de conflito. Para os familiares, a presença do arcebispo deveria ser
utilizada em situações de maior dificuldade para os presos políticos.
Para o “Grupo da Maria”, deveria ser utilizada a presença do arcebispo
no avanço da luta, envolvendo a Igreja nas ações de expansão do
MFPA, mesmo que esse apoio não fosse discutido com a diretoria.
Contudo, tal situação gerava nova discordância.
É necessário salientar, que assim como buscaram apoio da
Igreja, o MFPA buscava apoio também de outras entidades, tais como:
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Movimento Democrático
Brasileiro (MDB) e, individualmente a intelectuais e escritores. Esse
apoio visava à abertura de espaços em que as militantes pudessem se
expressar. Para além dos conflitos internos, o MFPA/Ceará também
protagonizou embates com a presidente nacional do movimento,
Therezinha Godoy Zerbini. Nesse aspecto, apoiar ou discordar das
ideias da presidente, se consolidou como um dado a mais na disputa
entre familiares e o “Grupo da Maria”.
Therezinha Zerbini participava ativamente das ações do
núcleo, através de visitas a este, ou mesmo de longe, por meio de
cartas. Acompanhando o cotidiano do Movimento, Therezinha
Zerbini pensava estar evitando a utilização do MFPA por partidos ou
organizações políticas, que poderiam desvirtuar a luta específica do
grupo. Apesar dos esforços de Zerbini, como destacamos, grupos com
ligações partidárias participavam da entidade.
A ampliação dos objetivos do MFPA, na luta não só pela
anistia, mas principalmente pelo enfrentamento dos militares, foi um
dos principais pontos de conflito. Outro motivo de discórdia foi a
adaptação forçada pelo “Grupo da Maria” em permitir a presença de
homens nas atividades do MFPA/CE (DUARTE, 2012, p. 186). Um

39
Das utopias ao Autoritarismo

relatório com propostas para o Congresso Nacional da Anistia, em


outubro de 1978, demonstra a tentativa em tornar os núcleos locais
do MFPA mais autônomos, com a possibilidade de elaboração do
próprio estatuto. Entretanto, Zerbine refuta a ideia, afirmando que o
Movimento era uma entidade própria, legal e com estatuto registrado
em cartório, na cidade de São Paulo.
No Ceará, como dissemos, a participação de homens em
reuniões do Movimento ocorria livremente, e este foi outro ponto
de discordância estabelecido com a presidente. Haja vista, que,
a participação de homens no Movimento era vetada no Estatuto
Nacional. A ampliação na discussão pela luta da anistia foi outro
aspecto de discordância entre o núcleo do Ceará e Zerbine.
Esse debate foi realizado com outras entidades, como o
Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), por meio do projeto apresentado
pelo governo de João Batista Figueiredo. O MFPA, em seu início, não
defende uma anistia ampla, geral e irrestrita. Segundo Duarte (2012),
inicialmente, o MFPA defendia um modelo de anistia ampla e geral.
Na prática essa visão que significava não apoiar a anistia de acusados
de crimes de sangue. Ou seja, crimes em que o enfrentamento tenha
ocasionado derramamento de sangue.
O fato de ser registrado em cartório e estar composto por
um público predominantemente feminino não isentou o MFPA
de ser vigiado pelos órgãos repressivos. Basta verificar, segundo
Duarte (2012), que policiais disfarçados eram enviados as reuniões,
inclusive aquelas que ocorriam nas igrejas. Militantes eram seguidas
e fotografadas, até mesmo durante o dia. Mas, o ato mais expressivo
foi sofrido por Maria Luíza Fontenele que, segundo Duarte (2012)
foi ameaçada de morte e alertada sobre a possibilidade de ser vítima
de flagrante de porte de drogas. A seguir trataremos dos núcleos do
MFPA nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

Os núcleos do MFPA na região Sul


Segundo RODEGHERO; DIENSTMANN; TRINDADE

40
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

(2011), o núcleo do MFPA no Rio Grande do Sul surgiu em 20 de junho


de 1975. O evento de fundação foi realizado na sede da Associação
Rio-Grandense de Imprensa (ARI). Nessa mesma reunião, Lícia
Margarida Macêdo de Aguiar Peres foi eleita presidente do MFPA/
RS. Lícia Peres, como era conhecida, na época era estudante do curso
de Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRS).
Essa militante do movimento estudantil era casada com
Glênio Peres, vereador do Movimento Democrático Brasileiro (MDB),
em Porto Alegre. Segundo as autoras, Peres foi procurada por Dilma
Rousseff, que na época cursava Economia na mesma universidade.
Rousseff, que havia convivido com Therezinha Zerbini no Presidio
Tiradentes. Assim, a ex-presidiária política e futura presidente do
Brasil, foi uma das incentivadoras da criação do núcleo do MFPA/RS
(RODEGHERO; DIENSTMANN; TRINDADE, 2011 p.32).
Lícia Peres aceitou a proposta feita por Dilma Rousseff
e imediatamente iniciou o processo de recrutamento de novas
militantes para a entidade. Nesse processo, Peres convidou algumas
figuras importantes para a atuação do MFPA, entre elas: a escritora
Zulmira Guimarães Cauduro – conhecida como Mila Cauduro – que
havia se candidatado a deputada estadual, em 1974, pelo MDB. A
anistia foi uma das bandeiras defendidas por Cauduro. Outra figura
convocada foi Enid Backes, ligada a Associação dos Sociólogos do Rio
Grande do sul.
Inicialmente, Mila Cauduro presidiu o núcleo gaúcho no
período compreendido entre 1976 a 1979. Sua área de atuação pública
permeava a assistência social, literatura e a política. Atuou ainda na
Legião Brasileira de Assistência, da Associação Sul-Rio-Grandense aos
Lázaros e Defesa contra a Lepra, do Centro Social Frederico Ozanam
(RODEGHERO; DIENSTMANN; TRINDADE, 2011).
Ainda no âmbito partidário, Cauduro participou da
fundação do Partido Democrático Trabalhista (PDT), em 1979, onde
foi eleita vice-presidente nacional. Foi pré-candidata à suplência do
Senado em 1978, porém teve sua candidatura rejeitada pelo Diretório

41
Das utopias ao Autoritarismo

Regional do MDB. As principais reinvindicações do núcleo gaúcho


do MFPA, além da questão da anistia, empreendiam duas bandeiras
distintas: a primeira seria defender todos os atingidos no seu direito
de homem e cidadão, que estava assegurado na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, além de lutar pela anistia ampla, visando à
pacificação da família brasileira.
A segunda era:
promover a elevação cultural, social e cívica da mulher,
através de cursos, palestras e atuações no desenvolvimento
de sua consciência moral e cívica, alertando-a e orientando-a
para a compreensão de suas responsabilidades perante
a sociedade e integração da família na comunhão social
(RODEGHERO; DIENSTMANN; TRINDADE; 2011
p.130).
Nesse sentido, podemos afirmar que a campanha do MFPA/
RS possuía dois pilares: a obtenção da anistia e a conquista pelo direito
de lutar, do espaço para a participação política.
O MFPA/RS, assim como outros núcleos em outros estados,
procurou apoio da Igreja Católica na pessoa do Cardeal Dom Vicente
Scherer, que estava à frente da Arquidiocese de Porto Alegre. As
integrantes do Movimento procuraram o Cardeal e utilizaram como
argumento o pronunciamento feito por Dom Paulo Evaristo Arns,
arcebispo de São Paulo, que pedia além da anistia a presos políticos,
o julgamento público de todos os acusados de crimes políticos e a
proteção legal de defesa.
As mulheres solicitaram a celebração de uma missa pela
pacificação da família brasileira, mas, não receberam de Dom Vicente
o apoio esperado. Para o Cardeal, era necessário analisar o Manifesto
e as consequências da sua participação em uma atividade de cunho
político. Na opinião do religioso, era preciso dissociar os presos
políticos daqueles que estavam presos “implicados pelo Código Penal”
(RODEGHERO; DIENSTMANN; TRINDADE, 2011, p.38).
As autoras descrevem uma particularidade importante do
MFPA/RS, a presença de mulheres que tinham relações familiares

42
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

com lideranças políticas exiladas, como podemos observar no trecho:


Quando D. Vicente se levantou, num gesto de despedida,
quatro senhoras de meia-idade e bem vestidas se
aproximaram do Cardeal:
- Estamos aqui por causa do nosso irmão.
- Gostaria de abraçar o Jango aqui, disse o Cardeal.
- O Senhor abraçará todos um dia, respondeu uma das
irmãs do ex-presidente. Quando D. Vicente reconheceu
Francisca Rotta Brizola, perguntou:
- E ele, como está?
- Bem de saúde e com saudade dos amigos, respondeu a
irmã do ex-governador (RODEGHERO; DIENSTMANN;
TRINDADE, 2011, p.39).
Dessa forma, quatro irmãs de Jango se fizeram presentes:
Maria Goulart Macedo, Iolanda Goulart, Maria Goulart Dorneles
e Cila Goulart de Moura Vale. Cauduro tinha laços de compadrio
com Brizola (RODEGHERO; DIENSTMANN; TRINDADE, 2011,
p.39). Observamos então que o objetivo de unir e pacificar a família
brasileira que estava presente nos escritos do MFPA não era uma
questão apenas teórica. Como destacamos, o núcleo era composto por
familiares de exilados que lutavam para o reestabelecimento de sua
própria família. Características que não foram registradas nos outros
dois núcleos analisados nesse trabalho.
Logo após o lançamento do núcleo gaúcho, a primeira
ação empreendida pelo grupo de mulheres foi o recolhimento de
assinaturas visando apoio ao Manifesto da Mulher Brasileira. Além
disso, havia a busca por apoio e adesão ao Movimento em cidades do
interior de Porto Alegre.
Portanto, no ano de 1975, as principais atividades
empreendidas pelo MFPA/RS foram a coleta de assinaturas e a entrega
de abaixo-assinados e do Manifesto para as lideranças da Câmara
Federal e do Senado, e também para o Presidente da República.
Somadas, essas assinaturas chegaram a 12 mil e foram entregues às
autoridades em Brasília. É necessário salientar que esse panorama

43
Das utopias ao Autoritarismo

descrito a cima deu destaque ao MFPA/RS no que diz respeito ao


quadro nacional da entidade.
O trabalho realizado pelas integrantes do MFPA/RS quanto
à coleta de assinaturas fez com que a população em geral, segunda a
autoras, tivesse boa receptividade. Ademais, passaram a contar com o
apoio do setor jornalístico para a divulgação das atividades do núcleo
em prol da anistia.
Segundo RODEGHERO; DIENSTMANN; TRINDADE,
(2011), foi realizada uma parceria entre o MFPA/RS e o Movimento
Democrático Brasileiro (MDB). Mesmo que o MFPA/RS se
declarasse apartidário – inclusive essa era uma postura duramente
defendida por Therezinha Zerbini, como já demonstramos nesse
trabalho – suas militantes participavam dos comícios do partido
divulgando a bandeira da anistia, buscando apoio de parlamentares
e pressionando o MDB para que tomasse posições mais firmes na
defesa da anistia. Além de estabelecer contato com o Setor Feminino
do partido, estreitaram alianças com Setor Trabalhista e o Setor
Jovem medebista.
O segundo núcleo da região sul foi organizado na cidade de
Florianópolis. O MFPA/SC foi fundado em 27 de novembro de 1977. A
formação desse núcleo está diretamente ligada a chamada “Operação
Barriga Verde”. Essa ação das forças de segurança foi executada na
cidade de Florianópolis em novembro de 1975. Segundo SILVA
(2015), em sua pesquisa sobre a atuação das mulheres catarinenses na
luta pela anistia, essa operação foi uma ação conjunta dos órgãos de
repressão que pretendiam encontrar e capturar os principais membros
do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no Estado.
As ações empreendidas por essa Operação foram
extremamente violentas, inclusive, segundo SILVA (2015), contaram
com a participação de integrantes do Destacamento de Operações de
Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-CODI.
No total, foram presas 41 pessoas, entre estes professores e estudantes
da Universidade Federal de Santa Catarina. Todos os detidos foram
presos sob a alegação de pertencerem ao PCB.

44
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Devido aos desdobramentos da “Operação Barriga


Verde”, o movimento estudantil da UFSC organizou-se e foram
tomadas as primeiras providências para a estruturação do MFPA/
SC. Os militantes de ambas as entidades trabalhariam juntos visando
auxiliar os familiares das pessoas atingidas pela “Operação Barriga
Verde”.
Nessa fase inicial, coube Margaret Grando, estudante
da UFSC, realizar os primeiros contatos com Therezinha Zerbini.
Grando transportou de São Paulo para Florianópolis o material de
divulgação necessário para o inicio do trabalho, entre eles: jornais,
documentos.
Além disso, ela teria entrado em contato com as esposas
dos presos Marcos Cardoso Filho e Roberto Motta, respectivamente,
Marise Maravalhas e Maria Rita Bessa Motta, para colaborar no início
das atividades do MFPA/SC. Semelhante a outros núcleos estaduais,
em Santa Catarina, o núcleo local também encontrou apoio da Igreja
Católica, em especial, na figura do Bispo Dom Afonso Niehues.
Inclusive, devido ao reduzido número de militantes, várias
reuniões aconteciam na Cúria Metropolitana de Florianópolis,
conhecida como “Casa do Bispo”. Dom Afonso também teve grande
importância nas diversas cartas trocadas com órgãos da Anistia
Internacional, onde explicava a situação brasileira e solicitava ajuda
(SILVA, 2015, p. 57).
As principais atividades das militantes do MFPA/SC
foram: a distribuição de informativos sobre a questão da Anistia, que
inclusive continha denúncias sobre as condições dos presos políticos
e também de seus familiares. Foi lançado também, em 07 de agosto
de 1977, um manifesto intitulado “Por uma Anistia Ampla, Geral e
Irrestrita”, documento elaborado em resposta ao projeto de anistia do
governo militar enviado ao Congresso Nacional. Nesse documento
as críticas estavam direcionadas a previsão de uma anistia restrita e
parcial (SILVA, 2015, p. 56). No próximo tópico apresentaremos a
trajetória do núcleo de Minas Gerais.

45
Das utopias ao Autoritarismo

Os núcleos do MFPA: Minas Gerais


Em junho de 1977 foi fundado em Belo Horizonte o núcleo
mineiro do Movimento Feminino pela Anistia. O núcleo mineiro foi
o terceiro, antecedido por São Paulo e Rio de Janeiro. Inicialmente,
reuniu cerca de 300 mulheres.
Na Assembleia de fundação do MFPA/MG foi discutido e
decidido que os objetivos básicos do Movimento seriam:
anistia dos presos e exilados; apoio e desenvolvimento de
diversas atividades em defesa dos Direitos Humanos e das
Liberdades Democráticas; defesa dos direitos da mulher
(BARRETO, 2011, p. 89).
No que tange aos direitos da mulher, existia uma luta
contra a discriminação em relação à sociedade patriarcal e machista
brasileira. Ainda nessa Assembleia, Helena Grecco foi eleita para
ocupar a presidência do MFPA/MG.
Em um primeiro momento, a bandeira de luta do MFPA/
MG seria a questão da anistia e a violação dos direitos humanos.
Durante o caminho de luta, outras bandeiras foram agregadas a estas,
tais como racismo, condições de vida de populações mais carentes,
incluindo menores de idade.
A partir de 1978, ocorreu dentro do núcleo uma preocupação
com relação a sua expansão. A intenção era que a luta pela anistia
fosse ampliada e divulgada entre outros setores da sociedade. Sendo
assim, a partir desse ano iniciou-se uma campanha pela expansão do
MFPA/MG para o interior das cidades de mineiras. A cidade de Juiz
de Fora seria a mais visada, isto porque no local existia um presídio,
onde estavam quatro presos políticos.
Sobre a organização BARRETO (2011) afirma que o núcleo
mineiro era administrado em forma de Regimento Interno, pelos
órgãos: Assembleia Geral, Diretoria Executiva, Conselho Geral e
Conselho de Representantes. A Assembleia Geral era o órgão máximo
do MFPA. Constituía-se em uma reunião das sócias convocadas de
acordo com o Estatuto e Regimento Interno do MFPA/MG.

46
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A convocação era feita com dez dias de antecedência.


Somente associadas poderiam votar nas decisões da Assembleia. As
deliberações da Assembleia eram tomadas pela maioria. Não seriam
contados votos em branco. As reuniões eram feitas uma vez por ano,
geralmente no mês de dezembro e, extraordinariamente, quantas
vezes fossem necessárias, após ser convocada pelo Conselho Geral,
Diretoria Executiva e Conselho de Representantes.
Quanto a Diretoria Executiva, seu mandato seria de
dois anos, podendo haver reeleição sendo composta por quatro
membros: Presidente, Vice-Presidente, Secretária Geral e Tesoureira.
O Conselho Geral era composto por sete membros e dois suplentes
eleitos em Assembleia Geral. Os mandatos do Conselho Geral e da
Diretoria Executiva eram concomitantes.
As integrantes do MFPA/MG organizavam-se em grupos de
base que discutiam e encaminhavam as atividades do Movimento. Em
1978, ainda segundo BARRETO (2011), o núcleo contava com vinte
grupos, separados de acordo com interesses comuns ou de bairros.
Cada grupo contava com cerca de 10 integrantes. Havia também
algumas comissões, formadas por pessoas de diferentes grupos, que
eram convocadas para realizar tarefas específicas do Movimento.
As atividades desenvolvidas pelo núcleo mineiro variavam
em diversas frentes: desde trabalhos assistenciais, assim como visitas
aos presos políticos, até os trabalhos de natureza política, como
confecções de boletins de protestos contra a ditadura militar, e a favor
da anistia política e em defesa dos direitos humanos.
Outras atividades realizadas pelo MFPA/MG foram:
manifestações públicas; apoio às greves de fome feita pelos presos
políticos dos presídios de Itamaracá, Bangu e Frei Caneca; envio de
cartas a grupos da Anistia Internacional e a outros comitês no exterior
e panfletagens. Ainda na área de divulgação, o núcleo mineiro chegou
a editar boletins oficiais da entidade. Nos informativos as militantes
adotavam uma linguagem acessível. A intenção era atingir todos os
setores da sociedade.

47
Das utopias ao Autoritarismo

Algumas conclusões:
O MFPA deveria se consolidar como um espaço de luta
reservado apenas para mulheres. Segundo Zerbini, essa característica
seria uma “estratégia de guerra” (DUARTE, 2012, p. 74). Ainda
segundo essa dirigente, essa seria a única forma do movimento ter
visibilidade: incomodando o governo militar.
Ainda nesse sentido, o MFPA utilizou aquilo que Duarte
(2012), denomina de “jogo de gênero”. Segundo essa estratégia,
as mulheres utilizavam a seu favor o pensamento disseminado na
sociedade de “mães”, “pacificadoras” e até “apolíticas”:
Jogavam com o gênero, interpretando o mito de
guardiã do lar, com suas características de fragilidade,
emotividade, ignorância política [...]. Sua força, segundo
Capdevila, repousa justamente sobre a atitude de
confundir as outras facetas de identidade: mulheres
corajosas; determinadas; animadas pelo pensamento
político sobre as quais desliza o estereótipo do feminino
doméstico (DUARTE, 2012, p. 49).
Assim, é necessário problematizar a importância histórica
da utilização do gênero como estratégia de luta empreendida por essas
mulheres. Como DUARTE (2012) exemplifica tal estratégia também
foi utilizada no movimento político argentino conhecido como
Madres da Plaza de Maio3.
Em seus protestos contra a ditadura argentina, esse grupo
de mulheres utilizava como símbolo um lenço branco cobrindo suas
cabeças. A intenção era reportar essa imagem a figura da mãe/avô/
esposa em busca do filho/neto/esposo desaparecidos. Ainda segundo
a autora, essas mulheres jogaram com o gênero utilizando-o em sua
causa política. No entanto, tal estratégia resultou em embates com
grupos feministas e homens que desejavam participar do Movimento.
Por último, gostaríamos de registrar um fato que se destacou
no decorrer da pesquisa sobre o MFPA: o espaço reduzido sobre a
3  As “Mães da Praça de Maio” é uma organização de mulheres da Argentina
(mães, avós) que tiveram seus filhos e netos desaparecidos por lutarem contra
ditadura civil-militar instaurada.

48
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

entidade no conjunto da literatura sobre a ditadura militar brasileira.


Ademais, a falta de documentos e bibliografia sobre a trajetória de
Threzinha Zerbini e suas companheiras, na atualidade, existem um
volume muito maior de obras sobre Comitê Brasileiro pela Anistia
(CBA).
Como demonstramos nesse trabalho, a luta pela anistia
foi uma luta em que as mulheres brasileiras assumiram um papel
de protagonistas. Inicialmente, através dos núcleos do MFPA, as
mulheres estiveram na linha de frente das mobilizações pela anistia.
Entretanto, nas últimas décadas esse protagonismo não motivou a
produção de um grande volume de pesquisas sobre o MFPA.
No geral, uma das explicações para essa situação deve-se
a “histórica” falta de espaço destinado às mulheres na História. Em
nossa opinião, os estudos sobre os núcleos estaduais do MFPA é
uma oportunidade para preencher essas páginas vazias. Seja como
for, finalizamos esse texto ressaltando a necessidade da ampliação de
trabalhos que recuperem o protagonismo do MPPA nas mobilizações
pela Anistia no Brasil.

Referências bibliográficas:
BARRETO, Anna Flávia Arruda Lanna. Movimento feminino pela anistia:
a esperança do retorno à democracia. Curitiba, PR: CRV, 2011.
DEL PORTO, Fabíola Brigante. A luta pela anistia no regime militar
brasileiro: a constituição da sociedade civil no país e a construção da
cidadania. 2002. 144f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de
Pós-Graduação em História, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo,
2002.
DUARTE, Ana Rita Fonteles. Jogos de memória: O Movimento Feminino
Pela Anistia no Ceará (1976-1979). Fortaleza: INESP, UFC, 2012.
DOM Paulo Evaristo Arns. Jornal Opinião. Rio de Janeiro. ed. 128, 18 abr.
1975.
LEITE, Paulo Moreira. A mulher que era o general da casa: história da
resistência civil à ditadura. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2012.
RODEGHERO, Carla; DIENSTMANN, Gabriel; TRINDADE, Tatiana.

49
Das utopias ao Autoritarismo

Anistia, ampla, geral e irrestrita: uma luta inconclusa. Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2011.
SILVA, Mariane Da. O Movimento Feminino Pela Anistia: o engajamento
e a participação das mulheres catarinenses entre 1975 e 1979. 2015. 2015. 95f.
Trabalho de Conclusão de Curso-Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2015.
ZERBINE, Therezinha Godoy. Anistia: semente da liberdade. São Paulo:
[s.n.], 1979.

50
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Abusos da ditadura militar contra as mulheres: o


uso da categoria violência de gênero
Ayala Rodrigues Oliveira Pelegrine1

Violência e gênero nas pesquisas sobre a ditadura militar


O período da ditadura militar no Brasil (1964-1985) conta,
atualmente, com uma volumosa produção bibliográfica no campo
da historiografia. Apesar disso, é curioso notar o predomínio de
determinados temas de dimensão exclusivamente política nas análises,
como o caráter militar ou civil-militar do golpe de 1964,2 a constituição
e atuação do aparelho repressivo,3 a luta armada de enfrentamento ao
regime4, a resistência civil-democrática e o movimento pela anistia5.
A historiografia, muitas vezes, ainda silencia o debate das questões
relacionadas ao regime sob uma perspectiva de gênero. Sobre isso,
MARCELINO (2011, p. 22) afirma que:
A discussão construída sobre os anos da ditadura, de
modo geral, tende a ressaltar somente a dimensão
política da censura que existia no período. Na verdade,
a época é lida, como um todo, sobretudo a partir da
chave política. Questões como o gênero e a sexualidade,
e outras relacionadas ao plano comportamental, quando
mencionadas, são tomadas apenas como epifenômenos de
uma variante política fundamental. Assim, a história do
Brasil entre 1964 e 85 tem sido reduzida a história política
da ditadura militar.
Conforme observa RAGO (2014, p. 7), além de política,
a história da ditadura militar é essencialmente androcêntrica. Ela
reflete as posições normativas de gênero, socialmente construídas
1  Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações
Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo.
2  Ver: ALONSO; DOLHNIKOFF (2015); DREIFUSS (1981); FICO (2004; 2014).
3  Ver: FICO (2001; 2003); MAGALHÃES (1997).
4  Ver: REIS FILHO (2000); RIDENTI (2004); ROLLEMBERG (2003); SALES (2015).
5  Ver: ALMEIDA; WEISS (1998); AQUINO (1999); CODATO (2005);
NAPOLITANO (2011).

51
Das utopias ao Autoritarismo

no interior de uma sociedade patriarcal, além da própria realidade


histórica dualista, que, ao considerar o sujeito humano universal
masculino, privilegia a participação dos homens no desenvolvimento
do espaço público e na politização da vida cotidiana, enquanto exclui
as mulheres por considerá-las a representação da esfera privada
(PERROT; HALL, 1991, p. 27).
Mais recentemente, algumas interpretações têm buscado
romper com esse aspecto tradicionalmente político e masculino das
abordagens sobre o período. O esforço por tal rompimento se dá na
esteira de um movimento maior de renovação da história, que vem
ocorrendo nas últimas décadas com a emergência de novos objetos e
perspectivas de análise. SOIHET (1997, p. 399-402) demonstra que,
com essa renovação, os pesquisadores passam a se debruçar mais
sobre temáticas e grupos sociais até então excluídos do seu interesse,
contribuindo diretamente para a introdução dos estudos sobre as
mulheres e sua atuação na esfera pública.
É importante destacar que essa expansão nos limites da
historiografia e consolidação do feminino como campo de pesquisa
são fenômenos favorecidos, reciprocamente, pela dinâmica social.
Ambos estão relacionados à emergência das campanhas feministas,
a partir da década de 1970, nos Estados Unidos e em outras regiões
do mundo – inclusive no Brasil, em pleno contexto autoritário. A
eclosão do movimento feminista serviu, duplamente, para apresentar
à sociedade as reivindicações das mulheres e provocar uma forte
demanda de informações sobre as questões que estavam sendo
debatidas, mobilizando estudantes e docentes pela criação, nas
universidades, de cursos destinados aos estudos das mulheres. Nessa
direção, TILLY (1994, p. 31) considera que:
[...] certamente toda história é herdeira de um contexto
político, mas relativamente poucas histórias têm uma
ligação tão forte com um programa de transformação e de
ação como a história das mulheres. Quer as historiadoras
tenham sido ou não membros de organizações feministas
ou de grupos de conscientização, quer elas se definissem
ou não como feministas, seus trabalhos não foram menos
marcados pelo movimento feminista de 1970 e 1980.

52
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Numa tentativa de acompanhar esse alargamento nas


fronteiras da pesquisa histórica e compreender o lugar as mulheres
durante a ditadura militar, algumas análises acabam adotando uma
ótica mais descritiva, que busca evidenciar a presença feminina e
tornar os fatos relacionados às mulheres “fatos da história” (TILLY,
1994, p. 41). Desse modo, concentram-se, sobretudo, na participação
feminina na resistência armada ao regime, focalizando o aspecto
da importância numérica nas organizações de guerrilha ou da
preponderância de algumas nos postos de comando e na elaboração
de estratégias e ações contra o governo.6
Presas a abordagens pouco analíticas, tais pesquisas se
limitam por não utilizar o gênero como categoria conceitual. De
acordo com SCOTT (1998, p. 5), tal categoria é interessante porque
permite compreender de que maneira as diferenças biológicas
entre fêmeas e machos se transformam em diferenças sociais
entre mulheres e homens, enquanto seres sociais culturalmente
construídos. Para SAFFIOTI (1999, p. 82), o gênero também é uma
categoria histórica, portador de símbolos culturais evocadores de
representações e conceitos normativos que permitem a produção de
significados, instituições sociais e identidades subjetivas. O gênero dá
sentido à organização social e cultural da diferença entre os sexos. Ele
representa o conjunto de normas, estabelecidas pela sociedade e pela
cultura, modeladoras dos seres humanos em homens e em mulheres,
que se expressam nas relações entre essas duas categorias e nos papeis
sociais que define para cada uma delas.
Segundo NADER (2002, p. 464-465), os papeis sociais
possuem como forma elementar e mais efetiva as relações de
gênero. Eles são duplamente determinados. Primeiramente, por
fatores biológicos, porquanto, antes mesmo do nascimento, os pais
delineiam a trajetória de vida dos filhos com base no sexo. Depois,
por fatores culturais, uma vez que a família é o primeiro meio social
a produzir no indivíduo os interesses culturais do ambiente histórico
em que se insere, reforçando as diferenças biológicas entre machos e
fêmeas. Tais determinações influenciarão diretamente nos padrões
6  Ver COLLING (1997); CARVALHO (1998); FERREIRA (1996).

53
Das utopias ao Autoritarismo

comportamentais e no desempenho das funções determinadas pelo


gênero, potencializando as diferenças entre mulheres e homens,
minimizando as características comuns de ambos e definindo as
hierarquias que serão, a todo tempo, manuseadas nas relações
sociais de poder.
Desconsiderando os conceitos de gênero e papel social, as
abordagens sobre o lugar das mulheres durante a ditadura deixam
de ponderar sobre como as distinções dicotômicas, estabelecidas
para o feminino e o masculino, foram manipuladas pelo Estado
autoritário. Mais do que isso, acabam não dando conta de questões
fundamentais relacionadas à violência de gênero sofrida por essas
mulheres. Quando tratam da violência contra as mulheres, geralmente
a relacionam aos conceitos de controle social, violência de Estado ou
violência institucional, percebendo o Estado como um órgão central
de controle, detentor do monopólio legítimo da violência.
Por essa ótica, não percebem a violência contra as militantes
como uma violência específica pelo fato de serem mulheres, motivada
por desafiarem a hierarquia das relações sociais de gênero e ousarem
escapar ao ambiente privado e aos papeis sociais aos quais estão
determinadas, se levantando na luta política contra um Estado
despótico. Conforme BANDEIRA (2014, p. 449), é preciso ir além
disso, pois é pela perspectiva de gênero que se entende o fato de a
violência contra as mulheres cometida pelo Estado militar emergir
da questão da alteridade. Tal tipo de violência não se refere somente
à ações políticas de aniquilação do “inimigo político”, um indivíduo
visto nas mesmas condições de existência e valor que seu perpetrador.
Essa violência é, sobretudo, motivada pelas relações assimétricas de
poder, baseadas na condição de sexo e dissolutas no cotidiano de
mulheres e homens.
O uso da modalidade violência de gênero possibilita
reconhecer que as ações violentas são produzidas em contextos sociais
e históricos específicos, nos quais a centralidade das ações violentas –
físicas, sexuais, psicológicas, morais ou patrimoniais – incide sobre
a mulher, no âmbito privado ou público. Esse tipo de violência
concentra-se, historicamente, sobre os corpos femininos e expressa as

54
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

desigualdades marcantes das relações hierárquicas de gênero, as quais


são frutos da construção social.
No seio da cultura patriarcal brasileira, a construção social
é bastante rígida e os mitos da virilidade e da feminilidade funcionam
como elementos substanciais na formação de homens e mulheres.
Além disso, dão suporte e fortalecem as diferenças hierárquicas
entre ambos (NADER, 2001, p. 106). A lógica patriarcal estabelece
que o papel social feminino se relaciona à esfera privada e familiar,
a sexualidade da mulher é voltada à reprodução de filhos legítimos
e o padrão comportamental recatado, passivo, submisso, honrado
e moralmente aceito. Por sua vez, associa o masculino à potência
da sexualidade, ao poder, ao domínio, ao sentimento de posse e à
violência, concentrando o protagonismo social, os valores materiais e
encerrando sua atividade na esfera pública.
De acordo com NADER [et. al.] (2016, p. 259), desde a
extensa e rural família colonial, passando pela urbano-nuclear e
burguesa do século XIX, o sistema de divisão e hierarquização dos
padrões comportamentais e sociais conforme o sexo vem sobrevivendo
às inúmeras mudanças sociais no Brasil. A conservação da teia de
tradições, valores, costumes e hábitos garante a sobrevivência da
lógica patriarcal, mantendo a mulher numa posição subalterna em
relação à naturalizada dominação do homem.
O patriarcado tem como paradigma a ideia de que
os homens têm o poder de usar da violência para submeter as
mulheres (GROSSI, 1998, p. 303). No seio dessa lógica, sobrevivem,
paradoxalmente, representações negativas das mulheres, que as
classificam como criaturas irracionais, desprovidas de senso crítico
e tino intelectual, escravas de seu corpo e suas paixões, histéricas,
desobedientes, e representações positivas, que as apresentam como
mães e esposas ideais, guardiãs da moral, frágeis, dóceis, incapazes
de tomar decisões e, por isso, necessitadas de direção e submissão
(COLLING, 2014, p. 45).
É preciso mencionar que, conforme já demonstrado,
a partir dos anos 1970, as campanhas feministas provocam uma

55
Das utopias ao Autoritarismo

profunda mudança nos paradigmas ocidentais e, em função disso,


tais representações das mulheres sofrem um forte abalo. No Brasil, o
feminismo de “segunda onda”7 desponta num cenário completamente
desfavorável, refutando os rótulos patriarcais, desorganizando os
costumes, reclamando a liberdade sexual e exigindo a participação
feminina na vida pública.
Assim como o mercado de trabalho, as universidades
públicas experimentam a inédita entrada maciça de mulheres,
enquanto produtoras do conhecimento e estudantes, e isso fortalece o
debate e o engajamento nas questões relacionadas ao lugar feminino
na sociedade. A emancipação das mulheres não era um fenômeno
acidental, que pudesse ser administrado por uma forma de Estado
conservadora, moralista e antifeminista (PEDRO; WOLFF, 2011, p.
400). A violência foi a solução para contê-la.

Violência de gênero contra as mulheres nos anos de chumbo


Posto isso, é necessária uma reflexão historiográfica mais
atenta sobre os crimes perpetrados pelo Estado militar contra as
mulheres com base no gênero. É preciso pontuar que o momento
máximo dos abusos se deu durante os chamados anos de chumbo,
período entre finais de 1968, em que há a decretação do Ato
Institucional n. 5, e finais de 1973, durante o governo do general Emílio
Médici (1969-1974). A violência atingia níveis absolutos, adquirindo
caráter de política de Estado e instrumentando o poder e a dominação
baseada no gênero.
Segundo os indicadores oficiais do projeto “Brasil: nunca
mais” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 70), quando a
ditadura investiu largamente no reforço de sua máquina repressiva
7 Conforme Woitowicz e Pedro (2009, p. 44), o feminismo no Brasil,
caracterizado como de “segunda onda” surge na década de 1970, em meio ao período
mais radical da ditadura militar, com a participação de mulheres exiladas. A prática
característica do movimento reside na realização de grupos de reflexão e debate sobre
questões como trabalho feminino, participação política, liberdade sexual, igualdade
de direitos, aborto, políticas públicas para as mulheres, condições de trabalho,
violência e autonomia do corpo.

56
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

e criou uma extensa comunidade de segurança e informação8, os


números das denúncias de tortura explodiram, saltando de 85 em
1968 para 1.027 em 1969; 1.206 em 1970; 788 em 1971; 749 em 1972
e 736 em 1973. Nos anos de chumbo, a relação umbilical entre o
autoritarismo e as representações patriarcais e sexistas dos militares
fica ainda mais explícita. São, “por excelência, o tempo da tortura,
dos alegados desaparecimentos e das supostas mortes acidentais”
(ALMEIDA; WEISS, 1998, p. 332).
É indispensável considerar o peso das representações
patriarcais e da construção social de gênero para entender as
manipulações, discriminações e violações experimentadas pelas
militantes durante os anos de chumbo. Somente partindo do
entendimento de que a violência é um fenômeno complexo,
enraizado nas relações de poder baseadas no gênero, na sexualidade,
na identidade e nas instituições sociais (GIFFIN, 1994, p. 148) é que
se pode compreender de que forma ela foi operada pelos militares
– homens – no controle social das mulheres, seus corpos e sua
sexualidade.
Os informes do “Brasil: nunca mais” (ARQUIDIOCESE
DE SÃO PAULO, 1985, p. 34) e da Comissão Nacional da Verdade
(BRASIL, 2014c, p. 366-378) apontam que, enquanto prática
sistemática, a tortura apresentava métodos padronizados de
maus tratos, englobando recursos físicos e psicológicos comuns:
xingar, ameaçar, encapuzar, espancar, ministrar choques elétricos
e palmatórias, afogar, sufocar, estrangular, simular fuzilamentos,
aplicar técnicas como o telefone9 e a geladeira10, manter de pé por
8  Conforme Carlos Fico (2001, p. 17), a comunidade de segurança e informação
da ditadura foi constituída por um conjunto de órgãos e agentes especializados na
coleta e armazenamento de dados sobre a subversão, além das ações repressivas, ligados
por uma espécie de acordo que supunha sigilo e lealdade, selado pelo sentimento de
comprometimento com a causa anticomunista e os objetivos da “revolução” de 1964.
9  Técnica de aplicação de pancada com as mãos em concha nos dois ouvidos, ao
mesmo tempo, que poderia levar ao rompimento dos tímpanos e à surdez (BRASIL,
2014c, p. 369).
10  Técnica de origem britânica em que o preso é confinado em uma pequena
cela forrada com placas isolantes, sem orifício por onde penetre luz ou som externo.
Um sistema de refrigeração alterna temperaturas baixas com temperaturas altas.

57
Das utopias ao Autoritarismo

muitas horas, colocar no pau de arara11, impedir o sono, fornecer


pouca comida e água. Porém, apesar da uniformização, homens e
mulheres eram supliciados de maneiras específicas:
os perseguidos políticos tiveram seus corpos encaixados
na condição de prisioneiras e prisioneiros. No exercício da
violência, mulheres foram instaladas em loci de identidades
femininas tidas como ilegítimas (prostituta, adúltera,
esposa desviante de seu papel, mãe desvirtuada etc.), ao
mesmo tempo que foram tratadas a partir de categorias
construídas como masculinas: força e resistência físicas.
Nesses mesmos espaços de violência absoluta, também
foi possível feminilizar ou emascular homens (BRASIL,
2014c, p. 366-378).
Nessa direção, a partir dos apontamentos de AZEVEDO
(1985, p. 56), pode-se depreender que a violência de gênero cometida
pelos militares funcionou como um instrumento do machismo
patriarcal contra as mulheres, cujo vetor caminha no sentido
homem contra mulher tendo em vista a falocracia predominante
no caldo cultural brasileiro (SAFFIOTI, 1999, p. 83). Ela contribuiu
para a manutenção das desigualdades entre mulheres e homens e a
conservação do próprio sistema de dominação masculina. Julgadas
como subversoras dos papéis sociais de “moças de família”, esposas
e mães, as mulheres tiveram seus corpos transformados em objetos
pelos torturadores. Sobre isso, CARRERA (2005, p. 64) postula:
La dictadura exalta una única identidad femenina a la
que deben ajustarse las mujeres, la identidad mariana,
de madre-esposa, fiel compañera del soldado, salvadora
de la “patria”, figura femenina que se presenta como
“gran madre” [...]. Esta representación de las mujeres será
acompañada de una serie de mecanismos discursivos y

Acendem-se, em ritmo rápido e intermitente, pequenas luzes coloridas, ao mesmo


tempo em que um alto-falante instalado dentro da cela emite sons de gritos, buzinas
e outros, em altíssimo volume. A vítima, geralmente despida, é mantida por períodos
que variam de horas até dias, muitas vezes sem qualquer alimentação ou água
(BRASIL, 2014c, p. 372).
11  Técnica de suspensão do indivíduo através de um travessão de madeira ou
metal, com pés e mãos atados, geralmente para aplicação de outras técnicas de tortura
(BRASIL, 2014c, p. 373).

58
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

de control (social, jurídico, y en muchos casos represivos)


que harán efectivo el nuevo orden de género. La ideología
militar en tanto expresión máxima de lo masculino, y con el
poder del aparato del Estado en sus manos, configurará este
mapa de tutela sobre los cuerpos de las mujeres [...].12
Para SAPRIZA (2005, p. 44):
En la tortura, se puso de manifiesto, al extremo, la asimetría
de poderes de varones y mujeres. Se planteó en crudo la
relación entre poder, cuerpo, género femenino e ideología.
Allí se “jugó” el abuso, la violación a los cuerpos, se practicó
la perversión como un programa de avasallamiento como la
conquista de un trofeo.13
Os informes do “Brasil: nunca mais” e os relatos expostos
no relatório da Comissão Nacional da Verdade dão a ler que a
violência contra os corpos femininos adquiriu contornos variados,
como a típica humilhação do inimigo homem, através do abuso de
suas companheiras, filhas, esposas, mães; a colocação da mulher em
seu “devido lugar”, como depositário dos impulsos masculinos e
não como ator político; a satisfação dos desejos sexuais dos agentes
repressivos; a demonstração de poder sobre as vítimas, em situação
de submissão e vulnerabilidade. JELÍN (2001, p. 102) assevera que a
prática do abuso sexual14 contra as militantes era quase uma regra:

12  (Tradução livre) A ditadura enaltece uma única identidade feminina à qual
as mulheres devem se ajustar, a identidade mariana, de mãe-esposa, fiel companheira
do soldado, salvadora da “pátria”, figura feminina que representa a “grande mãe” [...].
Esta representação das mulheres será acompanhada de uma série de mecanismos
discursivos e de controle (social, jurídico e, em muitos casos, repressivos), que
efetivarão a nova ordem de gênero. A ideologia militar, como expressão máxima do
masculino e com o poder do aparato do Estado em suas mãos, impõe este projeto de
tutela sobre os corpos das mulheres [...].
13  (Tradução livre) Na tortura, ficou absolutamente clara a assimetria de poder
entre homens e mulheres. Estabeleceu-se, de forma crua, uma relação entre poder,
corpo, gênero feminino e ideologia. Ali se perpetrou o abuso sexual, a violação dos
corpos, praticou-se um programa de perversão e de subjugação como a conquista de
um troféu.
14  No capítulo dedicado à violência sexual e de gênero, o relatório da Comissão
Nacional da Verdade (BRASIL, 2014d, p. 418-419) adota a definição preconizada
pela Organização Mundial de Saúde, segundo a qual é considerada violência sexual
quaisquer atos sexuais ou tentativas de realizar ato sexual, comentários ou investidas

59
Das utopias ao Autoritarismo

Los informes existentes sobre la tortura indican que el


cuerpo femenino siempre fue un objeto “especial” para los
torturadores. El tratamiento de las mujeres incluía siempre
una alta dosis de violencia sexual. Los cuerpos de las mujeres
– sus vaginas, sus úteros, sus senos -, ligados a la identidad
femenina como objeto sexual, como esposas y como madres,
eran claros objetos de tortura sexual.15
A tortura física englobava sevícias intensas contra os
corpos das mulheres, consideradas “machos”, “duronas”, resistentes,
subversivas, “terroristas”, militantes políticas que ousaram subverter
os padrões normativos do feminino e se aproximar do estereótipo
masculino. Uma vez que no interior do contrato original do
patriarcado os homens detêm a preponderância do poder, podendo
se apropriar, inclusive sexual e violentamente, do corpo feminino e
“zelar” pela obediência da mulher aos padrões comportamentais
estabelecidos (SAFFIOTI, 2004, p. 53), os corpos das militantes
presas sofreram abusos sexuais de toda sorte, como a nudez forçada,
os choques elétricos nos seios, mamilos, vagina, as penetrações não
consentidas – o que muitas vezes ocorria na presença de filhos e
familiares, como forma de potencializar o constrangimento, a dor e
o sofrimento. As mulheres também sofreram violações psicológicas e
morais, fundamentadas na noção sexista dos papeis sociais femininos
sexuais não consentidas, para comercializar ou de outra forma controlar a sexualidade
de uma pessoa através do uso da coerção, realizados por qualquer pessoa e em
qualquer ambiente. Abrange toda ação praticada em contexto de relação de poder,
quando o abusador obrigada a outra pessoa à prática sexual ou sexualizada por meio
de força física, influência psicológica ou uso de armas e drogas. Além da penetração
vaginal, anal e oral, também constituem violência sexual golpes nos seios; golpes no
estômago para provocar aborto ou afetar a capacidade reprodutiva; introdução de
objetos e/ou animais na vagina, pênis e/ou ânus; choque elétrico nos genitais; sexo
oral; atos físicos humilhantes; andar ou desfilar nu ou seminu diante de homens e/
ou mulheres; realizar tarefas nu ou seminu; maus-tratos verbais e xingamentos de
cunho sexual; obrigar as pessoas a permanecer nuas ou seminuas e expô-las a amigos,
familiares ou estranhos; ausência de privacidade e negação de artigos de higiene no
uso de banheiros.
15  (Tradução livre) Os informes existentes sobre a tortura indicam que o corpo
feminino sempre constituiu um objeto “especial” para os torturadores. O tratamento
das mulheres sempre incluiu uma alta dose de violência sexual. Os corpos das
mulheres – suas vaginas, seus úteros, seus seios -, vinculados à identidade feminina
como objeto sexual, como esposas e mães, eram nitidamente objetos de tortura sexual.

60
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

e perpetradas por ações de discriminação, desrespeito, rejeição,


depreciação, humilhação, agressão contra sua idoneidade, acusações
falsas, xingamentos, insultos, agressões verbais, difamação e injúria.
A gravidez não significava dispensa à tortura. Os relatos
presentes no relatório da Comissão Nacional da Verdade mostram
ter havido uma peritagem distinta na tortura dos corpos das grávidas,
com a utilização de técnicas individualizadas quando se pretendia
evitar ou efetivar o aborto, até mesmo quando se objetivava esterilizar
a mulher. Os impactos que tamanha violência causaria às mulheres
e à vida futura dos bebês que conseguissem sobreviver não era uma
preocupação entre os torturadores. Inclusive, cabe registrar que, além
das próprias militantes, a violência vitimava suas famílias, quer pela
prisão, quer pelo desaparecimento ou assassinato de suas mulheres
e filhos, contrastando com o projeto social que os governos militares
apregoavam, atravessado por um discurso bastante conservador
acerca da importância da família nuclear, heterossexual e reprodutiva.

Conclusão
A partir do exposto, pode-se depreender que as análises
historiográficas acerca do lugar das mulheres na ditadura militar
a partir de uma perspectiva de gênero ainda estão em processo de
amadurecimento, apesar de sua evidente urgência. O gênero permite
compreender o conjunto de normas, estabelecidas pela sociedade
e pela cultura, que modelam os seres humanos em homens e em
mulheres, e se expressam nas relações entre ambos e nos papeis sociais
definidos para cada um. Desse modo, no seio de uma cultura patriarcal
e sexista como a brasileira, a categoria desnaturaliza as concepções e
atribuições de gênero percebidas, historicamente, como intrínsecas
a homens e mulheres, possibilitando vislumbrar como essas foram
instrumentalizadas nas relações de poder difusas na sociedade.
O gênero viabiliza interpretar as manipulações
praticadas pelo Estado militar em seus crimes contra as mulheres.
Mais exatamente, a categoria violência de gênero oportuniza
entender como a estruturação baseada na hierarquia de gênero e

61
Das utopias ao Autoritarismo

sexualidade transpareceu na violência estatal, explicitando o caráter


tradicionalmente patriarcal e sexista das representações militares
acerca do feminino. Os relatos contidos no relatório da Comissão
Nacional da Verdade e os informes do projeto “Brasil: nunca
mais” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985) confirmam essa
conjectura, ao darem a ler que, as mulheres foram as principais
vítimas da violência de gênero praticada pelo Estado autoritário,
sobretudo durante os anos de chumbo, quando a tortura adquiriu
caráter de política oficial.
As militantes se arriscaram a desafiar a “natural” ordem de
gênero, que inscreve a mulher no âmbito privado, nunca no domínio
público, e, mais grave, se atreveram na luta contra um determinado
regime político. Ao ousarem se arriscaram a romper a lógica patriarcal
que orienta a definição dos papeis sociais a serem desempenhados
pelas mulheres na sociedade brasileira, se elegeram “merecedoras”
das violações. O abuso do corpo feminino pelos agentes repressivos
– homens – revelou uma conotação muito específica, de natureza
psicológica, moral, física e, principalmente, sexual. Num contexto
em que as mulheres reclamavam emancipação, liberdades no campo
da sexualidade e direitos ao seu próprio corpo, as militantes foram
silenciadas e violentadas exemplarmente, como forma de dizer à
sociedade o que poderia ocorrer caso mais mulheres se desvirtuassem
do modelo hegemônico do feminino.

Referências:
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BRASIL. Relatório Comissão Nacional da Verdade. Volume I, Parte III,

62
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Cap. 10: Violência sexual, violência de gênero e violência contra crianças e


adolescentes. Brasília: CNV, p. 400-435, 2014d.

Bibliografia complementar:
ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de; WEISS, Luiz. Carro-zero e pau-
de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. In:
SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil, vol. 4.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
ALONSO, Angela; DOLHNIKOFF, Miriam. (Org.). 1964: do golpe à
democracia. São Paulo, Editora HEDRA, 2015.
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65
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A atuação da imprensa no contexto ditatorial


(1968-1978)
Davi Elias Rangel Santos1

A História do Tempo Presente permite ampliar a


compreensão sobre o conhecimento histórico. Nessa perspectiva
insere-se o papel da imprensa durante a Ditadura Militar (1964-1985).
A estrutura do sistema repressivo montada pelos militares, bem como,
a atuação dos órgãos de repressão e a censura, visavam reprimir toda
oposição e controlar a informação para preservar o regime. Neste
quadro social e político, a imprensa foi fundamental para contribuir
com uma determinada visão sobre contexto da época.

A ditadura militar e a relação com a imprensa


No contexto ditatorial, os editoriais e matérias assinadas
pelos jornalistas seguiam na direção ao pensamento do grupo que
representava os interesses do jornal, isto é, eles falavam em nome
daqueles que os patrocinavam. Os grandes jornais da época que
possuíam um alcance maior de divulgação nacional2 estavam
inseridos na lógica do capitalismo liberal, pois sobreviviam não só
das assinaturas e vendas dos seus periódicos mais da publicidade,
da propaganda e do patrocínio privado que fazia toda diferença no
superávit financeiro das empresas de comunicação.
Essa relação entre o interesse privado versus o público como
um dos elementos determinantes de interferência na esfera pública vai
ao encontro da discussão estabelecida pelo pensador alemão Jurgen
Habermas que entende o espaço público como “local de encontro, o

1 Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História


da Universidade Federal do ES. Tema da dissertação: A memória positiva sobre
a Ditadura Militar no ES: construindo o consentimento (1971-1975). Email:
davidrangel28@hotmail.com
2  Foram eles: O Globo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, Jornal da Tarde, O
Estado de São Paulo e a Revista Veja (SMITH, 2000, p. 97).

67
Das utopias ao Autoritarismo

lócus de todos nós e onde se manifesta o debate, por meio do qual o


político se revela” (HABERMAS, 2003, p. 45).
A esfera pública para ele é o espaço da discussão política,
das ideias e ações de pessoas privadas em prol de uma coletividade3.
É nesse espaço que são debatidas e pensadas as necessidades da
sociedade e as demandas que precisam ser atendidas pelos governos.
Estes são os responsáveis pela administração da coisa pública. Através
desse diálogo que se produz uma comunicação efetiva em busca do
bem comum.
Sobre a opinião pública, o filósofo alemão entende que ela
é forjada pela imprensa a qual deve ser racional e seguir um padrão
moral tendo por objetivo tornar as decisões, as ações do grupo
dominante públicas. Assim, passa a exercer a função de equilíbrio
entre o poder administrativo e seu grupo de influências; ao mesmo
tempo em que se torna o espaço de mobilização e de comunicação da
sociedade civil, que precisa de visibilidade para ter suas necessidades
atendidas. Interessante observar que a imprensa se coloca na função
de porta-voz do povo.
O ato de tornar públicas as ações do governo, transforma
seu exercício numa prática transparente e compreensível
ao público. Ao transportar as decisões do poder até
diversas camadas da opinião pública, a imprensa torna
visíveis as demandas do público para o poder. Decorre
daí uma ideia de representatividade que se diferencia da
representatividade institucional encarnada nos partidos,
eleições e representantes políticos. A história da opinião
pública, portanto, se confunde com a história da imprensa
(CARVALHO, 2010, p. 28).
A questão central é que Habermas critica o fato da imprensa
ter se transformado num império da opinião pública não pública4,
exercendo um papel coercitivo sobre a sociedade. Ela passa a atender
as demandas dos grupos econômicos que a financia em virtude da
lógica capitalista do lucro. HABERMAS (2003, p. 63) afirma:

3  Para maiores informações ver Habermas (2003).


4  Para maiores informações ver também Bourdieu (1983).

68
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

a imprensa passa a atender as demandas dos grupos


econômicos que a financia, os interesses privados,
exercendo um papel coercitivo sobre a sociedade em
virtude da lógica capitalista do lucro.
A estrutura de funcionamento da imprensa será modificada
por influências de fora do seu métier que não possuem relação
com natureza da sua função, mas com o papel dentro do contexto
capitalista de produção na qual ela está inserida. A imprensa seria a
instituição por excelência no processo de evolução da esfera pública.
Ela cataliza a luta política partidária; politiza o público; potencializa a
opinião pública. Entretanto, enquanto instituição de pessoas privadas
com interesses públicos, a imprensa se transforma numa instituição
pública de interesses privados.
Compreende-se que a imprensa é um ator social e político,
porém, com um viés econômico que lhe determina objetivos, metas
visando lucros financeiros para aumentar renda e as receitas das
empresas jornalísticas de propriedade privada. Ao mesmo tempo ela
possui um outro viés que é o de um espaço social, isto é, um organismo
atuante na esfera pública, fundamental para o exercício da cidadania e
da participação democrática
A imprensa brasileira também conserva sua meta de
atuar como foro social. Idealmente, considera estar
desempenhando um importante papel cívico ao
proporcionar informações, debates e comentários. A
imprensa se vê e passa a ser vista como um fator essencial
para a cidadania responsável e a participação democrática
(SMITH, 2000, p. 20).
Essas duas perspectivas, a de uma empresa de negócios e de
ator político são as que geram tensões e conflitos com o Estado.
A imprensa brasileira acostumou-se a depender do Estado
no que se refere a concessão de empréstimo bancários e aquisição
de máquinas, de materiais gráficos, bem como, redes de rádio e
televisão. MARCONI (1980, p. 98) afirma que “a maioria dos jornais
simplesmente se acomodou, preferindo conviver pacificamente
com a censura para evidente prejuízo de seus leitores, ouvintes e

69
Das utopias ao Autoritarismo

telespectadores” a enfrentar o regime. O regime militar utilizou-se de


pressões econômicas para enquadrar alguns órgãos de comunicação.
Essas represálias contra a independência de certos órgãos
da imprensa se materializaram na maior ou menor
dificuldade de conceder empréstimos, na maior facilidade
de permitir a importação de equipamentos vitais, na
concessão ou não de publicidade oficial, nas pressões sobre
anunciantes particulares (MARCONI,1980, p. 127).
Além do Estado, os anunciantes e investidores, donos dos
próprios jornais movimentam os recursos ao desenvolvimento do
próprio negócio. Essa proximidade com o poder estabelecida numa
relação de dependência torna a imprensa um importante instrumento
de controle social. SMITH (2000, p. 21) diz que “O Estado procura
usar a imprensa como meio de controle da sociedade”. Durante a
Ditadura Militar este ramo empresarial prosperou.
Considerando que a tiragem era tão baixa, a receita da
grande imprensa provinha mais da publicidade do que
das vendas aos leitores ... Seus proprietários admitiram
publicamente que sem a publicidade os jornais não
sobreviveriam ... Essa estrutura de receita deixava os
jornais a mercê dos seus grandes anunciantes (SMITH,
2000, p. 57).
SOARES (1989) afirma que os jornais passaram a depender
menos das vendas e mais dos recursos oriundos da publicidade
que eram bancadas pelo Estado. Isso gerava pressões, conflitos de
interesses entre os donos de jornais e seus patrocinadores. “A censura
e a pressão econômica eram as principais formas de reprimir a
liberdade de atuação da imprensa no Brasil” (SOARES, 1989, p. 27).
Os grandes jornais do país possuíam prestígio e poder,
embora suas tiragens não atingissem muitos leitores. Isso se dava
porque elas possuíam qualidade profissional, apoiavam a manutenção
do status quo e eram instrumentos de dominação e manipulação
mesmo havendo resistências no interior da imprensa.
A grande imprensa tinha uma tiragem numericamente
baixa, mas elevada em termos de poder e influência.
A qualidade da grande imprensa era razoavelmente

70
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

profissional ... Seu projeto visava claramente a apoiar o


Status quo, conquanto isso não significasse necessariamente
que ela se comportasse de maneira covarde em relação ao
Estado (SMITH, 2000, p. 58).
Mesmo assim, a vulnerabilidade da imprensa era grande
tanto no aspecto financeiro e profissional quanto o de segurança,
em virtude dos instrumentos repressivos a disposição da Ditadura.
A censura foi o meio mais rápido utilizada pelos militares. Outros
meios também para obstruir o trabalho da imprensa foram utilizados
com frequência: auditoria financeira, suspensão da publicidade,
impedimento de empréstimos bancários entre outros5. Os governos
eram os grandes clientes da imprensa (SMITH, 2000, p. 224).
A imprensa brasileira esteve e está na mão da classe
dominante e, portanto, veicula para a opinião pública
apenas a ideologia dominante, ela trabalha a favor da
principal função de um Estado capitalista: assegurar a
reprodução das relações sociais de produção (MARCONI,
1980, p. 138).
No período ditatorial foram construídos verdadeiros
oligopólios que controlavam a informação que circulava no Brasil.
O controle dos meios de comunicação nas mãos de poucas empresas
jornalísticas gerava um controle maior da opinião pública, uma
“uniformização das informações, colocando em risco o pluralismo
das opiniões, condição essencial para uma verdadeira liberdade de
informação” (MARCONI, 1980, p. 140)6.

O autoritarismo no contexto ditatorial


A presença forte do Estado na economia, na política, na
cultura é um traço marcante da história brasileira. Por isso, além de
definirem as regras do jogo decidem quem tem permissão para jogar,
“atuar no Brasil é ter relação com o Estado” (MARCONI, 1980, p.
19). Ora a imprensa é aliada ora opositora ao estado de acordo com
5  Para maiores informações, ver Smith (2000).
6 Seriam estes: Editora Abril, Grupo Globo, Diário Associados, O Estado de
São Paulo, Grupo Folha, Grupo Bloch e Jornal do Brasil (MARCONI, 1980, p. 139).

71
Das utopias ao Autoritarismo

as circunstâncias do presente. Já apoiou como também ajudou a


derrubar presidentes.
Para tanto, deve-se olhar para os anos que antecederam a
março de 1964. No momento pré-golpe, a partir do restabelecimento
do presidencialismo em 1963 e dos plenos poderes a João Goulart, os
jornais que possuíam uma concepção liberal de opinião pública de
forma a qual “não se contrapusessem aos poderes instituídos e às regras
que preservavam a democracia formal” (CARVALHO, 2010, p.121), se
uniram em torno de uma mesma pauta: criar A Rede da Democracia7,
firmando um posicionamento político contrário a ameaça a manutenção
do status quo que representava as Reformas de Base de Jango.
A imprensa liberal se via como instituição responsável
pela opinião pública, uma esfera de atuação na sociedade, desde que
não gerassem manifestações populares contra a ordem vigente e
sempre comprometida com a preservação das instituições e interesses
dos grupos dominantes. Ela soube articular os discursos liberal e
autoritário de forma a dar um sentido político próprio no contexto do
pré-golpe e que culminou com o golpe.
Os jornais se colocaram na posição de porta-vozes
autorizados e representativos de todos os setores sociais
comprometidos com uma opinião que preservasse os
tradicionais valores da sociedade brasileira ancorados
na defesa da liberdade e da propriedade privada
(CARVALHO, 2010, p. 158).
Quase a totalidade da imprensa apoiou o golpe em 1964,
afirma Marconi (1980). Poucos jornais posicionaram-se contra o
golpe como o caso do jornal Última Hora. Muitos outros, mesmo sem
esclarecerem abertamente, apoiaram a Ditadura.
Em 1964 a imprensa foi a catalizadora do movimento
golpista juntamente com outros setores da sociedade civil, como a
classe média e alta, Igreja Católica, Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) entre outros que se levantaram contra a mobilização de massas
feitas por João Goulart como o comício na Central do Brasil.

7  Para maiores informações, ver Carvalho (2010).

72
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Os empresários dos meios de comunicação expressaram


claramente seus posicionamentos ao apresentarem à opinião pública
um produto (jornal) tendencioso, parcial, além de terem demitido
jornalistas independentes que não concordavam com o alinhamento
e a acomodação frente as imposições do governo “revolucionário”. A
busca constante dos militares foi a tentativa de legitimidade buscada
junto a sociedade.
A relação entre a Ditadura e a imprensa neste contexto se
deu diretamente por meio da censura. A questão que chama atenção
em relação a Ditadura do Estado Novo (1930-1945) é a tentativa
constante dos militares em esconder a ação censória nos jornais e
periódicos. A busca pela legitimidade criava essa posição ambígua e
dicotômica entre o apoio civil e a repressão aos opositores. Segundo
SMITH (2000, p. 33) “O regime também se via constrangido por
uma extraordinariamente ambivalente, porém, constante busca de
legitimidade”. Embora os Atos Institucionais foram ao longo dos
anos iniciais do regime forjando o seu caráter autoritário, o marco da
censura política de forma institucionalizada se deu a partir do AI-5
promulgado em 13 de dezembro de 19688. Após este Ato a censura se
tornou ativa nos órgãos da imprensa responsáveis pela divulgação da
informação. Entretanto, desde o golpe de 1964 os órgãos de repressão
já pressionavam os jornais a demitirem seus jornalistas mais críticos.
Seria exagero afirmar que a imprensa brasileira vinha
gozando de inteira liberdade para noticiar fatos após o
golpe de 1964. O recém-criado SNI já ensaiara as suas
primeiras pressões junto aos proprietários de órgãos
de comunicação para que os jornalistas considerados
contestadores da revolução fossem sumariamente
demitidos (MARCONI, 1980, p. 37-38).
O AI-5 suspendia todas as garantias constitucionais. Foi a
partir dele que “a censura a imprensa se intensificou” (FICO, 2004,
p. 253), tornando-se sistêmica, rotineira e partindo diretamente dos
donos do poder naquele contexto histórico. Afirma ALVES (1985) que
sua maior consequência foi o uso descontrolado do aparato repressivo
8  Para maiores informações sobre o contexto do pré-golpe, ver Gaspari (2014)
e Ferreira e Castro (2014).

73
Das utopias ao Autoritarismo

do Estado na busca por eliminar seus opositores9. Em alguns casos,


parte da imprensa reconhecia sua força e procurava espaços de
manobras dentro do rígido sistema de controle do estado ditatorial.
Entretanto, a tentativa da imprensa de tirar vantagens da
pouca liberdade que possuía, fê-la seguir o caminho do consentimento
com a ditadura e não de confrontamento, assegura SMITH (2000).

A grande imprensa versus a imprensa alternativa: duas


categorias da imprensa durante ditadura militar (1968-1978)
Para uma melhor compreensão da relação entre a imprensa
e o governo ditatorial é importante entender duas categorias da
imprensa durante a Ditadura Militar: a Grande Imprensa e a Imprensa
Alternativa. Uma majoritária, dominante comercialmente; a outra
mais crítica, não conformista e de relativo alcance social.
A imprensa alternativa era representada por jornais ou
periódicos que não possuíam alcance nacional e se limitavam apenas
ao seu alcance regional e não possuíam aporte financeiro suficiente
para sobreviver em meio a repressão e a censura estabelecida pelos
órgãos repressivos. Fato é que muitos desses órgãos de divulgação
foram fechados ou faliram por falta de recursos financeiros10.
Os principais jornais foram: Pasquim, Opinião e
Movimento. Ela experimentou e ousou no sentido de publicar aquilo
que não poderia ser lançado na Grande Imprensa. De pequeno porte
e poucas tiragens, esses periódicos apareciam e desapareciam com
muita rapidez e não possuíam estrutura financeira capaz de suportar
9  De acordo com a tabela apresentada por Alves, com base nas informações
do Diário Oficial entre os períodos de abril de 1964 a dezembro de 1979, o AI-5
serviu como justificativa para punição de mais de 1.607 pessoas entre parlamentares,
prefeitos e governadores cassados.
10  No caso capixaba foi o jornal Posição: de caráter alternativo, combativo partiu
para o enfrentamento a Ditadura imposta pelos militares e circulou na capital Vitória
entre os anos de 1976-1979. Tinha por pauta matérias relativas aos movimentos
sociais e denunciando a censura. Se tornou inviável comercialmente devido a falta de
anunciantes e em decorrência de suas posições políticas. Para maiores informações
ver Martinuzzo (2008).

74
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

as pressões do Estado. Mesmo tendo um alcance ainda menor


de circulação, eles foram alvos da censura e da violência do estado
ditatorial brasileiro.
Já a Grande Imprensa abrangia a empresas jornalísticas
com capacidade de distribuição em todo território nacional como
os casos dos jornais do eixo RJ-SP, como O Globo, Jornal do Brasil,
Folha de São Paulo entre outros. Enquanto os jornais da Grande
Imprensa sobreviviam da publicidade e da propaganda, a imprensa
alternativa sobrevivia basicamente das vendas dos seus periódicos.
Revistas e semanários confiscados pelo Estado levavam a falência
muitos desses jornais.
Uma característica importante da imprensa brasileira era a
presença de baixo número de leitores.11 SMITH (2000) afirma que os
leitores tanto da Grande Imprensa quanto da Imprensa Alternativa
eram membros das elites do país. PATTO (2013, p. 66) corrobora
essa visão ao dizer que público que lia os jornais eram “grupos sociais
privilegiados na escala social”.
Alguns fatores atribuídos para essa baixa circulação. A falta
de cultura de massa no sentido da leitura do jornal, o analfabetismo, a
pobreza e a presença da televisão e rádio.
Os jornais eram veículos de comunicação das elites [...].
No Brasil existe uma incapacidade de produzir um jornal
que alcance as massas e as elites ao mesmo tempo (SMITH,
2000, p. 51).12
A lógica da censura prévia era estabelecer os critérios
definidos pelos censores do que poderia ou não ser publicado de forma
que não contrariasse o governo. Apenas alguns órgãos de divulgação da
imprensa conviveram com a presença de censores em suas redações.13
A censura foi um instrumento de proteção do Estado para esconder o
11  Ver também SMITH (2000, p. 52).
12  É possível perceber que o jornal é “uma espécie de comunicação entre as
elites o que influencia os debates entre elas, suas análises e discussões repercutem na
sociedade enquanto produto cultural” (SMITH, 2000, p. 51).
13  Foram eles: O Estado de São Paulo, Movimento, Opinião, O São Paulo, Veja,
Pasquim e Tribuna de Imprensa” (MARCONI, 1980, p. 60; SMITH, 2000, p. 97).

75
Das utopias ao Autoritarismo

autoritarismo e assim manter a aparência democrática.


A censura é um instrumento de proteção do Estado,
utilizado para esconder o próprio autoritarismo e,
consequentemente, manter a aparência democrática: e
também que a ditadura não foi integrada nem harmônica,
sendo composta de diferentes setores com variados graus
de autonomia (AQUINO, 1999, p. 235).
Ela determinava que todas as matérias a serem publicadas
deveriam primeiro passar pelo crivo dos censores da Polícia Federal
antes de serem liberadas para publicação. O regime procurava
esconder da sociedade a censura política praticada na imprensa. Era
comum fazer censura e não a admitir.
Porém, o tipo de censura mais comum e de maior efeito
prático, restritivo era autocensura que basicamente representava um
exercício restritivo interno do que podia ser publicado ou não. Ela foi
uma imposição dos militares que através de procedimentos diários de
controle, impedia a circulação das informações para os cidadãos, bem
como, cerceava a garantia das liberdades civis.
Práticas rotineiras de bilhetinhos, telefonemas anônimos,
visitas de policiais as redações, convocação de diretores e chefes de
redação para prestarem depoimentos, foram fatos que exerceram uma
grande pressão sobre a maioria da imprensa brasileira.
A autocensura teve um forte impacto sobre as publicações
dos jornais devido ao receio de fechamento dos mesmos, das prisões,
fim dos financiamentos ente outros. SOARES (1989, p. 39) afirma que a
autocensura institucional era a forma mais comum de exercer o controle
sobre a opinião pública. “A autocensura individual afeta o indivíduo em
sua liberdade de expressão e no livre exercício do pensamento”.
Essa forma de abster conscientemente a informação por meio
da autocensura foi a principal característica da imprensa brasileira.
“Você sabe, mas não diz o que sabe ... o povo não fica sabendo que algo
está sendo negado, subtraído” (SMITH, 2000, p. 136). A autocensura
se tornou padrão de aceitação e de inércia da censura à imprensa. Ela
não foi aberta e declarada a sociedade, porém funcionou no cotidiano

76
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

das redações porque a Ditadura queria legitimar-se. Foi esse sistema


diário, anônimo, automático e não a força coercitiva usada pelos
militares que teria “massacrado” a imprensa brasileira14.
SOARES (1989) vai dizer que a censura foi um instrumento
de proteção utilizado pelo Estado ditatorial brasileiro, pois este queria
apresentar-se democrático para a sociedade. A imprensa não conseguiu
criar alternativas para fugir das rotinas impostas pela Ditadura. A
inércia gerada através da rotina burocrática de censura, revela uma
aceitação superficial por setores da sociedade da dominação imposta
pelo sistema autoritário.
Como dito anteriormente, o regime autoritário queria
ter legitimidade política e aceitação social. Nessa busca por
legitimidade a imprensa possuía um importante papel nesse
processo. Propagandas exaltando as conquistas do Estado eram
constantemente publicadas para que circulassem junto aos leitores;
notícias positivas do governo ditatorial por meio de Grandes Obras,
Grandes Projetos como pontes, estradas, rodovias pelo país eram
divulgadas com o intuito de mostrar o crescimento econômico, o
desenvolvimento e que o futuro havia chegado.
Por intermédio do “Milagre Econômico” que coincidiu com
o “espírito modernizante” do início dos anos de 1970, vários setores
médios e industriais do país viveu um clima de grande otimismo. O
problema do custo social dessas obras e a desaprovação quanto aos
baixos benefícios dele para a sociedade não eram debatidos.
A ideia da “construção do novo” trazida no bojo do “Milagre
Econômico” foi capaz de criar expectativas positivas, patrióticas,
nacionalistas, mobilizando grande parte da sociedade. Isso mostra as
formas diversificadas dos comportamentos sociais que representam o
consentimento.
A historiadora Janaína Martins Cordeiro que investigou
os discursos oficiais propagados pela Agência de Relações Públicas
14  Na visão de SMITH (2000, p. 12) “A censura era percebida como um sistema
tão corriqueiro e abrangente que parecia funcionar automática e impessoalmente, a
tudo abarcando”.

77
Das utopias ao Autoritarismo

(AERP) no governo do presidente Emílio Gastarrazú Médici (1969-


1974), marcadamente permeado pelo tom otimista, no contexto das
comemorações cívicas organizadas para o ano do Sesquicentenário
(1972).15 O objetivo dela era compreender como se manifestou o
consenso numa sociedade não democrática (a brasileira), haja vista,
ser ele uma categoria que teoricamente só poderia ser aplicada em
regimes democráticos.
CORDEIRO (2009) relata que embora nos lugares comuns
da memória, os “anos de chumbo” foram cristalizados. A ideia de
uma realidade marcadamente violenta, com perseguições e torturas
para todos os lados que essa memória evoca, na verdade, foi vivida
por uma pequena parcela da sociedade brasileira. Para a grande
maioria esse período representou “anos de ouro”. Vários segmentos
sociais passaram a largo do sistema repressivo e experimentaram uma
prosperidade intensa, segurança, estabilidade e alívio em função da
ação do estado contra a ameaça terrorista comunista.
É preciso compreender o milagre de forma mais ampla,
como um modo de estar no mundo naquele momento e
que, para além das possibilidade de ascensão econômica,
oferecia também uma determinada visão de passado e
expectativas de futuro promissor, a partir de um presente
no qual essas pessoas deveriam apenas viver de acordo com
as normas sociais estabelecidas (CORDEIRO, 2015, p. 325).
SMITH (2000, p. 47) diz que: “na busca pela legitimidade
o regime transformou a imprensa numa entidade politicamente
poderosa”.
Assim, é importante ressaltar que a censura sobre à
imprensa no contexto ditatorial era inconstitucional. Mesmo sem
respaldo no ordenamento jurídico da época a Ditadura não abriu
mão da censura mesmo sendo ilegítima, coercitiva e ilegal. A censura
continuou sendo praticada porque enquanto para alguns significava
o cumprimento de ordens, consentimento com a ordem vigente, para
outros, os militares, era atribuído um poder a imprensa que naquele
contexto era exagerado.

15  Para maiores informações, ver CORDEIRO(2015).

78
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A conciliação de instrumentos coercitivos e práticas de


cooperação da imprensa com os governos militares criou uma espécie
de “acordo forçado” entre o a Ditadura Militar e a imprensa. A maioria
da imprensa consentiu com a autocensura imposta pelo regime. “A
imprensa consentiu, porém não legitimou a censura imposta pela
Ditadura” (SMITH, 2000, p. 213).
Portanto, a maneira de ver a Ditadura Militar e de fazer os
discursos sobre esse período por parte da imprensa ou de sua maioria,
representou o modo de ver e de fazer do próprio regime autoritário
por intermédio da censura. Segundo Marconi (1980, p. 181), para
Alberto Dines: “No Brasil a imprensa sempre viveu à sombra do poder
controlando a informação”.

A Gazeta: o jornal capixaba no contexto ditatorial (1971-


1975)
A grande imprensa capixaba, tendo por referência o jornal
A Gazeta, experimentou as mesmas vicissitudes impostas pelo regime
autoritário em âmbito nacional, salvo alguns traços e peculiaridades
inerentes a cada região do país, em virtude da sua proximidade com o
poder central ou em razão das relações de força estabelecidas pelo viés
político e econômico dos estados no cenário federativo.
Entretanto, embora no cenário regional e nacional o
Espírito Santo se caracterizasse como um estado discreto política
e economicamente em relação aos outros entes da federação, um
amplo sistema repressivo foi estruturado por órgãos ligados às forças
armadas, entre os quais o Centro de Informação do Exército (CIE),
o Centro de Informação e Segurança da Aeronáutica e o Centro de
informação da Marinha (CENIMAR). De Angelo e Fagundes (2014,
p. 158) afirmam que “A partir da década de 1970, é possível detectar a
presença desses órgãos de segurança no Espírito Santo”.
Os órgãos de informação atuaram no estado também por
meio das ASIs (Assessoria de Segurança e Informação) e das AESIs
(Assessorias Especiais de Segurança e Informação) que marcaram

79
Das utopias ao Autoritarismo

presença em vários setores das repartições públicas capixabas38.


Entretanto, um dos alvos principais era a imprensa local. “Monitorar
a imprensa e os jornalistas era uma das tarefas prioritárias dos órgãos
de informação que atuavam no Espírito Santo” (DE ANGELO;
FAGUNDES, 2014, p. 164).
É nesse cenário repressivo e censório que se insere o jornal
A Gazeta. Historicamente, um jornal com “claro posicionamento
político e ligado as elites econômias” (MARTINUZZO, 2009, p.
13), sobretudo, a partir de 1948 quando foi adquirido para atender
as demandas políticas do então governador do estado Carlos
Lindenberg16. O referido periódico “Foi feito para atender as elites”
(BOURGUIGNON, ARRUDA, 2005, p. 51).
Por conta dos interesses políticos interferindo no seu fazer
diário desde então, o jornal A Gazeta passa a ser porta-voz da situação
entre 1948 a 1963 num período em que 80% da população capixaba
vivia no interior. Detalhe importante é que devido a ruralização do
estado e a dificuldade do poder público em chegar com capacidade e
presença para atender as demandas locais, os índices de analfabetismo
eram altos. Assim, o jornal era consumido por um grupo restrito de
cidadãos que viviam na capital Vitória, membros das elites políticas e
econômicas, pois ele não tinha alcance nos municípios.
A Gazeta tinha um público leitor bastante restrito, mais
urbano e mantinha-se com o resultado da venda avulsa,
pouco expressiva em relação ao todo que o jornal gastava
[...] Além disso, o periódico não possuía nenhum grande
anunciante (SILVA et al., 2008, p. 144).
No contexto do golpe civil-militar, SILVA et al. (2008, p.
150) afirmam que “na manhã de 31 de março de 1964, as rádios e
jornais capixabas já começaram a apontar sua posição favorável ou não
à Ditadura de coalizão civil-militar que acabara de tomar o governo”.
Segundo GENTILLI et al. (2013, p. 7), “O perfil de engajamento
político à direita do jornal A gazeta foi transformado em virtude do
golpe de 1964”.
16 Para maiores informações, ver FAGUNDES, OLIVEIRA, DE ANGELO
(2014).

80
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Assim, o jornal passa da linha editorial político partidário


para a lógica empresarial na gestão do diretor executivo Carlos
Lindenberg Filho que reassume o cargo em 1967. Além dos fatores
apontados, o AI-5 teve um papel importante na mudança estrutural
da grande imprensa não só capixaba mais nacional. Em função da
radicalização do regime autoritário, ele “institucionalizou os sistemas
repressivos que era o anseio da chamada “LINHA DURA” desde o
golpe de 1964” (FICO, 2004, p. 269).
Em decorrência da censura e da repressão, o jornal A
Gazeta, no contexto ditatorial, experimentou a transição daquilo
que RONCHI et al. (2015, p. 02) definiram como “modelo opinativo
para o informativo”. O jornal perdeu sua capacidade de apresentar ao
público leitor o seu ponto de vista em relação aos fatos, assumindo uma
lógica empresarial de um discurso mais objetivo, direto e imparcial.
Para conquistar vantagens econômicas o jornal se alinhou ao discurso
do poder autoritário.
A primeira metade dos anos de 1970 também configurou
como um período em que as empresas dos meios de comunicação
formaram verdadeiros conglomerados econômicos.
Apesar de a época do regime ditatorial ter sido um período
de tensão dentro das redações, foi nesse tempo também
que se estabeleceram as grandes empresas nacionais e
locais de comunicação. Esses grupos assimilaram a censura
oficial de maneira mais intensa, mais por questão de
sobrevivência empresarial do que por ideologia, haja vista
que a Ditadura recaiu por todos os setores da sociedade
brasileira que, de alguma maneira, discordavam do regime
imposto (RONCHI et al., 2015, p. 09).
No Espírito Santo o jornal A Gazeta estruturou-se numa
linha organizacional empresarial, alinhando a profissionalização
jornalística profissional dos seus funcionários, visando dar mais
objetividade aos textos publicados, com a aquisição de modernos
equipamentos da época que a tornaram uma potência da informação
no cenário local. “O jornal adotou o perfil editorial da grande imprensa
nacional” (RONCHI et al., 2015, p. 08). Ele se tornou o interlocutor
das elites políticas e intelectuais do estado.

81
Das utopias ao Autoritarismo

Na década de 1970 a empresa pagava os melhores salários


do mercado local e atraía profissionais gabaritados e de destaque. Vale
citar que parte dos jornalistas ligados a grande imprensa comungavam
dos princípios e valores do regime e que “não aderiram a ideia do
retorno à democracia” (ASSAD, 2014, p. 6).
É correto afirmar que além o instrumento da censura foi
um poderoso recurso persuasivo e de controle das informações
divulgadas na sociedade capixaba. A censura foi percebida e sentida
nas redações dos principais jornais do estado, tais como: A Gazeta,
Jornal da Cidade, A Tribuna, O Diário e o jornal alternativo Posição
que funcionou entre os anos de 1976-1979.

Considerações finais
A proposta de análise do presente, na vertente seguida pela
História do Tempo Presente, objetiva compreender as demandas
sociais do presente em relação ao passado recente da nossa história,
as representações do nosso passado ditatorial visando discutir o
papel desempenhado pela imprensa capixaba na construção de uma
memória positiva sobre a ditadura militar no Espírito Santo.
Para tal análise é necessário entender a dinâmica do controle
da informação estabelecida pelo regime militar, como ela se inseriu no
meio da imprensa de forma a contribuir para a produção do consenso
pró-ditadura. Na questão local, é importante compreender quem
produziu e quem patrocinou a propaganda e a publicidade utilizadas
nos meios de comunicação no Espírito Santo nos anos de 1971 a 1975;
os interesses políticos e econômicos ligados ao poder autoritário, bem
como compreender como se construiu o discurso oficial do Regime
Militar em solo capixaba, os caminhos trilhados pela comunicação/
informação do governo estadual neste recorte histórico e suas
contribuições para o fortalecimento do discurso pró-ditadura perante
a sociedade local.
Relevante é identificar a presença do consentimento, através
das formas de comportamentos sociais tais como: a indiferença, o

82
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

silêncio, a apatia, fascinação, adesão declarada, submissão declarada


e que podem ter sido um elo entre a sociedade capixaba e a ditadura
militar. Para tal fim, é essencial uma análise sobre o consenso social no
período de 1971-1975 em território capixaba que supere os embates,
as batalhas pela memória que produziram e ainda produzem uma
bipolarização entre dominadores e vítimas que é frágil e limitadora
para retratar o contexto histórico pesquisado, escondendo as variáveis
complexas e heterogêneas sociais.
O Regime Militar brasileiro (1964-1985) é um período que
nos mostra indícios de várias relações complexas entre a sociedade
civil e o regime autoritário em solo capixaba, que carece de maior
compreensão e estudo para trazer à tona as realidades vividas e sentidas
pelo povo, as relações de poder constituídas entre os atores políticos e
econômicos que estavam em cena naquele contexto ditatorial.

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Das utopias ao Autoritarismo

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84
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Atestado de Ideologia Política: repressão e


ideologia política na ditadura militar (1964-85)
Amarildo Mendes Lemos (IFES)1

O presente trabalho tem o objetivo de identificar a alguns


aspectos da ação de vigilância social do aparato repressivo, no
Espírito Santo durante a ditadura militar sobre a sociedade capixaba,
em especial, na vida de pessoas que não militaram em organizações
políticas ou em movimentos sociais. Por meio da análise de
documentos relativos à emissão do atestado de ideologia investigamos
o papel da polícia política no âmbito da produção de informações e
produção de documentação sobre a vida das pessoas como parte da
repressão que se realizava sobre o conjunto da sociedade com vistas a
anular a expressão e a circulação de ideias contrárias ao regime militar.
No presente, a emergência do “consenso neoliberal”
traz à tona, novamente, o problema da ideologia única. A estrutura
institucional da democracia e da liberdade promovida no ocidente
se choca com o Estado de ideologia única que, em harmonia com
os imperativos do capital, promove a redução da democracia ao
pleito eleitoral dominado por partidos políticos submissos ao capital
(MÉSZARÓS, 2012, p.14). A tendência à uniformidade ideológica e
política com vistas a suprimir movimentos contrários à síntese liberal-
conservadora da direita política pode ser verificada no Brasil no
movimento organizado Escola Sem Partido, que reúne organizações
não-governamentais, partidos políticos, empresários, religiosos, entre
outros, na luta contra o que eles chamam de doutrinação ideológica.
Segundo o movimento criado pelo procurador de Justiça do estado de
São Paulo, Miguel Nagib,
EscolasemPartido.org é uma iniciativa conjunta de
estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação
político-ideológica das escolas brasileiras, em todos

1  O autor é mestre em História pela UFES e professor de História do Instituto


Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (campus Serra); e-mail:
amarildo.lemos@ifes.edu.br.

85
Das utopias ao Autoritarismo

os níveis: do ensino básico ao superior. A pretexto de


transmitir aos alunos uma “visão crítica” da realidade, um
exército organizado de militantes travestidos de professores
prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredo
das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de
mundo. Como membros da comunidade escolar – pais,
alunos, educadores, contribuintes e consumidores de
serviços educacionais –, não podemos aceitar esta situação.
EscolasemPartido.org foi criado para dar visibilidade a
um problema gravíssimo que atinge a imensa maioria das
escolas e universidades brasileiras: a instrumentalização
do ensino para fins políticos, ideológicos e partidários. E
o modo de fazê-lo é divulgar o testemunho das vítimas,
ou seja, dos próprios alunos. Pela descontaminação e
desmonopolização política e ideológica das escolas. Pelo
respeito à integridade intelectual e moral dos estudantes.
Pelo respeito ao direito dos pais de dar aos seus filhos a
educação moral que esteja de acordo com suas próprias
convicções (sic).
Apoiar iniciativas de estudantes e pais destinadas a
combater a doutrinação ideológica, seja qual for a sua
coloração; Orientar o comportamento de estudantes e
pais quanto à melhor maneira de enfrentar o problema;
Oferecer à comunidade escolar e ao público em geral
análises críticas de bibliografias, livros didáticos e conteúdos
programáticos; Promover o debate e ampliar o nível de
conhecimento do público sobre o tema “doutrinação
ideológica”, mediante a divulgação de atos normativos,
códigos de ética, pareceres, estudos científicos, artigos e
links dedicados ao assunto (NAGIB. Quem Somos).
A perseguição àquilo que o movimento Escola Sem Partido
chama de doutrinação ideológica tem produzido projetos de lei que
buscam garantir que a ideologia política e religiosa do movimento
seja protegida pelo Estado. Nesse sentido, eles atuam na promoção
daquilo que o filósofo István Mészáros chamou de Estado de ideologia
única, atendendo aos imperativos do capital. Segundo Mészáros,
Nas sociedades capitalistas liberal-conservadoras
do Ocidente, o discurso ideológico domina a tal
ponto a determinação de todos os valores que muito
frequentemente não temos a mais leve suspeita de

86
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

que fomos levados a aceitar, sem questionamento, um


determinado conjunto de valores ao qual se poderia
opor uma posição alternativa bem fundamentada,
juntamente com seus comprometimentos mais ou menos
implícitos. O próprio ato de penetrar na estrutura do
discurso ideológico dominante apresenta as seguintes
determinações ‘racionais’ preestabelecidas: a) quanto (ou
quão pouco) nos é permitido questionar; b) de que ponto
de vista; e c) com que finalidade.
Naturalmente, aqueles que aceitam de modo imediato
a ideologia dominante como a estrutura objetiva do
discurso ‘racional’ e ‘erudito’ rejeitam como ilegítimas
todas as tentativas de identificar os pressupostos ocultos e
os valores implícitos com que está comprometida a ordem
dominante. Assim, em nome da ‘objetividade’ e da ‘ciência’,
eles precisam desqualificar o uso de categorias vitais do
pensamento crítico. Reconhecer a legitimidade de tais
categorias seria aceitar o exame dos próprios pressupostos
que são assumidos como verdadeiros, juntamente com
as conclusões que podem ser – e efetivamente o são –
facilmente delas extraídas (MÉSZARÓS, 2012, p.58).
A preocupação com a ideologia política não é algo perdido
no passado da ditadura militar. Chamamos a atenção para a presença
em nossa realidade do problema do entendimento da divergência
em relação à ideologia dominante como doutrinação, algo que se
assemelharia à catequese, só que teria no lugar dos padres, professores
acusados de impor sua forma de ver o mundo a alunos caracterizados
como vítimas. O estudo do instrumento utilizado pela ditadura para
controle social pretende trazer a compreensão dos problemas trazidos
para a sociedade no passado e alertar para os problemas que vivemos
no presente no que diz respeito à pretensão punitiva de determinados
grupos que querem levar para o âmbito do Estado leis cujos
fundamentos autoritários podem suprimir as liberdades democráticas
estabelecidas no texto constitucional brasileiro promulgado em 1988.
Nesse sentido, Mészarós acrescenta que
Seria ilusória a tentativa de explicar a ideologia meramente
pelo rótulo de “falsa consciência”, pois o que define a
ideologia como ideologia não é seu alegado desafio à

87
Das utopias ao Autoritarismo

“razão”, nem sua divergência em relação às normas


preconcebidas de um “discurso científico” imaginário, mas
sua situação real em um determinado tipo de sociedade. As
funções complexas da ideologia surgem exatamente dessa
situação, não sendo minimamente inteligíveis em termos
de critérios racionalísticos e cientificistas abstratos a elas
contrapostos, o que constitui meramente uma petição de
princípio (MÉSZARÓS, 2008, p.8).
O ideal democrático, da forma como foi concebido na
modernidade, não se harmoniza com o estabelecimento de limites à
crítica da realidade, com o estabelecimento de um Estado de ideologia
única. No entanto, um regime autoritário como o que se instalou no
Brasil em 1964, arrogava para si o título de democrático. Mais ainda,
nos documentos pesquisados, comumente encontramos carimbada
a seguinte frase: “A Revolução de 64 é irreversível e consolidará a
democracia no Brasil”. Porém, consolidar a democracia deveria
significar a promoção da liberdade de pensamento e a autorização
do dissenso, como forma de construção dos consensos a serem
estabelecidos. A ditadura fez o contrário disso, impôs o consenso
pelo medo da violência e também por meio da exclusão social que
contou com o atestado de ideologia para ser realizada. Nesse sentido, a
ditadura corresponde diretamente em termos ideológicos àquilo que é
exigido no atestado de ideologia política, ou seja, a correspondência dos
pensamentos e ações dos indivíduos aos valores da classe dominante,
sem questionamentos que coloquem em xeque o status quo.

Origens do Atestado de Ideologia Política


O fundamento jurídico-legal que permitiu a tipificação
e o enquadramento de determinadas formas de pensar/agir como
“subversivo” tem raízes na “Lei Monstro” criada no contexto da
Era Vargas e que permitiu ao Estado brasileiro combater ideologias
políticas revolucionárias e partidos políticos calcados nessas
ideologias, em especial o Partido Comunista do Brasil (PCB).
Nesse contexto, a revolta comunista de 1935, condenada como um
movimento que pretendia submeter a nação brasileira a um governo

88
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

estrangeiro, permitiu a “coesão ideológica anticomunista de militares,


conservadores e autoritários” no Brasil (REZNIK, 2004, p.56). Após
esse evento, tanto nas forças armadas como no restante da sociedade
a repressão política de caráter anticomunista promoveu prisões e
punições a partir de critérios ideológicos, com os crimes contra a
ordem política e social tipificados.2
O temor propagado pela propaganda anticomunista
conduziu o Brasil à ditadura do Estado Novo (1937-45). Nesse
contexto, a repressão política se intensificou. No decreto-lei n.º 5.452,
de 1º de maio de 1943, lemos no artigo 530:
Não podem ser eleitos para cargos administrativos ou
de representação econômica ou profissional: a) os que
professarem ideologias incompatíveis com as instituições
ou os interesses da Nação.3
A repressão política realizada na ditadura do Estado Novo
tinha como objetivo principal a repressão ao comunismo, contudo, a
segurança do Estado era um tema que colocava sob vigilância política
não só comunistas, mas também nazistas, fascistas e democratas. A
vigilância política é indissociável do trabalho policial da polícia política.
A existência de uma agência estatal com a finalidade de realizar a
função de polícia política no Brasil data de 1933. No entanto, segundo
Luiz Reznik, a documentação disponível demonstra que as atividades
da Delegacia Especial de Segurança Política e Social (Desps) criada
em 1933 e organizada em 1934 no Rio de Janeiro, na época distrito
federal, se intensificaram após a Lei de Segurança Nacional e revolta
comunista de 1935, em abril e novembro respectivamente.
Tanto o atestado de ideologia política, quanto a organização
de delegacias especializadas em crimes relacionados com a ordem
política e social têm origem no Estado Novo. Com a redemocratização
em 1945 não foi abolida imediatamente a legislação que exigia
a cobrança desse instrumento de controle nos órgãos públicos e
autorizava que empresas também solicitassem. Em março de 1944 foi
2  A lei nº 38, de 04-04-1935 definiu crimes contra a ordem política e social.
3 <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del5452.htm#art530a.>
Acesso em: 20/07/2018.

89
Das utopias ao Autoritarismo

criada a Divisão de Polícia Política e Social (DPS) a aprtir da estrutura


da Polícia Civil do Distrito Federal. Em 1945 a DPS foi extinta e foi
criada a Delegacia de Ordem Política e Social (DOP) que tinha na sua
estrutura interna dois setores especializados: “fiscalização trabalhista”
e “ordem pública” (REZNIK, 2004, p.111-2).
A estrutura policial passou por um processo de estruturação
e divisão do trabalho que permitia arquivamento, classificação e
acesso a informações controladas pelo Serviço de Informações que
atendia toda burocracia estatal, bem como empresas privadas que
queriam saber sobre os “bons antecedentes” de seus empregados ou de
candidatos a vagas de emprego ou concursos. O “nada consta” também
era necessário para obtenção de registro de armas, participação em
eleições de sindicato, entre outros motivos (REZNIK, 2004, p.118).
Apesar das várias finalidades, a polícia se adaptou ao crescimento
do mundo urbano-industrial que ensejou o aparecimento de
movimentos de massa e grupamentos ideológicos aos quais o Estado
desejava manter o controle. No contexto interno de transformações
socioeconômicas e externo de Guerra Fria, o Estado brasileiro adotou
uma Constituição de feição democrática, mas também se preocupou
em definir crimes contra a ordem social e política na Lei de Segurança
Nacional de 1953.
A regulamentação que pôs fim ao atestado de ideologia
política foi o resultado de uma luta política travada por sindicatos
e diversos movimentos sociais que se iniciou no governo de Eurico
Gaspar Dutra (1946-1950). Somente em com a lei nº 1.667, de 1º
setembro de 1952 que o atestado de ideologia política foi formalmente
abolido. Em seu texto lemos: “Art 1º É revogada a alínea a do Art.
530 do Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 (Consolidação
das Leis do Trabalho). Art 2º É proibida, sob qualquer pretexto ou
modalidade, a exigência do atestado de ideologia, ou qualquer outra
que vise a apreciar ou a investigar as convicções políticas, religiosas ou
filosóficas dos sindicalizados”.4
Enquanto a opinião pública se mobilizava para defender o
4 <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L1667.htm>. Acesso
em 20/07/2018.

90
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

monopólio estatal do petróleo, o mesmo não acontecia para repudiar


a Lei de Segurança Nacional (REZNIK, 2004:91). Assim, o período
democrático trouxe consigo o debate sobre as liberdades individuais,
porém, a questão social e a mobilização dos trabalhadores por direitos
trabalhistas associadas à existência de garantias constitucionais às
liberdades individuais faziam com que instituições de direito privado,
empresas, políticos (sobretudo os udenistas) e membros da polícia
política se preocupassem com a segurança do Estado, para não dizer
da propriedade. Tal preocupação se dava tanto na esfera federal e
como na estadual. No Espírito Santo, na Lei Nº 719 de 07/03/19535,
vemos:
Art. 21 – À Delegacia da Ordem Política e Social compete:
a) – a matéria relacionada com a ordem política e social, a
economia regular e com crimes e contravenções referentes
à organização do trabalho, à paz pública, à fé pública e à
administração pública;
b) – fiscalizar os embarques e desembarques de passageiros
por via terrestre e as pessoas em trânsito ou residentes em
hotéis e habitações coletivas;
c) – controlar o fabrico, depósito, comércio e uso de
explosivos e inflamáveis, armas e munições, substâncias
corrosivas, tóxicas e entorpecentes;
d) – o serviço de registro de estrangeiros e o de porte
individual de arma;
e) – a execução de todos os serviços secretos da Polícia
Civil (destaques meus).
A questão da organização do trabalho, ou seja, o controle
sobre a força de trabalho e dessa forma sobre os trabalhadores é um
aspecto fundamental do trabalho das polícias políticas. A segurança
do Estado, no contexto da economia capitalista requer trabalhadores
disciplinados e distantes de ideologias que contestem o sistema
econômico. Dessa forma, embora a lei nº1.667, de 1º de setembro de

5  Lei Nº 719 de 07/03/1953, publicada no diário oficial em 14/04/1953. <http://


www.al.es.gov.br/antigo_portal_ales/images/leis/html/LO0719.html>. Acesso em
20/07/2018.

91
Das utopias ao Autoritarismo

1952 tenha extinguido formalmente o atestado de ideologia política,


é possível encontrar registros de queixas contra a continuidade do
mesmo procedimento, sem contudo utilizar a mesma terminologia.
Em agosto de 1953 encontramos registros desse tipo de situação. Os
movimentos de trabalhadores insistiam na acusação da permanência
da perseguição política aos trabalhadores afirmando que sob o disfarce
de “atestado de antecedentes criminais e políticos”,6 continuava
a ser cobrado o atestado de ideologia política pelo Departamento
Administrativo do Serviço Público (1938-1986), órgão criado durante
a ditadura do Estado Novo “diretamente subordinado à Presidência
da República, com o objetivo de aprofundar a reforma administrativa
destinada a organizar e a racionalizar o serviço público no país,
iniciada anos antes por Getúlio Vargas”(FGV-CPDOC).
Em nota do jornal O Globo de 08 de agosto de 1953, na
matéria “O DASP não exige atestado de ideologia política”, o diretor
de seleção e aperfeiçoamento do DASP negou que continuasse
exigindo atestado de ideologia política e afirmou que tratava-se de um
prova de investigação social, afirmando que
é um processo normal de apuração de idoneidade para
o exercício de cargo público e, nesse sentido, se tem
pronunciado invariavelmente, o Judiciário. (…) Qualquer
pessoa de bom senso compreenderá a necessidade de se
evitar que ingressem na administração pública e sejam
investidos de autoridade que o Estado delega a seus
servidores, indivíduos de maus antecedentes (APERJ.
Dossiê: Atestado de Ideologia Política).
Em resposta, na defesa dos trabalhadores sai nota intitulada
“O Atestado de Ideologia” no jornal O Dia de 09 de agosto de 1953
com o seguinte trecho:
Diz o diretor desse serviço [DASP] que é mentira o que se
afirma com relação ao assunto, pois nunca se exigiu ali o
famigerado atestado de ideologia aos que ingressam nos
quadros do serviço público, mas apenas um atestado de
“investigação social”, passado pela Polícia… Valha-nos

6  O DASP não exige atestado de ideologia política. O Globo, 08 ago. 1953.


Arquivo Público do Rio de Janeiro. Dossiê: Atestado de Ideologia Política.

92
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Deus, pois os homens públicos dêste país já não sabem


nem mesmo distinguir o alcance e o sentido dos vocábulos!
Qual será a diferença encontrada pelo DASP entre um
“atestado de ideologia” e um atestado de “investigação
social”? Quem passa esse último? A mesma repartição que
passava o outro, isto é, a Delegacia de Ordem Política e
Social. E o que é “investigação social”, que objetivo tem,
senão o de comprovar exatamente aquilo que o “atestado
de ideologia” comprovava, que o portador não era elefante,
mas coelhinho inofensivo por pensamentos, palavras e
obras? Onde está, portanto, a diferença? Há apenas uma
questão de nomes, mas os objetivos são os mesmos, num
e noutro caso (APERJ. Dossiê: Atestado de Ideologia
Política).
A pesquisa que fizemos não nos permite ainda afirmar
que houve continuidade do uso do atestado de ideologia política
ou de documento equivalente antes do golpe de 1964. Apesar disso,
fica evidente que tanto a burocracia estatal como o empresariado
se valeu da estruturação pela qual passou a Polícia Política, cuja
profissionalização, modernização e nacionalização permitiu a
normalização de procedimentos e constituição de um etos que
objetivou a homogeneização de valores, concepções e códigos
comuns, o que foi facilitado pelo intercâmbio de correspondência
entre os agentes (REZNIK, 2004, p.148). A partir dessa modernização
do aparato policial, a capacidade de acesso e circulação da informação,
bem como do controle social sobre os trabalhadores foi aprimorado,
permitindo a exclusão de indivíduos que não se adequavam à ideologia
dominante.

Aparato repressivo estatal: autonomia e neutralidade ou


alinhamento à ideologia dominante?
O aparato policial, montado durante em 1933, adquiriu cada
vez mais organicidade e ao longo da década de 1950 uma ampla rede
internacional foi se constituindo. Polícias, agências de inteligências
e chancelarias diplomáticas do ocidente capitalista mantiveram,
nesse período, estreitas relações para estabelecer “um conjunto de

93
Das utopias ao Autoritarismo

informações que subsidiasse o exercício de propaganda e repressão à


ideologia e à ação comunistas” (REZNIK, 2004, p.174). Nesse sentido,
Brasil e Cuba compareceram, como observadores, no XX Congresso
da Comissão Internacional de Polícia que contou com 77 delegados
de 36 países, que se encontram entre 11 e 15 de junho de 1951. Após
a participação do Brasil no evento, o delegado de Segurança Política
da Divisão de Polícia Política e Social do Departamento Federal de
Segurança Pública, José Picorelli, apontava o conjunto de mudanças
percebidas na polícia política brasileira e avaliava positivamente as
transformações percebidas no trabalho por eles realizados. Segundo
Picorelli, os departamentos de segurança
estruturaram serviços de investigações, criaram seções
especializadas, instituíram setores técnicos, seriaram
atribuições específicas, varreram regulamentos obsoletos,
adotaram pesquisa científica, ergueram escolas de polícia,
difundiram livros e revistas de policiologia, servindo-se,
num labor de assimilação incessante, das lições de mestres,
dos cadastros de prática, da experiência de aparelhamentos
e organizações congêneres (REZNIK, 2004, p.175).
Com o Golpe de 1964, toda estrutura montada e
conhecimento produzido durante a Era Vargas (1930-45) e durante o
período democrático (1946-64) foi incorporada à estrutura repressiva
montada pelos militares. É importante destacar que a estrutura
policial durante a ditadura militar estava a serviço de uma ideologia
política específica, a extrema direita, e correspondia aos interesses
demandados pelo governo realizando espionagem, interrogatórios,
prisões, torturas, atentados e homicídios (FICO, 2001). Da mesma
forma, na base da hierarquia da estrutura montada em nível federal,
nos estados a ideologia dominante era a mesma. O poder da ideologia
não é algo que resulta do aspecto repressivo, ou seja, da violência
imposta sobre a sociedade. O aparato repressivo, a estrutura policial,
reforça a ideologia dominante, já que
o poder da ideologia dominante é indubitavelmente
enorme, não só pelo esmagador poder material e por
um equivalente arsenal político-cultural à disposição
das classes dominantes, mas também porque esse poder
ideológico só pode prevalecer graças à preponderância

94
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

da mistificação, por meio da qual os receptores potenciais


podem ser induzidos a endossar, “consensualmente”,
valores e práticas que são, na realidade, totalmente
adversos a seus interesses vitais (MÉSZARÓS, 2008, p.8).
Na Delegacia de Ordem Social e Política (DOPS) no Espírito
Santo, por exemplo, subordinada ao Governo do Estado do Espírito
Santo, cumpriu funções de vigilância sobre questões ideológicas
durante a Era Vargas e também depois durante o período democrático
entre 1946 e 1964. Após o golpe de 1964, essa delegacia especializada
integrou-se ao Sistema Nacional de Informações, e continuou sendo,
após a criação do sistema DOI-CODI (reunia o Destacamento de
Operações e Informações e o Dentro de Operações de Defesa Interna,
cuidando da inteligência e da repressão, respectivamente), parte muito
importante na consecução dos objetivos estabelecidos pelos militares
em âmbito federal. Com a implantação do sistema DOI-CODI, a
autonomia da DOPS foi reduzida, sendo limitada pelo Exército
brasileiro que assumiu o controle do Estado brasileiro indicando
todos os presidentes do período.
É importante destacar que o controle militar do Executivo
não implica na exclusão de civis do aparelho estatal. O sistema DOI-
CODI, criado em 1970, tem na sua origem a Operação Bandeirantes,
criada em 1969, a qual contou com o financiamento de empresários
para sua existência, demonstrando um caráter classista do golpe de
1964 e da ditadura que se seguiu. A respeito do papel dos civis na
ditadura, Pedro Henrique Pereira Campos, afirma que:
a burguesia industrial paulista tinha como importante
elemento constitutivo o grupo de empreiteros de obras
públicas, e Delfim em várias decisões beneficiou o setor,
como na ampliação das verbas para investimentos em
obras e na reserva do mercado nacional às empreiteras
brasileiras, para além dos favorecimentos individuais a
empresas como a Camargo Corrêa. O poder de Delfim
em suas gestões como ministro e a certa intocabilidade
das áreas sob sua responsabilidade por outros agentes
do aparelho de Estado, inclusive militares e o presidente
da República, eram expressões do poder central que
a burguesia brasileira tinha no regime ditatorial, com

95
Das utopias ao Autoritarismo

posição privilegiada para a fração industrial paulista


(CAMPOS, 2017, p.308).
Além dos interesses da burguesia brasileira na repressão aos
movimentos sociais e políticos ligados aos trabalhadores, evidente na
criação da Operação Bandeirantes, o DOI-CODI, não se formou e se
articulou somente a partir de iniciativas de brasileiros. Os serviços
secretos que formaram a estrutura repressiva brasileira receberam
maior qualificação a partir de relações com outros países desde a
formação da Polícia Política no Brasil. Assim, a articulação da estrutura
policial brasileira foi realizada a partir de diretrizes e conhecimentos
adquiridos por meio de cursos de formação e capacitação realizados
pelos estadunidenses que visavam o estreitamento de relações para
obtenção de informantes e pessoas leais aos EUA. Segundo Martha
Huggins, a aproximação da principal agência de inteligência dos EUA
- CIA (Central Intelligence Agency) - das polícias estrangeiras tinha
entre os seus objetivos cultivar
Relações com pessoal de polícia que pudesse informações
secretas à CIA. As polícias políticas, em particular, eram
alvos da CIA, ... [uma vez que] possuíam informações
diretas sobre comunistas, ‘perturbadores da ordem’,
políticos, militares ambiciosos, agitadores operários (...)
[e poderiam] prestar serviços especiais para os Estados
Unidos (LOBE, apud HUGGINS, 1998, p.105).
Por meio dos serviços secretos, os EUA garantiram apoios
políticos nos países sob a sua influência e o sucesso almejado em relação
aos seus objetivos e aos de suas empresas. Nesse sentido, a existência
de oposição política no governo federal ou em governos estaduais era
contornada pela articulação com as polícias políticas, com os serviços
secretos, que desde a Segunda Guerra Mundial foram estreitando
laços com os EUA e aderindo ao ideal anticomunista. Assim,
independentemente da ideologia política do governo estabelecido, as
conexões se mantiveram por meio de políticos, empresários e policiais
alinhados com os EUA. Para tanto, conforme salienta o ex-chefe da
CIA, Allan W. Dulles, a espionagem, no governo dos EUA, foi levada
à posição mais influente do que em qualquer lugar do mundo. Allan
Dulles reconhecia que a CIA deveria seguir o modelo do Serviço de

96
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Segurança soviético, o qual além de ser uma organização de polícia


secreta, de uma organização de espionagem e contraespionagem,
constituía-se num “instrumento para a subversão, manipulação e
violência, para intervenção secreta nos assuntos de outros países”
(ARENDT, 2012, p.665).
A aproximação dos serviços secretos do Brasil com a
CIA por meio de cursos de formação se justificava pelo argumento
da profissionalização e formação de uma polícia técnica dotada de
modernos conhecimentos, cujos fundamentos científicos permitiriam
a neutralidade dos agentes em relação às ideologias políticas em
conflito na arena política. Diante desse problema, concordamos com
Martha Huggins, estudiosa da relação entre polícia e política, para
quem “uma polícia aparentemente ‘neutra’ em relação à política e
às classes contribuiu para mascarar e mistificar as relações de força
realmente desiguais que impregnam uma hierarquia de classes sociais,
da qual a polícia é parte e sustentáculo” (HUGGINS, 1998, p.12). Para
Huggins, o monopólio da violência e o controle do aparato repressivo
realizados na esfera estatal expressavam interesses dos grupos políticos
e, sobretudo, das classes que controlavam o Estado.
Diferentemente dessa interpretação, na análise do papel da
polícia secreta a partir da leitura da filósofa Hanna Arendt, identifica-se
que o aparato repressivo desfruta de autonomia em relação aos grupos
políticos. Segundo Arendt, mesmo as formações políticas democráticas
dos chamados países centrais, dotados de um complexo industrial-
militar moderno receberiam a interferência do governo invisível,
ou seja, as democracias europeias e a americana também estavam
submetidas ao poder secreto. Assim, nos governos constitucionais, os
serviços secretos funcionariam para Hanna Arendt como um “Estado
dentro do Estado” (ARENDT, 2012, p.566) por possuir o monopólio
de “informações vitais” (ARENDT, 2012, p.567-8).
Dessa forma, segundo o pensamento arendtiano, os chefes
políticos eleitos nos sistemas democráticos não conseguiriam garantir
o controle sobre o serviço secreto. Somente no totalitarismo essa
situação se inverteria e haveria a subordinação do aparato repressivo
ao chefe de Estado. Isto porque, ao contrário do papel da polícia nos

97
Das utopias ao Autoritarismo

regimes democráticos, o “dever da polícia totalitária não é descobrir


crimes, mas estar disponível quando o governo decide aprisionar
ou liquidar certa categoria da população” (ARENDT, 2012, p.566).
No totalitarismo, afirma Arendt, “os serviços secretos já não sabem
coisa alguma que o líder não saiba melhor que eles. Em termos de
poder, a polícia desceu à categoria do carrasco.” (ARENDT, 2012,
p.567). Apesar disso, mesmo tendo sua importância reduzida, visto
que a condenação de alguém à morte não requer formação de culpa, a
polícia secreta permaneceria como principal instituição dos governos
totalitários. Para Arendt, tanto a polícia secreta totalitária como a não-
totalitária podem tirar
proveito das vítimas, suplementando o orçamento oficial
autorizado pelo Estado por meio de certas fontes não
ortodoxas, associando-se simplesmente a atividades que
deveria combater, como o jogo e a prostituição. Esses
métodos ilegais (...) iam desde a cordial aceitação de
subornos até a franca chantagem, muito contribuíram
para que os serviços secretos se libertassem das autoridades
públicas, fortalecendo a sua posição como um Estado
dentro do Estado (ARENDT, 2012, p.568-9).
A degeneração das ações policiais no controle e realização
de atividades criminosas como furtos, contrabando, jogos
clandestinos, assassinatos entre outras ilegalidades, quando parte
“do aparelho de controle social se desburocratiza – p. ex., rompendo
os vínculos formais com a burocracia oficial – mesmo se mantendo
secretamente vinculado ao sistema formal de controle,” pode ser
entendida como o resultado da criação de sistemas extremamente
racionalizados de repressão.
Para Martha Huggins, a degeneração das ações policiais
se relaciona com o modelo de profissionalização adotado pelas
polícias. Assim, o estudo do processo de profissionalização do
trabalho permite conhecer “as raízes e a dinâmica dessa dialética de
internacionalização, centralização e recrudescimento do autoritarismo
contra a degenerescência no interior de um sistema de controle
social altamente racionalizado e moderno” (HUGGINS, 1998, p.27).
De acordo com Huggins, o treinamento vendido pelos Estados

98
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Unidos à América Latina, no contexto da Guerra Fria, configurava-


se como uma “chantagem protecionista” que contribuiu para “a
degenerescência e privatização da segurança interna convertida em
mercadoria”, também transformou a “ação policial e a ‘segurança
interna’ em produtos definidos pelo cliente, ‘comprados e vendidos
dentro de um mercado’ promovendo ainda mais a expansão da expiral
da degenerescência” (HUGGINS, 1998, p.28).
O estreitamento de relações durante o período democrático
(1946-64), com o treinamento de polícias pelos EUA, resultou
em condições de controle social adequadas a regimes autoritários
uma vez que aumentou a eficiência do Estado no sentido de
sufocar a participação dos cidadãos e a dissensão política. Os EUA
incentivaram, de uma forma ou de outra, “a existência do governo
autoritário mediante a militarização do controle interno”. Assim, ao
contrário de ser um
recurso apolítico de transferência internacional de
tecnologia (…) o treinamento de polícias estrangeiras
tem sido utilizado quase exclusivamente para promover
interesses e objetivos políticos específicos de segurança
nacional dos Estados Unidos (HUGGINS, 1998, p. 9).
A interferência dos EUA nos assuntos internos da América
Latina se relaciona com a aproximação com os governos autoritários
que atuam na promoção de sua ideologia política. Relacionar o ideal
democrático do governo dos EUA com o ideal democrático assumido
pelos militares golpistas no Brasil pode parecer contraditório, porém,
o discurso golpista de Carlos Lacerda já apontava suas semelhanças. A
defesa das liberdades democráticas de Lacerda era articulada em um
discurso que reconhecia a intervenção militar na derrubada de um
presidente eleito pelo voto popular como algo legítimo e mais, como
uma forma de salvaguardar a democracia.
O elitismo e o golpismo são características identificadas em
toda a trajetória da UDN. O golpismo presente na UDN se relaciona
diretamente com a visão de Carlos Lacerda. O “liberalismo restrito”
corresponde diretamente ao elitismo e à sua “crença inabalável
na presciência das elites”. A aceitação de um regime autoritário

99
Das utopias ao Autoritarismo

em 1964, o qual seria “transitório e necessário para a realização da


democracia”, ou como disse Lacerda “defender o golpe para evitar
o golpe por via eleitoral” não contrasta com o elitismo do partido
diante do “confronto entre liberalismo e democracia, entre liberdade
e igualdade” (BENEVIDES, 1981, p.282).
Assim, a criação do Sistema Nacional de Informações,
em 13 de junho de 1964, com a “finalidade de superintender e
coordenar nacionalmente as atividades de informação e de contra-
informação, em particular aquelas de interesse para a segurança
nacional” (KORNIS) contou com uma estrutura formada ao longo de
décadas, a qual reproduziu uma ideologia específica e reprimiu ações
e pensamentos contrários.
Ao fator exógeno, evidenciado por Martha Huggins, se
relacionaram dessa forma aspectos endógenos na formação de
uma estrutura repressiva degenerada em crime organizado, como
foi denunciando em jornais locais, na obra do advogado Ewerton
Guimarães, A chancela do crime (1978) e recentemente nas memórias
do ex-delegado da DOPS-ES, Cláudio Antônio Guerra, Memórias
de uma guerra suja (2012). Degenerada ou não, a polícia política
cumpriu o papel de controle ideológico. Os alcances, limites e nuances
da ideologia política que fundamentava o regime instaurado em 1964
estão presentes na documentação produzida pelo aparato repressivo.
O uso da polícia secreta durante a ditadura militar (1964-1985) se
relaciona, portanto, diretamente com a ideologia política do próprio
regime. É importante lembrar que civis e militares se valeram do
aparelho legal do Estado, mas também acionaram forças clandestinas
como a Scuderie Le Cocq, oficialmente uma instituição filantrópica,
reconhecida como sindicato do crime.
No Espírito Santo, o ex-delegado da DOPS, Cláudio
Guerra, trabalhou diretamente para o coronel do Exército, Freddie
Perdigão Pereira, em uma operação chamada Setembro Negro que
tinha como objetivo prender os membros de uma brigada militar
para averiguar se eram ligados à esquerda política. Esse episódio
ilustra como que ações clandestinas eram usadas para espraiar a
sensação de medo e legitimar o regime. Ao relembrar dessa operação

100
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Cláudio Guerra ressalta:


Erramos mais uma vez. A nossa desorganização, os
ciúmes, a falta de entrosamento, tudo isso acabou
impedindo que esse grupo colocasse em prática o que
estavam planejando: uma enorme onda de atentados
no país inteiro, usando a mesma tática nossa de atribuir
a violência das ações à esquerda. Mais um erro de
informação que acabou contribuindo para a abertura
política (GUERRA, 2012, p.135).
Sabemos que não eram somente as organizações de
esquerda que eram vigiadas. Arena e Sociedade Brasileira de Defesa
da Tradição, Família e Propriedade, entre outros, também foram
alvo dos agentes da DOPS, como podemos ver na documentação
disponível produzida pelos órgãos ligados ao Sistema Nacional de
Informações. Os conflitos internos e as disputas pelo poder político
levaram os militares a manter vigilância sobre empresas, instituições
religiosas, educacionais, de entretenimento, e ligadas ao meio
ambiente.
A vigilância se valia da tortura para se informar e ampliar
o conhecimento sobre os atores e se preocupava com os diversos
temas que podiam reunir coletividades, justamente por que nessas
ocasiões o debate sobre o regime político poderia acontecer. A
tortura, uma prática presente antes e depois da ditadura, era parte de
um sistema montado a partir de uma ideologia política que definia
quem eram os elementos subversivos. Sua prática é justificada
pela legitimidade atribuída à guerra contra o comunismo, para se
produzir informações sobre o conjunto da sociedade e combater o
inimigo interno. Essa formação ideológica servia de parâmetro não
só para a violência como para a emissão do chamado Atestado de
Ideologia Política.

O atestado de ideologia política na ditadura militar (1964-


1985)
Para além dos poucos que aderiram à luta armada e

101
Das utopias ao Autoritarismo

dos que buscaram a estratégia da luta política, de forma pacífica,


encontramos nos arquivos da polícia política capixaba nomes de
outras pessoas que também tiveram suas vidas vigiadas. Os Dossiês
pessoais formam um conjunto com 165 pessoas, algumas das quais
conhecidas por sua militância e apoio à luta armada, como é o caso
do jornalista Marcelo Amorim Neto que participou da publicação
do livro, Memórias de uma guerra suja, narrado pelo ex-delegado
Cláudio Guerra. Amorim, ex-militante preso por 13 meses, ressalta
na apresentação da obra que na sua opinião “foi bom para o país que
os militares tenham vencido aquela guerra suja dos anos 1970. O
Brasil hoje é melhor do que seria se nós – o outro lado – os tivéssemos
derrotado” (GUERRA, 2012, p.19).
Na direção contrária da interpretação de Marcelo Netto
sobre o período, os estudos históricos tem apontado para a construção
de uma memória social que polarizou a realidade histórica vivida e
reduziu-a a dois sujeitos históricos: de um lado os militares e de outro
a esquerda armada. A construção da memória do período 1964-1985
a partir dessa tensão entre a guerrilha e a ditadura deixa de lado outros
aspectos da realidade como as divisões internas na caserna e também
a existência de diversos movimentos de oposição ao regime militar.
Nesse sentido, a tese de Vitor Amorim Ângelo (2011, p. 205) chega à
seguinte reflexão:
Ao longo do trabalho buscamos analisar a relação entre
a ditadura e a luta armada no Brasil e seus reflexos na
memória social contruída a respeito daqueles anos.
Contudo, a dinâmica do período militar não esteve
reduzida a esses dois pólos, embora seja possível, como
fizemos, analisar a ditadura a partir da tensão entre o
regime e a guerrilha. (...) A luta armada (...) pouco teve de
luta propriamente dita, embora a tese de que o Brasil vivia
em uma guerra revolucionária durante a ditadura tenha
ganhado força.
Assim, a realidade brasileira comportava mais nuances do
que a visão dicotômica do período apresenta. Essa visão dicotômica
da realidade está presente na documentação produzida pela DOPS
capixaba. O fato de ter participado do Congresso da UNE, que

102
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

se encontrava na ilegalidade, em 1968, era motivo para que mais


de uma década depois fosse negada ao requerente um atestado
de ideologia política, prejudicando o mesmo em sua vida social.
Encontramos indícios de que esse tipo de documentação continuou
sendo requisitado até 1990 aqui no Espírito Santo, enquanto que em
São Paulo existe uma lei de 1979 que proibiu a solicitação de atestado
de antecedentes político-sociais para posse ou ingresso no serviço
público estadual.
Os requerimentos para emissão do Atestado de Ideologia
Política, nos Dossiês da DOPS-ES,estão classificados da seguinte
forma: para fins de naturalização; aquisição de passaporte; para
fins empregatícios; para fins diversos; para fins eleitorais; utilização
de materiais explosivos; para fins de comercialização e depósito
de fogos e artifícios; comércio e posse de armas, munições e
explosivos. Além disso, encontramos na documentação as seguintes
finalidades específicas para candidatos ao cargo de vigilante; para
apresentação às Forças Armadas (por ocasião do alistamento militar
obrigatório); para concurso de Juiz de Direito; para participar
de direção de sindicato; para apresentação ao Detran para retirar
Carteira Nacional de Habilitação (CNH); concurso Petrobrás;
cargo na Companhia Vale do Rio Doce (CVRD, hoje Vale); cargo
na Companhia Siderúrgica Tubarão (CST, hoje ArcelorMittal
Tubarão); cargo na Samarco Mineração; iniciação na Maçonaria
(sic); registro de candidatura a cargo político; registro de profissão
(Conselho Regional de Contabilidade; de Medicina).

103
Das utopias ao Autoritarismo

Figura 1: Atestado de Ideologia Política. DES_0_INV_DPES_92. No texto podemos


ler o seguinte: Atesto para os devidos fins que José Carlos da Silva não registra
antecedentes incompatíveis com o regime Democrático (27-09-1973 e 16-12-1971,
respectivamente). Comprovante pagamento de taxa Requerimento de atestado de
ideologia política BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.168 BRESAPEES.DES.O.MP.3 -,
p.154. Fonte: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.

O requerimento podia ser realizado por pedido próprio


do interessado ou por pedidos oriundos de órgãos públicos ou de
empresas, que encaminhavam suas listas de novos funcionários para
a DOPS com o objetivo de identificar a presença de “subversivos” em
seus quadros de funcionários. Assim, a delegacia que era demandada
para perseguir e capturar os “inimigos da nação” também era
responsável por emitir o atestado de ideologia política.

104
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Como havia um controle ideológico e social amplo e


organizado por meio da Comunidade de Informações e o sistema
repressivo integrava polícias estaduais, Marinha, Aeronáutica e com a
centralização e comando das ações de controle político concentravam-
se no Exército (FICO, 2001), as informações eram replicadas para todo
o sistema e quando alguém solicitava o atestado de ideologia política
os pedidos de busca se realizavam nos diversos arquivos caso houvesse
novas informações que não estavam disponíveis imediatamente ao
delegado da DOPS.
Na documentação observamos, por ora, que o delegado
determinava ao investigador que realizasse uma investigação e
produzisse um relatório após o seu serviço. A partir das conclusões
e julgamentos realizados, depois de estar em posse do histórico
individual era dado o parecer da DOPS. Esse procedimento, calcado
na premissa que existem ideologias políticas permitidas e outras
proibidas, atuou diretamente sobre a vida de muitas pessoas conforme
massa documental disponível no Arquivo Público Estadual do Espírito
Santo. Esses documentos não são, obviamente, um testemunho
da verdade, mas permitem ao pesquisador conhecer mais sobre a
ditadura civil-militar a partir da documentação oficial produzida para
sustentar o próprio regime.
Ao observar a relação entre Estado e sociedade partimos
da consideração que muitos setores da sociedade legitimaram o
golpe de 1964. Movimentos religiosos, empresariais, dos meios de
comunicação e políticos legitimaram o golpe de estado, que se realizava
para supostamente salvar democracia. O regime militar produziu
a autoridade e definiu o conteúdo político a ser colocado como
gabarito para o julgamento. Consolidar a democracia no Brasil não
passava, contudo, pelo cumprimento de um conteúdo fundamental
da democracia, a autorização do dissenso, o reconhecimento da
pluralidade, já que no lugar das liberdades individuais estava um
pensamento padronizado, calcado numa estrutura repressiva.
“Subversivo nos meios estudantis e sindicalizados”, eis uma
caracterização comum em documentos diferentes que reflete o perfil
de alguém que mesmo não sendo preso, torturado ou morto, mas está

105
Das utopias ao Autoritarismo

impossibilitado, por outro lado, de requerer o Atestado de Ideologia


Política.
Aly Edmundo Poletti, por exemplo, pleiteou um emprego
na Petrobrás em 1971, porém, era um “elemento considerado
subversivo nos meios estudantis e sindicalizados” por “agitação
no sindicato ferroviário”. Apesar de conceituado e estigmatizado,
dessa forma, não há detalhamento na documentação dos atos que
levaram a esse julgamento. Paradoxalmente, seu nome não consta
nos nomes elencados nos 165 Dossiês Pessoais da DOPS, o que leva a
dois caminhos, ou Aly foi fichado e sua documentação sumiu ou ele
não era considerado uma pessoa importante no conjunto das ações e
objetivos da DOPS.
Nos documentos da DOPS encontramos mencionadas na
documentação pesquisada até então, uma relação direta das seguintes
empresas com essa delegacia: Aracruz Florestal, Escelsa, Telest,
Nova Brasília, Cimento Paraíso, Bom Preço, Frigorífico Paloma,
Aracruz Celulose, Samarco, CST, CVRD, Novotel, Transportadora
Continental, Vitória Disel, COFAVI, Portocel, SAMA. Viação Águia
Branca, Sindicato dos Arrumadores “Minas Forte”, Chocolates Vitória,
Garoto, FINDES, Dadalto. A ligação do aparato repressivo com o
empresariado é mencionada especificamente em um documento
gerado após um “levante dos operários daquela empresa num total de
quase 200 homens que estavam destruindo as instalações da cantina”
(Caixa 29 – p.93). A empresa Morrison Knudsen Internacional de
Engenharia S. A. (MKI) possui um dossiê datado entre os anos de
1975 e 1979 no qual consta um relatório advertindo que
Os órgãos de segurança não têm conhecimento dos
operários ali contratados pelas empreiteiras. O certo seria
que as empreiteiras e sub-empreiteiras, depois de contratar
os operários, enviassem cópias xérox da relação para o
DPM de Guarapari, DOPS e PM/2, pois assim poderíamos
verificar se haveria algum elemento subversivo ou fugitivo
da justiça, de outros estados (Ibidem).
Nota-se que a empresa não fazia um levantamento do
histórico de todos os componentes de seu quadro de funcionários.

106
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

No entanto, o tal levante ocorrido na empresa Morrison não tinha


relação alguma com qualquer ideologia política. O que fica evidente
é que havia insatisfação com os maus-tratos sofridos. Os agentes
da DOPS constataram alguns fatores explicativos para o “quebra-
quebra”: péssima qualidade da alimentação; falta de higiene; policiais
militares e vigilantes tratavam operários com brutalidade, sendo que
os guardas “desciam o pau nos peões”. Mas mais especificamente o
que ocasionou o evento foi o fato de o décimo-terceiro salário não ter
sido pago no final do ano de 1975. O ocorrido gerou a necessidade de
a empreiteira citada encaminhar uma lista com os funcionários para
averiguação por parte da DOPS. As listas dos funcionários antigos
e dos recentes foram encaminhadas ocupando longas páginas da
documentação com um total de 208 páginas.
Com uma plataforma política direcionada para a defesa
dos interesses populares o político Max de Freitas Mauro possuía um
dossiê pessoal, e inúmeras referências em outros dossiês como o do
MDB/PMDB, na Delegacia de Ordem e Política Social. Em um evento
que aglutinou a esquerda capixaba realizado em 1984, seminário Paz
e Democracia, promovido com o objetivo de legalizar os partidos
comunistas, algumas personalidades foram premiadas. Entre elas
encontramos o então deputado federal pelo PMDB, Max de Freitas
Mauro, homenageado pela sua atuação política nacional. À frente do
seu nome encontra-se, nos registros feitos pelo agente da DOPS entre
parênteses a sigla PC do B.7 Obviamente eles sabiam que Max era do
PMDB, pois estava registrado assim, mas a sigla do Partido Comunista
do Brasil aparece erroneamente identificando-o como um membro
da célula desse partido. Em outro documento podemos observar que
Max é classificado como “elemento infiltrado de tendência anarquista”
(MAURO, 2002, p.91).
Por identificações equivocadas como essas que os
próprios militares costumavam chamar os policiais das delegacias
de ordem e política social de “corruptos, incompetentes, desonestos
e preguiçosos” (RAMOS, 2010, p. 128). No entanto, os arquivos da
repressão ainda não foram exaustivamente pesquisados, sobretudo
7  BRESAPEES.DES.O.MP.3, p.184.

107
Das utopias ao Autoritarismo

em relação ao estado do Espírito Santo. Muito do modus operandi


do aparato repressivo e das dificuldades e facilidades encontradas por
eles ainda está por ser revelado. Reconhecemos a impossibilidade de
reconstituição de todos os casos vividos, cujos fragmentos podem ser
encontrados na documentação. No entanto, as narrativas produzidas
na documentação permitem conhecer mais sobre o papel desse tipo de
procedimento e de suas imbricações no conjunto das relações sociais.
A incompatibilidade com o “Regime Democrático” imposto
com o Golpe de 1964 podia ser o resultado de inimizades com pessoas
do aparato repressivo ou ligadas a ele; questionamentos sobre salário,
moradia, saúde; críticas a membros do governo federal ou estadual,
ou a militares. A ideologia do regime requeria a concordância acima
de tudo, a ausência de questionamentos como fundamento básico do
sujeito compatível com o “Regime Democrático”. Nunca o dissenso,
sempre o consenso. A Segurança Nacional nos moldes da ideologia
dominante, mais do que perseguir o comunismo, perseguiu a
divergência, o contraditório e, dessa forma, contribuiu tanto para a
exclusão dos divergentes como para afirmação dos valores compatíveis
com o autoritarismo do regime.

Considerações finais
O fenômeno do controle social e político por meio da
polícia política durante a ditadura militar (1964-1985) não pode ser
separado de ações de violência tout court. A eliminação física foi
um expediente utilizado em muitas ocasiões para a eliminação de
adversários do regime militar. No entanto, o trabalho realizado pela
polícia política e seus efeitos ultrapassam os casos desse tipo violência.
Tortura, assassinato, ocultação de cadáver e ameaças às famílias de
militantes comunistas são acontecimentos denunciados durante
o próprio regime militar e vieram ao grande público em 1985, nos
estertores da ditadura, na obra Brasil: nunca mais, um testemunho e
um apelo, nas palavras do cardeal Paulo Evaristo Arns, para que esses
absurdos fossem extintos. Porém, o trabalho de vigilância política
trouxe muito prejuízo à sociedade, sem que a mesma, muitas vezes,

108
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

tomasse consciência das amplas consequências da ação da polícia


política sobre ela.
A partir de nossa pesquisa, procuramos tornar evidente
que, juntamente à atividade de repressão, a polícia também atuou no
setor de inteligência promovendo a vigilância sobre o conjunto da
sociedade, não reduzindo sua atuação a pessoas enquadradas como
criminosos pela Lei de Segurança Nacional, conforme a tipificação
penal vigente naquele período. Todas as formas políticas (autoritárias
e democráticas; direita, centro e esquerda) ou movimentos que
poderiam ser produzir impactos políticos foram objeto de atenção
do sistema repressivo. Assim, a extensão dos prejuízos causados à
sociedade pela ação de uma estrutura repressiva moldada por uma
ideologia única de conteúdo autoritário vai além do cálculo do
número de pessoas apreendidas, torturadas e mortas.
Os serviços de inteligência aliados à ação repressiva
permitiam a seleção de determinados padrões ideológicos e
comportamentais socialmente aceitos. A vigilância com vistas à
manutenção de uma ordem política e social instaurada a partir do
Golpe de 1964 permitiu reprimir o contraditório e restringir um
conjunto de ações que se chocavam com a ideologia hegemônica.
Dessa forma, o controle sobre o tecido social se realizava de forma
a reservar os altos degraus da estrutura social para os que, com sua
ideologia, reforçavam a dominação política exercida pelo regime, que
cuidava para que a ordem econômica e social fosse preservada.
A presença de valores e posturas autoritárias no presente
se relaciona com esse longo período em que os lugares sociais
eram determinados pelos “bons antecedentes” que indicavam que
a ideologia política de determinada pessoa era compatível com o
“Regime Democrático” dos golpistas. No presente, vemos saudosismo
em relação ao período em que os militares governaram o Brasil e
apologia a “Intervenção Militar Constitucional”. Como no passado,
os golpistas procuram controlar a produção e reprodução da ideologia
como forma de eliminar o dissenso e garantir a existência de uma
ideologia única, o Estado de ideologia única, de que falou István
Mészáros, como um imperativo do capital.

109
Das utopias ao Autoritarismo

Referências:
Endereços eletrônicos:
NAGIB, Miguel. Escola Sem Partido. Objetivos. Disponível em: <http://
www.escolasempartido.org/objetivos>. Acesso em: 27 jul. 2018.
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www.escolasempartido.org/quem-somos> Acesso em: 20 jul. 2018.
FGV-CPDOC. Departamento Administrativo Do Serviço Público (DASP).
Disponível em: <https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/
anos37-45/PoliticaAdministracao/DASP>. Acesso em: 20 jul 2018.
KORNIS, Mônica. Serviço Nacional de Informação (SNI). Disponível em:
<http://www.fgv.br/CPDOC/BUSCA/dicionarios/verbete-tematico/servico-
nacional-de-informacao-sni>. Acesso em: 20 jul. 2018.

Arquivos:
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de Ordem Social e Política do Espírito Santo (DES). Caixa 29. BRESAPEES.
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Polícias Políticas do Rio de Janeiro (PPRJ). O Atestado de Ideologia. O Dia,
09 ago. 1953.
O DASP não exige atestado de ideologia política. O Globo, 08 ago. 1953.

Bibliografia:
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Vozes: Petrópolis, 1985.
ÂNGELO, Vitor Amorim de. Ditadura Militar, esquerda armada e
memória social no Brasil. São Carlos: EDUFSCar, 2011.
ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. Antissemitismo, imperialismo,
totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. A UDN e o udenismo:
ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1981.
CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas Catedrais: as empreiteras

110
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. Niterói: Eduff, 2017.


GUERRA, Cláudio; MEDEIROS, Rogério de; NETTO, Marcelo. Memórias
de uma Guerra Suja. Rio de Janeiro: Topbooks editora, 2012.
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar:
espionagem e polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.
HUGGINS, Martha K. Polícia e Política: relações Estados Unidos/ América
Latina. São Paulo: Cortez, 1998.
MAURO, Max de F. A luta de um democrata contada pelo arbítrio:
pronunciamento sobre o uso político do serviço secreto brasileiro. Brasília:
Coordenação de Publicações da Câmara dos Deputados, 2002.
MÉSZÁROS, István. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo:
Boitempo editorial, 2008.
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REZNIK, Luís. Democracia e Segurança Nacional. A Polícia Política no
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CENIMAR e Dops/MG. SINAIS – Revista Eletrônica. Ciências Sociais,
Vitória, CCHN, UFES, n.07, v.1, p. 123-144, jun. 2010.

111
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A Atuação dos Órgãos de Repressão no Espírito


Santo (1964-1985)
Márcio Gomes Damartini1

Quando analisamos o período militar no Espírito Santo,


identificamos que grande parte da sociedade capixaba colocou-se a
favor dos militares. Por conseguinte, essa visão positiva em relação ao
golpe acontecido em 1964 serviu para a construção de um ideário que
minimizava a ação dos órgãos de repressão no Estado. Contudo, com
os estudos mais recentes, essa visão uníssona passou a ser questionada,
principalmente a partir da disponibilização dos documentos oriundos
das vigilâncias e da ação desses órgãos no Espírito Santo, que se
intensificou a partir de 1968. Entretanto, desde a tomada de poder
pelos militares houve expurgos, prisões e tortura das pessoas ou
grupos ligados ao ex-presidente João Goulart no território capixaba.
De acordo com FAGUNDES (2014, p.10), a saída do
presidente provocou reação dos setores alinhados com o Governo
Federal no Espírito Santo. A Frente de Mobilização Popular (FMP/ES)
e a União Estadual dos Estudantes (UEE/ES) elaboraram notas que
foram publicadas no Jornal A Gazeta, criticando o golpe dado pelos
militares no Brasil. Outra ação do grupo contrário à derrubada do
Presidente foi uma passeata realizada no dia primeiro de abril de 1964.
Contudo, segundo o autor, a onda repressiva que gerou
centenas de detenções e prisões de sindicalistas foi muito mais
abrangente do que a reação dos partidários do presidente. Assim
como aconteceu a nível nacional, o expurgo dos contrários ao golpe
no Espírito Santo foi muito grande. Fora os membros da FMP e da
UEE, dirigentes do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e militantes
do Partido Comunista Brasileiro (PCB) foram detidos durante horas
ou até por semanas. Para o pesquisador, o caso mais extremo foi o
acontecido com o militante estudantil Jaime Lana Marinho, estudante
de Odontologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

1  Mestre em História (UFES) e professor da rede estadual de ensino do ES.

113
Das utopias ao Autoritarismo

e dirigente da UEE/ES que durante o período de sua detenção foi


submetido a uma série de pressões e torturas. E a repressão atingiu
outros setores da sociedade capixaba.
FAGUNDES (2014, p.10) ressalta que houve a cassação do
parlamentar Ramon de Oliveira Neto, acusado de ter ligações com
o Presidente deposto. Fora do parlamento, um dos locais em que
as ações repressivas funcionaram de forma intensiva foi na UFES.
Primeiramente houve o afastamento do Professor Manoel Xavier
Paes Barreto do cargo de reitor da universidade, sendo que a única
“acusação” que pesava sobre ele era o fato de ter sido nomeado por
João Goulart. E aprofundando a “limpeza ideológica” dentro da
instituição, foram instalados vários inquéritos administrativos. No
que pese todo esse expurgo realizado no Espírito Santo, logo após
o golpe militar vários setores da sociedade capixaba se organizaram
para festejar a “revolução” de 1964.
Segundo o pesquisador, vários eventos foram organizados
no Estado, com destaque para as Marchas da Família com Deus. A
primeira mobilização aconteceu no dia 15 de abril de 1964, data da
posse do presidente Humberto Castelo Branco, havendo uma grande
comemoração nos dias anteriores e posteriores à posse, com destaque
para a publicação de várias notas em jornais.
Para o autor, entre as entidades que fizeram uso do espaço
jornalístico destaca-se a Câmara Municipal de Vereadores de Vitória,
a Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes) e a Federação
do Comércio do Estado do Espírito Santo (Fecom-ES). Também
aproveitando a imprensa para externar o seu apoio à tomada do
poder pelos militares, parte do empresariado capixaba patrocinou um
caderno especial na edição de A Gazeta, do dia 19 de abril. O matutino
publicou as mensagens da Assembleia Legislativa do Espírito Santo
(ALES) e de várias empresas, que viram na ação dos militares a salvação
do Brasil da ameaça comunista. Dentre tantos eventos de apoio, o
que mobilizou mais setores da sociedade capixaba foi a “Marcha com
Deus pela Liberdade”. O historiador destaca que o evento aconteceu
em vários locais do Brasil, tendo como base a luta anticomunista,
que se aglutinou em torno de várias entidades, dentre elas a Igreja

114
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Católica, as Forças Armadas, grupo de mulheres, totalizando cerca de


69 marchas, fora as acontecidas no Espírito Santo.
Segundo o autor, a primeira marcha no Estado aconteceu
na cidade de Cachoeiro do Itapemirim. Na edição do Jornal A
Gazeta, do dia 23 de abril, foi noticiado o sucesso do evento. Na
mesma edição foram divulgados os preparativos da Marcha em
Vitória, que aconteceria dia 25 de Abril, ação destacada também
pelas emissoras de rádio. O evento foi organizado por grupos de
senhoras, que mobilizaram toda sociedade para participação no
evento. Os preparativos para a Marcha receberam grande espaço para
divulgação no Jornal A Gazeta, na edição do dia do evento. Segundo
o autor, o veículo de comunicação noticiou que a Marcha foi a maior
manifestação popular da história do Espírito Santo. Em relação
ao evento em si, o noticiário destacou a amplitude de setores que
participaram bem como a relação dos oradores, demonstrando como
vários setores da sociedade capixaba aceitavam a intervenção militar.
Ainda de acordo com o jornal, o ponto culminante da manifestação
foi o discurso do coronel Newton Reis, representante do comando
revolucionário no Espírito Santo.
Analisando as mobilizações, fica explícito o amplo apoio
das classes médias urbanas, que juntamente com os outros setores,
principalmente a elite empresarial e política, deram a ação realizada
pelos militares. Esses atores sociais sempre quiseram passar uma
imagem positiva do período militar, ocultando que a repressão
funcionou no Estado.

A ação do aparato repressivo no Espírito Santo


Como destacamos o apoio dado inicialmente ao Golpe
Militar no Espírito Santo foi bem maior do que a resistência à
derrubada do Presidente. De acordo com Fagundes e Angelo (2014, p.
152), mesmo com a perversa herança dos grandes projetos industriais
implantados no Estado durante o Período Militar, o aspecto mais
ressaltado é a visão positiva da ação dos militares no Espírito Santo,
chegando a se tornar praticamente uma história oficial. Desse modo

115
Das utopias ao Autoritarismo

essa memória positiva serviu para encobrir todo o processo de


perseguição, prisão e tortura de várias pessoas no território capixaba.
Essa visão parcial passou a ser questionada a partir de uma série
de ações, como a organização dos arquivos e a realização de vários
trabalhos que mostraram uma visão mais completa desse período no
Espírito Santo.
O processo de perseguição que aconteceu no Estado teve seu
auge no final da década de 1960 e início da década de 1970 quando o
Serviço Nacional de Informação (SNI), articulado com outros órgãos,
funcionou a todo vapor na vigilância e perseguição aos subversivos.

O aumento da repressão a partir da atuação do SNI


De acordo com FAGUNDES e ANGELO (2014, p. 154), a
repressão mais intensa no Estado ocorreu com a implantação do SNI
na capital capixaba. O documento mais antigo emitido pelo órgão é
datado de novembro de 1968, um mês antes da decretação do AI-5.
Trata-se de um ofício assinado pelo coronel José Sylvio Alves, chefe
da agência do SNI/Vitória, e encaminhado ao diretor da Faculdade
de Medicina da UFES solicitando informações como nome, endereço,
sexo, ocupações anteriores e atividades políticas dos investigados pelo
órgão. No documento, a chefia do SNI na capital capixaba solicita que
todas as informações sejam encaminhadas para a sede do órgão. Os
autores destacam que existia preocupação em sanear ideologicamente
o campus da universidade, principalmente porque o movimento
estudantil foi o setor mais incisivo na crítica aos militares no final da
década de 1960.
Essa solicitação de informações feita pela agência estadual
do SNI a outro órgão fazia parte do modus operandi do aparato
repressivo montado nos estados. No caso do Espírito Santo, o SNI
atuou em conjunto com os outros órgãos de repressão, como o
Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), o Departamento
da Polícia Federal (DPF), a Secretaria de Segurança Pública, a Polícia
Militar e o 3º Batalhão de Caçadores (BC). Excetuando esses órgãos
ligados à segurança pública – para reforçar a vigilância sobre os

116
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

órgãos federais existentes no Estado, como por exemplo, a UFES –


foram criadas as Assessorias de Segurança e Informação (ASI) e as
Assessorias Especiais de Segurança e Informação (AESI).
FAGUNDES (2013, p. 306) destaca que a vigilância
exercida na UFES aconteceu a partir de 1971 e estendeu-se durante
todo o regime militar. O autor ressalta que houve, durante esse
período, as chamadas ondas repressivas, períodos em que havia maior
produção de documentos, vigilância e outras ações que afetaram o
cotidiano da instituição. Houve também a proibição ou suspensão
de entidades estudantis, abertura de inquéritos contra professores e
funcionários, confisco de material e documentos e prisões. Dentre as
ondas repressivas destaca-se a que aconteceu a partir de 1977, com
a vigilância ao movimento estudantil, principalmente na atuação
do Diretório Acadêmico do Centro de Biomedicina (DACBM) e
o do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (DACCJE), que
contribuíram de forma decisiva para a reorganização do Diretório
Central dos Estudantes (DCE).
FAGUNDES e ANGELO (2014, p. 160) ressaltam que
as ASI, mesmo instaladas em órgãos públicos diferentes, atuavam
de forma sincronizada. Um exemplo dessa ação articulada foi a
fiscalização realizada pela Delegacia Regional do Trabalho no Espírito
Santo (DRT/ES) sobre os sindicalistas. Para atingir seu objetivo, a
Delegacia mantinha estreitas ligações com vários órgãos de segurança,
dentre eles o DOPS. Essa preocupação com a vigilância sobre os
sindicalistas capixabas era justificável principalmente a partir de
meados da década de 1970, com a organização da Frente Sindical,
articulação realizada entre os sindicatos capixabas visando à retomada
da direção das entidades que tinham dirigentes indicados pelo
Ministério do Trabalho. Um dos grupos mais atuantes nessa Frente
foram os professores da rede estadual do Espírito Santo, que mesmo
não podendo sindicalizar-se, visto que a lei não permitia, mantiveram
estreitas ligações com esses sindicalistas devido à proximidade
ideológica. Vale ressaltar que a ligação entre os órgãos não se dava
somente dentro do Estado.
Os autores apontam que não foi somente a agência do SNI

117
Das utopias ao Autoritarismo

de Vitória que solicitava informações sobre as atividades acadêmicas


da UFES. A Agência Central do SNI, em Brasília, também solicitou
informações sobre a designação do professor-estudante Domingos
de Freitas Filho para membro da “Comissão de Estudo de Tempo
Integral”. Esse pedido de informação foi datado de maio de 1969,
ou seja, depois da decretação do AI-5, que ocorrera em dezembro
de 1968. Como vimos anteriormente, a atuação do SNI no território
capixaba é anterior ao AI-5. Contudo, com a decretação desse ato os
órgãos de repressão tiveram maior liberdade de atuação, ou seja, foi
dada “carta branca” para a realização de atos legais e ilegais, que no
Estado intensificou-se a partir de 1971.
Os pesquisadores destacam que os primeiros efeitos do AI-5
foram sentidos logo no início de 1969, com a cassação do mandato
do deputado federal Mário Gurgel e dos deputados estaduais Daílson
Laranja e José Ignácio Ferreira, todos pertencentes ao Movimento
Democrático Brasileiro (MDB). Em agosto do mesmo ano, a agência
central do SNI solicitou informações de doze cidadãos capixabas, a
maioria parlamentares. As informações levantadas eram sobre a
naturalidade, estado civil, nome dos pais, endereço, dentre outras.
Segundo os autores, o que chama atenção são as informações solicitadas
nos itens 18, 19 e 20: atividades criminais, atividades políticas e outras
informações. As informações políticas da Ficha-conceito do deputado
federal Mário Gurgel “explica” a sua cassação:
Subversivo. Ligado aos comunistas. Ligado às entidades
sindicais comuni-janguistas. Em Abr 64 tomou parte e foi
um dos oradores mais ardorosos e exaltados (...). Nesse
comício atacou violentamente as Forças Armadas [...].
Em 1966 foi eleito Deputado Federal pelo MDB. Em 1967
foi submetido a processo de Investigação Sumária, pela
Comissão de Aplicação do Ato Institucional do Estado
do Espírito Santo a fim de enquadramento nas sanções
previstas no artigo 7º do AI nº 1. (FAGUNDES; ANGELO,
2014, p. 160)
Os autores destacam que o prosseguimento da repressão no
território capixaba, após a cassação dos mandatos dos parlamentares,
aconteceu através da realização da operação Gaiola, em outubro

118
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

de 1970. Essa operação, que foi comandada pelo 3º Batalhão de


Caçadores, resultou na captura e detenção de vários elementos
considerados subversivos, dentre eles o vereador e ex-presidente
da Casa do Estudante de Cachoeiro de Itapemirim (CECI) Roberto
Valadão e o jornalista Rubens Gomes. O início dessa década marca o
período mais intenso da atuação dos órgãos de repressão no estado. Os
pesquisadores destacam que, em 1971, houve a captura de inúmeros
militantes da ala vermelha do Partido Comunista do Brasil (PC do B).
No ano seguinte, além da captura dos militantes de esquerda ligados
a chamada Guerrilha do Araguaia, foi aberto um IPM (Inquérito
Policial Militar) que arrolou 33 pessoas suspeitas de militarem no PC
do B, no qual o principal procurado foi o militante estudantil Iran
Caetano.
FAGUNDES (2011, p. 29) destaca que essa movimentação
levou o DOPS a aumentar consideravelmente o seu fichário. É
importante destacar que dentre as cerca de 25.000 fichas que o DOPS
possuía, não havia somente pessoas que atuavam dentro do Estado. O
autor aponta que figuras que nunca atuaram no Espírito Santo, como
o comunista Luís Carlos Prestes e a ex-guerrilheira e ex-presidente
do Brasil, Dilma Roussef, também possuíam fichamento no órgão.
Na década de 1980 ocorreram duas modificações na Polícia Política,
através da Lei nº 3.391, de 03 de dezembro de 1980, e da Lei nº 3.705
de 28 de dezembro de 1984. De acordo com o autor, o DOPS acabou
de direito em 1985. Contudo, um pouco antes do seu término o órgão
ainda continuava sua rotina de vigilância. Um exemplo dessa ação foi
o acompanhamento feito ao ato pró-legalização do PC do B.
No relatório feito pelos agentes fica claro que houve acúmulo
de informações sobre os militantes da esquerda capixaba. Para o autor,
contudo, o que mais chama atenção foi a data: 25/03/1985, ou seja,
doze dias depois do início da Nova República. Os dados constantes
no relatório indicam que a ação dos órgãos de segurança estavam
na “contramão” do ambiente de redemocratização, reafirmado pela
emenda constitucional nº 25, de 15/05/1985, que tratava das eleições
diretas para todos os cargos e dos partidos políticos, que puderam
voltar para a legalidade. Após a extinção do DOPS, no meado da década

119
Das utopias ao Autoritarismo

de 1980, todo o material foi levado para a sede da Polícia Federal, e


após a extinção, de direito, da Polícia Política Capixaba, através da
lei estadual nº 4.573, de 31 de outubro de 1991, a documentação
foi transferida para o Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
(APEES). O acesso a essa documentação, fruto de um longo processo
histórico, contribuiu bastante para uma nova visão sobre o regime
militar no Estado.
FAGUNDES e ANGELO (2014, p. 168) apontam que alguns
estudos mais atuais já questionam a positividade da Ditadura Militar no
Estado. Outro dado que contribui para a crítica é em relação aos casos
de tortura. Segundo os autores, o Espírito Santo teve mais denúncias
de tortura que outros estados com maior extensão territorial, como
Santa Catarina. Em relação aos processos existentes no Superior
Tribunal de Justiça Militar (STM), o Estado possui mais denúncias
que em Goiás, local de ação de grupos que aderiram à luta armada.
Esses dados demonstram que houve uma ação repressora em terras
capixabas, ficando claro que uma visão de memória do triunfo não se
sustenta ou não deve ser considerada como a única possibilidade de
interpretação da ditadura, pois, de acordo com os autores, a “vontade
de silenciar sobre a repressão política é uma dos meios para consolidar
o esquecimento, chave explicativa para atender as exigências de quem
estava no poder, perpetuando o esforço de alguns setores no sentido
de cristalizar um esquecimento ou silêncio”.
Foi essencial, para uma análise mais abrangente do Período
Militar, que ocorresse a abertura dos arquivos da Polícia Política e a sua
utilização em pesquisas acadêmicas. O acesso a essa documentação foi
um processo lento, que no Espírito Santo só ganhou impulso a partir
do projeto Memórias Reveladas.

Memórias Reveladas: o divisor de águas


Em dezembro de 2008, o Arquivo Público do Estado
do Espírito Santo (APEES) iniciou sua participação no Projeto
“Memórias Reveladas – Centro de Referência das Lutas Políticas no
Brasil”, uma iniciativa da Casa Civil da Presidência da República,

120
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

coordenada pelo Arquivo Nacional. Essa parceria, junto com outras


ações, proporcionou a organização e disponibilização dos arquivos
da repressão ao nível de outros arquivos estaduais. De acordo com
(FAGUNDES, 2012, p. 9), no ano de 2009 foram iniciados os trabalhos
de tratamento e organização dos documentos do DOPS/ES, fruto da
parceria institucional entre o Arquivo Público do Espírito Santo e o
Arquivo Nacional.
Segundo o site do APEES, o acervo DOPS/ES constitui-se
de correspondências recebidas e expedidas por órgãos da Secretaria de
Segurança Pública, assim como ordens de serviços, relatórios, ofícios
internos e externos, informes, radiogramas, encaminhamentos,
pedidos de busca, requerimentos, atestados de conduta de ideologia
política, depoimentos, inquéritos policiais, fotografias, jornais, livros,
cartazes e panfletos. Esses tipos documentais contêm informações
sobre diferentes assuntos, dentre eles: investigação de pessoas,
instituições públicas e privadas, partidos políticos, sindicatos,
organizações clandestinas, manifestações, atos públicos, eventos,
eleições, movimentos grevistas e estudantis, organizações religiosas
ou políticas como Aliança Nacional Libertadora e Ação Integralista
Brasileira, além de fichas policiais de identificação contendo
informações sobre indivíduos, instituições e municípios.
De acordo com MALVERDES e FAGUNDES (2012, p.
64) a relevância deste projeto está na organização dos arquivos para
permitir o trabalho de pesquisa, pois a produção de instrumentos
permite ao pesquisador reduzir a quantidade de documento a
ser consultado. Juntamente a esta ação, destacam os autores, o
processo de digitalização do acervo contribuirá para o amplo acesso
e disseminação dos documentos, pois permitirá o acesso por meio
de redes informatizadas, contribuindo ainda para a preservação dos
documentos arquivísticos originais. Em relação ao local em que foi
produzido, quando não existe referência, consta a indicação s.l (sem
local), e quando não existe a referência da data, consta a indicação s. d
(sem data), deixando a cargo do pesquisador a consulta ao dossiê. Os
documentos foram separados conforme suas séries e subséries, sendo
que o projeto resultou em 257 descrições e a digitalização de todo

121
Das utopias ao Autoritarismo

o material, num minucioso trabalho de identificação dos panfletos,


cartazes e publicações que compõem o fundo DOPS/ES (1930-1985).
FAGUNDES (2012, p. 9) destaca que no final da década de
2000, quando se iniciou a parceria entre o Arquivo Público Estadual
e o Nacional, foi celebrado convênio entre o Departamento de
Arquivologia da UFES e o Arquivo Público, sendo que essa parceria
propiciou aos estudantes do curso de Arquivologia o desenvolvimento
de atividades de pesquisa no Arquivo. Outra iniciativa que colaborou
para que o Arquivo Público do Espírito Santo garantisse o pleno acesso
à informação foi a criação do Grupo de Estudo sobre os Arquivos do
DOPS/ES. De acordo com o autor, esse grupo que reúne graduandos
de Arquivologia e pós-graduandos em História pela UFES, tem como
meta incentivar a pesquisa e a produção de trabalhos sobre o tema.
Toda essa documentação arquivada no APEES foi fruto da
vigilância diária que durou quase todo século XX, intensificando-se
em determinados momentos.

Modus operandi da polícia política: a prática cotidiana de


vigilância
De acordo com FAGUNDES (2012, p. 16), fica bastante
claro nas pesquisas, com a documentação existentes nos arquivos, que
havia uma prática cotidiana de controle exercido pela Polícia Política.
Essa vigilância diária durou décadas, sendo a marca principal desse
período o combate a todas as manifestações contrárias ao discurso
ordenador. Sendo assim, fica claro que o trabalho desenvolvido pela
Polícia Política se tornou, de acordo com Horton e Hunt (1980, p.
146), sistemático e previsível, ou seja, sendo encontrados meios
de atribuir responsabilidade a diferentes funcionários, formular
padrões de comportamento, manter a lealdade dos participantes e
desenvolver métodos de lidar com outras instituições. Segundo os
autores, quando certas atividades se tornaram meios padronizados,
rotinizados, esperados e aprovados para atingir metas importantes,
esse comportamento foi institucionalizado.

122
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Nesse processo de vigilância diária era essencial que


houvesse agentes que desempenhassem o que chamamos de
papel institucionalizado, ou seja, aquele procedimento que foi
padronizado, aprovado e esperado, que normalmente é cumprido
de maneira bastante previsível, não importando a pessoa que o
desempenhe. Os autores frisam que a instituição, para funcionar
de forma satisfatória precisa, além do agente, também de um
aglomerado de traços institucionais ou características que a marcam:
códigos de comportamentos, atitudes, valores, símbolos, rituais,
ideologias. Veremos como se deu essa ação dos agentes no Espírito
Santo, destacando algumas situações vivenciadas pelos agentes na
vigilância dos professores da rede estadual de ensino do Espírito
Santo nos anos de 1979 a 1981.

A rotina e o papel dos agentes


De acordo com FAGUNDES (2012, p. 17), com a organização
dos dossiês existentes no APEES podemos traçar ou vislumbrar
como era a rotina de trabalho dos agentes do DOPS. O primeiro era
a apreensão dos impressos. Posteriormente havia a solicitação da
operação de vigilância, observação do evento, elaboração do relatório
por agentes do DOPS/ES, abertura de ficha dos suspeitos e envio
de todo o material para dossiê específico. O destino desta “linha de
produção de informações” era os arquivos dos órgãos de segurança.
Toda essa rotina de trabalho dependia de um pessoal qualificado e
bem treinado para funcionar a contento.
HORTON e HUNT (1980, p. 148) destacam que as
organizações funcionam mais suavemente quando podem atrair
pessoal competente, e algumas vezes se veem prejudicadas por
elementos que não se ajustam aos papéis que lhe forem atribuídos,
sendo extremamente importante certo grau de uniformidade na
conduta daqueles que têm determinada ação institucional. Os autores
frisam ainda que um código formal é apenas uma parte do requisito
total que compõe um papel institucional. Para eles, grande parte do
comportamento em qualquer papel consiste em um corpo elaborado

123
Das utopias ao Autoritarismo

de tradições informais, expectativas e rotinas, que uma pessoa absorve


somente através de longa observação e experiência, gerando com isso
um conjunto de expectativas de comportamento que dá pequena
margem a excentricidade pessoal.
No caso da Polícia Política, dificilmente os agentes da
repressão podiam se afastar desse papel, pois se deixassem de atuar
dentro das expectativas da instituição, em geral perdiam sua influência.
Conforme assinalam os autores, era um grande desafio conseguir uma
padronização na ação dos agentes nos períodos de maior repressão.
Assim como os papéis de todas as espécies, os institucionais eram
cumpridos com maior êxito pelos que aprenderam plenamente as
atitudes e os comportamentos apropriados à determinada ação.
Contudo, quanto maior a estrutura, mais alto o grau de especialização,
e maior também a possibilidade de acontecer falha por parte dos
agentes. No caso da Polícia Política o risco era mais elevado ocorria
principalmente com aqueles que se infiltravam nas atividades para o
levantamento de informações.
De acordo com FAGUNDES (2011, p. 25), um ponto a se
destacar é sobre um dos princípios elementares do modus operandi
da Polícia Política: o sigilo. Como em algumas operações os agentes
trabalhavam infiltrados nas organizações investigadas, as ações
sigilosas e a discrição nas operações foram bastante enfatizadas, tanto
que os agentes eram orientados a adotar nomes de guerra, sempre
andar à paisana e evitar cortar o cabelo no estilo militar. Um exemplo
de uma ação não exercida de forma correta foi a vigilância de uma
assembleia de professores da rede estadual de ensino do Espírito
Santo, acontecida em 1979.
Como era de praxe, foi aberta uma ordem de serviço
para a designação dos agentes que estariam infiltrados no ato, para
detectar possíveis “elementos” estranhos à classe. Conforme relatório
houve a descoberta de pessoas estranhas à União dos Professores do
Espírito Santo (UPES), com destaque para o elemento conhecido
como professor Tadeu. O grande problema, segundo Soares (2005,
p. 184), foi que o agente da SPT, Jones Custódio de Paula, que
estava responsável por fotografar o evento, foi descoberto pelos

124
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

organizadores da assembleia. Neste instante o chefe do Serviço de


Investigações e Informações (SII), Valdir Xavier, precisou intervir
para evitar que houvesse a entrega do filme e a agressão ao agente por
parte dos professores.
FAGUNDES (2011, p. 26) destaca que outra característica
da ação da Polícia Política foi a adaptação do modus operandi do
Destacamento de Operações e Informações- Centro de Operações e
Defesa Interna (DOI-CODI) para cada região. Os comandantes, que
geralmente eram os representantes das Forças Armadas, poderiam
requisitar agentes da Polícia Militar, Polícia Federal e do DOPS. No
caso do Espírito Santo os “interrogatórios”, também sob o comando
de militares do Exército, eram realizados nas dependências do então
3º Batalhão de Cavalaria, atual 38º Batalhão de Infantaria (BI).
Nos documentos analisados fica bastante claro que a vigilância aos
trabalhadores em educação da rede estadual de ensino do Espírito
Santo era feita através de uma rede que envolvia os órgãos citados
acima, que trocavam informações não somente dentro do Estado.
No caso da pessoa acusada de tentar tomar a câmera fotográfica do
agente da Polícia Política, professor Tadeu, o DOPS /ES solicitou e
obteve várias informações dos órgãos de repressão do estado de São
Paulo. Contudo, algumas vezes havia divergências entre os órgãos
de segurança. Um exemplo aconteceu entre a Polícia Política, que
trabalhava na lógica investigativa, e a Polícia Militar, que trabalhava
de forma mais repressora.
Para a vigilância da assembleia dos professores da rede
estadual de ensino, acontecida em maio de 1979, foram designados
agentes para se infiltrar e obter informações para a posterior realização
do relatório. Como havia sinalização de greve, as dependências do
local do evento, a Escola do Carmo, estavam superlotadas, havendo
ainda cerca de 100 estudantes do lado de fora do colégio apoiando
o movimento. Contudo, de acordo com o relatório feito pelos
agentes do DOPS, a ação da Polícia Militar, com lançamento de gás
lacrimogêneo para dispersar os estudantes, provocou um grande
tumulto, não acontecendo uma tragédia devido à condução dos
trabalhos pela presidente da UPES, Myrthes Bevilacqua. Ela pediu

125
Das utopias ao Autoritarismo

que ninguém saísse do local, chamando os presentes para rezar o Pai


Nosso e cantar o Hino Nacional. De acordo com o relatório, houve
grande repercussão negativa em relação à ação da PM, sendo que este
fato serviu para desgastar os órgãos de segurança pública perante a
população. Em relação à vigilância aos professores capixabas, destaca-
se a grande estrutura montada, com informações disponibilizadas
para diversos órgãos até chegar, nesse caso específico às mãos do
governador Eurico Rezende. E essa estrutura, que fora organizada em
1953, funcionou a todo vapor na década de 1970.
FAGUNDES (2011, p. 29) destaca que houve grande
aumento na já grande massa documental do DOPS/ES, principalmente
a partir dos anos de 1970. Pedidos de busca, atestados de conduta
ideológica, inquéritos policiais, dossiês, fotografias, jornais, panfletos,
cartazes foram alguns exemplos de conjuntos documentais amplos e
diversificados produzidos por este órgão. É importante destacar que a
estrutura repressiva existente no estado foi fruto de um processo que se
iniciou em princípios do século XX, e que veio se aperfeiçoando, com
destaque para a estruturação da Polícia Política acontecida no ano de
1953, atingindo seu auge na Ditadura (1964-1985). Segundo o autor,
com o golpe de 64 os militares criaram o SNI e, com o surgimento
dos órgãos de segurança ligados às Forças Armadas (CENIMAR,
CISA e CIE), houve a efetiva centralização de um sistema nacional de
informação e de um sistema nacional de segurança (DOI-CODI). Esse
sistema, coordenado pelo Exército, na prática centralizou os órgãos de
segurança regionais (Polícia Federal, Polícia Militar e Civil, DOPS).
O historiador ressalta que os materiais confiscados
pelos órgãos de repressão tinham como finalidade divulgar ideias,
propostas ou opiniões de certos grupos ou organizações da sociedade,
que expunham publicamente suas ideias, sendo que a maioria do
material era para a solicitação de verbas públicas para as áreas sociais,
melhorias nas condições de trabalho ou maior democracia, e não
somente o questionamento à ordem imposta. O controle e a seleção
dos materiais impressos – cartazes, panfletos e jornais – que poderiam
ser lidos publicamente, era uma tarefa cotidiana dos agentes da Polícia
Política. Qualquer convocação para uma atividade pública – reunião,

126
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

congresso, passeata, eleição – acabava se tornando prova do “crime


político” e servia de justificativa para a apreensão pelos agentes do
DOPS/ES.
O autor aponta que o fato que se destaca em todo esse
processo de levantamento de informações era o ato de carimbar.
Esse ato representava bem mais do que um ato burocrático. No que
tange a dimensão material, o carimbo servia para identificar o grau
de importância, urgência e periculosidade do objeto de investigação.
Por outro lado, simbolicamente, receber um carimbo dos agentes
da repressão significava a estigmatização de certos grupos ou
“elementos”. Se uma entidade ou indivíduo tivesse o material de
propaganda apreendido, era um indicativo de que as informações
coletadas seriam “socializadas” entre os vários órgãos de segurança
e, possivelmente, seriam rotulados de subversivos. Além disso, frisa o
autor, ler, debater, divulgar, participar ou colaborar financeiramente
com esses elementos seria uma prova cabal de aceitação e colaboração
com as ideias subversivas, e quem fizesse essas ações seria colocado no
rol dos perigosos, justificando a prática de atos de censura e violência.
Fagundes (2012, p. 18) destaca ainda que o processo de vigilância mais
intensiva sobre determinados grupos ou pessoas era pela construção
de estereótipos de “inimigos da ordem”, principalmente em relação
à liderança sindical ou estudantil. Contudo, vale frisar que o simples
fato de um grupo de pessoas se organizar, independentemente de
sua orientação ideológica, era motivo para a entrada na galeria de
suspeitos e sofrer vigilância.
Agora iremos conhecer melhor esses grupos que sofreram
uma vigilância mais intensa por parte da Polícia Política.

Os principais alvos do aparato repressivo


O modo como os agentes se referiam ou rotulavam quem
era perseguido foi um dos traços institucionais mais marcantes do
modus operandi da Polícia Política. A rotulação de determinados
grupos ganhou força principalmente a partir da década de 1930,
com a organização da primeira onda anticomunista. Em relação à

127
Das utopias ao Autoritarismo

documentação pesquisada, oriunda da vigilância aos professores


da rede estadual de ensino do Espírito Santo, dois termos tiveram
destaque: elemento e subversivo. O primeiro termo era utilizado
principalmente para identificar quem não fazia parte da categoria
e o segundo foi utilizado para rotular a presidente da União dos
Professores do Espírito Santo (UPES), Myrthes Bevilacqua Corradi, e
posteriormente os professores. É importante destacar que a vigilância
não se dava somente aos grupos ligados à esquerda, contudo os grupos
que mais foram vigiados, perseguidos e rotulados eram os que tinham
ideais mais revolucionários.
No início da organização da Polícia Política no Rio de
Janeiro, no final do século XIX, mesmo que ainda não estivessem claro
quais grupos cometiam crime político, não era aceito “subverter a
ordem”. Outra ação duramente reprimida era a tentativa de organizar
os trabalhadores, principalmente se fossem com ideias anarquistas.
No decorrer do processo de institucionalização da Polícia Política,
da organização das rotinas e procedimentos, também se clareou
quais seriam os grupos que mais ameaçariam a ordem. Quando
chegamos ao governo Vargas, a estrutura montada estava pronta para
a perseguição aos subversivos, neste momento representados na sua
quase totalidade pelos seguidores de Lênin, os comunistas.
De acordo com MOTTA (2002, p. 47), os comunistas
foram representados ao longo da história por uma série de adjetivos,
sempre como conotação negativa, como por exemplo, piratas,
desvairados, paranoicos, degenerados, dementes, bárbaros, selvagens,
representações essas que tinham como base temas arcaicos. Contudo,
segundo o autor, os comunistas não foram acusados de serem
responsáveis somente pelas mazelas do passado. Pairava sobre eles
também os problemas do mundo moderno, como a inflação, visto que
desestabilizavam a ordem econômica. Como um dos pressupostos
centrais da ordem social era a garantia de um ambiente propício ao
capitalismo, organizar os trabalhadores para lutar pelos seus direitos
era inaceitável, tanto no Rio de Janeiro no final do século XIX, como
no Governo Vargas e na Ditadura, de 1964 a 1985. Nesse último
caso, mesmo com a chamada transição lenta e gradual proposta por

128
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Ernesto Geisel, bastou os trabalhadores se organizarem em São Paulo


e questionarem a ordem econômica para que o governo, juntamente
com os empresários, esquecerem a promessa e utilizarem o aparato
repressivo para acabar com o movimento.
No caso do Espírito Santo, a rotulação aos grupos perseguidos
também era uma prática constante e rotineira. Um dos exemplos mais
claros dessa ação aconteceu com a presidente da União dos Professores
do Espírito Santo (UPES) Myrthes Bevilacqua Corradi. Durante a sua
gestão à frente da UPES (1973 a 1981), foi taxada de subversiva pelo
líder do Governo Élcio Álvares, na Assembleia Legislativa, Edson
Machado, devido à sua constante luta na defesa dos direitos dos
trabalhadores em educação da rede capixaba de ensino.
De acordo com Fagundes e Angelo (2014, p. 162), a
estrutura repressiva criada no Espírito Santo, mais do que controlar
os subversivos ou os “elementos” – nomenclatura bem comum e
constante nos arquivos da repressão – teve como objetivo silenciar
e impedir manifestações. Entre os grupos mais vigiados nas terras
capixabas destacam-se os militantes do chamado novo sindicalismo,
os progressistas da Igreja Católica, os participantes dos partidos
políticos, a imprensa alternativa e os membros do movimento
estudantil, principalmente da UFES.
Segundo os autores, no início dos anos 1970 os órgãos de
repressão foram mais incisivos no combate aos grupos que aderiram
à luta armada. Contudo, após a desarticulação desses grupos a
vigilância voltou-se para os grupos citados acima. Mesmo no período
de abertura, em 1978, os órgãos de repressão continuaram atuantes,
como podemos perceber na confecção do Relatório sobre a subversão
no ES, documento que pretendia apresentar uma síntese da evolução
do movimento subversivo no ES pós-1972. De acordo com os autores,
o relatório destaca que, após um período de apatia, devido às prisões,
tortura e abertura de processos contra os subversivos, surge um novo
foco de resistência no Estado: o movimento estudantil da UFES, que
ganhou força devido à volta de alguns alunos afastados por força do
Decreto Lei nº 477 e o surgimento do tablóide Posição.

129
Das utopias ao Autoritarismo

Segundo os autores, no ano de 1977 temos a reorganização


do movimento estudantil a nível nacional. No caso do Espírito Santo,
temos a retomada do movimento com a organização dos Diretórios
Acadêmicos do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas (CCJE)
e do Centro de Biomédicas (DACBM). No ano de 1978, depois de
intensos debates, foi realizada a eleição para a escolha da nova diretoria
do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFES, sendo eleito o
estudante de economia e atual governador do estado Paulo Hartung.
FAGUNDES e ANGELO (2014, p. 164) destacam que o
relatório aponta o surgimento do tablóide Posição, sendo que a vigilância
a esse jornal mostra uma das principais ações dos órgãos de repressão:
monitoramento da imprensa e dos jornalistas. Essa vigilância gerou
um dossiê temático sobre o Sindicato dos Jornalistas, com destaque
para a presidência do jornalista Rogério Medeiros, um dos líderes do
Novo Sindicalismo no Estado. É importante destacar que a Associação
Brasileira de Imprensa (ABI), que congregava jornalistas de todo o
Brasil, foi uma das entidades mais críticas a ação dos militares. Outra
entidade também muito vigiada foi a Igreja Católica, principalmente
devido à atuação de alguns de seus membros, que, devido a sua ação,
também foram destaque no Relatório sobre a Subversão.
De acordo com os autores, a vigilância intensifica-se, a
partir do ano de 1973, devido a algumas ações realizadas pelo bispo da
Arquidiocese de Vitória, Dom João Batista de Motta e Albuquerque,
seu auxiliar Dom Luiz Gonzaga Fernandes e parte do clero, como a
criação do Conselho Pastoral da Arquidiocese de Vitória (COPAV).
É importante destacar que a Igreja Católica, de apoiadora do Golpe
Militar, passa a ser a instituição mais crítica à ação dos militares.
Segundo os autores, devido a sua estrutura e posicionamento, a Igreja
se tornou um polo aglutinador dos subversivos capixabas – militantes
das oposições sindicais, do movimento estudantil da UFES e dos
setores do MDB capixaba. Fagundes (2011, p. 28) destaca que outros
grupos religiosos também foram vigiados: Testemunhas de Jeová, o
grupo católico ultraconservador Sociedade Brasileira de Defesa da
Tradição Família e Propriedade (TFP), os Meninos de Deus e a 1ª
Igreja Presbiteriana de Vitória.

130
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Outra entidade que inicialmente apoiou o golpe e depois


reviu sua posição foi a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
De acordo com os autores, a eleição da seccional capixaba foi alvo
da ação dos agentes da Polícia Política. A vigilância resultou em
um documento produzido pela Agência do SNI no Rio de Janeiro,
destacando que a eleição foi realizada em 09 de novembro de 1978
sendo eleita a chapa Rui Barbosa. Conforme vimos anteriormente, o
reposicionamento da OAB, Associação Brasileira de Imprensa (ABI)
e Igreja Católica pressionou o Governo Federal a fazer a abertura do
regime, mesmo com a resistência dos órgãos de repressão e boa parte
do comando das Forças Armadas. A aprovação da Lei da Anistia, em
1979, a revogação da Lei de Segurança Nacional e a reforma partidária,
que instituiu o pluripartidarismo, foram sinais da distensão política.
Em relação à vigilância, constam no acervo do DOPS/ES documentos
que comprovam que houve vigilância aos partidos fundados nesse
momento – final da década de 1970 e início da década de 1980 – como
o Partido dos Trabalhadores (PT), bem como do Partido Comunista
Brasileiro (PCB) e o PMDB, partido fundado a partir do MDB.
Segundo os autores, em 1982 tivemos as primeiras eleições
diretas para governador, desde 1962. Diferentemente de outros
estados do Brasil, no Espírito Santo tivemos a substituição do último
governo biônico, Eurico Rezende, por seu antigo colega de partido,
Gerson Camata, que disputou a eleição pelo PMDB. Esse fato marca a
última vitória eleitoral da Arena e demonstra como as elites capixabas
se uniram em torno dos seus interesses, como fizeram no início da
Ditadura Militar. Fagundes e Ângelo (2014, p. 166) destacam que houve
uma intensa vigilância dos órgãos de repressão sobre as candidaturas
ligadas ao Partido dos Trabalhadores (PT). O que mais chama atenção
no processo eleitoral de 1982 é a força dada aos comunistas, visto
que, para os agentes da repressão, os seguidores de Lênin teriam uma
série de ligações e ajudaram a eleger vários candidatos, dentre eles
a subversiva e professora da rede estadual Myrthes Bevilacqua, que
mesmo não sendo sindicalista, participou ativamente das lutas pela
renovação sindical no Espírito Santo através da organização da Frente
Sindical e na participação de vários encontros de trabalhadores.

131
Das utopias ao Autoritarismo

Os representantes do Novo Sindicalismo no Espírito Santo,


devido à sua linha de ação, sofreram grande perseguição dos órgãos
de repressão, principalmente quando organizaram os trabalhadores
para a retomada dos sindicatos que estavam nas mãos dos dirigentes
ligados ao Ministério do Trabalho. Devido à grande movimentação,
tornaram-se alvo dos agentes do DOPS/ES. Dentre os sindicatos
mais vigiados do estado, temos: jornalistas, engenheiros, ferroviários,
médicos, trabalhadores rurais e construção civil. Mesmo sem poder se
organizar em sindicatos, os professores capixabas, através da UPES,
formaram a organização que mais chamou a atenção do DOPS.
Somente no dossiê da entidade existem mais de 700 páginas de
documentos, com destaque para o período de 1979 a 1981, quando a
entidade presidida por Myrthes Bevilacqua adotou uma linha de ação
mais incisiva contra o Governo. A atuação dessa liderança chamou a
atenção da Polícia Política Capixaba, que abriu um dossiê individual
que coletou 147 páginas de documentos.

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Política do Estado do Espírito Santo (1930-1985). In.: FAGUNDES, Pedro
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FAGUNDES, Pedro Ernesto. Memórias silenciadas: catálogo seletivo
dos panfletos, cartazes e publicações confiscadas pela Delegacia de Ordem
Política e Social do Estado do Espírito Santo. DOPS/ES (1930-1985). Vitória:
GM Editora /APEES, 2012.
FAGUNDES, Pedro Ernesto. Universidade e repressão política: o acesso
aos documentos da assessoria especial de segurança e informação da
Universidade Federal do Espírito Santo (AESI/UFES). Revista Tempo e
Argumento, Florianópolis, v. 5, n. 10, p. 295 – 316, dez. 2013.
FAGUNDES, Pedro Ernesto. A marcha da Vitória: a Marcha da Família com
Deus pela Liberdade na capital do Espírito Santo. In: FAGUNDES, Pedro
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FAGUNDES, Pedro Ernesto; ANGELO, Vitor Amorim de. Grandes Projetos,

132
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grandes esquecimentos: O Espírito Santo entre a modernização conservadora


e a repressão política. In.: FAGUNDES, Pedro Ernesto; ANGELO, Vitor A.
de; OLIVEIRA, Ueber (org.). O Estado do Espírito Santo e a Ditadura
(1964-1985). Vitória: GM Editora, 2014, p. 140-164.
HORTON, Paul B.; HUNT, Chester L. Sociologia. São Paulo: McGraw-Hill
do Brasil, 1980.
MALVERDES, André; FAGUNDES, Pedro Ernesto. O catálogo seletivo
e o trabalho de digitalização. In: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO
ESPÍRITO SANTO. Memórias silenciadas: catálogo seletivo dos panfletos,
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do Estado do Espírito Santo - DOPS/ES (1930-1985). Vitória: GM Editora/
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MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “Perigo Vermelho”: o anti-
comunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2002.
SOARES, Renato Viana. Retrato Escrito: a reconstrução da imagem das(os)
professoras(es) através da mídia impressa (1945/1995). Vitória: ITB, 2005.

133
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Os 50 anos do XXX Congresso da UNE: 1968.


Pedro Ernesto Fagundes1

O ano de 1968, chamado de “ano que não terminou”,


representou um marco político, comportamental, artístico e cultural
do século XX. Segundo RIDENTI (2009), durante o chamado
“momento 68”, os fatos e acontecimentos daquele ano projetaram
essa data como um dos marcos simbólicos da história recente.
Nesse texto, analisaremos um dos acontecimentos mais
destacados entre os episódios de 1968: o XXX Congresso da União
Nacional dos Estudantes (UNE), na cidade de Ibiúna, no interior de
São Paulo. Mas, antes de tratarmos desse evento, apresentaremos um
histórico da chamada da União Nacional dos Estudantes (UNE).
A União Nacional dos Estudantes (UNE) foi criada às
vésperas do Estado Novo (1937-1945), sob a inspiração de Gustavo
Capanema, na época Ministro da Educação da administração do
presidente Getúlio Vargas. O apoio ministerial tinha o intuito
de submeter e manter sob controle político esse segmento social.
Segundo ARAÚJO (2007), para alguns dos seus antigos integrantes,
a verdadeira UNE só surgiu de fato a partir de seu II Congresso
Nacional. Realizado em dezembro de 1938, aberto solenemente no
dia 5 de Dezembro, o congresso contou com a participação de 80
associações universitárias e secundaristas, além da participação de
vários professores e um representante do Ministério da Educação.
No final do congresso foi eleita uma diretoria com um
compromisso estritamente político, bem como apresentado e aprovado
o plano de Reforma Educacional. Outra deliberação do congresso foi a
criação do Teatro do Estudante do Brasil (TEB), inspirado nos teatros
universitários europeus. No inicio da década de 1940, a UNE assume
posição claramente antifascista e realiza inúmeras mobilizações a
1 Doutor em História Social pela UFRJ. Atualmente é professor de História e
Memória do Departamento de Arquivologia da UFES. Também é professor permanente
do Programa de Pós-Graduação em História da mesma universidade (PPGHIS/UFES)
e bolsista do programa Pesquisador Capixaba (FAPES).

135
Das utopias ao Autoritarismo

favor da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).


Na opinião de POENER (2004), esse posicionamento representou o
primeiro episódio de conflito ente a entidade e o governo de Getúlio
Vargas.
Nas mobilizações contra o nazifascismo, a UNE chegou a
organizar uma grande passeata em homenagem ao presidente norte-
americano Franklin D. Roosevelt (1933-1945). Como dissemos, a
intenção era pressionar o governo brasileiro no sentido de romper
relações diplomáticas com os países do Eixo (Alemanha, Japão e
Itália). Num primeiro momento, a passeata foi proibida por ordem
de Filinto Müller – chefe da polícia do Distrito Federal (atual cidade
do Rio de Janeiro). Entretanto, dirigentes estudantis conseguiram
autorização para a realização da manifestação junto a Vasco Leitão
da Cunha, então Ministro Interino da Justiça. O impasse acabou por
criar atritos e indisposições com Filinto Muller – notório admirador
dos regimes nazifascistas.
Nesse período, as relações entre o movimento estudantil
e o Governo de Getúlio Vargas foram marcadas pela ambigüidade,
haja vista, que, apesar do regime ditatorial, a entidade permanecia
atuando dentro da legalidade. Em contrapartida muitos de seus
dirigentes eram vigiados e até mesmo perseguidos por conta de suas
ligações com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Essa situação
mudou significativamente após o fim da Segunda Grande Guerra.
O restabelecimento das bases do Estado Democrático de Direito
permitiram que a UNE iniciasse mobilizações em torno do fim da
ditadura do Estado Novo e da anistia de presos políticos.
No período de 1947 a 1950, a UNE ficou sob o controle
de estudantes ligados ao Partido Socialista Brasileiro (PSB). Nessa
fase, impulsionada pelas Uniões Estaduais de Estudantes (UEE’S),
a entidade foi uma das líderes da campanha “O Petróleo é nosso”.
O movimento se opunha à concessão da exploração das jazidas
petrolíferas por empresas estrangeiras.
Estudantes ligados à União Democrática Nacional (UDN) –
partido antivarguista – assumem a direção da entidade, entre os anos de

136
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

1950 e 1956. Com destaque para Olavo Jardim Campos, na presidência


da entidade, nesse período a UNE assumiu um direcionamento
político mais à direita – um momento atípico durante toda existência
da organização, sempre ligada às correntes de esquerda.
A partir de 1957, a UNE inicia uma série de debates sobre
a chamada Reforma Universitária. Todas essas discussões, segundo
FÁVERO (2009), refletiram durante a elaboração da Lei de Diretrizes
de Bases da Educação (LBD). A entidade organizou o I Seminário
de Reforma de Ensino, evento que teve a democratização do ensino
como eixo central das discussões. Questões relativas ao ensino público
e privado também pautaram o evento.
Assim, durante o I Seminário Latino-Americano de
Reforma e Democratização do Ensino Superior, realizado na Bahia,
em 1960, foi firmado um compromisso de luta pela democratização
do Ensino Superior. As questões discutidas no I Seminário Latino
Americano, vão ser retomadas em três Seminários Nacionais de
Reforma Universitária – o segundo em março de 1962 e o terceiro em
Belo Horizonte.
A UNE foi uma das entidades que assumiu posição de
destaque, em agosto de 1961, durante a chamada “Campanha da
Legalidade”. Esse movimento – liderado por Leonel Brizola, então
governador gaúcho – defendia a posse do vice-presidente João Goulart,
durante a crise política gerada após a renúncia do ex-presidente Jânio
Quadros. A participação dos estudantes e as mobilizações populares
foram fundamentais na desarticulação da tentativa de golpe.
Os anos iniciais da década de 1960 são marcados por uma
série de atividades ligadas a área cultural da entidade, tais como o
Centro de Estudos Cinematográficos (CEC) e dos Centros Populares
da Cultura (CPC da UNE). O objetivo dos CPC’s era reunir jovens
escritores, cantores, atores, enfim, estudantes ligados à arte em geral,
e realizar caravanas pelo país. Os CPC’s realizaram atividades em
praticamente todas as capitais. A entidade também apoiou o projeto
das Reformas de Base, projeto político mais notório do presidente
João Goulart.

137
Das utopias ao Autoritarismo

Como indica VALLE (2008), após o golpe Civil Militar de


1964, a entidade passou a ser alvo de uma série de represálias. Logo
nos primeiros dias do novo regime, foram efetuadas cerca de cinco mil
prisões em todo território nacional e entidades estudantis e centros
acadêmicos foram fechados. No dia seguinte ao golpe, a sede da UNE
foi incendiada, muitos dos seus dirigentes buscaram refúgio no exílio
ou caíram na clandestinidade.
Igualmente impactantes foram as proibições, as
perseguições, a abertura de uma Comissão Parlamentar de inquérito
(CPI) conta a entidade. A UNE e, sobretudo, o movimento estudantil
foi considerada um dos principais setores que apoiaram o presidente
João Goulart (1961-1964). Ainda segundo VALLE (2008), tentando
cercear as atividades dos estudantes os militares criaram uma legislação
especifica sobre as entidades estudantis: a Lei Suplicy-Lacerda que
visava impedir o funcionamento da entidade.
Para os militares e setores da grande imprensa, a UNE era
chamada de “ex-UNE” e era considerada uma entidade clandestina
desde 1964. Assim, no contexto de 1968, conviver com reuniões
fechadas, assembleias clandestinas ou mesmo realizar congressos
em lugares alternativos, como conventos católicos, já fazia parte do
cotidiano do movimento estudantil brasileiro.
Um dos momentos de maior polêmica surgiu durante
os debates sobre o o acordo MEC/USAID. Os chamados acordos
entre o Ministério da Educação brasileiro (MEC) e a United States
Agency for International Development (USAID), conhecidos como
MEC-USAID, foi uma serie de instrumentos que atingiriam todos
os níveis da educação brasileira (ensinos fundamental, médio e
superior). Entretanto, a ação mais notória do Acordo MEC-USAID
foram as propostas direcionadas para o ensino superior, chamada
genericamente de Reforma Universitária efetivada com a edição da
Lei nº 5.540, em 28 de dezembro de 1968.
Nesse contexto, também fazem parte dessas mobilizações as
passeatas de protesto contrao assassinato do estudante Edson Luiz,
a sexta-feira sangrenta, a passeata dos cem mil, a batalha da Maria

138
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Antônia, enfim, uma série de atos ao longo de 1968 que despertaram


a atenção das forças de segurança em torno do “problema estudantil”.
Esse acumulo de enfrentamentos deve seu ponto culminante na
chamada “queda” do Congresso de Ibiúna.
Dessa forma, o objetivo central do presente trabalho
é analisar os acontecimentos pós-congresso da UNE a partir de
documentos dos órgãos de repressão, notadamente um Inquérito
Policial Militar elaborado pela Delegacia Especializada em Ordem de
São Paulo (DEOPS/SP) chamado de “Operação Ibiúna”.
Tudo porque, durante os trabalhos do XXX Congresso da
UNE, em 12 de outubro de 1968, integrantes das forças de policias
invadiram um sítio na zona rural de Ibiúna (SP), local onde estavam
acontecendo os trabalhos do congresso. Na ação, as principais
lideranças estudantis brasileiras acabaram sendo presas.
Em linhas gerais, utilizaremos documentos produzidos pela
polícia política paulista como fonte principal, especialmente, um dossiê
chamado de “Operação Ibiúna”. Contendo centenas de páginas, esse
documento policial reuniu informações sobre os principais esforços e
etapas da ação das forças de segurança, que culminou com as prisões
e posterior abertura dos processos contra os dirigentes estudantis
detidos em Ibiúna. Abrangendo 112 páginas, o primeiro volume desse
conjunto documental, datado de 12 de outubro de 1968, foi divido em
três partes. A primeira parte, denominada “Plano de ação”, descreve
as atividades de levantamento de informações sobre o local e a data do
congresso estudantil.
Após apontar as “nítidas” ligações políticas entre o
movimento estudantil e países como Cuba e China, os agentes
passaram a tratar efetivamente das atividades de monitoramento. O
passo seguinte, segundo o documento, foi realizar um levantamento
geral sobre o local do evento: o sítio Murundu, localizado em Ibiúna,
na região policial de Sorocaba.
Todas as investigações dessa primeira parte do “Plano de
ação” foram coordenadas por quatro delegados do DEOPS/SP e
contaram ainda com a participação da delegacia de Sorocaba. Um

139
Das utopias ao Autoritarismo

dos participantes da diligencia foi o notório delegado Romeu Tuma.


Esse policial, entre 1966 e 1983, foi delegado do DEOPS/SP. Durante
o governo do presidente José Sarney (1985-1990) ocupou o posto
de Superintendente da Polícia Federal (PF), na mesma época que os
arquivos dos DOPS estaduais foram levados para as superitendencias
regionais da Polícia Federal (PF).2
Os agentes elaboraram um relatório com informações
sobre características topográficas, pontos de saída e de segurança dos
estudantes. Essa informação ratifica um dado fundamental sobre as
prisões durante o congresso: segundo o documento, desde os primeiros
dias de outubro de 1968, as forças de segurança de São Paulo tinham
conhecimento do local do evento. Tal informação surgiu a partir de
observações de moradores locais que suspeitaram, em 07 de outubro
de 1968, da presença de dez estudantes estranhos na cidade.
A descrição da segunda parte do “Plano de ação” ocupou
apenas 11 linhas do documento. Esse trecho abordou a operação
montada que resultou na invasão e na prisão, segundo o documento,
dos 693 participantes do XXX Congresso da UNE. Atuaram na ação 95
agentes do DEOPS/SP. A ação contou ainda, sem precisar o número
de agentes, com o auxílio da Delegacia Regional de Sorocaba e de
militares do 7º Batalhão da Força Pública de São Paulo, atualmente
denominada Polícia Militar (PM).
O documento registra que as prisões ocorreram de forma
“fulminante” e “sem violência”, ou seja, ainda fazendo autoelogios
à precisão da ação de invasão e captura de centenas de estudantes
sem precisar “disparar um tiro”. Ainda com intuito de desqualificar
os estudantes, em outro trecho do mesmo documento, os agentes
fizeram questão de registrar informações colhidas em depoimentos
dos funcionários do Sítio Murundu sobre um “verdadeiro festival de
luxúria e orgias sexuais praticadas pelos estudantes”, durante os dias
do congresso.
Entre os agentes da repressão, as questões de cunho moral,

2  Entre 1994 e 2002 ocupou a cadeira de Senador pelo estado de São Paulo.
Faleceu em 2009, aos 79 anos. Fonte: http://memoriasdaditadura.org.br/

140
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

melhor dizendo, a suposta falta de princípios morais dos militantes


estudantis era mais um traço típico da “degenerescência” de valores
e costumes dos chamados subversivos. Costumeiramente, os
mesmos documentos que faziam análises sobre o comportamento
político também serviam para analisar a vida e a orientação sexual
dos militantes. Depois de prender e indiciar todos os participantes
do XXX Congresso da UNE, os agentes do DEOPS/SP passaram
a realizar o levantamento de informações sobre os detidos. Esse
conjunto documental foi chamado de “Operação Ibiúna”.
Outro desdobramento das prisões em Ibiúna foi a
possibilidade dos agentes do DEOSPS/SP produzirem o que ficou
conhecido como “álbum de fotografias”. Apresentado em forma de
anexo, essa parte da “Operação Ibiúna” é um verdadeiro “tesouro” dos
arquivos da repressão, pois em suas 268 páginas registrou informações
e fotografias de todos os detidos no XXX Congresso da UNE.
Os mais destacados militantes estudantis brasileiros
capturados foram registrados em fotos preto e branco, com formato
10x8. A imagem apresenta, ainda, todos os detidos de frente para
a câmera, segurando placas com números de identificação. Em
seu conjunto, esse documento remete à tradicional imagem dos
detentos “comuns”, ou seja, todos segurando placas com números de
identificação em posses de perfil e frente para a câmera fotográfica.
Na parte final do documento conhecido como “Operação
Ibiúna” estão as alegações dos delegados do DEOPS/SP, solicitando
a abertura de inquéritos contra quase 70 militantes. Os argumentos
são fundamentados na chamada Lei de Segurança Nacional (LSN) e,
segundo o documento, visavam retirar das ruas “grupos de agitadores
estudantis” que estariam fomentando a desordem nas universidades.
Nos anos posteriores, o conjunto documental produzido
a partir da elaboração da “Operação Ibiúna” foi utilizado como um
verdadeiro “banco de dados” para a repressão política. Isso porque as
informações gerais compiladas e, sobretudo, os “álbuns de fotografias”
com imagens dos principais dirigentes estudantis brasileiros foram
uma ferramenta empregada no monitoramento e na identificação dos

141
Das utopias ao Autoritarismo

militantes que posteriormente foram detidos.


Essa posterior utilização dos documentos do dossiê
“Operação Ibiúna” na identificação de militantes pode ser observada
através de um documento produzido pela Agência São Paulo do
Serviço Nacional de Informação (SNI). Segundo o Encaminhamento
nº 140/SNI/ASP, de 02 de fevereiro de 1969, a Secretaria de Segurança
Pública do Estado de São Paulo teria enviado copias da chamada
“Operação Ibiúna” para a Agência Central do SNI.3 O mesmo
documento indica que cópias também foram despachadas para as
agências do SNI de Belo Horizonte e da cidade do Rio de Janeiro.
Como veremos a seguir, enquanto a polícia política paulista
concentrava sua atenção em atividades rotineiras de fichamentos,
transferências e interrogatórios para a elaboração do dossiê “Operação
Ibiúna”, em diversas cidades do país os militantes estudantis realizaram
diferentes manifestações de solidariedade e protestos contra as prisões
dos delegados do Congresso de Ibiúna.
Sendo assim, os desdobramentos das prisões em Ibiúna
repercutiram por muito tempo. Para muitos, participar, direta ou
indiretamente, daquele evento significou um período na prisão,
problemas acadêmicos e, posteriormente, o rótulo de subversivo. Esse
é um dos aspectos fundamentais da “queda” do Congresso de Ibiúna:
seus efeitos posteriores. Podemos classificar esses efeitos em dois
momentos: um primeiro momento marcado por desdobramentos
que atingiram imediatamente os dirigentes do ME e, num segundo
momento, ações que repercutiram no cotidiano acadêmico.
Nesse primeiro momento podemos citar a prisão das
principais lideranças estudantis brasileiras. Simultaneamente, foram
afastados quase 700 militantes da atuação nas entidade estudantis,
especialmente, da direção da UNE. Nos meses subsequentes, diversos
entidade estudantis em nível local e estadual (DCE’s e UEE’s) foram
fechadas. Dessa forma, os estudantes perderam seus mais destacados
canais de expressão.

3  Encaminhamento nº 140/SNI/ASP. Acervo SNI. Arquivo Nacional.

142
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Ainda entre as repercussões imediatos após as prisões


podemos apontar a própria elaboração do dossiê “Operação
Ibiúna”. Numa única ação os agentes do DESPOS/SP tiveram acesso
privilegiado a informações sobre os principais dirigentes estudantis
brasileiros. Através das fichas de identificação e do chamado “álbum
de fotografias” os integrantes da polícia política paulista produziram
dados fundamentais – endereços, fotografias e dados acadêmicos –
sobre esses militantes. Dessa forma, podemos afirmar que a “Operação
Ibiúna” foi, durante a Ditadura Militar, a operação policial mais efetiva
contra o movimento estudantil.
Num segundo momento, a “queda” do XXX Congresso
de Ibiúna, teve efeitos no recrudescimento da repressão nas
universidades. Nos anos subsequentes, como aponta FAGUNDES
(2013), o Governo Militar ampliou as atividades, os instrumentos e
a estrutura da repressão e monitoramento no interior dos campus.
Uma dessas “inovações” foi o chamado Decreto nº 477, de fevereiro
de 1969.
Ele foi mais um instrumento típico do estado ditatorial
brasileiro. Tanto que foi chamado pelos membros da comunidade
universitária de “AI-5 do movimento estudantil”. Seus seis artigos
são mais um exemplo de como os militares utilizaram instrumentos
jurídicos de exceção para limitar as manifestações da oposição.
No mesmo sentido, por meio da Portaria nº 10, BSB, de 13
de janeiro de 1971, foi marcada a criação das primeiras Assessorias
Especiais de Segurança e Informação (AESI). Em sua pesquisa
MOTTA (2014), no período final da ditadura militar, a denominação
mais comumente utilizada para identificar esse órgão era ASI. Ainda
segundo o autor, a partir do surgimento desse mecanismo específico,
o aparato de vigilância adquiriu um importante instrumento para a
coleta de informações dentro das universidades.
As prioridades desses órgãos eram: coleta de informações
sobre atividades das lideranças estudantis e professores, controle da
nomeação para cargos, viagens de docentes e discentes para eventos
científicos, censura de livros, proibição de manifestações, confisco

143
Das utopias ao Autoritarismo

de material considerado “subversivo”, entre outras. Assim, as AESI


atuaram como mais um mecanismo de controle e vigilância da
chamada “Comunidade de Informação”.
A criação das ASI/AESI representou uma violência
cotidiana no interior das universidades. Outro aspecto importante de
se destacar — além da ameaça de prisão, tortura, expulsão ou morte
— é que essa estrutura de repressão significou a ação permanente de
um instrumento de intimidação e constante ameaça para discentes,
professores e funcionários.
Representou, também, o estabelecimento de práticas
rotineiras de invasão da intimidade de cidadãos não engajados em
movimentos de resistência armada. Dessa forma, a violência, a
suspensão, a desconfiança, o sigilo e o silêncio passaram a compor o
cotidiano, sobretudo, das universidades. O emprego dessa tática serviu
para — momentaneamente — silenciar, desarticular e desorganizar as
entidades estudantis.
A partir do adensamento da repressão política, foi colocada
em prática uma série de iniciativas contra os setores da oposição,
no geral, e os militantes estudantis, em particular. Assim, uma das
principais marcas desses período foi a estruturação de um amplo
aparato para vetar os últimos espaços de contestação ao regime.
Mas, retomando a “Operação Ibiúna, as mobilizações das
entidades estudantis e da “União das mães” surtiu efeito, em 12 de
dezembro de 1968, depois de quase dois meses de protestos, os
últimos estudantes detidos foram liberados. Exatamente um dia após
a libertação do último detido no Congresso de Ibiúna o Governo
Militar editou seu mais notório Ato Institucional. Em 13 de dezembro
de 1968, pouco mais de 60 dias depois da queda do Congresso de
Ibiúna, os hierarcas do Regime Militar decretaram o chamado Ato
Institucional nº 5.
Editado durante o governo do general Costa e Silva
(1967-1969) esse decreto foi o sinal mais evidente da decomposição
do cenário político e econômico daquela época. São muitos os
argumentos utilizados pelos militares para assinar o AI-5, entre eles:

144
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

o adensamento das manifestações estudantis de 1968, um episódio


envolvendo sindicalistas – durante as comemorações do dia 1º de
maio – e o governador do estado de São Paulo e os primeiros indícios
da atuação de grupos que aderiram a luta armada.
Esses episódios serviram como sinal de alerta para a
necessidade de endurecimento do Governo Militar. O pretexto final
para o “fechamento” do regime militar foi a negativa do Congresso
Nacional em autorizar a abertura de um processo contra o deputado
federal Moreira Alves, que teria sugerido um “boicote” aos militares
em virtude da repressão contra os estudantes.
A partir dessa data os militares obtiveram plenas
prerrogativas para agir em todos os espectros da sociedade, em
parte atendendo um clamor das tropas que existia desde 1964. O
AI-5, entre outros medidas, autorizou o fechamento do Congresso
Nacional, das Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais. O
decretou permitia, sem impor milites para a Presidência, suspender
direitos políticos; Legislar por decreto e baixar atos institucionais e
complementares.
A partir do AI-5 seria possível também suspender o direito
a habeas corpus; julgar civis, acusados de crimes políticos passaram
a ser julgados por tribunais militares; de demitir, remover, aposentar
funcionários civis e militares; demitir ou remover juízes e Decretar
estado de sítio sem restrições. Como destacamos, o desejo de
endurecer o regime fazia parte dos planos dos setores militares mais
radicais desde o Golpe de 1964.
Em outras palavras, o ambiente político no Brasil pós-1968
teve como uma de suas principais consequências para o movimento
estudantil a desarticulação das entidades estudantis mais relevantes
e o cerceamento das atividades políticas dos dirigentes estudantis
mais engajados. Apesar disso, recorrendo a espaços alternativos,
os militantes estudantis continuaram suas ações no interior das
universidades, inclusive durante os chamados “anos de chumbo”.
Como as recentes pesquisas sobre o movimento estudantil
brasileiro durante a década de 1970 indicam, houve continuidade na

145
Das utopias ao Autoritarismo

organização do movimento depois do AI-5. Durante esse período,


segundo CANCIAN (2010) foi possível realizar protestos, retomar
as atividades culturais e novas tendências estudantis surgiram. Assim
como novas reinvindicações e formas de mobilização.
Na opinião de MULLER (2016), os militantes estudantis
continuaram ativos e com papel de destaque durante todos os
episódios da transição política brasileira. A própria UNE retornaria
suas atividades com a realização de seu congresso de reorganização,
em 1979. Contudo, como indica as inúmeras celebrações dessa
efeméride, o “mito de 1968” permanece inalterado.

Referências bibliográficas:
ARAUJO, Maria Paula Nascimento. Memórias estudantis: da fundação da
UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
CANCIAN, Renato. Movimento estudantil e repressão política: o ato
público na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1977) e o destino
de uma geração de estudantes. São Carlos: Editora da Universidade Federal
de São Carlos (EdUFSCar), 2010.
FAGUNDES, Pedro Ernesto. Universidade e repressão política: o acesso
aos documentos da assessoria especial de segurança e informação da
Universidade Federal do Espírito Santo (AESI/UFES). Tempo e Argumento,
v. 5, p. 295-316, 2013.
FÁVERO, Maria de Lourdes de A. A UNE nos tempos do autoritarismo. 2ª
ed. Rio de Janeiro: UFRJ.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. Rio de
Janeiro: Zahar, 2014.
MULLER, Angélica. O Movimento Estudantil na resistência a Ditadura
Militar (1969-1979). Rio de Janeiro: Gramond, 2016.
POENER, Arthur. O Poder Jovem: História da participação dos estudantes
desde o Brasil-Colônia até o governo Lula. 5ª ed. Rio de Janeiro: Booklink,
2004.
VALLE, Maria Ribeiro do. 1968: o diálogo é a violência: movimento
estudantil e ditadura militar no Brasil. Campinas: Ed. da Unicamp, 1999.

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A recorrente “ameaça vermelha” e seus efeitos no


contexto da transição para a democracia
Maxlander Dias Gonçalves1

Questões concernentes à transição para a democracia


A principal preocupação dos militares com a transição para
a democracia envolvia um fator pregresso; aquilo que havia disparado
o que eles chamam de “Revolução de 1964”. Na listagem militar tem-
se a desordem política ocasionada pela pluralidade partidária e suas
disputas em razão do Estado, demonstrando um parco sentimento
patriótico e republicano - o que impedia o país de avançar e tornava
a corrupção prática contínua; os efeitos sociais de uma cultura
impregnada por valores tidos como imorais e corruptores da família e
dos bons costumes; e o cerne: a teoria de que o Brasil estava ameaçado
por uma recorrente “ameaça vermelha”, fruto das ideias comunistas.
Portanto, a passagem de um sistema a outro, num rito de liberalização
consistia na propalada distensão lenta, gradual e segura. Os itens dessa
transição são múltiplos e remontam o final do governo Geisel e início
do mandato de João Figueiredo.
O que pareceria um governo errático aos olhares mais
apressados categorizou-se historicamente como uma gestão
estrategista na perspectiva do lugar do Estado na abertura política.
Segundo NAPOLITANO (2014, p. 231), Geisel buscava “dotar
o regime e o governo de instrumentos para conduzir a transição
para o governo civil com mão de ferro”, na medida em que, sendo
um anticomunista convicto foi o primeiro a reconhecer o governo
comunista de Angola; tendo os Estados Unidos da América como um
aliado não se furtou em discordar de Jimmy Carter no que tange aos
direitos humanos e o acordo nuclear com a Alemanha e; em benefício
de muitos artistas oposicionistas viabilizou uma política cultural que
acabava por dirimir a censura.

1  Professor de História do Instituto Federal de Rondônia (IFRO-Ariquemes).


Doutorando do PPGHIS/UFES

147
Das utopias ao Autoritarismo

De acordo com Alfred Stepan foram as contradições do


aparelho de estado que levaram à distensão. Foi na dialética da
concessão e conquista envolvendo militares e sociedade civil que
tal projeto se equacionou. “Essas contradições fizeram com que
um dos componentes do Estado - os ‘militares enquanto governo’
- procurasse aliados na sociedade civil e lhes facilitasse mais poder”
(STEPAN, 1986, p. 19).
Para STEPAN (1986, p. 46) não havia prova documental
que legitimasse o discurso comumente aceito de que Geisel foi
escolhido “para liderar o que passou a ser conhecido como abertura”,
inclusive porque uma parcela expressiva do exército se opunha
ao projeto de transição. Entretanto, apesar desses aspectos tácitos,
Geisel implementou uma agenda de liberalização amparada por
instrumentos autoritários, convencendo a comunidade de segurança
e as forças armadas de “que os militares enquanto governo estavam no
comando e que não perderiam o controle do processo de liberalização”
(STEPAN, 1986, p.55).
Elio Gaspari (2016) é mais enfático ao atribuir a Ernesto
Geisel um papel vitorioso naquele período histórico. Ganhara todas,
diante de cenários políticos adversos dentro e fora da caserna e dos
bons resultados econômicos do ciclo anterior. Negociava dentro
dos limites que a conjuntura impunha, bem como se adiantava aos
impasses que espreitavam. Como num tabuleiro de xadrez movia as
peças numa tentativa de manter o cronograma de abertura proposto.
Assim, quando o MDB se excedia no combate ao governo, como se
estivesse prestes a tomar conta do poder, Geisel respondia com uma
reação governamental: “e cada vez que se fazia uma reação se estava
praticamente dando um passo atrás na abertura”, reiterara o general
posteriormente (D’ARAUJO; CASTRO, 1997, p. 420).
Diferentemente de Ernesto Geisel, cujo personagem a
memória liberal fez questão de resguardar, a historiografia de um modo
geral reservou a João Figueiredo outro papel. É a partir dele, sem dúvida,
que o projeto envolvendo distensão, abertura e, por fim, transição entra
em seu desfecho. “A distensão transformara-se em abertura, apontando
o caminho para a transição democrática”, pontua NAPOLITANO

148
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

(2014, p. 281). Todavia era notória a sua fragilidade política, o que não
evitava comparações com o seu antecessor e mentor.
Somadas a crise econômica com os levantes operários e
movimentos de rua, além da insistência de parcela do exército em
frear a abertura, tem-se um governante que foi mais conduzido que
condutor da transição. A estratégia inicial só não se perdera em seu
governo em razão da “tibieza da oposição moderada que ganhava
força ao longo do processo” (NAPOLITANO, 2014, p. 283). De
algum modo, apesar de um personagem claudicante, o governo do
general Figueiredo conseguira na política algo que ele não conseguira
na economia, dadas as recorrentes crises, quando analisados os
resultados conquistados com a anistia e a reordenação partidária. A
equação dividir para somar articulada na caserna surtiu um efeito
político esperado.

Os alvos vermelhos da comunidade de segurança e da


censura
Segundo Maria Helena Moreira Alves (2005, p. 208) o
aparato repressivo estatal tem no Serviço Nacional de Informações
(SNI) o grande catalisador das informações que chegam à presidência
e demais setores do Executivo, com uma particularidade, fruto de sua
autonomia enquanto órgão de inteligência, que é “erigir-se em fonte
paralela de decisões governamentais”.
Essa comunidade de segurança possui ainda outros dois
elementos articulados que envolvem a ação repressiva local por meio
das Polícias Militares e as Forças Armadas em sua tarefa de controle
político interno. Conforme argumento de Carlos Fico (2007, p.
175), são três os pilares básicos de uma comunidade de segurança
no contexto de qualquer ditadura: “a espionagem, a polícia política
e a censura”, tendo ainda a propaganda política enquanto suporte
ideológico para as demais ações.
Do ponto de vista orçamentário pairam muitas incertezas
quanto à estrutura erguida para perseguir opositores e estabelecer a

149
Das utopias ao Autoritarismo

vigilância social, dado o fato de suas cifras não serem divulgadas com
veracidade, mas há uma compreensão geral que os gastos eram vultosos
e o governo defendia tal investimento (ALVES, 2005, p. 209). “O SNI
chegou a ter 2.500 funcionários”, contando ainda com colaboradores
e temporários remunerados conforme demanda, além de uma Escola
Nacional de Informações que almejava formar espiões civis como a
CIA estadunidense, porém tal experiência não alcançou êxito - e isso
seria um demonstrativo de como a ditadura era preponderantemente
militar e não civil-militar (FICO, 2007, p. 178).
No contexto da transição permanecia em voga um jargão
consagrado entre os militares brasileiros há décadas: “a ameaça
vermelha espreita o país”. A comunidade de segurança via comunismo
em tudo, inclusive nos militares que instrumentalizavam a abertura.
“Os agentes de informação consideravam como fato estabelecido a
existência de uma conspiração, qual seja, a escalada do ‘movimento
comunista internacional’” (FICO, 2007, p. 179). Acreditavam que
o MDB estava completamente aparelhado, que os jornalistas, o clero
politizado e os intelectuais de esquerda estavam por trás do movimento
de redemocratização e o retorno aos quartéis só faria crescer o
avanço subversivo. Sob o militar Euler Bentes, candidato do MDB à
presidência da república contra João Figueiredo em 1978, havia um
cerco de grampos telefônicos e vigilância coordenados pelo SNI tendo
como justificativa o fato do mesmo ter pensamentos esquerdistas que,
nessa ocasião, tornavam-se notórios (GASPARI, 2016). Na prática, o
trabalho dos agentes de informações envolvia escolher um suspeito
para, posteriormente, providenciar-lhe uma culpa (FICO, 2007, p. 180).
De acordo com Elio Gaspari (2016) a ascensão de João
Figueiredo à presidência colocava a comunidade de informações
em rota de colisão com um dos seus chefes no passado. Num
semestre em 1978, por exemplo, 26 bombas haviam explodido sem
que os inquéritos tivessem esclarecido as causas e os culpados, e o
Comando de Caça aos Comunistas seguia sua ação de destruição de
arquivos, invadindo Diretórios Acadêmicos, como o da Faculdade de
Arquitetura da Universidade Mackenzie, em São Paulo.
De fato, a tendência de acobertamento dos casos de tortura

150
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

envolvendo militares permanecia uma grande incógnita no trânsito


rumo à democracia, especialmente a partir do abrandamento da
censura com o fim do AI-5, e o enfrentamento proposto pela chamada
imprensa livre. Isso não impediu que o semanário Movimento fosse
processado com base na lei de Segurança Nacional após fazer circular
uma edição cuja reportagem denunciava os casos de corrupção
envolvendo o governo Geisel e a campanha de Figueiredo no Colégio
Eleitoral. Entretanto a percepção geral é que as condições haviam
mudado tanto para os movimentos civis quanto para a reação
governamental. Não era o que pensava a comunidade de segurança.
Somente no primeiro ano de governo Figueiredo doze
atentados à bomba ocorreram. Os alvos tornaram-se as sedes dos
jornais, bem como as bancas que os distribuíam. Elio Gaspari (2016)
atribui total culpa à “tigrada”.2 Destarte, importa perceber nesta
ocasião o quanto as ações truculentas do aparato repressor buscavam
sobrevida em meio a uma estrutura que definhava na medida em
que as funções de seus membros escasseavam. Restava-lhe o velho
fantasma do PCB e do Movimento Comunista Internacional.
Desconectada com o centro do governo ou não, a “tigrada”
refletia uma clara preocupação de João Figueiredo quanto à transição
política em si. Tendo a base civil dos militares se esfacelado com o
milagre econômico e estreitado a margem de negociação, restava
então evitar “a emergência de grupos políticos muito à esquerda”
e as “políticas de apuração das violações de direitos humanos”
(NAPOLITANO, 2014, p. 283).
Do ponto de vista da censura é impossível falar no
estabelecimento da mesma no contexto da ditadura militar pelo
simples fato dela nunca ter deixado de existir no Brasil. Vem de antes
e segue depois. “A censura durante o regime militar tinha um modus
operandi plenamente reconhecível” agindo fortemente sobre a TV e o
rádio, exercendo uma função antiga “e plenamente estabelecida pela

2  Versão tida como “cínica” por Fico, pois as ordens vinham do alto
comando militar (2007, p.171). Recentemente esses fatos foram confirmados na
divulgação de um memorando da CIA. Disponível em: https://history.state.gov/
historicaldocuments/frus1969-76ve11p2/d99. Acesso em 16 jul. 2018.

151
Das utopias ao Autoritarismo

legislação anterior ao regime” (NAPOLITANO, 2014, p. 130).


Porém, com o AI-5, uma atividade censória mais complexa
e sistêmica se estabeleceu no contexto da ditadura militar e “o Ato
foi usado imediatamente para a censura da imprensa” (FICO, 2007,
p. 189). Em alguns jornais havia censores diuturnamente vigiando
o processo de produção. Em outros casos pairava uma espécie de
autocensura que tanto poderia representar um colaboracionismo
ideológico para com o regime quanto uma tentativa de evitar
problemas maiores com os militares, inviabilizando os negócios. Esta
última opção também era a preferência da ditadura a fim de não se
indispor com parcela do empresariado que a apoiou na derrubada
de Jango e menos ainda se identificar com uma espécie de getulismo
estadonovista (NAPOLITANO, 2014, p. 131).
A censura atingia tanto o noticiário, cujas reportagens
deveriam fugir das “proibições determinadas” pelo Ministério
da Justiça, quanto as diversões públicas, proibindo peças teatrais,
cinematográficas e musicais. No primeiro tópico orbitava um desejo
em torno da informação que não deveria circular, pois isso seria uma
garantia da ordem. No segundo paira uma compreensão de que é
necessário manter a moral e os bons costumes. Em muitas situações
o prejuízo financeiro acarretado pela censura acabava por inviabilizar
um espetáculo de um determinado artista. Outros adaptaram suas
obras para de algum modo prosseguir acessando os financiamentos
públicos (FICO, 2007, p. 192).

A sociedade civil contra o regime militar


O movimento estudantil teve caráter preponderante a partir
de 1977 com a retomada das ruas (LACERDA, 2015, p. 82). Desde 1968
não havia tantos estudantes enfrentando o regime. Apenas em 1973,
em razão da morte do estudante Alexandre Vanucchi Leme, houve
tamanha agitação, especialmente em São Paulo. Porém, conforme
MOTTA (2014) o ano de 1977 foi crucial em cada batalha pela volta
da democracia, colocando pessoas nas ruas, desafiando o governo em
sua tentativa de evitar manifestações da oposição.

152
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Entre as pautas constavam a luta por direitos humanos,


anistia e constituinte e de algum modo o movimento estudantil forçou
os limites da distensão oficial acendendo a luz do perigo vermelho nos
quartéis. A problemática a ser resolvida pelos militares ganharia ares
de drama quando em São Bernardo do Campo uma greve operária
desafiou o regime em 1978.
De fato, o censo de 1970 já apontava o que os sindicalistas
denunciariam sobremaneira na ocasião das paralisações:“a distribuição
de renda tinha piorado no Brasil na década de 1960, mostrando um
ponto fraco nos sólidos resultados econômicos divulgados pelo
governo” (PRADO; EARP, 2007, p. 228). Na prática o regime estava
diante de uma forte contradição ao comemorar um crescimento do
PIB ágil e pungente até o ano de 1973, porém o ônus seria sentido por
todos em 1978 quando a dívida externa triplicaria de modo tão rápido
quanto inexplicável de antemão pelos analistas.
Os militares encomendaram uma pesquisa a fim de combater
tais dados de desigualdade social. A explicação que se seguiu definia o
fenômeno da desigualdade enquanto provisório, pelo fato das pessoas
terem mudado de categoria no fator produtividade. “Com a continuidade
do crescimento, e a maior oferta de mão-de-obra qualificada e educada,
a distribuição de renda tenderia a melhorar” (PRADO; EARP, 2007,
p. 232). Fato é que a taxa média de crescimento de 11% ao ano entre
1969 e 1973 não conteve a crise seguinte que “revelava a fragilidade
financeira e a dependência brasileira dos insumos básicos da economia,
como o petróleo” (NAPOLITANO, 2014, p. 150).
Explicações econômicas à parte o fato é que a crise
permanecia na mesa do trabalhador brasileiro que sentia a política de
arrocho e contenção salarial fruto de políticas que de algum modo
também ajudariam a explicar o “milagre econômico” sob o ponto
de vista interno. Os anos finais do regime seriam marcados pela
combinação recessão-inflação-desemprego.
Em setembro de 1977 os metalúrgicos lançaram a campanha
de reposição dos 34%, em decorrência das perdas concernentes à
maquiagem dos dados inflacionários do ano de 1973. Não por acaso,

153
Das utopias ao Autoritarismo

no dia 12 de maio de 1978 dois mil operários da Saab-Scania cruzaram


os braços. As perdas salariais eram um fator aglutinador, mas não
explicavam a mobilização do sindicato dos metalúrgicos como um
todo. A pauta da autonomia e liberdade sindical era recorrente nas
falas de lideranças como Lula.
De algum modo esta greve trouxe uma série de novidades
para o cenário político brasileiro. Acabaria por pautar os limites
da transição para a democracia no entendimento da caserna e do
empresariado brasileiro; desembocaria na criação de um novo partido
político e renovaria o quadro sindical bem como seus métodos de
organização para o próximo período.
Por não ter uma liderança orientada pela militância
tradicional das históricas paralisações trabalhistas brasileiras tornara-
se quase impossível para o governo reprimir a ação paredista. Não
encontravam o elemento subversivo comunista, que sempre fora
o ponto crucial para culpabilização de quaisquer indivíduos que
ousavam insubordinação. “Sem piquetes, a repressão policial ficava
momentaneamente desnorteada” (NAPOLITANO, 2014, p. 276).
Ao considerar a greve ilegal o TRT acabou dando o combustível
necessário para que mais operários parassem. O saldo chegou a 40
mil pessoas. No ano seguinte seriam 180 mil e definitivamente os
operários entravam em cena.
João Figueiredo inicia sua presidência em 1979 com duras
tarefas para serem cumpridas e os piquetes grevistas problematizavam
a proposta de abertura do governo. Não que fosse esse o desejo dos
sindicalistas, todavia a questão econômica e o horizonte que se
espreitava definiria por fim a ação dos metalúrgicos. “Se brigar por
melhores salários é fazer política, então nossa greve é política”, dissera
Lula (NAPOLITANO, 2014, p. 286). A greve durou 14 dias com
poucas conquistas, mas evidenciou o prestígio daqueles trabalhadores
organizados que receberam apoio de estudantes, intelectuais e
trabalhadores de outras categorias.
A comemoração do Dia do Trabalhador confirmaria
esta virada do movimento sindical brasileiro ao lotar o Estádio de

154
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Vila Euclides em São Bernardo do Campo. Entretanto o problema


da transição se ampliava. “As lideranças políticas afinadas com o
governo, como o senador Jarbas Passarinho, temiam uma ‘reação
termidoriana’”, pois a leitura da mídia liberal que apoiava o governo
desde a deposição de Jango era que um clima pré 1968 rondava o país
novamente, o eterno espectro comunista, e isso poderia dificultar o
roteiro de abertura (NAPOLITANO, 2014, p. 287).

O regime militar contra a “ameaça vermelha”


A transição para a democracia gestada na caserna tinha a
recorrente “ameaça vermelha” como ponto de inflexão. A constatação
de uma parcela dos militares, especialmente os infiltrados na
comunidade de segurança, de que os comunistas continuavam
organizados no país e utilizavam tanto o MDB, quanto a CNBB, bem
como o movimento estudantil e sindical para prosseguir com o seu
projeto de tomada do poder nas terras brasileiras, movia o debate e as
ações no contexto da abertura política.
Rodrigo Patto Sá Motta (2000) define o anticomunismo
no contexto pré-1964 enquanto uma “indústria” que, ademais,
possibilitava saldos nas urnas. “O objetivo era aproveitar-se do pavor
provocado pelo comunismo” e, enquanto autêntico defensor da moral e
dos bons costumes da sociedade brasileira, auferir vantagens eleitorais
(MOTTA, 2000, p. 202). Os dividendos dessa ação bem arquitetada,
tendo a imprensa enquanto lócus da amplificação desse discurso,
chegavam também a doações que indivíduos faziam a organizações que
combatiam os comunistas, e apoio popular a medidas governamentais
diversas. Assim, a “indústria” do anticomunismo garantia justificativas
para intervenções autoritárias na institucionalidade brasileira. “Com
algumas adaptações e modificações, este roteiro básico foi encenado
no Brasil duas vezes, em 1937 e 1964” (MOTTA, 2000, p. 204).
Dentre os argumentos utilizados para frear a distensão
estava lá o mesmo discurso que havia unificado uma base social
heterogênea nos primeiros anos da década de 1960. Segundo Motta
(2000, p. 286), “o anticomunismo adquiriu uma importância

155
Das utopias ao Autoritarismo

preponderante, constituindo-se na fagulha principal a detonar o golpe


militar”. Na prática o perigo vermelho permanecia em suspenso como
uma argamassa fresca prestes a ser utilizada.
A presença dessa ameaça no imaginário social do Brasil
tem raízes profundas apoiadas em dispositivos de segurança e
vigilância que foram instrumentalizados a partir da ascensão de
Vargas, especialmente com a consolidação do Estado Novo, mas
tornou-se efetiva a partir da divisão do mundo em duas supostas
frentes de comando, tendo os EUA e a URSS à frente no pós Segunda
Guerra. Com a derrubada do governo Fulgêncio Batista em Cuba
(1959), mais do que nunca, o território da América tornava-se um
ambiente cujas restrições ao ideário soviético ganhava força sob a
batuta estadunidense. “Este pensamento, alinhado à ‘contenção’
do comunismo, foi fundamental para delinear as linhas gerais da
Doutrina de Segurança Nacional (DSN), propagada pela Escola
Superior de Guerra” (NAPOLITANO, 2014, p. 10).
A cantilena se repetia no governo de Ernesto Geisel. Algumas
de suas posturas, como no citado caso angolano, fazia com que uma
parcela do exército rejeitasse a sua política de transição. O general Silvio
Frota era um deles. Objetivava conquistar a indicação para ser o próximo
general-presidente, apesar da escolha de Geisel por João Figueiredo.
Conforme Gaspari (2016), a predileção de Geisel por Figueiredo
consistia no fato de Silvio representar um autêntico retrocesso.
Dentre as diversas atitudes tomadas por Frota constavam
a exacerbação do elemento subversivo e uma constante declaração
de guerra aos “inimigos da Revolução de 1964”, especialmente os
internos. “Desde 1977, remetia à Presidência da República longos
relatórios alarmistas e críticos à orientação do governo e à ‘infiltração’
de comunistas e subversivos” (NAPOLITANO, 2014, p. 269).
Acabou demitido do Ministério do Exército, entretanto permanecia,
juntamente com outros tantos militares na tarefa de reaglutinar
setores da sociedade ante ao iminente perigo comunista.
Conforme assinala Elio Gaspari (2016) os empresários
chegaram por último na mesa de negociações sobre os trâmites das

156
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

liberdades democráticas porque temiam os trabalhadores organizados.


Preconizavam, inclusive, caso a abertura não procedesse conforme criam
ser o caminho ideal, que o estado de exceção retornasse prontamente.
No governo Geisel o porão da ditadura não parou de
trabalhar com suas práticas de extermínio e tortura. Houve um
recrudescimento da caça aos comunistas, tendo como alvos os
membros do PCB (por mais que o mesmo não estivesse ativo, ou tenha
participado da luta armada). Seu governo buscava institucionalizar os
canais de diálogo autorizando uns e desautorizando outros conforme
o fator ideológico. Já ao final de sua gestão o aparelho de tortura viria a
ser desmontado, mas sendo substituído por um instrumento paralelo,
de terror, cujo principal alvo permanecia sendo o mesmo caricato
comunista subversivo.
A escalada de violência foi intensa entre 1978 e 1981, com 51
atentados contra órgãos de imprensa, livrarias e instituições diversas,
tendo como algozes o MAC (Movimento Anticomunista), CCC
(Comando de Caça aos Comunistas) e GAC (Grupo Anticomunista).
O governo João Figueiredo assistiria a essas ações, do mesmo modo que
Geisel, sem tomar qualquer iniciativa punitiva ou ao menos pressionar
pela conclusão de investigações. A suposta ameaça vermelha pautava
o trabalho de muitos agentes do estado que insistiam na teoria de que
a transição seria um atentado ao legado da “Revolução de 1964”.
O episódio do Riocentro foi emblemático. Uma bomba
explodiu dentro de um carro no estacionamento. Em uma delas o efeito
foi moralmente devastador para os militares, pois dentro do carro
que o artefato explodiu estavam dois agentes do DOI-Codi do Rio
de Janeiro e, conforme a imprensa apurara, estavam “trabalhando”.
O capitão Wilson Machado sobreviveu, mas o sargento Guilherme
Pereira não teve o mesmo destino. Todavia o inquérito policial
instaurado concluiu que a “a esquerda havia colocado as bombas no
carro para matar os militares que estavam lá apenas para cumprir
‘missões rotineiras’ de vigilância” (NAPOLITANO, 2014, p. 295).
Conforme assinala Gaspari (2016), muitas versões foram criadas pelos
militares para o terror do Riocentro anos depois, sendo esta, original,
a mais absurda, demonstrando o quanto o imaginário anticomunista

157
Das utopias ao Autoritarismo

latente no país poderia eximir-lhes de uma culpa.


Os agentes de segurança do estado também buscaram
criminalizar o movimento sindical que ressurgia no chamado “cinturão
vermelho” do ABC paulista. Frei Chico, que ficou preso durante 48
dias após uma ação contra membros do Partido Comunista, fora usado
como bode expiatório para que entregasse o seu irmão Lula. De fato, as
paralisações que tomaram conta do setor metalúrgico não tinham nada a
ver com ações partidárias da esquerda e sim com a luta sindical em razão
de perdas salariais, mas o setor empresarial enfatizara em documento
que um clima pré-1964 rondava o país. Acirrava-se assim um discurso
que de algum modo ecoava no ciclo da transição. Com o Movimento
Feminino Pela Anistia algo parecido ocorreu. Segundo o SNI o grupo
tinha vinculações com o Movimento Comunista Internacional.
A transição, já no início dos anos 1980, mantinha
minimamente um cronograma, agora também pautado pela nova
realidade das lutas sindicais, estudantis e pelo retorno dos exilados já e
atividade na reorganização dos novos partidos políticos. As mudanças
atingiam também a comunidade de segurança cujos serviços vinham se
tornando obsoletos desde a última investida de Geisel contra Ednardo
Mello, apeado do comando do II Exército em 1976. O terrorismo
militar precisava então fabricar fatos que lhe providenciasse existência
enquanto aparelho de repressão.
Alguns episódios guardam um autêntico ar de comicidade.
Nos aprontos para a eleição no Colégio Eleitoral cartazes com a
imagem de Tancredo, uma foice e um martelo eram acompanhados
da inscrição: PCB - chegaremos lá. Nas prisões e solturas que se
seguiram ficou claro que se tratava de uma ação de propaganda
anticomunista a fim de gerar mais um desgaste à abertura. Maluf
utilizava do discurso anticomunista para denunciar a candidatura
do seu adversário dizendo que o mesmo possuía um acordo secreto
com a esquerda. Agentes de segurança se infiltravam em passeatas e
manifestações portando bandeiras vermelhas a fim de acentuarem o
clima de acirramento, levando inclusive o general João Figueiredo a
queixar-se da ordem política que espreitava o país e que ele mesmo
não assistiria tais eventos de modo passivo (GASPARI, 2016).

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Considerações Finais
No contexto sociopolítico brasileiro há uma recorrência
da “ameaça vermelha” entendida de forma bastante fluida pelos
sujeitos, todavia, com resultados consideráveis para a formação de
um imaginário social. Conforme assinala Motta (2000), o sentimento
anticomunista teria nascido de modo espontâneo com base no medo
do desconhecido e, assim, a identidade comunista que se consagrou
historicamente no Brasil foi conectada à imagem do mal, com todo
ideário que circunda tal termo. Dessa feita, uma mentalidade política
se formou, na alvorada do golpe militar e no transcorrer de toda a
ditadura, tendo o seu oposto como o paradigma.
O combate ao iminente “golpe vermelho” instrumentalizava
ações, unificava bases sociais difusas e orientava as instituições para
o descumprimento de prerrogativas quando estivesse diante do
“subversivo”. O discurso da “ameaça vermelha” unificou parcela
considerável da sociedade civil, possibilitou o golpe militar, justificou a
violação de direitos humanos e dificultou a transição para a democracia.
De fato, em algumas ocasiões da recente história brasileira
seria cabível a crença em um levante comunista, dados os fatos
históricos que a demonstram. Neste ponto caberia uma razoável
justificativa para a antítese comunista. Entretanto, conforme discute
MOTTA (2000), mais do que o perigo comunista real, a unidade
em torno do “perigo vermelho” somava aspectos de convicção a
elementos de manipulação. Não era um fanatismo simplista, mas um
componente ideológico importante para os sujeitos que defendiam a
erradicação de todo o fator que supusesse a modificação do status quo.
Portanto, no contexto da transição para a democracia, a
“ameaça vermelha” apareceu mais enquanto um emblema que resgatava
imagens de um passado recente da história brasileira no instante em
que bases sociais se unificaram em torno de um adversário comum do
que um autêntico perigo para as instituições nacionais na etapa final
do regime. Porém, os mesmos militares não se furtaram em utilizar da
repetida estratégia do imaginário anticomunista para colocar a abertura
política em xeque. Em certo sentido a iniciativa de uma parcela do

159
Das utopias ao Autoritarismo

exército que se utilizava do terror para frear a transição não obteve


êxito, contudo há que se refletir sobre os efeitos desse insistente discurso
de “ameaça vermelha” para a democracia que se constituía.

Referências Bibliográficas:
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984).
Bauru: EDUSC, 2005.
D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES & CASTRO, Celso (Orgs.). Ernesto
Geisel. 2. ed Rio de Janeiro: FGV, 1997.
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares
básicos da repressão. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida
Neves (Orgs). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em
fins do século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.167-205.
GASPARI, Elio. A ditadura acabada. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.
LACERDA, Gislene Edwiges de. O movimento estudantil e a transição
democrática brasileira: memórias de uma geração esquecida. Tese
(Doutorado em História Social) – Programa de Pós-graduação em História
Social (UFRJ), Rio de Janeiro, 2015.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o
anticomunismo no Brasil (1917-1964). Tese (Doutorado em História
Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP), São
Paulo, 2000.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As Universidades e o Regime Militar: cultura
política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do regime militar brasileiro. São
Paulo: Contexto, 2014.
PRADO, Luiz Carlos Delorma; EARP, Fábio Sá. O “milagre” brasileiro:
crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda. In:
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org.). O tempo
da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 209-241.
STEPAN, Alfred. Militares: da abertura à Nova República. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1986. (Estudos brasileiros, v. 92).

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A cultura política e a justiça de transição no Brasil:


um estudo de história do tempo presente
Guilherme Gouvêa Soares Torres1

Introdução
Com as palavras abaixo, René Rémond inicia seu ensaio
Uma história presente, texto que abre o livro Por uma história política
(1988):
A História, cujo objeto precípuo é observar as mudanças
que afetam a sociedade, e que tem por missão propor
explicações para elas, não escapa ela própria à mudança.
Existe portanto uma história da história que carrega o
rastro das transformações da sociedade e reflete as grandes
oscilações do movimento das ideias. É por isso que as
gerações de historiadores que se sucedem não se parecem:
o historiador é sempre de um tempo, aquele em que
o acaso o fez nascer e do qual ele abraça, às vezes sem o
saber, as curiosidades, as inclinações, os pressupostos, em
suma, a “ideologia dominante”, e mesmo quando se opõe,
ele ainda se determina por referência aos postulados de sua
época (RÉMOND, 2003, p. 13).
Ao se referir à disciplina história como uma disciplina
presente, René Rémond aponta para uma questão importante: ela
não é estanque, nem tampouco engessada, mas passa pelas próprias
mudanças que tem por objeto. Logo, a história também é histórica.
No ensaio, Rémond traça as características gerais do
movimento historiográfico do qual fora parte e testemunha durante
os anos 1980. Nos capítulos do livro por ele organizado, são indicados
temas importantes do retorno: as eleições, os partidos políticos, a
associação, etc. A emergência das temáticas políticas indica uma
nova compreensão social acerca da questão; nesse sentido, os estudos
tradicionais do político não comportam mais as relações acerca deste.

1  Mestrando do PPGHIS-UFES sob orientação do professor Dr. Pedro Ernesto


Fagundes.

161
Das utopias ao Autoritarismo

A historiografia tradicional sucumbiu perante as


transformações trazidas pelos historiadores dos Annales: a
possibilidade de penetrar em realidades sociais mais profundas
barrou os estudos de gabinete, episódicos e pautados nas vidas de
grandes personalidades públicas. Além disso, é fundamental citar a
mudança na compreensão acerca da natureza das fontes históricas,
possibilitando o acesso a uma gama muito mais ampla de registros
do que os meros arquivos oficiais. Passa a ser mais importante para
o conhecimento histórico conhecer a vida das camadas mais baixas
da população (RÉMOND, 2003, p. 15-19). O estigma atribuído aos
historiadores tradicionais, aliado ao prestígio acadêmico dos Annales
contribuiu para o ostracismo dos estudos ligados à história política.
O retorno ao político2 teve aspectos experienciais (p. 23) e
acadêmicos (p. 28-29; 32). A experiência das duas guerras mundiais,
a pressão das relações internacionais na vida interna dos Estados, a
incidência dos fatos políticos nas experiências individuais, as crises dos
liberalismo e o aumento das atribuições do Estado, dentre tantas outras
questões teve na academia o impulso de uma interdisciplinaridade
renovada (ciência política, análise do discurso, estatística), a aplicação
de metodologias próprias da escola dos Annales ao estudo do político,
como o trato quantitativo das fontes, a possibilidade de inserir à
longa duração os temas políticos, o que contribui para desmistificar a
imagem positivista arraigada à história política.
Por uma história política é um livro importante para nos
situarmos em relação ao profícuo contexto da historiografia francesa
em fins dos anos 1970. A obra não esgota, de forma alguma, o conjunto
das discussões na Europa naquele momento; pelo contrário: eis uma
obra seminal para indicar a fertilidade daquele contexto. Em 2018,
completa 30 anos e nos cabe discutir: qual a atualidade da obra?
É indiscutível a necessidade de, a partir dos instrumentos

2 Cito tal expressão em itálico mais por uma compreensão geral acerca do
fenômeno do que propriamente algo utilizado pelo próprio autor; este inclusive
discorda da expressão e demonstra o porquê disso, já que outros estudos sobre
o político foram publicados mesmo antes e durante o hiato, o que contribui para
embasar os aspectos da mudança mais adiante (p. 26-28).

162
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

de análise postos à disposição por Rémond e os demais historiadores


do político, refinar e adequar aos cenários do século XXI. Por uma
história política data do período final da Guerra Fria, onde o fim do
sistema soviético, a reunificação da Alemanha eram acontecimentos
em ebulição. O papel dos Estados Unidos na geopolítica global tendo
Donald Trump na presidência3, a ascensão de partidos de extrema
direita na Europa, o cenário eleitoral conturbado no Brasil após o
impeachment da presidente Dilma Rousseff - processo, este, bastante
questionado e questionável.
Diante de tais questões, é importante pensar o tema em
várias frentes: a definição de cultura política, a transição política no
Brasil, a justiça de transição e a influência dos legados autoritários no
tempo presente brasileiro. Irei por partes.

A cultura política e a transição


Para a discussão da transição política no Brasil, tem sua
validade ao se buscar entender a natureza dos comportamentos
políticos. Não é o intuito utilizar o termo para imobilizar possibilidades
de explicação histórica, mas sim compreender como agem os indivíduos
e por que agem dessa forma.
Mas, afinal: o que é cultura política?
Os historiadores entendem por cultura política um grupo
de representações, portadoras de normas e valores, que
constituem a identidade das grandes famílias políticas
e que vão muito além da noção reducionista de partido
político. Pode-se concebê-la como uma visão global do
mundo e de sua evolução, do lugar que aí ocupa o homem
e, também, da própria natureza dos problemas relativos
ao poder, visão que é partilhada por um grupo importante
3  No dia em que escrevo esse artigo, o presidente Donald Trump assinou com
Kim Jong-un, ditador norte-coreano, um acordo de desnuclearização da península
coreana, o que implica um fim das tensões militares na região, que datam da década
de 1950. Muitos são os cenários ao horizonte: qual o impacto se o acordo não for
cumprido? E, ainda mais: se for? Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/
internacional/donald-trump-e-kim-jong-un-assinam-acordo-de-desnuclearizacao
Acesso em 12/06/2018

163
Das utopias ao Autoritarismo

da sociedade num dado país e num dado momento de sua


história (BERNSTEIN, 2008, p. 31 - grifo meu).
O conceito tem a sua validade ao pensarmos as práticas
introduzidas pelo regime autoritário quanto comportamentos
anteriores que levaram ao golpe de 1964 ou ainda foram reaproveitadas
e reinterpretadas pela ditadura instaurada em 01/04/1964. Cabe
indicar, em linhas gerais, quais seriam os aspectos de tal cultura
política, para assim compreender a relação com o processo de
transição democrática no Brasil, bem como o impacto das medidas da
justiça transicional durante o período da Nova República.
Portanto, ao pensarmos na relação entre a cultura política
brasileira e a transição democrática, tendo em vista as questões
ligadas à justiça transicional, dizem respeito à forma como aos
aspectos da cultura política que se relacionam com a sustentação
do regime, bem como as características do processo de entrega do
poder tem a ver também com tal conceito. Tal relação não se dá de
graça: é fundamental enfatizar a aproximação teórico-metodológica
com o retorno do político. O conceito de cultura política tem sua
importância fundamental no contexto, cabendo, portanto, sua devida
contextualização.
A permanência do passado autoritário na democracia
brasileira é um exemplo de comportamento político no tempo
presente. As falas elogiosas à ditadura feitas pelo deputado Jair
Bolsonaro (um presidenciável) e a possibilidade de uma intervenção
militar, aventada pelo general Hamilton Mourão em setembro de
20174 são exemplos de práticas e representações por detrás de ações
determinantes na cena política como o golpe de 1964.
No caso do Brasil, os estudos do professor Rodrigo Patto
Sá Motta possuem central relevância para pensar a cultura política
brasileira. Indica:
Faz-se necessário apresentar sumariamente o que se

4 Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,general-


fala-em-possibilidade-de-intervencao-militar-e-e-criticado-por-comando-das-
forcas,70002005185>. Acesso em: 17 jul. 2018

164
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

entende por cultura política brasileira e seu elemento


chave, a acomodação, antes de abordar sua incidência
no período ditatorial. Cultura política seria um conjunto
de representações, valores e padrões de comportamento
político comuns a determinado grupo, sem que isso
signifique qualquer forma de atavismo. O campo da política
supõe o protagonismo de agentes que fazem escolhas: há
sempre margem para a opção entre diferentes caminhos
de ação. O argumento é que as escolhas podem sofrer a
influência da cultura política, que oferece aos agentes
alguns padrões de ação já inscritos nas tradições, mais
atraentes e viáveis por terem gerado sucesso em ocasiões
anteriores. Assim, não há porque supor oposição entre
a influência de padrões culturais e a escolha dos agentes
políticos. A cultura política indica caminhos e estratégias
com maiores chances de sucesso que, por isso, podem
tornar-se opções interessantes para os agentes envolvidos
(MOTTA, 2016, p. 14).
A acomodação indicada por Sá Motta é um termo vital
para se pensar as relações de determinados grupos da sociedade
civil (imprensa, oposição, etc.) com o regime militar. Longe de
desconsiderar o papel da repressão e das violações dos direitos
humanos, cabe lançar um olhar além do maniqueísmo entre militares
bandidos contra a sociedade vítima. É fundamental entender quem
ganhou, quem perdeu e quem foi indiferente aos anos de arbítrio,
seja na defesa dos próprios interesses, seja por simplesmente não ter
interesses importantes em jogo.
Tendo em vista o termo utilizado pelo professor, cabe pensar
o contexto da transição e as estratégias utilizadas naquele contexto e
durante a Nova República, quando da implementação de medidas
transicionais. Importa assinalar que, para Rodrigo Patto Sá Motta, em
outro artigo (2009, p. 30) provoca o leitor sobre o papel da conciliação
em diversos contextos da história política brasileira. Seria esta a tônica
da nossa cultura política?
Importa frisar que, em se tratando de justiça de transição, é
preciso levar em conta que um regime autoritário insere determinadas
práticas políticas e que por vezes alteram a cultura política de um país

165
Das utopias ao Autoritarismo

ou se adaptam a ela. São os legados autoritários.


O cientista político italiano Leonardo Morlino (2013) elenca
três dimensões dos legados autoritários - os valores, as instituições
e os comportamentos5 - e dois tipos de legados autoritários -
introduzidos pelo regime autoritário ou partes da cultura política do
país e readaptados pelo regime. Por sua vez, enumera as qualidades
quanto ao procedimento, conteúdo e resultado.
Morlino busca pontuar o grau de impacto das ditaduras nos
sistemas políticos emergentes após a derrocada dos autoritarismos.
Essa relação se dá mediante diversos aspectos. Os conceitos trabalhados
pelo autor abarcam tanto o que está diretamente envolvido pelos
regimes autoritários quanto pelo período anterior, que compõem a
cultura política desses países. Cabe também destacar que o processo
de transição para a democracia é fundamental para definir tanto
a qualidade democrática no momento posterior, como também
indica a relação com a ditadura. Para entender essa relação, Morlino
enumerou três dimensões de influência dos regimes e que compõem
o legado autoritário; são essas: duração, inovação e tipo de transição6.
No caso da transição brasileira, podemos situar a transição

5 Os valores são constituídos pelo componente ideológico dos regimes;


a dimensão institucional diz respeito aos elementos introduzidos ou que são
sustentáculos das ditaduras, como exército ou Igreja; os comportamentos dizem
respeito aos silêncios, a fenômenos eleitorais e de massa, etc.
6 MORLINO (p. 269) define duração como “a extensão de tempo durante
o qual o regime autoritário permanece no poder”; inovação como “...tanto o grau
de transformação como a institucionalização de regras, padrões, relações e normas
autoritários que são muitas vezes simbolizados por uma nova constituição, pela
criação de novas instituições” e por reforço ou enfraquecimentos de interesses
particulares; tipo de transição como “...forma como a transição do poder autoritário
favorece responsáveis e/ou contestatários”, além de dizer respeito à manutenção (ou
não) de normas institucionais e à influência ao eleitorado no momento imediatamente
posterior. Defende também Morlino que “tipos contínuos ou descontínuos de
transição medeiam se e a que ponto os legados autoritários persistem” (ibid). No
caso brasileiro, a inovação não possui tanta importância enquanto legado, visto
que o regime foi duradouro e adaptou muitas características do período anterior,
como, por exemplo, o funcionamento, ainda que deficitário, do Parlamento. Graças
a tais características, vemos uma transição conciliatória, pactuada, marcada por
continuidades institucionais e com limitadas medidas de punição e reparação.

166
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

brasileira a partir do governo do general Ernesto Geisel (1974 - 1979).


É possível perceber comportamentos de conciliação e acomodação
e algumas iniciativas denotam tal caráter e há permanências ainda
no tempo presente brasileiro. Cabe, portanto, indicar a importância
da cultura política no processo, os legados autoritários e a relação
entre estes.

A transição brasileira
É importante relembrar que o processo de entrega do
poder aos civis foi profundamente conciliatório e negociado, caráter
este denominado por Alexandra Barahona de Brito (2013) como em
câmera lenta. Ressalto aqui novamente que o controle das decisões
pelos militares só foi possível graças ao desmonte das guerrilhas
armadas e da centralização das ações de oposição ao regime por
grupos politicamente mais moderados. A partir de 1974, o MDB passa
a exercer um papel predominantemente no processo, impulsionado
pela retumbante vitória eleitoral naquele ano.7 Tais medidas
contribuíram para que durante o período democrático, os militares
não tivessem que lidar com a questão da responsabilidade.
Portanto, ao considerarmos o alto grau de controle do
processo político conseguido pelos militares, podemos caracterizar
a transição brasileira como profundamente pactuada, ou seja,
com as elites autoritárias - no caso do Brasil, as Forças Armadas -
exercendo suas prerrogativas para evitar o máximo de dano possível.
7 Além da Lei de Anistia, a Reforma Partidária teve um papel central ao
fragilizar as oposições e acentuar o caráter controlado da transição. Após o fim do
bipartidarismo, outros partidos emergem na cena política, fragmentando os setores
que se colocavam contrariamente ao regime. Para citar como exemplo dentro das
esquerdas, o PT, fundado em 1980, disputou o papel de representante da classe
trabalhadora com o trabalhismo de Leonel Brizola, que, por sua vez, fundou o PDT
em 1980 após a entrega da sigla do PTB a outros grupos políticos (FREITAS, 2011,
p. 59; NAPOLITANO, 2017, p. 362). A grande força emergente naquele momento
era o PMDB, fundido ao PP (Partido Popular e não o atual Partido Progressista).
Este partido seguiu a maré da conjuntura política, tendo formado uma chapa para
a eleição indireta de 1984 que alçou Tancredo Neves à presidência da República,
tendo por vice José Sarney, ex-membro da ARENA e do PDS, partido que surgiu da
agremiação governista do regime militar e mais tarde veio a se tornar o PFL.

167
Das utopias ao Autoritarismo

Isso se reflete na Lei de Anistia (1979), que beneficiou também os


torturadores e a pacífica entrega do poder aos civis, coroada pela
eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney - ex-membro da
ARENA - a presidente e vice.
De 1985 e 1995, poucas medidas foram tomadas pelos
governos a respeito do passado autoritário brasileiro. Cabe destacar
a transferência dos registros policiais aos governos estaduais pelo
governo Collor (1989-1992), o que não uniformizou a questão
do acesso aos documentos do período militar (BARAHONA DE
BRITO, 2013, p. 239). Durante os anos Sarney, foram mantidos o
Conselho de Segurança Nacional e o Serviço Nacional de Informação
(BARAHONA DE BRITO, 2013, p. 237-238).
As primeiras medidas de transição do Governo Federal
foram tomadas durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002). FHC criou, em 1995, a Comissão de Familiares dos
Mortos e Desaparecidos por Razões Políticas (CFMDRP). Tais
trabalhos culminaram no reconhecimento da responsabilidade do
Estado brasileiro na morte de 136 pessoas por razões políticas e na
promulgação da Lei 9.140 de 4 de dezembro de 1995 (BARAHONA
DE BRITO, 2013, p. 241).8
As vitórias eleitorais de Lula e Dilma representam a chegada
de um partido progressista ao poder, o Partido dos Trabalhadores. De
bases operárias e sindicais, o PT passa por uma inflexão, indo de uma
postura anti sistêmica a maior pragmatismo, após maus resultados
eleitorais, tendo por marco dessa mudança a ascensão de José Dirceu
à presidência do partido na segunda metade dos anos 1990.

8  Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9140.htm>. Acesso


em 17 ago. 2017. A lei “Reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de
participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de
setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e dá outras providências”, tendo sido alterada
pela 10.536 de 14 de agosto de 2002, que estendeu o período contemplado pela lei até 5 de
outubro de 1988. Importa destacar o artigo 2º da Lei: “A aplicação das disposições desta
Lei e todos os seus efeitos orientar-se-ão pelo princípio de reconciliação e de pacificação
nacional, expresso na Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 - Lei de Anistia.” A inserção
deste trecho no corpo da lei denota a tônica das medidas de transição e tal princípio
esteve por detrás das outras medidas tomadas pelos governos da Nova República.

168
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Em tais mandatos, percebe-se uma disposição maior a lidar


com aspectos do passado autoritário brasileiro. Todavia, as políticas
desses governos tiveram limites claros, especialmente durante o
governo Lula. A lida com a memória da ditadura militar brasileira foi
mais presente durante o governo Dilma, especialmente no primeiro
mandato.
O governo Lula apresentou uma orientação ambígua
em suas políticas do passado. Por um lado, é importante destacar a
extensão das políticas compensatórias por parte do Estado brasileiros
em relação aos perseguidos políticos do período militar9. Além disso,
é no mesmo governo que são criados os projetos Direito à Memória
e à Verdade e Memórias Reveladas, além do Memorial da Anistia e
as Caravanas da Anistia, que incentivaram novos pedidos de anistia
(BARAHONA DE BRITO, 2013, p. 244-245), além do anúncio da
criação da Comissão Nacional da Verdade em dezembro de 2009,
sancionada pela 12.528 de 18 de novembro de 2011. Todavia, o governo
se mostrou suscetível às pressões dos militares, tendo inclusive cedido
em algumas ocasiões, como, por exemplo, a recusa em revisar as leis de
sigilo 8.159/91 e 11.111/05, a respeito das quais o Supremo Tribunal
Federal havia declarado inconstitucionais, em resposta à ação do
Procurador Geral da República Antonio Fernando Barros e Silva de
Souza. Desta forma, foi mantido o segredo de arquivos mais sensíveis
por mais 60 anos, sob o argumento de que tal segredo era necessário
por questões de segurança (BARAHONA DE BRITO, 2013, p. 247)10.
Durante o governo Dilma, houve mais esforços nas medidas

9 Um exemplo é a fórmula de compensação estabelecida em Comissão


Interministerial em decreto de 27 de agosto de 2003 e a extensão do período pela Lei
10.875, de 1º de junho de 2004 (BARAHONA DE BRITO, 2013, p. 244).
10  O Caso Viegas, em 2004, indica a ambiguidade das medidas de transição no
governo Lula. A divulgação de fotos de um prisioneiro que se supôs ser Vladimir
Herzog pelo Correio Braziliense foi respondida com uma nota do comandante do
Exército falando em movimento comunista internacional, dentre outros exemplares
de retórica de Guerra Fria e relativizando a morte do jornalista. A celeuma gerada
por tal nota foi resolvida com uma breve nota do comandante, reafirmando os
ideais democráticos das Forças Armadas. O desgaste levou ao pedido de demissão
do ministro da Defesa José Viegas, desautorizado frente à ação dos militares. Foi
substituído pelo vice-presidente, José de Alencar (cf. D’ARAÚJO, 2012).

169
Das utopias ao Autoritarismo

transitórias. Em 2011, como já foi dito, foi sancionada a lei que criou
a Comissão Nacional da Verdade, juntamente com a Lei de Acesso à
Informação. Um avanço fundamental dessa lei é que o acervo relativo
a violações dos direitos humanos não poderá ser classificado como
“ultrassecreto”, não ficando, portanto, em sigilo no prazo máximo (no
caso, 25 anos)11.
Importante indicar o trabalho de Maria Celina D’Araújo,
que traça um percurso histórico do papel das Forças Armadas na
sociedade brasileira na Nova República, em Militares, Democracia
e Desenvolvimento (2010). O conceito corporativismo (p. 125) é
fundamental para se entender o papel de salvaguarda institucional
adotado pelas Forças Armadas no tema da Lei da Anistia (p. 146) e
na questão do acesso aos arquivos do período ditatorial, mantendo as
restrições com o fito de proteger toda a classe.

Transição, Cultura Política E Tempo Presente


Nas décadas finais do século XX, o político está em evidência
mais do que nunca; os traumas dos totalitarismos e dos autoritarismos,
as experiências da Guerra Fria, a descolonização na África e na Ásia,
as revoluções políticas e comportamentais, dentre tantos outros
eventos, chamam a atenção dos historiadores e suscitaram novas
reflexões, influenciando até mesmo a forma de se pensar a disciplina.
O próprio RÉMOND (2003, p. 22) aponta que este retorno é fruto de
uma conjugação entre realidade e percepção, ou seja, como interage
o historiador diante das questões do próprio tempo e como elas
interferem na forma de se fazer a disciplina.
A história do tempo presente é um reflexo dessas perspectivas
e questões colocadas diante do historiador. O seu nome já indica uma
possível contradição: história do tempo presente. Como pensar o
presente historicamente? Não seria a história coisa do passado? Como
inserir tal objeto em uma lógica de sequência temporal?
11  Os documentos do período poderiam ser classificados como ultrassecretos (25
anos de inviolabilidade), secretos (15 anos), reservados (05 anos), podendo ser renovada
a inviolabilidade por apenas uma vez (BARAHONA DE BRITO, 2013, p. 250).

170
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Importa destacar a questão da demanda social para a


História do Tempo Presente; para Agnes Chaveau e Philippe Tétart
(1999, p. 7-10), a história do tempo presente coloca em evidência a
questão da relação entre o historiador e seu tempo: quais são os jogos
de influência entre os climas ideológicos e os contextos históricos? Por
sua vez, RIOUX (1999) indica que a relação com o tempo e com a
memória durante o século XX apontaram a necessidade do registro e
do trato históricos (1999, p. 43-44).
A leitura de Rioux se aproxima com a de Henry Rousso
(2001), que indica a renovação do campo de estudos sobre a memória
(p. 94) e a importância de questões sensíveis para a memória coletiva
e a influência para a escrita da história (p. 95). Rousso cita como
exemplo de passado sensível a França de Vichy, seu objeto de estudo.
Aqui no Brasil, questões referentes à ditadura militar
permanecem muito atuais, não somente para a academia, como
também como objeto de disputas no seio da sociedade. Nos últimos
anos, diante da crise política deflagrada durante o governo Dilma
e agravada pelo impeachment desta em 2016. Neste contexto, o
passado autoritário esteve presente em diversas circunstâncias,
como a emergência das manifestações por intervenção militar12 e nas
falas do deputado federal Jair Messias Bolsonaro (PSC-RJ) que, em
votação pela admissibilidade do relatório do deputado Jovair Arantes
(PTB-GO) pelo impeachment de Dilma, homenageou o torturador
Carlos Alberto Brilhante Ustra, o terror de Dilma Rousseff13 Mais
recentemente, manifestações de generais - incluindo o comandante do
Exército, general Eduardo Villas Boas - a respeito do papel das Forças
Armadas e da intervenção militar indicam a relevância do imaginário
acerca da questão e que ainda persiste: a missão das três forças seria
uma espécie de Poder Moderador, intervindo em contextos de crise e
temor da instabilidade.
12  Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,manifestantes-
pedem-intervencao-militar-com-base-em-regra-que-nao-existe-na-
constituicao,1668381>. Acesso em: 11 ago. 2017
13 Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/brasil/coronel-ustra-
homenageado-por-bolsonaro-como-pavor-de-dilma-rousseff-era-um-dos-mais-
temidos-da-ditadura-19112449.html>. Acesso em: 11 ago. 2017.

171
Das utopias ao Autoritarismo

Considerando o destaque obtido pelo militar nos


últimos anos e as falas dos generais, é importante levantar alguns
questionamentos. É no contexto de crise do governo Dilma Rousseff
(considero este período os anos entre 2013 e 2016), Bolsonaro ganhou
notoriedade, tornando-se até mesmo um presidenciável. Por sua
vez, as declarações dos generais passaram a ecoar uma demanda de
determinados grupos sociais em apoio a uma intervenção militar.
Para a cientista política portuguesa Alexandra Barahona de
Brito (2013), o primeiro mandato da petista representou um ponto
de inflexão na história das políticas de transição no Brasil. A criação
da Comissão Nacional da Verdade, a postura da presidenta frente às
pressões dos militares acerca de tais medidas foram, sem sombra de
dúvida, fundamentais no que diz respeito à relação das instituições
democráticas para com o passado autoritário, especialmente a
Comissão da Verdade, que, apesar de não ter papel jurídico, contribuiu
para a expressão de vozes silenciadas pela ditadura.
A considerar o papel desempenhado pelo governo Dilma,
não é equivocado buscar compreender as reações suscitadas a
partir de sua experiência biográfica. A própria fala de Bolsonaro em
homenagem a Ustra reflete claramente tal vínculo.
Não pretendo aqui simplesmente ligar a queda de Dilma
às medidas transicionais de seu governo; na verdade, elas foram um
componente a mais, vindo a alimentar o anticomunismo fortemente
presente na cultura política brasileira (MOTTA, 2009, p. 30). Quando
Dilma caiu em 2016, tais aspectos vieram à tona e acredito que as
ações de seu governo quanto à revisão histórica da ditadura militar
contribuíram para engrossar esse caldo. Todavia, a questão mais
pertinente a se colocar neste momento é: por que 32 anos após a
entrega do poder aos civis, quase 30 de vigência da Constituição
Cidadã, o autoritarismo emerge em discursos e práticas justo no
momento em que há mais ações a se combatê-lo?
Dizer que é uma mera reação é reducionismo. O que
está envolvido é a permanência desses valores passados, revistos
e ressignificados no presente. É o próprio passado que não passa

172
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

(ROUSSO, 2001, p. 95; DELACROIX , 2012, p. 359). Tal permanência


se assenta em diversos fatores.
A ausência de uma memória coletiva traumatizada acerca
da ditadura militar é um ponto importante, pois o período acaba
por ser pintado como uma ditabranda14, de modo que pareça inócuo
proceder com a investigação.
Paralelo a isso, pode-se ligar à forma como a sociedade
brasileira lida com a violência, algo também vinculado à cultura
política nacional, mas, mais ainda, muito próximo de nossa realidade
em 2018. O chavão Bandido bom é bandido morto ecoa no silêncio
da sociedade sobre a ditadura militar, no que diz respeito à prática da
tortura. Importante frisar, como bem o-faz Daniel Aarão Reis (2013,
p. 228) que esta foi uma prática de Estado de 1935 a 197915 .
Este silêncio está relacionado ao procedimento de transição
para a democracia. Como já foi citado, a anistia foi um pacto social
firmado sobre três silêncios, o que, por sua vez, indicam uma forma de
se lidar com a ditadura, tanto no passado, quanto no presente: houve
largo apoio da sociedade civil ao regime, atestado pelas Marchas da
Família com Deus pela Liberdade16 e a adesão pelo menos até os anos
do Milagre Econômico.
Ao redor desse pacto social foi construído um discurso sobre
o passado que buscou conferir a diversos grupos (como a imprensa,
por exemplo) o atributo de ter resistido ao regime e vinculá-los à ideia
de oposição democrática (NAPOLITANO, 2017, p. 364). Tal discurso
permanece e se afirmou enquanto memória hegemônica, de modo
que, para esses grupos, tem que manter isso aí.
A compreensão do processo de transição é fundamental

14 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.


htm>. Acesso em: 11 ago. 2017
15  Como já foi dito anteriormente, o autor considera que a ditadura teve seu fim
em 1979; todavia, esta datação apresentada no parágrafo acima marca também o fim
do AI-5, de modo a apontar, portanto, o abrandamento do regime no que diz respeito
às práticas de violência.
16  A respeito das marchas, cf.: FAGUNDES (2014).

173
Das utopias ao Autoritarismo

para compreender a construção da democracia em períodos pós-


autoritários; muitos autores, como o já citado Leonardo Morlino
buscaram compreender a relação entre a justiça de transição e a
qualidade da democracia. Não adentrarei na discussão do cientista
político italiano, apenas levantar esse ponto para concluir o texto.
O passado autoritário brasileiro permanece na democracia
brasileira. O modo limitado como foram tratadas as políticas do
passado é um reflexo disso. Ao controlar o processo, os militares
foram capazes de criar mecanismos para evitar as punições e manter
certas prerrogativas durante o período civil, de modo a barrar um
empreendimento de justiça de transição de fato, mantendo tais
políticas no nível da reparação sem reformar profundamente as
instituições ou responsabilizar os envolvidos em crimes durante a
ditadura. A relevância dada às reações dos militares em questões
espinhosas acerca de acesso aos documentos e da Comissão Nacional
da Verdade, chegando até mesmo a configurar cenários de crise
institucional, atestam como o jogo democrático brasileiro permanece
atrelado ao entulho autoritário. O mesmo é possível dizer da aceitação
que vem tido o já citado deputado Jair Bolsonaro, despontando como
uma figura importante para o cenário eleitoral de 2018. Não quero aqui
dizer que todos os possíveis eleitores do pré-candidato concordam
com as suas posturas elogiosas à ditadura militar, apenas anotar o
significado que o fenômeno tem no nosso contexto. O autoritarismo
permanece como uma solução para as crises democráticas.
Diante da história do século XX, permeada por
acontecimentos traumáticos, cabe ao historiador propor questões de
modo a desfatalizar o sofrimento. A sociedade que cria a violência
pode ela compreender e a ela combater. O papel do historiador é
fundamental nesse processo (FARGE, 2011, p. 23).
O estudo da justiça de transição entrelaça o presente e o
passado, ao buscar compreender a influência dos legados autoritários
e o modo a se combater. O pesquisador que se debruça sobre esse
tema e outros a ele ligados está diante não somente de um objeto
como qualquer outro, mas da responsabilidade ética frente à verdade
histórica; aquela dos rastros apagados e das vozes silenciadas, que

174
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

emergem no relato histórico (LAFER, 2012, p. 16-17).17 Para François


Dosse (2017, p. 32), a responsabilidade do historiador possui três
funções: crítica, cívica e ética e opera em duas frentes: a desmistificação
da memória coletiva e a formação de consciência histórica.
Tal relação com a memória traz pontos fundamentais. Os
usos do passado no espaço público atravessam a história, através de
perspectivas diferentes e com intenções diferentes. Um claro exemplo
disso é a memória do fascismo na Itália, que flutuou da condenação a
reabilitação (TRAVERSO, 2007, p. 44). Tais presenças mostram que
o passado não é algo morto, enterrado e descansando em paz, mas
permanece vivo, mutável e com uma relação nem sempre simples com
a história e a historiografia. A força da memória perpassa a escrita
da história e leva ao confronto entre narrativas. Temas importantes
deram impulso para que os historiadores assumissem seu olhar
a recortes mais próximos, como o regime de Vichy e a Guerra da
Argélia e trazem o historiador ao debate público como um perito ou
juiz (TRAVERSO, 2007, p. 64; ROUSSO, 2017, p. 220).
Frente às questões colocadas, o relato histórico não se
mantém frio e objetivo, mas atravessado constantemente pelo clima
ideológico, pela dificuldade em lidar com um tempo fragmentado e
com profundas feridas abertas durante os períodos estudados. Essa
escrita nunca está acabada e é esse caráter que relembra a importância
de sua escrita: o objeto é vivo, dialoga contigo e busca respostas.

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Das utopias ao Autoritarismo

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177
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A história do tempo presente: um balanço da


justiça de transição no Brasil
Dinoráh Lopes Rubim Almeida 1

Introdução
Este trabalho tem como objetivo discutir como a
história do tempo presente revitalizou e abrigou um amplo
movimento de renovação historiográfica, com ampliação de fontes,
interdisciplinaridade, a nova história política, a diversidade temática,
a valorização da história oral e a relação dialética entre memória e
história. Analisaremos a aplicação da História do Tempo Presente no
Brasil, através da justiça de transição, que liga fatos de um passado
recente à atualidade.

A história do tempo presente


A História do Tempo Presente (HTP) é uma modalidade
da História que se refere a uma história recente: últimas décadas do
século XX e o século XXI. Sua periodização é móvel, que se desloca
com o desaparecimento dos testemunhos. Isso é uma peculiaridade
da HTP, que diferentemente da história periodizada, não está presa a
tempos definidos.
Essa modalidade enfrenta várias demandas históricas,
conforme enumerados por Ferreira (2012):
a) a questão da falta de recuo e de distanciamento dos
fatos;
b) a disponibilidade de fontes; a legitimidade científica;
c) o confronto do historiador com o testemunho dos
1 Doutoranda do Curso da Pós-Graduação em História Social das Relações
Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Professora do Ensino
Básico, Técnico e Tecnológico no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Espírito Santo (IFES), Campus de Alegre. E-mail: dinorahrubim@yahoo.com.br

179
Das utopias ao Autoritarismo

coetâneos;
d) os eventos inacabados; os problemas de delimitação
cronológica (devido as balizas móveis);
e) as memórias e as identidades e a questão da história
judiciária.
Para cada um desses “problemas” apresentados, a autora
traz respostas a tais questões baseadas em autores como Bédarida,
Delacroix, Peschanski, Pollak, Rousso, Chartier e outros. E segundo
FERREIRA (2012, p.108):
O estudo da presença do passado incorporado ao
presente das sociedades, iniciado pelos historiadores do
tempo presente, abre novas temáticas e abordagens para
pesquisadores de outros períodos.
Em 1978, foi criado na França o Institut du Temps Présent
(IHTP), com a finalidade de garantir a objetividade dos estudos,
apresentar bases científicas e defender o domínio desse objeto pelos
historiadores profissionais, afastando amadores, e apresentando os
desafios metodológicos e epistemológicos dessa modalidade histórica,
bem como abarcando uma interdisciplinaridade, que se bem utilizada,
muito contribui para o trabalho do pesquisador.
Com o tempo, as questões anteriormente apresentadas, vem
sendo respondidas, e a HTP vem apresentando notável crescimento
no meio acadêmico e ocupando um lugar expressivo na pesquisa
historiográfica. De acordo com BÉDARIDA (2006, p. 221), fundador
e presidente do IHTP até o ano de 1991,
a história do tempo presente é feita de moradas provisórias.
[...] Sua lei é a renovação. Seu turnover verifica-se muito
rapidamente. Mas é consolador pensar que seus adeptos
têm o privilégio de uma fonte da eterna juventude.
As críticas sofridas pela HPT devido à proximidade dos
historiadores em relação aos acontecimentos pesquisados, o que,
segundo alguns, poderia provocar um olhar limitado sobre os mesmos,
vem sendo desconstruída, e há uma grande adesão de pesquisadores
que defendem a escrita a história do presente ou do imediato.

180
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

De acordo com DELGADO & FERREIRA (2014, p. 8),


“a configuração da história do tempo presente está relacionada
inexoravelmente à dimensão temporal”, ou seja, é justamente
a contemporaneidade dos fatos que faz surgir esse novo
redimensionamento na matriz histórica que tem mobilizado
historiadores de todo o mundo. Não há como limitar uma data para
se enquadrar a história do tempo presente, mas há como aproveitar
recursos “vivos” que podem ser documentados pelos historiadores
contemporâneos, como a história oral. Além de vários outros recursos
que são revitalizados e em parceria com o avanço tecnológico tem
contribuído para o enriquecimento historiográfico.
Segundo RIOUX (1999, p. 46), “o argumento da “falta de
recuo” não se sustenta, pois é o próprio historiador, desempacotando
sua caixa de instrumentos e experimentando suas hipóteses de
trabalho, que cria sempre, em todos os lugares e por todo o tempo, o
famoso recuo.” Afinal, a falta de distanciamento/recuo dos fatos pode
ser positiva, pois proporciona um maior entendimento do que está
sendo estudado, uma vez que o historiador faz parte do contexto.
Quanto a disponibilidade de fontes, ela não é escassa, ao
contrário, é superabundante, inclusive contando com a memória dos
testemunhos, onde se pode trabalhar com a história oral (que deve
ser tratada sob os devidos critérios e métodos históricos). Destacamos
ainda, que o historiador pesquisa e relata, não é um juiz que tem a
função de julgar e sentenciar, portanto, a história não deve jamais
possuir uma postura judiciária.
Quanto aos fatos dos historiadores do Tempo Presente
escreverem sobre eventos inacabados, devemos lembrar que a história
não é uma verdade absoluta, poderá ser sempre revisada e reescrita,
e nunca poderemos dominar a verdade, no máximo, aproximar-se
dela. Devemos enfatizar que a HTP contribuiu abrindo fontes para
abordagens futuras; segundo BÉDARIDA (2006, p. 221) “o tempo
presente é reescrito indefinidamente, utilizando-se o mesmo material,
mediante correções, acréscimos e revisões.”
Portanto, é possível se fazer uma história do presente,

181
Das utopias ao Autoritarismo

pois a história não é imóvel, e o historiador sempre sofre a


influência do contexto que está inserido, independente da época
que elege como seu objeto de estudo. Por se tratar de uma história
imediata, o pesquisador pode não dispor de todos os documentos
disponíveis do período, pois alguns ainda podem não estar abertos
ou mesmo em construção, portanto, cabe a ele, promover métodos
de investigação acertados e aproveitar as vantagens empíricas da
proximidade com os fatos. O historiador não pode simplesmente
arquivar um acontecimento contemporâneo, quando o mesmo vem
sendo questionado constantemente a nível nacional ou mundial. O
pesquisador tem, portanto, a tarefa de exumar e tornar inteligível
tal acontecimento, daí a importância de uma história do tempo
presente.
A memória, no sentido básico do termo, é a presença
do passado. Portanto, não admira que tenha interessado
aos historiadores do tempo presente, depois de outros,
já que essa presença, sobretudo, a de acontecimentos
relativamente próximos como as revoluções, as guerras
mundiais ou as guerras coloniais, acontecimentos que
deixam sequelas e marcas duradouras, tem ressonância
em suas preocupações científicas: como arquivar
tranquilamente e em silêncio a história de Vicky, quando
no mesmo momento esse período era alvo de uma
interrogação obsessiva em escala nacional? (ROUSSO,
2006, p. 94).
Portanto, como historiadores, seria possível não pesquisar
e escrever sobre eventos de grandes repercussões, como o terrorismo,
os problemas de imigração na Europa, a primavera árabe, a crise
política e econômica brasileira e mundial, a mídia e a política, os
arquivos da repressão no tempo do regime militar, os conflitos
no Oriente Médio e tantos outros assuntos, só porque somos
contemporâneos a tais fatos? Nós historiadores devemos delegar
essa função a jornalistas, economistas e sociólogos, e só depois de um
longo distanciamento analisar tais acontecimentos? Não me parece
coerente incumbir tais responsabilidades a outros profissionais e
sentarmos na arquibancada como meros expectadores que assistem
o desfile dos acontecimentos e depois de anos procurar analisá-los.

182
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Como diz NOIRIEL (1998): “Toda história é contemporânea”. E


merece a atenção e o trabalhos dos seus coetâneos.
É certo que um distanciamento dos acontecimentos nos
amplia a visão, a participação e a articulação de atores nos fatos.
Porém, o historiador deve ter a sensibilidade de perceber: a história
não é imóvel, as fontes históricas não são inócuas. As mudanças
e variações de interpretações sobre um mesmo fato histórico são
uma realidade na historiografia, independente do período em que
o mesmo é escrito. E a responsabilidade de escrever a história do
tempo presente é nossa.
Segundo DELGADO & FERREIRA (2014, p.8), a história do
tempo presente envolve ferramentas importantes aos pesquisadores:
“o campo constitutivo e temporalidade, pluralidade de fontes e de
procedimentos de pesquisa e diversidade temática.” Acreditamos
portanto, que o historiador do imediato, tem muito a contribuir na
construção de fontes históricas que muito auxiliarão em pesquisas
futuras, que poderão ou não trazer percepções distintas sobre um
mesmo fato.
Destacamos que a nova história política apresenta-se
renovada com novos métodos de análises, novos conceitos e técnicas
de pesquisas; ampla (voltada para uma sociedade global, abordando
todos os atores e aspectos da vida coletiva); pluridisciplinar;
quantitativa (apoderando-se de dados numéricos); e com uma
pluralidade de ritmos, abordando acontecimentos de rápida, média,
longa e longuíssima duração. Segundo RÉMOND (2003) após essa
renovação, a história política passa a preencher todos os requisitos
necessários para ser reabilitada e viver um renascimento.
A cronologia do ressurgimento da história política está
intimamente ligada a ênfase que a história do presente tem vivenciado,
bem como, a sua ligação com a memória. Essa trilogia – história
política, história do presente e memória - vem sendo muito utilizada
entre os pesquisadores e vem ganhando grande vigor na atual
historiografia. Para CHAUVEAU e TÉTARD (1999), os historiadores
do político construíram a vanguarda da história do presente.

183
Das utopias ao Autoritarismo

No Brasil, a História do Tempo Presente fortificou-se a


partir dos anos de 1990. Indubitavelmente, a presente pesquisa, com
seu aparato em cultura política, tem como parte estruturante o fato de
estar inserida na modalidade da História do Tempo presente
A noção de “história do tempo presente” teve uma ampla
difusão tanto no mundo germânico, em que nasceu,
quanto, posteriormente, no mundo francófono a contar
dos anos 1980-90. Ela teve também um desenvolvimento
notável na América Latina, sobretudo no Brasil, em que
os centros e revistas do “tempo presente” se multiplicaram
nos anos 1990 -2000. Esse interesse se explica pelas atenção
que as historiografia francesa e alemã, deram as crises do
século XX, à violência das guerras e às violências políticas,
que interessam por definição países que saíam da ditadura
e da guerra civil, daí a noção de presença de noções muito
próximas, como a de “historia actual”, mais próxima da
história imediata, de “história vivida”, ou de “passado
vivo”, forjadas também no mundo hispanófono, em que
o adjetivo “vivo” remete à presença tanto do passado
quanto de atores vivos. Portanto, houve lá cerca de 30 anos
uma circulação de conceitos e das noções que exprimem
a necessidade de agarrar o legado das catástrofes recentes
para as analisar ou compreender o impacto a médio prazo
(ROUSSO, 2016, p.233)
Para Rousso, as catástrofes têm trazido interesse e
inquietações na sociedade e por isso exigido dos historiadores
uma resposta, daí a valorização da História do Tempo Presente. O
Holocausto, a 2ª Guerra Mundial, a Guerra Fria, o terrorismo, tem
sido temas muitos requisitados na Europa e América anglo-saxônica.
Porém na América Hispânica e no Brasil, o tema que tem sido
levantado é justamente as ditaduras militares, no qual este trabalho
se insere. A HTP tem singularidades em sua modalidade histórica,
que se bem aproveitadas passam a ser um valioso instrumento para
o pesquisador.
Quanto a sua periodização, já mencionada acima,
podemos afirmar que ela tem variações cronológicas que não a
prendem a apenas um momento histórico, como cita Rousso (2016,
p. 246) “o território da história do tempo presente é uma fronteira

184
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

constantemente móvel”. Há discussões que a HTP possa ter começado


em 1915, 1940, 1945 ou 1989, não existe um marco definitivo, mas há
a concordância de que uma catástrofe serve de marco inicial, e como
Rousso menciona acima, tivemos muitas. Defendemos a ideia de que
enquanto houver testemunhas vivas, coetâneos, há história do tempo
presente. Se essa abordagem perdurar, daqui uns anos, quando todos
os contemporâneos da 2ª Guerra mundial e do holocausto tiverem
falecido, o marco se moverá. Essa história de acontecimentos recentes,
traz desafios metodológicos, éticos, mas também um estilo de história
acelerada, sempre em movimento, e cada vez mais rápido.
“Nada muda tanto quanto o passado”. Esse provérbio
russo traz em sua essência uma realidade que o historiador deve ter a
sensibilidade de perceber. Dentro da História do Tempo presente isso
é uma constante.

A tardia justiça de transição no Brasil


O historiador deve preocupar-se em estudar as versões
de partes da memória coletiva oficializada que há sobre os fatos
históricos, bem como compreender as ausências, os esquecimentos e
os silêncios que tais fatos carregam. Portanto, buscando exemplificar
a aplicabilidade da História do Tempo Presente, analisaremos a
justiça de transição do Brasil, pois a mesma traz ao público memórias
subterrâneas que estavam imersas desde o período da ditadura militar
brasileira, iniciada com o golpe civil-militar de 1964 e encerrada com
as eleições indiretas de 1985 e a transição do poder aos civis.
Segundo POLLAK (1989), as memórias subterrâneas
permanecem imersas devido a um conjunto de interesses sociais,
econômicos e políticos dos que detém o poder. Isso é notório na história
sobre o período de transição democrática do Brasil, que por anos
manteve em silêncio e no esquecimento, relatos e fatos traumáticos,
que só vieram oficialmente ao conhecimento público a partir do
processo de justiça de transição, que comparado com os demais países
da América Latina, aconteceu de forma tardia em nosso país.

185
Das utopias ao Autoritarismo

Consideramos como Justiça de Transição as medidas de


reparação, que buscam compensar os que foram atingidos pela
repressão de regimes autoritários, punir culpados e averiguar as
verdades dos fatos. Porém, a própria Lei de Anistia do Brasil (Lei
nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, regulamentada pelo decreto nº
84.1433, de 31 de outubro de 1979, no Governo do presidente-
general João Baptista Oliveira de Figueiredo) tem bloqueado a ação
da justiça de transição, no que diz respeito ao julgamento e punição
dos responsáveis pelos crimes políticos contra os Direitos Humanos.
ARAÚJO (2004) pontua oito atores políticos que foram
essenciais na luta democrática que se travou na segunda metade da
década de 1970 e na primeira metade da década de 1980, são eles: o
movimento estudantil, a Igreja Católica, o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), a imprensa alternativa, as associações de moradores,
as associações de profissionais liberais, o movimento sindical e os
movimentos das minorias políticas. O movimento estudantil levou
o movimento político de volta às ruas, ganhando a simpatia da
população e o apoio de outros setores de oposição ao regime. Os
estudantes denunciavam prisões políticas, torturas e defendiam causas
importantes, como em 1978 na Campanha pela anistia. A grande
vitória dos estudantes ocorreu em 1979, quando a União Nacional do
Estudantes (UNE) foi recriada. O movimento se fortaleceu como ator
radical na resistência democrática.
Tais movimentos, passaram a ter como pauta comum
a luta pela Lei da Anistia e a Campanha das Diretas Já, ou seja, a
democratização do país, entre outras causas. No entanto, ambos
acontecimentos acabaram sendo utilizados como pilares da solução
negociada, que encerrou o ciclo da ditadura militar.
Segundo FICO (2017), a resistência democrática não
conseguiu acelerar a abertura política, uma vez que o fim da ditadura
militar foi controlada pelos milicos; no entanto percebemos que
as demandas sociais que surgiram desses muitos movimentos de
resistência, ganharam forças e foram representados democraticamente
na Constituição de 1988. Essa visão de Fico pode ser questionada,
levando-se em conta que os movimentos de resistência tiveram o papel

186
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

importante de reacender as lutas por direitos sociais e políticos, e de


certa forma, levou o governo a mover-se em relação a uma resposta a
tais manifestações.
Porém, é notório a manipulação da minoria dominante na
política e na economia do país, uma vez que a Lei da Anistia não
foi ampla, nem geral ou irrestrita, ela atendeu a uma combinação
de interesses por parte de militares do governo, e a elite econômica
e política, anistiando torturados (exceto os enquadrados em
“crimes de sangue”) e torturadores. De acordo com FICO (2010,
p. 321) “o “grupo restrito do conselho político” de Ernesto Geisel
(Golbery, Petrônio, Portella e poucos outros), que pensou a anistia
como instrumento de enfraquecimento do MDB, também pode ter
planejado a suposta manobra.”
Não era a anistia reivindicada pelos familiares de presos
políticos, de mortos e de desaparecidos, dos militantes de esquerda, dos
exilados, dos movimentos estudantil, sindicalista, artístico, feminista,
associações de profissionais liberais e vários outros segmentos que
se empenharam na campanha. Entretanto, não podemos desprezar
a conquista, mesmo que parcial, da resistência democrática. Os
brasileiros receberam com festa os exilados que começaram a chegar a
partir de outubro de 1979.
A Emenda “Dante de Oliveira” da campanha de eleições
diretas para presidente foi derrubada pelo Congresso, e em 1985, o
Colégio Eleitoral escolheu o novo presidente do Brasil. Tais exemplos
demonstram a construção de uma história, tida como oficial, a partir
dos interesses da uma minoria. Portanto, a transição política foi
negociada e consensuada, entre os militares e as forças econômicas.
Os militares voltaram aos quartéis, sem sofrerem represálias pelos
crimes contra os direitos humanos, e respaldados pela lei.
Não foi uma transição sonhada pelos movimentos de
resistência à ditadura, mas acabou sendo assimilada e aceita pelo
povo brasileiro. O caráter de negociação e conciliação da transição
democrática não foi apenas uma imposição dos militares, pois a
história da sociedade brasileira é traçada por alianças consensuadas

187
Das utopias ao Autoritarismo

que envolvem os interesses dos governantes e a elite econômica. Tais


alianças que resultaram na abertura política brasileira, acabaram por
retardar a justiça de transição no país, que agindo de forma discreta,
pode perder a oportunidade de confrontar a tradição conciliatória
imperante na cultura política brasileira.
De acordo com FICO (2013b), depois do término do regime
militar, o Brasil entrou em uma fase de latência, de suspensão: quase
não se falava da ditadura. Isso foi muito diferente em outros países da
América Latina que também viveram regimes militares. Na Argentina,
por exemplo, a ditadura acabou depois de uma guerra fracassada, com
a qual os militares argentinos tentaram recuperar o apoio popular,
ocupando as Ilhas Malvinas, território disputado com a Inglaterra.
Com a derrota, não tiveram como se manter no poder e logo após,
no regime civil, as juntas militares foram levadas a julgamento e
condenadas.
O trauma diante da violência brutal do regime militar
marca a transição argentina. No caso do Brasil, os
traços fundamentais de sua transição são a impunidade
e a frustração causadas pela ausência de julgamento e
ruptura com o passado – que, por assim dizer, tornaram
a transição inconclusa, em função da conciliabilidade das
elites políticas. Foi esse componente de frustração – diante
da anistia que perdoou os militares, da campanha pelas
eleições diretas que fracassou, enfim, da constatação de
que os militares conduziram a transição exatamente como
queriam – que, de algum modo, estimulou as tímidas
iniciativas de justiça de transição no Brasil a partir da
chegada ao poder de governos presididos por pessoas que
combateram a ditadura, Fernando Henrique Cardoso, Luiz
Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (FICO, 2013b, p. 248)
Tal fase de suspensão, citada por Fico, durou até 1995,
quando notamos uma tímida medida no governo do Presidente
Fernando Henrique Cardoso, que foi a concessão de atestados de
óbito para os mortos e desaparecidos políticos, de acordo com a Lei nº
9.1404, de 04 de dezembro de 1995, atendendo ao apelo de familiares
que tiveram parentes desaparecidos durante a ditadura militar e não
puderam enterrar seus corpos ou ter a certidão de óbito.

188
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Em 2002, a Lei nº 10.5595, de 13 de novembro de 2002,


foi criada com a tarefa de indenizar financeiramente as vítimas da
repressão. O cálculo era feito com base no tempo de afastamento
das atividades profissionais dos atingidos, o que gerou distorções e
elevadas indenizações.
No ano de 2009, o Brasil sofreu uma pressão internacional
ao ser condenado pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos
(CIDH) a respeito de graves violações contra os direitos humanos
durante a repressão política, sendo o país levado a apurar e fazer
o reconhecimento público de sua responsabilidade diante de tais
violações. Nesse contexto, o governo da presidenta Dilma Vana
Rousseff, procedeu a abertura dos acervos da ditadura militar, tidos
como secretos e confidenciais, ou seja, foi concedida a Lei de acesso
à informação, através da Lei nº 12.5276, de 18 de novembro de 2011,
e do Decreto nº 7.7247, de 16 de maio de 2012. Trata-se de uma
considerável aquisição para a pesquisa histórica e para o cidadão
brasileiro.
Outro passo importante no processo da justiça de transição,
foi a criação da Comissão da Verdade (Lei nº 12.5288, de 18 de
novembro de 2011), instalada oficialmente em 16 de maio de 2012,
também no governo da presidenta Dilma Vana Rousseff, com a
finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos
humanos praticadas no período de 18 de setembro de 1946 até 5
de outubro de 1988, data da promulgação da sétima Constituição
brasileira. Porém, a Comissão Nacional da Verdade, busca a chamada
“verdade factual”, mas não possui poderes punitivos.
Para FERREIRA (2012, p. 101)
a história do tempo presente, que durante muito tempo foi
objeto de resistência e interdições, entrou na ordem do dia
no Brasil, não só como objeto de pesquisa acadêmica, mas
também como um tema desafiador para os historiadores
do ponto de vista ético e político.
Segundo a autora, a constituição da Comissão Nacional
da Verdade levantou várias questões para os historiadores, como

189
Das utopias ao Autoritarismo

por exemplo: o “envolvimento institucional não acaba por atribuir


ao historiador o papel de juiz da história?”. Essa é uma questão
extremamente séria, uma vez que sabemos que não há verdade
absoluta e que futuramente poderá haver revisões na escrita da
história com fatos novos? E num documento institucionalizado isso
é possível? Deixaremos essa reflexão para uma outra ocasião, por
merecer um maior aprofundamento analítico.
No entanto, não podemos minimizar a importância desses
dois instrumentos: Lei de Acesso à Informação e a Comissão da
Verdade, que sendo instalados no mesmo dia (16 de maio de 2012),
são canais imprescindíveis para trazer ao conhecimento da sociedade
brasileira o que realmente se passou nos anos da ditadura militar, as
memórias subterrâneas dessa história do presente, onde muitos que
dela participaram ainda estão vivos e podem testemunhar sobre esse
período da história.
Em 10 de dezembro de 2014, a Comissão Nacional da
Verdade, composta por seis membros, entregou seu Relatório Final2
a presidente Dilma Rousseff. O relatório composto de 4.328 páginas,
distribuídos em 03 volumes, levou 2 anos e 7 meses de trabalho para
ser concluído. Ele possui 1.121 depoimentos e apresenta 80 audiências
e sessões públicas feitas em 20 unidades da Federação. No volume
III, consta o registro de 434 pessoas entre os mortos e desaparecidos
(210 desaparecidos, 191 mortos e 33 corpos encontrados), sendo
377 pessoas responsabilizadas por torturas e assassinatos durante
os 21 anos da ditadura militar brasileira (1965-1985). Entre as suas
recomendações, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) sugere
a revisão da Lei de Anistia de 1979, para que se possa processar os
agentes responsáveis pelas gravíssimas violações aos direitos humanos
descritas no relatório.
O objetivo da CNV é efetivar o direito à memória e a
verdade histórica e promover a reconciliação nacional. A primeira
Comissão da Verdade a ser instalada foi em Uganda, em 1974, e
posteriormente mais de 40 Comissões da Verdade foram criadas
2 Disponível em: <http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/>. Acesso em: 02 fev.
2018.

190
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

pelo mundo com o intuito de averiguar crimes cometidos contra


os direitos humanos pela repressão de regimes autoritários. Na
América Latina, dez países criaram a Comissão da Verdade, muitos
logo após o fim de sua fase ditatorial.
A justificativa para a lentidão brasileira para a execução
da justiça de transição diante dos demais países, como mencionado
anteriormente, pode ser analisada dentro do contexto da tradição
política conciliatória da história brasileira, que busca amenizar e
lançar no esquecimento social fatos que possam prejudicar atores que
protagonizaram as alianças da transição democrática do Brasil.
Embora, tal Comissão tenha se instalado de forma tardia
no Brasil, 27 anos após o fim da ditadura, não podemos ignorar sua
contribuição para a história política e a memória desse recente período
da história brasileira, que podemos considerar como a história do
presente, pois fez emergir através de um veículo institucionalizado
pelo governo, memórias subterrâneas que trazem uma nova visão
para a sociedade brasileira desse período de nossa história. A questão
é: O povo brasileiro está realmente interessado em conhecer esse
passado tão recente? Ou conhecer esse passado só interesse a alguns
poucos grupos sociais?
A partir da formação da CNV, surgiram no Brasil a formação
das Comissões Estaduais da Verdade e as Comissão da Verdade em
diversas Universidades do Brasil, que foram palcos de forte vigilância
e repressão política durante a ditadura militar. Essas Comissões têm
investigado a ação das Assessoria Especial de Segurança e Informação
dentro de diversas Universidades Brasileiras, pesquisa que merece
uma especial atenção. Uma vez que os centros acadêmicos eram focos
de pessoas pensantes, questionadoras e inconformadas.
Para vigiar esses “centros pensantes” e evitar qualquer
insurreição, o governo de Emílio Garrastazu Médici (1979-1974),

191
Das utopias ao Autoritarismo

do grupo “Linha dura”, com o Decreto 4773 e o AI-54 nas mãos,


desenvolveu uma gestão de forte repressão, destacando-se a
perseguição, prisão e tortura de “subversivos” nas esferas sociais. Esse
caso é notório dentro das Universidades, onde os órgãos do governo
atuaram assiduamente. Segundo MOTTA (2008b, p. 38) o governo
monitorou “33 Universidades”, através da Assessoria Especial de
Segurança e Informação (AESI), sendo as primeiras criadas pela
Portaria nº 10, BSB, de 13 de janeiro de 1971, com intuito de coibir
manifestações contrárias à ditadura. Posteriormente, a AESI passou
a adotar a nomenclatura de Assessoria Especial de Segurança (ASI).
Ressaltamos que as ASI’s reportavam-se aos órgãos de Vigilância
do Governo e não respondia ao Ministério de Educação e Cultura
(MEC).
O principal objetivo da AESI era espionar as atividades da
comunidade universitária (esferas federal e estadual), investigando
e levantando informações de docentes, técnicos administrativos e
discentes que tivessem uma postura política contrária ao governo
ditatorial, e de maneira geral, eram rotulados de “comunistas” ou
“subversivos”. O órgão interferia no cotidiano da instituição, na
estrutura e no ensino, e foi empregado para silenciar e desarticular as
entidades estudantis.
A atuação das ASI (ou AESI) revela verdadeira obsessão
em impedir a infiltração comunista e soviética nas
universidades, dedicando-se, por exemplo, a monitorar
o ensino de russo nas instituições brasileiras e a vigiar os

3 Decreto 477, de 26 de fevereiro de 1969, conhecido como o “AI-5 do


movimento estudantil”, que em seu artigo 1º, delimita seus alvos: estudantes,
professores e funcionários das instituições de ensino superior público ou particular.
Neste artigo também, são especificados atos considerados “subversivos” e apresentadas
as punições correspondentes. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto-lei/1965-1988/Del0477.htm >. Acesso em: 20 jun. 2018
4  Ato Institucional nº 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante
o governo do general Costa e Silva, foi a expressão mais acabada da ditadura militar
brasileira (1964-1985). Vigorou até dezembro de 1978 e produziu um elenco de ações
arbitrárias de efeitos duradouros, concedendo amplos poderes ao Executivo Federal,
limitando os poderes legislativo e judiciário, além de restringir vários direitos civis.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm>. Acesso
em: 20 jun. 2018.

192
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

estudantes retornados da URSS com diplomas obtidos


naquele país. Essas agências não protagonizaram ações
espetaculares, tampouco tinham poder inconteste, uma
vez que alguns reitores nem sempre obedeciam a suas
recomendações. Mas, em sua ação cotidiana, miúda, elas
ajudaram a retirar da vida acadêmica um de seus elementos
mais preciosos, a liberdade. Durante sua existência, elas
contribuíram para criar nas universidades ambiente de
medo e insegurança, que certamente atrapalhou a produção
e reprodução do conhecimento, sobretudo nas áreas de
saber mais visadas, para não falar do empobrecimento do
debate político (MOTTA, 2008a, p. 45-46).
A AESI coletava informações sobre atividades das lideranças
estudantis e de professores, interferia na nomeação de cargos,
controlava viagens de docentes e discentes para eventos científicos,
censurava livros e materiais estudantis, proibia manifestações, proibia
ou suspendia entidades estudantis, efetuava prisões, entre outras
coisas. Nesse contexto de suspeição vários professores e técnicos
administrativos foram perseguidos ou demitidos. Muitos alunos
foram suspensos das aulas, perderam bolsas e outros benefícios ou
foram desligados da Universidade.
Quanto a atuação dos governos militares nas universidades,
notamos avanços e retrocessos, modernização e repressão; tudo isso
gera uma polêmica entre alguns pesquisadores sobre a verdadeira
intenção dos militares quanto aos projetos e as reformas no setor
educacional. A respeito da modernização que se intensificou na
década de 1970, é importante analisar um crescimento de ofertas de
cursos superiores, a ampliação das universidades, a expansão dos
cursos de pós-graduação e da infraestrutura de pesquisa e instalações,
a modernização da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES); tendo em contrapartida, a queda na
qualidade do ensino, em especial no nível de graduação.
O AI-5 coincidiu com a decisão política de implantar
efetivamente a reforma universitária, ao fim de um
processo de debates e indefinições que se arrastaram entre
1964 e 1968. O impulso modernizador guardava relação
umbilical com o recrudescimento do autoritarismo, já que o

193
Das utopias ao Autoritarismo

poder discricionário foi utilizado para remover obstáculos


às alterações e impor agenda única aos grupos que se
digladiavam em torno das propostas de mudança. Além
disso, a aposta nas reformas significava, simultaneamente,
uma estratégia de seduzir lideranças descontentes com
os novos rumos políticos, oferecendo a elas, como uma
espécie de compensação, aumento de investimentos na
educação superior e na pesquisa. [...] Em fevereiro de 1969
foi editado o Decreto-Lei n.464, que estabelecia prazo de
noventa dias para todas as universidades adaptarem seus
estatutos às prescrições da Lei da Reforma Universitária
(n.5.540). Claramente, o comando militar desejava
acertar o passo da ofensiva repressora com o ritmo da
modernização (MOTTA, 2014, p. 242).
O Presidente Geisel, tomou posse em 15 de março de
1974, com o discurso de uma abertura lenta, gradual e irrestrita,
lema que se concretizou de forma inversa ao longo do seu mandato.
Dentro das Universidades, por exemplo, as ASI’s, criadas no governo
de seu antecessor, Presidente Emílio Garrastazu Médici, atuaram
freneticamente. A partir do momento que o regime militar decide
pela modernização e incentivo a pesquisa nas universidades, com a
ampliação da oferta de vagas estudantis, consequentemente houve
aumento de docentes acadêmicos, era inevitável que um grupo
intelectual, pensante e questionador, começasse a se organizar e a
incomodar a cúpula da política brasileira.
Nisso fica latente um paradoxo no governo militar:
modernizar e reprimir. Quando se ampliaram as vagas universitárias,
expandiram o leque de professores acadêmicos, e se investiram em
pesquisa e avanços técnicos e tecnológicos, os governos ditatoriais
começaram a pisar em uma zona movediça, pois era natural que
emergisse uma massa pensante que conflitasse com a atuação do
governo ditatorial. Desenvolver e modernizar as universidades sem
gerar um grupo sólido de visão contrária as atrocidades de um regime
autoritário, era algo impossível.
O grande paradoxo do regime militar brasileiro – e essa
afirmação não vale apenas para o sistema universitário
brasileiro – residiu no fato de expressar, a um só tempo,

194
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

impulsos conservadores e modernizantes que por vezes


geraram ações contraditórias. O desejo modernizador
implicava desenvolvimento econômico e tecnológico.
[...] No entanto, o sucesso das políticas modernizadoras
colocava em xeque as utopias conservadoras, pois
solapava as bases da sociedade tradicional ao promover a
mobilidade social e urbana em ritmo acelerado. Aí reside
uma das mais peculiares manifestações contraditórias do
regime: seu sucesso econômico levava à destruição da
ordem social defendida por muitos de seus apoiadores.
Por outro lado, se levado às últimas consequências, o
programa conservador oporia obstáculos à modernização,
pois o expurgo de todos os “suspeitos” e “indesejáveis”,
grupo bem presentado na elite universitária do país,
significaria perda de quadros fundamentais para o projeto
modernizante (MOTTA, 2014, p. 289)
Surge, portanto, uma contradição, o governo tecnocrata
passa a ter que vigiar e reprimir a massa que ajudou a constituir para
que fosse utilizada no processo de modernização da nação. Controlar
isso, era um desafio que se avolumou na segunda metade da década
de 1970, e acabou contribuindo para o processo de transição política
que se firmou a partir de 1978, envolvendo diversos grupos sociais,
com maior destaque para os movimentos estudantis. Apesar de os
historiadores terem se esforçado para entender com maior segurança
o que se passavam dentro dos Campi, Infelizmente somente 09
Universidades concluíram até o momento os trabalhos de suas
Comissões da Verdade, são elas: Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP); Universidade Federal da Bahia (UFBA);
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG); Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN); Universidade de Brasília (UNB); Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP); Universidade de São Paulo (USP)
e Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Que esses relatórios
possam ser utilizados para enriquecer nossas pesquisas e trabalhos
sobre uma história tão recente do nosso país, e que infelizmente
permanece obscura para a grande maioria dos brasileiros.

195
Das utopias ao Autoritarismo

Considerações Finais
A História do Tempo Presente tem aberto um importante
e amplo espaço de pluralidade de fontes e novos procedimentos
metodológicos, entretanto, a realidade temporal da história do
imediato nos leva a ouvir vozes múltiplas que algumas vezes se
complementam e em alguns casos são conflitantes, apesar disso o
pesquisador tem vencido as diversas críticas e desafios que a HTP vem
sofrendo nas últimas décadas.
Interessante ressaltar tal pensamento:
Sabemos que a história do tempo presente, mais do que
qualquer outra, é por natureza uma história inacabada: uma
história em constante movimento, refletindo as comoções
que se desenrolam diante de nós e sendo portanto objeto
de uma renovação sem fim. Aliás, a história por si mesma,
não pode terminar (BÉDARIDA, 2006, p. 229)
Constatamos que essa modalidade da “história inacabada”
vem ganhando reconhecimento e espaço, o que se percebe através
da elaboração deste e de muitos trabalhos acadêmicos, que tem
desenvolvido pesquisas ligadas linha da História do Tempo Presente
e através de investigações e de demonstrações empíricas, tem vencido
as interdições e as resistências contra as quais sempre lutou.
A abordagem do trabalho da justiça de transição do Brasil,
vem corroborar para a importância dessa modalidade histórica, ao
trazer ao conhecimento público um passado recente de crimes contra
os direitos humanos e a democracia. Uma competência que não
pode ser entregue a amadores, mais a profissionais da História que
dominam as técnicas do processo e sabem que a história está o tempo
todo se desenrolando diante de nós.

Referências:
Bibliografia:
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento. A luta democrática contra o regime
militar na década de 1970. In.: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo;

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FICO, Carlos. Ainda à espera da verdade e justiça: O que leva o Brasil a não
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FICO, Carlos. Violência, trauma e frustração no Brasil e na Argentina: o
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NOIRIEL, Gerard. Qu’est -ce que l’histoire contemporaine? Paris: Hachete,
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Das utopias ao Autoritarismo

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<http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/>. Acesso em: 02 fev. 2018.
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União, Poder Executivo, Brasília, DF, 26 fev. 1969. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del0477.htm>.
Acesso em: 20 jun. 2018.

198
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

“Nossa bandeira jamais será vermelha”! – As


disputas em torno do controle da narrativa na
sociedade brasileira polarizada e a afirmação de um
passado que não passa
Ariel Cherxes Batista1

“Quem controla o passado, controla o futuro.


Quem controla o presente, controla o passado”.

Introdução
Atualmente discute-se muito nos meios historiográficos
sobre o papel do historiador frente ao período de crise política e social
existente no Brasil iniciado após as jornadas de junho de 2013 e de
certa forma consumado com o impeachment em Dilma Rousseff no
ano de 2016. Destaca-se como marco nesta conjuntura, o fenômeno
da disputa de narrativas e a presença de um “passado que não passa”
no tempo presente brasileiro. Afirmamos isto a partir da ideia de que:
A história é o estudo do passado, certamente, mas também
uma explicação do presente em que vivemos. (O passado
é), um tempo do qual emergimos e que continua, com
efeito a pesar sobre nós (ROUSSO, 2016, p. 174).
Ao observar o Brasil, buscando como distância uma
noção dicotômica, evidencia- se a permanência de discussões e
a busca pela supremacia em relação aos discursos no que tange a
opinião pública. De certa forma ocorre uma disputa pelo controle
da democracia, o que soa inclusive estranho. Durante a conjuntura
pré-impeachment, os conservadores trataram em seu nicho de
inúmeras razões que justificavam o afastamento presidencial, após
ocorrer o impeachment, aumentaram sua influência com a sociedade
ganhando assim a oportunidade de poder opinar em diferentes meios
de comunicação de forma maciça. De certa maneira, estes que são

1  Mestrando do PPGHIS-UFES.

199
Das utopias ao Autoritarismo

considerados intelectuais pela opinião pública, ocupam um espaço


que normalmente é maior do que sempre tiveram, e com o sucesso
obtido com o impeachment, aumentaram sua zona de influência. A
disputa de narrativas em alguns momentos tende a ficar mais aguda.
A conjuntura pré e pós golpe (impeachment) nos faz atestar isto a
partir dos fatos ocorridos.
Os dois grupos que se opõem na disputa de narrativas
possuem explicações assim como lembranças diferentes para os
episódios catastróficos ocorridos no passado republicano brasileiro
e estas memórias estão associadas aos bons e maus usos que os
indivíduos fazem do que passou.
A esquerda lembra do passado como vítima. Rememora o
golpe dado por Vargas de forma oportunista em 1937 e a repressão
durante o Estado Novo, além dos expurgos ocorridos durante
a Ditadura Militar que para seus mentores “mudou o Brasil”.
Atualmente o Golpe de 2016 que parece inconcluso, mostra-nos o
fato de que questões do passado ditatorial brasileiro ainda não estão
resolvidas, por exemplo as discussões em torno da Lei da Anistia
que começa a vigorar a partir de 1º de janeiro de 1979 e perdoou
torturadores e torturados. De certa maneira, a fragmentação da
esquerda brasileira nestes três contextos sócio-políticos explica o
seu enfraquecimento ao ponto de não ter tido poder de reação em
nenhuma das ocasiões citadas.
Por sua vez, a Nova direita brasileira busca esquecer o
passado, e com suas ações demonstra isto. Uma vez esquecido os
problemas transcorridos, as preocupações passam a ser apenas o que
vem à frente. O grande problema nisto é que golpear a democracia
nas ocasiões em que a disputa de narrativas aumenta, faz parte
da cultura política da direita brasileira, deste fator trataremos a
frente. As únicas lembranças destes períodos por parte da Nova
direita brasileira são de forma elogiosa. O passado é rememorado
por este grupo político, como o objetivo de apontar benfeitorias
desenvolvidas após as deposições, além disso, as lembranças postas
em questão exaltam uma suposta salvação nacional. Por fim, destaca-
se o fato de que em todos estes processos de salvamento, o discurso

200
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

se fundamenta em torno da ideia de que o perigo comunista foi


mandado para longe ou mesmo superado. O medo em relação ao
perigo vermelho é um elemento que atravessa conjunturas. É fato,
que: “O temor de muitos agentes sociais ao comunismo era sincero
e não instrumental” (MOTTA, 2002, p. 178).
Contudo:
O anticomunismo forneceu argumento principal para
as duas rupturas institucionais mais graves do período
republicano, que deram origem aos regimes autoritários
mais duradouros já experimentados (ou sofridos) pelo
país (MOTTA, 2002, p. 280).
Recentemente, o anticomunismo reapareceu como fator
para justificar o impeachment sofrido por Dilma Rousseff em 2016,
no decorrer do artigo irei discorrer mais elementos que explicam esta
ideia.

Os bons e os maus usos do passado na disputa de narrativas


a partir da cultura política e representações
É bastante comum na atualidade ouvir dos saudosistas ao
Regime Militar brasileiro ocorrido entre 1964-1985, frases como:
“Naquele tempo era melhor”.
“Na ditadura aconteceu o milagre econômico”.
“Foi um período de pleno emprego”.
“Na ditadura não havia corrupção”.
“Na ditadura não havia bandidagem solta nas ruas”.
Entre outras frases que demonstram total desconhecimento
e ignorância sobre o período histórico em questão. Estes discursos
contemporâneos acontecem por conta de variadas demandas
existentes na sociedade que ainda não foram resolvidas. Segundo
Enzo Traverso: “A dimensão política da memória coletiva (e os abusos
que a acompanham) não podem afetar a forma de escrever a história”
(TRAVERSO, 2007, p. 18).

201
Das utopias ao Autoritarismo

Contudo, isto está ocorrendo por conta de um sistema


social que atrapalha as tradições e fragmenta as existências. O
conceito de cultura política desenvolvido por Serge Berstein, e de
seu concebimento a partir da visão global de mundo, da evolução do
lugar que o homem ocupa na sociedade, e do partilhamento de um
conjunto de ideias por um grupo importante desta sociedade num
dado momento de sua história, nos auxilia a compreender como
este período de expurgos mantém permanências e boas lembranças
mesmo que irreais na atualidade. Segundo Serge Berstein, a “[...]
cultura política (é) um grupo de representações portadoras de normas
e valores que vão muito além da noção reducionista de partido
político” (BERSTEIN, 2009, p. 32). Ou seja, corresponde a uma visão
global de mundo e de sua evolução em relação aos homens e ao lugar
que ocupam em seu meio social.
O conceito de cultura política foi originalmente desenvolvido
nas décadas de 1950 e 1960 por cientistas sociais norte-americanos que
se inspiraram em autores do século XIX interessados pelos impactos de
valores e comportamentos culturais sobre a política. Apenas no período
posterior a Guerra Fria quando as ciências sociais norte americanas se
internacionalizam é que o conceito de certa forma se difundiu. Num
primeiro momento isto ocorreu a partir de uma noção etnocêntrica ao
se pensar os Estados nacionais e os comportamentos e ideais políticos
presentes neles. Em contrapartida, na França a cultura política foi
trabalhada antropologicamente, buscando evidenciar a existência de
diversos comportamentos e maneiras de agir em disputa, ou seja, a
cultura política desenvolvida pelos franceses é vista de forma pluralista.
Neste sentido apoiando-se na ideia de uma história do
tempo presente observamos o fato de que um acontecimento na
sociedade pode ocasionar a transformação da cultura política vigente.
De certa forma esta mudança está associada ao que Henry Rousso dá
o nome de última catástrofe. Nas palavras do autor:
toda história contemporânea começa com a última
catástrofe em data, e em todo caso a última que parece
a mais loquaz, senão a mais próxima cronologicamente
(ROUSSO, 2016, p. 24).

202
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

O essencial na cultura política é a constituição de um


todo homogêneo que após os elementos interdependentes serem
apreendidos permitem a percepção do sentido dos acontecimentos.
Portanto, a principal questão seguindo esta ideia é o substrato filosófico
da cultura política que é definido de acordo com o tipo de sociedade que
estamos nos referindo (podem ser inúmeras e estas podem apresentar
variações em seu interior) e da cultura global da mesma.
Em suma, são os fatores explanados acima fundidos a
diversidade de comportamentos políticos que são responsáveis por
definirem as culturas políticas subjacentes inseridas numa sociedade
global. É debruçando sobre estas ideias que conseguimos observar na
história do Brasil Republicano a partir da década de 1930, uma cultura
política marcada com traços de autoritarismo e de anticomunismo, e
estes elementos ainda se fazem presentes na atualidade, por exemplo
quando alguns indivíduos rememoram o Regime militar brasileiro
como algo benéfico, ou mesmo no caso do nosso objeto de estudo,
o temor ao comunismo na atualidade servindo de pretexto para a
retirada de uma chefe de Estado.
A cultura política do Brasil pós década de 1930 é
anticomunista e autoritária, visto o fato de que um dos principais
inimigos políticos de Vargas, eram os comunistas na pessoa de
Luís Carlos Prestes. Seguindo esta linha de pensamento, o plano
Cohen que inicia a ditadura do Estado Novo em 1937, utiliza
como argumento uma suposta invasão soviética no Brasil. Nesta
conjuntura a opinião pública se une ao presidente Getúlio Vargas
e de certa forma autoriza o golpe de Estado que trouxe a primeira
experiência ditatorial no Brasil. O temor anticomunista ligado a
saídas autoritárias continua presente na política brasileira das décadas
seguintes, pois um dos pretextos para se empreender o golpe militar
em 1964 é o impedimento que o comunismo novamente assole o
país, desta vez mediante a política empreendida pelo presidente
João Goulart que foi deposto, mesmo que este nunca houvesse se
declarado comunista. Neste ponto o conceito de representações de
Roger Chartier nos auxilia no sentido de que:

203
Das utopias ao Autoritarismo

As representações do mundo social [...], embora aspirem


à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são
sempre determinadas pelos interesses de grupos que as
forjam (CHARTIER, 1987, p. 17).
A partir do excerto acima podemos afirmar ser a luta de
representações ligada ao que é político, pois o objetivo principal nos
embates em torno da narrativa é a afirmação. Esta ideia se complementa
ao pensarmos o fato de que: “Se o político deve se explicar-se antes
de tudo pelo político, há também no político mais que o político”.
(REMOND, 2003, p. 36)
Por fim nossa análise se complementa apoiando-se na
análise de Roger Chartier, nas palavras do autor:
“As percepções do social não são discursos neutros –
produzem estratégias e práticas – sociais, escolares e
políticas - que tendem a impor uma autoridade à custa
de outros por ela menosprezados, a legitimar um projeto
reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as
suas escolhas e condutas” (CHARTIER, 1987, p. 17).
A ação dos indivíduos sobre o mundo são atos de poder, ou
seja, atos políticos. Afirmamos isto no sentido de que:
nos momentos de crise os grupos hegemônicos tendem a
se defender das ameaças a ordem social (as que imaginam
existirem) reforçando a superioridade da qual desfrutam e
que se encontra em risco (SILVA, 2004, p. 26).
As representações não devem ser entendidas a partir de
uma dicotomia, pois são interligadas. Se constroem por um processo
em que os interesses da sociedade se ligam ao ato de militar. Ou seja,
“as ações e práticas sofrem influência não passiva das representações,
que muitas vezes moldam os comportamentos dos grupos sociais”.
(MOTTA, 2002, p. 25)
A partir de nossa análise, observamos que tanto em
1937, quanto em 1964 e atualmente em 2016 (na conjuntura pós-
impeachment), nenhuma das ações comunistas denunciadas e
temidas pela sociedade brasileira ocorreram, elas jamais existiram.
O comunismo brasileiro em nenhum momento de nossa história foi

204
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

superior politicamente ou mesmo tomou o poder utilizando-se de


métodos revolucionários, mas sempre foi fruto de intensa oposição.
Todavia,
a ameaça comunista serviu como pretexto para justificar
golpes autoritários, reprimir movimentos populares,
garantir interesses imperialistas ameaçados pelas
campanhas nacionalistas, ou seja, manter inalterado o
status quo (MOTTA, 2002, p. 24).

A discussão principal na disputa de narrativas brasileira – O


Anticomunismo
A partir dos desdobramentos políticos ocorridos no
Brasil relacionados às jornadas de junho de 2013, a bipolarização da
sociedade em Coxinhas e Petralhas após as eleições de 2014 vencidas
por Dilma Rousseff sobre Aécio Neves, evidenciamos a formação e
desenvolvimento de um terceiro grande surto anticomunista. Todavia
nesta onda de anticomunismo contemporânea atestamos ser apenas o
interesse o fator mais em voga, deixando de lado a ideologia. Muitas
permanências de nossa última catástrofe ainda pairam no imaginário
social brasileiro e por conta disto, noções jocosas, pejorativas e
horrendas, mas nem sempre verdadeiras relacionadas aos comunistas
no passado ainda continuam a ser proferidas, o que de certa forma faz
com que o temor ao perigo vermelho se faça presente na atualidade.
A não superação e/ou permanências de períodos extremos passados,
nos mostra como eles controlam presente.
A incompreensão do presente nasce fatalmente da
ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão
esgotar-se em compreender o passado, se não se sabe nada
do presente (ROUSSO, 2016, p. 127).
De certa maneira, podemos afirmar que esta situação se
relaciona a lei da Anistia promulgada em 1979 durante o Regime
Militar. O perdão dado a torturadores e torturados, fez com que as
marcas de nosso período ditatorial permanecessem naqueles que
as sofreram e deixou livre os que as desenvolveram. Muitos deste

205
Das utopias ao Autoritarismo

segundo grupo continuaram sendo agentes políticos em nossas


instâncias legislativas e executivas, e criaram herdeiros políticos que
ainda defendem a bandeira do anticomunismo atrelado a outros
fatores que nem se entrecruzam com as ideias comunistas. Contudo,
muitos parlamentares em atividade atualmente fazem isto de forma
confusa. Resta saber se por ideologia ou interesse oportunista.
No livro: Em guarda contra o perigo vermelho, Rodrigo
Patto Sá Motta traça um panorama geral sobre a primeira e a segunda
onda anticomunista no Brasil, assim como os seus três primeiros
surtos em 37, 46 e 64. Sua tese é desenvolvida apresentando as bases,
as matrizes, a iconografia, e o imaginário anticomunista no Brasil em
três conjunturas, a de 1937 a de 1946 e a de 1964. O primeiro e o
último surto respectivamente são quando estouram as duas ondas
anticomunistas que levam o Brasil as duas rupturas institucionais que
ocorreram em nossa república. Ao fim do livro duas citações dizem
respeito ao futuro do comunismo e do anticomunismo, nas palavras
do autor:
A análise das duas grandes ondas anticomunistas, que
colocou em contraste as conjunturas de 1935-1937 e
1961-1964, permitiu mostrar a complexa interação entre
ruptura e permanência. No decorrer do tempo, diversos
aspectos da tradição anticomunista foram mantidos e
reproduzidos, ao mesmo passo que novas configurações
e temas vieram à baila, acompanhando a dinâmica da
história (MOTTA, 2002, p. 279-280).
No limiar do novo milênio, tudo indica, o anticomunismo
parece fenecer junto com seu adversário e razão de ser, o
comunismo. [...] Não estamos afirmando que não existe
futuro para propostas de esquerda e nem, tampouco, que
não ocorrerão mais disputas opondo grupos conservadores
a mobilizações favoráveis a mudanças sociais (MOTTA,
2002, p. 281).
O autor como historiador que é não buscava com esta
citação desvendar o futuro, todavia sua ideia se concretizou e hoje
podemos dizer que estamos sofrendo o reflexo de uma terceira onda
anticomunista e de um quarto surto.

206
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A ruptura institucional ocorrida não foi autoritária ou


militarizada (mesmo que elementos ligados às forças armadas
vez ou outra dão o ar da graça palpitando sobre a política, para a
sociedade e sobre quais devem ser as maneiras de se solucionar os
problemas brasileiros). Sendo assim, cabe nesta discussão analisar os
desdobramentos iniciados a partir das jornadas de junho de 2013, de
que momento histórico eles se enraízam e como se assemelham e ao
mesmo tempo diferem das duas outras ondas de anticomunismo já
citadas. Além disso, vale explanar o motivo de se considerar o momento
atual brasileiro como a terceira onda anticomunista brasileira.
Duas palavras são fundamentais e devem ser consideradas
ao tratarmos sobre o anticomunismo no Brasil, ideologia e interesse.
Nos dois primeiros surtos anticomunistas ocorridos em 1937 e 1964,
observa-se a presença destes fatores no sentido de que existiam
organizações e indivíduos que de fato temiam o perigo vermelho.
Sem nenhuma dúvida, havia anticomunistas convictos,
indivíduos que realmente acreditavam na existência
do perigo e agiam em consonância com esta crença.
Podem até ser chamados de tolos ou fanáticos [...] Seu
conservadorismo era sincero (MOTTA, 2002, p. 170).
Entretanto, outros indivíduos se aproveitavam do temor
social colocando em questão às forças inspiradas em Moscou ou Cuba
num segundo momento, utilizavam-se disto para angariar benefícios
políticos e econômicos para seu usufruto. Aliando estas duas práticas
(a ideologia e o interesse) contribuíram no desenvolvimento do temor
ao anticomunismo.
Os chamados industriais do Anticomunismo, aproveitavam-
se do pavor provocado pelo comunismo, convencendo a sociedade
da necessidade de determinadas medidas, ou mesmo colocavam-se
na condição de campeões do anticomunismo, para com isto auferir
vantagens, por exemplo votos. Em outras palavras era e ainda é uma
manipulação oportunista a partir do temor das massas ao comunismo
visando um sucesso político ou até mesmo econômico. O deputado
federal Jair Messias Bolsonaro desenvolve exatamente este tipo de
prática hoje e com estas ideias promove o discurso de ódio justificando

207
Das utopias ao Autoritarismo

o derramamento de sangue ocorrido na Ditadura Militar daqueles que


eram contrários ao regime e a priori eram e ainda hoje são taxados de
comunistas por ele e pelos adeptos de seu discurso.
Por fim, mas não menos importante, é necessário tratarmos
sobre como as matrizes do anticomunismo atuam no anticomunismo
atual. Nas duas primeiras ondas anticomunistas no Brasil, o
Catolicismo, o Nacionalismo e o Liberalismo eram os elementos
principais contrários ao comunismo, e em seus discursos e práticas
demonstravam isto.
O catolicismo, pois:
O comunismo não se restringiria a um programa de
revolução social e econômica. Ele se constituía numa
filosofia, num sistema de crenças que concorria com a
religião em termos de fornecer uma explicação para o
mundo e uma escala de valores, ou seja uma moral. A
filosofia comunista opunha-se aos postulados básicos do
catolicismo: negava a existência de Deus e professava o
materialismo ateu; propunha a luta de classes violenta em
oposição ao amor e à caridade cristãs; pretendia substituir
a moral cristã e destruir a instituição da família; defendia a
igualdade absoluta contra as noções de hierarquia e ordem
embasadas em Deus (MOTTA, 2002, p. 20).
O nacionalismo, pois o comunista é visto como um
“estrangeiro”, estava a serviço de Moscou e a partir da década de 1960
para Cuba. Segundo Motta:
A existência de fortes vínculos unindo nacionalismo
(patriotismo) e anticomunismo pode ser observada nas
políticas adotadas pelos regimes originados das duas mais
importantes ofensivas anticomunistas: Estado Novo e
Regime Militar (MOTTA, 2002, p. 36).
Por último, temos o liberalismo, pois de certa forma:
Os liberais recusavam (recusam) o comunismo por entender
que ele atentava contra os dois postulados referidos, a
liberdade praticando o autoritarismo político e, o direito à
propriedade, na medida em que desapossava os particulares
de seus bens e os estatizava (MOTTA, 2002, p. 38).

208
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

No anticomunismo brasileiro atual as matrizes clássicas do


anticomunismo permanecem estabelecidas e possui o auxílio de alguns
elementos catalisadores que lhe orientam no seu desenvolvimento, são
eles: a literatura politicamente incorreta, a proliferação das Fake News
e o extremismo político evidenciados no discurso dos indivíduos que
pedem uma intervenção militar como forma de resolver os problemas
da política e da sociedade brasileira.
A história politicamente incorreta coloca em depreciação a
história oficial. Enaltecendo o passado que não passa, o seu sucesso serve
de discurso no jogo político aos grupos que preferem que a sociedade
não se lembre de seu passado conturbado. Os Guias politicamente
incorretos da história são de autoria e criação de Leandro Narloch,
possuem um tom irônico, simplificações e informações equivocadas,
com o objetivo de endossar uma perspectiva da história supostamente
coerente com a direita liberal.
Por sua vez, as Fake News, sempre foram um fenômeno
existente na política, mas ganharam destaque com a eleição do
candidato Donald Trump nos Estados Unidos no ano de 2016.
Podemos considerar as Fake News como um tipo de imprensa
marrom que consiste na distribuição deliberada de desinformação
ou boatos por jornal, televisão, rádio, ou mesmo online, por exemplo
em redes sociais. O objetivo da proliferação destas notícias falsas é a
enganação para a obtenção de ganhos financeiros e políticos.
No Brasil o Movimento Brasil Livre – MBL, Think Tank
brasileira ligada a Atlas NetWork2 é o órgão que mais espalha Fake
News relacionadas a esquerda brasileira e foi um dos principais
desencadeadores do golpe de 2016 que depuseram Dilma Rousseff.
Think Tank é uma expressão que pode ser traduzida por “centro de
pensamento”. É um termo criado nos Estados Unidos e utilizado
para designar organizações que se dedicam a produzir e/ou difundir
pesquisas, ideias e projetos de políticas públicas com o objetivo de

2 A Atlas Network — Think Tank legalmente denominado Atlas Economic


Research Foundation, sediado em Washington, D.C. — atua, desde 1981, na defesa
e propagação de concepções da direita ultraliberal, com organizações parceiras em
todos os continentes.

209
Das utopias ao Autoritarismo

influenciar governos e/ou conformar uma certa opinião pública. Em


geral, buscam transmitir uma imagem técnica, tentando afastar-se de
uma identificação estritamente ideológica, mesmo que claramente
defendam determinadas concepções políticas e ideológicas, por
exemplo o anticomunismo e no caso do Brasil a partir de 2013 o
antipetismo.
Por sua vez, o MBL, criado em novembro de 2014 logo
após a reeleição de Dilma Rousseff, tem sua origem na organização
Estudantes pela Liberdade sediada em Belo Horizonte. Esta
organização é financiada pela Atlas Network e “treina” estudantes
com base nos ideais do ultraliberalismo e de certa forma desenvolve
ideias anticomunistas. O sucesso do MBL ocorre após seus criadores
e seguidores atrapalharem as ações do MPL – Movimento Passe Livre
que reivindicava a diminuição no valor nas passagens dos ônibus
coletivos em diversas capitais brasileiras e a melhoria nos serviços.
Defendendo as privatizações e o Estado mínimo, a organização
possui como líder, Kim Kataguiri, estudante de economia que fazia
sucesso postando vídeos “engraçados” no portal YouTube. De cabelos
compridos e barba, Kim simboliza para a entidade a juventude “que
saiu do Facebook para as ruas”. Vale lembrar que o Movimento Passe
Livre e diversos outros movimentos sociais já faziam isto antes mesmo
do surgimento do Facebook. Entretanto o MBL discursa defendendo
este protagonismo inexistente.
O extremismo político da Nova direita brasileira está
relacionado ao deputado federal Jair Messias Bolsonaro, atualmente
candidato à presidência da república. Militar reformado do exército,
o parlamentar desenvolve um discurso extremista que também é
saudosista ao Regime militar no Brasil. A sua principal proposta
política versa sobre o armamento da população. Bolsonaro pode ser
visto na atualidade como um elemento do “passado que não passa”
brasileiro, ligado a uma cultura política autoritária brasileira que
em 1937 e 1964 a partir de suas práticas, representações e discursos
desenvolveram regimes ditatoriais.

210
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Considerações finais
O repúdio a uma determinada ideologia mostra temor a ela.
O anticomunismo brasileiro logrou e ainda hoje detém sucesso pela
atuação da opinião pública. Como cidadãos de um país marcado pela
sua frágil democracia, devemos analisar os discursos em voga na disputa
de narrativas para que os fatos reproduzidos por ela nem sempre virem
verdade. No tempo presente brasileiro a crença no perigo vermelho
beira a uma espécie de insanidade de seus mentores. As instituições ou
indivíduos que desenvolvem ou ensaiam em seus discursos e práticas
algo que seja entendido como uma defesa a entidades e organizações
que possuem a alcunha de social em seu nome, ou que utilizam a
cor vermelha como marca, ou são por exemplo a favor dos direitos
humanos (incluindo negros, quilombolas, dependentes químicos, a
comunidade LGBT, as mulheres, ou qualquer que seja a minoria) e por
fim, que são contrários ao impeachment sofrido por Dilma Rousseff
em 2016, são taxados de esquerdistas, e por conseguinte comunistas.
O anticomunismo da atualidade brasileira, não mira em um inimigo,
mas acerta em vários e estes de certa forma não são necessariamente
elementos da esquerda, mas são assim considerados. É fato que nas
conjunturas dos dois primeiros surtos anticomunistas, o perigo
vermelho era real, por conta do quadro político internacional. Nestas
conjunturas o regime soviético e num segundo momento o cubano
também. Entretanto como já referido, o oportunismo foi utilizado
para justificar experiências golpistas.
O crescimento e fortalecimento do conservadorismo é algo
visível e assustador no Brasil da conjuntura pós impeachment, cabe aos
grupos políticos que se denominam progressistas a tarefa de combater
o golpismo, o oportunismo e a manipulação de ideias que beiram às
práticas anticomunistas. É reparável o fato de que o anticomunismo
da terceira onda se desassemelha em vários elementos dos surtos
ocorridos em 1937 e 1964, mas assim como os anteriores finalizou em
golpe nas instituições políticas e como já dito utilizou do oportunismo
e da manipulação da realidade estereotipando os inimigos políticos
em questão.

211
Das utopias ao Autoritarismo

Referências bibliográficas:
BERSTEIN, Serge. Culturas políticas e historiografia. In: AZEVEDO, Cecília
et al. (Orgs). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro:
FGV, 2009.
CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa:
Difel, 1987.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “Perigo Vermelho”: o
anticomunismo no Brasil (1917 – 1964). São Paulo: Perspectiva: FAPESP,
2002.
REMOND, René. Por uma História Política. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o
contemporâneo. Tradução Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de
Janeiro: FGV, 2016.
SILVA, G. V. Representação social, identidade e estigmatização: algumas
considerações de caráter teórico. In: SILVA, G. V.; FRANCO, S. P.;
LARANJA, A. L. (Orgs). Exclusão social, violência e identidade. Vitória:
Flor e Cultura, 2004, p. 13-30.
TRAVERSO, Enzo. El passado, instruciones de uso. Historia, memoria,
política. Madrid: Marcial Pons, 2007.

212
Parte II
A América Latina:
Indígenas, dirigentes e cultura
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Da utopia à conquista do direito à livre


determinação. As comunidades indígenas
mexicanas e seus processos de construção das
autonomias
Antonio Carlos Amador Gil1

Para falarmos das conquistas pelo direito à livre determinação,


é importante resgatarmos a história da ratificação da Convenção 169
da Organização Internacional do Trabalho – OIT pelo México e a
reforma constitucional mexicana de 1992. Se por um lado, a reforma
constitucional mexicana de 1992 retirou direitos referentes à terra,
uma vez que, ao modificar o artigo 27, o governo de Carlos Salinas de
Gortari (1988-1994) tornou os ejidos (propriedades coletivas) indígenas
passíveis de mercantilização, ou seja, passíveis de compra e venda,
alteração que mexia diretamente com a base da cultura indígena e era
uma exigência dos grupos empresariais e financeiros norte-americanos,
para a assinatura do Tratado de Livre Comércio, visto que não admitiam
a proteção de uma estrutura coletiva que impedia a estruturação
completa de um mercado de terras capitalista, por outro lado, a reforma
constitucional de 1992 reconheceu, em seu artigo 4, a composição
pluricultural do México. A nova redação do artigo 4 dizia o seguinte:
Art.4 - A nação mexicana tem uma composição
pluricultural originalmente sustentada em seus povos
indígenas. A lei protegerá e promoverá o desenvolvimento
de suas línguas, culturas, costumes, recursos e formas
específicas de organização social, e garantirá a seus
membros o acesso efetivo à jurisdição do Estado. Nos
processos e litígios agrários em que sejam partes, serão
levadas em conta as suas práticas e costumes jurídicos nos
termos estabelecidos por lei. (DIARIO OFICIAL, p. 5, 28
jan. 1992. Tradução nossa).2

1 Antonio Carlos Amador Gil é professor titular de História da América na


Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e pós-doutor em História da América.
E-mail: antonio.gil@ufes.br.
2  Art.4 - La Nación mexicana tiene una composición pluricultural sustentada

215
Das utopias ao Autoritarismo

O reconhecimento expresso neste artigo 4º, que foi


realocado para o artigo 2º na reforma constitucional de 2001, está
profundamente associado com as mudanças ocorridas a partir dos
anos de 1980 e inícios de 1990. Uma das mudanças fundamentais no
direito internacional foi a convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT) – Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais,
aprovada em 1989 em Genebra e que foi ratificada pelo México em
5 de setembro de 1990, entrando em vigor em 5 de setembro de
19913 . O México foi o segundo país, depois da Noruega, a ratificar a
Convenção 169 da OIT.
Apesar da aparência “progressista” da postura do governo
de Carlos Salinas de Gortari sobre os direitos indígenas, a meta
principal das reformas salinistas era fortalecer o desenvolvimento
capitalista do México no âmbito da globalização, sem se preocupar
nem com a dependência em relação aos Estados Unidos nem com os
choques que essa estratégia poderia produzir com as aspirações dos
agora reconhecidos “povos indígenas”. O governo salinista demorou
um pouco para mostrar que aquilo que queria oferecer aos indígenas
mexicanos era o multiculturalismo neoliberal, um regime de direitos
que desenharia uma fronteira clara entre a figura que Charles Hale
(2006) chamou de “o índio permitido” e “o índio radical demais”, que
pretenderia acrescentar ao seu direito de conservar seu idioma e sua
cultura o controle de recursos.
Mesmo com todas as limitações, a partir da ratificação da
Convenção 169 da OIT em diversos países da América Latina, têm
sido aprovadas reformas constitucionais que estabeleceram artigos e
políticas favoráveis ao reconhecimento da pluralidade cultural e étnica.
Apesar das limitações destas iniciativas, que se restringem, geralmente,

originalmente en sus pueblos indígenas. La Ley protegerá y promoverá el desarrollo de


sus lenguas, culturas, usos, costumbres, recursos y formas específicas de organización
social, y garantizará a sus integrantes el efectivo acceso a la jurisdicción del Estado. En
los juicios y procedimientos agrarios en que aquellos sean parte, se tomárán en cuenta
sus prácticas y costumbres jurídicas en los términos que establezca la ley.
3  A aprovação da Convenção 169 da OIT – Convenção sobre Povos Indígenas e
Tribais, pelo Congresso Nacional Brasileiro, deu-se somente em 2002 e sua promulgação
pelo governo brasileiro em abril de 2004 (Decreto 5.051 de 19 de abril de 2004).

216
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

a aspectos culturais, têm surgido políticas de “discriminação positiva”


que têm produzido, paralelamente, processos de re-etnificação
ou etnogênese. É interessante notar como, em diversos países da
América Latina, ressurgem os movimentos indígenas e, cada vez
mais, se operacionalizam, ou até mesmo, recriam-se ou inventam-se
as identidades étnicas.
No mesmo momento em que ocorreu esta reforma
constitucional no México, estava sendo gestado o movimento zapatista
em Chiapas que se insurgiu no momento em que entrou em vigor o
Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos e Canadá, em 1º
de janeiro de 1994. Como bem definido por Gemma van der Haar
em seu trabalho “El movimento zapatista de Chiapas: dimensiones
de su lucha”, podemos destacar três dimensões do projeto político
zapatista: a luta agrária, a luta pelo reconhecimento legal dos direitos
e das culturas indígenas e a construção das estruturas do governo
autônomo. Ou seja, o movimento zapatista não se restringiu somente
às reivindicações agrárias, foi além, visto que incorporou a luta pelo
pluralismo e pela construção das autonomias (HAAR, 2005).
Segundo Consuelo Sánchez, em seu texto Autonomía
y pluralismo. Estados plurinacionales y pluriétnicos, o pluralismo
que reivindicam os movimentos indígenas tem um significado
substancialmente diferente do sustentado pelos liberais pluralistas
e a maioria dos multiculturalistas. A reivindicação de pluralidade
cultural dos povos indígenas se trata de um enfoque que se distancia
da cultura liberal-capitalista e busca subverter o atual movimento de
integração capitalista, também chamado de globalização neoliberal
(SÁNCHEZ, 2010, p. 273).
Para os movimentos indígenas que lutam por sua
autonomia, o Estado neoliberal e antes dele, o Estado republicano
(após as independências) e o Estado colonial, representam formas de
colonialismo pois sustentam um colonialismo endógeno e exógeno
que se expressa no domínio e despojo dos povos indígenas e a
subordinação de seus países aos interesses capitalistas estrangeiros.
Para os povos indígenas a imposição do liberalismo e

217
Das utopias ao Autoritarismo

sua perspectiva de direitos humanos e de cidadania significou uma


imposição colonialista, pois o liberalismo se converteu num obstáculo
para a livre determinação e para a fundação de um projeto político
fundado numa autêntica diversidade.
Héctor Díaz-Polanco e Consuelo Sánchez em seu trabalho
El debate autonómico, publicado no livro México diverso: el debate por
la autonomía, demonstram que o projeto defendido pelos zapatistas
supõe a reforma do Estado e a renovação do pacto federal visto que é
necessária uma nova distribuição territorial do poder do Estado que
incorpore as regiões autônomas como parte da organização vertical
dos poderes da nação e uma descentralização política, administrativa
e de recursos. Os zapatistas propõem a criação das regiões autônomas
como um novo ente territorial que tenha personalidade jurídica,
organização político-administrativa e patrimônio próprio. Ou
seja, são precisas mudanças constitucionais para criar um Estado
descentralizado, democrático, includente e respeitoso da pluralidade
(DÍAZ-POLANCO; SÁNCHEZ, 2002, p. 138-139).
Em abril de 2001, o Congresso Nacional mexicano inicia e
conclui as discussões e votações sobre a reforma constitucional sobre
matéria indígena. Vicente Fox, eleito pelo Partido de Ação Nacional
(PAN) em 2000, com o apoio do Partido da Revolução Democrática
(PRD), promulga a nova lei indígena federal em 29 de abril de 2001.
Esta reforma constitucional foi fortemente rechaçada pelo
Exército Zapatista de Libertação Nacional - EZLN que divulgou
um comunicado afirmando a traição do governo, declarando que
não faria mais contato com as esferas governamentais e seguiria
em rebeldia. O rechaço do EZLN se deveu ao fato de que a nova lei
indígena federal apagou todas as referências a territórios indígenas e
aos direitos à associação política para além do nível municipal que
estavam incluídas na proposta original da multipartidária Comissão
de Concórdia e Pacificação, comissão que articulou os Acuerdos
de San Andrés, documento assinado em fevereiro de 1996, em San
Andrés Larráinzar, em que o governo mexicano compromete-se a
outorgar os direitos indígenas sobre autonomia, justiça e igualdade
aprovados nas mesas de negociações.

218
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Héctor Díaz-Polanco e Consuelo Sánchez mostram a


incongruência da proposta governamental pois ao mesmo tempo
em que se reconhece a autonomia das comunidades indígenas, não
foram criadas as condições para o exercício político da autonomia,
uma vez que omitem o reconhecimento das comunidades indígenas
como entidades de direito público. O governo ardilosamente aparenta
fazer mudanças mas, na verdade, não muda nada (DÍAZ-POLANCO;
SÁNCHEZ, 2002, p. 148).
Alejandro Cerda García (2011), em seu trabalho
Construyendo autogobierno: repensar la ciudadanía desde la autonomía,
publicado no livro Imaginando zapatismo: multiculturalidad y
autonomía indígena en Chiapas desde un municipio autónomo, reforça
este enfoque e reitera que as modificações legislativas, em relação aos
direitos e culturas indígenas, que foram aprovadas em 2001, reduziram
a autonomia ao âmbito do comunitário sem reconhecer sequer a sua
personalidade jurídica.
Neste período, entre 2001 e 2005, o movimento zapatista
se voltou para suas atividades internas nas regiões ocupadas, até que
em agosto de 2005 divulgou a Sexta Declaração da Selva Lacandona,
conclamando à construção de uma outra forma de fazer política.
De acordo com esta declaração, documento dividido em três partes,
emitido pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena – CCRI,
o EZLN fez, em sua primeira parte, um resumo dos acontecimentos,
e deixou claro que, após a “Marcha pela dignidade indígena” de 2001
e o fracasso da luta pelo reconhecimento dos indígenas mexicanos
pelo Congresso da União, o diálogo e a negociação tinham sido em
vão, e os zapatistas decidiram então pelo cumprimento, sozinhos
e unilateralmente, dos Acuerdos de San Andrés quanto aos direitos
e às culturas indígenas. Ou seja, entre 2001 e 2005, os zapatistas se
dedicaram a aumentar e fortalecer os municípios autônomos rebeldes
zapatistas de forma autônoma e independente.
De acordo com a Sexta Declaração, os zapatistas avisaram
que queriam estabelecer uma política de alianças com organizações e
movimentos não eleitorais que se definissem, em teoria e na prática,
como de esquerda, de acordo com as seguintes condições: que

219
Das utopias ao Autoritarismo

não fizessem acordos de cúpula para impor na base, mas sim que
fizessem acordos para ir juntos, para ouvir e organizar a indignação;
que não levantassem movimentos que depois fossem negociados às
custas daqueles que os integravam, mas sim que levassem sempre
em consideração a opinião dos que deles participavam; que não
procurassem presentes, posições, vantagens, cargos públicos ou
cargos de poder, indo sempre além dos calendários eleitorais;
que não tratassem de resolver os problemas da nação mexicana a
partir de cima, mas sim que construíssem a partir de baixo e para
os debaixo uma alternativa à devastação neoliberal, uma alternativa
de esquerda para o México. Os zapatistas convidaram a todos
os que lutavam a partir dos princípios acima relatados para que
participassem diretamente com os zapatistas da campanha nacional
para a construção de outra forma de fazer política, de um programa
de luta nacional e de esquerda e, no caso do México, por uma nova
Constituição. Ou seja, o zapatismo criticava a política como uma
esfera especial, monopolizada por um grupo de profissionais, fora
do controle social e alheia aos anseios da sociedade civil, somente
se voltando para ela nos momentos eleitorais, num quadro de
participação restrita da democracia representativa.
Segundo Juan Diez em seu trabalho “Os múltiplos
processos de construção da autonomia do movimento zapatista”,
apesar das leituras abstencionistas ou antieleitorais que muitos
críticos fizeram no momento da divulgação da Sexta Declaração da
Selva Lacandona, o que os zapatistas propuseram, a partir da Sexta
Declaração, foi o rompimento das negociações com a classe política
visto que os zapatistas estavam indignados com a traição da classe
política durante a votação da nova proposta sobre direitos indígenas
que foi precedida por intensas negociações e mobilizações. Juan
Diez deixa claro que não se tratava de uma conclamação a não
votar, de não participar da política, mas uma proposta renovada
em que a tarefa fundamental, a partir de 2005, seria o encontro
e conhecimento dos diferentes grupos, coletivos e pessoas que
lutavam contra o capitalismo, entre os quais deveriam ir discutindo,
coordenando e articulando as novas iniciativas políticas. Portanto,

220
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

mais que uma posição antipolítica, como muitos criticaram, o


movimento zapatista pareceu procurar desafiar a noção dominante
de política, revestindo-a de novos sentidos (DIEZ, 2012, p. 220).
O posicionamento dos zapatistas trouxe muitos problemas
para a luta política partidária naquele momento. Apesar de proporem
uma nova forma de fazer política, se afastaram da luta eleitoral, o
que fez com que o movimento fosse bastante criticado pelos que
consideravam a luta pelo poder político através das eleições um
momento essencial e muito importante. Araceli Burguete Cal y
Mayor (2007), em seu texto De organizaciones indígenas a partidos
étnicos: nuevas tendencias en las luchas indias en América Latina,
a partir da análise de diversos autores, revela outros caminhos.
A autora mostra que a decepção experimentada por diversos
movimentos indígenas, na América do Sul, em relação ao sistema
político que não conseguiu dar resposta às demandas de modificação
do Estado, de uninacional para plurinacional, conduziram vários
movimentos, como a CONAIE, no Equador, e o movimento dos
Cocaleros, na Bolívia, a incorporar em sua agenda, a luta pelo
poder político e se transformar em um partido político. Podemos
falar de novos atores, “os partidos étnicos” que seriam organizações
autorizadas a participar em eleições locais ou nacionais, cujos líderes
e a maioria de seus membros se identificaram a si mesmos como
parte de um grupo étnico não governante cuja plataforma eleitoral
inclui demandas e programas de natureza étnica ou cultural.
Como já colocado aqui, a Reforma constitucional mexicana
de 2001 não permitiu o reconhecimento das comunidades indígenas
como entidades de direito público e a possibilidade de que os indígenas
se associassem enquanto “povos”. Consuelo Sánchez (2010) lembra
que, no Direito Internacional, os termos “povos” e “minorias” aparecem
ligados a direitos diferentes. O termo “minoria” se associa a certos
direitos culturais (religião, língua e vida cultural própria) que podem
ser exercidos individualmente ou coletivamente dentro dos Estados
Nacionais existentes. Já o termo “povo” está vinculado ao direito de
livre determinação e compreende o direito e a liberdade de decidir
coletivamente seu estatuto político e rumo econômico e sociocultural.

221
Das utopias ao Autoritarismo

Um momento marcante para os povos indígenas foi o


reconhecimento de seu direito à livre determinação na Declaração
das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que
foi aprovada em 13 de setembro de 2007. Em seu terceiro artigo,
a declaração afirmou que “os povos indígenas têm o direito à livre
determinação. Em virtude desse direito determinam livremente sua
condição política e perseguem livremente o seu desenvolvimento
econômico, social e cultural”. Consuelo Sánchez ressalta que este
direito é um princípio geral que requer ainda a sua concretização.
Ou seja, os povos indígenas têm que lutar efetivamente para exercer
este direito. Segundo a autora, os movimentos indígenas têm diversos
caminhos que podem variar desde a criação de entidades autônomas
dentro de um Estado pré-existente até a constituição de um Estado
nacional próprio.
Juan Diez (2012) discute que os processos autonômicos,
mais que uma sobrevivência ou volta ao passado, evidenciam, antes, a
criação de novas sociabilidades e instituições que combinam elementos
“tradicionais” e “modernos”, que vão desde as longas discussões
em assembleias comunitárias para a construção de consensos até o
questionamento da exclusão das mulheres nas assembleias.
Gilberto López y Rivas (2004), em seu livro Autonomías:
democracia o contrainsurgência, afirma que a autonomia, como
uma das formas de exercício da livre determinação, implica
o reconhecimento dos governos autônomos municipais ou
regionais no interior do Estado nacional. Ou seja, autonomia não
é independência e não implica em soberania. Os zapatistas colocam
que a autonomia é uma entidade menor no interior de uma entidade
maior única e soberana, de maneira que o que se discute no dia a dia
do movimento são as formas possíveis de relação das comunidades
autônomas com o Estado e não uma suposta ameaça ou possibilidade
de desintegração nacional. As autonomias constituem, de fato,
formas de reconhecimento de direitos, principalmente, no caso
zapatista, de direitos coletivos – direitos dos povos indígenas,
direitos de entidades etnicamente diferenciadas. Contudo, a inclusão
da autonomia como um direito constitucional é considerada por

222
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

alguns governos como um fator de ruptura nacional.


Segundo Consuelo Sánchez (2010), os mecanismos que
os movimentos indígenas propõem para alcançar o seu direito à
livre determinação não são homogêneos. Em todos os movimentos
indígenas, a reivindicação principal é a adoção da autonomia. A
autora ressalta que podem existir várias interpretações sobre os
elementos da autonomia. Há variações em relação à aplicação do
controle do território, ao autogoverno, à administração da justiça, à
participação nos órgãos de decisão nacional, aos mecanismos para
garantir a autonomia e as condições para a realizá-la e aos níveis e
âmbitos territoriais para o exercício da autonomia. Ou seja, a autora
deixa claro que as interpretações que os movimentos indígenas têm
sobre a autonomia não são fixas e podem modificar-se de acordo com
os processos sociopolíticos nacionais.
Consuelo Sánchez (2010) destaca que há uma falta de clareza
sobre o significado dos conceitos de autonomia e livre determinação.
Tendo isto em mente, a autora quer esclarecer o que constitui um
regime de autonomia e suas relações com as demandas dos povos
indígenas. O autogoverno é um dos elementos fundamentais da
autonomia e implica modificar profundamente a organização política
e territorial do Estado. Tendo isto em vista, alguns movimentos
indígenas, principalmente os mais politizados e, porque não dizer,
revolucionários, são mais exigentes em relação à noção de território.
Para estes movimentos indígenas, o reconhecimento da autonomia
transcende a concepção de território prevista na Convenção 169
da OIT, que define território como a totalidade do habitat que os
povos originários necessitam para a sua sobrevivência e que incluem,
em seu sentido mais amplo, seus usos rituais, religiosos e culturais.
Eles reivindicam uma base política territorial, um território com
jurisdição própria para que suas coletividades possam exercer o
governo, a justiça e outros poderes. Isto quer dizer que os povos
indígenas contemporâneos mais radicais querem ter “governos
próprios” que possuam uma jurisdição que legalmente reconheça
suas atribuições sobre um âmbito territorial específico. Os governos
latino-americanos atuais têm muita dificuldade em aceitar a dimensão

223
Das utopias ao Autoritarismo

territorial reivindicada por estes processos autonômicos indígenas


mais radicais.
Segundo John Gledhill (2012), autor de “Limites da
autonomia e da autodefesa indígena: experiências mexicanas”, para
os indígenas de Ostula, no estado mexicano de Michoacán, por
exemplo, o conceito de território transcende o marco da reforma
agrária conformando-se de certa maneira ao conceito nahua do
altépetl (entidade étnica e territorial em que se organizaram os
indígenas mexicanos no período da formação do domínio asteca).
Tal conceito indígena defende que deve existir uma relação entre
o domínio territorial e a soberania de um grupo humano portador
de uma identidade sociopolítica integrada e única. A “comunidade
indígena” se define por meio das práticas íntimas de viver, morrer,
trabalhar, venerar suas divindades e fazer peregrinações, contrair
matrimônios e manter todo tipo de relações de sociabilidade dentro
do território em que exercem sua soberania. Conheciam-se os limites
do seu território não por mapas feitos por engenheiros, mas pela
experiência de se viver neles, por se conhecerem as histórias sociais
vinculadas aos seus lugares, e por se manterem suas fronteiras. O
território se vincula estreitamente com as estratégias políticas dos
movimentos indígenas. Trata-se de um processo ativo, uma dinâmica
de apropriação simbólica e material em um processo histórico
determinado. Esta concepção permanece nos dias de hoje e, por
isso, vemos a mobilização de diversas etnias indígenas que resistiram
durante todo este período e agora querem construir seus processos de
autonomia em seus territórios específicos.
Juan Diez (2012) nos mostra que há vários desafios para a
implementação da autonomia nos moldes propostos pelos zapatistas,
dentre eles, destaca a cultura política dominante no México. O autor
explica que as autonomias indígenas não são modelos estabelecidos,
mas sim diferentes propostas e experiências concretas que se nutriram
de múltiplos antecedentes históricos, ao mesmo tempo em que vêm
se constituindo e se modificando ao longo dos anos. Em um contexto
como o mexicano, marcado por uma cultura política profundamente
paternalista, hierárquica e vertical, o surgimento e fortalecimento

224
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

de propostas e práticas que procuram a construção de autonomias,


reforçando os aspectos de horizontalidade e multiplicidade
representam um grande desafio, visto que é preciso uma importante
mudança cultural e política.
Araceli Burguete Cal y Mayor, em seu texto “Una década de
autonomías de facto en Chiapas (1994-2004): los límites”, publicado
em 2005, destaca e reconhece o desafio proposto pelos zapatistas
com a criação das Juntas de Bom Governo. A autora mostra que,
contrariamente à imagem idílica das comunidades zapatistas, a vida
cotidiana é muito complexa e difícil, visto que num contexto de escassos
recursos, de pobreza e de carência de alternativas, a sobrevivência é
uma batalha diária. Segundo a autora, um dos principais objetivos
da criação das Juntas de Bom Governo é passar de uma autonomia
de fato defensiva, a uma autonomia de fato construtiva. Segundo
Burguete Cal y Mayor (2005), as autonomias de fato zapatistas são
demarcações imaginadas, uma vez que não estão territorializadas
nem se constituem de maneira compacta. Seus membros são grupos
de pessoas, de número variável, dispersos por uma determinada área
que não tem, necessariamente, continuidade entre eles. O sentimento
de pertencimento se concretiza a partir de um sentimento de filiação
a uma comunidade em resistência que garante direitos e obrigações
diferenciadas. A noção de comunidades imaginadas, segundo a autora,
é um resultado recente das próprias mudanças vividas pelo zapatismo.
Para Burguete Cal y Mayor, a prolongação da fase de conflito tem feito
com que o EZLN sofra um fenômeno simultâneo de crescimento e
fragmentação.
Vemos que a autora mostra as dificuldades das comunidades
zapatistas, ou seja, não podemos idealizar o movimento. Apesar de
todas as dificuldades nos processos de implementação das autonomias,
a resistência e a permanência do movimento, depois de tantos
anos, demonstraram que as práticas zapatistas de construção das
autonomias conseguiram avançar da utopia para sua efetiva realização
e influenciaram muitos outros movimentos étnicos indígenas.
Segundo John Gledhill (2012), no início de julho de 2009,
notícias sobre a comunidade indígena de Santa María Ostula,

225
Das utopias ao Autoritarismo

localizada no município de Aquila, apareceram nas manchetes


principais dos jornais nacionais. No dia 29 de junho, apoiado por
suas próprias polícias comunitárias e pelas comunidades indígenas,
um numeroso grupo de homens e mulheres de Ostula conseguiu
recuperar o controle do território de mais de 700 hectares, conhecido
como La Canahuancera, depois de mais de 40 anos de usurpação
por moradores não indígenas do povoado vizinho de La Placita.
A invasão do terreno disputado tinha sido planejada por uma
assembleia comunal. Quarenta famílias se assentaram em Xayakalan
para desenvolver um novo projeto autonomista com base na livre
determinação e na autodefesa. O governo do Estado prometeu o
reconhecimento da legitimidade da polícia comunitária de Ostula
como uma “defesa rural”. No entanto, não conseguiu cumprir as
promessas de solucionar o conflito agrário. Nem tampouco outorgou
reconhecimento oficial ao assentamento, decisão que impediu a
entrega de serviços públicos e demais ajudas.
Gledhill (2012) mostra que grupos paramilitares, na região
próxima a Ostula, desfrutavam de um amplo grau de impunidade
quando acossavam comunidades que pretendiam expressar a sua
autonomia sob a forma de lutas para conseguir maior controle sobre
seus recursos. O recurso à autodefesa, portanto, foi uma resposta
ao fato de que nenhum nível do Estado defendeu os interesses dos
comuneros, nem ofereceu a eles as mínimas garantias de segurança.
Para Gledhill (2012), diversas regiões do México contam
com recursos minerais e a história do século XIX parece se repetir.
Isto nos faz pensar nos projetos de desenvolvimento capitalista que
provocaram o processo de desamortização das comunidades indígenas
com a consequente expulsão dos indígenas de suas terras e florestas de
uso comum na segunda metade do século XIX, no processo histórico
conhecido como Reformas Liberais. Este processo alcançou níveis
significativos no decorrer do governo de Porfírio Diaz e foi um dos
motivos para o levantamento indígena durante a Revolução mexicana.
É possível ver semelhanças com a experiência recente da costa pacífica
michoacana relatada por Gledhill, ou outras experiências de despojo
de comunidades indígenas em outras regiões do México.

226
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Como consequência das generosas facilidades outorgadas,


por exemplo, ao avanço do capitalismo extrativista transnacional e
ao agronegócio, por muitos governos latino-americanos, abundam
exemplos, tanto no México como em outros países da região, de agudos
conflitos entre comunidades indígenas e empresas mineradoras
ou empresas do agronegócio que desfrutam do apoio, aberto ou
dissimulado, do Estado.
John Gledhill (2012) destaca novos elementos
desestruturadores como, por exemplo, o narcotráfico que é um
elemento que complica esta história. A violência está produzindo um
saldo crescente de pessoas deslocadas. Isto não é uma novidade, pois
o governo mexicano, por exemplo, desde os anos de 1990, estimulou a
ação de grupos paramilitares contra os zapatistas. No caso da região de
Ostula, em Michoacán, o que preocupa hoje, segundo o autor, é que as
comunidades indígenas da região estão cada vez mais divididas devido
à ação do narcotráfico e dos paramilitares e têm perdido grande parte
da capacidade que tinham para se mobilizar e se defender. Por isso,
vemos cada vez mais presentes, as novas expressões autonomistas que
reivindicam a autodefesa armada como uma das formas de conseguir
a segurança das comunidades indígenas e a defesa de seus recursos
nas condições atuais.
Hoje em dia, nos noticiários sobre o México, se destacam as
notícias sobre a violência e as disputas dos carteis do narcotráfico em
algumas regiões mexicanas. Além destes fatores desestabilizadores,
os grupos étnicos indígenas têm que enfrentar o racismo que impera
nas esferas jurídicas e governamentais. Isto ficou claro nos debates
na Câmara de Deputados e no Senado mexicanos no momento da
discussão da reforma constitucional sobre direitos indígenas que
previa a inclusão das autonomias na constituição mexicana. As altas
esferas governamentais e o judiciário mexicanos não conseguiram
conceber a possibilidade de autogovernos indígenas. Mesmo tendo o
exemplo da experiência nicaraguense que mostrou que a autonomia
concedida foi um fator de pacificação de conflitos na sociedade
nicaraguense, o debate em torno dos direitos indígenas não avançou
no momento das reformas constitucionais.

227
Das utopias ao Autoritarismo

Os movimentos indígenas, de maneira geral, e o


movimento zapatista, naquele momento, têm reivindicado não
somente o direito de proteção de suas línguas, mas também de
seus usos e costumes desde que não sejam incompatíveis com os
direitos humanos vigentes nas leis de seus países e nos tratados
internacionais. Ficou claro para os movimentos, naquele momento
no México, que a recusa governamental em reconhecer os direitos
propostos nos Acuerdos de San Andrés radicava na incapacidade
de reconhecimento dos direitos indígenas por uma cultura
profundamente marcada pelo etnocentrismo. As sociedades latino-
americanas contemporâneas profundamente marcadas pela herança
colonial e pelos projetos de homogeneização cultural implementados
pelos Estados independentes no decorrer do século XIX têm
muitas dificuldades em reconhecer as diferenças e os direitos do
outro civilizacional indígena. A estrutura etnocêntrica construída
no decorrer do século XIX, ainda se mantém, visto que apesar do
reconhecimento de alguns direitos culturais, os grupos dominantes
continuam a desqualificar as práticas e costumes indígenas.
John Gledhill (2012) se posiciona de maneira muito enfática
sobre a situação política do México nestes últimos anos. Para ele,
houve um processo de fragmentação do Estado e de fragmentação dos
cartéis do narcotráfico, ambos os processos impulsionados tanto pela
impunidade oferecida através da proteção de políticos e elementos
das forças de segurança oficiais, como pelas lutas para controlar as
“praças” de exploração do tráfico.
Costuma-se explicar o aumento constante da violência
no México pela fragmentação dos carteis, mas, segundo o autor,
é impossível compreender este aumento sem se perceber que
a fragmentação do Estado permitiu que diferentes grupos de
criminosos passassem a desfrutar do apoio de distintos segmentos
dos poderes municipal, estadual e federal. Por isso, John Gledhill,
de maneira bastante perspicaz, se pergunta sobre a falta de resposta
dos diferentes níveis de governo contra a escalada de violência
no México. Para ele, esta falta de resposta que tem aumentado os
níveis de ataque e destruição de comunidades indígenas, retomaria

228
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

o projeto das elites nacionais e estrangeiras de destruição das


propriedades comunais indígenas ocorrido no decorrer do século
XIX. Interessante a relação feita pelo autor. De fato, não estaríamos
assistindo ao retorno do velho projeto das elites nacionais e
transnacionais que hoje em dia cobiçam os recursos existentes nos
territórios das comunidades indígenas?
A importância da experiência do movimento zapatista, sua
resistência e permanência e, principalmente, suas propostas práticas
de autonomia, mesmo analisando suas contradições e problemas,
mostra que o movimento zapatista conseguiu se converter em
um símbolo global para movimentos antissistema, como também
teve um impacto profundo sobre o movimento indígena nacional
no México e em outros países. Sua influência estimulou a adoção
generalizada de demandas que reivindicavam um ou outro modelo de
autonomia indígena, mesmo por parte de grupos ainda empenhados
em continuar trabalhando pela via jurídica e institucional (DÍAZ-
POLANCO, 2007).
Para concluir, gostaria de ressaltar as múltiplas formas
da política autônoma das classes subalternas e os processos de
autonomia dos grupos étnicos indígenas, em curso, em algumas
regiões da América Latina, suas experiências práticas e suas lutas
por reconhecimento político e constitucional. Apesar de todas as
dificuldades, diferentes grupos étnicos indígenas que antes se viram
forçados a aderir a uma ideia de nação totalmente abstrata e imposta
de cima para baixo, hoje trilham um caminho inverso, tentando
definir seus espaços de autonomia. Devido à sua importância, temos
que discutir, cada vez mais, como os novos movimentos indígenas,
que têm surgido em diversas partes de nossa América, constroem e
fortalecem o curso das lutas antissistêmicas e nos trazem novas formas
de pensar a autonomia, a democracia e a participação política, uma vez
que pesquisar os novos movimentos indígenas e suas autonomias nos
permitem discutir novas formas de pensar o sistema representativo na
sociedade latino-americana atual.

229
Das utopias ao Autoritarismo

Referências Bibliográficas:
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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

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Cooperación Técnica Alemana - GTZ: Grupo Internacional de Trabajo
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231
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Representações e imaginário da cultura política


comunista cubana na década de 1950
Ana Paula Cecon Calegari1

Introdução
Os comunistas cubanos fundaram em 1925 o Partido
Comunista de Cuba (PCC) que esteve vinculado, desde seus
primórdios, com a União Soviética e com a matriz ideológica do
bloco comunista. De sua fundação até 1938, o PCC permaneceu na
clandestinidade e só conseguiu o registro eleitoral num momento
de abertura política dirigida pelo general Fulgencio Batista que, já
na década de 1930, comandava o exército cubano e imprimia suas
decisões ao poder executivo nacional. O período compreendido entre
os anos de 1940 e 1952 corresponde à Segunda República cubana,
época de normalidade democrática com a ocorrência de eleições
periódicas e liberdade política. Neste contexto, o PCC, que passou a
chamar-se Partido Socialista Popular (PSP) em 1944, participou de
amplas coalizações, fortaleceu-se internamente com o crescimento do
número de seus filiados, definiu mais claramente um projeto político
voltado, principalmente, para questões trabalhistas e para a ampliação
do poder estatal, inseriu-se em sindicatos e consolidou sua organização
interna. O cenário político mudou quando, em 10 de março de 1952,
o general Batista deu um golpe de Estado e instalou uma ditadura no
país. Ao golpe soma-se o acirramento da Guerra Fria e a perseguição
aos comunistas em toda a América Latina, região marcada por
relações econômicas e políticas bem próximas aos Estados Unidos e
ao capitalismo financeiro.
Este artigo insere-se nas questões colocadas anteriormente
e tem como objetivo analisar alguns elementos da cultura política dos
comunistas cubanos, filiados ao Partido Socialista Popular, durante
1  Graduada em História na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e
mestra pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente, cursa
o doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e desenvolve uma
pesquisa sobre a cultura política comunista em Cuba nas décadas de 1950 e 1960..

233
Das utopias ao Autoritarismo

a década de 1950. A seleção temporal justifica-se pelas mudanças


conjunturais daquele decênio, que provocaram alterações nas
concepções partidárias, especialmente os impactos do XX Congresso
do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) em 1956, o fomento
dos Estados Unidos à ditadura insular de Fulgencio Batista e o forte
anticomunismo que havia dentro de Cuba. O texto divide-se em dois
momentos. Inicialmente, apresentaremos alguns referenciais teóricos
que balizaram a investigação e, logo após, abordaremos três questões
relacionadas à cultura política, quais sejam: as representações das
relações de Cuba com os Estados Unidos, a referência à URSS como
modelo de sociedade e o processo de desestalinização dentro do PSP.
Não é a pretensão do texto fazer uma inserção profunda em tais
questões, mas destacar os elementos mais marcantes que influenciaram
na trajetória dos comunistas cubanos naquela temporalidade.
O partido é um objeto privilegiado para o estudo da história
política por ser uma instituição que tem como função a mediação
política entre as necessidades sociais da população e um discurso ou
projeto que reúne tais demandas (BERSTEIN, 2003, p. 61). De acordo
com Marc Lazar (1999), quanto aos partidos políticos, “seus objetivos,
suas referências fundadoras, suas estruturas organizacionais, suas
maneiras de conceber e de fazer a política, seus tipos de militantes ou
de responsáveis diferem fortemente, o que tem algum vínculo com
sua cultura.” Esta passagem é importante devido a ressalva quanto
às especificidades sociais, históricas e conjunturais, pois os partidos
não funcionam de maneira monolítica, mas, ao contrário, agem de
forma dialética e nem sempre seu comportamento apresenta-se ao
pesquisador de modo coerente com os ideais políticos defendidos
pela agremiação. Também os aspectos locais e nacionais influenciam
a configuração dos partidos e sua cultura política, cabendo o
pesquisador a atenção quanto aos seus elementos genuínos e aqueles
que são compartilhados com outras culturas ou grupos, pois, como
salientou Serge Berstein (1998, p. 354), existe, no interior de uma
nação, zonas de abrangência onde valores são partilhados por diversas
culturas políticas.
Ainda dialogando com Serge Berstein, o autor apontou

234
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

também que os partidos são “depositários de uma cultura política


com a qual comungam seus membros e que dá origem a uma tradição,
muitas vezes transmitida através de gerações” (2003, p. 69). E, segundo
o autor, é através da categoria de cultura política que o pesquisador
pode compreender “as motivações que levam os homens a adotar
este ou aquele comportamento,” além de ser possível entender as
“experiências vividas” (1998, p. 359), individuais ou coletivas, e as
motivações dos atos políticos a partir da compreensão dos elementos
partilhados por grupos “que reclamaram dos mesmos postulados e
viveram as mesmas experiências” (Idem). Deste modo, a validade do
conceito para a análise dos partidos reside na preocupação com as
questões subjetivas, como a crença em mitos, os rituais, as emoções na
tomada de decisão e colocam em questão a influência destes elementos
no comportamento político dos homens e mulheres que compõem as
organizações.
Conforme a definição de Marc Lazar (1999), a categoria de
cultura política
representa um conjunto de ideias, de valores, de símbolos
e de crenças e uma multidão diversificada de regras e
de práticas que, combinadas, dão um significado ao
real, estabelecendo as regras do jogo, formando os
comportamentos políticos e conduzindo à inculcação de
normas sociais.
Tanto Lazar (1999) quando Rodrigo Patto Sá Motta (2013,
p. 18) destacaram que o estudo da categoria passa pela preocupação
com as representações criadas pelos grupos humanos (intelectuais,
partidos, etc.), as quais inclui a “ideologia, linguagem, memória,
imaginário e iconografia, implicando a mobilização de mitos,
símbolos, discursos, vocabulários e diversa cultura visual [...].”
Focaremos o estudo em uma cultura política específica, que
é a comunista. Corroboramos com Rodrigo Patto Sá Motta (2013, p.
18), para quem
o estudo do comunismo como cultura política pode
oferecer compreensão mais rica das motivações para
adesão [à causa política], que não se restringiram à

235
Das utopias ao Autoritarismo

identidade ideológica ou à defesa de interesses de classe.


É importante lembrar que para o caso do PSP, sua cultura
política esteve relacionada com os valores e projetos formulados na
União Soviética, pois o partido nasceu e se manteve vinculado aos
pressupostos da Terceira Internacional.2 Consoante com o historiador
Geoff Eley (2005, p. 295), as instruções emitidas pelo V Congresso do
Comintern, em 1924, eram para formar os PC’s à imagem bolchevique
e a “bolchevização” significava o centralismo estrito de organização, o
respeito disciplinado pelas diretivas do Comintern e da teoria leninista,
enfim, o estabelecimento de uma linha uniforme centrada no modelo
russo. Para o estudo do objeto em questão é fundamental também
considerar a importância que teve a ascensão de Stalin e o trabalho
da Terceira Internacional na difusão de símbolos, ritos, ideologias e
representações que emanavam na experiência da Revolução Russa
e do governo da União Soviética, cuja hegemonia sobre os partidos
comunistas do ocidente foi enorme a partir da década de 1920. Esta
influência, porém, não excluiu a presença de aspectos genuínos
relativos às especificidades nacionais no corpo documental e na ação
política dos cubanos.
Por exemplo, um elemento simbólico bem marcante é o
emblema do PSP (imagem 1), formado por um machete e um martelo
apoiados sobre um livro, ao invés do uso da foice e do martelo. O
machete é a representação do instrumento usado pelos trabalhadores
no corte da cana, principal atividade econômica de Cuba, o martelo
aludia às atividades industriais desenvolvidas pelos “obreiros”,
referência aos trabalhadores industriais, e o livro pode significar
tanto o estudo do marxismo, defendido ferrenhamente pela direção
partidária como condição fundamental para a militância de seus
membros, quanto os textos teóricos que guiavam os comunistas, cuja
referência intelectual (Karl Marx, Engels, Lenin e Stalin) era muito
mais clara do que aquela que orientava os outros partidos nacionais.
Outra característica que marcou fortemente o PSP foi a referência aos

2  O termo refere-se aos vários movimentos comunistas a nível internacional. A


partir da Revolução Russa iniciou-se a etapa da Terceira Internacional ou Comintern,
cujo objetivo era criar uma União Mundial das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

236
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

heróis cubanos que lutaram nas guerras de independência do século


XIX, como José Martí3 e Antonio Maceo4. Assim como destacou
Marc Lazar para o caso do PCF, também o PSP “inventou tradições”
quando colocava seus membros como os verdadeiros continuadores
da luta pela independência política e econômica da ilha, uma vez
que, na concepção do partido, Cuba ainda não havia alcançado
sua emancipação por causa da ingerência norte-americana nos
interesses insulares. Os comunistas cubanos intitulavam-se como “os
verdadeiros mambís”, referindo-se aos lutadores pobres e camponeses
que atuaram da Guerra de 18955 e colocavam-se como herdeiros
daquele comportamento político que previa a doação pessoal na luta
pela emancipação. Podemos afirmar que a referência à história e aos
símbolos nacionais eram usados pelo PSP para justificar seu projeto
político e tornar os elementos ideológicos de sua cultura política
coerentes com a realidade insular. Interesse-nos agora avançar um
pouco no debate sobre as questões centrais do artigo para mostrar
como as representações mudaram ou foram mantidas de acordo com
as alterações conjunturais da década de 1950.

Representações e imaginário
As representações da história cubana feitas pelos comunistas
fornecem um caminho para a investigação de sua cultura política
e há dois elementos que aparecem de maneira predominante dos
documentos partidárias: o nacionalismo e o anti-imperialismo. Os

3  Intelectual cubano que organizou o Partido Revolucionário Cubano e invadiu


a ilha em 1895 dando início a guerra que levaria a independência do país em relação
à metrópole espanhola. As preocupações intelectuais de Martí voltaram-se para a
questão da construção da nacionalidade e da independência insular.
4  General do exército libertador de 1895. O PSP recorreu bastante à figura de
Maceo por causa do papel que ele desempenhou na libertação da ilha e por ele ser
negro, pois a defesa da igualdade racial era um elemento bastante marcante do projeto
partidário.
5  A guerra de 1895 durou três anos, opôs das tropas espanholas e os exércitos
cubanos e levou à independência da ilha. Nos meses finais do conflito, após o
bombardeio de uma navio estadunidense por tropas espanholas, os EUA decidiram
enviar seu exército para Cuba a fim apoiar as forças “nacionalistas.”.

237
Das utopias ao Autoritarismo

comunistas cubanos se consideravam os verdadeiros representantes


dos interesses da nação e elaboraram seu projeto político sempre
apontando para as especificidades nacionais, com ênfase para a
desigualdade social e o atraso econômico, além, é claro, de acionarem
os “mambís,” as lutas de independência e os heróis da pátria, como dito
anteriormente. Já o anti-imperialismo referia-se à negação e denúncia
do comportamento político e econômico norte-americano em relação
à Cuba e aos países subdesenvolvidos, basicamente, e à condenação
da intromissão estadunidense nos assuntos internos insulares,
inclusive por causa do apoio às ditaduras cubanas da primeira metade
do século XX e às intervenções armadas na ilha.6 Expressões como
economia deformada, semicolonial e semifeudal faziam parte do
vocabulário socialista popular e eram usadas para justificar o estágio
de desenvolvimento econômico insular. Nesta época, o movimento
comunista internacional acreditava em etapas do desenvolvimento
socioeconômico e na leitura dos cubanos, a ilha vivia um período
de inserção no capitalismo, mas ainda possuía traços da colonização
espanhola, como a economia agrária dependente do mercado
externo. A superação desta etapa era prevista no projeto político do
PSP como condição para a industrialização do país e a realização da
revolução, pois, como havia previsto Karl Marx, esta só se daria em
países industrializados. O PSP também relembrava a Emenda Platt,
usando-a para provar que Cuba não havia alcançado verdadeiramente
sua independência política e, mesmo após a revogação dela em 1933,
as ingerências da embaixada norte-americana orientavam a política
interna e externa de Cuba de uma maneira bem profunda.
Os Estados Unidos eram também associados aos grandes
capitalistas que exploravam os povos oprimidos da América Latina
e quase sempre eram representados como o Tio Sam numa versão
esquelética com feição maldosa e ardilosa (imagem 2), normalmente
numa posição de ataque, pronto para cometer algum ato de violência
ou protegendo seus próprios interesses. A eliminação da dependência
ao capital norte-americano e à influência dos EUA sob a ilha era
6  As ocupações militares estadunidenses na ilha estava respaldadas pela citada
emenda Platt, que foi anexada à constituição cubana de 1901 e em três ocasiões as
tropas norte-americanas ocuparam Cuba: de 1906 a 1909, em 1912 e de 1917 a 1923.

238
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

entendida como condição para a realização da revolução em Cuba, pois


a independência em relação ao “norte imperialista” abriria caminho
para a soberania nacional, a liberdade na tomada de decisões políticas
e a ruptura dos vínculos de exploração econômica e subordinação da
ilha frente aos EUA. É importante lembrar que o anti-imperialismo
fazia parte de outras culturas políticas insulares, especialmente
as de esquerda, que recorriam a argumentos semelhantes aos dos
comunistas, enfatizando as discrepâncias dos vínculos econômicos
entre os dois países.
Na década de 1950, o discurso antiamericano se acentuou na
documentação partidária. Os comunistas acusavam os Estados Unidos
de sustentar diplomaticamente a ditadura, de apoiar a Confederação
dos Trabalhadores Cubanos (CTC) na retirada do direito dos
trabalhadores, na contenção das greves e na formulação de acordos
prejudiciais para a ilha e, principalmente, de fornecer armas para
Batista e disponibilizar a base de Guantánamo para o abastecimentos
de aviões que bombardeavam os rebeldes no Movimento 26 de
Julho na Sierra Maestra. Na passagem abaixo, observa-se o teor das
denúncias feitas pelo PSP:
o imperialismo, que apoiou e colocou Batista no poder, o
sustenta com suas armas, claro que fazendo pedacinhos
a soberania, a honra e o decoro nacionais. Os cubanos
que combatem o despotismo terrorista e sangrento de
Batista são atacados por armamentos entregues pelo
próprio imperialismo. Não pode se dar mais escandalosa
e denunciadora prova de que o imperialismo sustenta o
regime e afasta quem se opõe a ele (PSP, 12/6/1957, p. 4)
Para os comunistas, a perpetuação do regime ditatorial
era associada à sustentação militar e política fornecida pelos norte-
americanos. Este apoio era entendido como uma forma de limitar
a soberania insular, pois o povo cubano era contrário ao regime e,
consequentemente, apoiá-lo era uma forma de frustrar os anseios
nacionais. Podemos afirmar que, ao longo dos anos 1950, com o
acirramento da Guerra Fria, o posicionamento da ditadura ao lado
dos Estados Unidos e o fomento deste país ao regime insular, o ataque
ao imperialismo norte-americano foi acentuado pelos comunistas,

239
Das utopias ao Autoritarismo

que o consideravam como o causador principal dos males nacionais.


Outro elemento marcante na cultura política comunista foi
a referência à URSS. A Revolução Russa, de 1917, que modificou a
influência das diversas ideologias que coexistiam por aqui e suplantou a
influência do anarquismo no meio sindical. O leninismo, diz José Aricó
(1987, p. 436), se converteu, na América Latina, na ideologia de todas
as forças que surgiram no pós-guerra com objetivos de transformação
política e social. A União Soviética, a “pátria do socialismo,” foi
uma referência política para todos os partidos comunistas pois era
vista como um modelo de sociedade e revolução a ser seguido. Tal
modelo, para David Priestland (2012, p. 226), implicava na devoção
“ao coletivismo, ao trabalho e à produção, e sua criação – a classe
trabalhadora industrial – era agora o herói da história.” Na América
Latina, região onde os mais importantes PC’s formaram-se após 1917
e foram fruto dos esforços da Terceira Internacional, a referência à
URSS foi um elemento marcante da cultura política comunista.
Alguns dos traços mais comuns da manifestação desta cultura
era a publicação de reportagens em comemoração ao aniversário
da Revolução Russa, de Stálin e do surgimento da União Soviética
(URSS) em 30 de dezembro de 1922. Textos produzidos na URSS e no
leste europeu circulavam dentro de Cuba, sejam em edições especiais
impressas pela editora Páginas, que pertencia ao PSP, seja junto à
revista Fundamentos7 ou ao jornal Notícias de Hoy.8 Os comunistas
cubanos defendiam os avanços sociais e econômicos do bloco
socialista e também o estabelecimento de relações econômicas entre
Cuba e os soviéticos alegando a validade financeira do rompimento
da cortina de ferro. A União Soviética era representada como o país
da liberdade e da abundância, da paz e do socialismo. Em 1952, Aníbal
Escalante, diretor de jornal Notícias de Hoy, e Blas Roca, secretário
7  Revista mensal de artigos teóricos com interpretações dos marxistas sobre a
conjuntura, a história e os problemas nacionais. Fundamentos foi lançada em 1941 e
saiu, com periodicidade irregular na época da ditadura de Batista, até 1959.
8  Notícias de Hoy surgiu em 1938, sua sede foi destruída em 1949 e a edição do
periódico foi interrompida por um ano. Hoy voltou a ser publicado entre 1950 e 1953,
quando, neste ano, a ditadura fechou o jornal, que só voltou a circular após a vitória
rebelde de 1959.

240
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

geral do PSP, participaram do XIX Congresso do Partido Comunista


da URSS e após o retorno à ilha, depois de dois meses de estadia no
mundo socialista, publicaram no citado jornal inúmeras reportagens
sobre o que consideravam como as maravilhas do comunismo. No
editorial do 7 de dezembro de 1952, Escalante narrou a experiência
da viagem apontando a evolução do cenário social, a “sensação de
novo, de grandeza, de gloria e felicidade, de incomovível segurança e
fortaleza” que se vivia na União Soviética, escreveu ele:
Eu estive ali em 1937, quando já a vida se fazia muito
mais fácil, quando haviam apagado os rastros da primeira
guerra imperialista, da guerra civil e da agressão de 14
potências contra o nascente poder do proletariado. Hoje,
porém, o progresso enorme de 1937 parece um sonho
remoto. Hoje a vida floresce esplendorosamente no país
de Stálin (Escalante, 7/12/1952, p. 8)
Aníbal Escalante continuou a coluna abordando a
superação do mundo socialista após a devastação da Segunda Guerra,
pois era visível, na perspectiva dele, a abundância reinante e o avanço
da economia naquela região. A União Soviética representava para os
PC’s uma dimensão teleológica de sua doutrina, pois a finalidade para
a qual tais partidos foram criados era a realização de uma revolução
que provocaria o fim das classes sociais, a redistribuição dos meios
de produção na fase socialista e a implantação do comunismo.
Recorrer ao exemplo da URSS fazia parte deste imaginário que tinha
imbuído em si uma perspectiva de futuro bem definida e inevitável,
pois a crença na teoria marxista-leninista-estalinista implicava a
convicção na infalibilidade do fim do capitalismo e no protagonismo
dos trabalhadores na construção do novo mundo comunista, cujo
exemplo da Revolução Russa era vanguarda a ser seguida.
As representações feitas pelo PSP podem ser equiparadas
àquelas observadas por Jorge Ferreira para o caso brasileiro. Para o
autor (2002, p. 195/98), a URSS era o sonho daqueles que queriam
construir uma nova sociedade, era representada por meio de seus
grandiosos monumentos arquitetônicos, pelos números de seu
crescimento econômico, pela rapidez em que as cidades devastadas
pela guerra civil foram reconstruídas e pela industrialização acelerada,

241
Das utopias ao Autoritarismo

enfim, a URSS era o local da utopia realizada.


Na ocasião dos 41 anos de existência da União Soviética,
em 1958, os comunistas cubanos publicaram uma reportagem com
informações relativas ao crescimento industrial daquela região,
comparando ora com o cenário produtivo anterior à revolução,
ora com a produção dos EUA. Os dados econômicos serviam para
justificar o bem estar social desfrutado pela população, como a
ausência de crises cíclicas, a educação e a assistência médica gratuitas,
os baixos preços dos alugueis e dos artigos de consumo, o controle da
inflação, o crescimento do consumo per capita de alimentos, móveis,
roupas e calçados. Além disso, a União Soviética era vista como um
exemplo de democracia, local onde não havia violação do domicílio
e de correspondência, onde havia liberdade de imprensa, reunião e
desfiles, e a possibilidade de revogar o mandato dos representantes
que não cumprissem seus deveres. Por todos estes avanços, era
comum exaltar e saudar os líderes e o exemplo soviético, como se vê
na passagem:
Por todo seu grandioso significado, pela demonstração
que entranha da invencível superioridade do socialismo,
a humanidade toda saúda a URSS em 41° aniversário.
Os obreiros e camponeses de nossa pátria, o melhor de
nosso povo, em meio ao combate que livra por sua própria
democracia e contra a opressão estrangeira, se soma a esta
saudação emocionada e universal (PSP, 5/11/1958, p. 5)
Ao lado da referência à URSS estava a exaltação de Josef
Stalin como o guia espiritual da humanidade e como a incorporação
dos valores e do ideário da Revolução Russa, sendo este outro
elemento bem marcante da cultura política comunista. No editorial da
revista Fundamentos de novembro de 1944 consta o seguinte: “Stalin
representa hoje o poder de uma nação unida, sem antagonismos
políticos, sem divisões de classes, sem disputas raciais ou religiosas. Por
esta situação extraordinária, quase se pode dizer, quando fala Stalin, que
fala a União Soviética” (PSP, 11/1944, p. 395). A exaltação à URSS e à
Stalin caminhou em paralelo e esteve vinculada por algumas décadas
no imaginário comunista. Stalin tornou-se secretário geral do PCUS
em 1922 e a influência de seu pensamento no movimento comunista

242
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

internacional foi predominante entre as décadas de 1930 e 1950.


Em fevereiro de 1950 foi publicado em Fundamentos
um texto de Blas Roca intitulado “A honra de ser estalinista,” uma
homenagem pela comemoração dos 70 anos de idade do líder russo.
No texto, Stalin é apresentado como o responsável pela libertação do
mundo do exército nazista, pela vitória dos aliados na Segunda Guerra
Mundial e como o paladino da paz. Além disso, suas qualidades
pareciam inesgotáveis e representavam os ideais do verdadeiro homem
novo comunista. Na passagem abaixo consta a exaltação àquela figura:
Nós vemos em Stalin ao líder valoroso e genial da classe
obreira, ao sábio maestro, ao guia sagaz e firme em cuja
palavra sempre podemos confiar, em cuja orientação
podemos encontrar sempre a via segura da luta e do
triunfo. Nós estamos orgulhosos de que nossa classe, a
classe obreira; de que nossa causa, a causa do socialismo,
tenha produzido um líder assim, tão abnegado, tão firme,
tão valente, tão honrado, tão sábio, tão previsor, tão audaz
e cauteloso ao mesmo tempo, tão flexível na tática e tão
intransigente com os princípios, como Stálin; um líder
que, irmão de armas de Lenin, ao que ele mesmo chamou
“a águia das montanhas” e de quem foi o colaborador mais
próximo, pode ser chamado com razão o Lenin de hoje
(Roca, 2/1950, p. 104)
De acordo com Robert Mcneal (1986, p. 268/70), a ideia
de que “Stalin era Lenin de hoje” foi uma das formulações mais
repetidas dentro do campo socialista. Ainda segundo o autor, a
partir da morte de Lenin, em 1924, iniciou-se um processo de culto
a este líder bolchevique, incluindo a mumificação e exposição de seu
corpo no mausoléu localizado, ainda hoje, na praça vermelha, em
Moscou. Josef Stalin canalizou o culto à Lenin, colocando-se como
o seu maior e legítimo herdeiro. A primeira manifestação pública de
celebração à Stalin, segundo Jorge Ferreira (2002, p 220), aconteceu
na comemoração de seu 50° aniversário, em 1929, e o culto a ele
desenvolvido a partir de então foi estimulado pelo PC da URSS. O
pravda, jornal do PCUS, publicou quase que diariamente, na década
de 1930, homenagens ao líder, ajudando a construir a imagem de
Stalin como o “amigo das crianças,” o “pai dos povos” e o “guia dos

243
Das utopias ao Autoritarismo

proletários” (Idem, p. 221).


Diversos textos de Josef Stalin foram publicados também em
jornais e revistas do Partido Socialista Popular e vinham acompanhados
de comentários sobre as qualidades do líder. Era comum também
a comemoração feita pelo partido na data do aniversário de Stálin,
saudando-o por seus feitos históricos e desejando-o vida longa. Este
processo de culto pode ser percebido já no começo da década de
1940, quando neste ano noticiou-se pela primeira vez a celebração
do natalício do líder soviético na primeira página de Notícias de Hoy.
Quando retornou da viagem feita na ocasião do XIX Congresso do
PCUS, Aníbal Escalante, ao ser inquirido sobre Stalin, não poupou
elogios e respondeu o seguinte:
Stalin, o grande guia, o chefe da humanidade, o homem da
paz e da independência dos povos, o teórico e o prático da
causa do proletariado e dos camponeses, o homem mais
temido pelos bandidos imperialistas e o mais amado pelas
massas de todos os confins, o grande Stalin está muito bem
de saúde, forte, animoso, abrindo todos os dias caminhos
para o progresso da ciência marxista-leninista, a ciência
da construção do mundo novo, a ciência da salvação da
humanidade, como o demonstra sua formidável obra
“Problemas do socialismo na União Soviética” (que
cimenta as bases teóricas da passagem gradual da sociedade
socialista à comunista) e seu genial discurso de apenas dez
minutos, que abriu novas perspectivas à humanidade na
luta pela democracia, a independência nacional e a paz.
(Escalante, 7/12/52, p. 8)
Na ocasião do falecimento de Stalin, o jornal, durante dias,
lamentou o acontecido. Na edição de 6 de março de 1953, na coluna
“notas do diretor,” novamente Aníbal Escalante escreveu que Stalin
era imortal, pois o seu legado não morreria, assim como o leninismo
continuou guiando os comunistas mesmo depois do falecimento de
Lenin (PSP, 6/3/53, p. 6). Ambos os líderes entraram para o panteão
dos heróis comunistas e continuariam guiando os povos de todo o
mundo com a teoria e o exemplo que deram em vida (imagem 3).
Naquela ocasião ainda, o PSP enviou mensagens de condolências
ao PCUS e organizou homenagens póstumas à Stalin celebradas em

244
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

reuniões do partido. As referências à Stalin e ao seu exemplo não se


restringiram ao campo das ideias e tiveram, inclusive, desdobramentos
na forma como os PC’s se organizaram internamente. De acordo com
Geoff Eley (2005, p. 297), o arranjo organizativo que predominou
na época estalinista implicava na tomada burocrática de decisões
dentro dos partidos, na redução da democracia interna partidária, na
conformidade acrítica à linha da URSS e obediência à Moscou, sendo
que todos estes foram características percebidas na trajetória do PSP.
O apego aos referenciais soviéticos, que se apresentaram
muitas vezes como um culto, uma crença, não pode ser explicado
levando em conta que os homens tomam somente decisões racionais.
Rodrigo Patto Sá Motta (2013, p. 17) chamou a atenção para o fato
de que quando os homens tomam decisões há diversas opções que
orientam suas ações, “e os fatores culturais (sentimentos, identidade,
valores) podem exercer maior ou menor influência, a depender do
contexto e das escolhas dos atores.” Nesta mesma perspectiva, David
Priestland no decorrer do capítulo “Homens de Aço,” contido no
livro “A bandeira vermelha,” deu alguns exemplos do envolvimento
dos russos na “missão messiânica” lançada pela Revolução de 1917 e
defendeu que nem sempre a adesão ao regime e ao bolchevismo era
motivada pela obrigação ou pela força. O autor considerou fatores
como a cultura, a crença naquele modelo e a perspectiva de um futuro
melhor como motivadores do comportamento daqueles homens.
Em suma, os fatores ideológicos, a vinculação a um corpo teórico,
a um círculo de relações políticas influenciaram na forma como os
comunistas representaram os referenciais de sua cultura e sem esta
perspectiva dificilmente entende-se os motivos para a adesão ao
comunismo e a constituição dos elementos daquela cultura política.
O abandono da referência à Stalin só aconteceu em
fevereiro de 1956, quando os crimes e as arbitrariedades políticas
cometidos por ele foram denunciados por Nikita Kruschev no XX
Congresso do PCUS. No evento, conforme David Priestland (2012,
p. 389), aconteceu uma reunião “secreta” composta somente por
membros do PCUS e nela Kruschev destacou a responsabilidade de
Stalin pela tortura e morte de “comunistas honestos e inocentes”, pela

245
Das utopias ao Autoritarismo

deportação de uma grande quantidade de pessoas e pela traição dos


princípios leninistas. O processo de desestalização, isto é, o abandono
da referência ao líder como o grande exemplo a ser seguido pelos
comunistas foi lento e com pouca reflexão dentro do Partido Socialista
Popular, ao menos segundo os documentos públicos veiculados pelo
PSP na época. As informações que chegavam à ilha vinham das
agências norte-americanas de informação e o partido questionou
inicialmente a veracidade dos primeiros relatos procedentes do norte.
Somente depois de alguns meses após o fim do Congresso foi que os
cubanos tiveram acesso ao informe de Kruschev na íntegra. Só então
admitiram os eventos que ocorreram na URSS reconhecendo que
Stalin havia cometido um erro ao estimular o culto à personalidade,
mas não admitiram ou, pelo menos, não publicaram nada sobre os
crimes cometidos por ele. No exceto abaixo aparece a posição do PSP
diante daquela conjuntura:
As agências imperialistas apresentam os comunistas daqui,
confundidos e sem saber o que fazer ante o que chama de ‘o
caso Stalin.’ [...] A verdade é que o relevante papel de Stalin
na história não poderá ser apagado por ninguém, o que
não impede que seja necessário – como fez o congresso do
PC da URSS – criticar para corrigir os erros que teve sua
obra. (PSP, 28/3/1956, p. 1).
Ainda no calor dos acontecimentos, o bureau executivo
do Comitê Central do PSP se reuniu em abril daquele ano para
adotar medidas concernentes aos recentes eventos. Das resoluções
da reunião ficou decidido manifestar o acordo do partido às críticas
feitas à Stalin, por corresponderem à violação do princípio leninista
de direção coletiva e porque a postura de Stalin havia causado danos
à causa comunista. Decidiram também publicar cinco mil exemplares
do informe de Kruschev, bem como refletir, em outros momentos,
sobre a crítica e autocrítica feita no XX Congresso (PSP, 11/4/1956,
p. 1). Como destacou Jorge Ferreira (2002, p. 291), “[...] as mensagens
vindas de Moscou abalavam certezas, desestabilizavam crenças e
alteravam relatos míticos.” E o resultado desta assertiva de Ferreira foi
o desaparecimento progressivo do nome de Stalin na documentação
do PSP, bem como a referência aos seus feitos e méritos, tão comuns

246
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

antes do XX Congresso. Na reportagem sobre o 41° aniversário da


URSS, citada anteriormente, consta nome de Lenin, Marx e Engels,
mas a referência à Stalin já havia desaparecido.
Ainda em abril de 1956, o PSP publicou um folheto com
um texto retirado do jornal pravda, intitulado “Por que o culto à
personalidade é alheio ao espírito do marxismo-leninismo?”. O
conteúdo do documento era uma sistematização daquele assunto tão
recorrente no mundo soviético e, apesar de louvar alguns méritos de
Stalin, reconhecia o erro do líder ao estimular o culto à sua pessoa. O
discurso defendido pelo partido era uma repetição das críticas já feitas
dentro da URSS, de que o culto à personalidade era oposto à ideia de
direção coletiva e do centralismo democrático.
Segundo Franz Marek (1987, p. 311), um dos efeitos deste
processo de desestalinização, conhecido também como degelo, foi
o desenvolvimento, no ocidente, do chamado “renascimento do
marxismo,” marcado pela remoção de alguns traços do período
estalinista, especialmente o conteúdo daquilo que se conhecia como
“marxismo-leninismo,” pela recuperação e releitura de textos de Karl
Marx, assim como pela reaproximação e descoberta dos trabalhos
de Gramsci, Rosa Luxemburgo, Lucaks e da Escola de Frankfurt. Ao
curso destes acontecimentos, no decorrer dos anos 1960, acrescenta-
se o fortalecimento do terceiro-mundismo, a nova relação da Igreja
Católica com os movimentos sociais após o Concílio Vaticano II,
as guerras de independência na descolonização afro-asiática e os
conflitos armados, muitos dos quais inspirados na Revolução Cubana,
evento que provocou ainda mais alterações na cultura política
comunista insular e novamente a mutação e imutabilidade mostrará
os artifícios políticos do PSP para sobreviver em meio a um processo
que transformou profundamente a ilha.

Considerações finais
Pela análise da documentação partidária, notamos as
transformações e o enraizamento de ideias e comportamentos na
cultura política dos comunistas cubanos, bem como sua transformação

247
Das utopias ao Autoritarismo

de acordo com as mudanças conjunturais. Quando observamos as


representações feitas sobre os Estados Unidos, fica claro a acentuação
das denúncias contra a ingerência norte-americana na política insular
nos anos 1950, contra o sufocamento econômico da ilha, cuja culpa
era atribuída aos EUA, e o fomento da ditadura devido ao apoio
diplomático e fornecimento de armas. Elemento antigo da literatura
partidária, o anti-imperialismo era visto como o principal entrave
do desenvolvimento insular, causa da frustação da independência de
Cuba e consequente limitação de sua soberania, a qual estava ainda
mais comprometida num contexto em que Batista se aliou ainda mais
aos norte-americanos.
A referência à União Soviética se manteve como o norte
político dos cubanos. A “pátria do socialismo” significava uma
dimensão teleológica dos PC’s e alcançar a revolução e o estágio de
desenvolvimento social dos soviéticos era o objetivo para o qual foram
criados. Por isso, acreditamos que perenidade das referências à URSS se
justifica por ela estar no cerne da cultura política comunista ocidental
e pelos partidos terem se subordinado à Internacional Comunista,
de modo que este elemento, especificamente, estava profundamente
enraizado na cultura comunista. Uma forma de observar isso é avaliar
o abandono da referência à Josef Stalin a partir de 1956 quando,
após o XX Congresso do PCUS, foi determinado dentro da Rússia o
abandono do culto ao líder. O Partido Socialista Popular, obedecendo
as diretrizes vindas de seu campo de influência, seguiu as ordens
emanadas do bloco socialista e abandonou a referência e o culto
dedicado à Stalin já há duas décadas.
Como falamos, a cultura política deve ser analisada a partir
de uma dialética que imprime a ela transformações constantes, mas
não se pode esquecer que ela guarda elementos mais perenes, de difícil
transformação. Tanto Marc Lazar (1999) quanto Serge Berstein (1998,
p. 357) destacaram o caráter mutável ou adaptável da cultura política
como ações imprescindíveis para que ela não decline ou desapareça. O
comportamento do PSP em relação às questões analisadas mostrou o
quão adaptável foi o partido no que tange ao abandono das referências
à Stalin, mas também imutável quanto à vinculação e o culto à URSS

248
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

e ao anti-imperialismo. Estas opções políticas comprova, em nossa


perspectiva, o caráter maleável do comportamento dos comunistas e
acreditamos que esta é uma das razões para a longevidade da instituição
que existiu durante quase quatro décadas na história insular.

Referências:
Fontes:
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de 1952.
PARTIDO SOCIALISTA POPULAR. 41 años de socialismo victorioso.
Carta Semanal. Época 2°, número 273, 5 de novembro de 1958.
PARTIDO SOCIALISTA POPULAR. Comunicado del PSP. Sobre el CC
Congreso del PC de la URSS. Carta semanal, Época 2ª, número 139, 11 de
abril de 1956.
PARTIDO SOCIALISTA POPULAR. Editorial: Stalin. Revista Fundamentos,
ano IV, número 39, novembro de 1944.
PARTIDO SOCIALISTA POPULAR. La bancarrota de los imperialistas
y sus mentiras antisoviética. Carta semanal, Época 2ª, número 137, 28 de
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250
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

“Somos los reformistas, los revolucionarios, los


antiimperialistas de la Universidad”: relações entre
o movimento estudantil e a Nueva Canción no
Chile entre 1964 e 1973
Ulisses Malheiros Ramos1

Introdução
A Nueva Canción chilena foi um movimento musical
que surgiu durante a década de 1960, com uma produção
predominantemente relacionada às críticas sociais e à valorização da
cultura e elementos populares, sobretudo para a idealização de uma
identidade nacional, além da elevação das classes populares como
protagonistas das lutas políticas do país. Pretendemos demonstrar
algumas relações existentes entre esse movimento e a juventude
chilena que vivenciou as efervescências dos eventos ocorridos
na década de 1960, que consolidaram a juventude no campo das
discussões políticas. Nosso recorte é compreendido entre os anos de
1964 e 1973, período em que a Nueva Canción chilena se formou e
obteve destaque e, também, em que ocorreram episódios relevantes
ligados a participação da juventude universitária. Neste recorte
temporal, dois governantes exerceram a presidência no Chile:
Eduardo Frei Montalva, do Partido Democrata Cristiano (PDC), entre
1964 e 1970; e Salvador Allende, da Unidad Popular (UP), entre 1970
e 1973. Ambos os governos viveram os desdobramentos da Guerra
Fria, um conflito ideológico que influenciou de diferentes formas as
conjunturas internas dos países latino-americanos.
Pretendemos demonstrar como se configurou a relação
existente entre os desdobramentos das manifestações estudantis e
a formação e atuação do movimento da Nueva Canción no cenário
político do país, além de identificar como a atuação dos estudantes
foi representada pelo movimento da Nueva Canción em relação à
1 Mestrando pelo programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Espírito Santo.

251
Das utopias ao Autoritarismo

construção do Estado Popular planejado pelo governo Allende.

O contexto chileno entre 1964 e 1970: entre eventos políticos


e a inserção do movimento estudantil.
A Revolução Cubana foi um dos eventos mais marcantes
da conjuntura política latino-americana da Guerra Fria. A Revolução
ocorrida em 1959 e sua declaração como socialista em 1961 causou
uma série de reações na América Latina, sobretudo sobre as
possibilidades de novas revoluções ou a consolidação de governos
de esquerda. Em vista disto, os Estados Unidos, que antes de fins
dos anos 1950 não acreditavam em uma real ameaça comunista na
América Latina, recrudesceram suas relações com os países latino-
americanos. Houve, por exemplo, a criação da Aliança Para o
Progresso, que consistia no estabelecimento de uma cooperação entre
o país norte-americano e os países latino-americanos, com o intuito
de contornar os obstáculos econômicos e desenvolver políticas para a
resolução de problemas sociais, a exemplo da Reforma Agrária, com
o intuito de evitar a organização de sublevações como a de Cuba e
a proliferação do ideário comunista (YOCELEVZKY, 1987, p. 117).
Porém, não houve uma aceitação pacífica em relação ao programa.
A esquerda, por exemplo, considerava a Aliança um instrumento do
imperialismo norte-americano sobre a América Latina; enquanto os
setores que geralmente apoiavam as relações com os Estados Unidos
não concordavam com a realização de todas as reformas sociais
propostas pela Aliança. O Chile, por exemplo, foi um dos países que
participou, entretanto, o presidente Eduardo Frei, depois de alguns
anos, pela falta de resultados que ocorreu em seu governo, afirmou
sua decepção com o plano, escrevendo, inclusive, o artigo “A aliança
que perdeu seu rumo” (LACERDA, 2004, p. 130).
Entre as décadas de 1950 e 1960, a América Latina
passou, também, por mudanças socioeconômicas, não somente em
decorrência dos desdobramentos da Guerra Fria, mas também devido
a fatores como o avanço tecnológico e o crescimento populacional
urbano. O cenário foi propício para a proliferação de uma cultura

252
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

desterritorializada2 através dos meios de comunicação de massa, fato


que gerou um processo de suplantação de alguns aspectos culturais
nacionais (GARCIA, 2005, p. 16-17). A historiadora Tânia Garcia
coloca que, no âmbito cultural, este processo de suplantação pode ser
denominado como “aculturação”, ao mencionar que estas mudanças,
impostas de fora para dentro, provocaram manifestações
reativas na sociedade. Para determinados setores,
sobretudo aqueles ligados às artes de espetáculo – música,
cinema e teatro –, a maneira encontrada de se contrapor à
onda asfixiante de aculturação seria realçando a identidade
nacional (GARCIA, 2005, p. 17).
É importante destacar, portanto, que neste contexto os
diferentes campos, a exemplo do político e da cultura, estiveram
envolvidos e possuíam correlações. O Chile foi um dos países que
assinaram os acordos da Aliança. Neste caso, é importante ressaltar que
o país possuía problemas sociais graves, relacionados à participação
da população nas tomadas de decisão do Estado e pelas condições de
vida precárias de uma significativa parcela da população em relação
a uma minoria abastada (AGGIO, 1993, p. 17). Os índices ligados à
inclusão social aumentaram gradativamente entre as décadas de 1960
e 1970, entre o Governo Frei e o Governo Allende.
Em meio a este contexto, a Democracia Cristã levou às
eleições o candidato Eduardo Frei, propondo uma terceira via entre
o capitalismo e o socialismo, denominada “Revolução em Liberdade”,
com um plano de governo essencialmente voltado à realização de
reformas, visando, inclusive, a integração das camadas populares –
com respaldo nos acordos da Aliança Para o Progresso, que marcaram
as relações deste governo com financiamento norte-americano
(YOCELEVZKY, 1987, p. 135). Mas as reformas, em sua completude,
não obtiveram os êxitos planejados, a exemplo da Reforma Agrária
– no campo – e do programa de construção de moradias populares –

2  Este termo consiste em criações oriundas da cultura de algum local específico


e que, devido à difusão em larga escala através dos meios de comunicação, se tornaram
produtos e adquiriram um caráter desterritorializado, uma vez que passaram a ser
consumidas em várias partes do mundo, sendo afastadas de seu local de origem e
afetando a valorização da cultura genuína de outras regiões.

253
Das utopias ao Autoritarismo

na cidade –, visto que ambas foram obstruídas durante sua execução,


tendo dentre os fatores para tal decisão a insatisfação de parte da elite
que era aliada ao governo e se posicionou contrária a algumas medidas
(YOCELEVZKY, 1987, p. 117). No entanto, houve alguns avanços
no que diz respeito às lutas populares, a exemplo dos camponeses,
que puderam regulamentar suas organizações a partir de uma lei
promulgada durante o governo de Frei, que possibilitou, também,
a legalização de sindicatos de trabalhadores urbanos e mineiros
(GOMEZ, 1985, p. 15).
Para as eleições de 1970, a Unidad Popular, uma coalizão de
partidos resultante da união da esquerda chilena, venceu as eleições
com seu representante, Salvador Allende. Seu plano de governo
tinha como meta a construção, por meio das decisões democráticas,
de um Chile socialista, evento peculiar que ficou conhecido como
a “via pacífica ao socialismo”, haja vista a escolha por uma via não
armada. Seu Governo possuía como prioridades: “a) a nacionalização
das riquezas básicas e estatização de parte dos meios de produção; b)
organização de um sistema de participação dos trabalhadores; e c)
estabelecimento de uma nova ordem institucional – o Estado Popular”
(BORGES, 2013, p. 86).
Seu governo foi marcado pela tentativa de realizar estas
medidas, e obteve alguns êxitos, porém, também houve a formação de
uma forte oposição, que usou de uma série de paralisações e boicotes,
inclusive com suporte estadunidense (MAGASICH-AIROLA, 2013,
p. 44). A própria esquerda chilena, diante das reações da oposição,
obteve divergências em relação aos caminhos da “via chilena”, com
uma parcela da esquerda enxergando a via armada como um caminho
eficaz diante daquela conjuntura, opção esta que foi repudiada por
Salvador Allende (AGGIO, 1993, p. 143). As hostilidades ganharam
proporção e obtiveram seu estopim em 11 de setembro de 1973,
quando ocorreu o golpe que instaurou uma ditadura no Chile.
Os grupos da esquerda latino-americana da época tinham,
segundo Claúdia Gilman, que desenvolveu obras sobre o ideário
dos anos sessenta, a percepção “generalizada de uma transformação
inevitável e desejada do universo das instituições, da subjetividade,

254
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

da arte e da cultura, percepção sob a qual eventos verdadeiramente


inaugurais foram interpretados” (GILMAN, 2003, p. 40), a exemplo
da Revolução Cubana. Gilman coloca, ainda – inspirada por Albert
Hirschman para traçar um comportamento coletivo – que houve um
interesse repentino e intenso pelos assuntos políticos em diferentes
instâncias da sociedade (GILMAN, 2003). Os estudantes latino-
americanos, por exemplo, foram envolvidos por essas reações e
realizaram manifestações a partir de seus espaços, que, inicialmente,
eram as universidades. No Chile, por exemplo, desde 1964, pelo
menos, “muitas das chamadas Juventudes Políticas chilenas
começaram a manifestar explicitamente sua adesão a novos modelos
ideológicos e de ação política” (SAAVEDRA, 2005, p. 4). Os modelos
das Universidades chilenas, no entanto, não condiziam com os anseios
advindos destas transformações. A participação dos estudantes era
mínima nas tomadas de decisão, que ficavam a cargo das autoridades
universitárias. Não obstante, as mudanças vieram a ocorrer com
vigor em 1968, quando ocorreu uma Reforma Universitária no país.
O cientista político Carlos Huneeus, que realizou uma análise da
Reforma de 1968, sintetiza a mudança de rumo afirmando que:
ela modificou de maneira substancial o conteúdo e as
orientações das funções universitárias, estabeleceu uma
nova estrutura de autoridade e poder que permitiu a
participação da comunidade universitária no governo
das universidades e se esforçou por buscar uma melhor
inserção destes esforços para conquistar o desenvolvimento
e a modernização do país (HUNEEUS, 1988, p.8).
A questão é que a juventude passava por um período
importante de mudanças, em relação ao contexto chileno, de
comportamento diante da conjuntura do país. Certamente, ao
perpassarmos por 1968, não podemos deixar de ressaltar a relevância
da efervescência internacional que deixou este ano emblemático em
vários aspectos relacionados à juventude, que sofreu a influência de
fatídicos eventos internacionais como: o Massacre de Tlatelolco, sobre
os estudantes mexicanos; a repercussão da morte de Che Guevara,
assim como da Guerra do Vietnã; além dos desdobramentos dos
movimentos ocorridos na França e do aumento de debates sobre

255
Das utopias ao Autoritarismo

questões raciais, de gênero e sexualidade. A geração desta década, de


uma maneira mais generalista, vivenciou mudanças que foram, por
vezes, marcadas por rupturas no âmbito dos padrões de sociabilidade
e de estética (SAAVEDRA, 2005, p. 4).
Carlos Hunneus afirma que o contexto chileno de
estabilidade democrática possibilitou maior êxito nos anseios da
juventude em tornarem sua participação mais efetiva (HUNNEUS,
1988, p. 29). Diferentes autores que publicaram obras sobre a História
Política Chilena da primeira década do século XX, estendendo até o
fim do Governo Allende, fazem referências ao histórico institucional
chileno de estabilidade política, visto que desde os anos 1930 os
presidentes foram todos eleitos e cumpriram seus mandatos sem
interrupções reconhecidas como ilegais, além de destacarem possíveis
conquistas sociais e políticas das diferentes classes da sociedade por
meios democráticos. O historiador Alberto Aggio, por exemplo, ao
analisar as circunstâncias históricas que levaram a Unidad Popular ao
poder com um plano socialista de governo, destaca que:
contrastando com os modelos anteriores de construção do
socialismo, o discurso que sustentava o projeto estratégico
do governo encabeçado por Salvador Allende, sempre
explicitado na fala do presidente, enfatizava a ideia de que
o desenvolvimento econômico, a estrutura institucional,
a organização social e sobretudo as condições políticas
do Chile permitiam a adoção de ‘um segundo caminho
para o socialismo’, ‘dentro dos marcos do sufrágio, em
democracia, pluralismo e liberdade’(AGGIO, 1993. p. 16).
Esta estabilidade condicionou a Unidad Popular a lançar um
candidato e disputar as eleições, ainda que seu plano fosse a edificação
de um Estado socialista. Todavia, depois de eleito, vivenciando as
crises oriundas de diferentes fatores, sobretudo aqueles advindos
dos boicotes da oposição, Salvador Allende viu a esquerda aliada
ao governo dividir suas opiniões sobre os rumos da via chilena ao
socialismo. Pinto Vallejos (2005), em seu texto “Hacer la revolución
en Chile”, dispõe os partidos da esquerda chilena que protagonizaram
esse debate como “gradualistas” e “rupturistas”.
Vallejos destacou que todos os partidos de esquerda

256
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

possuíam o marxismo como essência e o plano de construir um


Estado Socialista e anti-imperialista, porém com visões diferentes em
relação à trajetória até a conquista política do poder. Os gradualistas
podem ser representados pelos partidos que defendiam a via não
armada, imbuídos pela tradição política chilena, enquanto os
rupturistas podem ser representados pelos partidos que defendiam
a via armada (VALLEJOS, 2005, p. 13-15). O Partido Comunista,
junto a uma parcela do Partido Socialista e do Movimento de Ação
Política Unitária não defendiam a via armada, mas acreditavam na
chegada gradual ao socialismo, realizando, primeiramente, algumas
reformas necessárias, acreditando que o sistema chileno possibilitava
este caminho. Por outro lado, o Partido Socialista, com a maioria de
seus adeptos, e a maioria dos adeptos do MAPU (Movimento de Ação
Política Unitária), além da Izquierda Cristiana e do Movimiento de
Izquierda Revolucionário, inspirados pelos acontecimentos de Cuba,
acreditavam na revolução armada como meio para a edificação de
um Estado Popular, pois, segundo sua concepção, seria uma forma de
evitar que a oposição se organizasse por meio de boicotes, por deterem
os meios de produção, ou por golpe civil-militar (ROLLE, 2005, p. 2).

O Movimento da Nueva Canción Chilena e a atuação da


juventude.
O movimento da Nueva Canción Chilena se formou em
meio a este contexto, no entanto, obteve diferentes fases, as quais
procuramos organizar através de alguns eventos em sua trajetória que
marcaram sua construção enquanto movimento de canção engajada –
desde os trabalhos precursores ao auge de sua repercussão.
A musicista folclorista Violeta Parra – de origem camponesa,
vinda do sul do Chile para Santiago na juventude – ainda na década de
1950 fez viagens pelo interior do Chile com a finalidade de recompilar
os ritmos folclóricos do país, incluindo a recuperação de instrumentos
típicos. Entretanto, Violeta Parra não se restringiu a questões rítmicas,
mas observou, também, a desigualdade social chilena, principalmente
com as pessoas do campo. Isto pode ser percebido a partir do estilo

257
Das utopias ao Autoritarismo

de composição da autora, que passou a compor canções com forte


influência rítmica folclórica, com letras que expunham críticas aos
problemas sociais do país e com críticas direcionadas as autoridades
chilenas (SIMÕES, 2010, p. 142). Violeta se suicidou em 1967, antes
de a Nueva Canción Chilena alcançar seu auge de produção, porém,
após sua morte, a musicista foi amplamente reconhecida como a
precursora do movimento.
Os filhos de Violeta Parra, Ángel Parra e Isabel Parra,
criaram, em Santiago, um espaço cultural chamado a Peña de Los
Parra, que contou com a presença de jovens músicos que vieram
a compor os principais nomes do movimento, para além dos
filhos de Violeta Parra, a exemplo de um dos principais expoentes
do movimento, o músico Víctor Jara. A Peña foi um importante
local de socialização destes músicos, onde foi discutida, pelos
jovens, a produção de grandes folcloristas, sobretudo a de Violeta
Parra, levando a debates sobre o conteúdo crítico em relação à
realidade social chilena que, posteriormente, veio a ser uma das
principais características do movimento. A Nueva Canción foi
mais reconhecida como tal a partir de 1969, com a realização do
Festival da Nueva Canción Chilena, quando os músicos alcançaram
maior reconhecimento em relação a seus estilos de composição e
performance (SCHMIEDECKE, 2014, p. 25-26).
No decorrer dos anos entre o governo de Eduardo Frei
Montalva e Salvador Allende, é possível analisar a maneira como
as letras das canções sofreram mudanças de estilo. A historiadora
Natália Ayo Schmiedecke, que dedicou seu mestrado e seu doutorado
ao estudo da Nueva Canción, concluiu que as mudanças das canções
estiveram sempre relacionadas às expectativas da população em
relação às melhorias de condições de vida. A autora ressalta que
durante o governo de Eduardo Frei Montalva o “presente” era
sempre retratado como um momento ruim que deveria ser superado,
enquanto o “futuro” era colocado como o período em que as melhorias
iriam acontecer, o que servia de motivação para seguir sem desistir.
Mais próximo ao fim do governo de Frei, com a esperança da eleição
de um governo popular, as letras possuíam um teor voltado para a

258
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

convocação à luta, acreditando que o esperado futuro estava iminente.


Já durante o governo Allende, as canções possuíam uma tendência a
exaltar a importância da participação popular na edificação daquilo
que havia sido esperado, da utopia que alimentou as esperanças
durante os anos de luta árdua: um governo popular que satisfizesse os
anseios sociais (SCHMIEDECKE, 2013, 172-173).
O envolvimento dos integrantes da Nueva Canción com
as manifestações políticas do país podem ser exemplificadas a partir
da participação de seus integrantes em partidos políticos, como era o
caso de integrantes filiados ao Partido Comunista, além da relação do
movimento com a juventude universitária. Diferentes grupos foram
formados por estudantes, como por exemplo: Humarí, Inti-Illimani
e Quilapayún. E o expoente Víctor Jara, ainda que não fosse um
universitário, teve uma vida ligada ao espaço da Universidade, visto
que o mesmo era, também, diretor de teatro e realizava apresentações
nos teatros universitários (SCHMIEDECKE, 2013, p. 86).
As Peñas, além da Peña de Los Parra, surgiram, também, em
diferentes cidades do Chile, sendo frequentadas, majoritariamente, por
estudantes universitários. O grupo musical Quilapayún, por exemplo,
iniciou sua trajetória fazendo apresentações na Peña de Valparaíso,
enquanto Inti-Illimani começou na Peña da Universidade Técnica
do Estado – ambos importantes grupos da Nueva Canción Chilena
(SCHMIEDECKE, 2013, p. 45). Os conteúdos engajados das canções
produzidas por esses jovens e a tendência pela releitura das canções
folclóricas com o uso de instrumentos típicos levavam ao cenário
musical chileno uma nova vertente musical. Para compreender este
destaque é importante a realização de um breve mapeamento do
cenário da música popular da época.
Em meados da década de 1920, surgiu nos setores urbanos
do Chile a Música Típica, após uma forte onda de imigração do
campo para cidade. Esta corrente tinha como principal característica
a evocação do passado da vida no campo, em suas letras, e a utilização
dos aspectos rítmicos da canção folclórica chilena bem próximos à
sua pureza – exceto pelo uso de técnicas vocais mais modernas, para
se adaptarem às cidades, que se configuravam como o novo espaço

259
Das utopias ao Autoritarismo

de reprodução das músicas (GONZÁLEZ, 1996, p. 26). A Música


Típica se tornou a principal corrente musical chilena, reconhecida
internacionalmente. Entretanto os setores progressistas do país
observaram e criticaram as letras desta corrente, que representavam
uma cultura mais elitista (a exemplo dos proprietários de terra), ainda
que oriunda do campo, julgando que esta não era a verdadeira imagem
do Chile, ressaltando a necessidade de se representar outros setores, o
que foi capaz de comprometer a legitimidade da Música Típica como
a canção popular chilena (GONZÁLEZ, 1996, p. 28). Já na década de
1960, esta vertente se encontrava desgastada.
Entre as décadas de 1950 e 1960 uma corrente alternativa
à Música Típica se formou no Chile, o Neofolclore. Em meio ao
processo de “aculturação”, os artistas neofolcloristas se voltaram às
músicas folclóricas chilenas no intuito de inaugurar uma vertente de
canção popular, visto o desgaste da Música Típica. As composições
surgidas deste empenho se relacionavam muito mais aos aspectos
formais da canção do que à representação social propriamente dita,
havendo uma maior preocupação com as vocalizações e outras
técnicas modernas. Devido a isso, parte dos músicos foi criticada
por criar “arranjos rebuscados” demais, que se distanciavam dos
aspectos populares (GONZÁLEZ, 1996, p. 29). No entanto, o
Neofolclore, durante seu período de apreciação, conseguiu despertar
o interesse de parte da população para as canções de raiz folclórica,
o que contribuiu para o cenário de formação da Nueva Canción
chilena, que surgiu posteriormente.
Schmiedecke destacou a importância das novas
características de estilo que vieram a ser identificadas com a Nueva
Canción diante da Música Típica e do Neofolclore, afirmando que
esses novos conjuntos inovaram ao compor canções instrumentais,
algo pouco comum, tendo também como importante particularidade
o “fato de muitos dos membros desses grupos serem filiados à
Juventude Comunista” (SCHMIEDECKE, 2013, p. 45).
Além da relação dos universitários com a Nueva Canción
através da participação em grupos musicais, os estudantes militantes
dos partidos de esquerda estiveram não somente em consonância com

260
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

o movimento em relação à luta política, por questões ideológicas, mas


contribuíram de maneira fundamental para a gravação e publicação
de discos de artistas do movimento. Natália Ayo Schmiedecke
explica, em seu artigo “A Discoteca del Cantar Popular (DICAP)
entre 1968 e 1973: música, engajamento político e sociabilidade na
Nova Canção Chilena”, que a indústria fonográfica dos anos 1960, no
Chile, não dava aos músicos da Nueva Canción Chilena muito espaço
para a divulgação de seus trabalhos, devido ao modelo musical ao
qual as mídias estavam acostumadas à veicular em relação a canção
chilena, tramitando entre a Música Típica e o Neofolclore. A autora
indica, ainda, que os músicos utilizavam, na maioria das vezes, a
disponibilidade de algumas gravadoras independentes. Somente em
1968, o Departamento Cultural das Juventudes Comunistas criou o
selo Jota Jota, que pouco tempo depois veio a se chamar Discoteca del
Cantar Popular (DICAP), que se tornou o principal meio de realização
das gravações dos discos do Movimento da Nueva Canción Chilena
(SCHMIEDECKE, 2012, p. 306).
Ao fim da década de 1960, quando se anunciava a
candidatura de Salvador Allende e já se programara a “via pacífica ao
socialismo”, vários músicos da Nueva Canción declararam seu apoio
ao governo. Houve a composição de canções que foram direcionadas
à campanha eleitoral e, nos discos de artistas do movimento, canções
que não possuíam este princípio, mas que traziam de alguma forma
elementos que levassem ao público o ímpeto para acreditar nas
propostas da Unidad Popular.
O empenho da esquerda durante a campanha das eleições
de 1970 era envolvido por um clima de expectativas positivas em
relação ao Governo da Unidad Popular. E enquanto a juventude, o
anseio por mudanças não era diferente, visto que os jovens militantes
acreditavam na importância de sua participação. E neste ponto, é
importante destacar que se trata da juventude ligada, principalmente,
à esquerda. A historiadora Ximena Saavedra, que realizou pesquisas
sobre a juventude revolucionária chilena neste período, indica que os
jovens
estavam convencidos de que era um dever seu [...]

261
Das utopias ao Autoritarismo

fazer com que as mudanças acontecessem [...]. Este


sentimento ético, assim como a percepção da necessidade
e iminência de mudanças, com uma clara consciência
de que para conquistá-las era necessário tomar o poder,
era especialmente poderoso no imaginário da esquerda
chilena e, em particular, no mundo jovem desse setor
político [...] (SAAVEDRA, 2005, p. 5).
Esta tomada de consciência foi comum à década de 1960,
sobretudo aos anos finais desta década. E relativo ao período que
finalizava o Governo de Frei, destacamos um disco do movimento
da Nueva Canción que foi envolvido pelas expectativas da esquerda
chilena: o disco de Víctor Jara, “Pongo en tus manos abiertas”, de 1969.
Neste disco, há canções que fazem menções a personagens importantes
da esquerda internacional latino-americana e chilena, como as canções
“A Luis Emilio Recabarren” e “Zamba del Che”, respectivamente
relacionadas ao fundador do Partido Comunista Chileno – Luis
Emilio Recabarren – e a Che Guevara, símbolo de resistência para a
esquerda latino-americana. Há também, no disco, a canção “Plegaria
a un labrador”, que consiste em uma convocatória à luta política, com
uma aspecto que se assemelha a uma oração cristã, direcionada ao
povo chileno, e “Preguntas por Puerto Montt”, que questionava sobre
a morte de dez pessoas que moravam na pequena cidade de Puerto
Montt, ao sul do Chile, durante o governo de Eduardo Frei pela
polícia chilena – uma crítica realizada ao governo em valor à vida das
pessoas das camadas populares que foram mortas sem justificativas.
Este disco possui diferentes aspectos críticos do movimento e inclui
também uma canção voltada a participação dos estudantes em relação
as mudanças sociais e políticas do país, “‘Movil’ oil special”, canção
em que Víctor Jara destaca a insatisfação dos estudantes que “han
dicho basta por fin”, atrelando aos jovens as pautas de luta da esquerda
chilena que apoiava a candidatura do governo da Unidad Popular, que
pode ser representado através do trecho: “Somos los reformistas, los
revolucionarios, los antiimperialistas de la Universidad”.
O governo da Unidad Popular, não obstante, teve que
lidar com a oposição em suas manifestações, para além dos embates
nas instituições políticas. O contexto em 1972, por exemplo, mais

262
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

precisamente em outubro deste ano, esteve repleto de boicotes


ao governo de Salvador Allende, com destaque para uma grande
paralisação que alcançou diferentes setores, principalmente os
responsáveis pelo transporte de mantimentos. Mas, ainda que isto
tenha comprometido também outros setores fundamentais, um
movimento de voluntários foi capaz de dar continuidade, em parte,
aos trabalhos essenciais. A canção de Víctor Jara, “Que lindo es ser
voluntario” dialogou com este cenário e exaltou a importância desta
ação perante as circunstâncias, inclusive relacionando-a com a
trajetória de Emílio Recabarren – referente a uma continuidade –, uma
personalidade que simbolizava força e resistência (SCHMIEDECKE,
2013, p. 175). Destacamos o trecho:
Si la montaña no viene anda hacia ella/ Las metas de
Recabarren son las estrellas/ Qué cosa más linda es ser
voluntario/ Construyendo parques para el vecindario/
Levantando puentes, casas y caminos/ siguiendo adelante
con nuestro destino […].
Os integrantes da Nueva Canción sofreram a repressão
do Governo Militar chileno que se instaurou com o golpe de 11 de
setembro de 1973. Alguns integrantes foram feitos prisioneiros, a
exemplo de Ángel Parra, e outros saíram do país em exílio. Víctor
Jara, entretanto, foi preso no dia do golpe, levado ao Estádio de Chile,
torturado e morto na primeira semana após o fim do Governo da
Unidad Popular.
A atuação efetiva deste movimento na “via pacífica ao
socialismo” levou seus integrantes a uma posição importante no
cenário cultural e político do país, sobretudo em relação à ideia de
mudança no comportamento da população chilena em se empenhar
na construção do Estado Socialista, no qual eram depositadas as
esperanças das realizações que viriam a corresponder os anseios das
camadas populares. A retratação dos diferentes indivíduos destas
camadas e a idealização destes como capazes de juntos realizarem as
construções necessárias, contava, também, com a participação de um
setor da sociedade que disputou sua autonomia e liberdade na década
anterior: os estudantes universitários. A juventude que não somente

263
Das utopias ao Autoritarismo

fez parte do movimento, foi fundamental para sua formação e foi


representada como parte da população capaz de realizar a revolução
sistêmica do Chile, com base em suas atividades que contribuíram
com o Governo da Unidad Popular.

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YOCELEVZKY, Ricardo. La democracia chilena y el gobierno de Eduardo
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265
Parte III
Espírito Santo:
Indígenas, território e cultura
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Sob os ditames da modernidade: a ressignificação


dos rituais funerários na Vitória da segunda
metade do século XIX
Júlia Freire Perini1

Introdução
A partir da problematização do significado da
modernidade feita por Reinhart Koselleck, podemos destacar a
crítica que reside na tentativa de compreender as distintas estruturas
temporais vinculadas à experiência dos homens na história. Para
tanto, o historiador alemão produziu sua própria teoria crítica dos
tempos modernos analisando as mudanças na percepção temporal
vivenciadas pelos europeus entre os anos de 1750 e 1850 que trouxe
à tona uma inflexão entre aquilo que ele denominava como o espaço
de experiência e o horizonte de expectativa. Estas duas categorias
analíticas foram instrumentalizadas por Koselleck para perscrutar
as novas perspectivas em relação ao tempo que foram traduzidas
na incorporação de neologismos ou na alteração do significado de
antigos conceitos políticos para dar conta de demandas surgidas
naquele momento (KOSELLECK, 2006).
Impulsionados pela descoberta do novo mundo, pelo
advento do conhecimento “exato” das ciências naturais, assim como
pelo surgimento das primeiras máquinas e da revolução industrial,
os europeus dos séculos XVIII e XIX teriam, aos olhos de Koselleck,
produzido uma ordenação semântica do tempo na qual o futuro passava
a predominar sobre o presente, dando lugar a concepções filosóficas
que tendiam a enxergar a história como um singular coletivo ou, em
outras palavras, como uma grande marcha da humanidade rumo ao
inexorável caminho do progresso. Entretanto, na interpretação do

1  Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade


Federal do Espírito Santo sob orientação da professora Drª Juçara Luzia Leite. Este
texto é o desdobramento de uma pesquisa financiada pela CAPES. O e-mail para
contato com a autora é: juliafreireperini@gmail.com

269
Das utopias ao Autoritarismo

historiador alemão, tais leituras ignorariam o caráter multifacetado


das experiências temporais humanas, o singular coletivo inerente à
interpretação moderna da história se sobrepunha de maneira violenta
sobre outras possibilidades mais plurais de entendimento não apenas
de uma, mas de distintas histórias passíveis de serem produzidas pelas
sociedades humanas.
Partindo, portanto, da problematização do significado da
modernidade e do entendimento de que esse fenômeno não se deu
forma homogênea no mundo ocidental, buscamos desenvolver uma
narrativa que elucide parte do desenrolar de questões relacionadas à
forma de lidar com a morte e com a alteração das sensibilidades sobre
o morrer na capital do Espírito Santo na segunda metade do século
XIX em diante.
Para tanto, é necessário inferir que a recepção da
modernidade no Espírito Santo não se deu de forma linear e
progressiva. Os distintos grupos que compunham aquela sociedade
não aceitavam passivamente as interpelações que alteravam sua
maneira de compreender e experimentar o mundo no que tangia às
questões relacionadas ao morrer, assim como não abriam mão das suas
tradições em prol de novas representações sem antes promoverem
disputas por suas formas de ler o mundo.
A modernização e a crescente propagação de meios capazes
de fornecer novos padrões para a cultura e para o comportamento
- dentre eles: os jornais2 e, posteriormente, os clubes de debates de
ideias republicanas3 - atingiram diretamente os representantes dos
grupos dominantes no Brasil oitocentista. As ideologias modernas e
os novos mecanismos de difusão da informação funcionavam como
2 Dentre os meios divulgadores de ideias estão a tipografia de Pedro A. de
Azevedo, onde foi produzido o primeiro periódico regularmente publicado na
província, nomeado “Correio da Vitória”. Posteriormente, outros jornais surgiriam,
tais como: “A Província do Espírito Santo” e “O Espírito Santense”.
3 Joaquim Pires de Amorim (1985, p. 28) afirma que vários espaços foram
criados para discutir as ideias republicanas no Espírito Santo após 1887. Como
exemplo, temos: o Clube Republicano, em Cachoeiro, o Clube de São José do Calçado
e o de Vitória. Também foram palco de debates a maçonaria e o Clube Literário
Saldanha Marinho.

270
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

vetores e referências em torno de práticas tidas como próximas


ou distantes de um modelo civilizacional, de modo que a própria
sensibilidade dos indivíduos passava a ser objeto de disputa entre
os distintos representantes de discursos modernizadores ou mais
inclinados à manutenção da tradição.

As disputas e os dilemas acerca da sensibilidade no


oitocentos brasileiro
Conforme foi destacado no trabalho de Alain Corbain
(1987) a existência da instituição de uma vigilância olfativa
na Europa do século XVIII, bem como seus efeitos na nova
sensibilidade teriam interferido na saúde pública, especialmente no
que dizia respeito aos odores dos cadáveres em decomposição, da
circulação e renovação do ar e da transmissão de doenças por meio
dele. Ao investigar as sensações olfativas, Corbin trazia a discussão
sobre as mudanças dos hábitos referentes ao entendimento de uma
nova necessidade de purificação do ar nos espaços públicos das
cidades europeias em tempos modernos. Estes apareceriam em
decorrência dos valores advindos da ascensão de uma nova classe
social: a burguesia, que buscava por meio do controle dos odores,
principalmente os corporais, uma espécie de diferenciação social.
Este grupo iria instituir novos padrões higiênicos domésticos e
pessoais que entrariam em vigência na Europa dos séculos XVIII e
XIX. Por isso, prosseguia Corbin, odores que eram anteriormente
tidos como indiferentes ou tolerados, passaram a ser alvo de controle,
ocasionando uma ressignificação do sentido social dos odores na
moderna sociedade europeia (CORBIN, 1987, p. 71).
É importante ressaltar também os debates acerca da
higienização do espaço urbano haviam sido realizados de forma
pioneira por Michel Foucault, quando o autor formulou que as
novas configurações do poder na era moderna permitiram que a
medicina social requisitasse o controle da circulação de ar e da água
na Europa do século XVIII. Em outras palavras, o ar foi tornado
objeto de estudo da ciência moderna e considerado um transmissor

271
Das utopias ao Autoritarismo

de doenças. De acordo com a medicina setecentista, uma medida


importante para evitar problemas de saúde seria a de permitir a
circulação do ar. Para tanto, foi preciso realizar reformas urbanas no
sentido de abrir ruas, demolir casas mal executadas que obstruíam a
circulação dos ares e vapores, além de secar pântanos e elevar pontes
(FOUCAULT, 2012, p. 159).
Na esteira desses debates empreendidos por Corbain e
Foucault, a mudança na sensibilidade olfativa de parte da população
urbana ao longo do século XIX pode ser um fator indicativo
deste paulatino processo de disputa pelo imaginário em torno do
significado dos sentidos na realidade brasileira. A emergência de
distintas concepções de higiene, salubridade e bem-estar ocorreria
de forma concomitante ao surgimento de novos critérios qualitativos
para o estabelecimento do significado dos bons e dos maus odores.
Estes novos padrões, por sua vez, seriam decisivos no sentido de se
estabelecer rupturas com importantes elementos da tradição como,
por exemplo, a maneira de se compreender a morte e os rituais
religiosos a ela relacionados.
O cheiro da morte – oriundo dos cadáveres que se
encontravam enterrados nas igrejas –, assim como outros odores,
aos poucos passaria a ser um fator importante a ser considerado
entre aqueles que ao longo do século passaram a propor mudanças
significativas na tradição cristã de trato com o além-vida. No Rio de
Janeiro, por exemplo, esse tipo de problema passara a ser relatado ao
menos desde 1825. No periódico Diário Fluminense, publicado no
dia 27 de dezembro do referido ano, temos um relato anônimo que
tratava da seguinte forma a respeito deste tema:
O seu diário de 18 de novembro deste ano traz um
documento do desvelo e solicitude do governo a bem
dos povos, que cobrindo a S. M. o Imperador de glória,
estabelece no Rio de Janeiro, e no Brasil todo, a que
estender-se deve a sua determinação, uma casa de saúde
pública. –Falo da portaria dos enterros dentro das igrejas,
provém, e de tempo muito moderno, de uma terrível
superstição. Quem tiver algumas luzes na história das
nações saberá sem dúvida, que os artigos desconheçam

272
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

este costume danoso. Os egípcios e os gregos, sem bem


me lembro, não só privavam os lugares consagrados à
adoração das divindades de serem depósitos dos mortos,
como até faziam enterrar os cadáveres fora das cidades.
(Diário Fluminense, Nº148, 1825, p. 599)
O autor desse escrito, que se autodenominava para o redator
do Diário Fluminense como “Seu novo correspondente”, se referia
pejorativamente aos que se posicionavam a favor da manutenção dos
enterramentos nos templos como “os supersticiosos”. Em sua opinião,
manter os corpos enterrados nos templos religiosos significaria
colocar o país na posição de bárbaro e menos civilizado se comparado
a outras nações ocidentais: “espero ver em breve tempo o Império
do Brasil livre de um mal horroroso, que (como disse um filósofo)
só há sofrido nos países onde a escravidão aos mais indignos usos,
deixa subsistir um resto de barbárie que envergonha a humanidade. ”
(Diário Fluminense, nº148, 1825, p. 600).
No lado oposto a esse debate, também no Rio de Janeiro,
uma década e meia mais tarde, Luís Gonçalves dos Santos, o “Padre
Perereca”, contrapunha os argumentos expostos pelos defensores da
mudança no referido ritual. Em uma passagem de um livro publicado
em 1839, o eclesiástico respondia às queixas relacionadas aos odores
dentro dos templos católicos, justificando o costume das inumações
nos templos a partir da ideia de que o descanso dos defuntos em terras
abençoadas amenizava a dor dos entes vivos daqueles que partiram
para o além. Vejamos o restante das críticas do religioso católico
descritas por Reis:
O correspondente se queixava do cheiro dos cadáveres.
Perereca contrapunha à sensibilidade olfativa dos
“melindrosos modernos” aquela dos católicos piedosos.
“Apesar de que por tão dilatada série de anos não tivesse
havido tantas caixas de tabaco, tantos vidrinhos de
espíritos cheirosos, tantos frasquinhos de água de Colônia,
etc., os narizes dos nossos avoengos não sentiam, não se
incomodavam.” E por que não? Porque, entre outras razões,
o “incomodo passageiro do mau cheiro dos defuntos” era
um ato de fé e porque a dor da perda amainava na certeza
de que os entes queridos jaziam em terra abençoada,

273
Das utopias ao Autoritarismo

esperando-os para “participar com eles dos mesmos


jazigos, e das mesmas honras” (REIS, 1991, p. 268)
O padre ressaltava a importância da manutenção dos
sepultamentos no interior das igrejas embasando parte de sua defesa
nos princípios da caridade cristã. Esse ideal compreendia uma série
de atitudes caras ao católico oitocentista, dentre as quais, podemos
mencionar: a assistência aos pobres, às viúvas, aos órfãos, além do
cuidado com os doentes desvalidos. Nesse mesmo grupo de ações
caridosas, incluía-se também a participação nos rituais funerários e a
feitura de preces e orações que tinham por objetivo amenizar a dor dos
parentes do morto, contribuindo para salvação da alma do defunto.
As práticas da caridade cristã estavam entre os pré-requisitos tidos
como fundamentais para a salvação da alma e é por esse motivo que
as discussões sobre o afastamento dos mortos do interior das igrejas
entravam em rota de colisão com um projeto de vida que tinha por
finalidade a salvação eterna. Havia, portanto, tolerância em relação ao
cheiro em nome de um bem maior.
Também na província capixaba essa mudança na tolerância
olfativa, em conformidade com os novos parâmetros de higiene e
civilização, pode ser percebida. Assim como na capital do império, a
vigilância do odor no Espírito Santo passou a ser alvo de incômodos
e reclamações, muitas vezes manifestada por membros da camada
dirigente4 local. Mais do que qualquer outra camada social, esse
grupo tomou as rédeas do debate rumo à modernização do Brasil em
meados do século XIX. O contato com ideias vanguardistas europeias
a respeito de distintas práticas culturais movimentou os grupos
dominantes do país no sentido de transformar a nação brasileira em
algo que se assemelhasse ao velho continente, principalmente no que
tangia aos hábitos e aos costumes.

4  Assim como Ilmar R. Mattos (1987, p. 1), entendemos por camada dirigente
um grupo heterogêneo composto por homens letrados - jornalistas, políticos, médicos
-, que desempenharam um importante papel como artífices da política e da mudança
dos costumes da população.

274
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Entre a tradição e a modernidade: as conciliações em torno


da morte empreendidas pelas camadas dirigentes capixabas
A existência desses debates no Espírito Santo pode ser
documentada ao menos desde a virada da primeira para a segunda
metade do século XIX. Em uma carta escrita nesta época e direcionada
ao redator do jornal Correio da Victória5, por exemplo, um anônimo
dava sinais claros de desagrado em relação à higiene e ao cheiro
do espaço urbano da capital, especialmente em função do medo
provocado pelas moléstias que afetavam a população:
[...] E quando cheguei ao canto da rua em frente à casa em
que mora o Sr. Luiz Pinto aí escapei de morrer sufocado
com o maldito cheiro de pútridos miasmas que do tal
lugar exalavam cujo lugar bem se pode chamar de cloaca
da cidade por que nessa mesma ocasião e à minha vista
foram algumas negras fazer despejos de águas impuras,
lixo e....... e o digno local (morando tão perto e tendo dois
guardas que o coadjuve!) não olha para tudo isto!!! Sr.
Redator, esses homens não temem as Febres Amarelas?
Não respeitam as ordens do que recomenda a limpeza a
bem da salubridade pública, como foi estampado em sua
folha? E por Sr. Redator, eu digo que meu filho e meu neto
tem razão.
Publicando estas linhas muito obrigada lhe ficará o pai do
Z. (Correio da Victória, 1850, ed. 30)
Não só os cheiros como as más condições de salubridade
do espaço público passavam a ser motivo de preocupação de parte da
população vitoriense. Ademais, a qualidade do ar e a existência dos
maus odores tornavam-se fatores a serem considerados na avaliação
da qualidade dos espaços públicos. Essas reclamações e julgamentos
passavam a figurar de forma cada vez mais frequentes nos jornais da
província, avolumando-se e se estendendo ao menos até o período
republicano.
Os odores passavam a influenciar no apreço da qualidade

5  O jornal "Correio da Victória", de orientação conservadora, surgiu em 1849


para divulgar as ordens e atos governamentais, isto é, era um veículo de divulgação
das decisões do Executivo capixaba. (MATTEDI, 2010, p. 24).

275
Das utopias ao Autoritarismo

de vida da população, que passaria a apelar para a intervenção das


autoridades no espaço urbano. Não é de se espantar, portanto, que
esse tipo de discussão logo tenha chamado a atenção do poder público,
levando alguns de seus representantes a posicionar-se em relação à
necessidade de resolução destas novas questões.
De todo modo, assim como no Rio de Janeiro, essas
alterações na forma de se sentir e interpretar os odores, não ocorreram
de forma linear e consensual. Da mesma maneira que na realidade
carioca, e em especial no concernente aos assuntos eclesiásticos, seria
mister repensar a relação entre elementos da tradição e as necessidades
trazidas pela vida civilizada.
Essa tentativa de realinhar modernidade e tradição já era
perceptível no relatório apresentado pelo presidente de província
Antônio Pereira Pinto6 no ano de 1849 no periódico Correio da
Victória:
A filosofia do século passado tinha criado o ceticismo,
e feito nascer a dúvida nas crenças, as doutrinas porém,
derramadas nos sábios discursos de Bossuets, dos
Massillons, e tantos outros luminares da causa do
cristianismo, e ao depois tão vitoriosamente sustentadas no
livro sublime, que imortalizou o nome de Chateaubriand,
fizeram aparecer a reação e os tempos presentes aceitaram
com entusiasmo a revelação de Jesus Cristo e as verdades
da religião cristã. Apenas a revolução francesa de 1793,
parodiando burlescamente os erros da propaganda
passada, quis de novo inaugurar o predomínio das ideias
libertadoras, que escritores, aliás de subida ilustração,
haviam antes vulgarizado. A Revolução Francesa porém,
era um colosso com pés de barro, as ideias políticas, e
religiosas, que pretendeu plantar na Europa, como seus
meteoros, duraram apenas em quanto o seu brilho pareceu
fascinar algumas inteligências mais exaltadas, sumiram-se
porém com ela no vórtice ensanguentado [...] (Correio da
Victoria, 1849, ed. 5)

6  Antonio Pereira Pinto foi presidente de província no Rio Grande do Norte,


no Espírito Santo e em Santa Catarina. Foi também deputado geral representando os
capixabas nos anos de 1857 a 1860 e de 1861 a 1864.

276
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

No documento, Pereira Pinto tratava primeiramente


da importância da religião católica, destacando a solidez de seus
postulados face aos desenvolvimentos filosóficos do último século.
O século das luzes e mesmo a Revolução Francesa de 1789 não
haviam - apesar de seu aporte para o progresso - sido capazes de
abalar o “entusiasmo a revelação de Jesus Cristo e as verdades da
religião cristã”. A ciência não progredira ignorando a religião, pelo
contrário, teria sido dela dependente. Esse esforço em resguardar as
contribuições do Cristianismo para o advento desses novos tempos
se dava especialmente com o intuito de amenizar o impacto desses
novos preceitos sobre práticas e rituais sagrados. Logo, higienizar
os templos e proibir os sepultamentos em seu interior não seria um
princípio meramente mundano, mas uma premissa tanto religiosa
quanto científica:
Em verdade, é uma profanação converter a casa de Deus,
que só deve rescender o aroma das flores, e o cheiro dos
incensos em depósitos de miasmas tão nocivos à saúde
daqueles, que no silêncio dos templos, de envolta com
fervorosas orações, procuram o bálsamo salutar, que
a Religião Católica ministra aos que compreendem, e
invariavelmente creem nos seus santos mistérios. (Correio
da Victória, 1849, ed. 5)
Pereira Pinto não defendia a proibição dos enterramentos
nos templos por ser menos religioso ou por duvidar dos princípios da
religião católica, tampouco por pretender uma separação da igreja e
do Estado (ou o fim do padroado). Seu esforço no sentido de propor
mudanças nos rituais de sepultamento ocorria no contexto de uma
tentativa cada vez mais presente de conciliar preceitos religiosos com
os ideais seculares-científicos.
As reclamações a respeito dos cheiros e a tentativa de conciliar
tradição e modernidade continuaram a existir nas décadas seguintes.
Em 1854, logo após surtos epidêmicos de febre e disenteria causarem
muitas mortes no Espírito Santo, Sebastião Machado Nunes7, então
presidente de província, descrevia problemas semelhantes àqueles
7 Sebastião Machado Nunes foi político no período do Império brasileiro e
presidente da província do Espírito Santo no ano de 1854.

277
Das utopias ao Autoritarismo

apontados por seu antecessor. Contudo, apesar de mencionar o


perigo das enfermidades e o incômodo com os odores dos defuntos,
o problema dos enterramentos nos templos era em alguma medida
relativizado:
Julgo oportuna a ocasião para lembrar-vos que a
conveniência de adotardes uma medida que em outros
lugares tem tido um efeito benéfico sobre a salubridade
pública: falo da proibição dos enterramentos dentro do
recinto desta cidade. Bem que esteja convencido que os
enterramentos dentro das igrejas, como atualmente são
feitos, não podem exercer influência alguma perniciosa,
quando esta capital se acha no seu estado normal, atento o
seu pequeno número, com tudo no estado de crise, como o
em que nos achamos, devem comprometer a salubridade do
lugar entretendo, e talvez desenvolvendo, e aumentando os
miasmas deletérios, que são causas imediatas da epidemia.
(RELATÓRIO com que o exm. sr. dr. Sebastião Machado
Nunes, presidente da província do Espirito Santo abriu a
sessão ordinária da respectiva Assembleia Legislativa no
dia vinte e cinco de maio do corrente ano. Victoria, Typ.
Capitaniense de P.A. d’Azeredo, 1854, p. 16-17)
Nunes defendia que a proibição dos sepultamentos dentro
das igrejas deveria ocorrer em função dos casos de epidemias que
assolavam a cidade. Isto é, na visão do político, se o quadro da
salubridade pública não tivesse sido alterado, o local das inumações
poderia ser mantido. Essa relativa “tolerância” em relação ao mau
cheiro e às suas consequências no “estado normal” da capital revela
a intenção do presidente de província à época de contemporizar a
possibilidade de preservação de elementos significativos do antigo
ritual cristão de sepultamento, sucumbindo apenas de forma parcial
aos ditames da percepção secular de entendimento do morrer.
Na década subsequente, todavia, o perigo de propagação de
novas epidemias trouxe consigo a necessidade de maior controle da
qualidade do ar. Em função disso, cada vez mais os vapores, miasmas,
cheiros e ares passaram a ser alvo de regulamentação com o intuito
de garantir que o seu controle se tornasse o vetor de uma nova noção
de salubridade. No relatório do presidente de província Eduardo

278
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Pindaiba de Mattos8 de outubro de 1864, essa preocupação com


referências à salubridade pública se mostrava evidente:
Salubridade pública
Continua a ser lisonjeiro o estado de salubridade pública
nesta província, para o que muito concorre o seu excelente
clima.
Todavia cumpre notar que em relação a esta capital alguns
focos de miasmas existem que alterando inevitavelmente
a pureza do ar dão causa ao aparecimento de moléstia
miasmáticas, como sejam as febres perniciosas, tifos e
outras que com mais ou menos intensidade se desenvolvem
na mudança das estações.
Apontarei como principais fontes desses miasmas entre
outras as seguintes: o pântano misto do Campinho, a
inundação da vala que existe na rua da Várzea e Largo da
Conceição, o cemitério público pela posição que ocupa,
e as águas estagnadas e mais ou menos constantes do
lugar conhecido por Palame. (RELATÓRIO apresentado
à Assembleia Legislativa Provincial do Espirito Santo no
dia da abertura da sessão ordinária de 1864 pelo 1º vice-
presidente, Dr. Eduardo Pindaiba de Mattos. Victoria,
Typ. Liberal do Jornal da Victoria, 1864, p. 10)
Diferente de Nunes, não existia no relatório apresentado
por Pindaiba de Mattos a preocupação explícita em resguardar o ritual
religiosos de sepultamento de acordo com determinadas condições.
Pelo contrário, os cemitérios dos templos e aqueles a eles adjacentes
passavam a ser vistos como focos reais dos miasmas e das moléstias
que interferiam na saúde pública e na qualidade de vida da população.
Corroborando as falas de Pindaíba de Mattos e engrossando
a vertente rumo à aceitação dos ideais científicos, o redator do Jornal
da Victória9 e também presidente da câmara municipal de Vitória,

8 Eduardo Pindaíba de Mattos nasceu em São Luís em 1831 e morreu em


Petrópolis em 1913. Foi desembargador, juiz e político brasileiro. Ocupou os cargos
de chefe de polícia, presidente e vice-presidente de províncias. No ano de 1863, ele
ocupou o cargo de vice-presidente no Espírito Santo.
9  O “Jornal da Victória” foi fundando em 1864 e circulou até o ano de 1869.
Esse periódico tinha como proprietário e principal redator Muniz Freire. Nele, eram

279
Das utopias ao Autoritarismo

Delecarliense Drummond de Alencar Araripe publicaria três anos


mais tarde um texto de caráter pedagógico voltado para a instrução
dos moradores da província. Segundo este documento, os moradores
de uma cidade pensada em conformidade com os ditames da saúde
pública deveriam:
3º Remover do interior das habitações e de suas
dependências tudo quanto possa contribuir direta,
ou indiretamente para a corrupção e viciação do ar
atmosférico [...]
6º Empregar fumegações repetidas com o enxofre nos
quartos, e outros lugares em que tenha sucumbido alguns
doentes de cólera, fazer caiá-los e abandoná-los depois por
dois dias à ventilação e arejamento. [...]
9º Resguardar o corpo da humidade e das variações
atmosféricas, usando-se de roupas apropriadas ao tempo;
ter cuidado de muda-las logo que se chegue suado à casa, a
fim de evitar a supressão rápida da transpiração, que pode
constituir-se uma causa ocasional da moléstia, e ordenar
que sejam estendidas fora dos aposentos de descanso e em
lugar arejado, as roupas suadas, máxime as de lã ou seda, as
quais mais facilmente se deixam impregnar dos miasmas
infectuosos. (Jornal da Victória, 1867, ed. 290.)
Esse esforço no sentido de divulgar hábitos adequados aos
padrões higienistas da época ocorria com o intuito de evitar que novos
surtos epidêmicos surgissem pela capital. O texto se tratava de um
documento elaborado pela Junta Central de Higiene Pública do Rio
de Janeiro e ao divulgá-lo em seu periódico, Alencar Araripe tinha
o objetivo de fornecer informações para o público capixaba sobre o
que estava em voga em termos de modelo para a saúde pública no
Brasil. Ao dar visibilidade a esse documento, o jornalista cumpria em
certa medida o papel de intermediador entre os padrões de civilização
do centro para a periferia10. Os principais elementos atacados em seu

defendidas ideias relacionadas ao Partido Liberal.


10  O Espírito Santo era descrito por alguns homens do século XIX, nesse caso
o presidente da Câmara dos Vereadores de Vitória, Joaquim Corrêa de Lírio, como
atrasado em relação à outras cidades (Salvador, Rio de Janeiro, Recife, São Paulo) no
que se referia aos costumes higiene e saúde.

280
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

texto eram os miasmas, os odores, a circulação do ar e a instituição


de novos padrões higiênicos pessoais. Mais uma vez os cuidados
olfativos, apareciam como alvo de vigilância e controle entre alguns
dos mais influentes membros da alta sociedade capixaba.
Assim como os políticos e os jornalistas, também a classe
médica participaria deste debate sobre a necessidade de controle dos
odores e de mudança em antigas práticas religiosas. Em consonância
com a comunidade científica da época, em 1871 o médico Manoel
Goulart de Souza11 escrevia no jornal Correio da Victória com o intuito
de condenar a forma como os enterramentos se davam na capital
capixaba. Além disso, ele deixava explícito o seu descontentamento
no que dizia respeito à conservação e localização das necrópoles na
cidade. Respaldado por seus conhecimentos médicos, o autor do texto
não poupava críticas às condições de salubridade a que os habitantes
vitorienses estavam condicionados:
É como higienista que condenamos a colocação dos
cemitérios nas sacristias das igrejas e contíguos a elas, onde
por falta de observância dos princípios que devem presidir
sua colocação, não poucas vezes temos sentido cheiros dos
cadáveres: incontestavelmente são os de São Francisco os
que estão em melhores condições. (Correio da Victória,
1871, ed. 38)
O médico tentava conciliar os valores religiosos com as
necessidades da saúde pública da comunidade vitoriense oitocentista.
Fazendo questão de colocar-se na posição de “higienista”, Goulart
preocupava-se em estabelecer para si um lugar de fala que o eximisse de
uma possível acusação de desrespeito em relação às práticas e tradições
cristãs. Tomando a razão científica como base do questionamento das
práticas funerárias e se valendo de sua autoridade como profissional
da saúde, o médico endossava os valores caros à modernidade, no que
dizia respeito aos costumes funerários:
Grande é o prejuízo que daí parte para saúde pública,

11  O médico higienista Manoel Goulart de Souza ocupou diversos cargos entre
as décadas de 1860 e 1890, dentre eles, podemos citar: deputado da assembleia
provincial, inspetor de saúde pública, inspetor de saúde em portos, provedor da Santa
Casa de Misericórdia.

281
Das utopias ao Autoritarismo

embora, na opinião dos entendidos, não importe conhecer


a natureza do terreno, posto que húmido muitas vezes, tem-
se pouca consideração da localidade; o cadáver na argila
torna-se em massa compacto e dificilmente desprendem-
se os gases produzidos por putrefação, e se por outro lado
devemos evitar os enterramentos em terrenos saturados de
matérias animais, aí nos parece o cemitério do Campinho,
terra que já merece o nome de lama humana. (Correio da
Victória, 1871, ed. 38)
O incômodo causado pelos gases que se desprendiam dos
cadáveres e os efeitos negativos decorrentes do acondicionamento
inapropriado dos defuntos nos cemitérios passava a ser visto como
um ataque à saúde da comunidade. Por isso, ao atribuir à região
conhecida como Campinho a pecha de “lama humana”, Goulart de
Souza manifestava sua repulsa e sua sentença condenatória frente ao
estado em que se encontrava a localidade.
A geografia do espaço dos mortos se tornara alvo de ataques
por intervenções higiênicas e também, sensoriais. Conviver com o
cheiro da decomposição dos cadáveres deixava de ser algo aceitável
entre parte dos membros dos setores dirigentes da sociedade. No
fragmento ainda é possível perceber que suas palavras, enquanto
cientista, estavam sendo negligenciadas:
Ameaçados do terrível flagelo que agora reina em Buenos
Aires com intensidade que nunca a América do Sul
registrou em sua história, convém que digamos algumas
palavras em relação a nós; se tivermos a felicidade de
que elas sejam ouvidas, ficaremos ainda mais tranquilos,
porque cumprimos com o dever para com a religião e
satisfazemos os princípios aconselhados pela ciência do
velho de Cós. (Correio da Victória, 1871, ed. 38)
O embate entre a tradição religiosa e a modernidade
permanecia em curso, mas agora na voz de um médico que, assim
como os políticos, escolhia bem as palavras com o intuito de
influenciar a percepção de seus contemporâneos sobre o significado
do ritual funerário. Um argumento utilizado na tentativa de mesclar
e adaptar tais costumes aos ditames do moderno, era a necessidade
das camadas dirigentes colocarem em prática os princípios advogados

282
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

pela ciência, de modo que, o não cumprimento das determinações da


medicina passava a ser visto como um desvio.
Esse objetivo era compartilhado por Francisco Gomes
d’Azambuja Meirelles no jornal O Espírito-Santense12 que, assim como
Goulart de Souza, atuava como médico e no mesmo ano defendia
mudanças na forma de sepultar os mortos em conformidade com os
postulados da saúde pública:
Nada se há feito no sentido de remover os males que
experimentamos pela existência deste pântano tão
próxima a esta capital, porque todos dizem que o aterro
dele é muito dispendioso, e que os cofres da província
não comportam semelhante despesa, entretanto para a
salubridade pública melhorar seria suficiente impedir que
as águas que descem da montanha corram para o mangue,
e conservar este fechado com muros, de modo que sempre
estivessem cheios d’água, para fazer desaparecer os eflúvios
que infectam esta cidade, pois são estes os únicos meios
aconselhados pela higiene quando o aterro é impraticável.
Além desta causa natural para o desenvolvimento de
epidemias, temos as exalações miasmáticas dos nossos
cemitérios onde os enterramentos feitos sem as cautelas,
sem se observar preceito algum higiênico, pois as
sepulturas não tem a profundidade exigida, não se lança
sobre o cadáver terra alguma e são abertas para se retirar
delas esqueletos sem ter decorrido o tempo preciso para
isso, pelo que tem acontecido encontrar-se o cadáver ainda
não consumido, do que resulta a propagação das moléstias
por influência miasmáticas e por consequências maior
duração da epidemia. (O Espírito-Santense, 1871, ed. 50)
Meirelles apontava para o fato de que os cemitérios
continuavam no centro da capital e que as condições dos sepultamentos
ainda não haviam se adequado plenamente à lógica prescrita pelos
cânones da ciência. Não havendo mudanças nos rituais, tampouco
providências do poder público, os cemitérios e as práticas funerárias

12 O “Espírito Santense” (1870-1889) publicava sobre política e novidades


científicas. Além disso, também tinha espaço em suas páginas para arte literária e
notícias. Era defensor de ideias conservadoras. Seu redator e proprietário era Basílio
Carvalho Daemon.

283
Das utopias ao Autoritarismo

permaneciam na mira dos médicos, dos políticos e de outros homens


de letras capixabas.
Mais de dez anos após as reclamações desses profissionais
da saúde, Muniz Freire e Cleto Nunes - dois dos mais proeminentes
políticos capixabas do período - publicavam um texto no jornal A
Província do Espírito-Santo13 no qual as críticas da década anterior
eram reiteradas:
Ninguém aborda de boa mente um cadáver senão pelo
império de uma força estranha ou das grandes dedicações,
todos sabem que o contato daquele corpo em dissolução
é sumamente nocivo à nossa saúde, à economia de nossa
vida, e entretanto nem todos lembram-se que esse pedaço
de matéria que se decompõe arredado alguns passos
apenas, vai atuar do mesmo modo sobre nossa atmosfera e
sobre a nossa própria vida. (A Província do Espírito-Santo,
1882, ed. 36)
Além de reclamar do perigo à saúde provocado pelos
enterramentos à moda antiga, os políticos se referiram aos corpos como
“pedaços de matéria”, cuja permanência em espaços inapropriados
poderia ameaçar a vida da comunidade. Utilizando a terminologia
científica para referir-se aos corpos dos cristãos, o texto de Freire e
Nunes fornece o tom do nível de avanço do discurso secular sobre o
imaginário religioso a respeito da morte àquela época:
Há certas necessidades públicas que embora se imponham
ao espírito das populações, contudo já por que não se pode
palpar dia a dia os prejuízos derivados do adiamento de sua
satisfação, já pelo desleixo com que nas cidades atrasadas
se encara muitos dos fatores das desgraças sociais, cujo
plano de ação não se passa aos olhos de todos, e por ser
inobservável é menos considerável, por estas e outras
razões vai sendo protelado indefinidamente o estudo
dos meios concernentes a obviar os males resultantes da
permanência de tais necessidades, sobre os quais o mais
13  O jornal "A Província do Espírito Santo" foi fundado por Cleto Nunes Pereira
e José M. C. Muniz Freire, proeminentes figuras do cenário político capixaba. De
acordo com Thiago Z. Barros (2007), esse periódico assumira uma postura combativa
em defesa do progresso do país e faria um jornalismo fora dos padrões da imprensa
oficial.

284
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

das vezes inconscientemente todos estão [sic] acordes.


A remoção dos cemitérios para um ponto mais distante da
capital pode ser efetuada sem o peso de um compromisso
superior, com o qual nas suas atuais circunstâncias
financeiras a província por si só não poderia sobrecarregar,
se todas as diversas corporações religiosas, irmandades
e confrarias desta capital, que são imediatamente
interessadas aliás, unissem os seus contingentes de acordo
com a câmara municipal e com um auxilio muito menos
oneroso, que lhes seria regateado, dos cofres provinciais.
(A Província do Espírito-Santo, 1882, ed. 36)
As necessidades públicas deveriam se sobrepor às crenças e
às superstições individuais. A associação feita entre os antigos hábitos
de enterrar nos cemitérios contíguos às igrejas com o atraso, o velho
e o retrógrado, demonstram o esforço destes jornalistas no sentido
de deslegitimar algumas práticas que insistiam em permanecer no
imaginário dos cidadãos na penúltima década do século XIX.
Do final da década de 1840 até o início dos anos 1880, o
problema dos enterramentos nas igrejas – e dos cemitérios a elas
contíguos - esteve presente como assunto a ser tratado pelos grupos
dirigentes capixabas. Envolvendo delicadas concepções cristãs
a respeito do próprio sentido da morte, este era um debate que
encontrava nas sensibilidades – na forma de sentir e avaliar cheiros
e sentimentos - um importante vetor de interpretações e de disputas.
Se no início essas discussões ainda cogitavam conciliar de
maneira harmônica os antigos rituais com os cânones da ciência, ao
longo das décadas de 1860, 1870 e 1880 a necessidade de combater o
cheiro da morte – e os perigos a ele relacionados – se tornara uníssono
no discurso de jornalistas, políticos e médicos preocupados em prover
a saúde e o bem-estar aos seus concidadãos.
Com o argumento de combate aos cheiros e às moléstias, a
morte aos poucos deixava de ser um assunto de crença individual – da
alçada da igreja e das irmandades – e tornava-se objeto de preocupação
do público e da comunidade de cidadãos. Em outras palavras, ao
longo do século XIX capixaba a morte afastou-se gradualmente de

285
Das utopias ao Autoritarismo

um domínio exclusivo do sagrado, para ser esquadrinhada e gerida de


acordo com os ditames do moderno saber científico.
Esse processo de despersonalização dos sentidos do além
vida fica ainda mais claro se nos debruçarmos sobre os contornos que
a morte – entendida como objeto de gestão – passou a ter, sobretudo,
entre os dirigentes capixabas ao longo deste período.

Referências:
Fontes:
Jornais
Rio de Janeiro:
DIÁRIO FLUMINENSE- 1825
Espírito Santo:
CORREIO DA VICTÓRIA- 1849; 1850; 1871.
JORNAL DA VICTÓRIA- 1864; 1867.
A PROVÍNCIA DO ESPÍRITO-SANTO- 1882.
O ESPÍRITO-SANTENSE- 1871; 1883.

Documentos Oficiais:
Relatórios de presidente de província apresentados a Assembleia Legislativa
Provincial- 1849, 1854, 1864, 1869, 1872, 1873, 1874, 1875, 1877, 1878, 1883,
1896, 1911, 1912, 1913.

Bibliografia:
AMORIM, Joaquim Pires de. A trajetória dos partidos políticos capixabas
até 1930. Revista do Instituto Jones dos Santos Neves, nº 1, p. 28-29, 1985.
BARROS, Thiago Zanetti de. Imigração estrangeira no jornal A Província
do Espírito Santo (1882/1889). 2007. 130 f. Dissertação (Mestrado em
História) - Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações
Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007.
CORBAIN, Alain. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos

286
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras. 1987.


FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2012.
JASMIN, Marcelo Gantus e JÚNIOR, João Feres (org.). História dos
Conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; Edições
Loyola; IUPERJ, 2006.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos
tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.
MATTEDI, José Carlos. A imprensa capixaba no século XIX. In: BRITES, J.
G. (Org.). Aspectos históricos da imprensa capixaba. Vitória: Edufes, 2010,
p. 24-43.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec,
1987.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no
Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
SCOLFORO, Jória Motta. O último grão de areia na ampulheta da vida:
poder, política e falecimentos nos periódicos “Correio da Victoria”, “Jornal
da Victoria” e “O Espírito - Santense”. 2011. 129 f. Dissertação (Mestrado
em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações
Políticas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2011.

287
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

O Barão do Itapemirim e a política indigenista no


sul do Espirito Santo
Tatiana Gonçalves de Oliveira1

Introdução
Com a promulgação do novo Regulamento das Missões de
1845 se restitui oficialmente o cargo de Diretor e estabeleceu-se em
todas as províncias do Império uma Diretoria Geral de Índios, que
deveria cuidar do estabelecimento dos aldeamentos e da catequese
e civilização dos índios. É a partir desse novo cenário político que
pretendemos analisar a atuação da Diretoria Geral dos Índios no
Espírito Santo sob a gestão do primeiro barão do Itapemirim, Joaquim
Marcelino da Silva Lima.

O barão do Itapemirim: um nobre da terra


Pela biografia do barão de Itapemirim feita por Levy Rocha
(1866) sabemos que ele nasceu em uma família pouco abastada, tendo
vindo com o pai, um músico, para o Espírito Santo por volta de 1802.
O Correio Mercantil trouxe em suas páginas outras informações
interessantes sobre Joaquim Marcelino da Silva Lima.
O Sr. Barão de Itapemirim, desde a idade de 18 anos,
tem prestado ao Brasil valiosos serviços. Sendo nesta
idade nomeado tenente de milícias, foi encarregado pelos
governadores da província não só dos cortes de madeiras
para obras públicas, mas da vigilância dos destacamentos
e obstar a invasão dos gentios [...] Já no tempo do reinado
do Sr. D. João VI, S. Ex. foi condecorado com o habito da
ordem de cristo como justa remuneração de seus serviços,
elevado a comendador da mesma ordem pelo Sr. D. Pedro
I, e com o oficialato da imperial ordem da Rosa e título

1 Doutoranda em História no Programa de Pós-graduação da Universidade


Federal Rural do Rio de Janeiro, desenvolvendo tese acerca do processo de
expropriação das terras indígenas no Espírito Santo, na segunda metade do século
XIX. Bolsita Faperj, email:tatih.oliveira@hotmail.com.

289
Das utopias ao Autoritarismo

de barão com grandeza por sua majestade o Imperador D.


Pedro II (CORREIO MERCANTIL, 1859, p.2).
Joaquim Marcelino da Silva Lima, segundo essa notícia
do Correio Mercantil e também de acordo com a crônica escrita por
Basílio Daemon (1894-1893), foi tenente do Segundo Regimento de
Milícias do Rio Doce, desde julho de 1813, atuando, entre outras
coisas, na “pacificação” dos índios do rio Doce. O título de barão só
conseguiu 28 anos depois. Segundo o jornal Almanak Administrativo,
Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro (1861, p.54), Silva Lima
obteve o título de barão por decreto de 15 de novembro de 1841. Mas
foi apenas em 1849 que ele foi agraciado com a honra de grandeza. O
baronato com grandeza, concedido por D. Pedro II, colocou o barão
de Itapemirim entre os “grandes do Império” (OLIVEIRA, 2016).
Ser um “grande” e “titular” do Império, ou seja, possuir um
título com a honra de grandeza, significava possibilidade de acesso
à corte e ao Imperador. Jéssica Mafrim Oliveira analisou, em sua
dissertação de mestrado, a importância da concessão de títulos de
nobreza no Segundo Reinado do Brasil. Trabalhou a relação dessas
concessões por províncias, especificamente nas mais importantes,
como São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e
Rio Grande do Sul. O tipo de título concedido também variou muito
por província. Os títulos de nobreza em ordem de grau, de baixo pra
cima, era barão sem grandeza, barão com grandeza, visconde sem
grandeza, visconde com grandeza, conde, marquês e duque. Estes “três
últimos títulos possuíam inerentemente a qualidade de grandeza”
(OLIVEIRA, 2016, p.18).
Para Oliveira (2016, p.16), a diferença fundamental entre
a nobilitação no Império do Brasil em relação àquela praticada no
Império Português é que “a partir de 1822 os títulos não mais poderiam
ser de juro e herdade, sendo doravante, apenas honoríficos”, ou seja,
os títulos não eram mais hereditários e valia apenas para o agraciado,
e após sua morte o título retornava para o patrimônio heráldico do
Império. Além disso, o agraciado com o título de nobreza no Império
Português obtinha vários privilégios financeiros, como isenção de
impostos, o que não ocorria no Império do Brasil.

290
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A autora também apresenta os critérios utilizados para a


concessão de títulos pelo imperador. Estes poderiam variar entre
“serviços prestados ao Estado, destinados aos políticos e militares
e serviços prestados à humanidade” (OLIVEIRA, 2016, p.23). O
barão de Itapemirim certamente se enquadrava no primeiro critério,
pois como vimos desde os 18 anos já atuava prestando serviços ao
Estado, como tenente do Segundo Regimento de Milícias do Rio
Doce. Contudo, a honra de grandeza só foi adquirida por Marcelino
da Silva Lima em 1849, quando ele já era Diretor Geral dos Índios e
vice-presidente da Província do Espírito Santo. Como Diretor Geral
de Índios ele também se enquadrava no segundo critério, já que no
discurso oficial do indigenismo a catequese dos indígenas figurava
como um serviço à humanidade, pois retirava àqueles do seu estado
de “selvageria” e lhes introduzia os princípios da “civilização”.
Segundo Levy Rocha, foi por volta de 1827 que Joaquim
Marcelino da Silva Lima saiu de Benevente, atual Anchieta, para
morar na vila de Itapemirim. Não se sabe ao certo se nessa data já
estava casado com sua segunda esposa, Leocádia Tavares Brum, que
passou a assinar Tavares Silva após seu casamento. Seu segundo
matrimônio foi importante para estabelecer alianças com uma das
mais importantes famílias de fazendeiros da região sul, os Tavares
Brum. O pai de Leocádia, José Tavares de Brum2, obteve uma vasta
sesmaria ao longo do rio Itapemirim, por volta de 1799, onde fundou
um considerável patrimônio, com sede na propriedade Fazendinha
(O ESTADO DO ESPÌRITO SANTO, 1895, p.2). A partir da aliança
local que fez com os Tavares Brum, por meio do seu casamento, o
futuro barão de Itapemirim foi ocupando diversos cargos políticos,
tendo ao longo tempo, como de vice-presidente e substituindo a 14
presidentes (CORREIO MERCANTIL, 1859, p.2).
Joaquim Marcelino da Silva Lima foi eleito 17 vezes
primeiro vice-presidente da província do Espírito Santo, então é
possível que ele tenha substituído o presidente da província por mais

2  José Tavares de Brum também se destacava na esfera política local, atuando


como vereador na Câmara de Itapemirim, entre 1824 e 1829 e foi eleito o primeiro
juiz de paz de Itapemirim (1829-1832).

291
Das utopias ao Autoritarismo

de 8 vezes. Mais importante do que contabilizar a quantidade de


vezes que o barão do Itapemirim administrou a província do Espírito
Santo, apesar desse dado ser relevante, é entender a importância que
a sua posição, enquanto primeiro vice-presidente da província e
constante substituto na chefia do executivo provincial, foi decisiva
para a consolidação de seu bando nas disputas políticas que se
configuravam. Nesse sentido, é preciso discutir o peso político do
vice-presidente como membro de uma elite local. No caso do
Espírito Santo essa discussão se faz muito importante porque os
vice-presidentes assumiram a administraram da província numa
porcentagem muito próxima a dos presidentes escolhidos pelo
imperador, como podemos observar no gráfico abaixo.

Fonte: Daemon, Basílio, 1834-1893. Província do Espírito Santo: sua descoberta,


história cronológica, sinopse e estatística. Coordenação, notas e transcrição de Maria
Clara Medeiros Santos Neves. – 2.ed. – Vitória : Secretaria de Estado da Cultura;
Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2010.

Ao analisar o papel dos vice-presidentes na organização


do poder local no Mato Grosso, no período entre 1834 e 1857,
Ernesto Cerveira de Sena demonstra como naquela província o vice-
presidente não era um mero substituto. Nesse sentido, Sena enfatiza a
importância desses agentes políticos na organização do poder local no
Mato Grosso. A esse respeito ele também enfatiza que o posto de vice-
presidente era “ambicionado pelos grupos locais, ao mesmo tempo
em que servia de moeda de troca, seja entre o governo central e os

292
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

homens públicos da região, seja entre os próprios grupos políticos do


lugar” (SENA, 2012, p.76).
O cargo de vice-presidente foi criado pelo Ato Adicional
de 1834, que também instituía um regimento para os presidentes de
província, função já existente desde 1823. Enquanto os presidentes
eram homens de fora da província, escolhidos pelo Imperador para
atuarem como seus “delegados” (SLEMIAN, 2007, p.20), os vice-
presidentes eram sugeridos pela Assembleia provincial, fazia-se uma
lista com seis nomes que era levada para a escolha do imperador
(SLEMIAN, 2007, p.21). Segundo Sena, o vice-presidente era
quase sempre membro da elite política provincial, que tinha seus
correligionários na Assembleia Legislativa Provincial (SENA, 2012,
p.81).
A trajetória política de Joaquim Marcelino da Silva Lima
foi marcada pela formação de um importante núcleo de apoiadores
que mantinham sua aliança com o barão em troca de favores e
cargos políticos. Além de ter sido escolhido várias vezes primeiro
vice-presidente, exercer o cargo de Diretor Geral de Índios por
aproximadamente 14 anos, ocupado a presidência da província do
Espírito Santo por muitos anos, Silva Lima também foi deputado
provincial em cinco legislaturas (DAEMON, 2010).

A Diretoria Geral dos Índios no Espírito Santo (1846-1860)


O Diretor Geral de Índios era nomeado pelo Imperador.
Na província do Espírito Santo o primeiro Diretor Geral foi um
dos políticos mais influentes da região, Joaquim Marcelino da Silva
Lima, o barão do Itapemirim. O recorte escolhido para analisarmos
a atuação da Diretoria Geral dos Índios no Espírito Santo, durante a
gestão do barão do Itapemirim, entre 1846 e 1860, se deu em função
das limitações dadas pelas próprias fontes para outros períodos.
As correspondências da Diretoria Geral dos Índios, encontradas
no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, correspondem
exatamente ao período em que o barão esteve à frente daquela
administração, ou seja, 1846-1860. A partir desta data não encontrei

293
Das utopias ao Autoritarismo

uma documentação específica da Diretoria, sendo que a questão dos


povos indígenas ficou dispersa em outros documentos, como aqueles
relativos à política de terras e colonização.
Segundo Levy Rocha, por decreto de D. Pedro II, de 2 de
Julho de 1846, José Marcelino da Silva Lima foi nomeado Diretor Geral
dos Índios da província do Espírito Santo, gozando das honras de
Brigadeiro. Já Sônia M. Demoner menciona o ano de 1845 como data
inicial do exercício de José Marcelino da S. Lima na Diretoria Geral
dos Índios. Não encontrei o documento citado por Rocha, e Demoner
apenas menciona a data sem nomear a fonte de sua informação. No
entanto, em minha investigação documental das Correspondências
relativas à Colonização e Catequese (1843-1860), a rubrica de José
Marcelino da Silva Lima como Diretor Geral dos Índios só aparece
entre 1846 e 1860.
A tabela nos dá uma dimensão de como as informações
acerca da Diretoria Geral de Índios ficou escassa a partir de 1860,
quando o barão do Itapemirim faleceu. Interessante notar também
que um dos maiores adversários locais do barão, Comendador João
Nepomuceno Gomes Bittencourt , assumiu a Diretoria Geral dos
Índios e nela ficou até 1867, quando o filho do barão do Itapemirim
foi nomeado para o cargo. Além de ter exercido diversos cargos
políticos, o barão do Itapemirim era dono de uma das fazendas mais
ricas e prósperas da região sul do Espírito Santo, na então vila de
Itapemirim. Levy Rocha nos diz que sua fortuna era uma das maiores
daquela região, que “foi proprietário de diversas fazendas e algumas
centenas de escravos e os seus domínios estendiam por muitas
léguas no sul do Estado, possuindo, ainda, a seu serviço, dois navios
costeiros” (RELATÓRIO PROVINCIAL, 1867, p.41). Todavia, é ao
menos curioso que alguém com uma posição política consolidada e
uma fortuna considerável tenha tido interesse em exercer por 14 anos
o posto de Diretor de Índios.

294
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Tabela I: Diretores Gerais de Índios do Espírito Santo (1846-1889)


Nome Ano

Joaquim Marcelino da Silva Lima Entre 1846 e 1847

Gaspar Manoel de Figueiroa


Entre 1848 e 1849
(interino)3
Joaquim Marcelino da Silva Lima Entre 1850 e 1854
Doutor Rufino Ruiz Lapa
1855
(interino)4
Joaquim Marcelino da Silva Lima Entre 1856 e 1860
Sem Informação Entre 1861e 1866
Comendador João Nepomuceno
?Até 18675
Gomes Bittencourt
Capitão Joaquim Marcelino da
Silva Lima (filho do falecido barão 1867
de Itapemirim)
Sem Informação Entre 1868 e 1885
Comendador Domingos Vicente
1886-1889
Gonçalves de Souza
Fonte: APEES (Arquivo Público do Estado do Espírito Santo).Correspondências
relativas à Colonização e Catequese, 1848-1860. Fundo Governadoria, série 751,
livro 387.

Durante a gestão do barão do Itapemirim como Diretor


Geral dos Índios os dois principais aldeamentos da província, o do
Mutum, no rio Doce e o Imperial Afonsino, no rio Castelo, foram
criados. Apesar do grande número de indígenas que habitavam o

3  Substituiu ao barão de Itapemirim na Diretoria Geral dos Índios enquanto o


mesmo tratava da saúde na corte.
4  Substituiu ao barão de Itapemirim na Diretoria Geral dos Índios enquanto o
mesmo tratava da saúde na corte.
5  De acordo com o Relatório do presidente de província, Carlos de Cerqueira
Pinto, no ano de 1867, obtive a informação de que naquele ano o comendador João
Nepomuceno Gomes Bittencourt obteve a demissão do cargo de Diretor Geral de
Índios, sendo substituído pelo filho do falecido barão do Itapemirim, o capitão
Joaquim Marcelino da Silva Lima. <http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial/
esp%C3%ADrito_santo>. Acesso em 28/08/2017

295
Das utopias ao Autoritarismo

Espírito Santo, Vânia Maria Losada Moreira destaca que estes estavam
em diferentes estágios de contato e de transculturação, governados
por meio de regras legais ou costumeiras (MOREIRA, 2010).

O Barão do Itapemirim e as terras dos índios de Benevente:


uma querela com a colônia do Rio Novo
Havia uma diversidade tão grande de povos indígenas
na província do Espírito Santo no século XIX, que a genérica
denominação Botocudo ou Purí não consegue exemplificar. E
como enfatizou Vânia Moreira, eles estavam inseridos em distintos
estágios de contato com a sociedade nacional. A Diretória Geral dos
Índios foi criada no Espírito Santo em 1846 sob a gestão do barão
do Itapemirim, que nela permaneceu até seu falecimento em 1860.
Durante esse período encontramos na documentação um interessante
conflito envolvendo os índios da vila de Benevente, atual Anchieta, e a
colônia do Rio Novo. Nessa querela o barão do Itapemirim se colocou
do lado de seus tutelados.
A colônia do Rio Novo foi um empreendimento particular
da Associação Colonial Agrícola do Rio Novo, que obteve autorização
do imperador para a fundação deste estabelecimento, por meio
do Decreto Imperial 1.566, de 24 de fevereiro de 1855 (BRASIL,
COLEÇÃO LEIS DO IMPÉRIO, 1855, p.154). O presidente da
Associação, Caetano Dias da Silva, era português e grande proprietário
em Itapemirim e, segundo nos informa Johann Jakob Von Tschudi
(1860), tinha parentesco com a família Bittencourt, que como vimos,
era a grande opositora dos Silva Lima. A sede da nova colônia foi na
fazenda de Caetano Dias da Silva, denominada Limão. O governo
Imperial concedeu 20 léguas de territórios devolutos, entre os rios
Itapemirim e Benevente, para a fundação da colônia e a vinda dos
primeiros imigrantes.
A querela que surgiria em torno da fundação desta colônia
envolveu as terras dos índios de Benevente. Estas, vendidas para
Caetano Dias da Silva para o estabelecimento da sobredita colônia,

296
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

estavam ocupadas por indígenas, tendo sido registradas pelo Diretor


Geral de Índios, Barão de Itapemirim, em 28 de março de 1855.
O barão de Itapemirim, como Diretor Geral dos Índios
desta província do Espírito Santo, em observância dos
artigos 91, 94 e 100, do Cap. 9º do Regulamento de 30
de Janeiro de 1854, para execução da Lei nº 601 de 18 de
Setembro de 1850, declara que os índios do município
de Benevente são há muitos anos senhores e possuidores
das terras compreendidas entre a margem do norte do rio
Itapemirim e a lagoa denominada Maimbá[...] (REGISTRO
PAROQUIAL DE TERRAS DE BENEVENTE, 1855)
O Barão de Itapemirim registrava as terras daqueles
indígenas em consonância com as determinações da Lei de Terras
de 1850 e de seu regulamento de 1854. Segundo Márcia Motta, a Lei
de Terras de 1850, regulamentada pelo Decreto Nº 1.318, de 30 de
janeiro de 1854 buscou resolver as situações ligadas à ocupação das
terras no Império (MOTTA, 1998, p.160). Além disso, determinou
os meios de acesso e outras questões relativas à reserva de porções
de terras devolutas6 para colonização, abertura de estradas, fundação
de povoações e para o aldeamento de índios (MOTTA, 1998, p.141).
Todos os possuidores de terras a partir da sobredita lei deveriam
registrar as suas terras, qualquer que fosse o título. O Registro
Paroquial de Terras servia, assim, como uma declaração de posse,
mas não garantia a propriedade, sendo apenas a primeira etapa de um
longo processo, custoso e demorado.
O art. 94º do Decreto de 30 de janeiro de 1854, que
regulamentou a Lei de Terras de 1850, foi citado pelo barão do
Itapemirim para justificar o registro de terras possuídas por indígenas
considerados “menores”. Segundo este artigo, os registros devem ser
feitos por “seus pais, tutores, curadores, diretores ou encarregados da
administração de seus bens” (VASCONCELLOS, 1885, p.80). Por que
o barão do Itapemirim acionou os mecanismos legais do Decreto de 30

6  Segundo Márcia Motta, a Lei de Terras de 1850 definiu como devolutas todas
as terras que não estavam sob os domínios públicos e nem pertencessem a nenhum
particular, independente da ocupação. O acesso a essas terras só se daria, em teoria,
por compra.

297
Das utopias ao Autoritarismo

de janeiro de 1854 para defender a legitimidade das posses dos índios


de Benevente? A hipótese é que o Diretor Geral de Índios tinham esses
índios incluídos nas suas redes de alianças.
Para Márcia Motta, “registrar ou não sua terra, contar ou
não com o reconhecimento de seus confrontantes era, em suma, uma
questão difícil e estava relacionada á existência ou não de uma teia
de relações pessoais já consolidadas, capaz de legitimar os limites
territoriais declarados” (MOTTA, 1998, p.72). O barão registrou as
terras dos índios de Benevente sem mencionar os confrontantes. A
questão que se coloca é por que o barão de Itapemirim compra essa
briga contra o empreendimento colonial do Rio Novo e a favor dos
indígenas de Benevente? Estes índios tinham realmente direitos
sobre aquelas terras? Essas questões são relevantes, primeiramente,
para compreendermos o quanto as alianças com os indígenas do sul
da província eram importantes para as redes de poder do barão de
Itapemirim e em segundo, para a compreensão das políticas indígenas
acionadas para a manutenção dos direitos originários sobre suas
terras.
O barão do Itapemirim, além de recorrer à Lei de Terras e
seus regulamentos para registrar as terras dos índios de Benevente,
partia do princípio de que eles detinham sobre as terras um direito
que se originava da qualidade de primeiros e naturais habitantes
das terras do Brasil. Logo, o direito daqueles índios de Benevente
se fundava justamente no caráter étnico. Segundo o jurista Mendes
Júnior, “[...] aos índios estabelecidos não há uma simples posse, há
um título imediato de domínio, não há, portanto, posse a legitimar, há
domínio a reconhecer [..]” ( MENDES JÙNIOR, 1912, p.59).
O diretor da colônia do Rio Novo e seus advogados
utilizaram o discurso da descaracterização étnica dos índios de
Benevente para questionar o direito deles sobre as terras em litígio,
afirmando que aqueles indígenas estavam confundidos à população
nacional (CORRESPONDÊNCIA DA REPARTIÇÃO GERAL DE
TERRAS, 1855, p.22). Esse discurso foi utilizado em várias situações
que envolviam a tomada das terras indígenas.

298
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Em abril de 1855 o governo Imperial enviara o tenente


João Joaquim da Silva Guimarães para medir as terras concedidas ao
empresário Caetano Dias. No entanto, o Diretor Geral dos Índios,
que na época também ocupava a presidência da província, mandou
suspender os trabalhos da demarcação (CORRESPONDÊNCIA DA
REPARTIÇÃO GERAL DE TERRAS, 1855, p.22). Ao embargar
a demarcação daquelas terras, o barão do Itapemirim foi acusado
por seus opositores de estar protegendo “índios de nome”7 e de
ter interesses obscuros sobre aqueles territórios. A querela pôde ser
recuperada analisando alguns jornais da corte e da província do
Espírito Santo. Além disso, achamos alguns rastros desse embate na
pauta dos debates da Assembleia Geral.
De simples polarizações com discursos e acusações nos
principais jornais da província e da corte, a questão da gestão do barão
do Itapemirim transformou-se, pouco depois, em pauta dos deputados
na Assembleia Geral Legislativa. Dentro do expediente da sessão do
dia 25 de agosto de 1857 estava em discussão sobre as denúncias feitas
contra o barão pelos “males que tem causado a colônia do Rio Novo”
(DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 1857, p.2). A sessão foi adiada e não
encontrei mais registros de possíveis desdobramentos desse debate.
Contudo, as denúncias contra a forma com que o barão de Itapemirim
lhe dava com a colônia do Rio Novo continuaram.
No discurso deputado Pereira Pinto à Câmara dos
Deputados, na sessão de 25 de agosto de 1857, ele teceu algumas
considerações a respeito do desenvolvimento da província do Espírito
Santo. Mencionou o problema da distinção entre pequenas e grandes
províncias, por sua arrecadação e representação e das dificuldades
encontradas pelo Espírito Santo em adquirir recursos do governo
imperial. Segundo o deputado, uma das principais fontes para o
crescimento da província do Espírito Santo estava no desenvolvimento
7 Manuela Carneiro da Cunha (2012) nos mostra como o direito originário
dos indígenas a suas terras foi burlado ao longo da História. No período imperial
muitos subterfúgios foram lançados para esse fim, um dos mais recorrentes era o
discurso de uma aparente assimilação, considerando os índios totalmente integrados
à sociedade nacional, e, portanto, sem direito a suas terras, já que eram classificados
como “índios de nome”.

299
Das utopias ao Autoritarismo

da colonização (JORNAL DO COMÉRCIO, 1857, p.1). Continuou


sua fala expondo os problemas que o projeto de colonização estava
sofrendo por falta de investimento do governo geral, pondo em
destaque a questão da colônia do Rio Novo e a interferência do barão
de Itapemirim no desenvolvimento da mesma.
No entendimento do deputado, o primeiro entrave que
o barão de Itapemirim pôs ao andamento da colônia do Rio Novo
consistiu em uma alegação de que as terras que Caetano Dias havia
contratado com o governo imperial pertenciam ao patrimônio dos
índios de Benevente (JORNAL DO COMÉRCIO, 1857, p.1). O
presidente da sessão alertava ao deputado sobre o desvio do assunto,
mas o mesmo continuou sua exposição e observava que “o Sr. Barão
de Itapemirim exercendo o lugar de diretor dos índios, desde 10 ou 12
anos, jamais lembrou-se de pugnar pelos seus interesses, antes sempre
consentiu que sobre esses terrenos se tivessem posses, e ele mesmo as
fez, como consta” (JORNAL DO COMÉRCIO, 1857, p.1).
A questão em torno da não medição dos terrenos vendidos
para a Associação colonial Rio Novo foi também pauta no jornal Correio
Mercantil, no ano de 1855. A crítica recaia sobre o então presidente da
província do Espírito Santo, Sebastião Machado Nunes, que segundo
o jornal, não era um presidente, “mas somente instrumento cego de
um indivíduo que sabe aproveitar-se das circunstâncias” (CORREIO
MERCANTIL, 1855, p.1). O alvo direto da foi o barão de Itapemirim
acusado de supostamente ter manipulado Machado Nunes a
nomear um parente seu para juiz comissário para os municípios de
Itapemirim, Anchieta e Guarapari. O jornal concluiu dizendo que o
Diretor Geral de Índios era um “homem envolvido em questões de
posse de terreno” (CORREIO MERCANTIL, 1855, p.1). Certamente
o Jornal queria expor que Sebastião Machado Nunes, como aliado do
barão de Itapemirim, usou sua posição como presidente de província
para favorecer a nomeação de outros aliados do barão em cargos
importantes, como o de juiz comissário.
O Jornal Correio Mercantil publicou, em 6 de maio de
1855, um abaixo-assinado de alguns fazendeiros e lavradores do
município de Itapemirim contra barão do Itapemirim. Com o título

300
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

“Súplica”, acusavam o Diretor Geral dos Índios de pretender tornar os


índios “legítimos possuidores das terras compreendidas entre os rio
Itapemirim e o de Benevente e isto sob o pretexto de um dos antigos
reis do Reino Unido” (CORREIO MERCANTIL, 1855, p.1). Segundo
a acusação, o Diretor Geral dos Índios teria entrado com recurso ao
governo para impedir a medição de vinte léguas de terrenos devolutos
vendidos pelo governo imperial ao major Caetano Dias da Silva.
Os fazendeiros argumentavam dois motivos para justificar
seus direitos às posses legítimas daquelas terras. Em primeiro lugar
porque “são possuidores de suas respectivas propriedades por si e por
seus antepossuidores, desde longas datas, o que só basta para firmar
o seu direito” (CORREIO MERCANTIL, 1855, p.1). Segundo, porque
o Diretor Geral dos Índios demorou muito tempo para reconhecer
aqueles terrenos como sesmaria dos índios de Benevente (CORREIO
MERCANTIL, 1855, p.1). O documento deixa claro que esses
fazendeiros que viviam na terra registrada para os índios de Benevente
eram posseiros que invadiram aqueles terrenos e reclamavam pra si
o direito sobre parte dessas terras. Esse cenário de conflitos pelas
terras da antiga sesmaria indígena de Benevente envolveu diferentes
interesses: dos próprios índios, do empreendedor da colônia Rio
Novo, do barão do Itapemirim e de posseiros que viviam naquelas
terras.
Em defesa do embargo feito pelo Diretor Geral de Índios,
barão do Itapemirim, à demarcação de terras na sesmaria indígena, o
jornal Correio da Vitória afirmava, em suas páginas que a sociedade
do Rio Novo e seus advogados teriam, juntamente com a presidência
da província, ignorado o mais essencial: que as terras pertenciam
aos índios de Benevente. De acordo com o jornal, ignoraram que
as doações e sesmarias concedidas aos índios “foram restabelecidas
e confirmadas, não só antes, mas como depois da incorporação da
capitania ao domínio da coroa [...]” (CORREIO DA VICTÓRIA,
1855, p.1). Salientou-se ainda que, já em 1759 aquelas terras foram
demarcadas e estavam na posse dos índios da então aldeia Reritiba,
depois transformada em vila com o nome de Nova Benevente
(CORREIO DA VICTÓRIA, 1855, p.1). Mas os advogados da

301
Das utopias ao Autoritarismo

Sociedade do Rio Novo responderam “que a doação de terras para o


aldeamento ficou sem efeito por não ter havido tal aldeamento [...]”
(CORREIO DA VICTÓRIA, 1855, p.1).
Os advogados estavam errados em afirmar que havia
prescrevido o direito dos índios de Benevente sobre suas terras. O
reconhecimento do direito dos índios sobre suas terras foi estabelecido
para certos grupos, e como demonstra Manoela Carneiro da Cunha, a
Lei de Terras de 1850 determinou que as terras dos índios não poderiam
ser enquadradas na categoria de devolutas, pois os títulos dos índios
sobre suas terras era originário (CUNHA, 2012, p72). Contudo, para
além da discussão teórica da lei, Vânia Moreira enfatiza a necessidade
de compreendê-la na prática, e de que forma ela afetou a experiência
histórica dos índios nos contextos analisados. Ao analisar a aplicação
da lei de Terras na província do Espírito Santo, Moreira (2002, p.163)
enfatizou que a interpretação da lei foi ambígua, em certos momentos
favorecia o direito dos indígenas e em outros os espoliava em favor da
colonização. Nesse sentido conclui a historiadora, que a interpretação
da lei poderia reconhecer aos índios o título legítimo sobre as terras
de antiga sesmaria ou, ao contrário, negá-lo e restituir aquelas terras
ao Estado como devolutas.
A Lei de Terras de 1850 seria enfática no sentido de
estimular a colonização das terras devolutas, e como colocou Moreira,
sua interpretação muitas vezes entendeu sob esse conceito as terras
indígenas. O embargo do barão à demarcação das terras dos índios de
Benevente para a Colônia do Rio Novo não foi aceito pelo Ministério de
Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, que ponderou,
contudo, que fosse fixado um prazo de no máximo seis meses, dentro
do qual os posseiros e sesmeiros da terra indígena de Benevente seriam
obrigados a legitimar e revalidar suas posses e sesmarias, sob pena de
entrarem em comisso, findo o prazo (CORRESPONDÊNCIAS DA
REPARTIÇÃO GERAL DE TERRA, 1855).
Apesar da decisão contrária aos índios de Benevente, as
terras em litígio só foram demarcadas para a Colônia do Rio Novo em
1862. Segundo nos informa Basílio Daemon (1834-1893), a colônia
do Rio Novo passou para o Estado em 1861, com a denominação de

302
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Imperial Colônia do Rio Novo, sendo dividida em dois territórios.


O 1.º Território foi dividido em lotes e vendido a prazo a colonos
estrangeiros em 1856, nas adjacências do rio Novo e Itapemirim. Já o
2º Território foi sendo demarcado a partir de 1861, ao longo dos rios
Piúma e Benevente.
As críticas à venda das terras dos índios de Benevente
continuaram nos jornais, como observamos no Correio da Vitória, já
no final do ano de 1855. O jornal afirmava que o governo não poderia
vender essas terras, pois “os índios que ainda existem, filhos, netos
e sucessores dos primeiros senhores e possuidores dessas doações
e títulos, são os verdadeiros donos dessas terras” (CORREIO DA
VICTÓRIA, 1855, p.2). Nesse sentido afirmava o Jornal, ancorado na
lei de Terras de 1850, que aquelas não eram terras devolutas, uma vez
que “os índios de Benevente não só tem, por si e seus descendentes de
antiga e nova raça, morada habitual e cultura, como também um solar
de foros e nobreza de vila e corpo de governança” (CORREIO DA
VICTÓRIA, 1855, p.2). Logo, eram terras com ocupação e cultivo e
não entravam na categoria de devolutas.

Considerações Finais
Certamente não podemos esquecer que as acusações contra
o barão de Itapemirim vinham de bandos antagônicos ao dele. Estes
grupos eram os mais diversos e variavam desde a escala local, provincial
e nacional. Vimos que localmente o barão foi construindo suas redes
de influência, casando com a filha de um abastado fazendeiro na
vila de Itapemirim, que também se destacava na política local. Na
província, o barão foi construindo suas alianças em torno da sua
posição política, ora como vice-presidente da província do Espírito
Santo, deputado e principalmente, substituindo os presidentes na
administração do executivo provincial. Na corte, o barão conseguiu
ser notado, foi considerado um dos “grandes do Império” e, portanto,
tinha acesso mais facilitado ao Imperador e seus ministros. Logo, não
podemos tomar essas denúncias, senão, como constatações da grande
influência que o barão de Itapemirim tinha na província do Espírito

303
Das utopias ao Autoritarismo

Santo. A partir destas observações cabe perguntar novamente; por


que um homem com o poder e prestígio de Joaquim Marcelino da
Silva Lima ficaria por 14 anos no cargo de Diretor Geral de Índios? O
registro da correspondência da Diretoria Geral dos Índios nos indica
que as ações do barão de Itapemirim como Diretor Geral de Índios
eram mais enfáticas e visíveis com os índios do sul da província do
Espírito Santo, especialmente os Purí.
A hipótese que procurei sustentar entende que o barão do
Itapemirim tinha seu poder e suas redes ancoradas não só em sua
riqueza e posição política, mas também em suas alianças, que não se
restringiram a seus correligionários políticos na província e na corte,
mas se estendiam aos indígenas que tinha sob sua tutela. Ao ficar por
14 anos na administração da Diretoria Geral dos Índios, Joaquim
Marcelino da Silva Lima deteve por igual período o controle da mão
de obra dos índios aldeados na província do Espírito Santo.
Nas disputas envolvendo as terras dos índios de Benevente o
barão do Itapemirim interviu a favor destes e os colocou sob suas redes
de proteção. Ao registrar as terras dos índios de Benevente Joaquim
Marcelino da Silva Lima comprou uma briga com o empreendimento
colonial Rio Novo. Para além de pensar o barão como um “protetor”
dos índios, entendemos que ele os tinha sob suas redes de interesse.
As terras dos índios de Benevente eram importantes nas disputas
entre o barão do Itapemirim e o presidente da colônia Rio Novo,
Caetano Dias da Silva. O barão conseguiu protelar por um tempo a
demarcação daquelas áreas em disputa e com isso favoreceu os índios
de Benevente, contudo, o processo de expropriação daquelas terras
continuou e se intensificou com a morte do Diretor Geral de Índios
em 1860.

Referências
Documentos do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo:
APEES (Arquivo Público do Estado do Espírito Santo). Registros Paroquiais
de Terras de Benevente. Fundo Agricultura, Série DCTC, Livro 75, 1854-
1857.

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APPES (Arquivo Público do Estado do Espírito Santo). Correspondências


relativas à Colonização e Catequese, 1843-1845. Fundo Governadoria, série
751, livro 386.
APPES (Arquivo Público do Estado do Espírito Santo). Correspondências
relativas à Colonização e Catequese, 1848-1860. Fundo Governadoria, série
751, livro 387.
Correspondências da Repartição Geral de Terras com a presidência da
Província do Espírito Santo. Fundo Governadoria, Série Novas Séries, Livro
nº 4, 20 de dezembro de 1855.
Correspondências da Repartição Geral de Terras com a presidência da
Província do Espírito Santo. Fundo Governadoria, Série Novas Séries, Livro
nº 4, 27 de dezembro de 1855.

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Correio Mercantil. Rio de Janeiro, Ano XII, nº 124, 6 de maio de 1855,
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Correio Mercantil. Rio de Janeiro, Ano XVI, nº 267, 30 de setembro de 1859,
p.2. Disponível em Biblioteca Nacional Digital: <http://bndigital.bn.gov.br/
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Diário do Rio de Janeiro. Ano XXXVII, nº 165, 18 de junho de 1857, p.2.
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305
Das utopias ao Autoritarismo

Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, Ano XXXII, nº 240, 31 de agosto de


1857, p.1. Disponível em Biblioteca Nacional Digital: <http://bndigital.
bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em 5 de setembro de 2017.
O Estado do Espírito-Santo. Vitória, Ano XIV, S/N, 10 de novembro de
1895, p.2. Disponível em Biblioteca Nacional Digital: <http://bndigital.
bn.gov.br/hemeroteca-digital/.Acesso em 5 de setembro de 2017.

Bibliografia:
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aprova os Estatutos da Companhia denominada – Associação Colonial do
Rio Novo. Coleção de Leis do Império do Brasil – 1855- Tomo XVI, Parte I.
Daemon, Basílio, 1834-1893. Província do Espírito Santo: sua descoberta,
história cronológica, sinopse e estatística. Coordenação, notas e transcrição
de Maria Clara Medeiros Santos Neves. – 2.ed. – Vitória: Secretaria de Estado
da Cultura; Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2010.
MENDES JÚNIOR, João (1912). Os indígenas do Brazil, seus direitos
individuais e políticos. São Paulo: Typ. Hennies Irmão.
TSCHUDI, Johann Jakob Von. Viagem à província do Espírito Santo:
imigração e colonização suíça 1860. Vitória : Arquivo Público do Estado do
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VASCONCELLOS, José Marcelino Pereira de. Livro das Terras ou coleção
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DEMONER, Sonia Maria. A presença de missionários capuchinhos no
Espírito Santo - século XIX. Vitória, FCAA, 1983.
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MOTTA, Kátia Sausen da. Juiz de paz e cultura política no início do
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OLIVEIRA, Jessica Mafrim de. Entre “grandes” e titulares: os padrões de
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307
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Uma região de fronteira: anomia, grilagem e


desordem na Zona Contestada
Leonardo Zancheta Foletto1

No tempo em que a metrópole dividiu em capitanias o


território da América Colonial Portuguesa e entregou a colonização aos
donatários, não havia nenhum conhecimento geográfico do interior,
senão numa pequena área, próximo aos locais mais populosos. As
regiões litorâneas eram as que mais prosperavam, por isso, em algumas
das Cartas Régias de doação, foi impossível demarcar o ponto em que
elas terminavam, em outras, como na de Vasco Fernandes Coutinho,
tomou a forma genérica – “[...] as cinquentas léguas se estenderão e
serão de largo ao ponto da costa, e entrarão na mesma largura pelo
sertão e terra firme dentro tanto quanto puderem entrar e for da
minha conquista [...]” – (AGUIRRE, 1922, p. 8).
Competia ao donatário, portanto, penetrar o território afim
de submetê-lo efetivamente à sua jurisdição, sob pena de perdê-lo. Mas,
doutra parte, o próprio governo do rei criou, por outros motivos, todas as
dificuldades imagináveis à penetração por parte do donatário da Capitania
do Espírito Santo, um dos mais infelizes do século XVI (A DIVISA
ESPÍRITO SANTO E MINAS GERAIS, 1947, p. 1). Nesse sentido,
Os confins ocidentais do Espírito Santo que, primitivamente
entravam pela terra firme a dentro tanto quanto pudessem
entrar e fossem da conquista portuguesa, como prescrevia
a carta régia de doação a Vasco Fernandes Coutinho,
de 1º de Janeiro de 1534, foram sendo paulatinamente
recalcados para leste, pelas conquistas que sucessivamente
realizaram no sertão, os penetradores de São Paulo e
de Minas, na incessante procura das riquezas minerais
(LAUDO ARBITRAL DO SERVIÇO GEOGRÁFICO E
HISTÓRICO DO EXÉRCITO, 1945, p. 4).

1  Licenciado em História. Mestrando em História Social das Relações Políticas


pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGHis) pela Universidade Federal
do Espírito Santo (Ufes). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do
Espírito Santo (FAPES). lzfoletto@gmail.com.

309
Das utopias ao Autoritarismo

A Zona do Contestado (Ver figura 1), que compreende boa


parte do vale do rio Doce, foi palco de embates desde o começo da
sua colonização. Após a chegada dos primeiros colonos à região, até
então desconhecida e inóspita, tiveram que colocar à prova sua força
e vontade para “desbravarem” a região. Além de enfrentarem todas
adversidades naturais à região – coberta por densas florestas, repletas
de animais selvagens e habitadas em sua maioria pelos botocudos -,
também se defrontaram contra os infortúnios inerentes às ambições
políticas e econômicas do próprio homem (PONTES, 2007, p. 15).
Não se estabeleceu nenhum ato oficial em que ponderava
a expansão para o litoral. Tanto a carta régia de 23 de novembro
de 1709 criando a capitania geral de São Paulo e Minas, como o
alvará de 2 de dezembro de 1720, desligando Minas e elevando-se à
categoria de capitania, silenciaram quanto aos limites com o Espírito
Santo. Só posteriormente (início do século XIX), quando se iniciou
as primeiras comunicações diretas2, em virtude das necessidades do
fisco, foi praticado o primeiro ato estabelecendo uma linha divisória
entre as capitanias de Minas Gerais e Espírito Santo (LAUDO
ARBITRAL DO SERVIÇO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DO
EXÉRCITO, 1945, p. 4).
Não havia interesse em demarcar, com precisão, as divisas
entre as duas capitanias. Era tudo mata cerrada, a zona limítrofe ao
norte do rio Doce, era, naquele tempo, quase inacessível, por causa
dos ferozes índios aimorés, que a habitavam. Nenhum ato concreto
de jurisdição era praticado em tão longínquas e inacessíveis terras. A
demanda por conhecer e determinar os pontos de confinação entre
as Capitanias (mais tarde entre as Províncias e, finalmente, entre os
Estados federados) surgiria apenas mais tarde, com a utilização dos
espaços territoriais e com a prática neles da jurisdição estatal – abrindo
espaço para a consequente ação tributária. Só então começavam a
ocorrer os conflitos jurisdicionais, demandando uma definição mais

2  Mais importante que todas estas novas vias de penetração do litoral para
Minas, é a do Rio Doce. Ela ocupa seriamente a administração pública porque,
geograficamente, é de fato pelo Espírito Santo, e não pelo Rio de Janeiro, a saída
natural da Capitania.

310
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

precisa dos limites territoriais de cada um dos estados (ANDRADE;


OLIVEIRA, 1958, p. 253).

Figura 1: Mapa dos municípios que compunham a Região Litigiosa ao norte do rio
Doce até 1963. Fonte: MURAMATSU (2015, p. 105).

311
Das utopias ao Autoritarismo

O ápice da chamada questão lindeira se dá a partir do início


do século XX, quando os mineiros iniciaram um pujante processo
de expansão agrícola em direção à Serra dos Aimorés, a leste do seu
território. Em busca de uma saída ao litoral, adentraram em densas
matas, excedendo seus limites territoriais, até aquele momento
incertos e, em tese, pertencentes ao Estado do Espírito Santo. No
mesmo passo, capixabas e baianos começaram a fazer um movimento
semelhante, porém, rumo a oeste.
Desde o fim do século XVIII, com o declínio da produção
aurífera, a população mineira começou a se deslocar em busca de outras
atividades que pudessem substituir a mineração. Com o início da
República no Brasil, concedendo autonomia administrativa, jurídica
e tributária aos estados, deu novos contornos às questões territoriais.
Passa a ocorrer, segundo Pontes, um “[...] movimento centrífugo,
acarretando frentes de ocupação em todas as direções, principalmente
rumo ao Leste, de encontro ao mar, do qual precisava para escoar seus
produtos [...]” (PONTES, 2007, p. 38). Tratava-se, doravante, da busca
por ensejos em garantir as necessidades à sobrevivência. Conforme
acentua Foweraker (1982, p. 42) “[...] os camponeses vão para a
fronteira em busca de terras para se estabelecer, e assim proverem sua
subsistência [...]”.
A migração mineira em direção à Serra dos Aimorés foi
amplamente apoiada pelos órgãos oficiais. Vale destaque, como por
exemplo, a atividade organizada pela Companhia do Mucuri, dirigida
por Teófilo Otoni, que estimulava a ocupação das montanhas ao leste.
Nas primeiras décadas do século XX, a Serra dos Aimorés era ainda
uma região desconhecida, tanto pelo governo do Estado do Espírito
Santo quando pelo de Minas Gerais. Terras ainda a serem exploradas,
ocupadas e colonizadas. Contudo, o movimento migratório
mineiro vai ocorrer, naquele contexto, sem que ainda houvesse uma
demarcação dos limites entre as duas unidades federativas. Nestas
circunstâncias, afirma Elio Ramires (2015, p. 38):
[...] o deslocamento da frente de expansão mineira
colocava na ordem do dia, para o Espírito Santo, a questão
da demarcação definitiva da divisa, em função de que este

312
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

considerava que o avanço mineiro ocupava terras que


considerava estar sob sua jurisdição. O apoiamento [sic],
através de investimentos em infraestrutura, à criação de
povoados e vilas por cidadãos mineiros, levado a cabo
pelos sucessivos governos de Minas Gerais, provocava
apreensões, acreditamos que, em certa medida, descabidas,
no imaginário das autoridades capixabas, preocupadas
com a disposição bandeirante dos governos mineiros [...].
O despertar da década de 1920 entoará um cenário de
disputas mais agudas entre os Estados de Minas Gerais e do Espírito
Santo. As causas de tais ocorrências se darão devido à uma política
mais consistente de ocupação por parte do governo capixaba, tanto ao
norte, como, em especial, ao noroeste do Estado, visando firmar sua
jurisdição sob a região. Na administração do coronel Nestor Gomes
(1920-1924) o então governador fundou a Companhia Territorial de
Colonização para o Norte do rio Doce. Sob o comando e ‘patrocínio’
da Companhia, migrantes vindos do sul do Estado – em sua grande
maioria descendentes de italianos e outra parcela de pomeranos
– foram encaminhados à região. Segundo Ribeiro (1996, p. 94),
com a criação da Companhia Territorial, “[...] foram contratados
agenciadores para percorrer os diversos municípios do Estado com
propostas de vendas de terras nessa nova e fértil região do Norte do
rio Doce, sob condições bastante vantajosas [...]”.
Apesar das conquistas realizadas ao final do século XIX, a
região era ainda constituída, em sua maior parte, por densas florestas.
Como destaca Pontes (2007, p. 35) de “[...] Nova Venécia, cidade ‘boca
do sertão’ resultante da lenta penetração pelo vale do São Mateus
[...] subindo em direção à Serra dos Aimorés, seguia-se extensas e
intransponíveis matas”.
Além disso, perpetuava-se no imaginário das autoridades
capixabas uma outra ideia acerca da colonização. A ideia de
colaboração (presente no século XIX) já não era bem vista. Figurou-
se, nunca declarada, uma real contraposição à hipotética “invasão
mineira” em direção ao litoral capixaba – a busca de uma saída para
o mar – no qual foi denominado aqui de Marcha para o Leste. Desse
modo, o primeiro obstáculo a ser vencido, pensando na penetração

313
Das utopias ao Autoritarismo

dos colonos quando ao escoamento dos produtos, consistia na difícil


travessia pelo rio Doce. Conforme Borgo; Rosa e Pacheco (1996, p. 64),
“[...] o rio Doce era o limite natural entre o norte de terras devolutas e
o sul em processo de colonização”.
Moniz Freire (1892-1896) ainda no século XIX, havia
indicado a implantação de uma estrada de ferro que faria a ligação entre
a cidade de São Mateus à Serra dos Aimorés. Contudo, foi somente no
governo de Florentino Avidos (1924-1928), que o projeto de Freire
pode ser contemplado. O então governador anunciou a contratação
da estrada de ferro com um ramal até a cidade de Colatina-ES. De
acordo com Ramires (2015, p. 48-49):
Para transpor o rio Doce e interligar o sul ao norte,
foi projetada, construída e inaugurada uma ponte, a
qual estava integrada ao projeto da estrada de ferro. Tal
circunstância constitui-se, então, no primeiro projeto mais
consistente no sentido de acelerar a ocupação do norte,
desde o litoral até a Serra dos Aimorés, na divisa com
Minas Gerais, através de estrada de ferro e tendo a ponte
sobre o Rio Doce como ligação entre as regiões sul e norte
do Estado.
Iniciada a construção em abril de 1926 e inaugurada em
junho de 1928, a ponte ‘Florentino Avidos’, sobre o rio Doce em
Colatina foi utilizada como estrada de ferro somente entre os anos
de 1929 e 1941, quando foi desativada por determinação do Governo,
por ser de bitola estreita. No entanto, a ponte permitiu superar a difícil
travessia sobre o rio, influenciando consideravelmente na ocupação
ao norte e em partes do noroeste do Estado do Espírito Santo. Pontes
(2007, p. 90) afirma que:
[...] a travessia do rio Doce constituiu-se em uma das
grandes dificuldades, que apenas foi superada com a
construção da ponte de Colatina, em 1928. A partir de
então a região começou a ser povoada por capixabas
atraídos pelas imensas riquezas do território, procedendo
do sul para o norte [...].
Ainda assim, tal política de colonização restringiu-se
somente às áreas adjacentes ao rio Doce, em sua margem norte,

314
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

quando alcançando São Domingos e São Gabriel, cerca de 44 e 60 km


de Colatina respectivamente, não chegando ao extremo-noroeste do
Estado, como o município de Ecoporanga (RAMIRES, 2015, p. 49).
Em 1943, o então interventor do Espírito Santo, João
Punaro Bley, é nomeado para a diretoria da Companhia Vale do
Rio Doce (CVRD), o que ocasionou na substituição da interventoria
do Estado, assumindo, dessa forma, Jones dos Santos Neves. Santos
Neves, capixaba de nascença (natural de São Mateus-ES), governou o
Estado por duas vezes. Primeiramente como interventor federal, de 21
de janeiro de 1943 a 27 de outubro de 1945, depois como governador
eleito (PSD), de 31 de janeiro de 1951 a 31 janeiro de 1955. A política
de Santos Neves vai ser crucial para os rumos da contenda.
Nesse contexto, que ocorre no governo de Santos Neves a
denominada Marcha para o Oeste. Este nome ao projeto foi ainda
anunciado em 1943 e sua denominação fazia referência ao próprio
projeto formal e de mesmo nome anunciado pelo presidente Getúlio
Vargas, também 1943, durante o Estado Novo (1937-1945), que
tinha como objetivo ocupar os tais vazios demográficos no território
brasileiro mediante a um processo de colonização baseado em
pequenas propriedades rurais e doravante, pudesse ir alterando o
padrão com a apropriação dos grandes latifúndios.
Contudo, a Marcha para o Oeste, na versão Jonista, seria,
no ponto de vista das autoridades capixabas, uma resposta ao avanço
e ocupação mineira ao norte do Espírito Santo, em direção à Serra
dos Aimorés. O deslocamento de agricultores mineiros em direção
à Serra dos Aimorés provocava, como vimos, certas preocupações
aos governantes capixabas. Por isso, impunha-se a ocupação e a
posterior colonização da região. Endossamos as considerações de
Moreira (2000) quando trata da questão do processo de colonização
das margens do rio Doce que ocorreu, segundo a autora, à luz dos
vazios demográficos, interpretado por ela como sendo “[...] um clichê
produzido pelo Estado ou por parcelas da sociedade brasileira, com
profundas raízes na história nacional do século XX [...]” (MOREIRA,
2000, p. 144). Na concepção de Moreira (1998, p.185), a Marcha
para o Oeste seria, no ponto de vista das autoridades capixabas, uma

315
Das utopias ao Autoritarismo

“resposta” à suposta ameaça mineira em ocupar o norte do Espírito


Santo até o litoral, a partir da Serra dos Aimorés.
Além disso, sem diretivas precisas e através das afirmativas
e ambiguidades contidas nos variados discursos de Santos Neves
ficou explícito a sua real intenção e concepção de ocupar esses
vazios demográficos. Tal visão, apresenta nulas semelhanças com
a Marcha para o Oeste, de Getúlio Vargas. O planejamento de
gestão do governo Santos Neves foi organizado através do Plano de
Valorização Econômica, o que dentre outras coisas, pretendia integrar
física e economicamente do norte ao sul do Estado do Espírito Santo.
Objetivava ocupar a região, firmar a jurisdição capixaba sobre aquele
território mediante ao capital, com base na grande propriedade rural.
No entanto, a ocupação desses vazios demográficos eram, na verdade,
a Serra dos Aimorés, território que já vinha sendo ocupado por
migrantes e pequenos posseiros agricultores – processo esse que será
percursor de todo movimento político e agrário aqui estudado.
A região se torna, então, área de disputa não somente
entre os dois estados, mas também por indivíduos e grupos das mais
diversas naturezas (pecuaristas, grileiros, madeireiros), ávidos em
estabelecer seus potentados. Enquanto isso, a população camponesa
e pobre ficava à mercê dessas lideranças locais, que empregavam,
dentro da lógica da lei do mais forte, métodos extremamente violentos
para a manutenção ou aquisição de controle político e social.
No contexto da desordem, a região foi caracterizada por uma
fartura de terras férteis e devolutas, com uma volumosa quantia de
madeiras nobres. Deste modo, apresentou um acelerado crescimento
populacional, porém, nenhum dos dois Estados sensibilizou olhares
para a estruturação e desenvolvimento da região. Pontes (2007, p. 17)
argumenta que,
Não houve de nenhum dos lados envolvidos medidas
efetivas destinadas ao assentamento de colonos, à
distribuição de terras devolutas e à regularização das posses
existentes, ou sequer de imposição da lei e da ordem. Ao
contrário, ambos os governos acabaram por atuar de
forma leniente em relação às questões de ordem pública

316
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

e de desenvolvimento regional sustentado, legando as


comunidades que lá se estabeleceram a sua própria sorte,
sob tutela e abrigo da justiça de jagunços contratados
por latifundiários e madeireiros, ou mesmo de policiais
que agiam conforme suas visões e interesses particulares.
Ainda que houvesse “autoridades” legalmente constituídas
na Zona Contestada, faltavam-lhes exatamente aquele
atributo, levando os colonizadores a seguir a ordem
natural das coisas, predominando, na ausência do Estado
regulador, as normas impostas à força pelos poderosos
locais.
A presença capixaba no Noroeste a partir da década de 1940
fica explícita a preferência de ocupação na grande propriedade. A
própria Delegacia de Terras de São Domingos, distrito do munícipio
de Colatina no período, consolidou-se como um importante órgão
e mecanismo para a execução dessa política fundiária, atuando com
“vista grossa” aos requerimentos e compras ilegais realizadas por
grileiros, que alegavam ser proprietários das áreas, com documentos
até mesmo em delegacias de cidades mineiras.
A grilagem, de acordo com Martins (2010, p. 29), é como “[...]
uma verdadeira indústria de falsificação de títulos de propriedade [...]
registrados em cartórios oficiais, geralmente mediante suborno aos
escrivães e notários [...]”. Foweraker (1982, p. 151) ainda acrescenta
que:
A “grilagem” contribui para os conflitos legais que
afligem as regiões de fronteira, e, apesar de ser uma
prática predominantemente privada, não poderia
ter prosseguimento sem, pelo menos, o conluio das
administrações estadual e federal.
A grilagem usa da prática do sequestro cartorial da terra
por meios fraudulentos, ocasionando ao posseiro a perca do seu
pedaço de terra. Pode-se dizer, então, “[...] que o grileiro é aquele que
se apropria ilegal e fraudulentamente de terras, mediante o registro
e a apresentação de títulos de propriedade falsificados, ainda que
oficialmente, por cartorários inescrupulosos” (GARCIA, 2015, p. 133).
Na região contestada, a prática da grilagem tornou-se algo corriqueiro,

317
Das utopias ao Autoritarismo

sendo um estorvo na vida dos posseiros e pequenos camponeses.


Devido ao imbróglio jurisdicional sob o território, os grileiros forjavam
os registros das suas terras em cartórios de outro Estado. No que diz
respeito à prática de registro de terras localizadas, em tese no Espírito
Santo, nos cartórios mineiros, salienta Dias (1984, p. 122):
O título de posse que o fazendeiro Lamartine possui é
concedido pelo Estado de Minas Gerais e reconhecido
por autoridades do Espírito Santo. [...] Em Cotaxé, no
Córrego do Pitengo e na Estrela, nas áreas abrangidas
pelos alqueires do fazendeiro Lamartine, estão, há mais de
15 a 20 anos, posseiros que perderam seus direitos para
uma escritura fornecida pelo Estado de Minas.
No ano de 1951 ocorreu um episódio que merece mais
destaque, mesmo que superficial, pelo fato de muito bem ilustrar
as tensões e os conflitos na região. Tal episódio ocorreu no Distrito
de Oratório, Município de Barra de São Francisco. O relatório
confeccionado pelo 1º Tenente Hildo Fraga Barboza, enviado especial
pela Secretaria do Interior e Justiça em missão especial para a apuração
dos fatos é bastante enfático quanto ao clima de tensão que tomou
conta da região naquele ano:
[...] dirigi-me imediatamente àquela jurisdição, tendo
antes comunicado ao Senhor 2º Tenente Jonas Cardoso
de Mattos, Delegado de Polícia em Conceição da Barra,
a finalidade da minha incumbência [...]. Tive o primeiro
contato com o cabo Nicanor Costa, sub-delegado daquele
Distrito, que, informou-me ser a sua permanência ali
insustentável, devido a aversão votada contra si e os
demais e os demais policiais, pelos extremistas, ABRAÃO
LINCOLN DA CUNHA, JOSÉ CORRÊA e ANTÔNIO
DOMINGOS UNIDOR, cuja antipatia já havia atingido
as raias da violência (grifo nosso). [...] (RELATÓRIO
POLICIAL NO DISTRITO DE ORATÓRIO, 1951, p. I).
E segue o relatório da seguinte maneira:
De regresso, estive na Delegacia de Terras de Conceição
da Barra, onde fui atendido pelo respectivo titular JOSÉ
RUSCHI FILHO, que além das péssimas referenciais feitas
aqueles maus elementos, mostrou-me inúmeras queixas

318
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

por invasões, devido não só às medidas arbitrárias feitas


sobre as já legalisadas [sic], por ANTÔNIO DOMINGOS
UNIDOR, como também pelos posseiros açulados
contra os que ali já se encontra [sic] radicados a mais de
oito (8) anos pelo amotinador LINCOLN, secundado
pelo seu comparsa JOSÉ CORRÊA DE MELO [...]. Há
requerentes que mesmo possuindo documentos referentes
às suas posses já legalizadas, estão lutando para extirpar
de suas terras, os quistos invasores [...]. Ultimamente essa
crescente vem um crescente assustador, prejudicando não
só os requerentes, como também o patrimônio do Estado
como se ali fosse uma terra de ninguém [...] (Idem, p. II).
Além disso, nota-se, a partir do próprio relatório, a
violência que era praticada na região devido à posse da terra – situação
corriqueira em região típica de fronteira –
Nada ali é resolvido por meio suasórios e legais; as ameaças
são constantes e a morte espreita o viajor passo a passo das
emboscadas. Urge Senhor Secretário que sejam tomadas
providências imediatas. O próprio Cabo Sub-delegado de
Polícia em “Oratório”, que confirmará as minhas palavras,
pois, já o encontrei numa espécie de marcha forçada
rumando para esta capital, depois de haver mandado os
seus (2) dois soldados para o Patrimônio do “Ronco” no
Município de Barra de São Francisco, distante, seis (6)
léguas de sua sede policial [...] (Idem, p. II).
O relatório indica a ação de grilagem no distrito de Oratório
e que, de certo modo, explica a prática que sucedia-se em toda a região
do Contestado, ocasionando nos diversos conflitos:
Não era minha finalidade visitar a Delegacia de Terras
de São Mateus, mas, como as reclamações avolumam-se,
retrocedi e ali pude ouvir os requerentes José de Oliveira
Campos que tem terras requeridas nas margens do
Córrego 2 de dezembro e próximo a “Bebedouro”. Queixa-
se Oliveira, que com surpresa, que viu Antonio Domngos
Unidor, “medir” novamente as suas terras e dividí-las
entre Eufrosino e Antônio Soares (Idem, p. III).
Dois outros agricultores da região também relatam como
funcionava a ação dos grileiros:

319
Das utopias ao Autoritarismo

Gabriel Ribeiro de Souza [...] viu também suas terras


invadidas no córrego Santo Antônio, por José de Souza,
depois de medidas por Antonio Domngos Unidor.
Gustavo de Oliveira, também queixa-se de haver Manoel
Rodrigues e Isidoro Caetano, passando uma linha divisória
dentro de suas terras no Córrego Piriquito. Nas suas meias
palavras de homem do campo, explicou-me que não
tendo na ocasião dinheiro suficiente para pagar a entrada
dos documentos na repartição competente, procurou o
Senhor Laureano Diaz, proprietário de uma serraria em
Conceição da Barra, a quem propôz [sic] a entrega de seis
(6) qualidades de madeira de seus 200 hectares de terras,
em troca do pagamento de pouco menos de Cr$ 2000,00.
Vejamos senhor Secretário se isto é ou não uma verdadeira
espoliação (Idem, p. III).
Configura-se, dessa maneira, o padrão da grande
propriedade rural como política econômica e de ocupação no extremo-
noroeste do Estado do Espírito Santo, o que acaba por confrontar-se
com o modo de colonização que vinha em décadas anteriores sendo
praticado e existente na região. A atividade era organizada e realizada
no trabalho individual e familiar, em pequenas áreas produtivas. No
Espírito Santo, com a política de Jones dos Santos Neves, ocorrerá o
avanço da frente pioneira sobre os territórios na fronteira até então
ocupados por esses pequenos proprietários.
No final do século XIX e início do século XX a fronteira
passa a ser entendida como uma zona de transição entre um espaço
geográfico ocupado de maneira estável e contínua por uma sociedade
nacional (ALBUQUERQUE, 2005, p. 62). Os estudos norte-
americanos definem o termo boundary – sendo a fronteira como
divisão política e administrativa; e frontier como ideia de expansão,
de conquista e de movimento constante em direção a terras livres
ou selvagens. Tal acepção se afirmaria com as teorias desenvolvidas
pelo historiador Frederick Jackson Turner (1861-1932), em sua tese3
sobre o oeste americano. Para Turner (1986) o oeste americano seria
3  O clássico trabalho The significance of the frontier in American History
(1893) considerado o trabalho pioneiro na perspectiva da análise histórica, pensando
a fronteira como frente de expansão na sociedade norte-americana e sendo ela a
formadora da identidade e democracia americana.

320
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

o berço da alma americana, da democracia e da identidade nacional,


lugar em que os pioneiros de todas as nacionalidades teriam de lutar
pelo recuo da natureza selvagem. A fronteira seria, então, a frente
pioneira em expansão.
No começo do século XX, a teoria de Turner passaria a ser
mais difundida e serviria de modelo também para outros países, como
foi o caso do Brasil, notadamente nos anos de 1950 e 1970, quando
historiadores, geógrafos, sociólogos e demais pesquisadores adotam
o conceito de fronteira turniana para problematizar questões sobre
a expansão pioneira em regiões internas ao país. O mito da fronteira
norte-americana como lugar de perpetuação da identidade nacional
influenciou também os intelectuais da denominada Marcha para o
Oeste no Brasil, durante o período do Estado Novo. Os intelectuais
que estudavam as chamadas zonas pioneiras, passaram a identificar
a política de Vargas como sendo frentes pioneiras, possibilitando a
ocupação, do que chamavam de vazios demográficos.
No modelo de Leo Waibel (1955) a zona pioneira seria
como um espaço geográfico onde ocorrem a expansão acelerada da
agricultura, um grande fluxo de pessoas, um aumento vertiginoso dos
preços das terras, identificando cinco zonas pioneiras nos anos 1940: o
norte e o sudoeste do Paraná, o noroeste de Santa Catarina, o oeste de
São Paulo, a região norte do rio Doce (Espírito Santo e Minas Gerais)
e a região de Mato Grosso. Assim, o avanço dessa frente pioneira
acabara por ocasionar em grandes conflitos naquela sociedade que
ia se constituindo na fronteira – Serra dos Aimorés –. Nesse sentido,
afirma Ramires (2015, p. 57):
A ocupação do extremo-noroeste, como foi delineada na
Marcha para o Oeste, traz as indeléveis marcas do avanço
do capitalismo por intermédio das frentes madeireira
e pecuária, as quais tinham notórios grileiros de terras
devolutas como frente avançada, a garantia, quanto à
estrutura da propriedade da terra, da prevalência da
grande propriedade, o chamado padrão oligárquico de
apropriação, e a mais que evidente ausência de projetos de
colonização com base na pequena propriedade. Assim, o
Estado, na mediação dos conflitos, colocava-se ao lado dos

321
Das utopias ao Autoritarismo

grandes proprietários, os quais desenvolviam uma política


agressiva, baseada no uso da violência, contra aqueles
setores sociais que constituíam como entraves aos seus
projetos.
No que diz respeito ao processo da violência exercido
na área contestada, Walace Tarcisio Pontes constatou com muito
proeza que, quando o estado estava ali presente, “[...] essa presença
se fazia sentir mais na cobrança de taxas e impostos do que na
disponibilização de serviços básicos às comunidades [...]” (PONTES,
2007, p. 94). E acrescenta: “[...] para que os Estados impusessem seus
respectivos poderes de arrecadação, não poderiam prescindir de
fortes aparatos policiais [...]”, indicando, ainda, que tais aparatos eram
um dos principais vetores da violência. Além disso, o problema social
agravava-se pelo fato de quando o governo estadual posicionava-se,
geralmente, era em favor da elite econômica e política local, como
pode ser perceptível na própria imagem abaixo – policiais militares em
meio aos jagunços na defesa dos interesses dos grandes proprietários
(Ver figura 2).
Por se tratar de uma região praticamente sem lei, de uma
frágil e ineficaz organização social, o território que apresentou um
elevado número de habitantes nos anos de 1940 até meados de 1960,
foi acometido com um nímio esvaziamento populacional nas décadas
que sobrevieram.4
Portanto, ao cotejarmos os fenômenos políticos e sociais da
Zona do Contestado Capixaba, assumimos o entendimento segundo
o qual a região se enquadra naquilo que no campo da sociologia
denomina de estado ou situação de anomia, que, segundo o dicionário
de Filosofia Nicola Abbagnano (1998, p. 62), refere-se ao “[...] termo
usado para indicar a ausência ou a deficiência de organização social e,
portanto, de regras que assegurem a uniformidade dos acontecimentos
sociais [...]”.

4  Estes dados são apresentados na dissertação de Mestrado de PONTES,


Walace Tarcisio. Conflito agrário e esvaziamento populacional: a disputa do
contestado pelo Espírito Santo e Minas Gerais (1930-1970), 2007.

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Figura 2: POLÍCIA e jagunços capixabas ocupam território mineiro da “zona


contestada”. Fonte: Diário da Noite, Rio de Janeiro, p. 7, 9 jul. 1951.

Um dos autores que mais se debruçou sobre tal conceito


foi, sem dúvida alguma, Émile Durkheim, o qual tratou do conceito
a partir da reflexão daquela que talvez seja a sua questão central: a

323
Das utopias ao Autoritarismo

instituição social, para o autor um mecanismo de proteção da


sociedade, um conjunto de regras e procedimentos socialmente
padronizados, aceitos, reconhecidos e endossados por ela. O termo
é visto como uma condição em que as normas sociais e morais são
confundidas, pouco esclarecidas ou simplesmente ausentes, isto é,
as mudanças bruscas e repentinas na sociedade fazem com que as
normas, até então estabelecidas e satisfatórias, tornem-se obsoletas.
Em vista disso, os fenômenos políticos e sociais que ocorrem
a reboque do problema da questão lindeira não são casos isolados.
Paulo Pinheiro Machado (2004), analisando o caso do Contestado entre
os Estados do Paraná e Santa Catarina, vai salientar que o Contestado
seria como um filho infeliz de dois pais adotante: a ignorância dos
habitantes e falta de um policiamento eficaz e duradouro. Seguindo
o raciocínio, que mesmo que os estudiosos da Guerra Sertaneja não
relacionam o processo de disputa de limites como causa direta do
movimento caboclo, vista da complexidade deste movimento social,
destaca que o longo período de indefinição entre as divisas marcou
profundamente a natureza da ocupação da região e o perfil social e
político destas comunidades. Sendo assim, não nos abstém afirmar
que os problemas oriundos na fronteira entre Espírito Santo e Minas
Gerais podem também ser relacionados com a duradoura indefinição
dos limites entre os dois Estados, ocorrendo, em nosso entendimento,
na lógica de ausência do poder estatal, que seria o provedor da ordem
e da disciplina, no qual podemos associar ao conceito de anomia.
No contexto do avanço da frente pioneira que ocorrem
a união dos interesses entre madeireiros, pecuaristas e os próprios
grileiros. Todos esses necessitavam de usufruírem das terras para
expandirem suas atividades econômicas, em que, dessa forma,
juntaram-se na tentativa de expulsar os posseiros/pequenos
proprietários ali presentes. Para alcançarem tais objetivos utilizavam
de todos os mecanismos disponíveis – desde a contração dos próprios
jagunços como o apoio da polícia militar, conforme foi visto na figura.
Nessa tentativa, afirma Dias (1984, p. 12):
A indústria madeireira aliou-se aos latifundiários, numa
luta comum, tentando usurpar as posses e benfeitorias

324
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

camponesas. Para isso, com seu poder de compra,


contrataram jagunços e corromperam, durante anos, a
Justiça, a Polícia Militar do Espírito Santo e membros das
administrações Jones Santos Neves, Carlos Lindenberg e
Francisco Lacerda de Aguiar.
Os rotineiros choques que irão ocorrer entre os posseiros e
pecuaristas/grileiros na região extrema do noroeste, particularmente
em Ecoporanga no Estado do Espírito Santo, resultaram, dentre outras
situações, das divergências presentes entre os dois modos de produção
– os posseiros e pequenos camponeses praticam de uma agricultura
de subsistência, familiar e local, e posteriormente são acometidos
com os interesses das grandes fazendas, produção em larga escala e
a própria devastação das lavouras para o uso da pastagem, ou seja, a
produção da frente pecuária. Os choques entre essa elite agrária e a
resistência camponesa será um marco para a memória e história dessa
região. Esses choques são, num todo, segundo Foweraker (1982, p.
168) “[...] uma luta de classes, travada pela apropriação do excedente e
pela apropriação da terra [...]”.
A violência praticada contra os posseiros na região é
resultado de toda uma conjuntura que formou-se – uma região
de fronteira, o choque entre os modos de produção, a resistência
camponesa, a ausência de leis (de um Estado regulador) e por fim,
da indefinição dos limites (o que consequentemente ocasionava em
dupla jurisdição e quase nula prática da justiça) tornando a região
um “terreno fértil” para tais práticas violentas. Segundo Pontes (2007,
p. 92) essa violência era exercida mediante “[...] ameaças, agressões
físicas, espoliação de bens e atentados contra a vida que se sucederam
cotidianamente no rastro da impunidade e ausência quase completa
do Estado [...]”. Acirram-se os conflitos e transforma a região em
uma verdadeira “rinha” política, pela posse da terra e por fim, pela
sobrevivência. Dessa forma, a região aqui estudada – a Serra dos
Aimorés – se enquadra como uma região de fronteira, em que impera
os conflitos sociais e a violência.
Por meio das negociações fraudulentas com entidades
governamentais e demais autoridades, os grileiros buscavam

325
Das utopias ao Autoritarismo

comprovar a titularidade das terras já ocupadas por posseiros por


meio de títulos adquiridos e muitas das vezes forjados, originando
os conflitos pela posse da terra (GARCIA, 2015, p. 64). Intensifica-
se, dessa maneira, todas as formas de luta por parte dos posseiros,
que mediante às agressões e à falsos títulos, procuravam de todas as
formas resistir e não abandonarem as suas terras.
Os limites políticos e jurídicos dos Estados são territórios de
disputas. Parecem representar territórios claramente demarcados, no
entanto, as fronteiras estão em constante movimento, impulsionados
por correntes migratórias e um amplo desenvolvimento do
capitalismo, com estratégias geopolíticas, econômicas e culturais e por
diversas formas de circulação de mercadorias.
Podemos compreender a fronteira como um lugar
[...] privilegiado da observação sociológica e do
conhecimento sobre os conflitos e dificuldades próprios da
constituição do humano no encontro de sociedades que
vivem no seu limite e no limiar da história. É na fronteira
que se pode observar melhor como as sociedades se
formam, se desorganizam ou se reproduzem (MARTINS,
2014, p. 10).
Dessa maneira a fronteira assumiria diferentes caráteres “[...]
fronteira da civilização (demarcada na barbárie), fronteira espacial,
fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira
da história e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do
humano [...]” (Idem, p. 11). Mas um lugar que também se identifica
várias outras tensões: globalização e nacionalismo, nação e região e
etnia e nação.
A região de fronteira é vista como um lugar perigoso,
espaço da ilegalidade e da violência. Torna-se, então, área de disputa
não somente entre os Estados, mas também por indivíduos e grupos
das mais diversas naturezas, ávidos em estabelecer seus potentados.
Enquanto isso, a população pobre fica à mercê dessas lideranças
locais, que empregavam, dentro da lógica da lei do mais forte, métodos
extremamente violentos para a manutenção ou aquisição de controle
político e social.

326
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Portanto, as fronteiras são fenômenos bem complexos, não


se restringindo a limites estabelecidos nos mapas, divisas ou tratados
diplomáticos. As fronteiras não são abstratas e nem estáticas, mas
estão em constante movimento. A fronteira política hoje é entendida
como o lugar da alteridade, da passagem, do contato e um espaço para
integração entre as populações locais e as nações.

Referências Bibliográficas
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Secretaria do Interior e Justiça, 1947-1948.
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327
Das utopias ao Autoritarismo

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328
Parte IV
Brasil
Cultura, poder e religião
(Séculos XVIII e XIX)
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A Irmandade de Nossa Senhora das Mercês de


Mariana: vivência da fé, dinâmica associativa e
composição social (Minas Gerais, Brasil, séculos
XVIII-XIX)
Vanessa Cerqueira Teixeira1

Irmandades, devoção mercedária e apropriações do culto nas


Minas Setecentistas
As associações leigas, denominadas confrarias ou
irmandades, foram organizações fraternais compostas por indivíduos
irmanados por um sentimento de identificação, além de interesses
e devoções em comum. Unidas para a promoção da piedade, da
caridade e do culto público, eram dedicadas a um santo protetor ou
a uma invocação mariana específica, divididas por critérios como
qualidade, cor, condição, naturalidade ou profissão. Cada grupo social
possuía seus oragos preferenciais, pois se identificavam com suas
histórias ou por cada um garantir um “poder” distinto no mercado
de bens simbólicos, promovendo uma “assistência” diferenciada
(SALLES, 1963; BOSCHI, 1986, BORGES, 2005). Inspiradas nas
ordens mendicantes, sua origem remete à Idade Média Ocidental,
mais exatamente ao século XIII, e representaram a conquista dos
fiéis pela participação na vida religiosa (VAUCHEZ, 1995). Na Idade
Moderna, em meio à Reforma Católica e à expansão da fé com os
empreendimentos coloniais, disseminaram-se do Velho Continente
para os territórios recém-povoados, chegando à América portuguesa,
onde tiveram papel preponderante, com destaque para a região
mineira, tendo em vista as restrições de instalação do clero regular.2
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Ouro Preto. Bolsista Capes. E-mail: vanessa_vct@hotmail.com. Este
trabalho é um recorte da dissertação de mestrado defendida em fevereiro de 2017 no
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora.
2 A proibição acontecera sob a alegação de envolvimento no extravio do
ouro, por estimularem a população ao não pagamento de impostos, participação em
rebeliões e insubordinação à Coroa e Bispos diocesanos, já que seguiam sua própria

331
Das utopias ao Autoritarismo

Nesse sentido, juntamente à malha paroquial, elas edificavam seus


templos, administravam a vida religiosa local e prestaram auxílio
mútuo entre seus membros durante os infortúnios da vida e após a
morte. Em contexto escravista, possibilitavam a maior participação
dos “homens de cor” e o desenvolvimento da sociabilidade urbana,
bem como contribuíam para a constituição da configuração social e
das identidades, para a interação e ascensão sociais e demarcação de
lugar ocupado em uma sociedade hierárquica e desigual, como as de
Antigo Regime (BORGES, 2005; PRECIOSO, 2014; DELFINO, 2015).
Neste trabalho apresentaremos uma devoção em particular,
a destinada ao culto de Nossa Senhora das Mercês, disseminada nas
Minas Setecentistas por meio de uma apropriação desenvolvida pelos
“pretos crioulos”, os negros nascidos nos domínios portugueses da
América, entre escravos, forros ou livres (LIBBY; FRANK, 2009).
Nesse período, cerca de vinte associações leigas sob a invocação das
Mercês foram fundadas, e nos dedicaremos a uma delas, a irmandade
localizada em Mariana, primeira cidade e sede do Bispado da Capitania
(BOSCHI, 1986). A partir de uma perspectiva cultural (CHARTIER,
2002), almejamos, primeiramente, a compreensão da constituição do
culto mercedário por parte dos leigos em terras mineiras, para, em
seguida, adentrarmos em nossa proposta principal, compreendendo
quem foram os fiéis agremiados, esses sujeitos que se reconheciam
como crioulos e se organizaram enquanto grupo com interesses e
expectativas em comum. Mas, o que teria direcionado a formação
desses grupos em irmandades mercedárias?
A história de Nossa Senhora das Mercês tem origem
espanhola, datada aproximadamente de 1218, período marcado pela
dominação dos mouros que tomavam parte da Península Ibérica
e obrigavam os cristãos a tornarem-se cativos. Estes só alcançariam
a liberdade se convertidos à fé islâmica. A relação duradoura e
conflituosa entre cristãos e muçulmanos esteve intrinsicamente
ligada ao contexto de Nossa Senhora das Mercês, enquanto grande
mediadora dos fiéis escravizados. A Ordem Real e Militar de Nossa

hierarquia. Contudo, não foi possível controlar sua presença totalmente (BORGES,
2005).

332
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Senhora das Mercês da Redenção dos Cativos, que em 2018 celebra


seus 800 anos,3 teve origem pelos investimentos de São Pedro
Nolasco e São Raimundo da Penaforte, junto ao rei de Aragão D.
Jaime I. Muito difundida pela Europa através de ordens regulares e
das associações leigas iniciadas no século XIII, a devoção teve como
intuito inicial promover a libertação dos cristãos brancos cativos sob
o poderio mouro. Com o passar do tempo, o culto mercedário foi
reconstruído em um novo contexto, passando a se relacionar também
com a libertação dos indivíduos escravizados de ascendência africana
que, embora convertidos ao catolicismo, permaneciam em cativeiro
(SILVA, 2012; PRECIOSO, 2014).
Augusto de Lima Jr. (2008) alegara que a grande difusão do
culto mercedário nas Minas Setecentistas ocorreu pela busca, crença
e desejo de libertação. Os devotos alforriados se filiariam a essas
associações em agradecimento à graça concedida, e os escravizados
em virtude da intercessão que ainda estaria por vir. Porém, tal visão
se ampara no simples conhecimento da narrativa que dera origem
à invocação mariana em questão; precisamos ir além. Diferente dos
africanos, grande parte dos crioulos não precisava ser convertida, pois
já nascia em meio ao cristianismo, mesmo com o contato com as práticas
religiosas africanas de seus familiares. Todavia, o batismo em nada
modificava seu estatuto e eles não se tornavam cristãos livres por isso,
como expõe Luiz Felipe Alencastro (2000) ao analisar uma carta régia
de 1557.4 Outro fator corresponde aos processos de “crioulização” e
de crescimento do número de descendentes de africanos alforriados
e nascidos em liberdade a partir da segunda metade do século XVIII
na Capitania das Gerais, período de surgimento e proliferação das
associações dedicadas à Senhora das Mercês. Outro ponto importante
3  A devoção mercedária se encontra ativa no Brasil (Rio de Janeiro, São Paulo,
Brasília, Goiás, Piauí, Bahia, Minas Gerais): em colégios, seminários, creches, casas
de recuperação, paróquias, dioceses e pastoral carcerária, além das ordens terceiras e
irmandades. Cf. <http://mercedarios.com.br/>, acesso em 30 de maio de 2018.
4 A escravidão foi tema de inúmeros sermões, aparecendo como castigo e
resgate do pecado, como remissão e salvação na vida além-túmulo. A salvação das
almas ocorreria duplamente, ao serem os infiéis convertidos à fé cristã, por meio do
cativeiro, e após sua morte, com sua passagem pelo terceiro local (ALENCASTRO,
2000).

333
Das utopias ao Autoritarismo

é o fato de que os crioulos buscavam se diferenciar dos africanos


traficados que já possuíam suas irmandades próprias, como Nossa
Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia (PINHEIRO,
2006; SOUZA, 2010; DELFINO, 2015). Segundo Manuela Carneiro
da Cunha (1986) e Anderson Oliveira (2006), a escolha dos santos
e o compartilhamento de símbolos eram fatores indispensáveis na
formação da identidade de qualquer grupo, e os fiéis mercedários
construiriam sua identidade e também demarcariam suas fronteiras
(BARTH, 1998). Dito isso, consideramos que a grande difusão da
devoção ocorrera também em função do crescimento de uma nova
camada social, levando a novas perspectivas e expectativas.
A aproximação desses sujeitos com o culto mercedário
também pode ter ocorrido pelo empreendimento de religiosos e
missionários, como foram os casos de outras devoções: São Benedito
pelas ordens franciscanas, Santa Efigênia e Santo Elesbão pelas
ordens carmelitas, e o Rosário pelas ordens dominicanas e jesuíticas
(OLIVEIRA, 2008). Na América portuguesa, a Ordem de Nossa
Senhora das Mercês foi estabelecida no Estado do Maranhão e Grão-
Pará, impulsionada por frades mercedários que vieram do Vice-
Reino do Peru, em 1639, com o capitão-mor Pedro Teixeira. Com
sua instalação na nova região, tinha como suas principais funções a
atividade missionária, a educação de cristãos, a conversão e catequese
de indígenas. Riolando Azzi (1976) apontou a importância do grande
serviço da Ordem “ao bem das almas dos infiéis”. A conversão de
gentios foi sempre citada pelos que se dedicaram aos estudos de seus
conventos em Belém e no Maranhão, sem desconsiderar o grande
número de escravos negros que possuíam (SILVA DE CASTRO,
1974; MOTT, 2009). Assim sendo, nos questionamos, qual teria
sido o papel dos frades e missionários mercedários nas Minas? Em
carta régia de 12 de julho de 1722, enviada para o governador da
Capitania, descobrimos ao menos a presença de padres do convento
do Maranhão na região mineradora, sendo solicitada a proibição
de sua permanência, como de quaisquer outras ordens regulares.5

5 APM. Originais de Alvarás, Cartas e Ordens Régias, 1721-1725, Secretaria


do Governo da Capitania (Seção Colonial), SC-20, p. 21-22.

334
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Embora ainda não tenhamos indícios sobre o papel efetivo da Ordem


Mercedária quanto à assimilação e à aproximação dos crioulos com
as Mercês, nos chama a atenção a relação sempre reafirmada entre o
culto mercedário e a libertação dos cativeiros temporal e espiritual,
visto que a Senhora das Mercês era considerada uma intercessora
quanto à libertação do cativeiro em vida, uma mediadora do resgate
no purgatório e a responsável por livrar qualquer alma cativa vivendo
em sofrimento.

A Irmandade de Nossa Senhora das Mercês de Mariana:


origem, dinâmica interna e vida associativa
A Irmandade de Nossa Senhora das Mercês de Mariana foi
criada em 1749, conforme consta em sua documentação mais antiga,
um livro de entrada de irmãos, e em termo de sujeição à jurisdição
ordinária assinada pelos “crioulos de Nossa Senhora das Mercês” no
mesmo ano.6 Ao se firmarem como uma associação fundada pelos
“pretos crioulos”, o grupo demarcava distinções de qualidade, cor
e procedência, ressaltando que se entendiam como “nacionais do
Reino e Conquista de Portugal”. Não seriam admitidos naturais da
“Ethiopia”, salvo os da “Ilha de São Thomé”, por serem considerados
seus semelhantes.7 Com essa atitude os indivíduos identificados
como crioulos possivelmente buscavam se distinguir dos africanos
traficados, mesmo que estes tenham nascido em terras africanas que
também correspondessem às conquistas portuguesas, abrindo uma
exceção apenas aos habitantes da Ilha de São Tomé. Acreditamos
que um indício para compreender a ressalva é o fato de que,
segundo Mary Karasch (2000), o termo crioulo seria o designativo
mais comum aos escravos nascidos no Brasil, mas que também se
aplicava ocasionalmente aos nascidos em colônias portuguesas da
África: os “crioulos africanos” de Cabo Verde, Ilha do Príncipe, São
Tomé, Angola ou Moçambique. A aproximação cultural, religiosa e
6  AEAM. Livro de fundação de irmandades e capelas, 1748-1765. Armário 8,
prateleira 1, p. 14.
7 AEAM. Compromisso da Irmandade Escapulário das Mercês de Mariana,
1771. Armário 8, prateleira 1.

335
Das utopias ao Autoritarismo

linguística, a identificação pelo critério de pertencimento, além do


desenvolvimento do processo de “crioulização” são pontos ainda a
serem explorados ao longo de nossas pesquisas (HEYWOOD, 2008).
Conforme expresso em seu Livro de Compromisso8,
documento que sintetizava suas principais normas e guiava a vida da
agremiação, ao fazer petição para entrar, os fiéis deveriam informar
nome dos pais, pátria e onde foram batizados, não sendo admitidos
ladrões, vagabundos, feiticeiros e revoltosos. O critério de admissão
afirmava ainda que brancos e pardos seriam aceitos, expondo que todos
iriam “lucrar das indulgências que ganha quem entra por irmão nesta
santa irmandade”, informação que certamente chamaria a atenção e
promoveria o aumento da associação. Nos Compromissos de outras
irmandades mercedárias foi possível observar que seus membros
também se identificavam como “pretos crioulos”, os “vulgarmente
chamados crioulos” ou como os possuidores de “acidente de cor”.
Muitas delas acharam importante reforçar em suas normas que seu
principal objetivo era a remissão dos irmãos nos cativeiros corporal e
espiritual, durante a vida e a morte (PRECIOSO, 2014).9
As principais normas que guiavam a associação e as tomadas
de decisão eram de responsabilidade de um grupo eleito anualmente.
A união desses oficiais que ocupavam os principais cargos formava
a Mesa Administrativa, composta por juiz, escrivão, tesoureiro,
procurador e doze irmãos. Atendendo à pobreza da agremiação,
segundo o Compromisso, foi determinada a existência de dois juízes
e duas juízas, sendo o primeiro nomeado em eleição, presidindo
todos os atos da irmandade. Nomeavam-se também doze mordomas,
escolhendo duas delas para procuradoras das esmolas dos doentes,
e elas deveriam ter o cuidado de saber se existiam irmãos enfermos

8 AEAM. Compromisso da Irmandade Escapulário das Mercês de Mariana,


1771. Armário 8, prateleira 1.
9  AEAM. Compromisso da Irmandade de N. S. das Mercês de São Bartolomeu,
1807. Armário 8, prateleira 1; Compromisso da Irmandade de N. S. das Mercês de São
Gonçalo de Rio Abaixo, 1782. Armário 8, prateleira 1. APNSP-SJDR. Compromisso
da Irmandade de N. S. das Mercês de São João del-Rei, 1806; Compromisso da
Irmandade de N. S. das Mercês dos pretos crioulos... na Villa de San Jozé..., 1796
(Projeto Brasiliana USP).

336
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

e onde moravam para comunicar ao juiz ou procurador. Também


deveriam ser escolhidos dois zeladores e duas zeladoras que cuidariam
do recolhimento das esmolas para conservação e seguimento da
irmandade, e um andador. As eleições para os cargos eram realizadas
na véspera das festividades do dia de Nossa Senhora das Mercês, 24 de
setembro, como também estipulavam as Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia (VIDE, 1853). Todas as decisões que envolviam
o encontro dos membros diretores ocorriam no consistório ou na
sacristia, como expressam os termos de reuniões.
A Irmandade de Mariana destacava ainda as obrigações
básicas e funções dos irmãos, como ser temente a Deus; guardar seus
Mandamentos; ser devoto à Virgem; confessar nos santos jubileus da
irmandade; participar das procissões e missas da capela, sendo esta
filial da Santa Sé Catedral, custeada pelos próprios membros para
festejarem e louvaram a Deus, pensando sempre no bem de suas
almas; assistir irmãos doentes; e pedir esmolas nas ruas com a bacia
em enterros. A irmandade tinha como grande obrigação socorrer os
irmãos zelosos que precisassem de auxílio a qualquer instante. Em
capítulo próprio, discutia o interesse em conceder alforrias aos irmãos
cativos. O irmão escravo que fosse zeloso por sua irmandade seria
ajudado pelos outros membros a conseguir sua coartação. Durante
a festa de Nossa Senhora das Mercês ocorreria, quando houvesse
recurso disponível, o auxílio para a libertação de algum irmão escravo,
para o dote de casamento de alguma irmã ainda moça e libertação de
irmão preso na cadeia, não podendo este ter roubado ou matado.10
Segundo Patrícia Mulvey (1976), além do enterro dos
irmãos falecidos e dos sufrágios pelas almas, uma das funções
socioeconômicas mais importantes das irmandades de homens de cor
era o empréstimo de dinheiro para a compra das cartas de liberdade
dos irmãos escravos. Para exemplificar a questão, a autora mostra o
caso das irmandades de Sabará e do Tijuco: a primeira ajudou seus
membros escravos a obterem a permissão de seus senhores para a
compra de sua liberdade e ainda emprestava o dinheiro necessário

10  AEAM. Compromisso da Irmandade Escapulário das Mercês de Mariana,


1771. Armário 8, prateleira 1.

337
Das utopias ao Autoritarismo

aos irmãos; a segunda, além de auxiliar seus membros cativos, se


envolvia em longos processos judiciais com seus senhores em caso
de revogação da libertação. A Irmandade das Mercês do Sumidouro,
por exemplo, garantia em seu Compromisso que o ouro que sobrasse
dos ornatos e festejos seria aplicado para a libertação de algum irmão
cativo ou preso; enquanto a Irmandade de São João Del Rei estipulava
a libertação do cativeiro ilegítimo (PRECIOSO, 2014).11 Em São
Bartolomeu, os irmãos escravos deveriam consultar a vontade de seu
senhor sobre sua filiação e ocupação de cargos. Caso o irmão quisesse
se libertar, a confraria ajudaria com a esmola que pudesse, e através
desse ato de caridade os irmãos mostravam-se “legítimos filhos da
Santíssima Virgem Redentora dos Cativos”.12
Como aponta Leonara Lacerda (2015), o auxílio às
alforrias era prestado em prol de melhores condições de vida
para os irmãos devotos que mereciam. Dessa forma, a escolha dos
parceiros conjugais e redes sociais (como o compadrio e as relações
de trabalho), bem como a participação em confrarias, possibilitavam
múltiplas percepções de acesso à liberdade e estratégias, formando
um “horizonte de expectativas” enquanto projeções de futuro e
projetos de vida possíveis (KOSELLECK, 2006). As estratégias
individuais e coletivas de membros de irmandades de “homens de
cor”, como as Mercês, também têm nos instigado, seja requerendo
à Coroa a extensão de privilégios e benefícios, como a permissão
de conceder alforrias13 aos membros escravos ou ainda quando
pretendiam defender a libertação do cativeiro, utilizando-se,
com uma nova interpretação, da legislação e concessões régias
referentes ao caso dos indígenas na América portuguesa (1611) ou
dos descendentes de africanos em Portugal (1773). É interessante
apontar que, com a administração pombalina e os novos ares da
Ilustração, quando ocorrera, ao menos no âmbito formal, a supressão
11  APNSP-SJDR. Compromisso da Irmandade de N. S. das Mercês de São João
del-Rei, 1806.
12  AEAM. Compromisso da Irmandade de N. S. das Mercês de São Bartolomeu,
1807. Armário 8, prateleira 1.
13  Concessões régias feitas em 1688-1689 aos pretos das confrarias do Rosário
de Lisboa (MULVEY, 1976).

338
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

dos critérios de limpeza de sangue nas irmandades, houve também


a libertação dos descendentes de africanos no Reino, em 1773, o que
teria intensificado os pedidos de resgate de escravos e de extensão
dos privilégios alcançados. Distintas leituras, interpretações e
apropriações de leis, alvarás e concessões régias surgiriam adaptadas
à realidade dos sujeitos nascidos nas conquistas portuguesas, embora
os discursos dessas documentações fossem restritos ao Reino e
não a toda a extensão do Império (FALCON, 1996; SILVA, 2001;
ANDRADE, 2018).

Escravidão e categorias de distinção étnico-social na


América portuguesa
As irmandades dedicadas a Nossa Senhora das Mercês nas
Minas Setecentistas se caracterizaram por agremiarem os negros
nascidos nos domínios portugueses da América. Nesse sentido,
é necessário compreendermos agora o que significava ser crioulo,
comparando regiões e períodos, além das outras categorias sociais
relacionadas. Os africanos traficados para o Novo Mundo foram
comumente chamados de “pretos” ou “negros”, demarcando seu
caráter estrangeiro (outsiders) e a condição de cativo, embora
estivessem ainda subdivididos de acordo com grupos étnicos ou
“grupos de procedência”, as chamadas “nações” constituídas a partir
da experiência colonial (SOARES, 2000). Para Mary Karasch (2000,
p. 37), o termo “negro” era destinado aos africanos, também sendo
sinônimo de escravo, enquanto “’preto’, porém, parece ter sido
um termo um pouco mais neutro para ‘negro’, especialmente nos
casos em que a nacionalidade ou o status legal de uma pessoa negra
era desconhecido”14. No século XIX, de acordo com Sheila Faria
(1998), tais denominações faziam referência à condição escrava,
fosse atual ou passada. A noção de “africano”, contudo, não aparece
nos documentos históricos, visto que essa é uma caracterização
14 O termo “‘boçal (buçal)’ se aplicava tanto ao africano novo como ao que
não aprendera os costumes portugueses ou brasileiros depois de muitos anos de
escravidão. Por outro lado, se um africano falasse português e se comportasse como
um assimilado, então o nome apropriado era ‘ladino’” (KARASCH, 2000, p. 43).

339
Das utopias ao Autoritarismo

do pesquisador para indicar os procedentes do tráfico atlântico


(BRÜGGER; OLIVEIRA, 2009). Vejamos, agora, o caso dos crioulos.
No dicionário de Raphael Bluteau, o termo “crioulo”
designava o “escravo, que nasceu na casa do seu senhor” (BLUTEAU,
1712-1728, p. 613), estando intimamente ligado ao cativeiro e à
reprodução desses escravos. O dicionário de Moraes Silva (1813)
adicionaria o fato do crioulo não ser comprado, também se referindo
à condição de escravo. Já Antonil relatou que o termo remetia aos
indivíduos que “se criaram desde pequenos em casa dos brancos,
afeiçoando-se a seus senhores, dão boa conta de si. E levando bom
cativeiro, qualquer deles vale por quatro boçais” (ANTONIL, 1711,
p. 122). Neste caso, as ideias de fidelidade ou afetividade estão mais
presentes, além de mostrar que os crioulos seriam mais especializados
em seu trabalho. No século XIX o viajante Rugendas (1972) retratou
os crioulos como mais próximos e adaptáveis aos costumes do Novo
Mundo, pois não teriam que carregar uma “bagagem” cultural e
antigas tradições, como os povos de origens africanas. Entretanto,
considerando sua ascendência e reconhecendo a proximidade com
seus familiares, é possível que os crioulos estivessem em uma condição
intermediária entre as origens africanas e os traços culturais próprios à
experiência na América (RUSSELL-WOOD, 2005). Seriam diferentes
dos africanos, apesar destes serem fundamentais na formação da
identidade crioula (REZENDE, 2013).
Na historiografia observamos algumas variações quanto
às explicações do uso do termo “crioulo”, diferindo de acordo com
o local e o período analisado, pautadas principalmente por registros
paroquiais. Segundo Douglas Libby e Zephyr Frank (2009), em
Minas o “crioulo” se referia ao negro nascido no Brasil com mãe de
origem africana, demarcando distinções de cor e procedência. Além
disso, o crioulo nascia escravo quando filho de mãe escrava, e livre
quando filho de mãe forra. Os pais poderiam ser negros, crioulos
ou pardos; enquanto os filhos de pais brancos seriam comumente
classificados como pardos, mulatos ou até mestiços. O consenso entre
os especialistas está no fato dos filhos de escravas africanas serem
designados como crioulos, entretanto, as gerações seguintes são mais

340
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

difíceis de classificar. Por vezes a designação se mantinha, mas em


outros casos poderia desaparecer.
Já para Mariza Soares (2002), o termo “crioulo”, observado
para a experiência do Rio de Janeiro, também era normalmente
relacionado ao filho de africano nascido no Brasil, mas a autora
complementa que era também uma condição provisória, visto que
o filho deste último não receberia a designação. Com isso, percebeu
um “apagamento” da designação no decorrer da descendência e que
essa designação se manteria apenas com a manutenção do tráfico, ou
seja, com a chegada de novos africanos que aqui teriam seus filhos.
Para ela, no século XIX se generalizaria o uso do termo para todos
os afrodescendentes nascidos nas sociedades colonial e imperial.
Outros autores, como Hebe Mattos de Castro (1995), relacionam o
termo exclusivamente à experiência do cativeiro, sendo os crioulos
geralmente escravos ou forros recentes. Para Sheila Faria (1998), o
crioulo seria obrigatoriamente um escravo, não podendo nascer livre;
e seus filhos seriam ainda comumente chamados de pardos. É possível
perceber que o termo era muito fluido, visto de diversas formas ao
longo do tempo e em cada região.
Com base em nossas pesquisas, tendemos a concordar com
os resultados obtidos por Douglas Libby e Zephyr Frank (2009) para
a América portuguesa, embora avancemos um pouco. Consideramos
que o termo “crioulo” aponta inicialmente para a distinção do negro
traficado de terras africanas, demarcando uma fronteira para os que
nasciam no Império Ultramarino Português (colônias portuguesas)
ou, de forma mais abrangente, abarcando toda a Ibero-América
(KARASCH, 2000; PAIVA, 2015). Com o passar das gerações a
classificação tornava-se mais complexa, mas poderia ser mantida.
Sendo escravo ou não, o termo carregava consigo um histórico
familiar de cativeiro. Rodrigo Rezende (2013) observou que o termo
foi designado a inúmeros tipos de enlaces matrimoniais, ambos
nascidos em meio à sociedade colonial. Os crioulos formavam nações
no sentido de terem procedências e origens, e estavam constantemente
amalgamados à realidade da escravidão. Devemos, portanto,
compreender a abrangência e multiplicidade de sentidos para

341
Das utopias ao Autoritarismo

distintas localidades, como nas pesquisas de Linda Heywood (2008)


sobre o processo de “crioulização”, e propor comparações e conexões
que abarquem a complexidade dessa categoria social em perspectiva
atlântica, não definida apenas dentro de uma espacialização política
previamente delimitada, mas desenvolvida por meio das interações
socioculturais e das trajetórias dos sujeitos.
Ainda é preciso esclarecer que, para Mariza Soares (2002),
como ser crioulo era uma condição provisória, as gerações seguintes
não seriam identificadas dessa forma, mas apenas por sua condição
de escravo ou forro. Em vista disso, a autora considerou que eles não
constituíram um grupo estável com interesses comuns. Assim como
Daniel Precioso (2014), não concordamos com tal afirmativa, pois
os crioulos se instituíram como grupo e possuíram uma identidade
pautada por critério de pertencimento, fortemente atrelada à devoção
mercedária no contexto confrarial das Minas Setecentistas, unindo
a simbologia da libertação à aquisição de benefícios espirituais
próprios de sua religião, mas também por convergirem sua busca pela
distinção e mobilidade social, bem como pela demarcação do lugar
social ocupado. Com efeito, devemos considerar ainda a atuação
e a representação social desses indivíduos em meio à sociabilidade
urbana, à administração paroquial, às relações de poder local e à
posição de vassalos do poder Real.
Enquanto isso, o termo “pardo” seria usado para designar
os nativos de alguma ascendência africana, fazendo referência à
tonalidade da pele. Mesmo se referindo a um tipo de condição social,
se tratava principalmente da miscigenação de origens africanas e
europeias (LIBBY; FRANK, 2009). Daniel Precioso (2014) observou
que o termo aparecia com dois sentidos nas documentações, às
vezes correspondia ao filho de branco e preto, mas também poderia
representar o indivíduo de cor e livre que, por meio de estratégias
de mobilidade social, conseguiu se distanciar da experiência do
cativeiro. Em Russell-Wood (2005) vemos ainda uma distinção
entre as categorias de pardo e mulato. Embora ambas designassem
os mistos entre as duas raças, o pardo seria o indivíduo trabalhador,
integrado na sociedade e moralmente aceitável, enquanto o mulato

342
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

era representado como um vadio, preguiçoso, desonesto e insolente.


Outra designação de miscigenação, o termo “cabra” correspondia à
ascendência africana e se referia aos filhos de pais de origens mistas
(LIBBY; FRANK, 2009). Sendo assim, observamos que é preciso
analisar cada região e período de forma específica, tendo em vista
o tráfico e a reorganização dos grupos, das novas categorias sociais
com a dinâmica da escravidão, das identidades e das culturas no
Novo Mundo.

Os irmãos mercedários: composição social e sociabilidade


em Mariana
Nesse momento, apresentaremos os fiéis agremiados à
Irmandade das Mercês de Mariana, com o intuito de conhecer seu
perfil social, destacando informações quanto ao gênero, à qualidade e
à condição, por exemplo. Ao longo de nossa pesquisa, em uma análise
quantitativa, identificamos 1440 nomes, com base nos Livros de
Entrada de Irmãos, entre os anos de 1753 a 1830. Do total de registros
constatamos que 663 (46,04%) correspondem a homens, 774 (53,75%)
a mulheres e 3 (0,21%) estavam ilegíveis. Quanto a esse resultado,
Marcos Aguiar (1993) já havia apontado sobre a predominância
feminina em suas análises de irmandades de cor em fins do século
XVIII e início do XIX. Além disso, a presença feminina na maioria
das vezes estava desatrelada à entrada de cônjuge. Segundo o autor,
também os forros e os livres se destacaram na vida associativa desse
período, como veremos a seguir.
Tendo em vista o número de entradas de irmãos, observamos
um maior número de inscritos nas décadas de 1770, 1790, 1800 e
1810, como exposto na tabela a seguir. É preciso ressaltar ainda que
em alguns anos não foram feitos termos, como em 1756, 1759, 1764,
1768, 1778. 1785, 1823 e 1828.

343
Das utopias ao Autoritarismo

TABELA 1: Número de entradas de irmãos por décadas15


Período Nº de entradas
1753-1758 26 entradas
1760-1769 61 entradas
1770-1779 167 entradas
1780-1789 72 entradas
1790-1799 160 entradas
1800-1809 526 entradas
1810-1819 367 entradas
1820-1830 54 entradas
S/D 7 entradas
Na década de 1770, período de confecção do Livro de
Compromisso, se observou o primeiro momento de maior agremiação,
com destaque para o ano de 1777. Possivelmente uma grande maioria
dos irmãos filiados, que não possuíam seu termo oficializado, se
organizou para fazê-lo. Entretanto, o início do século XIX marcou o
momento de maior agremiação, o que acompanhava o movimento de
“crioulização” observado em Minas, um período de crescimento do
número de crioulos.16 Na Irmandade de Nossa Senhora das Mercês e
Misericórdia – a “Mercês de Cima” –, da Freguesia de Nossa Senhora
do Pilar de Vila Rica, por exemplo, o número de entradas também
cresceu muito a partir da década de 1770, e a maior quantidade de
agremiados foi verificada no início do século XIX (PRECIOSO, 2014).
Segundo Russell-Wood (2005), a primeira metade do século
XVIII correspondeu ao período de maior número de
manumissões, enquanto a segunda metade apresentaria uma recessão

15  Fonte: AEAM. Livro de entrada. Irmandade de Nossa Senhora das Mercês
(1749-1810). Prateleira P, nº3; AEAM. Livro de Entrada. Irmandade de Nossa Senhora
das Mercês (1815-1829). Prateleira P, nº 4; AEAM. Livro de Entrada. Irmandade de
Nossa Senhora das Mercês (1777-1814). Prateleira P, nº 32.
16  Hebe Mattos de Castro (1995) também utilizou o termo “crioulização” para
se referir ao crescente número de crioulos na sociedade colonial de fins do século
XVIII e início do XIX.

344
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

em função do declínio minerador. Inúmeros estudos, como o


recentemente produzido por Leonara Delfino (2015), apontam para
um aumento gradual de crioulos nas mais diversas freguesias e para
a expansão da população crioula em Minas Gerais a partir do século
XIX. Para Daniel Precioso (2014, p. 97), o mais provável é que as
irmandades mercedárias tenham sido um “reflexo do aparecimento de
uma ampla camada de forros, que despontou em virtude da prática da
alforria e do processo de crioulização das escravarias mineiras”; mas
acrescentamos aí as gerações seguintes, dos já nascidos em liberdade.
Também podemos analisar essa questão em comparação às cifras
levantadas pelo autor sobre a população de Mariana através do Rol
dos Confessados de 1809. A cidade possuía 1.795 homens (49,16%)
e 1.856 mulheres (50,84%). Do total de indivíduos, 2.481 (67,95%)
eram livres e 1.170 (32,04%) eram escravos. No início do século XIX
o número de livres era muito superior ao de escravos, tanto entre os
homens quanto entre as mulheres, o que se diferenciava da situação de
algumas décadas anteriores. Com novas demandas, muitos indivíduos
buscavam outros espaços de sociabilidade. Dito isso, ao analisarmos o
critério “qualidade” dos membros, demarcando ao mesmo tempo cor
e procedência, deparamo-nos com os seguintes dados:
TABELA 2: Qualidade dos membros e divisão entre homens e mulheres.
Séculos XVIII e XIX.17
Qualidade Mulher Homem Total
Crioulo 89 75 164 (11,39%)
Pardo 32 15 47 (3,26%)
Preto/negro 22 16 38 (2,64%)
Cabra 6 5 11 (0,76%)
Branco 1 3 4 (0,28%)
N/C 625 551 1176 (81,67%)

17  AEAM. Livro de entrada. Irmandade de Nossa Senhora das Mercês (1749-
1810). Prateleira P, nº3; AEAM. Livro de Entrada. Irmandade de Nossa Senhora das
Mercês (1815-1829). Prateleira P, nº 4; AEAM. Livro de Entrada. Irmandade de Nossa
Senhora das Mercês (1777-1814). Prateleira P, nº 32.

345
Das utopias ao Autoritarismo

Independente da irmandade se considerar uma associação


“crioula”, ou seja, fundada e destinada aos “pretos crioulos”, como
ressaltado em seu Compromisso,18 o número de indivíduos que
foram classificados de tal forma foi baixíssimo em relação ao total de
entrantes. É importante ressaltarmos que dos 164 indivíduos crioulos,
72 (43,9%) eram forros, 79 (48,17%) eram escravos e apenas 13
(7,92) não mencionaram condição alguma. Além de certo equilíbrio,
vemos que a categoria crioula se encontrou frequentemente atrelada
à existência de uma condição a ser demarcada, seja de cativo ou de
liberto. Tal fato se aproxima em certa medida ao que foi exposto por
Sheila Faria (1998) e Hebe Mattos (1995), mas acreditamos que a
categoria não estaria obrigatoriamente associada a uma condição.
Um número também muito inferior foi o referente aos
pardos, que podem, como os crioulos, ter constantemente mascarado
o estigma de sua cor. Acreditamos que no meio confrarial a distinção
entre crioulos e pardos, enquanto forros ou livres, poderia ser mais
fluida, tendo em vista as grandes ausências de demarcação nos registros;
mas também consideramos que os pardos possuíam sim o interesse de
demarcar suas fronteiras em relação aos crioulos e aos negros, mesmo
que na prática a situação fosse mais complexa. Ao mesmo tempo em
que eram semelhantes por serem nascidos na América portuguesa,
pardos e crioulos mantiveram muitos conflitos, como o caso de Vila
Rica. Neste exemplo ainda estava em jogo o reconhecimento social
e financeiro de arquiconfrades e terceiros de cor. Em Mariana foi
possível perceber casos de membros que pertenceram às Mercês e à
Arquiconfraria do Cordão de São Francisco. Esta associação aceitava,
além dos pardos, os crioulos e pretos forros, embora seu Compromisso
não demarcasse a predominância de nenhum grupo específico.19 A
documentação não restringia a entrada de escravos, mas não foi algo
comum. As cláusulas restritivas foram frequentes em irmandades de
pardos, e a falta de restrição não indicava obrigatoriamente a aceitação,
como mostrou Marcos Aguiar (1993).
18  AEAM. Compromisso da Irmandade Escapulário das Mercês de Mariana.
1771. Armário 8, prateleira 1.
19 AEAM. Compromisso da Arquiconfraria do Cordão de São Francisco de
Mariana, 1760. Armário 8, prateleira 1, nº 21

346
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

As irmandades, embora direcionadas a determinadas


qualidades de membros, não eram instituições fechadas. Uma maior
interação poderia ser observada entre o grupo fundador da associação
e camadas sociais semelhantes ou superiores a ele; contudo, exceções
eram realizadas em meio à vivência e a entrada de grupos de
camadas inferiores era muitas vezes tolerada (PRECIOSO, 2014). O
distanciamento em relação aos grupos inferiores na hierarquia social
poderia nos parecer mais lógico, mas é necessário termos em mente
que as circunstâncias e as possibilidades de interação direcionariam às
melhores possibilidades para os sujeitos caso a caso. Certas vezes os
pardos poderiam se aproximar mais dos brancos do que dos crioulos,
e estes poderiam almejar seu distanciamento imediato dos africanos.
Contudo, a dinâmica escravista e a vida confrarial proporcionariam
múltiplas possibilidades. As relações sociais nem sempre tendiam
ao “embranquecimento”, sendo a realidade mais complexa. No caso
das Mercês de Mariana, uma maior distinção seria promovida, já em
seu Compromisso, em relação aos pretos, que também apresentaram
baixo número entre os agremiados. Com um maior número de
mulheres, ressaltamos que as cláusulas restritivas comumente as
desconsideravam privilegiando possíveis enlaces matrimoniais. Dos
38 membros identificados como pretos, encontramos 2 benguelas,
7 minas e 24 angolas, sendo a aproximação entre estes últimos e os
crioulos já amplamente destacada na historiografia.
Já os indivíduos brancos não possuíam a necessidade de
declarar sua cor ou a condição de livre em seu cotidiano; dessa forma,
é impossível saber o real número de brancos agremiados às Mercês.
Entretanto, é interessante apontar que a presença de homens brancos
nas associações de homens de cor, como também na ocupação de
cargos administrativos, pode ser interpretada como uma pretensão de
reconhecimento social, de ampliação de redes de contatos e espaços de
sociabilidade, bem como para maiores possibilidades de obtenção de
benefícios diretos ou indiretos. Filiavam-se por devoção, mas também
para promover um maior controle dos negros (SCARANO, 1978).
Quanto à condição dos membros, identificamos que 432
(30%) eram escravos, sendo 218 homens, 213 mulheres e um ilegível;

347
Das utopias ao Autoritarismo

104 (7,22%) eram forros, sendo 41 homens e 63 mulheres; e 904


(62,78%) registros de membros não declararam condição (Tabela
3). Segundo nossos dados, o número de escravos foi superior ao
de forros, mas possivelmente muitos destes últimos podem não ter
relatado sua condição, o que ocorreria com o distanciamento de sua
vida cativa anterior (CASTRO, 1995). Na “Mercês de Cima” de Vila
Rica a situação foi distinta, pois o número de forros foi maior ao de
escravos, bem como em São José Del Rei (SILVA, 2012; PRECIOSO,
2014).
TABELA 3: Condição dos membros e divisão entre homens e mulheres.
Séculos XVIII e XIX.20
Condição Mulher Homem Ilegível Total
Escravo 213 218 1 432 (30%)
Forro 63 41 - 104 (7,22%)
N/C 498 404 2 904 (62,78%)
O grande número de registros sem informação quanto
à qualidade, cor e condição é surpreendente, talvez se referindo
principalmente à população de cor nascida em liberdade. Em vista
disso, primeiramente precisamos destacar os problemas presentes
na própria documentação. Os registros de entrada são sempre muito
incertos, e muitas vezes também encontramos condições em transição,
como quando há a informação de um membro escravo e uma
pequena anotação posterior informando que ele se alforriou. Agora,
imaginemos quantas pessoas tiveram sua condição social alterada ao
longo do tempo e não registraram isso nas fontes confrariais. Os lugares
ocupados pelos indivíduos na hierarquia social poderiam oscilar, e as
fontes também refletem isso, pois um mesmo indivíduo poderia ser
registrado de duas formas diferentes em documentos distintos. Além
disso, nem todos os indivíduos que aparecem sem marcadores sociais
nas documentações devem ser considerados como brancos ou livres,
pois a negligência dos produtores dos registros também era grande.
20  Fonte: AEAM. Livro de entrada. Irmandade de Nossa Senhora das Mercês
(1749-1810). Prateleira P, nº3; AEAM. Livro de Entrada. Irmandade de Nossa Senhora
das Mercês (1815-1829). Prateleira P, nº 4; AEAM. Livro de Entrada. Irmandade de
Nossa Senhora das Mercês (1777-1814). Prateleira P, nº 32.

348
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Nesse sentido, o silêncio das cores, como analisou Hebe


Mattos de Castro (1995), pode estar relacionado à posição, ascensão
e mobilidade sociais e ao esforço produzido pelo próprio homem de
cor e seus descendentes. Tal questão expressa o contexto vivenciado
na fluida e diversificada sociedade estamental mineira. A noção de
cor “não designava, preferencialmente, matizes de pigmentação ou
níveis diferentes de mestiçagem, mas buscava definir lugares sociais,
nos quais etnia e condição estavam indissociavelmente ligadas”
(CASTRO, 1995, p. 98-99). Como a mudança de posição social poderia
levar à ausência da demarcação ao longo do tempo, a alteração do
ambiente de sociabilidade também poderia ocorrer. Segundo Kellen
Silva (2012), um escravo alforriado poderia almejar, por exemplo,
seu deslocamento do Rosário às Mercês, ou ainda permaneceria em
ambas. Entre as décadas de 1750 e 1770 a ausência da qualidade foi
predominante nos registros, aparecendo algumas vezes a partir de
1780. Em períodos de registro de muitos irmãos, como em 1777, a
categoria se encontra totalmente ausente. É possível que seja opção
do próprio escrivão, visto que alguns faziam registros detalhados,
enquanto outros eram mais relapsos. Mesmo em anos em que essa
ausência é mais frequente, a condição é registrada, possivelmente
sendo considerado mais importante demarcar as fronteiras entre
livres, forros e escravos.
A partir de Fernanda Pinheiro (2006) vemos que, diferente
das Mercês, muitos indivíduos das irmandades negras de Mariana
declararam condição social, pois nos registros do Rosário, entre 1750
e 1819, foram constatados 64,5% de membros escravos e 26,5% de
forros. Dentre os indivíduos que não declararam cor e condição, a
autora demonstrou que possivelmente seriam os brancos pobres ou
os descendentes de pretos libertos, o que aponta para a fluidez das
categorias, tanto da cor da pele como da posição social garantida
pela atividade econômica desempenhada. Fernanda Pinheiro (2006)
rebate ainda a ideia de um processo de “crioulização” a partir de
meados do século XVIII no Rosário em Mariana, pois enquanto no
último decênio a irmandade recebia apenas noventa e quatro novos
membros, a Mercês recebia cerca de oitocentos e oitenta e cinco

349
Das utopias ao Autoritarismo

matrículas entre 1790 e 1815. Este seria, então, um momento de maior


destaque das associações mercedárias em detrimento ao Rosário? A
relação entre essas irmandades, segundo Caio Boschi (1986), era de
complementaridade, pois havia certa interação entre elas. O que as
diferenciaria era o ideal de resgate dos cativos, próprio às Mercês. Tal
visão, contudo, é insuficiente, pois as alforrias também poderiam ser
almejadas pelos agremiados ao Rosário; e, por mais que a devoção
mercedária tivesse esse ideal, nem sempre foi possível aos seus membros
promover libertações. Esse foi o caso da Irmandade das Mercês de
Mariana. Acreditamos que essas associações agremiavam públicos
distintos, e o momento de auge vivido pelas Mercês correspondeu
antes a um novo contexto com novas demandas sociais. Dessa forma,
as irmandades mercedárias podem ser entendidas também como
frutos da estratificação das populações de cor em meio à diversificada
sociedade colonial.
As relações socioculturais existentes entre as irmandades
e seus membros, entretanto, não deixaram de existir. Para Fernanda
Pinheiro (2006), a ligação direta e imediata entre africanos e crioulos
era indispensável para a aceitação destes nas confrarias negras.
Além disso, esses crioulos agremiados ao Rosário poderiam não
ver a necessidade de buscar outro espaço de sociabilidade. Apesar
das possibilidades de mobilidade vistas constantemente em Minas,
nas normas confrariais percebemos claramente a necessidade da
demarcação de fronteiras, assim como da afirmação de identidades.
As interações, longe de significar a eliminação das fronteiras,
acentuavam as diferenças grupais; contudo, tais fronteiras não eram
estanques ou impermeáveis, mas possibilitavam o contato e a troca de
símbolos, significações e sentidos através da negociação e das lutas de
representação (DELFINO, 2015).
A partir dos Livros de Entradas das Mercês de
Mariana21 é possível observar informações sobre escravos e seus

21  AEAM. Livro de entrada. Irmandade de Nossa Senhora das Mercês (1749-
1810). Prateleira P, nº3; AEAM. Livro de Entrada. Irmandade de Nossa Senhora das
Mercês (1815-1829). Prateleira P, nº 4; AEAM. Livro de Entrada. Irmandade de Nossa
Senhora das Mercês (1777-1814). Prateleira P, nº 32.

350
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

proprietários, relações matrimoniais, filiação, habitação, ocupação,


cargos administrativos e agregação à casa de alguém. Através
da sociabilidade promovida pelas irmandades vemos as alianças
verticais ou horizontais formadas. O compartilhamento do espaço
de sociabilidade construído era um prolongamento de outros
espaços de convívio. A demarcação de fronteiras abriria brechas para
a interação promovida por africanos, crioulos, pardos e brancos em
meio a diferentes tipos de relações sociais.

Considerações Finais
Ao se aventurarem pelos montanhosos sertões e, a custo de
sangue e suor, formarem os núcleos urbanos mineradores, indivíduos
de qualidades, crenças e costumes distintos se uniram no território que
posteriormente se tornaria a Capitania de Minas Gerais. Com eles se
desenvolveram inúmeras possibilidades de miscigenação, biológica e
cultural, que geraram uma sociedade complexa, fluida e multifacetada.
A sociedade mineira, em parte herdeira do mundo estamental e
caracterizada pela classificação e hierarquização social, teve de se
adaptar às condições da inconstância do ouro. O enriquecimento,
o acesso aos cargos e as redes de contatos eram formas de burlar as
normas e os valores estabelecidos, bem como promover a mobilidade
social de homens de cor que viveram ou não a experiência do cativeiro
(SILVEIRA, 1996; PAIVA, 2001). Como expôs Hebe Mattos de Castro
(2001, p. 155), “a escravidão e a multiplicação de categorias sociais
referentes à população afrodescendente se mostrariam como a face
mais visível da constante expansão do Antigo Regime em perspectiva
atlântica”. Pardos, crioulos ou negros apresentavam graus distintos
na hierarquia social, mas compartilhavam o fato de estarem, ou terem
estado, próximos à fronteira que separava liberdade e escravidão.
Como nos foi possível observar, a Irmandade de Nossa
Senhora das Mercês de Mariana, embora fundada pelos denominados
“pretos crioulos”, agregava, mesmo que em graus distintos, indivíduos
pretos, crioulos, pardos, cabras e brancos, entre livres, escravos e
libertos. A pluralidade e a diversidade existentes no interior das

351
Das utopias ao Autoritarismo

irmandades, bem como a grande quantidade de registros silenciados


quanto aos designativos étnico-sociais, fazem com que múltiplas
questões precisem ainda ser problematizadas. Deduzimos que o
grande número de indivíduos agremiados que não mencionaram
qualidade, cor ou condição corresponderia aos descendentes de
homens de cor alforriados ou já nascidos em liberdade em fins do
século XVIII. Crioulos nascidos livres, assim como seus futuros
descendentes, possivelmente não mencionavam tais demarcações no
ato de entrada, pois com certeza faziam questão de não ressaltar seu
histórico familiar escravo. Dessa forma, provavelmente os membros
sem maiores informações seriam crioulos forros ou nascidos livres,
pardos ou brancos pobres.
Consideramos, assim, que a segregação de grupos étnicos
em irmandades distintas é muito fluida, pois diferentes categorias
sociais acabavam participando de uma mesma associação. O “ser
crioulo” não corresponderia apenas ao efeito de um processo de
estratificação social rígido; devemos considerar que esses sujeitos
constituíam os mecanismos de configuração/reconfiguração das
distinções sociais e étnicas, principalmente quando buscavam sua
atuação em coletividades. Isso significa, por exemplo, repensar o que
simbolizava para indivíduos de distintas qualidades a agremiação em
uma instituição representada como crioula. Compreendemos que as
Irmandades das Mercês nas Minas foram instituições crioulas, mesmo
que tenham possuído membros de categorias diversas, pois é em sua
ação política e na construção de um “espaço público” que ser crioulo
fazia sentido. Ser crioulo dependia da lógica do agrupamento coletivo
e do reconhecimento, por isso no decorrer de nossas pesquisas
propomos que tal categoria corresponderia a algo ainda maior do que
o âmbito biológico e demográfico.

Referências:
Fontes Manuscritas:
Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana:
Livro de Registro Geral da Cúria. Provisões, Sentenças, Termos e Portarias,

352
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

1768-1770. Armário 2, prateleiras 1-4, p. 67; Livro de fundação de irmandades


e capelas, 1748-1765, Armário 8, prateleira 1, p. 14; Compromisso da
Irmandade Escapulário das Mercês de Mariana, 1771, Armário 8, prateleira
1; Livros de Entrada da Irmandade de N. S. das Mercês, 1749-1810,
Prateleira P, nº3; 1815-1829, Prateleira P, nº 4; 1777-1814, Prateleira P, nº
32; Compromisso da Irmandade de N. S. das Mercês da Freguesia de São
Bartolomeu, 1807, Armário 8, prateleira 1; Compromisso da Irmandade de
N. S. das Mercês de São Gonçalo de Rio Abaixo, 1782, Armário 8, prateleira
1; Compromisso da Arquiconfraria do Cordão de São Francisco de Mariana,
1760, Armário 8, prateleira 1, nº 21.
Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de São João Del Rei:
Compromisso da Irmandade de N. S. das Mercês de São João del-Rei,
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356
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A Fazenda Imperial: independência e organização


das instituições fazendárias
Daiane de Souza Alves 1

Introdução
José Ferreira Borges2, deputado às Cortes Constituintes
Portuguesas em 1821, definia finanças enquanto termo que designava
Fazenda do Estado entre os europeus e como fisco para os romanos.
As finanças, segundo Borges (1856), compreendiam além dos réditos
materiais arrecadados pelo Estado, a sua administração e a forma de
sua imposição. Nesse sentido, à administração das finanças cabia as
cobranças e o emprego que seria dado às arrecadações, e às imposições
compreendia a teoria das contribuições. Podendo ser definida como
Syntetologia, essa ciência ensinava aos governantes, seus conselheiros
e funcionários “os meios de prover as necessidades do Estado político
com os recursos do Estado social” (BORGES, 1831, p. 6).
Tal como Borges, Amaro Cavalcanti em Elementos de
Finanças estava preocupado em realizar um estudo prático da doutrina
financeira, principalmente a partir dos trabalhos produzidos na França
e Alemanha sobre as finanças públicas. Designava o conjunto das
atividades financeiras do Estado Brasileiro como “ciência financeira
ou finanças a doutrina da Economia do Estado” (CAVALCANTI,
1896, p. 7). Para ele, a organização das finanças dependia de como
seriam ensinados os princípios e normas que constituíam a economia,
e, consequentemente, como seriam empregadas e administradas as
rendas a partir das necessidades da vida pública.
O advento dos estudos sobre tal ciência seria fundamental
para os principais teóricos do Estado do século XX, tornando a
fiscalidade eixo central para o estudo da formação dos Estados na

1  Aluna do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal


de Ouro Preto - MG.
2  José Ferreira Borges é autor um do Dicionários jurídico comercial português,
publicado em 1856 na cidade do Porto.

357
Das utopias ao Autoritarismo

Europa. Nesse sentido, Charles Tilly, compreende como Estado as


“organizações que aplicam coerção, distintas das famílias e dos grupos
de parentesco e que em alguns aspectos exercem prioridade manifesta
sobre todas as outras organizações dentro de extensos territórios”
(TILLY, 1996, p. 6). A fiscalização, arrecadação e a coerção garantem
que se mantenham essas unidades políticas sobre determinada
circunscrição geográfica.
Assim como Tilly, Norbert Elias em Processo Civilizador se
ocupou de atribuir os meios pelo qual o Estado se formou e estabeleceu
as suas bases. Segundo o autor, “o monopólio da tributação juntamente
com o monopólio da força física forma a espinha dorsal do Estado”
(ELIAS, 1994, p. 88). Nesse sentido, a fiscalidade, pode ser entendida
enquanto campo de arrecadação que prevê as receitas e despesas do
Estado. Desta forma provém as suas necessidades, que são divididas
através dos tributos que são arrecadados junto aos povos, e que se
distribuem dentro de determinado território.
No Brasil, os estudos sobre fiscalidade se concentram
nas construções institucionais, destacam-se os trabalhos de Wilma
Peres Costa, que a partir dos preceitos da sociologia fiscal de Joseph
Schumpeter, utiliza as categorias de tax state e de dominium state. O
primeiro correspondendo a forma como foram institucionalizados
os impostos pelo liberalismo e no segundo no absolutismo. Para
Costa (2003), no Brasil do século XIX predominou o dominium
state apesar de ter existido esforços de desenvolver a fiscalidade a
partir do tax state. A construção do fisco nacional após 1822 se firma
em meio a conflitos e, principalmente, em meio a manutenção de
estruturas coloniais, o que não favoreceu o fortalecimento de uma
soberania central no estado monárquico. Vale ressaltar o trabalho
de Aidar Costa (2012), ainda que retomando o período colonial,
para compreender as formas de centralização do Estado português,
que remontava à organização fazendária em torno das provedorias e
regida pelo Conselho Ultramarino. Garantindo o que Costa afirma
como a manutenção das formas como se institucionalizaram as
arrecadações no Primeiro Reinado, próximas às características que
foram herdadas do absolutismo.

358
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Outro trabalho relevante ao tema, é a tese publicada por


Ângelo Carrara (2014), em que o autor se debruça sobre a Fiscalidade
imperial ao longo de todo o século XIX. Mais especificamente
sobre o Primeiro Reinado o autor ressalta que, com a centralização
das receitas mais importantes nas mãos do governo imperial a
partir do estabelecimento de um novo sistema fiscal se garantiu
que se resguardasse e se configurasse elementos indispensáveis ao
funcionamento das instituições estatais e de um aparato administrativo
que se estendesse por todo o território nacional.
No geral, as discussões que ocupam os espaços legislativos
do Primeiro Reinado versam essencialmente sobre as formas de se
organizar essas instituições nunca experienciadas pelos domínios
portugueses na América, e, além disso garantir a manutenção do
território em meio às indefinições em relação às províncias. Para
isso, segundo Costa (2003), postergaram-se as discussões acerca da
fiscalidade, o que levou à manutenção de parte das estruturas coloniais
durante a primeira experiência liberal do Brasil.

O princípio da instabilidade
A criação da Secretaria de Estado e Negócios da Fazenda
no Brasil em 06 de abril de 1821 é considerado o marco da separação
entre as secretarias dos negócios do Brasil e Fazenda. Tal determinação
expedida por D. João VI, pode ser compreendida, segundo Mircea
Buesco (1984), como uma nova forma de organização local que
buscava ser mais autônoma. Esteve aliada ao retorno do monarca a
Portugal em meio ao decreto das Cortes Gerais e Extraordinárias da
Nação Portuguesa e dos conflitos gerados pela Revolução do Porto.
Sendo assim, partimos da hipótese de que a implementação desta
instituição no Reino do Brasil contribuiu para uma maior organização
das repartições fiscais, na medida em que todas estariam ligadas ao
Erário Régio e à pessoa do Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios da Fazenda.
A Secretaria ficaria sob a responsabilidade de d. Diogo de
Menezes, o Conde de Louzã, segundo o decreto de 22 de abril do

359
Das utopias ao Autoritarismo

mesmo ano emitido pelo príncipe regente D. Pedro. Como atribuições


o então ministro também assumiria a presidência do Erário Régio
e do Conselho da Fazenda, ambos órgãos criados no Brasil após a
transferência da Corte Portuguesa em 1808. Para Fábio Barcelos, a
separação das secretarias de estado, neste contexto, tinha um caráter
político, que reforçaria no ministro e secretário o papel da presidência
do Erário Régio, posteriormente definido como Tesouro Nacional3
(BARCELOS, 2014).
A reorganização dos órgãos fazendários portugueses no
Brasil a partir de 1808 modificou a relação estabelecida entre as
instituições – Conselho de Fazenda e Erário Régio – e as Juntas de
Administração e Arrecadação da Real Fazenda, que de maneira
descentralizada regulavam as arrecadações, pagamentos, e todas
as atribuições fiscais em nível regional/provincial. O Erário Régio,
desde alvará de 28 de junho de 1808, era responsável pela “mais exata
administração, arrecadação, distribuição, assentamento e expediente”
da Real Fazenda. Seus objetivos primordiais estavam em arrecadar,
distribuir e administrar todos os negócios pertencentes à Fazenda
Real, tanto do Brasil, como de todas as possessões ultramarinas
portuguesas, seguindo o mesmo modelo do Erário Régio português
estabelecido em Lisboa em 1761 (BARCELOS, 2014, p. 23). Ao
Conselho de Fazenda caberia as mesmas normas estabelecidas pelo dito
alvará, contudo, suas atribuições cumpriam o arbítrio das jurisdições
contenciosa e voluntária no que dizia respeito aos bens e direitos da
Coroa (RIBEIRO, 2017). Com a instalação dessas repartições nos
trópicos, as Juntas de Administração e Arrecadação da Real Fazenda
que antes se submetiam a esses órgãos em Lisboa passam a responder
às determinações dessas instituições no Brasil.
O movimento constitucionalista inaugurado no Porto em
1820 e a exigência por parte dos revoltosos do retorno da família
real portuguesa para a Europa, gerou um clima de instabilidade
nos trópicos. Sendo o ponto de partida, a instalação de uma Junta

3  Tal determinação manifestava a substituição do termo “real” por “público”,


enfatizando a busca por enquadrar as instituições dentro das novas ideias políticas
“liberais” que contrastavam com as antigas práticas do Antigo Regime.

360
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Provisória de Governo em janeiro de 1821 na província do Pará,


constituída de maneira espontânea, a partir da experiência lusa
iniciada com o movimento vintista. A ratificação das Juntas no
Brasil se concretizou com decreto de 29 de setembro de 1821, em
que se determinou que caberia a esses governos autônomos, elegidos
dentro das províncias, “toda a autoridade e jurisdição na parte civil
e econômica, administrativa e de política em conformidade com as
leis existentes” (COLEÇÃO..., Parte I, 1822, p. 225-226). Sendo assim,
as antigas Juntas de Fazenda, presididas pelos governadores/capitães
generais teriam seu governo destituído e passariam a ser chefiadas
pelo seu membro mais antigo. Com o estabelecimento deste decreto,
que colocava sob a tutela do Reino de Portugal a organização fiscal
e fazendária do Brasil, tais repartições perderiam seu campo de
influência no plano local, além de significar um maior afastamento
das decisões tomadas no Rio de Janeiro.
Segundo Cláudia Chaves (2017), tal determinação das
Cortes de Lisboa em relação à submissão dos governos provisórios ao
Rio de Janeiro, propiciou que novos conflitos surgissem entre essas
repartições e as Juntas da Fazenda. Somado a esse aspecto, a aprovação
do decreto de 11 de janeiro de 1822, que decidia sobre a extinção de
tribunais criados no Rio de Janeiro piorava o quadro de disputas, na
medida em que tais decisões ameaçavam todo o avanço institucional
alcançado pelo Reino do Brasil com a transferência da Corte em 1808.
Para Roderick Barman (1988), a autonomia que o decreto
de 29 de setembro de 1821 gerava para as províncias não seria
compatível com a manutenção do governo central no Rio de Janeiro e
nem com a permanência do Reino do Brasil criado em 1815. A junta
da província da Bahia, segundo Barman, foi a que mais se aproximou
das determinações das Cortes lisboetas, por ser a única a formalmente
repudiar a autoridade do príncipe regente. Pará e Maranhão também
se mantiveram aliados a Lisboa. As demais províncias ou foram
colocadas ao lado do curso dos eventos, como foi o caso de Piauí,
Mato Grosso e Goiás ou não renunciaram a lealdade ao Príncipe, mas
apenas cessaram apoio ativo ao seu governo.
No que tange à situação financeira, o novo status dado às

361
Das utopias ao Autoritarismo

províncias retirava ou pelo menos diminuía o campo de ação do Rio de


Janeiro, que detinha posição dominante tanto em relação ao governo
como em relação ao comércio desde 1808, principalmente com a
abertura dos portos e com os tratados de 1810. Com a singularidade
assumida pelas juntas governativas no controle econômico e militar
provincial, o repasse das “sobras” das Juntas da Fazenda não estavam
sendo enviados para o Tesouro Nacional, limitando as receitas do
governo regente aos impostos da cidade e província do Rio de Janeiro.
Além disso, a saída da Corte e a crise política instaurada depreciou o
comércio e arruinou a confiança nos negócios (BARMAN, 1988).
O governo do Rio de Janeiro, diante dessas necessidades,
convocou pelo decreto de 16 de fevereiro de 1822 um Conselho de
Procuradores Gerais das Províncias com a responsabilidade de
aconselhar o príncipe em todos os negócios do Reino, sendo eles os
projetos de reforma e nas medidas e planos que fossem mais urgentes.
Teriam assento membros eleitos em todas as províncias, os ministros
e secretários de Estado e seria presidido pelo próprio regente
(COLEÇÃO..., Parte II, 1822). Deste projeto resultou a instauração
de uma Comissão que estaria destinada à análise da situação em que
se encontrava o Tesouro Público. Em fevereiro de 1822, Dom Pedro
determina à Secretaria de Estado e Negócios da Fazenda (Cadernos
MAPA..., 2018)4, na pessoa de seu Ministro Caetano Pinto de
Miranda Montenegro, que se criasse uma Comissão do Tesouro para
examinar as finanças do Reino do Brasil, com a incumbência de junto
ao Tesouro Público, buscar informações e soluções para os seguidos
déficits orçamentários. Estiveram presentes na Comissão além do
Ministro e Secretário de Fazenda, os conselheiros do príncipe Manoel
Jacinto Nogueira da Gama5 e José Joaquim Carneiro de Campos6
4  O cargo de ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda foi criado
no Brasil pelo decreto de 6 de março de 1821, pelas Cortes Gerais, Extraordinárias
e Constituintes da Nação Portuguesa, sendo responsável pela Fazenda Nacional,
através do Tesouro Público e suas repartições.
5  Nogueira da Gama consolidou sua carreira política no Rio de Janeiro, como
Conselheiro de Capa e Espada do Conselho da Fazenda em 1821, na administração de
D. Pedro do Conselho de Estado, por duas vezes como Ministro da Fazenda e Senador
do Império.
6  O futuro Marquês de Caravelas, José Joaquim Carneiro de Campos, ocupou

362
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

e os negociantes Francisco José Fernandes Barbosa e José Antônio


Lisboa. No geral, a Comissão estava encarregada de buscar meios de
solucionar as dívidas do Tesouro e realizar o exame do estado atual da
Fazenda Pública. Em relatório apresentado ao regente, os membros
levantaram pontos fundamentais relativos às articulações estabelecidas
entre o governo do Rio de Janeiro e os governos provisórios.
Se as demais províncias deste Reino continuassem a
remeter, como dantes, para o Tesouro, as sobras de suas
rendas, sem maior inconveniente não temos estas sobras,
nem sabemos quando poderemos contar com elas, e não
serão bem fundados os nossos cálculos, se esperarmos
obtê-las antes de vermos radicadas a união das mais
importantes províncias, e de se acharem os seus respectivos
governos estabelecidos sobre bases mais seguras; nem é da
prudência destes na vacilância e fermentação, em que tudo
se acha, distrair para fora ainda as mais pequenas somas. À
vista disso, a comissão cairia na mesma condição se depois
de ter mostrado a urgência do pagamento das dívidas de
que trata, propusesse a Vossa Alteza Real, que o mandasse
reservar para época incerta dos restabelecimentos da
união, e tranquilidade geral de todas as províncias; ou
esquecendo-se do estado atual da renda ordinária, por ela
pretendesse que se fizesse o pagamento de uma despesa
avultada e extraordinária (VIANA, 1922, p. 196).
A partir dessa exposição, a Comissão buscou meios para
se contornar os déficits apresentados. Estando limitada apenas às
rendas da província do Rio de Janeiro, o único meio possível seria a
emissão de títulos e letras de câmbio do Tesouro, que seriam pagos em
prazos de 15, 18, 21 e 24 meses, com juros de 6%, consignando-se para
pagamento as rendas da Alfândega. Deixaram claro os membros que
se esperava o “bom senso e do patriotismo dos diretores deputados e
acionistas do Banco do Brasil” (FRANCO, 1973, p. 35) que seriam os
responsáveis pela emissão desses bilhetes de crédito. O relatório foi
entregue em 24 de maio de 1822, e possuía em anexo o voto separado
de José Antônio Lisboa, que considerava antecipada e prematura

cargo na Secretaria de Estado da Repartição dos Negócios da Fazenda em Portugal,


tornando-se Conselheiro efetivo de Capa e Espada no Conselho da Fazenda no Brasil
em 1821.

363
Das utopias ao Autoritarismo

qualquer deliberação que se tomasse no sentido de propor as reformas


que deveriam ser feitas no Tesouro Público e “apontar meios para
restabelecer o seu crédito”, sem que tivesse o completo conhecimento
das circunstâncias e estado do Tesouro (VIANA, 1996, p. 196).
Mesmo em Portugal, durante a Assembleia das Cortes
Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, deputados brasileiros
que tomaram assento para discussão do projeto de Constituição
deixavam claro que legislar sobre o Brasil requeria conhecimento sobre
as necessidades do Reino. Em sessão de 04 de julho de 1822, Muniz
Tavares, representante da província de Pernambuco, salientou que as
leis econômicas votadas para Portugal não poderiam se enquadrar no
Brasil, que necessitava de uma legislação diferente, e que a discussão
apenas seria possível na presença de procuradores dos povos do Brasil,
na medida em que o Congresso não tinha conhecimentos precisos das
circunstâncias dos trópicos (VIANA, 1922).
A presença de deputados brasileiros que tomaram assento
nas Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, denota
características do momento político em que se encontrava o Brasil, sob
o julgo das decisões metropolitanas através das Juntas Governativas.
Como afirma Rogério Forastieri (1996), esses representantes saem de
regiões que possuem pouco contato entre si, que possuem problemas
que não são comuns a eles, e são tratados como brasileiros. A declaração
de Feijó, enquanto deputado por São Paulo, talvez tenha sido a mais
emblemática, ao afirmar que não se tratavam de deputados do Brasil,
porque cada província se governava de maneira independente.
A província de São Paulo assumiu papel de destaque, perante
à instabilidade política gerada pelo jogo de forças estabelecido entre as
Cortes de Lisboa e a regência no Rio de Janeiro. O governo provisório
de São Paulo que se encontrava sob a presidência de João Carlos
de Oeynhausen, antigo governador e capitão general da província,
tinha como membros José Bonifácio de Andrada e Silva como vice-
presidente e seu irmão Martim Francisco Ribeiro de Andrada como
secretário de interior e fazenda. Bonifácio que em 22 de maio de 1822
se encontrava como membro do Conselho dos Procuradores Gerais
das Províncias convocou o presidente Oyenhausen a comparecer

364
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

à Corte e suprir sua ausência no governo provisório com Martim


Francisco. A convocação, como afirma Chaves (2017), foi entendida
enquanto manobra dos Andradas para assumirem o controle político
e fazendário da província e terminou com a aclamação destes e com
a visita do príncipe regente a São Paulo. Nesse sentido, a presença do
regente na província foi fundamental para se oficializar o apoio da
Junta Governativa paulista ao governo no Rio de Janeiro, assumindo
centralidade a atuação dos Andradas ao redigirem a Representação
que foi levada à Assembleia das Cortes em Lisboa.
Sim, Augusto Senhor, é impossível que os habitantes do
Brasil, que forem honrados, e se prezarem de ser homens,
e mormente os Paulistas, possam jamais consentir em tais
absurdos e despotismos: sim, Augusto Senhor, V. A. Real
deve ficar no Brasil, quaisquer que sejam os projetos das
Cortes Constituintes, não só para o nosso bem geral, mas
até para a independência e prosperidade futura do mesmo
Portugal (SOUSA, 1922, p. 145).
Com a separação política entre Brasil e Portugal em
setembro de 1822, cria-se em torno do imperador a responsabilidade
de reforçar a manutenção do território junto aos grupos da porção
norte do Brasil, de forma a se articular no âmbito dos poderes locais
e consequentemente conseguir as bases de apoio a seu governo no
Rio de Janeiro. Esse apoio não se deu de maneira imediata, visto que
o reconhecimento das províncias como um todo só se concretizou
em 1823, em meio a embates e principalmente a negociações entre o
centro e as províncias. Como afirmam Jancsó e Pimenta (2000, p. 392),
a “instauração do Estado brasileiro se dá em meio à coexistência, no
interior do que fora a América portuguesa, de múltiplas identidades
políticas” que se referiam a projetos nacionais e a realidades diferentes
entre si.
Nas disputas pela manutenção do Imperador no Brasil
e o reconhecimento das Cortes da independência, tiveram papel
proeminente os irmãos Andrada, Martim Francisco e José Bonifácio.
Devido à organização desses personagens em torno da permanência
do príncipe na América, da separação com Portugal e pela participação

365
Das utopias ao Autoritarismo

efetiva na Junta Governativa da Província de São Paulo7, os irmãos


Andrada assumiram as pastas do Ministério da Fazenda e Império,
respectivamente em julho de 1822.
José Bonifácio e Martim Francisco encontraram dura
oposição durante seu ministério, principalmente dos setores mais
liberais ligados à maçonaria e aos principais periódicos da época,
o “Reverbéro Constitucional Fluminense” e o “Correio do Rio de
Janeiro”, sob as lideranças de Joaquim Gonçalves Ledo e Januário da
Cunha Barbosa. No que tange à questão fazendária, Martim Francisco,
apesar de possuir formação em Matemática e Ciências Naturais pela
Universidade de Coimbra e ter experiência no controle da organização
da Fazenda na província de São Paulo, foi duramente criticado através
da imprensa da época por sua recusa aos empréstimos externos,
causando pouca adesão às suas políticas por parte do setor mercantil e
comercial do Rio de Janeiro (OLIVEIRA, 2003).
Afastados os irmãos Andrada do Ministério em 1823, caberia
ao Imperador a nomeação de novos integrantes para as pastas do Império
e Fazenda. Contudo, apesar da grande pressão dos setores liberais
pela demissão desses personagens, não se modificaram radicalmente
os grupos que assumiram tais governos, sendo nomeado para a pasta
da Fazenda Manoel Jacinto Nogueira da Gama, mineiro, importante
liderança política, com ampla experiência nos setores fazendários,
tendo participado da Junta de Administração e Arrecadação da Real
Fazenda da Província de Minas Gerais em 1803, como escrivão do
Erário Régio em 1808 e como Conselheiro de Capa e Espada do
Conselho da Fazenda até 1823, sendo posteriormente membro do
Conselho de Estado de Sua Majestade durante o Primeiro Reinado
(RIBEIRO, 2010). Nesse contexto, como afirma Maria Fernanda
Martins (2007), é importante perceber que apesar das alterações na
estrutura político-institucional durante o período imperial, elas não
foram necessariamente acompanhadas por mudanças nos quadros
dirigentes dessas mesmas instituições. Corroborando a tese da autora,

7 Na Junta Governativa da Província de São Paulo, eletiva, José Bonifácio


Ribeiro de Andrada assumiu o posto de vice-presidente enquanto Martim Francisco
Ribeiro de Andrada exercia a função de secretário de Fazenda.

366
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Eder Ribeiro (2010), ao se debruçar sobre o Conselho de Estado de


Dom Pedro I, constata que a formação estatal do Brasil no Primeiro
Reinado não se desvencilhou dos antigos laços que costuravam as
relações pessoais à política, mesclando interesses privados com os da
administração pública, formando grupos de interesse em torno do
Estado e da sua composição administrativa e institucional.
Outrossim, a partir das características pautadas nas
continuidades de tais grupos familiares em relação ao governo central,
se torna fundamental a compreensão e investigação das bases e as
características de suas permanências. Devemos, portanto, segundo
Martins, entender quais foram as estratégias para a ascensão política
e perpetuação no poder, com ênfase nas relações de matrimônio e na
grande diversificação de suas atividades e atuação. Segundo a autora,
a ação dessas elites parece demonstrar que muitas vezes
o capital econômico dos indivíduos, especialmente
daqueles cuja fortuna tinha origem no comércio, por si
não pareciam suficientes para manter prestígio político
(MARTINS, 2007, p. 422).
A distinção social só seria possibilitada através dos laços
de matrimônio, enriquecimento e por meio da burocracia e cargos
honoríficos. Segundo Camila Borges, durante a regência de D.
João ocorreu uma inflação no número de hábitos concedidos pela
Coroa portuguesa, padrão que se manteve mesmo posteriormente
à independência. As condecorações foram usadas em momentos
delicados da Corte ameaçada, durante a criação do Império
independente e mesmo com o processo de fortalecimento do poder
central, período marcado por constantes conflitos regionais, em que
se fazia necessário apoio dos diferentes setores das elites centrais
e provinciais. A nobilitação foi, assim, tanto almejada pelas elites
quanto uma estratégia do imperador para assegurar o poder, porque
o privilégio de conceder hábitos mantinha nas mãos de D. Pedro um
instrumento fortemente ambicionado pelas elites e ao qual ele poderia
recorrer segundo seu interesse (BORGES, 2013).
Sendo assim, em meio a embates e negociações do
imperador e as elites centrais e provinciais, foram mantidas as bases

367
Das utopias ao Autoritarismo

políticas que garantiram a legitimidade do regente e sua autonomia


em relação às determinações das Cortes de Lisboa (DOLHNIKOFF,
2003). Tal projeto, como afirma Costa (2005), só foi possível graças
aos interesses na manutenção da escravidão e principalmente do
tráfico atlântico, que foram os principais condutores da manutenção
da unidade territorial e da solução dinástica.
Como parte do pacto político estabelecido entre o
monarca e o “povo” do Rio de Janeiro, seria necessário criar as bases
constitucionais para o Estado do Brasil (SOUZA, 1999). Destarte, por
decreto de 3 de junho de 1822, convocava-se uma
Assembleia Luso Brasiliense que investida daquela porção
de soberania que essencialmente reside no povo deste
grande e riquíssimo continente, constitua as bases sobre
que devam erigir sua independência (RODRIGUES, 1927,
p. 25).
A preservação do território, com a opção pelo Império
do Brasil expressava a primeira vitória do projeto monárquico-
constitucional, revelava, nas palavras de Ilmar Mattos (2005, p. 20),
“como os herdeiros eram também construtores” e deixava em evidência
o papel da cidade do Rio de Janeiro como a sede da monarquia na
pessoa de D. Pedro. Reforçava também a escolha constitucional
com a convocação da Assembleia Constituinte do Brasil, onde se
encontravam presentes os principais artífices da separação política.
No primeiro discurso proferido pelo Imperador na Sessão
de Abertura da Assembleia Constituinte de 1823, toma centralidade a
situação em que se encontra o Tesouro Público, vista como deficitária,
na medida que suas despesas excediam as suas receitas que se
mantinham majoritariamente sob a arrecadação da província do Rio
de Janeiro (CALMON, 1977).
Entretanto, apesar de ser de primordial interesse a situação
das finanças, pouco se falava em mudanças na estrutura econômica
e social. Para José Honório Rodrigues, a eleição de uma Comissão
específica dentro da Assembleia para tratar dos assuntos econômicos
demonstrou o interesse que essa matéria tinha nas discussões da

368
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Casa. Foram eleitos membros o ministro e secretário de Estado dos


Negócios da Fazenda Manuel Jacinto Nogueira da Gama – futuro
Marquês de Baependi, Martim Francisco Ribeiro de Andrada, José de
Resende Costa, o Barão de Santo Amaro e Toledo Rendon. Em plano
nacional as matérias econômicas e fiscais pouco foram debatidas pelos
deputados, sendo a principal definição dada a de que só seriam fixadas
as despesas pela autoridade nacional (RODRIGUES, 1977).
Nogueira da Gama, que assumiu a Secretaria de Estado e
Negócios da Fazenda após a demissão de Martim Francisco Ribeiro de
Andrada em 17 de julho de 1823 foi o primeiro ministro da fazenda
a publicar um relatório com as demonstrações das situações das
províncias. No preâmbulo do documento o secretário de estado e
negócios da fazenda especificava que o fato de não existir um mesmo
modelo de balanço para todas as províncias dificultava o trabalho
do Ministério em sistematizar essas informações e transformá-las
em úteis às possíveis soluções a cargo do Tesouro para a questão
orçamentária. Neste relatório se pretendeu expor o estado da Fazenda
Pública nos anos de 1821, 1822 e 1823, e organizar os orçamentos para
os anos de 1823, 1824 e 1825. Segundo o ministro
Seria bom, e mesmo necessário, além de mais exato,
para obter-se um verdadeiro, e cabal conhecimento da
importância anual das positivas rendas, e despesas públicas
de cada uma das províncias a cargo da dita repartição,
seu déficit, e sua dívida ativa, e passiva; que fosse possível
tomar-se um mesmo ano para termo das Operações de
todas; isto é, que a demonstração do que pertencesse a cada
Províncias, se considerasse, relativa ao mesmo ano, e que
fossem idênticos os princípios das demonstrações, para se
tirarem resultados coerentes (BRASIL..., 1823, p. 7).
O futuro Marquês de Baependi sistematizou em forma de
relatório a situação das finanças desde o seu trabalho como escrivão
deputado da Junta da Fazenda de Minas Gerais em 1808, quando enviou
a D. Rodrigo de Sousa Coutinho três peças, cartas que enfatizavam a
capacidade que a capitania de Minas Gerais tinha de sair do ostracismo
em que se encontrava e “tornar a ser útil ao Real Tesouro” (RIBEIRO,
2017, p. 292). Em 1812, com cargo de escrivão da mesa do Real Erário,

369
Das utopias ao Autoritarismo

Nogueira da Gama publica uma representação sobre a atual situação


das finanças do Brasil. Nesse contexto o autor esclarece que pretende
ter demonstrado que a situação das finanças não é o mais deplorável,
desde que as capitanias enviem ao governo do Rio de Janeiro, na
pessoa de D. João VI, as sobras de suas rendas, tão importantes para o
desenvolvimento do império luso brasileiro (CARREIRA, 1889).
Pretendemos demonstrar com estes excertos que a
escolha do Imperador em nomear esse personagem em específico
como Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda
advém tanto de sua ampla experiência na administração fazendária,
como de sua formação em Matemática em Coimbra, além de sua
importância durante o processo de independência e sua ampla ligação
com os setores dos negociantes e graças aos laços de parentesco que
estabeleceu com o português comerciante de escravos e senhor de
engenhos Braz Carneiro Leão ao casar-se com sua filha D. Francisca
Mônica Carneiro da Costa, testamenteira e principal herdeira de
Nogueira da Gama (LOBARINHAS, 2003).
Para Wilma Peres Costa (2003, p. 185), a impressão que
podemos ter do “Estado que se formava e que com isso buscava uma
maneira de se relacionar com as províncias, enquanto herdeiro das
instituições de origem metropolitana e incapaz de coletar as sobras
provinciais”, é que ele foi mantenedor, tanto em sua organização
institucional quanto nos centros de tomada de decisão. Não que não
considerasse a necessidade de reformas, como afirma Chaves (2017),
mas por optar pela manutenção do território e com isso pelo não
enfrentamento.
A manutenção do modelo de administração herdado do
Antigo Regime, funcionava para as elites provinciais como forma de
reforçar suas autonomias e a manutenção dos seus poderes, como
afirma Chaves (2017). Contudo, com a separação política algumas
dessas instituições sofreram algumas modificações: o Erário Régio
nesses termos, como dito anteriormente, transformou-se em Tesouro
Público e o Conselho de Fazenda permaneceu durante o Primeiro
Reinado, mas de maneira menos proeminente. As Juntas Fazenda,
no entanto, continuaram a exercer seu papel de arrecadadoras, e

370
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

consequentemente reforçaram o seu poder no plano local. Como


órgãos provinciais estavam majoritariamente dissociadas do poder
central com sede na Secretaria de Estado e Negócios da Fazenda,
como é possível perceber em todos os relatórios de fazenda publicados
de 1823 até 1830. No geral, os secretários se queixavam da demora
no envio dos relatórios provinciais, que seriam informações
fundamentais para o exame da fiscalidade e da situação do Tesouro
em plano nacional.
Na Constituinte de 1823 os deputados também não se
referiam a mudanças profundas na organização fazendária e fiscal
do território, apesar de considerarem essas discussões essenciais para
o ordenamento do Estado. Os pontos que tiveram mais evidência
diziam respeito ao governo das províncias e da extinção dos governos
provisórios. Para o deputado alagoano Souza Mello, por exemplo, que
apresentou projeto de lei em 07 de maio de 1823, seria primordial a
nomeação pelo Imperador do novo governador para cada província,
que deveria assumir também a presidência da Junta da Fazenda,
demonstrando novamente a tese de Chaves de que no geral essa elite
provincial estaria mais preocupada em garantir sua influência no
plano local do que em reformar todo o aparelho estatal.
Com a dissolução da Constituinte por decreto de 12 de
novembro de 1823, convocou o Imperador a criação de seu Conselho
de Estado que estaria responsável pela elaboração de uma constituição
que seria apresentada às Câmaras Municipais até dezembro de 1823.
Outorgada a Constituição no ano de 1824, uma sessão específica
trataria dos assuntos relacionados à fazenda, o capítulo três, composto
dos artigos 170, 171 e 172. Decretava que toda a receita e despesa
da Fazenda Nacional estava encarregada do Tesouro Nacional
administraria a partir de suas repartições provinciais os recursos do
Estado. Previa também as atribuições da Assembleia Geral sobre
todas as contribuições diretas e por fim deixava a cargo do Ministro
de Estado da Fazenda a publicação de relatório anual que deveria
conter o balanço geral da receita e despesa do Tesouro Nacional do
ano antecedente e o orçamento de todas as despesas do ano futuro
(CONSTITUIÇÃO..., 1824).

371
Das utopias ao Autoritarismo

Novas regras seriam colocadas em jogo com a Constituição,


principalmente no que tange à representação nacional e à divisão dos
poderes, apareceria em cena personagens que colocariam na equação
que se desenrolava desde a emancipação política novas variáveis,
principalmente na forma como se organizavam as instituições no
Brasil. O Poder Legislativo agora delegado à Assembleia Geral seria a
responsável pela criação de leis, sua interpretação e suspensão. Estaria
também sob sua tutela a fixação das despesas públicas e a repartição
das contribuições diretas, ou seja, essa instituição separada em duas
câmaras – Senado e a Câmara dos Deputados – teria relação direta
com a organização do Tesouro Público Nacional, na medida em
que regulariam a autorização do governo a contrair empréstimos,
estabeleceriam os meios pelo qual se pagaria a dívida pública,
administrariam os bens nacionais, toda a organização de pesos,
medidas e moedas.
Todas essas atribuições da Assembleia Geral e sua
correlação com a Secretaria de Estado e Negócios da Fazenda foram
primordiais para a manutenção do Império do Brasil em um contexto
de incertezas como foram os primeiros anos da independência.
Esse período foi fundamental para a sustentação do Estado que se
encontrava com pesados déficits e para o reconhecimento do Império
do Brasil enquanto nação soberana. No seio dessas instituições se
organizaram algumas das principais reformas fiscais e fazendárias
durante o período regencial que não serão tratadas nesse artigo, mas
que fazem parte do escopo da pesquisa.

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Sessão de Manuscritos. Arquivo Nacional.
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Das utopias ao Autoritarismo

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Dom Frei José da Santíssima Trindade, um bispo


reformador
Anna Karolina Vilela Siqueira 1

Introdução
Durante todo período colonial, as relações Igreja-Estado,
inclusive em Minas Gerais, mostraram-se bastante conturbadas. A
ação dos Bispos defrontava-se diretamente com a atuação do poder
real, devido à confusa legislação no tocante a seus direitos fiscalizadores
e disciplinares. No contexto de ação do padroado régio, a faculdade
episcopal de aplicar censuras e penas canônicas ficava de certa forma
parcialmente inibida pelo recurso do efeito suspensivo que podia ser
solicitado à Coroa.
A ação pastoral apresentou-se, assim, em formato
suplementar e ratificador aos interesses da política colonizadora
(BOSCHI, 1986, p. 62-86). Ademais, a autoridade dos Bispos por vezes
era questionada pelas ordens religiosas, inclusive terceiras. Em Minas
Gerais, por exemplo, as confrarias leigas afirmavam estar subordinados
diretamente aos Gerais do Carmo (em Roma) e de São Francisco (em
Castela), eximindo-se assim, inclusive, de uma obediência ao Estado
português. Paralelamente, os Bispos enfrentavam a desobediência dos
cabidos (BOSCHI, 1986, p. 62-81).
O período de governo de Dom José da Santíssima Trindade
no Bispado de Mariana estendeu-se de 1820 a 1835, sendo ele o
sexto bispo desta Diocese. Foi, assim, antecedido por Dom Frei
Manuel da Cruz (1748-1764), Dom Joaquim Borges de Figueiroa
(1771- 1773), Dom Bartolomeu Manuel Mendes dos Reis (1773-
1777), Dom Frei Domingos da Encarnação Pontével (1779-1793),
Dom Frei Cipriano de São José (1798-1817). Dom Frei José chegou
ao Bispado num momento de vacância do Seminário e, sobretudo,

1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade


Federal de Ouro Preto, MG. . E-mail: annakarolvs@hotmail.com. Este trabalho é um
recorte da dissertação de mestrado ainda em andamento.

379
Das utopias ao Autoritarismo

num período “provavelmente o mais conturbado da história da


diocese de Mariana” (TRINDADE, 1929, p. 22). Após sua instalação,
o Bispo iniciou uma série de modificações no Seminário, tanto em
âmbito material como administrativo, para que assim pudessem ser
retomadas as atividades do local. Simultaneamente, entre 1821 e
1825, o bispo visitou 65 das 68 freguesias de Mariana, observando as
condições da Igreja em sua Diocese e direcionando a vida pastoral
e religiosa segundo as determinações de Trento, de forma articulada
com a política colonizadora do Estado português. A cada visita, ele
relatava minuciosamente os lugares, os dados materiais, as vivências
espirituais que veio a encontrar, tornando-se, posteriormente, valiosa
fonte de pesquisa histórica. Dom José foi Bispo desta Diocese até 28 de
setembro de 1835, quando veio a falecer.
Sobre o episcopado de Dom José, elencamos como nossa
principal problemática de pesquisa a elucidação das principais
concepções e práticas que ele priorizou em sua direção eclesiástica
à frente do Bispado de Mariana, sob um tríplice aspecto: 1) no que
tange à vida religiosa; 2) no concernente à formação educacional; 3)
no relativo aos princípios teológico-políticos fundantes da ordem
social. Almejamos ainda identificar as interrelações mantidas entre
esses três elementos. Dito isso, é importante, inclusive, ressaltar que
pouca atenção tem sido dada à época do Bispado de D. Frei José nas
análises historiográficas contemporâneas. Em nossas pesquisas, não
encontramos estudos cujo foco seja o governo episcopal do Prelado,
a não ser bibliografias descritivas e a transcrição de algumas Visitas
Pastorais organizadas por Ronaldo Polito e José Arnaldo Lima. O que,
ao nosso ver, deixa de ser um ganho para a historiografia, em especial
para a história das ideias religiosas em Minas Gerais.
Tal ausência é agravada pela importância que o Seminário
de Mariana exerceu no campo educacional no século XIX, ainda que
esta instituição estivesse marcada por altos e baixos durante os cinco
episcopados que antecederam D. José, sendo que uns possuem um
período muito curto de governo e outros nem sequer chegaram a
viver em Mariana.
Contudo, nossa proposta não se reduz à importância de

380
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

D. José e suas contribuições ao Seminário. Para nós, o importante é


entendermos a dimensão das ideias e ações do Prelado no contexto da
vida social nas Minas Oitocentistas. A relevância em aprofundarmos
o estudo do Bispado de D. José está em nosso desejo de reconhecer
como suas visões e ações frente ao Seminário contribuíram para a
formulação e circulações de ideias no contexto de Minas Gerais,
principalmente quando levamos em conta o contexto político da
época, que estava num processo de transição entre duas formas de
Governo, entre Colônia e Império. Desse modo, nosso objetivo é
contribuir com o aprofundamento do debate em torno das relações
entre sociedade e Igreja, para assim podermos compreender até que
ponto as ideias desta última, como instituição promotora de ordem,
afetaram a interface entre as concepções religiosas, políticas e o
modo de viver de uma sociedade.

Dom José da Santíssima Trindade e o Bispado de Mariana


São poucas as informações com que nos deparamos até o
momento acerca da infância e vida de D. José, num período anterior
a sua chegada ao Brasil. No artigo publicado na Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de Minas Gerais, escrito por Frei Venâncio
Willeke, (WILLEKE, 1929) encontramos algumas notas sobre o
mesmo, como por exemplo, parte de sua certidão de batismo, retirada
do Arquivo Secreto do Vaticano, onde consta que o dito Bispo era
filho de Antonio Leite e Quitéria Maria, nascido aos quatro dias do
mês de junho de mil setecentos e sessenta e dois, na região do Porto,
em Portugal. Chegou ao Brasil aos 16 anos, através do recrutamento
promovido entre os franciscanos nas regiões de Lisboa e do Porto;
os jovens assim ingressos na Ordem seriam então enviados para
as missões da Bahia. Segundo Willeke, mesmo que a Província
franciscana brasileira fosse autônoma desde 1657, continuavam a
recrutar membros oriundos do Reino.
Já vinculado à Ordem dos Franciscanos, Frei José recebeu
em 1779 o hábito da penitência e em 1780 o de professor. Cursou
três anos de filosofia e teologia no Convento de Salvador, que até o

381
Das utopias ao Autoritarismo

momento não foram encontradas as datas de ordenações. Em 1787,


foi nomeado pregador e em 1790 recebeu a jurisdição para confessar
homens. No ano de 1793, foi nomeado Presidente da Comunidade
de Paraguaçu e no final de 1796 recebeu a jurisdição de confessor
geral. Em 1801, D. Frei José ganhou o cargo de companheiro de
comissário dos Terceiros Franciscanos de Salvador. Retornou ao
Convento de Paraguaçu, em 1802, como guardião eleito do capítulo.
Após dois anos, novamente lhe foi atribuído o cargo de formação
dos noviços. Governou o convento de Paraguaçu entre 1805 até
1808. Após esse período, foi diretor do convento de Salvador até
1811, onde Willeke afirma que na época “abrigava o provincialado
e os cursos de estudos superiores da Ordem Franciscana, portanto
a comunidade religiosa mais numerosa da Província” (WILLEKE,
1929, p. 43).
De acordo com o Livro dos Guardiões do Convento de São
Francisco da Bahia, dedicou-se com extremo cuidado ao templo,
como também à formação do clero. No ano de 1817, D. Frei José foi
nomeado vigário provincial, governando toda a província. Seu nome
aparece nas atas capitulares até a data de 13 de dezembro do dito ano.
Após ter passado por todos os “cargos” importantes da congregação
franciscana, e chegar a vigário geral da Província, em 13 de maio de
1818, D. João VI propõe à Santa Sé o nome de D. Frei José para o
Bispado de Mariana.
O processo canônico estabelecido pelo núncio apostólico do
Rio de Janeiro, baseado nas testemunhas trouxe algumas características
do novo Bispo de Mariana, como por exemplo, a citação abaixo vinda
de Francisco José da Costa, cônego da catedral da Bahia, cavaleiro da
Ordem de Cristo, onde dizia que
tratou com o Bispo eleito por muito tempo na Bahia [...]
Não é doutor nem em teologia, nem em direito canônico,
mas é dotado de doutrina bastante que se requer num
bispo. É exímio e eloquente pregador. Muito zeloso na
pregação e no confessionário. O seu zelo tem operado
muitas conversões. Não tem impedimento algum que
obste à plenitude do sacerdócio (WILLEKE, 1929, p. 45).

382
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Foi sagrado na Capela Real do Rio de Janeiro, em 9 de abril


de 1820, e chegou a Mariana no dia 8 de agosto de 1820.
A atuação político-pastoral de Dom José da Santíssima
Trindade em Mariana, foi inicialmente descrita através de
memorialistas mineiros. Devido às concepções da escrita e pesquisa
histórica de sua época, os acontecimentos são por eles narrados sem
citação de fontes e sem sua crítica histórica e de linguagem. Dois
foram os principais memorialistas a abordar a trajetória episcopal de
Dom José da Santíssima Trindade.
O primeiro deles foi Raymundo Trindade (1883-1962),
um sacerdote mineiro que estudou no Seminário de Mariana e, após
ordenado, tornou se cônego, tesoureiro-mor do Cabido e chanceler
da Arquidiocese. Durante os anos de 1923 a 1944, dirigiu o Arquivo
Eclesiástico da Diocese de Mariana. Escreveu várias obras sobre
importantes famílias mineiras e acerca da história de Minas Gerais.
Em Arquidiocese de Mariana, ele tece, em contornos memorialísticos,
a trajetória da Igreja marianense desde sua criação até o episcopado
de Dom Silvério Gomes Pimenta, concluído em 1922. Já no livro O
Seminário de Mariana, ele sintetiza aspectos vinculados às balizas
institucionais e culturais desta instituição de ensino. Trindade
apresenta D. José como “homem de fé viva e ardente” (TRINDADE,
1929, p. 200), cujas celebrações eram repletas de pompas e devoção
à Igreja. A caridade também é uma característica que ele ressalta em
D. José: “das visitas pastorais, para com as quais saia levando somas
vultuosas, sempre voltava endividado, mas deixando após de si uma
multidão de pobres cantando sua caridade” (TRINDADE, 1929, p.
201).
Outro memorialista de Dom José foi Diogo de Vasconcelos
(1843-1927). Estudou no Seminário de Mariana e formou-se em
Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, no Rio de Janeiro.
Foi membro do Partido Conservador Mineiro e é considerado um dos
fundadores da historiografia de Minas Gerais. Dentre suas principais
obras está História do Bispado de Mariana, onde descreve o trajeto da
atuação da Igreja mineira através da Diocese de Mariana.

383
Das utopias ao Autoritarismo

Em ambos os autores, há uma versão laudatória a Dom José:


O autor [Raimundo Trindade] tece comentários relevantes
a respeito desta prelazia: Dom Frei José da Santíssima
Trindade é de um homem industrioso que buscou sanar
as necessidades regionais com relação à formação do clero
[...]. Diogo de Vasconcelos traz os problemas enfrentados
pelo prelado durante a Independência do Brasil (1822),
os períodos do Primeiro Reinado (1822-31) e Regencial
(1831-40). O cabido marianense queria perseguir contra
os clérigos portugueses, tal atitude provinha de desavenças
declaradas entre os naturais de Portugal e aqueles que se
consideravam brasileiros. O prelado sempre procurou
contornar os conflitos por meio de negociação permeada
de espírito cristão (SANTANA, 2011, p. 30).
Em termos de historiografia religiosa, os trabalhos pioneiros
de Riolando Azzi apresentam D. José da Santíssima Trindade como
um “precursor” dos Bispos reformadores da segunda metade do
século XIX, especialmente de D. Viçoso, no tocante às terras mineiras.
Assim, segundo Azzi (AZZI, 1982, p. 564-576), tornar-se-ia possível
vislumbrar um “espírito de reforma” na atuação de D. José, face a seu
empenho pela restauração do Seminário Diocesano, ao apoio por
ele conferido ao estabelecimento de institutos religiosos em Minas
Gerais e à sua adesão incondicional às diretrizes da Cúria Romana.
Dom Frei José esteve à frente da Diocese de 1820 a 1835, num
momento de vacância do Seminário, “período […] provavelmente
o mais conturbado da história da diocese de Mariana no século
passado” (TRINDADE, 1929, p. 22). Após sua instalação, o Bispo
inicia uma série de modificações no Seminário, para que assim os
seminaristas pudessem retomar as atividades do local. As tentativas
de reorganização trouxeram uma série de reformas nas estruturas
materiais, e depois no estatuto do Seminário.
De acordo com Azzi, (AZZI, 1982, p. 566-568) D. José
mantinha grande afinidade aos preceitos do Concílio de Trento.
Mas, de forma simultânea, devido à carência de estabelecimentos
educacionais no Brasil, ele considerava válido que o Seminário de
Mariana propiciasse, além da formação sacerdotal, uma educação para
os que permaneciam no estado laical, sobretudo entre os integrantes

384
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

dos grupos dirigentes, futuros encarregados de sustentar a ordem


social e religiosa.
O processo de restauração da Diocese feita por D. José
teve inicio logo na sua chegada a Mariana. O prédio do Seminário
estava fechado havia nove anos e, para viabilizar a reabertura do
edifício, o Bispo recorreu a suas próprias poupanças, além de solicitar
contribuições aos ministros do foro e vigários paroquiais (LIMA,
1998, p. 25). Além disso, o Bispo também enviou uma carta ao então
Ministro do Estado, Thomas Antônio de Vila Nova Portugal, onde
citava a importância da reabertura
deste pio estabelecimento tem saído para outros os estados
homens beneméritos que os tem servido, e ainda estão
servindo com honra e dignidade, intentes restabelece lo,
esperando o mesmo tempo com esta diligencia, não só
promover a gloria de Deus, e da sua Igreja, como também
que no mesmo Seminário se prepararem homens capazes
para que com maior estudos em universidade servirão
dignamente a um outro estado. Tenho já feito para este
fim algumas aplicações ainda da minha econômica
subsistência, e pedido pelos meus ministros e párocos
algumas esmolas, e tendo já começado a dar exercício ao
mesmo Seminário, pretendo que no principio do próximo
ano entrem para dentro os estudantes.2
De acordo com Raymundo Trindade, após cinco meses de
trabalho, no dia 23 de janeiro de 1821 foi reaberto o instituto.

Dom José da Santíssima Trindade e o Seminário de Mariana:


práticas educacionais e formação do clero e leigos
O Seminário de Mariana data de 1750, tendo sido fundado
pelo primeiro bispo da diocese, Dom Frei Manoel da Cruz. Os
seminários católicos surgiram em um contexto muito preciso: foram
criados por deliberação do Concílio de Trento (1545-1563):
Os preceitos e as mudanças estabelecidas por Trento
2 AEAM. Participação ao Ministro do Estado, Thomas Antônio de Vila
Nova Portugal sobre a reedificação do Seminário. Arquivo 2. Gaveta 2. Pasta 36.

385
Das utopias ao Autoritarismo

visavam deter o avanço das confissões protestantes, bem


como favorecer o processo de catequese e de presença
institucional da Igreja Católica nos continentes recém-
conquistados pela expansão europeia. Para concretização
deste conjunto de metas, os seminários apresentavam-
se como uma estratégia indispensável, pois através deles
deveria ser formado um clero melhor formado e alinhado
às determinações pontifícias (BUARQUE, 2010).
Segundo Virgínia Buarque, no documentário Um Seminário
nas Terras do Ouro,
O primeiro passo dado por D. Frei Manoel da Cruz para
fundação do Seminário de Mariana foi a aquisição de
uma propriedade adequada. A questão foi resolvida com
a doação de uma chácara, em 1749, por José de Torres
Quintanilha, próspero lavrador das freguesias de Barra
Longa, Furquim e São Caetano, que, a seguir, tornou-se
um dos primeiros alunos do Seminário. Mas quem seriam
os professores? No mesmo ano de 1749, a pedido de D.
Frei Manoel da Cruz, chegou a Mariana o jesuíta José
Nogueira, que passou a atuar como docente e reitor do
Seminário, sendo acompanhado, logo depois, por outros
religiosos da Companhia de Jesus. Este instituto foi
criado no contexto da Reforma Católica, no século XVI.
A Companhia de Jesus chegou ao Brasil ainda em 1549,
com o propósito de promover a conversão dos indígenas e
de instalar residências voltadas para o ensino, comumente
chamadas de Colégios, que se tornaram os principais pólos
de formação cultural da Colônia (BUARQUE, 2010).
Contudo, em 1759, ainda sob o episcopado de D. Manoel da
Cruz, os jesuítas foram expulsos da Colônia portuguesa por decreto
pombalino, e a formação e administração do Seminário de Mariana
ficaram a cargo da Diocese.
O retorno de ordens religiosas à diocese de Mariana acontece
no episcopado de D. José. Alguns frades franciscanos auxiliaram
o Bispo na organização do Seminário e na ação pastoral. Após sua
nomeação como bispo de Mariana em 1820, Dom José inicia uma
série de modificações no Seminário, tanto nas estruturas materiais
como no estatuto desta instituição.

386
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Uma das primeiras atitudes do Bispo foi a reformulação


do Estatuto3 do Seminário, que estabelecia diretrizes acerca da
administração (fundos do Seminário e da Fazenda), do exercício de
autoridade e funções (como deveriam portar-se o reitor, vice reitor,
procurador, tesoureiro, professores, párocos, sacristão, enfermeiro,
cozinheiro e porteiro), dos seminaristas (vestiário, obrigações e
deveres a se cumprir), do tempo letivo, feriados e distribuição das
horas de estudo em as aulas do Seminário, e principalmente acerca da
condução da observância moral, da correção e dos ensinamentos que
devem ter os estudantes do Seminário (onde seriam pregadas a ordem
escolástica ou observância literária, a retórica, a gramática latina, a
filosofia, a teologia dogmática e a teologia prática).
Para essa reforma, o Seminário contava com a doação de 250
escudos anuais, provinda do imperador Dom Pedro I, que acolhera
um pedido de Dom José. As principais reformas se deram, porém, no
âmbito da formação eclesiástica. Desde 1814, a Companhia de Jesus
havia sido restaurada, e suas lideranças intelectuais propugnavam
uma preparação do clero pautada na escolástica (TRINDADE, 1929,
p. 36). Foi conferido grande cuidado à observância moral, a correção
e conteúdo das disciplinas lecionadas (a retórica, a gramática latina,
a filosofia, a teologia dogmática e a teologia prática). Para auxiliá-lo
na direção do Seminário, Dom José elegeu como reitor o Padre João
Antonio de Oliveira (VASCONCELOS, 1935, p. 87).
Tal viés formativo encontrava-se obviamente associado
a um alinhamento à liderança da Santa Sé, o que era fortemente
criticado pelos liberais: “BISPO - um mero executor das ordens do
Papa (no sistema servil)... Um soberano executor das leis de Deus na
sua Diocese (segundo o sistema liberal)”4. As críticas estendiam-se
à direção do Colégio do Caraça, fundado pouco depois de iniciado o
episcopado de Dom José da Santíssima Trindade, e que “funcionou
como uma Escola Apostólica para formação do clero lazarista e foi

3 AEAM. Estatutos Para o Regimento do Seminário Episcopal de Nossa


Senhora da Boa Morte Da Leal Cidade de Mariana no Ano de 1821. Arquivo 2.
Gaveta 2. Pasta 36.
4  O Universal, 19/06/1829, n. 302 apud HORÁCIO, 2009, p. 68-69.

387
Das utopias ao Autoritarismo

dirigido pelos padres da Congregação da Missão”. Ele recebeu de “D.


João VI o título de Real Casa da Missão e, em 1824, do Imperador
Pedro I, o de Imperial casa” (HORÁCIO, 2009, p. 69). O Colégio do
Caraça gozava de grande apoio do bispo Dom José: “recomendando
suas missões ou defendendo-os [os lazaristas] nos momentos de
conflitos com seus variados opositores, soma-se aqui aos seus próprios
esforços junto ao seminário episcopal” (LIMA, 1998, p. 37).
Mas empregando a expressão “jesuíta” como uma
generalização da condição eclesiástica, O Universal manifestava-se
claramente contrário ao ensino ali ministrado:
Quando veremos os nossos jesuítas do Caraça inibidos
de influir sobre o espírito da mocidade e de preparar na
província de Minas o longo reinado da superstição e do
despotismo?5.
Devido à carência de estabelecimentos educacionais no
Brasil, Dom José manteve a destinação anterior do Seminário, que
acolhia não somente os direcionados à vida sacerdotal, mas também os
meninos e jovens da elite mineira, que viriam a atuar posteriormente
na burocracia de Estado e em funções liberais (AZZI, 1982, p. 566-
568). Diogo de Vasconcelos indica, em paralelo, que D. José atentou
ao amparo dos meninos pobres, mediante a subvenção a um orfanato
(VASCONCELOS, 1935, p. 87).
De acordo com Freitas (FREITAS, 1938, p. 30-38), segundo
as determinações do Concílio de Trento, competia ao bispo cuidar da
conservação e da prosperidade do seminário diocesano. Esta é também
a postura de Dom José, continuamente atento à formação espiritual
dos alunos e, principalmente, à disciplina interna do Seminário. Seu
propósito era o de assegurar a retidão renovação moral e espiritual do
clero, para assim melhorar sua atuação no Bispado.

Relações políticas de Dom Frei José em Minas Gerais


O período pós independência no Brasil foi marcado por

5  O Universal, 06/10/1828, n. 193 apud HORÁCIO, 2009, p. 69.

388
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

fortes conflitos de ideais, tendo em vista o cenário conturbado entre


a disputa de poder dentro das províncias e a tentativa de unificação
para a formação de um Estado Nacional Brasileiro. De acordo com
Maria Odila (DIAS, 1986) a disjunção do Brasil com Portugal não
conduziu a concretização da unidade nacional, levando em conta que
o movimento de independência não foi produzido através de uma luta
nacionalista ou revolucionária unificada, dessa forma, não se poderia
visualizar uma luta entre a colônia contra a metrópole no processo
de emancipação política, como acorreu nas Treze Colônias, devido às
contradições políticas, econômicas e sociais existentes no Brasil.
Segundo Miriam Dolhnikoff (DOLHNIKOFF, 2003) a
construção do Estado nacional teve como principal característica
a autonomia que as províncias tinham em relação ao governo
centralizado do Rio de Janeiro. Dessa forma, essa independência
garantia aos grupos dominantes maior decisão e um papel fundamental
na condução da construção do Estado do Brasil pós independência,
garantindo assim, a organização de uma elite política que operava
dualmente na preservação do Estado e na manutenção dos laços com
suas regiões. Para a autora,
A autonomia era condição para viabilizar a unidade
nacional, desejada tanto por liberais como pelos
conservadores. Desde o início a unidade nacional esteve
entre as prioridades de ambos os grupos, e esta só poderia
ser alcançada se preservada a autonomia de modo a
cooptar os grupos dominantes regionais para o interior
do Estado. Liberais e conservadores empenharam-se em
definir as competências dos governos regionais bem como
do governo central, de modo a combinar autonomia com
unidade, no interior de um pacto de feições claramente
federalistas (DOLHNIKOFF, 2003, p. 118).
No caso da província de Minas Gerais, segundo Fernanda
Chaves (GHERARDI, 2013, p. 11), os agentes históricos presentes na
região, eram formados por políticos atuantes, jornalistas e membros
da elite, atuavam com dualidade numa sociedade que defendia o
status tanto social, como econômico, para de certa forma forjassem
o próprio país enquanto nação. Dessa forma, esses homens buscavam

389
Das utopias ao Autoritarismo

desenvolver relações sociais que levassem uma formação de alianças


políticas para que o debate acerca do Estado Nacional reivindicado
pudesse ampliar a soberania política dos mesmos.
De acordo com Wlamir Silva, (SILVA, 2009, p. 180-184)
o liberalismo brasileiro nasceria, no século XIX, em uma sociedade
escravista, em uma economia colonial e a presença da única Monarquia.
Este liberalismo não conheceu revoluções sociais, rupturas de regime
ou transformações capitalistas, porém, essas experiências estariam de
forma indireta presentes na política que nascia nesse período.
A “soberania da razão” destacava se em especial na província
de Minas Gerais, onde parte dos políticos, denominados moderados,
discutiam a superioridade da razão e sua vocação civilizatória, pregando
a razão como guia para a administração da província. Essa razão,
contudo não era utilizada somente nos discursos dos moderados. A
prática política dos moderados teria tomado posições sobre questões
específicas, construindo um projeto político e estabelecendo uma base
hegemônica moderada, tendo em vista a sociedade “peculiar” que
esses políticos atuavam.
Para o autor, é importante destacar que a sociedade brasileira
do século XIX, se caracteriza “pela relação complexa entre uma
sociedade colonial ibérica tradicional e as influências do liberalismo
e das experiências americanas”. Essa complexidade está relacionado
a herança colonial (patrimonialismo), a escravidão, e o processo de
relação sociedade e liberalismo na formação do Estado Nacional.
Desde o período Colonial, a Igreja Católica atuou nas relações
sociais, políticas e econômicas no Brasil. Sua relação com o Estado
importava a ambas as partes, já que a instituição, com a evangelização,
ajudou o Império Português no processo de colonização da América e
ao mesmo tempo conseguiu abranger o Catolicismo na colônia.
Muitos religiosos tiveram papeis importantes no cenário
político nacional, segundo Oscar Lustosa (LUSTOSA, 1977) a Igreja
passou por dificuldades nas missões evangelizadoras na colônia. No
início do século XIX, essa situação piorou, devido às políticas “pós-
proclamação da independência”, pois foram formados no Período

390
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Colonial duas frentes de pensamento dentro do próprio clero; uma


primeira seria ligada aos padres liberais, que acreditavam numa
autoridade e autonomia do Bispo em relação à Santa Sé, e outra,
ligada a frente conservadora do clero; cujo posicionamento era
contrário dos liberais; aqui, a Santa Sé teria toda autonomia, e caberia
aos prelados das províncias se voltarem ao Papa. Esses pensamentos
diversos na colônia, de acordo com Lustosa, teriam sido causados
pelo fato de no Brasil, não existir uma tradição política firmada. O
contexto político- administrativo era dominado por consecutivas
crises e instabilidade.
Na província de Minas Gerais, segundo Gabriela Almeida,
os conflitos em torno da administração do Seminário também estavam
presentes e se deram por três motivos principais,
Uma delas estava relacionada a gerencia da instituição
de ensino, colocava-se em discussão a definição de quais
setores deveriam ser responsáveis por definir os aspectos
organizacionais do Seminário e a qual instância de poder
os indivíduos envolvidos em sua coordenação, incluindo
o bispo, haveriam de estar submetidos. Outro aspecto que
movia o embate consistia nas disciplinas a serem ensinadas,
discordava-se dos conteúdos a serem transmitidos,
bem como a quem caberia a sua definição. Por último,
destacamos as divergências em relação à liberdade de
difusão de pensamentos, debatia-se a necessidade de
controlá-la ou não (ALMEIDA, 2013, p. 5).
Diogo de Vasconcelos relata que D. José passou por
momentos difíceis no seu episcopado. Devido às ideias que
circulavam na sociedade vindas do processo de independência
do país, parte do clero, especialmente nativistas, “[…] deram
rédeas à insubordinação e os Cônegos da Sé romperam a macha,
empecendo a autoridade do Bispo [...] quizeram obrigá-lo a
perseguir os clérigos europeus e a destituir até Vigários collados,
como si a revolução houvesse de subverter também a ordem da
Igreja”. (VASCONCELOS, 1935, p. 87). Dessa forma, aqueles que
seguiam as ideias liberais começaram a cercar o Bispo acusando o
de absolutista e partidário da restauração.

391
Das utopias ao Autoritarismo

Dom Frei José da Santíssima Trindade adotou uma postura


contrária às ideias liberais no campo político. Assim, em suas visitas
pastorais, exortava os párocos a que
em razão do seu ofício, declame[m] contra a libertinagem
que tanto grassa por desgraça digna de lágrimas de sangue,
num século tão presumido de luzes, sendo este o seu
principal dever, derramando no espírito do povo que lhe
está cometido a verdadeira doutrina e edificando com a
palavra e com o exemplo, vindo a ser o exemplar perfeito
da porção do rebanho que lhe está cometido e do qual há
de dar estreita conta ao Supremo Pastor e Remunerador
dos bons e dos maus6.
Em outro documento, o bispo assim manifestou-se:
Recomendamos com toda a força do nosso espírito
ao reverendo pároco não cesse da clamar contras os
libertinos, que vão grassando tão desaforados, inspirando
nos seus paroquianos o espírito da verdadeira doutrina,
não lhes faltando com este alimento da alma, que é o seu
mais principal dever e indispensável ofício, e com especial
corroborada a doutrina vocal com o mais qualificado
exemplo, vindo a ser a verdadeira forma por onde se
dirijam as ovelhas que lhes estão cometidas, e dos quais há
de dar estreita conta ao Supremo e Justo Remunerador dos
bons e dos justos 7
Dom José, em paralelo, apoiava as ideias do periódico
O Telegrapho, que defendia “a Constituição de 1824 a partir da
sobrevivência do Direito Divino, adaptando o velho ao novo numa
síntese autoritária” (SILVA, 2002, p. 280).
Devido a tal postura, Dom Frei José da Santíssima Trindade
defrontou-se com forte oposição liberal promovida por alguns
presbíteros da Diocese de Mariana. Tal refutação lhe adveio desde
o juramento que proferira às bases da Constituição Portuguesa,
(TRINDADE, 1929, p. 192) que por contestar a livre manifestação

6 AEAM. Provimento à Freguesia do Pilar de Ouro Preto. Arquivo 2. Gaveta


2. Pasta 2
7 AEAM. Provimento à Freguesia de Antônio Dias. Arquivo 2. Gaveta 2.
Pasta 2

392
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

do pensamento e a liberdade da imprensa, muito desagradou aos


políticos liberais.
Aliás, a participação de presbíteros da Diocese mineira no
cenário político da década de 1820 mostrava-se bastante expressiva.
Na representação brasileira às Cortes de Lisboa, entre os dezenove
sacerdotes, três eram mineiros: Belchior Pinheiro de Oliveira
(Vigário de Pitangui), José Custódio Dias e Manuel Rodrigues
Jardim. Já na Assembleia Constituinte de 1823 participaram seis
sacerdotes mineiros: Belchior Pinheiro de Oliveira, José Custódio
Dias, Manuel Rodrigues da Costa, José de Abreu e Silva e os cônegos
Antônio da Rocha Franco e Francisco Pereira de Santa Apolônia
(HORÁCIO, 2009, p. 61-62). A ativa participação de eclesiásticos na
elite política mineira é atribuída pelo historiador Alcir Lenharo à sua
“formação intelectual privilegiada em relação ao conjunto dos demais
proprietários”, o que lhes assegurava, juntamente com o exercício do
ministério sacerdotal, “prestígio e reconhecimento que lhes abriam a
porta da carreira [política]” (LENHARO, 1979, p. 120).
Muitos desses sacerdotes eram também grandes
proprietários de terras, como o padre José Custódio Dias, (HORÁCIO,
2009, p. 62) ou vinculados às famílias que dispunham dessas áreas,
disponibilizando-lhes seus atributos no campo do discurso público e
da burocracia estatal (SILVA, 2002).
Dentre esses sacerdotes que se opunham às diretrizes de
Dom José encontrava-se, sobretudo, o padre Bhering, “fundador do
periódico liberal mineiro O Novo Argos, deputado na Assembleia
Nacional de 1834-1837 e deputado provincial em 1835-1837 e 1846-
1853” (HORÁCIO, 2009, p. 61). Antonio José Ribeiro Bhering
(ALMEIDA, 2015, p. 22-23) foi um padre da Diocese de Mariana,
ordenado pelo então Bispo D. Frei José em 1826. Atuou como
professor de Filosofia do Seminário durante 3 anos. Em 1829, o
maior jornal liberal que circulava em Minas Gerais, O Universal,
noticiou a exoneração do padre Bhering, que teria sido suspenso
de suas atividades “por motivos muito poderosos e conhecidos por
todos”.

393
Das utopias ao Autoritarismo

O então Reitor do Seminário, também recebeu do Bispo um


documento onde o Bispo argumentava a necessidade de afastamento
do dito padre de suas atividades, alegando que Bhering, pregava
“novidades filosóficas” em suas aulas, e assim, estaria a corromper os
alunos com essas ideias.
Após a expulsão, o padre não aceitou a demissão e teria
iniciado uma campanha contra D. Frei José, através da imprensa
(principalmente via O Universal) e também através do Conselho
Geral da província de Minas Gerais.
Em 1829 padre Bhering começou a atuar em alguns cargos
políticos e administrativos, nos jornais, além de continuar como
professor. Essa atuação social e as relações que o mesmo estabeleceu na
região fizeram com que o padre conseguisse uma atuação importante
dentro da sociedade. D. José respondeu aos ataques de Bhering se
juntando a uma parcela da sociedade que iam junto de seus ideais.
Em 1929, Dom José exonera o padre Bhering como professor
do Seminário de Mariana, onde ele lecionava filosofia. O sacerdote foi
acusado de ensinar “conteúdos infectos” aos alunos (LIMA, 1998, p.
38). O episódio gerou fortes controvérsias:
O padre Bhering, ordenado em 1º de novembro de 1826, é
nomeado pelo bispo 3 meses depois, professor de filosofia
e retórica do Seminário. Na condição de lente, prega
livremente para seus alunos as novas ideias do pensamento
filosófico, certamente de tom iluminista. Admoestado
várias vezes pelo bispo, não se sente acuado, acabando por
ser exonerado pelo bispo em carta de 5 de outubro de 1829.
Como diz Raimundo Trindade, “foi um escândalo”. Ouro
Preto cidade natal do Padre Bhering, saiu em sua defesa,
conferindo-lhe a cadeira de retórica, em nítido agravo ao
bispo (LIMA, 1998, p. 33).
Outros opositores do bispo eram o padre Marinho, “que
além de ter sido juiz de paz de Ouro Preto em 1834, deputado
provincial nas duas primeiras Câmaras e deputado geral na quarta,
sexta e sétima câmara foi colaborador, já na Regência, dos periódicos
liberais como Astro de Minas, Despertador Mineiro, Americano,

394
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

ambos em São João del Rei”; ele também “colaborou na Sociedade


Promotora da Instrução Pública e no Constitucional, ambos de Ouro
Preto, além de ter sido chefe de redação do Correio Mercantil, no Rio
de Janeiro” (HORÁCIO, 2009, p. 61). Também atuava na oposição
o padre José Bento Leite Ferreira de Melo, “criador dos periódicos
liberais de Pouso Alegre, [...] que foi também eleito deputado nas três
primeiras legislaturas (1826-1829, 1830-1833, 1834-1837) e nomeado
senador em 1834” (HORÁCIO, 2009, p. 61).
Tais sacerdotes cunhavam Dom José da Santíssima
Trindade como “absolutista”, pois consideravam que ele não abria
mão da centralização do poder eclesiástico. Essa era a versão também
apresentada por periódicos do período, entre os quais o jornal O
Universal. Este jornal, de forte tendência liberal, é considerado um dos
mais importantes na capitania de Minas Gerais no Primeiro Reinado,
sendo editado na cidade de Ouro Preto e circulando de 18 de julho
de 1825 a 10 de junho de 1842. Tal periódico teve como fundador e
um dos principais colaboradores o deputado liberal Bernardo Pereira
de Vasconcelos (RODRIGUES, 1986). Em um de seus artigos, O
Universal assim descrevia o prelado de Mariana:
consta-nos que se achava recolhido na Cadeia Pública
desta Cidade um Crioulo, que era Sacristão da Matriz do
inficionado por haver roubado a âmbula, cujo desacato
S. Exa Rev. [D. Frei José da Santíssima Trindade] não
se envergonhou de atribuir à desenfreada liberdade dos
nossos tempos, e que as suas criaturas mais sem rebuço
atribuíam aos liberais8.
Como estratégia retórica, o jornal não hesitava em depreciar
as atitudes e postura do bispo, desqualificando-o assim para a função
eclesiástica, sobretudo para liderança das almas:
O nosso ex. Bispo querendo obsequiar ao nosso M.
Imperador mandou que na missa se desse a Oração
Pro peregrinantibus. Ora S. Ex. parece que não sabe o
significação da palavra peregrino, o que é provável, ou
injuriou o Imperador do Brasil chamando-o peregrino
dentro dos seus Estados. É miserável essa gente Telegráfica

8  O Universal, 16/03/1831, n. 575 apud HORÁCIO, 2009 p. 63.

395
Das utopias ao Autoritarismo

– quando quer louvar deprime, e quando pretende


deprimir, louva.9
As denúncias dos jornais incluíam casos de “expulsão de
alunos e a perseguição a estudantes com o tope nacional”10, afirmando-
se que “as Cadeiras de Filosofia, e Teologia passaram atrevidamente a
insultar os Seminaristas de tope” e “costumam de ordinário misturar
as suas explicações com insultos os mais grosseiros aos Liberais, à
liberdade de Imprensa, à Soberania Nacional [...]”.11
Assim, um dos epítomes de O Universal a Dom Frei José da
Santíssima Trindade era o de “déspota”:
eis [que] chega (inecredibile dictu) uma provisão de sua Ex.
Rev. o senhor Bispo de Mariana D. Fr. José da Santíssima
Trindade, na qual comina a todos os eclesiásticos para que
nenhum assista aos Ofícios, que se [h]aviam de celebrar na
Capela dos Terceiros do Carmo, sob pena de suspensão.
Ó despotismo! Ó nefando despotismo! Ó abominável
despotismo! Até quando cevarás tu os negros ódios, as
vinganças, as intrigas, e as paixões entre os desgraçados
mineiros? Quando se quebrarão as cadeias que ainda
te ligam tão estreitamente contigo, ó monstro, ó mais
abominável monstro? Sim, eu com razão clamo contra
o despotismo, e não pode haver maior mal ao praticado
pelo excelentíssimo Bispo para com os Sacerdotes dessa
Imperial Cidade12.
O período pós independência e formação do Estado
Nacional foi um processo de disputas de projetos políticos, tanto entre
as províncias do Brasil, cada qual com seu projeto frente a Nação,
quanto aos próprios membros políticos e religiosos das províncias,
que buscavam uma participação ativa nas decisões regionais. Para os
liberais, a Igreja atrapalhava seu projeto político pois a instituição, neste
período, através do comando de D. José, estava ligada à centralização
do poder e à monarquia absolutista. A Igreja por sua vez, também

9  O Universal, 2/03/1831, n. 564 apud HORÁCIO, 2009. p. 67.


10  O Universal, 08/06/1831, n. 604 apud HORÁCIO, 2009 p. 65.
11  O Universal, 10/06/1831, n. 605 apud HORÁCIO, 2009 p. 66.
12  O Universal, 13/04/1827, n. 273 apud HORÁCIO, 2009, p. 68.

396
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

buscava uma maior participação social e uma organização efetiva


pautada nas diretrizes de Roma. Ambas as propostas caminhavam
para a realização e defesa de um novo catolicismo dentro do Brasil e
da formação da Nação que se buscava constituir como um todo.

Referências:
Fontes:
AEAM. Estatutos Para o Regimento do Seminário Episcopal de Nossa
Senhora da Boa Morte Da Leal Cidade de Mariana no Ano de 1821.
Arquivo 2. Gaveta 2. Pasta 36.
AEAM. Participação ao Ministro do Estado, Thomas Antônio de Vila Nova
Portugal sobre a reedificação do Seminário. Arquivo 2. Gaveta 2. Pasta 36.
AEAM. Provimento à Freguesia do Pilar de Ouro Preto. Arquivo 2. Gaveta
2. Pasta 2
AEAM. Provimento à Freguesia de Antônio Dias. Arquivo 2. Gaveta 2. Pasta 2

Bibliografia:
ALMEIDA, Gabriela Berthou. Jogos de poder: disputas em torno da
administração do Seminário de Mariana, 1829-1835. Anais do XXVII
Simpósio Nacional de História. Natal, 2013.
ALMEIDA, Gabriela Berthou. Jogos de Poderes: O Seminário de Mariana
como espaço de disputas políticas, religiosas e educacionais (1821-1825).
2015. 182f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2015.
AZZI, Riolando. Um Franciscano entre os Bispos Reformadores.
Convergência, ano XVII, n. 157, p- 564-576, nov. 1982.
BOSCHI, Caio Cesar. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política
colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.
DIAS, Maria Odila Silva. A interiorização da metrópole (1808-1853). In: MOTA,
Carlos Guilherme (Org.). 1822: Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 7-37.
DOLHNIKOFF, Miriam. O lugar das elites regionais. REVISTA USP, São
Paulo, n.58, p. 166-133, jun./ago. 2003.
FREITAS, José Higino de. Aplicação no Brasil do Decreto Tridentino sobre

397
Das utopias ao Autoritarismo

os Seminários até 1889. Tese de Láurea em Direito Canônico. Pontifícia


Universidade Gregoriana. Roma, 1938.
GHERARDI, Fernanda Chaves. A construção das identidades políticas em
Minas Gerais 1834-1844. 2013. 168f. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2013.
HORÁCIO, Heiberle Hirsgberg. Apontamentos sobre o embate entre os
liberais mineiros e o bispo de Mariana Frei José da Santíssima Trindade no
Primeiro Reinado. Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 6, n. 1, p. 60-74, 2009.
LENHARO, Alcir. Tropas da Moderação: o abastecimento da Corte na
formação política do Brasil, 1802-1842. São Paulo: Símbolo, 1979.
LIMA, José Arnaldo Coelho de Aguiar; OLIVEIRA, Ronald Polito de. (Orgs.).
Visitas Pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade (1821-1825). Belo
Horizonte: Fundação João Pinheiro; Centro de Estudo Históricos e Culturais, 1998.
LUSTOSA, Oscar de F. Reformistas na Igreja do Brasil Império. São Paulo:
Paulinas, 1977.
RODRIGUES, José Carlos. Ideias Filosóficas e Políticas em Minas Gerais
no Século XIX. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1986.
SANTANA, Paulo Vinicius Silva de. Ministério Sacerdotal na Sé de
Mariana: Posse de Livros, Organização Familiar e Atividades Econômicas
(1820 a 1875). 2011. 146f. Dissertação (Mestrado em História). Programa
de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo
Horizonte, 2011.
SILVA, Wlamir. Liberais e povo: a construção da hegemonia liberal-moderada
na província de Minas Gerais (1830-1834). São Paulo: HUCITEC, 2009.
TRINDADE, Raymundo. Arquidiocese de Mariana. Subsídios para sua
história. 2. ed. [S. l.: s.n.] I volume. 1929.
VASCONCELOS, Diogo. História do Bispado de Mariana. Belo Horizonte:
Edições Apolo, 1935.
WILLEKE, Frei Venâncio, OFM. Dom Frei José da Santíssima Trindade. 6º
Bispo de Mariana (1820-1835). Revista do Instituto Histórico e Geográfico
de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. XII, p. 39-81, 1929.

Documentário:
Um Seminário nas Terras do Ouro. Produção de Virgínia Buarque.
Mariana, MG: Laboratório de Ensino de História da UFOP, 2010. DVD.

398
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A tradição doutrinária no Tribunal da Relação do


Rio de Janeiro durante o Segundo Reinado
Renan Rodrigues de Almeida1

Introdução
A presente comunicação insere-se no campo da História
do Brasil Imperial, em confluência com o domínio da História do
Direito. O problema central em análise é a influência do Opinio
Doctorum2 nos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação do Rio
de Janeiro durante as duas primeiras décadas do Segundo Reinado,
prática esta que iria de encontro a uma concepção de “justiça de leis”,
aproximando-se de uma “justiça de juízes”.
De acordo com o pressuposto teórico fornecido por Carlos
Garriga e Andréa Slemian (2013), até a independência do Brasil,
em 1822, e, ao menos até as duas décadas subsequentes, as decisões
tomadas em nossos tribunais ainda eram regidas essencialmente pelo
Opinio, o que, não raro, propiciava abusos por parte dos magistrados.
Grosso modo, os autores argumentam que “[...] a ‘boa administração
da justiça’ dependia do ‘bom juiz’, e do seu reto comportamento, e
não das leis e de sua devida aplicação” (GARRIGA; SLEMIAN, 2013,
p. 181).
Objetiva-se, desta forma, verificar se o recurso a esta fonte
jurídica, típica do Antigo Regime, foi mantido durante o Segundo
Reinado, tomando a jurisprudência do Tribunal da Relação do Rio
de Janeiro como estudo de caso. Embora o tema abarque todo o
longo século XIX, escolheu-se delimitar o problema entre a reforma
constitucional, com a lei de interpretação do Ato Adicional de 1834,
e o fim da década de 1850, quando a maior parte dos códigos legais
criados em todo o período imperial já estavam constituídos.
A pesquisa debruçou-se sobre os acórdãos proferidos pela

1  Mestrando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo


2  Opinião dos doutores. Entendimento de juristas consagrados. Doutrina.

399
Das utopias ao Autoritarismo

Relação publicados nos jornais fluminenses da época “Gazeta dos


Tribunaes” (doravante denominado ‘Gazeta’) e “Correio Mercantil,
e Instructivo, Político, Universal” (doravante denominado ‘Correio’),
ambos disponíveis na Hemeroteca da Biblioteca Nacional Digital
(http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital).
A Gazeta, conforme aponta Bruno Guimarães Martins
(2013), foi publicada entre 1843 e 1846, editado por Paula Brito3.
Tratava-se de periódico especializado em questões jurídicas,
circulando três vezes por semana, direcionado a um público formado
por bacharéis capazes de sustentar os custos da assinatura.
Os acórdãos da Relação do Rio de Janeiro eram geralmente
publicados nas seções “Supremo Tribunal de Justiça” e “Relação do
Rio de Janeiro”. Escolheu-se levantar os registros da Relação também
na coluna do Supremo porque, muitas vezes, os pedidos de revista
eram publicados com o do acórdão recorrido.
Quanto ao Correio, tratava-se de um jornal diário que
circulou entre 2 de janeiro de 1848 e 15 de novembro de 1868, de
propriedade de Francisco José dos Santos Rodrigues. Conforme
apontam Abreu e Tognolo (2015), o Correio era um periódico
abertamente liberal com ênfases temáticas diversificadas: política,
ciências, religião, literatura, leilões, notícias diversas e outras. Sua
grande longevidade, em um contexto de publicações efêmeras,
demonstra sua importância para a sociedade da Corte. Os assuntos
jurídicos eram abordados em colunas variadas: “Tribunaes”, “O
Foro”, “Revista dos Tribunaes”, etc.
Considerando que o período de circulação da Gazeta
limitou-se a alguns anos da década de 1840, optou-se por restringir
os acórdãos registrados nesta década àqueles publicados por este
jornal, enquanto os da década posterior (1850), pelo Correio. De
modo a testar a hipótese inicial deste trabalho, a pesquisa apoiou-se,
em primeiro lugar, no método analítico da História Quantitativa, cujo
3  Francisco de Paula Brito (Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 1809 - Rio de
Janeiro, 5 de dezembro de 1861): editor, jornalista, escritor, poeta, dramaturgo,
tradutor e letrista. Um dos tipógrafos mais importantes do Império. Defendia a
imprensa livre e foi o primeiro a inserir no debate político a questão racial.

400
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

objetivo, segundo Gaulin (1998, p. 186),


pode ser duplo: seja o de fornecer respostas (em termos
muitas vezes, de invalidação de hipóteses) para perguntas
motivadas por uma problemática histórica ampla, a única
capaz de dar um sentido a resultados quantitativos que
não podem por si só adquirir uma significação; seja o de
autorizar a formulação de perguntas ou a emergência de
problemas que não seria possível estabelecer ou basificar-
se fora da linguagem cifrada (GAULIN, 1998, p. 186).
Contrariando a suposição tradicional de que os números
falam por si, buscou-se compreendê-los como pistas que deveriam ser
verificadas e analisadas por meio da análise qualitativa, objetivando
delimitar o embasamento jurídico das decisões dos desembargadores.
Desse modo, compreende-se sua importância enquanto ferramenta
analítica, ajudando a responder perguntas históricas ou trazendo
novas.
Não obstante o grande volume de acórdãos publicados
nestes jornais, a grande maioria não expunha a totalidade do teor das
decisões. Devido à impossibilidade de analisar-se a fundamentação
jurídica de tais acórdãos, optou-se por excluí-los da pesquisa. Um caso
exemplar é a apelação crime de número 1.019 publicado na edição
60 do Correio, em 1850, seção “Tribunaes”: “Appellante, o juizo;
appellado, Luiz Antonio Fagundes. Foi juiz do feito o Sr. Pantoja. -
Julgou-se confirmar a sentença appellada” (CORREIO MERCANTIL,
E INSTRUCTIVO, POLÍTICO, UNIVERSAL, n. 60, 1850).
Um exemplo de texto “completo” é o acórdão publicado na
página 2 da segunda edição da Gazeta, no ano de 1843, seção “Tribunal
da Relação do Rio de Janeiro”:
Aggravo de petição em que é aggravante D. Francisca
Maria de Jesus - Accordão em relação, etc., que tomam
conhecimento do recurso por se achar o mesmo
compreendido na primeira parte do § 9 do artigo 15
do regulamento de 15 de março de 1842, e tomando
conhecimento delle, aggravada não foi a aggravante pelo
juiz a quo [...] (GAZETA DOS TRIBUNAES, n. 2, 1843).
O cruzamento das informações compiladas, organizadas

401
Das utopias ao Autoritarismo

em tabelas, possibilitam múltiplas perspectivas analíticas.


Considerando os objetivos deste trabalho, optou-se por organizar
os acórdãos em quatro conjuntos de tabelas, cada um dos quais
separado por década, conforme já salientado. A ênfase concentra-
se nas colunas: o primeiro conjunto dividiu os acórdãos de acordo
com sua “Natureza recursal”. No segundo, o mais importante
para a análise, as colunas delimitam as fontes jurídicas enquanto
pertencentes à “Ordem Tradicional” ou “Ordem Moderna” de
acordo com as fontes específicas do direito que fundamentavam os
acórdãos4. O terceiro, assim como o segundo, enfatiza as Ordens
às quais os acórdãos pertencem, subdivididos, porém, em suas
naturezas5 cíveis e criminais. O quarto e último conjunto relaciona
especificamente a ocorrência dos Livros das Ordenações Filipinas
nos acórdãos compilados. A especificidade do material exigiu
a elaboração de uma terceira coluna para as tabelas de número
“2” e “3”, nomeada como “Indeterminados”, cujo conteúdo será
devidamente explicado mais adiante. Por ora, faz-se necessário tecer
alguns comentários acerca da organização do judiciário no Império,
enfatizando o papel das Relações.

Da Justiça Imperial
A emancipação brasileira trouxe a esperança de nova
ordem política baseada no Estado de Direito à luz dos ideais de
autodeterminação iluministas, embora sua consumação tenha
ocorrido por meio de processo peculiar. Diferentemente das ex-
colônias espanholas na América Latina, a
ex-colônia portuguesa, se não evitou um período inicial
de instabilidade e rebeliões, não chegou a ter uma única

4  Considerando que muitos dos acórdãos possuem mais de uma


fundamentação jurídica, entende-se o porquê das colunas “Total” das tabelas 2.1 e 2.2
serem superiores aos respectivos períodos nas tabelas 1.1 e 1.2.
5  A quantificação nas tabelas 3.1 e 3.2 considerou apenas as apelações cíveis
e crime de cada período. Como alguns acórdãos foram fundamentados em fontes
jurídicas de ambas as Ordens, os valores divergem ligeiramente daqueles encontrados
nas tabelas 1.1 e 1.2, embora se tratem dos mesmos acórdãos.

402
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

mudança irregular e violenta de governo [...] e conservou


sempre a supremacia do governo civil (CARVALHO,
1996, p. 11-12).
Dentre as instabilidades, o fechamento da constituinte
abriu importante cisão entre aqueles que apoiavam a centralidade
do Imperador na nova ordem e os partidários de maior liberalidade
política. A Constituição veio à luz sem a autoria de uma constituinte.
O Imperador legou a tarefa a uma comissão liderada pelo Marquês
de Caravelas e a colocou em votação nas diversas câmaras municipais
do país. A Assembleia Nacional somente voltaria a funcionar em
1826, embora os parlamentares tivessem sido eleitos em 1824. O
retorno à atividade parlamentar proporcionou a sobrevivência
do polo de oposição ao Imperador, que, sem conseguir debelar a
polarização política, renunciou em 1831 à Coroa e voltou a Portugal.
Providenciou, porém, para que seu filho Pedro permanecesse no
Brasil sob os cuidados da Regência. A solução monárquica, portanto,
manteve-se como elementar na sustentação da independência do
Brasil (CARVALHO, 1996, p. 17-18).
Entre os anos de 1822-1841, o país experimentou mudanças
substanciais no campo do Direito. Historiadores e juristas costumam
dividir o período entre 1822 a 1832 e 1833 a 1841.
Organizou-se o código criminal em 1830, que, muito elogiado
em sua forma e conteúdo, conferiu ao país o primeiro estatuto, depois
da constituição, com garantias à liberdade e limitações ao poder dos
governantes (CALIMAN, 2015; LORENZONI, 2017). Além disso, em
1828, deu-se um regimento ao Supremo Tribunal de Justiça criado
pela Constituição (art. 164). Aquela corte deveria ter a alçada de revisar
violações como injustiça notória ou nulidade manifesta nas decisões
dos tribunais de segunda instância do país denominados Relações.
Embora projetado como instrumento de restrição dos poderes do
Estado, Andréa Slemian (2013, p. 27) descreve inúmeras limitações do
Supremo Tribunal no desempenho desta tarefa. Em 1827, aprovou-
se o primeiro regimento dos juízes de paz criados também pela
Constituição (art. 162), e, em 1828, um segundo regimento conferiu
a leigos a magistratura, cuja escolha se realizava pelos titulares eleitos

403
Das utopias ao Autoritarismo

em assembleias primárias (CAMPOS, 2017). O júri, que já existia no


Brasil desde 1822, foi confirmado na Constituição de 1824. O ano de
1832, enfim, consolidava os avanços da justiça cidadã com o código
de processo criminal como a lei mais liberal instituída no Império em
relação não apenas à justiça, mas também pelo grau de autonomia
conferida às províncias (FLORY, 1986).
Em 1841, as experiências de justiça com a participação cidadã
diminuíram sua importância, pois se consolidou o poder dos juízes
togados por meio das restrições ao júri de acusação. Naquele ano,
promulgou-se a lei 261 reformando o código do processo criminal,
quando se retirou dos juízes de paz todas as atribuições policiais e
suspenderam-se os júris de acusação, entregando-se a pronúncia dos
crimes aos Chefes de Polícia, Juízes Municipais e Delegados de polícia6.
A reforma abrangeu também as simplificações processuais
pretendidas em 1832. O artigo 120 da lei 261 revogou o artigo 14 da
Disposição Provisória do Código Criminal que suprimia as réplicas e
tréplicas, assim como reduziu os agravos de petição e de instrumento
a apenas agravos no auto do processo. Tornava em vigor a antiga
legislação, leia-se as Ordenações Filipinas, naquilo que não fosse oposta
à lei. Determinou também que os agravos de petição seriam julgados
pelas Relações do Distrito, e onde não fosse possível pelos próprios
Juízes de Direito da Comarca dos despachos proferidos pelos juízes
municipais ou de órfãos (art. 121). Enfim, o edifício verticalizara-se
completamente e os juízes togados detinham completa autonomia de
gerência desse Poder, embora ainda se limitasse às demandas jurídicas.
Considerando a conjuntura específica dessas transformações
do Direito brasileiro, o presente trabalho buscou discutir a atuação
da corte de justiça que, efetivamente, fazia o controle das sentenças
obtidas em primeira instância – os Tribunais da Relação. O objetivo
consistiu em observar a prática da corte em relação à aplicação das
leis e o uso das doutrinas pelos magistrados de primeiro grau entre
os anos de 1840-1860. No Brasil Império, em 1840, a organização
judiciária estava assim distribuída:
6  Embora a pronúncia efetuada por estas autoridades devesse ser confirmada
pelos juízes de Direito, ver art. 54.

404
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A criação da Relação do Rio de Janeiro, pelo Alvará de 13


de outubro de 1751, respondia às pressões exercidas pelas Câmaras
municipais de Vila Rica e Ribeirão do Carmo, que se consideravam
prejudicadas pela distância da Relação da Bahia. Conforme constata
Rogério de Oliveira Souza (2001), tanto a criação do novo Tribunal
quanto a posterior transferência da capital para a cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro refletiam a mudança do eixo econômico
da colônia. Na época colonial, a Relação do Rio de Janeiro abrangia
todo o sul da colônia, da capitania do Espírito Santo ao Rio Grande do
Sul. Depois da Independência, o Brasil manteve as antigas Relações,
isto é, as da Bahia, Pernambuco, Maranhão e Rio de Janeiro. Em
1874, criaram-se mais dez Relações. A Relação do Rio de Janeiro
permaneceu muito importante, sobretudo porque abrangia todas
intercorrências jurídicas da Corte. E vale ressaltar que as da província
do Espírito Santo também.
Como se compunham as Relações do Brasil? Quais tipos
de processo julgavam? Quais eram os procedimentos adotados pelos
desembargadores para o julgamento dos processos? Em primeiro lugar
é preciso esclarecer que a Constituição de 1824 limitou o número de
instâncias a duas: “Art. 158. Para julgar as Causas em segunda, e ultima
instancia haverá nas Províncias do Império as Relações, que forem
necessárias para comodidade dos Povos”. Como se viu, o Supremo

405
Das utopias ao Autoritarismo

Tribunal não julgava o conteúdo do processo, mas das sentenças. Isto


é, os ministros do Supremo julgavam se havia nulidade manifesta ou
injustiça notória, e se assim decidissem, mandavam a Relação reavaliar
o recurso. Desta definição do papel da corte suprema do Império se
pode observar o grande poder entregue às Relações, pois as decisões
de direito permaneciam sob sua alçada.
Em 3 de janeiro de 1833, a mudança mais substancial
ocorreu com a aprovação do regulamento das Relações do Império,
que definiu a composição do tribunal por quatorze desembargadores,
dos quais um era nomeado Presidente. As sessões deveriam ser
públicas e os desembargadores tomavam assento numa só mesa, à
direita e à esquerda do presidente. O rito de despacho manteve-se
do mesmo modo que das ordenações com conferências três vezes na
semana, às terças-feiras, quintas e sábados. Competia às Relações:
Art. 9º Compete às Relações.
1° Conhecer dos crimes de responsabilidade dos
commandantes militares, e Juízes de Direito, recebendo as
queixas, e denuncias, formando as culpas, e os mais termos
até seu julgamento final, salva a providencia do § 2° do art.
155 do Código do Processo Criminal.
2° Conhecer dos casos, em que possam ter lugar as ordens
de habeas-corpus na conformidade do art. 340 e seguintes
do Código do Processo Criminal.
3° Conhecer dos recursos, e appellações, de que tratam os
arts. 111, 167, e 301 do mencionado Código.
4° Decidir dos aggravos do auto do processo.
5° Julgar as appellações interpostas das sentenças dos
Juizes de Direito, ou de seus substitutos; e do Conservador
da Nação Britannica emquanto existir.
6° Julgar as appellações interpostas dos Juizes de Orphãos.
7° Julgar as appellações das sentenças proferidas pelos
Juizes de Paz sobre objectos da antiga almotaceria,
excedendo a alçada estabelecida no § 2° da Lei de 15 de
Outubro de 1827.
8° Julgar as revistas.

406
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

9° Decidir os conflictos de jurisdicção entre as autoridades


nos termos da Lei de 20 de Outubro de 1823.
10. julgar as questões de jurisdicção, que houver com os
Prelados, e outras autoridades ecclesiasticas.
11. prorrogar por seis mezes o tempo do inventario,
havendo impedimento invencivel, pelo qual se não
pudesse fazer no termo da lei.
12. julgar as suspeições, ou recusações motivadas, que
forem postas aos Desembargadores.
Como se observa, as Relações possuíam amplo espectro de
competências, que resultavam em diversos acórdãos tanto em matéria
cível quanto criminal. Nesta pesquisa, buscou-se identificar a maneira
pela qual esses magistrados orientavam suas decisões. Investigou-se
nos acórdãos pistas da operação jurídica realizada para o julgamento,
se havia a consulta rigorosa à lei, se o recurso à doutrina supria o
raciocínio desses operadores do Direito, ou mesmo se havia algum
método implícito. A tarefa foi realizada por meio da consulta aos
Acórdãos publicados em periódicos, já que seria impossível acessar
cada processo guardado no Arquivo Nacional. O inventário a partir
da imprensa impõe restrições, pois não se pode averiguar o universo
dos processos julgados na Relação do Rio de Janeiro. De todo modo,
a amostragem levantada é significativa e permite aproximações
relevantes do objeto desta pesquisa.

A Jurisprudência do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro


no primeiro vintênio do Segundo Reinado: modernidade e
atraso
As tabelas foram elaboradas após pesquisa em 379 edições
da Gazeta e 3.877 do Correio. A esmagadora superioridade em volume
do Correio não corresponde, no entanto, à quantidade de acórdãos
encontrados: enquanto neste foi registrada a ocorrência de 148
decisões da Relação da Côrte, extraíram-se 208 acórdãos da Gazeta.
Considerando o foco estritamente jurídico deste último periódico,
considerou-se natural que a quantidade de acórdãos publicados fosse

407
Das utopias ao Autoritarismo

maior, ainda que possua menos edições em comparação ao Correio.


Comecemos a análise pelas tabelas referentes às naturezas
recursais dos acórdãos. Vale notar que nesta tabela um campo específico
denominado “Não-identificado” foi inserido. Tal procedimento é
decorrente da existência de acórdãos cuja natureza não foi especificada
pelo jornal, situação que, mesmo após análise minuciosa, não pôde ser
contornada sem correr-se o risco de imprecisão.
A primeira tabela mostra que, entre os anos de 1843 e 1846,
as apelações cíveis representaram mais da metade de todos os recursos
designados para a Relação da Corte, seguidas de longe pelos Embargos.
Os demais casos seguem uma ocorrência relativamente equilibrada.
Embora as apelações cíveis ainda representem a maior parte
dos recursos encaminhados para a Relação, percebe-se o aumento
significativo de apelações crimes durante a década de 1850, enquanto
os embargos diminuíram consideravelmente. De fato, comparando
as duas tabelas, compreende-se que os percentuais das duas colunas
relativas a esses tipos processuais praticamente se inverteram. Embora
não seja tema desta pesquisa discutir os tipos processuais como
embargo, agravo ou apelações em si, chama atenção a rara publicação
de apelações cíveis, desconsiderando, logicamente, o ano de 1855.
O ano em questão foi responsável por mais da metade de
todos os acórdãos do período. Além disso, das 61 apelações cíveis
registradas em onze anos de publicações, 53 (87%) delas concentram-
se neste ano. Significa que, afora esta atipicidade, a quantidade de
apelações crime seria muito maior que a de cíveis. O que provocara
tal desvio? Embora não possamos afirmar o porquê de tamanha
discrepância entre o percentual destas causas neste ano, a análise da
fonte nos possibilita ao menos discutirmos o aumento exponencial de
apelações como um todo: A partir da edição 40, iniciou-se uma nova
coluna no Correio, nomeada “O Foro”, especializada na legislação
e jurisdição imperial, publicada duas vezes na semana. O parágrafo
inicial da coluna demonstra bem o intento da publicação:

408
Tabela 1: Tipos de ações publicadas na Gazeta dos Tribunais
Apelações Apelações Revistas Revistas Não
Ano embargos Agravos Total %
civis crime cíveis Crime identificados-
1843 45 6 18 4 1 1 1 77 36,8
1844 16 0 8 3 6 4 1 38 18,2
1845 29 4 14 1 2 2 0 52 24,9
1846 21 2 16 0 2 0 1 42 20,1
Total 111 12 56 8 11 7 3 208 100
Tipos de ações publicadas no Correio
1850 1 0 1 1 1 0 1 5 3,5
1851 3 0 1 0 5 3 1 13 8,9
1852 0 1 0 0 0 0 0 1 0,8
1853 0 0 0 0 0 0 1 1 0,8
1854 3 0 0 0 0 0 0 3 2,1
1855 52 11 1 7 0 0 3 74 50,7
1856 0 2 0 0 0 0 14 16 10,9
1857 1 5 1 0 1 0 2 10 7,0
1858 0 12 0 0 0 0 0 12 8,3
1859 0 10 0 0 0 0 0 10 7,0

409
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Total 60 41 4 8 7 3 22 145 100


Das utopias ao Autoritarismo

Uma das nossas illustrações, desejando auxiliar esta


publicação, fez-nos a honra de confiar alguns trabalhos
seus sobre a nossa legislação. Não forão trabalhos feitos
para imprensa: são apenas estudos particulares, simples
apontamentos, mas que encerrão ou uma importante
compilação das nossas leis sobre um ponto do direito,
ou reflexões acertadas à respeito de alguma questão de
pratica ou jurisprudencia (CORREIO MERCANTIL, E
INSTRUCTIVO, POLÍTICO, UNIVERSAL, n. 40, 1855).
O excerto evidencia a necessidade de trazer a público as
principais discussões acerca das mudanças jurídico-institucionais
do Império. Os autores das matérias certamente eram juristas e
colaboraram com apontamentos que eram publicados em seções
como “Jurisprudência”, “Bibliographia juridica”, “Chronica”,
“Supremo Tribunal”, “Relação” e “Doutrina da Relação”. Esta última
era a mais relevante para o nosso estudo, e foi publicada até a edição
234 do mesmo ano (1855), enquanto a coluna como um todo vigorou
até o número 257.
A seção “Doutrina da Relação” não se limitava a
reproduzir as decisões dos tribunais e a legislação imperial. Seus
colunistas, dentre eles, um jovem José de Alencar e o já experiente
Antônio Pereira Rebouças, publicavam artigos contundentes a
respeito da legislação brasileira, principalmente no que tangia à Lei
de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras) e a de 2 de setembro de
1847 (paternidade e herança), bem como ao Código do Processo
Criminal, reformado em 1841. Teciam-se comentários também
acerca das obras jurídicas que discutiam as transformações de
nossa estrutura legal, como “Apontamentos de Direito Financeiro
Brasileiro”, de José Maurício Fernandes Pereira de Barros, na edição
de número 54, e o “Compendio da Theoria e prática do Processo
Civil”, de Francisco de Paula Baptista, nas edições 191 e 193, ambas
publicadas em 1855.
A questão cível estava em voga, algo bem explicitado neste
trecho escrito por José de Alencar sobre o Compendio da Theoria e
prática do Processo Civil:
Os nossos magistrados mais distinctos, os advogados mais

410
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

habeis do nosso fôro, perdem-se neste vasto labyrintho


de usanças caducas e de formulas sacramentaes, em que
a razão, o bom senso, a clareza e a logica lutão, e são
impunemente sacrificadas a inviolabilidade de certos
estylos absurdos. [...]. Já é tempo de comprehendermos
que o processo é uma verdadeira sciencia que deve
marchar de accordo com os estudos do direito e com
o desenvolvimento progressivo da jurisprudencia, e
que merece a attenção dos espiritos esclarecidos, os
trabalhos dos homens profissionaes, e toda a solicitude do
legislador (CORREIO MERCANTIL, E INSTRUCTIVO,
POLÍTICO, UNIVERSAL, n. 191, 1855).
Esta era a realidade de um pretenso ordenamento jurídico
positivo que postergou a formulação de seus códigos civis por
quase um século, apesar de iniciativas neste sentido, como é o caso
do Compêndio de Paula Baptista. A este respeito, Antonio Carlos
Wolkmer, em referência à obra de Paulo Mercadante, discute que
Enquanto o país independente implementa sua legislação
constitucional, penal, processual [criminal] e mercantil
no período que se instaura com a emancipação política
de 1822, sua regulamentação civil seria norteada pelas
ordenações, leis e jurisprudências portuguesas, ao longo
de todo século XIX (MERCADANTE apud WOLKMER,
2007, p. 21).
Entende-se, dessa forma, a necessidade de se fixar uma
doutrina capaz de nortear as questões de natureza cível de nossos
tribunais, neste caso, através da seção “Doutrina da Relação” do
Correio. No entanto, este claro intento por si só não explica por que
o ano de 1855 foi escolhido para esta publicação, assim como não
explica uma tendência tão diversa entre os valores percentuais de
apelações cíveis e crime nos anos subsequentes.
A seguir, apresentamos as tabelas 2.1 e 2.2, que explicitam
a fundamentação jurídica dos acórdãos relacionados nos dois jornais:

411
412
Tabela 2: classificação do acórdãos de acordo com a fonte de direito na Gazeta dos Tribunaes

Ordem Tradicional: 43,8% Ordem Moderna: 23,1

Indeterminado:
33,1%
%
Das utopias ao Autoritarismo

---
Total

Alvarás
Acentos
Reg. Imp.

Doutrinas
Decr. Imp.

Disp. Prov.
Cod. Crim.

Const. Imp.

Ordenações
Provimento
Avisos Imp.

Leis Col Avulsas


Cod. Proc. Crim.

Decreto Colonial
Leis Imp. Avulsas
1843 27 2 0 0 4 5 3 5 10 0 0 1 0 3 2 23 85 34,1

1844 14 4 0 1 2 2 1 1 2 0 1 1 1 1 4 14 50 19,8

1845 17 2 0 0 4 1 1 0 5 2 0 2 0 4 2 23 63 25,0

1846 10 1 1 0 4 2 2 3 2 0 2 1 0 0 2 23 53 21,0

Total 68 9 1 1 14 10 7 9 20 2 3 5 1 8 10 83 251 ---


Tabela 2.1: Classificação do acórdãos de acordo com a fonte de direito no Correio
Ordem Tradicional: 24,05% Ordem Moderna: 40,98%

Indeterm.:
%

--- 34,97%
Total

Crim.

Alvarás

Avulsas
Avulsas

Decreto

Leis Col
Acentos

Colonial
Leis Imp.

Reg. Imp.

Doutrinas
Cod. Proc.

Decr. Imp.

Disp. Prov.
Cod. Crim.

Cod. Com
Const. Imp.

Ordenações
Provimento
Avisos Imp.
1850 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0 2 4 2,2
1851 2 0 0 1 0 0 0 1 2 0 0 1 2 0 1 2 2 7,7
1852 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0,5
1853 0 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0,5
1854 0 0 0 0 0 2 1 0 1 0 0 1 0 0 0 0 0 1,6
1855 15 1 0 2 2 0 6 8 3 0 0 2 1 8 5 4 55 61,2
1856 9 1 0 0 0 0 0 1 1 0 0 0 0 1 0 1 0 8,2
1857 0 0 0 1 0 0 0 0 2 0 0 0 0 0 1 1 5 5,5
1858 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 11 1 0 6,6
1859 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 8 1 0 5,5
1860 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0 0,5
Total 28 2 0 4 2 2 8 11 11 0 0 4 3 9 27 11 64

413
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).
Das utopias ao Autoritarismo

De antemão, devemos dedicar alguns parágrafos no intuito


de explicarmos a inclusão da coluna “indeterminados” em ambas as
tabelas. Tratam-se de decisões colegiadas cujo teor não apresentava
uma fundamentação jurídica formal. Pela frequência de registros,
podemos perceber a forte recorrência destes casos. A título de
exemplificação, transcrevemos o acórdão de 19 de janeiro de 1850,
publicado na edição de número 65 do Correio, em 8 de março de 1850.
Trata-se de um embargo requerido por D. Maria Florentina Corrêa
de Almeida, tutora de sua filha menor, D. Maria Luiza Gonçalves
França e outros, tendo como recorrido Amaro Gonçalves dos Santos.
A ação em questão, tratando de um caso de partilha, foi indeferida
pela Relação,
porquanto, não havendo outros bens para pagamento
do recorrido, que já era condominio do predio que lhe
foi lançado, não se podendo dizer lesiva a adjudicação
delle, não só porque a partilha regulou-se pela avaliação,
como porque o valor do predio póde subir na praça
requerida pelo recorrido, não podendo a importancia
illiquida dos alugueis sustar a partilha, e o pagamento,
da divida liquida do mesmo recorrido, contra a qual fica
salvo aos recorrentes o seu direito para haverem esses
alugueis pelos meios competentes; e sendo inquestionavel
que o predio foi lançado em quinhão ao inventariado,
em vista do documento a fl. 162, caducão os principaes
fundamentos dos ditos embargos. Portanto e pelo mais
dos autos, desprezados os ditos embargos, condemnão
os embargantes ora recorrentes nas custas (CORREIO
MERCANTIL, E INSTRUCTIVO, POLÍTICO,
UNIVERSAL, n. 65, 1850).
Podemos apreender do conteúdo do acórdão que ao
recorrido foi garantida a posse de um edifício a título de pagamento
de dívidas, que outrora pertenceu, provavelmente, ao falecido marido
da recorrente. Às recorrentes garantiu-se o direito de recorrerem
ao valor dos aluguéis precedentes. Não há, no entanto, menção
por parte dos desembargadores a qualquer fonte formal do direito
que fundamente sua decisão, o que impossibilita situá-la enquanto
pertencente à Ordem Tradicional ou à Moderna.

414
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Quanto às demais colunas, conforme apontam Garriga


e Slemian (2013), podemos perceber na década de 1840, através da
jurisprudência da Relação da Côrte, a proeminência das normas
jurídicas do Antigo Regime como amparo legal das decisões dos
desembargadores da Relação. Entretanto, de modo diverso à
tendência apontada pelos mesmos autores, a utilização da doutrina
enquanto ferramenta jurídica foi mínima. Em nosso levantamento
encontramos o recurso em apenas 2,8% dos acórdãos, e 6,4%, se
considerarmos apenas a Ordem Tradicional. Na década posterior,
curiosamente, o resultado foi um pouco melhor: 4,4% no geral e
18,2% das tradicionais. De fato, a única fonte do Antigo Regime cuja
utilização aumentou, de uma década para a outra, foi a doutrinária,
embora, conforme já salientado, seu uso estivesse longe de ser decisivo
para a jurisprudência do Tribunal.
O vintênio estudada repete, na verdade, a tendência já
apontada por Arno Wehling (1996?) em seu trabalho sobre a atividade
judicial deste Tribunal, entre 1751 e 1808. Segundo Wehling, houve
redução no emprego da doutrina enquanto fonte em razão do êxito
parcial da Lei da Boa Razão de 1769, que marginalizava esse recurso
como fundamentação das decisões judiciais.
A década de 1850 apresenta uma tendência diversa
em relação às Ordens Moderna e a Tradicional, praticamente
invertendo os valores percentuais. O que teria provocado tal
mudança? Primeiro, conforme demonstramos nas tabelas 1.1 e 1.2,
a quantidade de apelações crime de uma década para outra, embora
permaneça inferior ao número de apelações cíveis, teve um salto de
350%. Com isso em mente, analisando as tabelas 3.1 e 3.2 abaixo,
constatamos que, afora as decisões “Indeterminadas”, a totalidade
dos recursos-crime foi fundamentada em fontes jurídicas modernas,
estimulando o crescimento do percentual desta Ordem. A ausência
de códigos civis cobra seu preço, conforme já apontava José de
Alencar (CORREIO MERCANTIL, E INSTRUCTIVO, POLÍTICO,
UNIVERSAL, n. 191, 1855).

415
Das utopias ao Autoritarismo

Tabela 3: Apelações crime na Gazeta dos Tribunais


Recursos Cíveis: 125 Recursos Crime: 19
Ordem Ordem Ordem Ordem
Indeter. Indeter.
Antiga Moderna Antiga Moderna
48 20 57 0 16 3
% 38,4 15,9 45,6 0,0 84,2 15,8
Apelações crime no Correio
Recursos Cíveis: 72 Recursos Crime: 47
25 19 28 1 38 8
% 34,72 26,39 38,89 2,13 80,85 17,02
Em segundo lugar, não obstante o aumento do número
de recursos-crime na década de 1850, podemos constatar a gradual
mudança no eixo jurídico das causas cíveis, uma vez que o uso das
normas da Ordem Moderna aumentou mais de 10% nestes casos. A
este respeito, uma ressalva especial deve ser feita a respeito do então
recente Código Comercial de 1850.
Lopes (2000) situa a criação deste Código no bojo das
reformas legislativas desta década, como a Lei de Terras e a Lei
Eusébio de Queirós. Em relação a esta última, o autor aponta os novos
horizontes produtivos abertos com a liberação de capitais então
concentrados no tráfico de escravos. Segundo Wolkmer (2007), o
campo de incidência deste código excedia uma dimensão comercial,
sendo atuante em determinadas áreas do Direito privado, enquanto o
Código Civil não era escrito. Como já citado neste relatório, esta carta
não veria seu nascimento naquele século.
Sua incidência, ainda que não muito expressiva em termos
quantitativos, dentre as 18 fontes jurídicas que compõem a tabela 2.2,
foi a sétima com maior recorrência, um desempenho digno de nota, se
considerarmos o quão recente era o código. Levando em consideração
a importância que lhe foi dada por Lopes e Wolkmer, podemos supor
uma tendência ascendente nas décadas vindouras, embora a dimensão
temporal delimitada neste trabalho impeça-nos de afirmá-lo.
De qualquer forma, o conjunto de normas de maior vulto

416
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

em ambas as décadas foi determinada pelas Ordenações Filipinas,


respondendo por mais de um quarto de todas as ocorrências nos anos
1840 e, embora tenha caído para pouco mais de um décimo na década
subsequente, não perdeu sua proeminência. Tal conjunto de leis era
composto por 5 livros, subdivididos em títulos e parágrafos. Em seu
primeiro Livro, dispunham
a respeito dos oficiais do rei [...]. O Livro II traz um
conjunto de disposições sobre os estamentos privilegiados
(nobreza, clero), fontes de direito, jurisdição e poderes,
privilégios do rei, etc. O Livro III é essencialmente de
caráter processual, embora seja ali que se encontrem
as regras gerais sobre fontes, vigência das leis e coisas
semelhantes, que auxiliavam o juiz no julgamento. O Livro
IV traz muito do que hoje se considera matéria de direito
civil, como as regras de contratos [...], relações entre
servos e amos, aforamentos, censos, sesmarias, meações [e
outros] [...]. O Livro V trata dos crimes e do processo penal
(LOPES, 2000, p. 268).
A respeito de sua sobrevida na nova “Ordem Liberal”,
Adriana Campos nos lembra que
Enquanto a elaboração e a promulgação dos códigos,
determinadas pela Constituição no artigo 179 não
estivessem concluídas, prevaleceriam as Ordenações
Filipinas, cuja validade, ao menos em matéria civil,
estendeu-se até 1917, data em que entrou em vigor o
primeiro Código Civil brasileiro (CAMPOS, 2003).
Assim sendo, sua importância enquanto fonte jurídica
motivou a elaboração de uma última tabela, relacionando a
ocorrência de cada um de seus livros no período pesquisado. Antes de
a avaliarmos, no entanto, consideremos o papel deste conjunto de leis
na justiça imperial através das palavras de Lopes (2000, p. 273):
Com o advento do liberalismo da Independência e do
Estado nacional brasileiro, as Ordenações vão sendo a
pouco e pouco revogadas. O Livro V é logo substituído
pelo Código Criminal do Império de 1830; o processo e a
estrutura da magistratura são reformados pelo Código do
Processo Criminal de 1832, e o processo civil vai reger-se
a partir de 1850 também pelo Regulamento (decreto) 737.

417
Das utopias ao Autoritarismo

Os Livros I e II perdem sua razão de ser com os eventos


revolucionários a partir de 1820 (Revolução do Porto) e
1821-1822 (Independência), sem falar na transformação
do Brasil em Reino Unido (1815) e na transferência da
Corte (1808). O único a ter vida mais longa foi o livro IV
[justiça civil] [...].
De fato, comparando as tabelas 2.1 e 2.2, percebe-se uma
queda na aplicação dessas leis de uma década para a outra, embora
ainda permaneçam nos anos de 1850 como a fonte formal mais
utilizada, com 15,30% de todas as ocorrências. Assim, para determinar
melhor o uso das Ordenações Filipinas, resolvemos apresentar o que
tratava cada um de seus livros:
Livro I – Organização Judiciária
Livro II – Organização das Ordens
Livro III – Organização Processual nos Tribunais
Livro IV – Direitos Civil
Livro V – Direito Penal
Para verificar a obsolescência de alguns dos livros das
Ordenações Filipinas no Brasil do Oitocentos, consideramos agrupar
os acórdãos que enunciavam sua fundamentação com base nesses
livros nas tabelas a seguir.
Tabela 4: livros das ordenações filipinas nos acórdãos (Gazeta dos
Tribunaes)
1843 1844 1845 1846 Total %
Livro I 4 2 2 0 8 9,7
Livro II 0 1 0 0 1 1,4
Livro III 13 9 9 3 34 47,2
Livro IV 11 4 7 7 29 40,3
Livro V 0 0 0 0 0 0

418
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Tabela 4.1: Livros das ordenações filipinas nos acórdãos (Correio)

Total
1850
1851
1852
1853
1854
1855
1856
1857
1858
1859
1860

%
Livro I 0 1 0 0 0 1 1 0 0 0 0 3 9,4
Livro II 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0,0
Livro III 1 3 1 0 0 6 5 0 0 0 0 16 50,0
Livro IV 0 0 0 0 0 9 4 0 0 0 0 13 40,6
Livro V 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0,0

Os resultados, como podemos observar, divergem


consideravelmente da interpretação de José Reinaldo Lopes (2000).
O Livro I, não obstante as mudanças proporcionadas na estrutura
judiciária com a nova constituição de 1824 e leis posteriores,
continuou invocado mesmo após passados trinta anos, chegando
a quase 10% de todos os Livros citados em ambas as décadas. Os
dispositivos deste Livro serviram de fundamento de acórdãos que
tratavam especificamente das atribuições de funcionários da Justiça
imperial, tais como juízes de órfãos, testamenteiros, assessores e
outros. Curiosamente o Brasil possuía um regimento do Supremo
Tribunal desde 1828 e dos Tribunais da Relação desde 1833.
O Livro II, por outro lado, caiu em desuso, conforme
apontado pelo autor, sendo utilizado uma única vez. O livro V,
seguindo a mesma tendência apontada pelo autor, não foi citado uma
vez sequer. Esta última ocorrência era esperada com a vigência do
Código Criminal de 1830 que aboliu aquele livro das Ordenações. De
fato, antes mesmo de sua promulgação, o art. 179 da Constituição de
1824 já abolia alguns aspectos penais do Livro V: açoites (de homens
livres), tortura, marca de ferro quente e “demais penas cruéis”, além
de garantir a pessoalidade das penas.
Conforme afirmado por José Reinaldo Lopes (2000), o Livro
IV, por tratar de matérias do Direito Civil, manteve-se recorrente nas
decisões dos desembargadores da Relação. Diversamente à tendência
apontada pelo autor, porém, o Livro III também permaneceu em

419
Das utopias ao Autoritarismo

uso, inclusive, foi o mais citado por esta corte, chegando à metade
de todas ocorrências das Ordenações na década de 1850 (total de
32). Interessante notar que o Livro III disciplinava os processos
tramitados na Justiça. No entanto, desde a publicação das Disposições
Provisórias da Administração da Justiça publicadas como apêndice do
Código Criminal de 1832, o Brasil editou diversas medidas de direito
processual como a Lei 261 de 1841, o Decreto de 143 de 1842, o Decreto
278 de 1843 e o Decreto 737 de 1850. O Regulamento (decreto) 737 ao
qual o autor se refere, apareceu apenas seis vezes.

Conclusões
Em síntese, pode-se entender que a utilização das fontes
jurídicas provenientes do Antigo Regime foi decisiva para a
jurisprudência do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, mesmo após
mais de vinte anos de nossa Independência.
Entretanto, as fontes indicam que, diversamente da hipótese
adotada nesta pesquisa, as decisões tomadas por esta Corte no período
pesquisado eram fundamentadas essencialmente em leis, e não no
Opinio Doctorum. Para além disso, a tendência de nossa estrutura
judicial era a de privilegiar cada vez mais os códigos legais que iam
surgindo, embora ainda convivessem com as fontes oriundas do
Antigo Regime, principalmente no que tange às questões civis.
Essa aparente contradição entre modernidade e tradição
de nosso judiciário refletia as próprias antinomias socioeconômicas
do nascente Império brasileiro. Assim, se, por um lado, um dos
principais pilares da cidadania no universo oitocentista era o Direito
positivo, o Estado brasileiro fora construído e sustentado, por todo o
período imperial, pelo latifúndio agroexportador escravista, em uma
sociedade essencialmente analfabeta, patrimonialista e patriarcal. Era
em cima destas estruturas que o judiciário tinha que funcionar, o
que exigia uma constante adaptação, e nenhuma das várias reformas
feitas em seu sistema seria capaz de superar as contradições daquela
sociedade. Como muitos contemporâneos já percebiam, o problema
maior não estava nas leis.

420
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Referências:
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Correio mercantil, e instructivo, político, universal, Rio de Janeiro:
Typographia do Correio Mercantil, ed. 333, ano 14, 6 de dezembro de
1857, 4 p. Disponível em:<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.
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Gazeta dos tribunaes, Rio de Janeiro: Typ. Imparcial de F. de Paula Brito, ed,
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423
Parte V
Historiografia, Patrimônio,
Educação e Cultura
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Ensaio, historiografia e experiência intelectual


periférica
Maro Lara Martins1

O ensaio como vocação: as formas da interpretação

De todo o debate sobre a natureza do ensaio e as tentativas de


elaboração de uma teoria geral do ensaio, salta aos olhos a insuficiência
de uma possível transposição desse modelo de interpretação aos
estilos de escritas realizados fora do eixo europeu sem alguns retoques.
Não há dúvida da tradição ensaística remontar ao contexto europeu,
sofrendo lá, diversas mutações relacionadas à inscrição em tradições
nacionais específicas. Associado a isso, o núcleo temático do qual os
ensaístas aderiram possui como marca fundamental as variações de
tempo e espaço.2
Se em Montaigne chamava a atenção a ausência de uma
afeição concentrada, uma causa definida em torno de um tema ou
núcleo temático, a não ser o exercício radical da liberdade de viver e
escrever e de poder apresentar seu livro como a si mesmo (OBALDIA,
1995), a recepção e recriação desse estilo ao longo do tempo e espaço
se alterará consubstancialmente.3
O debate sobre as origens do ensaio no continente latino-
americano apresenta duas postulações. A primeira apontou o
surgimento do ensaio a partir das interpretações realizadas pelos
europeus no Novo Mundo, sua necessidade de descrever a paisagem

1 Doutor em Sociologia pelo Iesp/Uerj, professor adjunto do Departamento


de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo.
2  Neste sentido é preciso historicizar o ensaio. WEINBERG (2006).
3  “Simplificando, podemos distinguir dois tipos de ensaística. Uma tradicional,
de temática variada, que cumpre uma função basicamente intelectual e que floresceu
na Europa dos séculos XVI a XVIII e outro, americanizado, que se caracteriza por
uma unidade temática centrada na própria identidade e por uma ativa função política,
e que conheceu seu auge nos séculos XIX e XX.” HOUVENAGHEL (2002, p. 25).

427
Das utopias ao Autoritarismo

e os seus habitantes. A segunda perspectiva localizou o ensaio dentro


do movimento emancipacionista do século XIX, que culminou com
as Independências e construções dos Estados nacionais.
Dentro do primeiro ponto de vista, German Arciniegas
(1983) apontou que a tradição ensaística no continente remontaria ao
século XVI, ainda que a palavra ensaio, que nomeará o gênero mais
adiante não existisse. O ensaio revelaria uma vontade interpretativa
ante o Novo Mundo, ignoto, estranho, distante, que conquistadores
e colonizadores intentaram apreender através do poema épico e das
crônicas. Arciniegas afirmou que o ensaio esteve presente “desde os
primeiros encontros do branco e do índio, em pleno século XVI”
(ARCINIEGAS, 1983, p. 95). Por metáfora, a América encarnaria ela
mesma um próprio ensaio. Essa metáfora que definiu a América como
um ensaio se explicaria pela eclosão do grande debate que suscitou a
aparição de um novo continente na geografia e no imaginário europeu.
Conquistadores, colonizadores, clérigos e mestiços estariam
imersos em especulações religiosas e espirituais que postulariam
que a experiência americana, sua natureza e seu homem possuiriam
outro significado diferente do europeu, pois a América seria o ensaio
civilizatório a aguçar as interpretações.
Seguindo essas ponderações, Arciniegas apontou que
Cristóvão Colombo e Américo Vespúcio já continham elementos
ensaísticos em suas reflexões. Para ele, Colombo discutiu o problema
do paraíso terreal e sua correspondência nas terras que tinha a vista,
retirando o debate de textos bíblicos, do catolicismo de sua época e
dos geógrafos mais antigos. Américo Vespúcio provocava o debate
com os humanistas de Florença acerca da cor dos homens em relação
ao clima e a possibilidade de que as terras abaixo da linha do Equador
fossem habitadas por seres humanos. Para Arciniegas, teriam sido
estes os primeiros ensaios da literatura latino-americana.
Esta intuição de Arciniegas ganhou mais força com Héctor
Orjuela (2002), que remontaria as origens do ensaio no Novo Mundo
lendo de uma maneira inovadora os discursos dos sacerdotes e
conquistadores que possibilitaram a emergência da cultura letrada na

428
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

América. Para ele, os séculos XVII e XVIII implicaram não somente


a aparição do barroco nestas latitudes, mas também a diversificação
das manifestações ensaísticas. O ensaio teria ganhado primazia graças
ao estilo cultivado pelos escritores mais destacados da época, como
Hernando Domingos Camargo, com sua Invenctiva Apologética,
Juan de Cueto y Mena com o Discurso del Amor y la Muerte e Madre
Francisca Josefa de la Concepción del Castillo, autora de Afetos
Espirituales.
Com a inflexão sobre a natureza, o ambiente e as riquezas
materiais e simbólicas do Novo Mundo, estes religiosos e cronistas,
cujo interesse e curiosidade científica anunciavam a influência da
Ilustração, compartilhavam um traço geracional baseado no assombro
e na inovação que em seus horizontes de sentido se fixou a América.
Para Orjuela,
os escritores sentiam a necessidade de inventariar os
produtos da terra e o habitat dos aborígenes nas diferentes
regiões do país e incorporavam a informação da história
natural em crônica, tratados e ensaios com temas muito
diversos (ORJUELA, 2002, p. 83).
No fundo, seriam hermeneutas que começaram a decodificar
a fauna, a flora e os matizes do Novo Mundo, para construir mediante
o exercício da escrita uma nova identidade a partir da alteridade
americana, lugar onde todos os opostos se encontrariam, não para
eliminarem-se senão para viverem na diferença em relação ao
conhecido continente europeu. Estariam preocupados em direcionar
seus escritos ao público que se encontrava do outro lado do Atlântico,
no esforço de apresentar o Novo Mundo e suas particularidades
a partir das diferenças que se encontravam nesses territórios.
Ganharia expressões e sentidos diversos essa ambiência. Para uns, a
comprovação do paraíso terreal, de um mundo idílico, e para outros,
a fúria da natureza e a decadência selvagem.4
O importante é que se nota como uma nova aproximação dos
textos produzidos nas circunstâncias histórico-culturais advindas da
4 Sobre as concepções de natureza nas Américas e sua genealogia, ver:
GREENBLATT (1996); PRATT, (1999).

429
Das utopias ao Autoritarismo

Conquista e da experiência colonial, poderia apoiar a discussão sobre


a presença da inflexão ensaística nestas terras antes do surgimento
de Montaigne. Entretanto, resulta válida a ponderação de Claudio
Maíz (2003) e de Leopold Zea (1972) a respeito de que o ensaio é a
forma de expressão de conteúdos críticos em períodos específicos. E
na América Latina, adquiriu força e constância no século XIX, quando
apareceram os “desbravadores da selva e os pais do alfabeto”, como
os chamou Alfonso Reyes em Passado Inmediato.5 Assim, a partir
do século XIX, surgiu uma tradição de pensamento sentenciado pelo
ensaio para estabelecer um diálogo com o centro assim como para
gerar aquilo que Leopold Zea chamou de “consciência intelectual da
América”.
Nesta perspectiva, na América Latina, o ensaio dialogaria
em suas origens com as inquietudes próprias dos letrados e polígrafos
do século XIX e com os ecos do pensamento ilustrado herdado da
Revolução Francesa e do Enciclopedismo,6 com o liberalismo
nascente, com os próceres da Revolução Americana, com o exemplo
da Revolução do Haiti, assim como com a própria tradição ibérica,7
definitivos na busca pela expressão ensaística.8

5 Alfonso Reyes se referia especialmente a Andrés Bello, Domingo Faustino


Sarmiento, Eugenio María de Hostos, Justo Sierra, Jose Enrique Rodó e Jose Martí.
6  Fato que levou a primazia da “Razão política” no século XIX. CARVALHO
(1980) e WERNECK VIANNA (1997).
7 Como apontou BARBOSA FILHO (2000), os principais elementos que
particularizaram a Ibéria em relação ao restante da Europa e que incorporaram-se
à tradição americana foram: o territorialismo e sua capacidade de controle sobre
espaços cada vez mais amplos, a religiosidade simples e de fronteira que transformou
seu movimento territorialista em cruzada, a fixidez da estrutura social, preservada pela
capacidade de drenar os conflitos internos para as zonas de expansão, conquistando-
as para a reprodução da mesma morfologia social, a centralidade política da Coroa
responsável pela ordem jurisdicional e corporativa.
8 Observando a língua como instrumento da independência, a partir e na
literatura latino-americana, Angel Rama (2001) colocou em questão a dialética entre
originalidade e representatividade, sob um eixo histórico. Rama afirmou que as letras
latino-americanas jamais se resignaram com suas origens, tampouco se reconciliaram
com o seu passado ibérico, gerando uma tentativa forçosa de originalidade em relação
às fontes. Tal empreendimento se refere ao esforço insurgente de construção de
linguagens particulares.

430
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Temos assim, que são duas as inquietudes filosóficas dos


pioneiros do ensaio na América Latina: a independência e a formação
do Estado. Estas questões motivaram uma forte produção ensaística
na literatura latino-americana que neste sentido assinala nomes
fundamentais como José Joaquín Fernández de Lizardi, Simón Bolívar,
Andrés Bello, Juan Montalvo, José Bonifácio, Frei Caneca, Visconde
do Uruguai, Tavares Bastos, entre outros. Depois, viriam aqueles que
fariam do ensaio o âmbito literário propício para a definição de um
continente que oferecia a discussão sobre o passado colonial, a análise
dos traços étnicos, a constituição dos Estados nacionais, a crítica aos
regimes políticos, a produção intelectual e a ontologia do ser latino-
americano como temas dominantes desta nascente tradição ensaística.
Na linha divisória do passado colonial e da independência
frente ao centro político ibérico podemos conferir a vocação do ensaio
como construtor dos Estados nacionais latino-americanos em oposição
ao contexto anterior, no qual se inseria esta região em um sentido
mais amplo de pertencimento ao Império Transatlântico Português e
ao Império Transatlântico Espanhol. Uma nova modalidade política
se insurgiria contra as antigas valorações de pertencimento, uma nova
forma de escrita se insurrecionava contra o que consideravam antigos
hábitos de pensamento.9 São políticos-intelectuais que entendiam
o ensaio como tribuna para inocular mensagens com maior impacto
imediato do que poderiam alcançar com a poesia, o romance, obras
de ficção ou tratados.
Os primeiros polígrafos e ensaístas são figuras
representativas de um processo de interpretação do território para a
construção do Estado (BARBOSA FILHO, 2000). Em certa medida, a
independência política do espaço não trouxe consigo a criação de um
centro que o contextualizara e como os sucessivos intentos de cria-
lo partiam, em geral, do artifício sobre a tábula rasa, tais propósitos
parecem se converter em projetos individuais, que situados de novo

9  Segundo Angel Rama (2001), essa atitude multitudinal compilou um esforço


de “descolonização do espírito” e uma superação do “folclorismo autárquico”. Isso
denota que a plasticidade contida no ensaio não é mera invenção combinada com
vistas a uma dissensão sem substância.

431
Das utopias ao Autoritarismo

em um centro externo ao próprio território, conceberam que o Novo


Mundo começaria por eles. Esses projetos são mediatizados pela
reconfiguração do centro político e pelo modo como se construiu cada
Estado-nação no continente. Por esse viés, é o projeto expansionista
do centro político e sua penetração no ideário de cada particularidade
histórica que definiu a intensidade e ampliação de cada projeto sobre
determinado território.
O resultado é que se vai fomentando um permanente estado
de expectativa sob a experiência intelectual. Na realidade, esse estado
de expectativa era o essencial do antigo conceito de território, quando
a fronteira se estendia na linha de encontro ou na confrontação com
o outro. Essa permanência da expectativa como contextualização do
novo espaço criado, deu lugar a um modo peculiar de se conceber a
criação do Estado.
Uma breve reflexão sobre os conceitos-chaves presentes no
contexto latino-americano nos dá um quadro geral das proposições
levantadas neste contexto. Se no período colonial o conceito de
América possuía um significado geográfico com implicações
geopolíticas que indicavam a possessão desta região como parte das
monarquias ibéricas, no final do século XVIII e início do XIX, o termo
se converteu em bandeira de mobilização política, “acabando inclusive
por integrar o nome de algumas comunidades políticas recentemente
liberadas do vulgo colonial” (FERES JUNIOR, 2009, p. 9). Associado
a isso, o termo americano passara a ser uma identidade política que
diferenciava os europeus dos nascidos na região:
Este deslocamento semântico redundou inclusive na perda
de importância relativa do termo criollo como identidade
política principal. Esse exemplo histórico nos leva a uma
questão teórica importante: a capacidade das instituições
para mudar a cultura política, redefinido seus conceitos
básicos (FERES JUNIOR, 2009, p. 60).
Redefinição observada no conceito de povo, como instância
legitimadora do processo de refundação política, que de vocábulo
marginal, se tornou referência constante no pensamento latino-
americano. Neste sentido,

432
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

é inegável que o movimento de semantização do vocábulo


povo – levado para o centro do discurso político – esteve
indissociavelmente ligado a necessidade de dotar de
legitimidade a ruptura com o Antigo Regime e com
sua respectiva concepção de soberania (WASSERMAN,
2009, p. 118).
O conceito de cidadão, vinculado necessariamente a uma
comunidade, também se alterou no período. (LOSADA, 2009) Se
durante a vigência dos Impérios Ibéricos o termo cidadão estava
intimamente ligado a seu par, vizinho, e indicava o pertencimento a
uma cidade ou uma vila, durante o processo emancipatório passou a
designar o termo cidadão a uma comunidade imaginada, nos termos
de Benedict Anderson (1989). Antes, indicava um indivíduo com
certos privilégios e obrigações no mundo local, para depois se ampliar
a uma esfera mais ampla, conquanto o novo centro fosse ampliando e
garantindo soberania sobre território.
Em geral, as disputas por soberania dos novos centros
políticos, incluindo a experimentação de Bolívar, a fragmentação da
América Central, e a incursão brasileira às margens do Prata, lograram
diversos movimentos sociais e políticos, arrastaram regiões e suas
populações ao seu movimento centrípeto e passaram lentamente a
se definirem enquanto Estado-nação. Libertados do jugo imperial,
estabeleceriam a criatividade para dar plástica às instituições, e
conceberiam uma nova experiência e uma nova sensibilidade
temporal. Seguindo este raciocínio, uma nova concepção de história
e experimentação do tempo se constituiu nas primeiras décadas do
século XIX, originários da desarticulação dos Impérios Ibéricos.
Assim, foram as mudanças políticas que sustentaram a transformação
semântica da história, sem que existisse uma elaboração intelectual
prévia (PADILLA, 2009, p. 571).
Excetuando-se o caso do Haiti, modularmente representado
pela violência revolucionária e sua extremada aceleração temporal, a
região passaria a gestar um novo espaço de experiência com relação
ao tempo histórico, em termos de uma linguagem que associaria a
contemporaneidade e a filosofia da história. O conceito de história,

433
Das utopias ao Autoritarismo

deixaria de expressar-se através da concepção circular e pedagógica


da historia magister vitae para a concepção moderna de história,
cindindo, em linguagem koseleckeana, o espaço de experiência do
horizonte de expectativa (KOSELLECK,2006). Redesenhando as
modalidades políticas e se insurgindo contra as antigas valorações de
pertencimento, o presente se abriria em sua diversidade de opções.
Essa abertura se fecharia no momento em que cada região começou
a fabricar seu próprio espelho a partir do passado que se separavam
e negavam. Desta maneira, a flecha direcionada ao futuro, teria que
colocar seu arco no passado.
Se até meados do século XIX, essa primeira geração de
polígrafos ensaístas se voltou para as instituições e para o território,
foram nas últimas décadas do século XIX que os aspectos conceituais
da sociologia adquiriram notoriedade. Uma geração de ensaístas,
como Rodó, Martí, Eugenio Maria de Hostos, Sílvio Romero e
Euclides da Cunha, assinalariam a importância de uma reflexão
centrada na sociologia deste território. No fim do século XIX e início
do XX, a ação desta geração de polígrafos passou a se destacar tendo
como uma de suas principais preocupações a busca pela definição de
uma ontologia social que diferenciava o tempo-espaço do continente
em relação a outras regiões do Ocidente. A partir dos diagnósticos,
diferentes entre si, se observaria como substrato comum, a perspectiva
de uma separação nítida entre o Estado e a sociedade civil. Esse
diagnóstico da fratura entre a sociologia e a política, no tempo-espaço
da região, se tornaria o argumento central para a busca de soluções
e empreendimentos originais e criativos. Surgiria nessa geração,
um profundo desconforto na aplicabilidade de modelos e respostas
exógenas aos diagnósticos efetuados.
Para estes escritores, o ensaio funcionou como essa forma
própria de expressão nas reflexões em torno de uma identidade
ibero-americana, a qual pode se entender como a busca por uma
americanidade, que definiria em forma e conteúdo grande parte da
tradição ensaística continental. A proliferação do ensaio na América
Latina ajudou a configurar um pensamento que tenderia a expressar-se
através de uma relação com sua sociedade e sua natureza, adquirindo

434
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

uma função de impacto no mundo público, impacto que consistiria


em sugerir, meditar, estimular e construir determinada realidade
(GÓMES-MARTÍNEZ, 1992, p. 19-26; RAMOS, 2008). A partir de
sua posição e de sua experiência intelectual, os pensadores latino-
americanos tiveram que desenvolver estratégias e aceitar o axioma
excludente da modernidade central do sistema-mundo, afirmação
e negação, ser o mesmo e o outro, contudo sabotaram-na com as
técnicas do ensaio: uma maneira de raciocinar e de pensar que exporia
as ideias em forma de opiniões pessoais e provisórias.
Um bom exemplo dessa característica peculiar da tradição
latino-americana seria que a construção do Estado e a ideia de
nação no subcontinente não poderiam se pautar pelos desejos de
homogeneidade cultural. A heterogeneidade deveria ser expressa
através de um tipo de texto que fosse capaz de capturar a adversidade
de um território híbrido. A construção de imagens, através das
interpretações realizadas e possibilitadas pela forma escolhida de
apresentação das ideias, deveria constituir-se sob um suporte de
escrita que fosse possível captar a originalidade do tempo-espaço
nos quais estavam inseridos. A abertura e flexibilidade do ensaio se
associariam à própria plasticidade do conteúdo tratado.
A partir das características do ensaio como forma, e
seu dinamismo na escrita, fora possível capturar o movimento de
construir-se pela proposição de algo novo, de uma nova experiência
da modernidade que apesar dos seus contratempos, se realizava
fora do contexto europeu.10 O conteúdo criativo e inerente deste
movimento de construção não poderia ser mediatizado pelas formas
convencionais operadas em outros locais. A hipótese que se levanta é
que esta experiência, que se relaciona à posição do ensaísta enquanto
local em que se expressa, é transposta ao texto.11
10 Como observou Houvenaghel existe uma tendência geral em analisar o
ensaio americano a partir do conteúdo, esquecendo-se da forma. “A crítica tende,
claramente, a inclinar-se em favor dos conteúdos ideológicos do ensaio, em detrimento
dos valores expressivos do mesmo, e por geral, recusam ademais, vincular os aspectos
formais do texto ensaístico com sua mensagem ideológica.” (HOUVENAGHEL,
2002, p. 13).
11  Sobre este ponto inspiro-me em MAIA (2009) e MIGNOLO (2013).

435
Das utopias ao Autoritarismo

Esse ponto se relaciona a três questões. A primeira diz


respeito a persistência de práticas cognitivas do mundo em territórios
fora do eixo europeu e sua imbricação com a forma como as ideias são
apresentadas. A segunda aponta para uma característica típica desses
territórios, nos quais existiria uma confluência para a inventividade,
em seu aspecto construtivo, e o inacabamento, se comparado, como
fazem os ensaístas, a outros andamentos modernos. Outra hipótese
que se levanta a partir dessas considerações, é a concepção desses
territórios como um campo de experimentação da modernidade.
Assim, a América Latina, na visão de seus intérpretes emergiria
como um espaço de projetos.12 Não obstante, apresentariam como
fundamento um caráter dialógico das análises, fazendo emergir
comparações com outras experiências, como a inglesa, a norte-
americana e a francesa. Emergindo com maior clareza as diferenças
no andamento moderno, as singularidades do próprio território e sua
natureza e a pluralidade de sua constituição societal.
Desta experiência do confronto insurgia diferentes tempos
históricos que coexistiam e conferiam especial densidade à realidade
que interpretaram, em um esforço de compor o mapa da cultura,
revelando sua capacidade de mediador entre mundos e articulador
de experiências (WEINBERG, 2006). A comparação seria um
poderoso recurso não só ao cotejarem semelhanças e diferenças
que se produziriam em espaços geográficos e sociais distintos, mas
também entre as culturas presentes nesse espaço. Em outras palavras,
a contrastividade interna presente na sociedade informaria também
a contrastividade em relação ao resto do mundo, esboçando uma
peculiar cartografia semântica a partir dessas relações entre tempos-
espaços distintos.
No fundo, a argumentação proposta ao ensaio perpassaria
a consideração de entendê-lo como uma forma, dentre outras,
de teorização produzida nas margens do Ocidente brotado pela
colonização europeia, e não apenas como a expressão exógena

12 Sobre esta concepção de projetos, que incluem em suas formulações o


dualismo entre inventividade e pragmatismo, inspiro-me sobretudo em BARBOSA
FILHO (2000) e WERNECK VIANNA (1997).

436
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

que invadiria uma tradição nacional ou regional. Explicitando o


engajamento pela posição geográfica na configuração do mundo
ocidental. Traria em seu bojo a presença constante do outro, que
produziria a estranheza da falta ou do excesso, e que muitas vezes faria
transbordar nas narrativas o sentimento de desterro, traço comum a
diversos intelectuais latino-americanos.
Outro aspecto fundamental do ensaio latino-americano
seria a temporalidade que o encerra. A sua imediatez revelaria a
ânsia intelectual pela construção de uma modernidade americana.
Essa temporalidade imediata do ensaio e sua relação direta com o
pragmatismo e a inventividade oriundos da necessidade imposta
pela tábula rasa em que fora posta a situação americana e periférica
do século XIX. Em um primeiro momento, imperiosa necessidade
de construção de seu Estado, e depois, de uma interpretação de seu
território e sua população. Um movimento que oscilaria de uma
proposição individual, efetuado através do ensaio, a uma concepção de
palavra pública,13 e sua entrada no universo de publicização das ideias.
Durante o século XX, o ensaísmo latino-americano cresceu
em autores, temas e formulações diversas sobre o progresso, a história,
a política, a sociologia e a crítica da cultura latino-americana, a cidade,
a desterritorialização, a função do escritor na sociedade, a crítica
literária frente à poética europeia. Com o passar do tempo, o ensaio
adquiriu novas feições e se abriu cada vez mais.
Um simples olhar sobre a produção ensaística do século
XX pode apontar sua vasta diversidade de temas e estilos, formas e
sentidos que põem em relevo um significativo leque destas identidades
múltiplas do ensaio. Octavio Paz, com seu perfil filosófico poético,
se abeirou de sua cultura através da psicologia da mexicanidade que
se traduziu no “labirinto da solidão”, enquanto os “sete ensaios” de
Mariátegui, de forte viés marxista, recuperariam o comunismo incaico
ancestral como modelo de uma sociedade mais justa a ser construída.
E os ensaios de conjuntura do marxismo acadêmico, como os de Ruy
Mauro Marini, a desvelar o processo de espólio, subdesenvolvimento
13 Aproprio-me livremente desta concepção de palavra pública a partir de
LECLERC (2004) e POCOCK (2003).

437
Das utopias ao Autoritarismo

e dependência do continente latino-americano.


O pessimismo de Martinez Estrada que refletiu sobre a
psique social dos grupos rurais e urbanos da Argentina, enquanto
o espirituoso Fernando Ortiz definiu a cultura cubana a partir do
contraponto entre o açúcar e o tabaco, dois elementos importantes na
cultura cubana, base de seu desenvolvimento econômico e cultural,
que ajudariam a definir as questões antropológicas da identidade
cubana, construída a partir dos processos de transculturação.
José de Vasconcelos acreditou na possibilidade, ainda
que utópica, de uma nova raça cósmica que surgiria dos processos
de mestiçagem do subcontinente. Carlos Fuentes concentrou na
metáfora do espelho enterrado a complexidade de um continente
que foi resultado da exploração colonial e ao mesmo tempo herdeira
de tradições transplantadas. Alfonso Reyes, com habitual erudição e
estilo, concebeu imagens, muitas vezes utópicas sobre a inteligência
americana, enquanto Ángel Rama, em sua reflexão, remontou a
vida cultural das cidades coloniais como células originais da cultura
letrada nas Américas. Cidades letradas que são elas próprias espaços
privilegiados de uma nova cultura que produziu uma literatura
transcultural.
Nessa literatura de autoexame e de diagnóstico, que
começou muito cedo no discurso latino-americano, a busca conduziu à
indagação sobre o passado. A emergência da preocupação sociológica,
que em um lento processo subsume a teoria política, condensará no
ensaísmo sociológico as interpretações sobre o continente.

Experiência intelectual periférica: por uma tipologia dos


intelectuais
Um dos temas clássicos das ciências sociais refere-se a uma
articulação entre intelectuais, sociedade e política no andamento
moderno brasileiro. Neste ponto, outra seara se abre aos olhos do
analista: a questão dos intelectuais na modernidade. De fato, se
está diante de um grande desafio. De maneira geral, um estudo a

438
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

respeito dos intelectuais sempre corre o risco de cair no erro da falsa


generalização. A própria noção de intelectual possui um caráter
polissêmico e polimorfo, sendo difícil estabelecer os contornos desse
agrupamento social. Cada vez mais se torna claro, que as utilizações
de métodos analíticos produzidos no contexto europeu ou norte-
americano podem servir como bússolas para as pesquisas realizadas
em outros contextos, entretanto, se torna necessário um processo
de averiguação da pertinência teórica a partir do objeto de estudo.
Generalizar a constituição e história dos intelectuais europeus ou
norte-americanos, e o próprio conceito de intelectual no campo
da sociologia, para o contexto brasileiro, deve ser matizado pela
capacidade interpretativa do analista e pelo contexto espaço-temporal
que seu objeto encerra.
Nesse tópico, parece sugestivo realizar algumas indicações
sobre o termo intelectual e sobre as possíveis particularidades dos
intelectuais brasileiros se contrapostos aos intelectuais de outros
contextos. De um modo geral, na modernidade os intelectuais
assumem diferentes papéis no mundo social, como publicistas,
acadêmicos, militantes, polígrafos ou especialistas, o que corresponde
a um métier ou um ofício. Participam de redes intelectuais como
as Academias de Letras ou Academias de Ciências, os Institutos
Históricos e Geográficos, as universidades, o que lhes confere certa
capacidade organizacional. Constroem espaços de sociabilidade,
redes e rotina intelectual, como os cafés, salões de encontros, aulas,
seminários, clubes, revistas, editoras, jornais, movimentos políticos,
partidos. Participam de debates, anátemas, cisões e dialogam entre si.
No mundo moderno, o intelectual encarna uma forma de
palavra pública do mundo da criação intelectual e artística. Apesar
da variedade dos meios de comunicação disponíveis e utilizados e ao
público a que eventualmente se dirige, o fato é que os intelectuais são
criadores, mediadores e divulgadores das obras culturais, científicas e
estéticas. Através da publicização de seus textos e de seu trabalho, se
embute a ideia do pensar publicamente. Outra característica é a que
formam a consciência da nova geração, a partir dos modos de recepção
de seu produto intelectual e são sempre reanimados através de um

439
Das utopias ao Autoritarismo

processo intertextual. Assim, criam e recriam as tradições intelectuais


e culturais nas quais se inserem, ao produzir ou reproduzir conceitos
e interpretações.
Se essas são as características gerais dos intelectuais na
modernidade, dois pontos são fundamentais para se estabelecer uma
tipologia de cada ambiente nacional ou mesmo regional, o tempo e o
espaço. No caso específico do Brasil, os intelectuais estavam presentes
desde seu momento fundante enquanto Estado-nação, em inícios
do século XIX, entretanto, a constituição de um campo intelectual
minimamente autônomo veio à tona somente em meados do século
XX. Esse quadro histórico fornece elementos para se pensar os tipos
de intelectuais que se fizeram presentes no caminhar da história do
país. Não resta dúvida que no século XIX, principalmente a partir do
Segundo Reinado, os intelectuais estiveram intimamente ligados ao
Estado, tanto na composição dos locais de sua sociabilidade, como o
IHGB e as próprias casas legislativas, como na extração social de seu
status e capital social e político, quanto na formação de seu marcado de
trabalho. Associado a essa experiência, uma particularidade marcante
deste tipo de intelectual é a poligrafia. São intelectuais que versaram
sobre diferentes assuntos, seja pela autoimagem criada e estabelecida
por eles próprios, seja por sua formação ou mesmo pela demanda
que o Estado lhes atribuía. Essa tradição de experiência intelectual,
marcada pela poligrafia e pelo Estado, deixou marcas profundas na
composição do intelectual à brasileira.
Seguindo essa linha de argumentação, outro ponto
fundamental que caracteriza os intelectuais é o espaço em que se
encontram. Aqui pensado em suas diferentes inserções, seja em
determinada tradição nacional ou mesmo em termos geográficos
em relação à constituição dos modelos de entrada na modernidade.
Algumas interpretações, hoje clássicas, já chamaram a atenção para a
particularidade dos intelectuais e das ideias em contextos fora do eixo
do Atlântico Norte.
Em texto que se tornou clássico, Roberto Schwarz (2000,
p. 18) apontou o deslocamento do liberalismo europeu quando
apropriado pela elite brasileira no século XIX. Para ele, o contexto

440
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

brasileiro conseguiu reunir liberalismo e escravismo, liberalismo


e sociedade do “favor”, constituindo-se numa síntese em que “os
incompatíveis saem de mãos dadas.” Nestes termos, a própria
gravitação das ideias, e a forma como se constituiria em contextos
diferentes de onde se originaram, instituiria o movimento que
singularizaria a história brasileira, e por conseguinte, seus intérpretes.
Dito de outra forma, a análise de Schwarz (2000, p.30)
procurou especificar o mecanismo social na forma em que ele se tornaria
elemento interno e ativo da cultura, uma espécie de chão histórico
da experiência intelectual, “tal como o Brasil a punha e repunha aos
seus homens cultos, no processo mesmo de sua reprodução social”. O
estatuto do intelectual, ou dos homens cultos, como prefere Schwarz,
estaria nessa dimensão de sua experiência intelectual, repositora de um
conjunto de ideias originárias do contexto europeu e diferenciando-se
delas pelo contexto exótico que se encontrava. “Portanto, a própria
diferença, a comparação e a distância fazem parte de sua definição”
Outra análise clássica sobre o tema da experiência intelectual
e da posição do intelectual latino-americano no mundo foi realizada
por Silviano Santiago (2004). Para este autor, o processo de cisão e
hibridização que, sendo diferente da assimilação, marca a identificação
com a diferença da cultura pressupõe o deslocamento do local como
forma pura, limitado por fronteiras, mas que se projeta exatamente
nessas negociações fronteiriças. Tal processo geraria uma estética do
reposicionamento e reinserção que permitiria olhar as coisas a partir
da margem. São esses deslocamentos, no espaço geográfico ou virtual,
os responsáveis pelo confronto entre parcelas de diferentes linhagens
culturais.
Ainda seguindo este tema dos intelectuais e da experiência
intelectual, Angel Rama (2001), inspirado em Fernando Ortiz,
apontou para o processo de transculturação realizada pela experiência
intelectual na América Latina. Como do conflito entre o popular e
o erudito surgiria uma concepção de cultura latino-americana.
Rama formulou uma teoria sobre a narrativa latino-americana e a
solução encontrada pelos intelectuais para o conflito regionalismo
e universalismo. Para ele, a transculturação tornou-se um modo de

441
Das utopias ao Autoritarismo

reescrever a tradição latino-americana fazendo uma síntese de seus


elementos mais produtivos, eliminando os arcaísmos e incorporando
elementos modernizantes. A transculturação se daria no nível
linguístico, na estruturação literária e na cosmovisão, como inerente
possibilidade de forjar uma identidade original capaz de interagir
com as culturas “externas” através da plasticidade característica de seu
trajeto regional. O estatuto do intelectual latino-americano se definiria
por esse movimento de transculturação realizado para interpretar sua
própria realidade. Associado a isso, Rama apontou para a emergência
da literatura latino-americana como efeito da modernização
social da época, da urbanização, da incorporação dos mercados
latino-americanos à economia mundial, e principalmente, como
consequência do surgimento de um novo regime de especialidades,
que retiraria dos letrados a tradicional tarefa de administrar os Estados
e obrigava os escritores a se profissionalizarem.
Sobre os temas da modernização no campo literário
e na vida cultural latino-americana, Julio Ramos em seu texto
Desencontros da Modernidade na América Latina articulou um duplo
movimento para a sua análise. Por um lado, a perspectiva histórica
da literatura como um discurso que buscou sua autonomia, ou seja,
delimitou seu campo de autoridade social. E por outro, as condições
que permearam a impossibilidade de sua institucionalização em fins
do século XIX. Ramos demonstrou que a literatura latino-americana
emergiu como um campo encarregado da produção de normas
discursivas com relativa especificidade cultural, a partir das formas de
autoridade do discurso literário e os efeitos históricos e sociais de sua
modernização desigual. As dificuldades de autonomia contribuíram
para explicar a heterogeneidade formal desta literatura, ocasionando
uma proliferação de formas híbridas que desbordariam as categorias
genéricas e funcionais canonizadas pela instituição literária em
outros contextos. Esta heterogeneidade híbrida na qual se moveria
o intelectual demonstraria a multiplicidade de formas disponíveis,
como o romance, a poesia, a crônica e o ensaio, dispostos no mundo
público e angariadores de legitimidade e pelo processo de escolha que
os intelectuais efetuariam para elaborar suas propostas.

442
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Ramos observara uma diferença crucial da constituição


da vida cultural latino-americana se comparada à Europa. Para ele,
a autonomização da arte e da literatura na Europa seria corolário
da racionalização das funções políticas, pressupondo a separação
da literatura da esfera pública, “já que a Europa do século XIX
havia desenvolvido seus próprios intelectuais orgânicos, seus
próprios aparatos administrativos e discursivos.” (RAMOS, 2008,
p.19) Enquanto na América Latina, os obstáculos enfrentados pela
institucionalização da vida cultural, produziriam um campo literário
cuja autoridade política se manifestaria de forma direta e veemente.
Daí a literatura, desigualmente moderna, operar frequentemente
como um discurso encarregado de propor soluções a enigmas que
extravasam os limites convencionais do campo literário institucional.
Julio Ramos observaria a tensão entre as exigências da vida pública
e as pulsões da literatura moderna latino-americana, como uma
das matrizes desta literatura, “um núcleo gerador de formas que,
insistentemente, oferece(ria) resoluções para a contradição matriz.”
(RAMOS, 2008, p. 21) Essa contradição intensificaria as relações do
intelectual com a escrita, as formas literárias e a vida pública.
No fundo, o ponto central que Roberto Schwarz, Angel
Rama, Renato Ortiz e Silviano Santiago levantaram é a contraposição
de que a vida intelectual seria constituída a partir de uma mimese,
de uma simples cópia da tradição intelectual do centro, e, ao mesmo
tempo, chamar a atenção para as características gerais que essa posição
à margem instituiu nesse tipo de experiência intelectual. Posto nestes
termos, esse tipo de debate ressalta a noção de que essa experiência
intelectual fornece explicações sobre os modos de pensar típicos de
cada contexto nacional ou regional e as maneiras pelas quais esses
intelectuais se relacionam com o centro.
Retomando o argumento da tipologia dos intelectuais,
os critérios de tempo e espaço são cruciais para se estabelecer as
principais características que esse grupo social teve ao longo da
história. O caso brasileiro, do século XIX até meados do século XX, no
qual se concentram as interpretações do Brasil analisadas nesta tese,
se pode falar em intelectuais polígrafos que viveram uma experiência

443
Das utopias ao Autoritarismo

intelectual às margens da modernidade ocidental clássica, estavam às


bordas do sistema-mundo, como prefere Wallerstein, ou do sistema-
mundo moderno-colonial nas palavras de Aníbal Quijano (2007).
Na especificidade dos intelectuais brasileiros que
constituíram o corpus da interpretação brasileira desde finais
do século XIX até a década 1930 pode-se considerar que foram
produtores e ordenadores de novos mundos, pela experiência
intelectual e pelos produtos culturais, que os diferenciaram dos modos
clássicos de entrada na modernidade. Nasceu através do ensaio feito
por intelectuais polígrafos, e essa marca de origem fornece reflexões
imprescindíveis à interpretação e compreensão próprias ao espaço-
tempo em que foram produzidos. Entre outras coisas, porque se torna
um duplo procedimento de localização. Pensar a partir de um local e
pensar a partir de um tempo. Associado a isso, mais do que uma dupla
consciência, ao se imiscuírem entre duas tradições de pensamento, a
nacional e a do centro, os intelectuais de certas localidades forneceram
as bases para a diferenciação dos projetos e encaminhamento do
moderno no mundo. Como alertou Bernard Lepetit (1998, p. 88),
o sistema de contextos, restituído pela série de variações do
ângulo de mira e da acomodação da ótica, possui um duplo
estatuto: resulta da combinação de milhares de situações
particulares e ao mesmo tempo dá sentido a todas elas.
Assim, os intelectuais são entendidos como um grupo social
cuja ação se centra para a organização da cultura. Esse sentido da ação
social dos intelectuais está voltado para uma racionalização do mundo,
a partir de um encadeamento teórico produtor de conceitos. Ideias,
que servem como uma espécie de norte orientador de indivíduos e
de grupos sociais. Na modernidade brasileira, adquiriram papéis
fundamentais no artifício do mundo público, na composição dos
interesses, na motivação às ações sociais, nas alterações institucionais,
na animação da cultura política.

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446
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Espaço, paisagem e fronteira na História de


Heródoto: a representação do território dos citas
como uma heterotopia
Gabriela Contão Carvalho1

Introdução
Heródoto é considerado o autor da primeira obra em prosa
da literatura grega preservada até os nossos dias, tendo nascido em
Halicarnasso, cidade próxima a Mileto, no litoral da Ásia Menor,
nas primeiras décadas do século V a.C. Em sua época, Halicarnasso
era um centro florescente da cultura helênica. O momento em que
Heródoto empreendeu sua investigação foi um momento de grandes
transformações das ideias e da mentalidade helênica, pois foi na
primeira metade do século V a.C. que Atenas se tornou hegemônica
na Hélade.
Em relação à obra, História, não sabemos exatamente
quando foi escrita, mas apenas que, em 445 a.C., Heródoto se
encontrava em Atenas, onde teria lido em público sua obra ou parte
dela (KURY, 1985, p. 7). O objetivo principal de Heródoto, em
História, é descrever a guerra entre o Império Persa e a Hélade ou,
segundo as categorias empregadas pelo autor, entre o despotismo
oriental baseado na vontade onipotente dos tiranos e na sujeição cega
dos povos dominados e o governo fundado na obediência às leis e na
livre determinação dos povos do Ocidente. Porém,
Heródoto não apenas descreve a guerra entre os helenos e
persas, sua narrativa espelha seu interesse pelos costumes
dos povos, pela sua geografia, pelas suas práticas religiosas,
por tudo que compõe e forma um povo (SILVA, 2015 p. 45).

1  Mestranda em História Social das Relações Políticas pelo Programa de Pós-


graduação em História, com apoio financeiro da FAPES, sob a orientação do Prof. Dr.
Gilvan Ventura da Silva, na Universidade Federal do Espírito Santo, instituição pela
qual é formada em licenciatura em História. Endereço eletrônico: gabicontao16@
gmail.com.

447
Das utopias ao Autoritarismo

A denominação “Guerras Médicas” dada a esse conflito


entre os gregos e persas provém do nome dos medas, que dominaram
os persas na época dos primeiros contatos entre esses povos e as
populações helênicas.
História constitui-se como uma obra de grande valia para
a formação do olhar dos gregos diante do estrangeiro, o “bárbaro”,
aquele que se caracteriza como diferente. A partir dessa constatação
podemos observar a construção da retórica da alteridade presente na
obra de Heródoto, à qual o autor recorre para caracterizar, ou seja,
representar o estilo de vida dos outros povos. Embora Heródoto seja
um indivíduo, ele também caracteriza-se como um sujeito coletivo,
que está inserido em determinada sociedade e carrega consigo uma
bagagem cultural helênica. Que Heródoto escreva para os gregos não
é surpresa, como demonstra em sua fala: “não descreverei a aparência
do camelo porque os helenos o conhecem” (HERÓDOTO, 1985, p.
183). Quando Heródoto produz sua representação das comunidades,
dos seus territórios estrangeiros, esses espaços se constituem como
estranhos e repugnantes na medida em que o termo de comparação
do autor é a Grécia. A descoberta do outro e a coexistência com
civilizações diferentes devem ter contribuído para os gregos tomarem
consciência da originalidade e do valor de sua própria cultura, de modo
que acabaram por caracterizar aquilo que lhe é diferente, como inferior,
amedrontador e repugnante, assim como Heródoto faz com os citas.
A obra de Heródoto é de extrema importância para a
elaboração de uma identidade coletiva grega, pois ao ser lida em
público por volta de 445 a.C, proporcionou a elaboração de uma
identidade cultural, em contraponto com os costumes de outras
comunidades que Heródoto representa. Ao mesmo tempo auxiliou a
construção de um imaginário sobre tais comunidades, como é o caso
dos citas. Heródoto, em sua narrativa, costuma diferenciar aquilo que
viu daquilo que ouviu, dando maior credibilidade aos fatos que viu
com os próprios olhos. Ou seja, existe uma produção de saber através
da visão e da fala que Hartog, em seu livro O Espelho de Heródoto, faz
uma extensa análise sobre essa relação, entre a escrita e a oralidade,
chegando à seguinte conclusão:

448
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Essa é a situação da Grécia no correr do século V, que não


é ainda um mundo da escrita, mas apenas um mundo
da palavra escrita. Sem dúvida, há muito tempo se sabe
escrever: o alfabeto sírio-fenício apareceu na primeira
metade do século VIII a.C., mas a cultura oral permanece
muito presente, se não preponderante, moldando
estruturas mentais e o saber compartilhado pelos gregos
dessa época (HARTOG, 2014, p. 302).
Ao abordar a temática sobre o contraste cultural entre os gregos
e os “bárbaros”, nesse caso os citas, não podemos deixar de explicar a
relação entre a construção da identidade grega e o termo “bárbaro” e
muito menos a importância das Guerras Médicas na elaboração de uma
fronteira política entre “bárbaros” e gregos. Logo, percebemos que foi
a partir do conflito com os persas que a identidade grega exacerbou-
se consideravelmente, pois até o período de Homero era empregado
o termo allóthrooi para designar os estrangeiros, ou seja, aqueles que
falavam outra língua. É somente a partir do século VI e V a.C. que o
termo “bárbaro”, no sentido de não grego, se torna um termo antônimo.

O outro na narrativa de Heródoto


De acordo com a narrativa, a Cítia pertencia aos confins
do mundo. Localizada ao norte, estende-se às margens do mundo
habitado. Seu espaço se estende do rio Borístenes (rio Dnieper)
ao rio Tanais (rio Don), no litoral norte do lago Maeótis (mar
Azov), atualmente região da Ucrânia, região caracterizada como
majoritariamente plana, com pastagens e água em abundância, mas
castigada por um inverno rigoroso. Os citas são nômades e, não
praticavam a agricultura, vivendo da criação de gado. Hartog salienta
que Heródoto, em sua obra, utiliza a palavra eskhatiá para caracterizar
o território cita. Tal palavra representa para os gregos uma zona além
das culturas. Segundo o autor “é a região ‘na ponta’, as terras de
rendimento ruim e de utilização difícil ou intermitente” (HARTOG,
2014, p. 53). Apresentar o território cita como uma eskhatiá é
representá-lo usando como panorama a oikouméne, é a construção de
uma inversão do território grego.

449
Das utopias ao Autoritarismo

Segundo Heródoto, existem três explicações para a origem


dos citas: “de acordo com os próprios citas sua origem teria sido a
seguinte: apareceu naquele território, até então deserto, um homem
cujo nome era Targítaos. Os pais desse Targítaos, dizem eles – não
creio em sua história, mas eles a contam - teriam sido Zeus e uma
filha do rio Boristenes” (Hist., IV, 5) e ele teria três irmãos: Lipôxais,
Arpôxais e Coláxais (este último era o mais novo). Durante o seu
reinado caíram do céu sobre a Cítia alguns objetos de ouro. Vendo-
os, o irmão mais velho e o irmão do meio aproximaram-se deles com
a intenção de pegá-los, mas o ouro começou a inflamar-se e o único
que conseguiu pegar o ouro foi o irmão mais novo e, diante disso, os
irmãos mais velhos decidiram entregar o ouro e o poder real a esse, e
foi desse que surgiu o clã dos citas.
A segunda versão, contada pelos helenos habitantes do
Pontos, relatava que Heraclés teria copulado com uma mulher
híbrida, metade humana e metade serpente. Eles tiveram três filhos e
o mais novo, chamado Cites, teria dado origem aos citas. Em seguida,
a versão mais “verídica” para Heródoto relata o seguinte: os citas
nômades habitantes da Ásia, pressionados pelos massagetas na guerra,
fugiram atravessando o rio Araxes em direção ao território cimério, e
os cimérios diante do avanço dos citas decidiram abandonar o seu
território.
Observa-se que na primeira versão, na qual os citas seriam
descendentes de Zeus e de uma filha do rio Boristenes, o autor destaca
que não acredita na veracidade desse relato. Logo, temos aqui uma
constatação de estranheza por parte de Heródoto, seguida de um
questionamento. Por que Heródoto, em toda sua obra, mescla atos
humanos com atos divinos e utiliza frases do tipo “providencia
divina”, mas quando se trata de um mito de origem cita, questiona?
Ao analisar a primeira versão sobre a origem dos citas, a
versão dos próprios citas, percebemos que existe uma relação entre os
objetos e a posse do território. O irmão mais novo, aquele que consegue
tomar posse de tais objetos caídos do céu, é aquele que fica com a
maior porção do território e com o poder real. Assim constatamos que
existe uma intima relação entre a versão contada pelos citas e a posse

450
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

do território. Desse modo, necessitamos saber qual significado esses


objetos expressam, já que são instrumentos decisivos para definir o
responsável pelo poder real, não podendo ser simplesmente objetos
aleatórios. De acordo com Hartog (2014, p. 61),
esses quatro objetos (que, na realidade, não são mais
que três, já que o jugo e a charrua constituiriam um
só) simbolizam as três funções, que formavam um dos
principais modelos do pensamento indo-iranianos,
fieis depositários, com relação a isso, da tradição indo-
europeia: a taça é o instrumento de culto e das festas; o
machado uma arma de guerra; a charrua e o jugo evocam
a agricultura.
Nessa versão, os próprios citas se apresentam como
sedentários e agricultores e não como criadores de gados nômades.
Outro fato é que na passagem da primeira versão, Heródoto diz que
Coláxais pega os objetos e leva para casa, o que contradiz a versão
de Heródoto sobre o nomadismo dos citas. Constatamos aqui, que
estamos diante de uma comunidade que se representa como sedentária,
porém, é vista pelos gregos como nômade. Desse modo, Hartog (2014,
p. 63) ressalta a fragilidade da análise de Heródoto sobre as origens
dos citas, na qual o autor explica que “Heródoto não somente não
avalia essa versão das origens dos citas e do poder, precisando que são
eles próprios que ‘dizem’ (légousi), como não leva absolutamente em
conta. Com efeito, quando contam eles que Targitau, o primeiro cita,
teve como pais Zeus e uma filha do rio Borístenes, o narrador observa:
‘Para mim, o que dizem não é crível’ (emoí ou pistálégontes). Se pois, o
começo da história não é crível, como a sequência o será?”.

Espaço grego versus espaço cita: características de civilidade e


barbárie
A compreensão da distinção entre a maneira que os citas
interagem com o espaço e a maneira que os gregos interagem com
o espaço é de extrema importância para entender tanto a bagagem
cultural de Heródoto como sua representação da comunidade
cita. Trabalhamos com o período clássico, século V a.C., no qual a

451
Das utopias ao Autoritarismo

democracia ocupa lugar central no estudo da Antiguidade Grega,


porém para entender tal sociedade é necessário encará-la como
um fenômeno predominantemente rural, na qual o calendário que
regulava a vida no interior da referida sociedade estava baseado nas
atividades agrícolas,
onde a terra era exclusiva daqueles indivíduos considerados
cidadãos e onde o proprietário fundiário gozava de
um importante status sócio-político, econômico e
ideológico no interior da sociedade democrática ateniense
(CHEVITARESE, 2000, p. 23).
Desse modo, construiu-se a ideia de que a pólis só seria
verdadeiramente independente na medida em que ela fosse capaz de
tirar do solo seu sustento, garantindo a subsistência de seus habitantes,
sem depender de outras regiões para sua própria alimentação.
Porém, os dados analisados por Chevitarese mostram que tal “pólis
independente” era um ideal a ser alcançado e não uma prática possível
de ser realizada.
A Grécia, localizada entre os paralelos 34 e 42 norte, é um
país montanhoso, com 80% do seu território inseridos
neste tipo de terreno. Este dado sugere, de imediato, que
se a agricultura representava a base da sociedade grega, por
um lado, a própria natureza do solo pedregoso e a falta de
grandes áreas apropriadas afetavam materialmente o seu
desenvolvimento, por outro” (CHEVITARESE, 2000, p.
35).
Com efeito, percebemos que o espaço grego era ordenado,
organizado e normatizado, de forma que seus cidadãos interagiam
com tal localidade de maneira distinta dos citas representados por
Heródoto, os quais não possuíam uma distinção entre o espaço
rural e o espaço urbano, exatamente por não possuírem este último.
Quando Heródoto se depara com os costumes e o território cita, acaba
por realizar uma inversão do que conhece como civilizado, ou seja,
os costumes e o território dos gregos, construindo dessa maneira
uma narrativa negativa e questionável sobre a comunidade cita,
caracterizando-os como selvagens habitantes dos confins, possuidores
de um território nas franjas do mundo grego. Para corroborar tal

452
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

representação, o autor utiliza também as diferenças climáticas entre


as regiões, com o intuito de explicar a superioridade grega sobre os
citas através de seus respectivos climas. Nessa perspectiva, Chevitarese
explica como funciona o clima do território grego,
Este país está localizado no interior do clima mediterrâneo
que, em termos gerais, é apresentado pelos geógrafos
com as seguintes características: a maior parte das chuvas
concentra-se no inverso e a seca, mais ou menos completa,
prevalece no verão. O inverno, além de chuvoso, apresenta
temperaturas amenas. Em contrapartida, o verão é muito
quente e seco, com a ausência quase completa de nuvens
(CHEVITARESE, 2000, p. 35).
A Cítia possuía um clima extremamente rigoroso. Segundo
Heródoto, o calendário cita contava com um inverno de 8 meses,
durante o qual o mar virava gelo, sendo os 4 meses restantes muito frios
também. É como dizer que esse território possuí 8 meses de inverno
rigoroso e 4 meses de “inverno simples”. Na Cítia não chove durante
o inverno, o que acontece normalmente, em “todos” os outros lugares.
O regime das chuvas apresentava-se, pois, invertido, em comparação
com a das regiões mediterrâneas. O clima cita produz outro tipo de
estranheza. Segundo Heródoto, “[...] na Cítia, os cavalos, mas não os
asnos e mulas, suportam o frio, enquanto em outros lugares acontece
o inverso” (HARTOG, 2014, p. 70).
O que se encontra ao norte se explica pelo frio; o que está ao
sul, pelo calor [...] junta-se a isso uma lei de compensação: se a Grécia
(a Jônia) recebeu o clima mais temperado, as extremidades da terra
(muito frias ou muito quentes) receberam as coisas mais belas e mais
raras (o ouro ou os aromos) (HARTOG, 2004, p. 107). O clima ameno
é associado à riqueza e o clima rigoroso à pobreza. Essa é uma forma de
explicar a superioridade grega sobre os povos da Ásia, em especial os
citas. Além disso, Hartog (2004) explica que alguns autores utilizam a
justificativa de que a população da Ásia é amolecida, pouco viril e dada
ao prazer pelo fato de seu clima não apresentar mudanças bruscas.
Nessa perspectiva, a relação dos costumes de um povo com
o território que habitam fica evidente na seguinte passagem da obra,

453
Das utopias ao Autoritarismo

quando Heródoto diz que,


O povo cita concebeu a solução mais sábia entre todas as
que conheço para um dos mais importantes problemas
humanos, mas nada vejo nele digno de admiração além
disso. Sua descoberta, da maior importância como já
disse, é um meio de impedir que qualquer agressor em
marcha contra eles lhes escape e que inimigo algum possa
atingi-los se eles não quiserem ser alcançados. Realmente,
quando os homens não constroem cidades nem muralhas,
e têm todos casas ambulantes, e vivem não do cultivo da
terra mas da criação de gado, e transportam suas casas
em carroças, poderiam eles deixar de ser invencível e
inacessíveis? (HERÓDOTO, 1985, p. 213).
Heródoto explica que os citas conseguem viver como
nômades pelo fato do seu território conter pastagens planas e água
em abundância. Essa questão da aporia (território inexpugnável)
fica evidente quando Dario, em sua expansão persa, tenta invadir
o território dos citas e estes utilizam a estratégia de recuar. Assim à
medida que Dario adentra o território dos citas e não encontra nada,
seu desejo não se realiza. Desse modo, Hartog (2014, p. 230) formula
uma comparação entre a defesa ateniense e a aporia cita,na qual “os
atenienses têm a ‘muralha de madeira’, isto é, seus navios; os citas têm
a mais segura das muralhas, sua aporia”. Observe-se, no entanto, a
seguinte fala de Heródoto: “mas nada vejo nele [no território cita]
digno de admiração, além disso,” ou seja, para Heródoto os citas
habitariam um território degradado, o que converteria este território
numa heterotopia.2
Além disso, para o autor os citas seriam um povo
extremamente violento, como ele mesmo descreve:
cada cita bebe uma parte do sangue do primeiro homem
por ele abatido; cada cita leva para o rei as cabeças de
todos os inimigos mortos por ele no campo de batalha
(HERÓDOTO, 1985, p. 217).

2 Utilizamos o conceito de heterotopia formulado por Henri Lefebvre, em


seu livro A Revolução Urbana. Para o autor, heterotopia designa o lugar (topos) do
diferente, do outro (hetero), um espaço que provoca aflição e temor (LEFEBVRE,
1999, p. 19).

454
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Nessa passagem, temos a formulação de um cenário de


medo num espaço determinado, o local de residência dos citas, que
seria repleto de cabeças obtidas nas campanhas militares. Para os citas,
beber o sangue do primeiro homem por ele abatido ou levar para o
rei a cabeça de todos os inimigos mortos seria uma honra, visto que
só participaria da distribuição dos despojos de guerra quem portasse
tais troféus. Contudo, para Heródoto, acostumado com os costumes
gregos, esse tipo de atitude se revela macabro e amedrontador.
A morte dos “falsos adivinhos” é uma prática que contribuiu
para reforçar o caráter amedrontador dos costumes citas. Segundo
Heródoto, existia na Cítia muitos adivinhos, entre esses, aqueles de
melhor reputação eram chamados pelo rei, quando esse adoecia. A
Intenção do rei era saber quem havia prestado um falso juramento
diante das lareiras reais, causando desse modo seu adoecimento. A
esse respeito Heródoto descreve como era a morte desses adivinhos
na seguinte passagem: “eles são mortos da seguinte maneira:
enche-se uma carroça com lenha bem seca e se lhe atrelam bois; os
adivinhos, com os pés agrilhoados, com as mãos amarradas para trás e
amordaçados, são jogados no meio da lenha; ateia-se fogo à lenha, e os
bois, assustados põem-se em marcha” (HERÓDOTO, 1985, p. 219).

O corpo do rei: espaço e poder


Em Heródoto, encontramos indícios das diferenças
culturais nítidas entre os citas e os gregos. Com efeito, reforçamos
que essa representação negativa que faz o autor a respeito dos citas
diz respeito também ao seu território, pois notamos a importância do
espaço na constituição da identidade coletiva de uma comunidade.
Porém, fica o questionamento: como é possível uma comunidade
nômade estabelecer um território?, Hartog (2014, p. 232) esclarece
que “o tumulo real desempenha, pois, o papel de ‘centro’. Com efeito,
ele é esse ponto fixo e imóvel que faz com que o espaço cita possa
constituir-se como território”. De modo geral, é o poder real que
marca o espaço. O rei é um chefe de guerra, trata-se daquele a quem se
deve levar cabeças, para que se tenha direito à partilha do butim. Mais

455
Das utopias ao Autoritarismo

amplamente, desde que se trate das coisas de guerra, o espaço cita


modifica-se. Passa-se brutamente de um espaço desordenado para um
espaço delimitado e organizado (com seus nomoi e seus monarcas,
com seus ritos e suas cerimônias anuais).
Essa questão levanta, antes de tudo, a do lar real e, mais
amplamente, a do lugar de Héstia no panteão cita. Curiosamente,
Héstia é, tanto entre os deuses quanto entre os homens, a casa, o
centro do espaço doméstico e, como tal, conota valores de fixidez,
imutabilidade e permanência. Ocupa o primeiro plano entre os
citas: é a ela, com efeito, mais que a qualquer outra divindade, que se
dirigem as preces; em seguida, vêm Zeus e a Terra. Ora, é exatamente
neste ponto que encontra-se a contradição. Os citas que, segundo
Heródoto, seriam uma comunidade nômade, têm como a principal
deusa uma divindade que representa a casa, o espaço doméstico e a
fixidez. Ao mesmo tempo Hermes, que Hartog (2014, p. 159) classifica
como “o senhor dos lugares destinados ao percurso, longe dos campos
cultivados, bem como dos espaços abertos onde se caçam animais
selvagens”, está ausente do panteão cita. Um exemplo expressivo
da importância de Héstia dentro do panteão cita é fornecido por
Idantirso, o rei dos citas. Quando Dario pede que se submeta, ele
responde que “em matéria de senhores (despótas), não reconhece
senão dois: ‘Zeus, meu ancestral, e Héstia, rainha dos citas’. Assim,
Héstia, sendo abasíleia dos citas, é também sua despótes” (HARTOG,
2014, p. 157). Desse modo, concluímos que o que caracteriza a Cítia
de Heródoto é a presença do rei como centro do poder. Seu lar é o
lugar pelo qual transitam as trocas, o ponto de referência das relações
sociais. No limite, os citas não têm lar pessoal. O único lar verdadeiro
seria então o do rei, no qual o corpo do soberano passa a representar
tanto espaço delimitado como poder. Com efeito, Hartog analisa
como se estabelece essa troca entre o rei e seus súditos.
O rei sente dores, o rei está doente, tanto que manda
buscar adivinhos para tratá-lo. Os adivinhos põem-se
a trabalhar e lhe indicam logo a causa de seu mal: um
perjuro. Prescrição: corta-lhe a cabeça. Dito de outro
modo, a dor real é o sintoma do perjúrio e não parece que
se possa atribuir-lhe outra causa. Com efeito, os adivinhos

456
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

declaram: “como quase, sempre [...], fulano ou cicrano


jurou falso.” O que, portanto, sempre e mais que tudo
atinge o rei em sua própria carne é o perjúrio. Quando um
cita comete o crime, é o rei que logo em seguida sente os
maus efeitos; estabelecem-se assim estranhas trocas entre
o sei e seus súditos (HARTOG, 2014, p. 151).
Na passagem acima, observamos que súditos ruins,
criminosos, causam mal ao próprio rei que deve puni-los. Em
contrapartida, súditos leais deveriam, pelo contrário, favorecer a boa
saúde do rei e aumentar sua prosperidade. É importante ressaltar
que na Grécia, a aplicação do castigo competia aos deuses e não aos
homens. Contudo os citas prevêem um castigo nesse caso, no qual o
culpado pelo perjuro tem sua cabeça cortada. De acordo com Hartog,
como se vê eles não confiam aos deuses o cuidado da
vingança e o restabelecimento da ordem que foi perturbada,
pelo menos no caso do falso juramento ‘pela lareira real’. O
juramento pela lareira real é, de fato, o ‘maior juramento’
que um cita poder fazer (HARTOG, 2014, p. 156).
Em relação ao território cita, a casa real funciona como um
espaço de troca. Quando os citas querem entrar em um acordo devem
se prostrar diante dela.
Desse modo, Hartog (2014, p. 162) explica que:
o rei tem dois corpos: o primeiro é um corpo natural,
consistindo de membros naturais, como têm todos os
outros homens, sujeito a doenças e á morte, como acontece
com os outros homens todos; o outro é um corpo político,
e os membros dele são seus súditos.
Todavia, no caso do rei cita, um defeito do corpo político, o
perjúrio, reflete sobre o corpo natural.
O túmulo real desempenha o papel de centro, delimitando
o espaço cívico. Esse aspecto não se restringe à cultura cita. Hartog
(2014) faz uma comparação entre a Grécia e a Cítia, sobre o aspecto
do local destinado aos túmulos reais ou túmulos dos heróis. Assim,
na Grécia tinha-se o costume de enterrar os heróis ou os fundadores
da cidade em três lugares distintos: na ágora, nas muralhas ou nas

457
Das utopias ao Autoritarismo

fronteiras do território. Segundo Hartog (2014, p.172), “qual é, com


efeito, a primeira função do cadáver assim honrado? Espera-se dele
que faça a guarda, que defenda o território ou que assegure a vitória”.
Havia, portanto laços muito estreitos entre o túmulo do herói e o
território, assim como entre os túmulos dos reis citas e seus súditos.
Contudo, onde eram enterrados os reis citas? Na região chamada
Gerros, território de confins, sobre a qual Heródoto nada sabe, por
ser uma região isolada. Ao contrário dos gregos, que enterravam seus
heróis em locais estratégicos à procura de proteção para a cidade,
os citas enterravam seus reis nessa região isolada, exatamente para
preservarem suas sepulturas e integridade, ou seja, uma medida
de proteção dos túmulos reais. Essa ligação entre as sepulturas e o
território cita fica em evidência na seguinte passagem:
É bem isso o que quer dizer o rei dos citas, Idantirso,
quando envia a Dario (que não compreende por que o
outro se recusa a entrar em batalha com ele) a seguinte
mensagem: ‘[...] Encontrai os túmulos de nossos pais,
tentai violá-los e então sabereis se nós entraremos em
combate convosco por esses túmulos ou se recusaremos
o combate. Mas, até então, se não tivermos vontade, não
entraremos em batalha convosco [...] ’ Para Idantirso, há,
pois, uma ligação entre os túmulos reais e o país: encontrar
e violar uns, é prejudicar o outro. Encontrar os túmulos
dos reis equivaleria, na Grécia, a encontrar o túmulo dos
heróis. Seria portanto adquirir supremacia (ao menos
virtual) sobre o território (HARTOG, 2014, p. 176).
Os citas de Heródoto são nômades, não possuem terra
cultivada, não praticam a agricultura e vivem da criação de gado. Por
tais motivos, não vêem motivo para entrar em guerra com os persas.
O inimigo somente passa a ser considerado um invasor a partir do
momento que encontrar ou violar os túmulos reais. Sendo assim, são
os túmulos dos reis citas que tornam o espaço habitado um território
delimitado e organizado. Vivo, o rei era o centro móvel; morto, torna-se
o centro fixo. Até no tratamento reservado aos reis mortos encontramos
características nômades. O rei é colocado sobre um carro e passa
por todas as regiões que reina até chegar em seu destino, no Gerros.
Heródoto narra todo um ritual de mutilação que os súditos praticavam

458
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

quando seu rei morria, ritual esse que ao olhar grego é visto como um ato
de selvageria e de barbárie, pois, entre os helenos a mutilação havia sido
proibida antes mesmo da legislação de Sólon. Acreditava-se que aquele
que praticava a mutilação estava se pondo à parte da esfera do direito,
pois não se devia tocar na integridade do corpo do cidadão. Entre os
citas, os participantes do cortejo fúnebre se mutilavam, mas o cadáver
do rei era preservado, visto que era embalsamado. Como Hartog explica
essa prática da mutilação era uma maneira de preservação da memória
e não um ato de selvageria desmedido
Os citas, com efeito, ainda que não elevem a voz e
não articulem palavra alguma falam, mas falam à sua
maneira – em seus corpos e com seus corpos. Mutilam-
se, inscrevem em seus corpos a lei cita e fazem de seus
corpos a celebração e a oração fúnebre do rei morto. Pelas
cicatrizes que trarão, seus corpos tornar-se-ão memória.
Mais ainda, essas mutilações não são exageros de violência
feitos ao acaso, mas, ao contrário, parte do cerimonial
fúnebre (HARTOG, 2014, p. 182).
Nessa perspectiva, constatamos que é através dos corpos
que os citas se expressam e expressam seu luto, mas qual a mensagem
que essas mutilações passam? A condição de súdito de tais homens.
O corpo é tido como uma maneira de atestar para si mesmo e de
atestar para o outro que faz parte do mesmo grupo, a comunidade
cita. De acordo com Hartog (2014, p. 183), “[...] Durkheim e outros
mostram que as cerimônias de luto são meios, para a coletividade, de
demonstrar que não se encontra atingida, que sairá mesmo reforçada
da prova”. Nas cidades gregas, pelo contrário, a mutilação era proibida
e vista como um horror.

Anácarsis e Ciles: transgressão da fronteira cultural3


Os citas evitavam adotar qualquer costume alienígena,
3 Utilizamos o conceito de fronteira elaborado pelos autores Norberto
Guarinello (2010) e Geneviéve Bührer-Thierry (2012), para quem a fronteira é um
espaço dinâmico de negociação, uma “membrana viva” que não apenas separa grupos
e pessoas, mas também os aproxima. A fronteira é assim compreendida como uma
zona de interações culturais permanentes, lugar de constante troca.

459
Das utopias ao Autoritarismo

seja de qual povo for, e castigos eram infligidos severamente àqueles


que o faziam. Heródoto reporta dois exemplos de homens citas que
adotaram costumes estrangeiros dentro da Cítia e foram castigados,
independentemente de sua posição dentro da comunidade. Os
protagonistas de ambos os casos são: Anácarsis e Ciles.
Anácarsis era um cita pertencente à família real e, assim
como Heródoto, viajara por várias regiões, como Atenas, à procura
de conhecimento. Porém, quando retorna a sua terra natal é pego
celebrando rituais para uma deusa estrangeira e acaba sendo punido
com a pena de morte. Anácarsis é morto pelo próprio irmão. A
respeito desse fato, Hartog (2004, p. 125) explica que “seu destino
ilustra o risco mortal em que incorre aquele que, percorrendo a terra,
acaba por esquecer as fronteiras”. Heródoto descreve da seguinte
maneira o ocorrido:
de volta à sua pátria navegou pelo Heléspontos e se deteve
em Cízicos; lá, observando os cizicenos celebrarem a
pomposa festa da Mãe dos Deuses, Anácarsis prometeu
a essa mãe que, se voltasse são e salvo à sua terra, lhe
ofereceria sacrifícios iguais aos oferecidos pelos cizicenos
diante de seus olhos, e que instituiria os rituais de um
certo culto noturno em sua honra. Chegando â Cítia, ele
foi ocultar-se na região chamada Hílaia, situada ao lado
de pista de Aquileus e inteiramente coberta de todas as
espécies de árvores; oculto lá, Anácarsis celebrou todo
ritual da festa da deusa, levando um tamborim e imagens
sagradas presas às suas roupas. Mas um cita percebeu o
que ele estava fazendo e foi dizer ao rei Sáulios. O rei veio
ao local em pessoa e, vendo Anácarsis celebrar o ritual,
alvejo-o com uma flecha e o matou (HERÓDOTO, 1985,
p. 221).
Outro fato relevante sobre Anácarsis é que ele recebeu
cidadania ateniense e foi o único bárbaro a ser iniciado nos mistérios
de Eleûsis, que para Hartog (2004) representa a quintessência da
identidade ateniense grega. A bibliografia referente aos citas aborda
majoritariamente Anácarsis, contudo temos um segundo caso de
transgressão de fronteira cultural, representado por Ciles, filho do rei da
Cítia, cuja mãe era da Ístria e lhe ensinou a língua e as letras helênicas.

460
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Depois da morte de seu pai, Ciles assumiu o trono da Cítia. Segundo


Heródoto, “reinando sobre os citas, Ciles não se satisfazia de modo
algum com o modo de viver dos citas, demonstrando uma inclinação
muito maior para com os costumes helênicos” (Hist., IV, 78).
Ciles mandou construir uma casa para ele em Boristenes,
uma cidade vizinha, onde circulava com roupas gregas e cultuava os
deuses de acordo com os costumes helênicos. Contudo, quis ir mais
além e foi iniciado no culto de Diônisos Báquico. Acontece que os citas
desprezavam Diônisos, diziam que não era razoável cultuar um deus
que levava os homens à loucura. Assim, quando os citas descobriram
o que o rei havia feito, não aceitaram e se rebelaram, entregando o
comando do exército ao seu irmão, Octamasades. Ciles se refugiou na
Trácia, porém, o irmão de Ciles tinha como refém entre os citas, o tio
do rei da Trácia e fez um acordo com este. O rei da Trácia devolveria
Ciles e seu tio retornaria. Assim que Ciles foi devolvido para os citas,
teve a cabeça cortada. Esses dois casos expressam o perigo, entre os
citas, da transgressão das fronteiras culturais.

Conclusão
Nossa análise da obra de Heródoto aponta que o autor tentou
construir uma narrativa negativa a respeito dos citas, de seus costumes
e de seu território. Utilizando como parâmetro a cultura grega para
elaborar sua representação, Heródoto exagera o quesito violência,
como uma forma de impressionar os gregos, utilizando a violência
e a selvageria cita como um aparato narrativo para impressionar o
ouvinte, visto que sua obra foi lida em público. Heródoto, com toda
sua bagagem cultural, não descreve com veracidade os costumes da
comunidade cita. Pelo contrário, o autor elabora uma representação
de tal comunidade com o intuito de mostrar sua inferioridade diante
da grandiosa Grécia. Tal representação não se restringe somente aos
citas, mas abrange outras culturas por ele descritas.
O que o autor retrata como violência ao acaso, selvageria e
barbárie, na verdade são rituais que fazem parte dos costumes citas e
que nos informam como essa comunidade enxergava o mundo e com

461
Das utopias ao Autoritarismo

ele interagia. Os citas não cortavam a cabeça de seus inimigos abatidos


como uma maneira de demonstração de violência ou como forma de
ultrajar seu adversário. Na verdade, existia um significado simbólico
nesse ato, um ato de honraria, pois, aquele cita que voltasse da batalha
sem cabeças era tido como um homem fraco e sem honra, que não
merecia participar dos despojos de guerra, aquele que não tomaria
um copo de vinho com seus irmãos de batalha. O ritual de mutilação
praticado pelos súditos quando o rei morria, também ia além do
horror representado por Heródoto, pois caracterizava-se mais como
um ritual de memória e de pertencimento.
Com efeito, fica evidente que Heródoto faz uma análise
imparcial da comunidade cita, não aprofundando nos seus costumes,
na relação entre como os citas contavam suas origens e a posse da
terra. Mas, por que Heródoto aprofundaria algo que não acreditava?
De fato, o próprio afirma que não crê na veracidade do relato dos
citas sobre suas origens. O autor descreve todo o processo do funeral
régio, como uma cerimônia degradada, violenta e repulsiva, na qual os
súditos praticavam atos de mutilação. Contudo, simplesmente ignora
o significado de tal cerimônia e como os túmulos reais demonstravam
que os citas, caracterizados como nômades, possuíam sim um
território e esse território tinha um centro, desempenhado pelo corpo
do rei.
Acreditamos que existe uma relação intima entre a
“degradação” dos costumes dos citas com o território que habitavam,
pois, ao mesmo tempo que Heródoto representa os costumes dos citas
como repulsivos, relaciona tal fato com o espaço por eles habitado,
representando assim a Cítia como uma zona de confins, uma região
de eskhatiá, ou seja, uma região que se encontra além das culturas.

Referências:
Fontes:
HERÔDOTOS. História. Tradução do grego, introdução e notas de Mário
da Gama Kury. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1985.

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Bibliografia:
BÜHRER-THIERRY, G. Construindo fronteiras, fixando identidades. In:
CAMPOS, A. P.; GIL, A. C. A.; SILVA, G. V.; BENTIVOGLIO, J. C.; NADER,
M. B. (Org). Território, poderes, identidades: a ocupação do espaço entre a
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CHEVITARESE, A. L. O espaço rural da pólis grega: o caso ateniense no
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463
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

O Mediterrâneo como mar e forma da história:


suas representações na Odisseia
Martinho Guilherme Fonseca Soares

Entre uma história no e do Mediterrâneo


Fernand Braudel dedicou-se, nos primeiros anos de
sua formação historiográfica, a estudos sobre o Mediterrâneo.
Sua “história da longa duração”, presente em O Mediterrâneo e
o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II,1 viria a constituir,
para toda uma geração dos Annales, a principal fonte de inspiração
para os historiadores interessados em usar a longue durée em suas
análises, o que por vezes implicou na busca, pelos assim chamados,
determinismos ambientais (HORDEN; PURCELL, 2000; HARRIS,
2005; HERZFELD, 2005). Em outras palavras, as sociedades que se
desenvolveram no Mediterrâneo tiveram o ritmo da vida econômica,
social e política ditado, a rigor, pelo intrépido ambiente físico descrito
por Braudel. Publicado em 1949, as discussões ali travadas serão
exaustivamente (re)analisadas nos anos vindouros, evocando o
Mediterrâneo como uma unidade, especialmente nas décadas de 1980
e 1990 (HARRIS, 2005, p. 1). Por isso, falar sobre o Mediterrâneo
“na” história não constitui novidade alguma. Contudo, somos do
entendimento, tal como Herzfeld (2005, p. 46), que a despeito de
outras categorias que foram igualmente revisitadas, criticadas e, por
vezes, colocadas à parte, “‘o’ Mediterrâneo mostrou uma tenacidade
notável diante de uma enxurrada de críticas — de fato, essa enxurrada
às vezes parece simplesmente confirmar sua importância geral”. Na
opinião do autor, isso por si, já faz com que o Mediterrâneo seja levado
a sério. Mas qual Mediterrâneo? A extensão marítima, o corpo d’água?
Ou todas as ilhas, mares e costa (regiões internas e montanhas) por ele
banhados? Um Mediterrâneo que difere, substancialmente daquele
do modelo braudeliano.

1  No original francês, dividido em três volumes: La Méditerranée et le monde


méditerranéen a l’époque de Philippe II.

465
Das utopias ao Autoritarismo

Na esteira dessas reflexões, uma distinção entre uma história


do e no Mediterrâneo vem se afirmando. A diferença foi explicada por
Peregrine Horden e Nicholas Purcell no precursor The Corrupting sea:
a study of Mediterranean history (2000). Ao colocarem o ambiente físico
no centro da análise, os autores propuseram a noção de uma história do
Mediterrâneo, em que o ambiente (mar e costa) são o objeto da pesquisa
histórica. Horden e Purcell argumentam que essa perspectiva difere da
de Braudel, pois não busca compreender os acontecimentos a partir de
determinismos ambientais, mas sim, da interação que se deu entre os
seres humanos e o espaço. Para os autores, há tanto uma história no
como do Mediterrâneo, sendo que a primeira relaciona-se de maneira
indireta com o espaço geográfico a segunda, por sua vez, [...] pressupõe
uma compreensão de todo o ambiente, o qual
é o produto de uma complexa interação de fatores humanos
e físicos, não simplesmente um pano de fundo material
ou um conjunto de restrições imutáveis (HORDEN;
PURCELL, 2000, p. 9).
Se insistimos em recordar a obra Braudel, o vemo-lo
admoestar-nos que “falar do Mediterrâneo na história é, portanto
— primeiro cuidado e preocupação constante —, atribuir-lhe suas
dimensões verdadeiras, imaginá-lo numa vestimenta desmesurada.
Ele sozinho era, outrora, um universo, um planeta” (BRAUDEL,
1988, p. 30). Para Braudel, falamos de um mar, mas principalmente
de todo um continente de terras e um contingente de povos que se
organizou político, social e culturalmente, a partir dele e para ele
esteve convergido desde a Antiguidade. Aceitando a validade da
distinção entre do e no, Braudel compôs uma história das sociedades
no Mediterrâneo, “[...] na qual toda mudança é lenta, uma história
de repetição constante, de ciclos sempre recorrentes” (HORDEN;
PURCELL, 2000, p. 36). Nessa perspectiva, vemos que o autor buscou
heroicizar elementos abstratos, apartados da ação humana:
o próprio mar, primeiro e antes [...] — e ‘a longo prazo’,
la longue durée. É este último conceito [...] que informa
todo o livro, transformando-o numa peça de geografia
humana, uma vasta bússola histórica (HORDEN;
PURCELL, 2000, p. 36).

466
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

No que se refere a demasiada produção que o Mediterrâneo


e os elementos que lhe são congêneres (mediterranismo,
mediterranização e outros), receberam da historiografia nos últimos
40-50 anos, o tema continua a despertar interesse, seja porque o mar
permanece onde “sempre” esteve, seja porque vemos crescer, em
especial, nas duas últimas décadas, o número de periódicos acadêmicos
dedicados à temática. Aquilo que Susan Alcock (2005, p. 314), chamou
de “séries mediterrânicas”. Mas por que a insistência daqueles que
o fizeram/fazem e nossa, em particular? De um ponto de vista mais
amplo, arriscamo-nos a dizer que a vivacidade de investigações sobre
o Mediterrâneo, esteve e permanece ligada ao fato de que o mar não é
o mesmo para todas as sociedades, em todos os tempos e lugares, tal
como o fez crer Braudel.
Certa feita, escreveu Chartier — ao esclarecer sua proposta
de formular uma história da leitura — que, para o tipo de pesquisa
por ele empreendida, o essencial é “compreender como os mesmos
textos — sob formas impressas possivelmente diferentes — podem
ser diversamente aprendidos, manipulados, compreendidos”
(CHARTIER, 1991, p. 181). Parafraseando-o, encontramos uma,
dentre outras possíveis respostas, ao questionamento formulado
inicialmente: a vivacidade das investigações envolvendo o
Mediterrâneo está relacionada ao interesse em se compreender como
esse mesmo mar, esse mesmo espaço, em momentos distintos, foi
diferentemente apropriado, explorado, compreendido e representado
pelas sociedades que com ele estabeleceram algum tipo de relação.
Outra explicação é data por Harris (2005, p. 7), ao enxergar como
motivo para tal interesse, o fato do Mediterrâneo ter sido o palco dos
principais conflitos de poder da história ocidental, “gregos contra
persas, romanos contra cartagineses (e todo o resto), cristãos contra
muçulmanos”.
De nossa parte, o interesse está relacionado à dificuldade
de se estudar o conjunto das transformações econômicas e sociais
próprias do Período Arcaico, em que a “colonização” grega apresenta-
se como parte integrante e integradora do Mediterrâneo,2 sem
2 De uso corrente na literatura geral, bem como na especializada, o termo

467
Das utopias ao Autoritarismo

aproximá-las das representações que o homem arcaico elaborou sobre


as condições físicas e climáticas do mar, as quais implicaram na adoção
de um conjunto de práticas rituais nesse ambiente. A Odisseia, obra
com a qual buscaremos dialogar nesse texto, nos permite visualizar o
comportamento desse povo essencialmente litorâneo, quando buscou
dominar o espaço marítimo de um ponto de vista físico e simbólico.
Desse modo, precisamos entender o movimento colonizador em sua
fase inicial, como circunscrito a uma região específica do continente
grego, em integração com a Sicília e o sul do Território Itálico — local
dos primeiros assentamentos na Magna Grécia —, de maneira que
afirmar que “o Mediterrâneo é mais interessante como uma categoria
local do que como uma ferramenta analítica [...]” (HERZFELD,
2005, p. 46) nos parece ser o caminho para a elaboração de uma
história do Mediterrâneo. Nesse sentido, ainda que nos deparemos
constantemente com uma noção do Mediterrâneo como ferramenta
analítica, o que se justifica porque historiador busca dar forma à
história, é preciso estarmos atentos à sua arbitrariedade.

O Mediterrâneo como forma da história


Há um risco quando o Mediterrâneo é apontado como
“forma da história”, oportunidade na qual a região aparece como
“centro”. Teria esse “centro do mundo” abrigado o desenvolvimento
de uma agricultura modelar, fundada na tríade azeite, vinho e cereais
(VIDAL-NAQUET, 2002; LEFÈVRE, 2013), indo de encontro à ideia
de que “o Mediterrâneo é, obviamente, um construto, mas é um
construto com alguma base natural. A região é o lar histórico da vitis
vinifera e da olea europaea, e o cultivo da vinha e das oliveiras parece
fornecer tanto unidade quanto distinção” (HARRIS, 2005, p. 79).
“colonização” aqui empregado refere-se à fundação no território estrangeiro de
assentamentos perenes, denominados pelos próprios gregos fundadores de apoikiai.
Nesse sentido, não se trata de uma “colônia”, expressão que evoca a noção de relações
comerciais para com a pátria fundadora, tal como visto no movimento dos Estados
Nacionais europeus a partir do século XVI. No caso a que nos referimos, as apoikiai
eram fundadas com o objetivo de separação comercial da metrópole que havia custeado
as despesas necessárias à empresa marítima. Eram assentamentos agrícolas que tinham
por objetivo constituir-se sem relações de dependência para com a pátria-mãe.

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Guarinello (2003), define as formas da história como o


recurso pelo qual o historiador busca fazer o passado inteligível no
presente. Para o autor, a história “opera de fato com formas (ou,
antes, f(ô)rmas), mediante as quais os historiadores tentam dar
sentido ao passado, criando uma sensação de realidade e completude”
(GUARINELLO, 2003, p. 42). O Mediterrâneo como forma está
diretamente ligado ao que Marc Bloch designou de o “ofício do
historiador” (2002), uma vez que acaba por remeter “[...] ao problema
central da prática histórica: a determinação de constantes, acima das
modificações” (VEYNE, 1983, p. 7). Nesse sentido, forma e constante
designam a operação historiográfica. Expandindo seus significados,
vemos que “[...] a conceituação de uma constante permite explicar
os acontecimentos; jogando-se com as variáveis pode-se recriar,
a partir da constante, a diversidade das modificações históricas”
(VEYNE, 1983, p. 16). No modelo braudeliano de interpretação da
longa duração, o Mediterrâneo tornou-se forma e/ou constante, a
partir das quais buscou-se explicar a dinâmica das sociedades ditas
mediterrâneas.
Mutatis mutandis, por vezes, a expressão Mediterrâneo
tornou-se um conceito, tal como é o de guerra ou revolução, aplicáveis
aos diversos momentos da história em que um ou outro acontecimento
adquiriu as características que tais conceitos se dedicam a explicar. Mas
o Mediterrâneo é, sobretudo, um espaço marítimo e costeiro e, como
tal, está sujeito as intemperes climáticas e à influência da atividade
humana. O desenvolvimento da navegação a partir do século VIII a.C.,
foi alterando ao longo do tempo, a paisagem mediterrânea, na medida
em que a derrubada de árvores para a construção de embarcações se
tornou uma prática cada vez mais comum. Outra característica que
evidencia os problemas de se recorrer ao Mediterrâneo como forma/
constante histórica (sem que se realize as devidas definições), é sua
extensão, seja do corpo d’água, ou das terras, o que implica falar da
diversidade regional de sua geografia e clima. Próximo ao território
itálico encontramos, por exemplo, uma atividade vulcânica que
não vemos em nenhuma outra parte do Mediterrâneo, assim como
os ventos e as marés apresentam variações significativas que, muito

469
Das utopias ao Autoritarismo

mais intensas na região do Estreito de Messina, deram “[...] origem


na Antiguidade à lenda de Cila e Caríbdis” (PRYOR, 1995 p. 12).3
Ao fim e ao cabo, “isso significa que todas as formas produzem, ao
mesmo tempo, memória e esquecimento, visibilidade e invisibilidade”
(GUARINELLO, 2003, p. 50).
Cientes do uso equivocado que o emprego do Mediterrâneo
como forma pode assumir, nosso esforço, diante da amplitude de
informações que sua duração no tempo e no espaço nos permite
acessar, é o de ter uma visão um pouco mais aclarada acerca do passado
e das representações elaboradas pelo homem grego sobre o espaço
marítimo. Diante de tal intento é que fazemos uso de informações
relativas à precipitação na região, fertilidade do solo, curso dos rios,
madeiras e metais disponíveis. Também é levado em consideração a
direção dos ventos, das marés, sua intensidade e profundidade das
águas do mar. Este é o lugar a partir do qual buscamos entender o
conjunto das transformações que marcaram o século VIII a.C. “uma
vez que toda reflexão metodológica enraíza-se, com efeito, numa
prática histórica particular, num espaço de trabalho específico”
(CHARTIER, 1991, p. 176). O mar é o nosso.
O acesso ao conjunto dessas informações é resultado de uma
integração contínua entre diferentes áreas do conhecimento, como
as Arqueologias da Arquitetura (PEARSON; RICHARDS, 2005) da
Paisagem, do Culto (HIRATA, 2013) e Marinha (MCGRAIL, 2009).
Isso só para citar os intercâmbios com a disciplina arqueológica,
mas também temos as contribuições da Geografia, da Filologia,
da Biologia, da Oceanografia, dentre outras. Tal esforço resulta em
“[...] um processo de generalização que cria formas ou, em outras
palavras, grandes contextos” (GUARINELLO, 2003, p. 45). O
“Mediterrâneo” é um desses grandes contextos. Mas há um ponto
que precisamos ressaltar: contextualizar e enunciar as características
climáticas e geográficas, é diferente de se afirmar sua invariabilidade
3 Cila e Caríbdis constituem seres mitológicos que, presentes na Odisseia,
personificam o furor das águas na região do Estreito de Messina. No Canto XII, Circe
adverte Odisseu dos perigos que encontraria a essa altura do mar. Ainda no Canto
XII, Odisseu descreve o pavor dos nautai ao cruzar a região onde Cila engoliu seis
dos seus sócios.

470
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

e a determinação da história a partir dessa. O que existe são pontos


de conexão entre o ambiente e a ação do homem sobre ele que, de
um ponto de vista histórico, interessa ressaltar. O que por vezes
observamos quando o Mediterrâneo é assumido como forma da
história, se aproxima do que Edward Said denominou de “geografia
imaginativa” em sua explicação sobre o orientalismo. Tudo converge
para a valorização do Ocidente, da Europa, em especial. Acerca dessa
última assertiva, vemos que,
o orientalismo não é um mero tema político de estudos ou
campo refletido passivamente pela cultura, pela erudição
e pelas instituições; nem é uma ampla e difusa coleção de
textos sobre o Oriente; nem é representativo ou expressivo
de algum nefando complô imperialista ‘ocidental’ para
subjugar o mundo ‘oriental’. É antes uma distribuição
de consciência geopolítica em textos estéticos, eruditos,
econômicos, sociológicos, históricos e filológicos; é uma
elaboração não só de uma distinção geográfica básica ( o
mundo é feito de duas metades, o Ocidente o Oriente),
como também de toda uma série de ‘interesses’ que,
através de meios como a descoberta erudita, a reconstrução
filológica, a análise psicológica e a descrição paisagística e
sociológica, o orientalismo não apenas cria como mantém;
ele é, em vez de expressar, uma certa vontade ou intenção
de entender, e em alguns casos controlar, manipular e até
incorporar, aquilo que é um mundo manifestadamente
diferente (ou alternativo e novo); é, acima de tudo, um
discurso [...] (SAID, 1990, p. 24).
Uma “mesma história”, idiomas com um tronco linguístico
compartilhado, uma agricultura modelar, são alguns dos argumentos
daqueles que defendem a ideia de um mediterranismo, “a doutrina
de que há características distintivas que as culturas do Mediterrâneo
têm, ou tiveram, em comum” (HARRIS, 2005, p. 1). Assim também
a economia e a política estiveram a serviço da formação de uma
paisagem geopolítica distinta para aqueles que advogam uma
história comum entre gregos, romanos, europeus de forma geral.
Nesse sentido, quando consideramos que os historiadores adotam
formas para escrever a história, vemos surgir afirmações de uma
“agricultura e economia mediterrânicas”. Mas de fato existiram? A

471
Das utopias ao Autoritarismo

agricultura dos gregos foi a mesma dos romanos? Se sim, quando?


Em todas as épocas? Sabemos que é impossível explicar o passado
sem formas (GUARINELLO, 2003), mas nos parece que a ideia de
mediterranismo está muito mais ligada à afirmação de identidades
dos historiadores no presente, do que à busca por uma explicação
histórica propriamente dita, embora cientes de que “uma das formas
pelas quais as identidades estabelecem suas reivindicações é por meio
do apelo a antecedentes históricos” (WOODWARD, 2014, p. 11). O
problema emerge quando nos damos conta de que a criação de uma
identidade mediterrânea, ou melhor, “a ideia de uma vasta cultura
mediterrânea serviu com frequência aos interesses do imperialismo
cultural desdenhoso” (HERZFELD, 2005, p. 48).
Sem um estudo pormenorizado da interação entre homens e
ambiente, o emprego do Mediterrâneo como forma, serve muito mais
à projeção do presente sobre o passado. O mediterranismo, como
discurso hegemônico, para além da aliteração que provoca à Língua
Portuguesa, corre o risco de surtir efeitos muito semelhantes aos
produzidos pelo orientalismo, revelando-se um discurso anacrônico a
serviço da afirmação de uma identidade: nossa cultura é mediterrânea,
não é nórdica, indiana, tampouco africana, isso por que a identidade é
relacional e, portanto, marcada pela diferença (WOODWARD, 2014,
p. 9). Mas como os gregos arcaicos viram o Mediterrâneo? Dele se
valeram para afirmação de sua identidade?

O Mediterrâneo como mar e terra


Diferente do que apresentamos até então, discutiremos,
a partir de agora, o Mediterrâneo sob o ponto de vista geográfico,
físico e climático, buscando compreender um pouco mais sobre sua
localização e características ambientais. Falamos de um mar extenso
e que rodeado por montanhas, assume um aspecto semifechado, do
tipo mar do interior. Com 2.000 milhas náuticas de comprimento, de
Leste a Oeste, se “estende de c. 6º O no Estreito de Gibraltar até c. 36º
L na costa do Levante; e de 31 a 37º N na costa do norte da África para
46º N na cabeceira do Mar Adriático” (MCGRAIL, 2009, p. 88). A

472
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

opção por descrever, ainda que sumariamente, de um ponto de vista


georeferencial, a área abrangida por esse mar, não é à toa. É comum
encontramos, nos mapas que buscam representar o Mediterrâneo,
escalas cartográficas que variam de 0-250 a 0-300 Km, em função da
extensão de área a ser representada. Tal representação consome, em
média, uma lauda e meia do corpo do trabalho para cada mapa, o
que, evidentemente, é indispensável quando se busca situar o leitor
através de um recurso cartográfico, no espaço do qual se fala e se
busca representar. Em nosso caso, em função do argumento até aqui
construído, cumpriria muito mais o papel de reforçar o motivo do
Mediterrâneo ter sido representado como um “mundo” e de ser
visto hoje em dia, por cartógrafos e oceanógrafos, como uma Região,
que inclui o próprio Mar Mediterrâneo, o Mar de Marmara, o Mar
Negro e o Mar de Azov (INTERNATIONAL HIDROGRAPHIC
ORGANIZATION, 2002).
Outra característica assumida pelo Mediterrâneo é a
profundidade de suas águas: “[...] mais de 500 braças (c. 900 m)”
(MCGRAIL, 2009, p. 88). Combinadas, as análises de Van Andel
(1989) e Pryor (1995), levam a importantes conclusões acerca das
mudanças climáticas e de nível do mar na região, sendo possível
afirmar que desde o final do Neolítico em diante, “as ilhas e costas
do Mediterrâneo teriam se assemelhado cada vez mais aos dias de
hoje”, de maneira que permanecem “com litorais, chuvas e ventos
geralmente semelhantes [...]” (MCGRAIL, 2009, p. 88). Tal conclusão
nos é bastante útil como ponto de partida para avaliarmos as condições
de navegação dos gregos arcaicos que, no contexto de sua expansão,
se lançaram ao mar. Todavia, se ainda hoje, em alguns períodos do
ano, o Mediterrâneo apresenta dificuldades em alguns trechos, há
que se considerar o que o foi no passado, quando o instrumental
técnico necessário à navegação encontrava-se numa fase incipiente de
desenvolvimento e experimentação.
Mas o Mediterrâneo é um mar que, de modo geral,
apresenta boas condições de exploração aos navegantes, “visto que o
seu clima oferece uma bela temporada de navegação, de abril/maio até
setembro/outubro, especialmente em pleno verão, quando os ventos

473
Das utopias ao Autoritarismo

etésios (meltem) podem conduzir da Trácia ao Egito em menos de


dez dias” (LEFÈVRE, 2013, p. 36-37). Assim, “do ponto de vista do
marinheiro, o verão, com suas longas horas de luz ao longo do dia,
também tem características bem-vindas” (MCGRAIL, 2009, p. 93).
Contudo, um problema se impõe:
O inverno, no entanto, pode ser um momento perigoso
em alto mar, ventos fortes, como o Bora [...], existem em
muitas ocasiões quando surtos de ar frio entre o noroeste
e o nordeste penetram a região, resultando em condições
muito turbulentas e mares que passam a ser afetados por
fortes rajadas e tempestades que podem se desenvolver
rapidamente com pouco aviso (MCGRAIL, 2009, p. 93).
Dessa maneira, passado o verão:
O mar escurece, assume as tonalidades cinzas do Báltico, ou
então, enterrado sob uma poeira de espuma branca, parece
cobrir-se de neve. E desencadeiam-se as tempestades, as
terríveis tempestades. Ventos devastadores: o mistral, o
borah, atormentam o mar, e, em terra, é preciso abrigar-
se contra seu furor e sua violência” (BRAUDEL, 1988, p.
13-14).
Hesíodo, um poeta beócio do século VII a.C., — também
do Período Arcaico — quando escreveu Os Trabalhos e os Dias,
adverte seu irmão sobre o período certo para se navegar e os riscos
de se encarar o mar durante o outono/inverno, aconselhando-o que
navegue durante o verão quando,
Então as brisas estão regulares e o mar propício;
tu, seguro, confiando nos ventos, a rápida nau
arrasta até o mar e coloca nela toda a tua carga.
Esforça-te para voltar para casa o mais rápido possível:
não esperes o vinho novo e a chuva do fim do verão,
o inverno que vem a seguir e os temíveis sopros do Noto,
que levanta o mar, acompanhando a chuva de Zeus
abundante no fim do verão, e torna o mar difícil.
Existe uma outra navegação para os humanos: a da

474
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

primavera.
Logo que o tamanho da pegada que a gralha faz andando
parecer aos homens igual ao das folhas
na ponta de um ramo de figueira, então o mar é navegável.
Essa é a navegação da primavera; quanto a mim,
não a recomendo; não me agrada em meu coração (Os
Trabalhos e os Dias, 663-683).
Ainda que se aventurando no mar, os gregos permaneceram
um povo essencialmente ligado à agricultura e às formas de
pastoreio de animais de médio porte. Contudo, o clima da região,
aliado às condições de fertilidade do solo da maior parte das terras
banhadas pelo Mediterrâneo no continente grego, não favoreceu o
desenvolvimento de uma agriculta em níveis satisfatórios. A terra
produzia, quando muito, o essencialmente necessário à subsistência.
Tal condicionamento fez com que o mar adquirisse um papel de
extrema importância na complementação da dieta desses povos, assim
como abriu portas à exploração de novas terras que, esperava-se,
fossem mais férteis, servindo também ao enxugamento da população
nas áreas de origem. Um menor índice demográfico implicava,
necessariamente, num consumo menor dos já esparsos recursos
alimentares disponíveis (VIDAL-NAQUET, 2002; LEFÈVRE, 2013).
Consideremos ainda que,
se o clima imprevisível contribuiu para tornar a vida
no campo uma empreitada precária, as ações humanas
também causaram crises. A guerra atrapalhava o ciclo
agrícola ou, mais gravemente, resultava na deliberada
destruição de plantações [...] (ALCOCK, 2002, p. 51).
Isso posto, podemos concluir que a fome e a carestia devem
ter sido uma ocorrência persistente na sociedade grega.
Dependendo das forças particulares em jogo, esses
episódios variavam em escala e gravidade, às vezes
afetando famílias, às vezes comunidades, às vezes regiões
inteiras da Grécia (ALCOCK, 2002, p. 64).
Em função disso,

475
Das utopias ao Autoritarismo

o abastecimento será a preocupação principal da maioria


das cidades e, até uma época avançada, um bom número
de conflitos deve-se a questões de fronteira, visando à
conquista de terrenos suplementares ou ao controle de
um ponto de água, ao passo que as situações de guerra
civil estão sempre mais ou menos ligadas ao regime da
propriedade fundiária (LÉFREVE, 2013, p. 41).
Reunidas, essas condições climáticas acabam por
configurar o
quadro de um meio ambiente sombrio, propiciando uma
vida dura e precária para os seus habitantes”, a qual fica
muito distante da visão mais tradicional da sociedade
grega, concentrada nos monumentos e nas realizações
culturais (ALCOCK, 2002, p. 51).
Parafraseando Braudel, vemos que em momento algum de
sua história, o Mediterrâneo “como mar e terra” foi um paraíso, como
por vezes o supomos em função de seus peixes, vinhedos e olivais.
Pelo contrário:
Ali foi preciso construir tudo, muitas vezes com mais
dificuldades do que em qualquer outra parte. O arado de
madeira consegue apenas arranhar o solo friável e sem
espessura. Quando o furor das chuvas é excessivo, a terra
móvel escorrega como água para o pé das encostas. A
montanha corta o tráfego, ocupa espaço demais e limita
as planícies e os campos, reduzidos muitas vezes a algumas
faixas estreitas, a alguns punhados de terra. Um pouco
além, começam os caminhos íngremes, difíceis para os pés
dos homens e para as patas dos animais (BRAUDEL, 1988,
p. 15).
O mar representou, nesses termos, oportunidade de
vida para essas comunidades. Era fonte de alimentos, como já o
assinalamos, era via de deslocamento, sinônimo de esperança àqueles
que nele se aventuravam. Em função dessas preocupações com o
abastecimento, as cidades gregas empreenderam, como vemos nos
poemas homéricos, batalhas por terras, recursos minerais e hídricos,
“também é aí que a grande aventura da colonização arcaica encontra
sua principal motivação” (LEFÈVRE, 2013, p. 41). Mas tal empreitada

476
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

trouxe consigo um conjunto de representações sobre o espaço


marítimo, em que o sagrado se fez presente. Ao mesmo tempo que era
sinônimo de vida, o mar abrigava seres mitológicos dos mais variados.
Por isso, consideremos que
a água é o elemento que possui distintas significações, quer
no plano material (econômico e social), quer no plano
imaginário (político e cultural), variando de sociedade para
sociedade, nos diferentes contextos histórico-culturais.

A representação do mar na Odisseia


Em nossa análise da Odisseia buscamos destacar as
representações elaboradas por Homero acerca do mar e do conjunto de
fatores (mágico-religiosos, climáticos e ambientais) a ele relacionados.
Trata-se de uma perspectiva que, de um ponto de vista teórico-
metodológico, encontra-se na esteira da história cultural, que tem
como principal objetivo, “[...] identificar o modo como em diferentes
lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,
pensada, dada a ler”. Em face de tal orientação, “uma tarefa deste
tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito às classificações,
divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social
como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real”
(CHARTIER, 2002, p. 16-17), nos levando a discutir as características
acima apresentadas: o Mediterrâneo como forma da história, como
mar e terra.
Tais elementos da espacialidade mediterrânea, associados
a uma visão de mundo que tendeu a enxergar o sagrado e suas
manifestações em todos os espaços e, em especial, nos naturais, fez
com que o mar se tornasse uma instância hierática, despertando nos
homens e mulheres que com ele estabeleceram alguma forma de
contato, um sentimento de medo-respeito, de apreensão diante de
sua grandeza. Tal sentimento encontra-se manifesto nos 24 Cantos
que compõem a Odisseia, chamando nossa atenção o fato do poeta ter
evocado o “mar cinza” sempre que uma personagem queria expressar
sua apreensão e cautela diante das águas marinhas. Numa análise

477
Das utopias ao Autoritarismo

sobre a Ilíada, Soares (2016, p. 100), afirma que tal percepção do espaço
marítimo se deu em função, da cor cinza lembrar ao homem grego,
as tonalidades do mar quando afetado pelas tempestades de inverno,
classificadas “como sendo devastadoras e, por sua vez, presentes no
cotidiano das populações instaladas em torno do Mediterrâneo”.
Na abertura da Odisseia, o poeta conta o retorno dos gregos
idos à Guerra de Tróia e nos fala sobre:
“[...] as muitas dores amargadas
no mar a fim de preservar o próprio alento
e volta aos sócios (Odisseia, C. I. v. 5-4).
Um mar de tormentas, mas que esteve presente nos
principais feitos que os aedos, ao cantarem o seu mundo, quiseram
destacar. Homero nos fala, portanto, de um “mundo grego” em que
o mar faz parte do cotidiano. Em Fédon, Platão descreve tal relação
numa passagem clássica, lembrada sempre que se deseja realçar o elo
existente entre os gregos antigos e o espaço marítimo:
Ao depois, continuou, que também se trata de algo
imensamente grande e que nós outros, moradores da
região que vai do Fásis às Colunas da Hércules, ocupamos
uma porção insignificante da terra, em torno do mar à
feição de formigas e rãs na beira de um charco (Fédon,
LVIII, 21-24).
Não precisemos avançar no tempo, chegando ao Período
Clássico (época da escrita de Fédon), para perceber como esse espaço
figurou na vida dos gregos. A Odisseia nos fornece, sobremaneira,
os termos dessa relação. Quando desceu ao Ades e tendo consultado
Tirésias, o vate, este último recomendou a Odisseu como agir caso
quisesse retornar à Ítaca:
Na volta punirás os petulantes.
Exterminados no palácio os pretendentes
com armadilhas, cara a cara, a pique brônzeo,
empunha o remo exímio e parte, até alcançar
a terra em que os homens nada sabem do oceano,

478
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

tampouco têm por hábito salgar manjares,


não sabem a feição do barco rostipúrpuro,
nem manuseiam remos, asas dos navios (Od., C. XI. v.
120-125).
Nos versos acima transcritos, o conhecimento do homem
grego acerca do mundo, seus valores e costumes, acompanha par a par
o compartilhamento de saberes sobre o universo marítimo. Aqueles
que não comungam de tais práticas integram, por consequência, um
“outro” mundo, com o qual não se identificam, um universo “bárbaro”.
Tal condição envolve, nesses termos, uma relação de identidade
versus alteridade que se manifesta por meio conhecimento/domínio
do espaço marítimo. Uma tal atitude em relação ao outro, sabemo-
la, não envolve apenas a percepção sobre o espaço, isso porque “[...]
a descoberta do outro tem vários graus, desde o outro como objeto,
confundido com o mundo que o cerca, até o outro como sujeito,
igual ao eu, mas diferente dele, com infinitas nuanças intermediárias”
(TODOROV, 2014, p. 360). O espaço, como categoria analítica, atua
na construção da alteridade grega, moldada pela forma como foi
organizado: ao navegarem pelo Mediterrâneo, os gregos arcaicos o
permearam de ritos mágicos, o tomaram como via de deslocamento e
exploraram seu potencial como fonte de víveres, fazendo dele o “nosso
mar”, dotando-o, portanto, de sentido. Em função disso, “o significado
espacial é obtido através das práticas sociais” (NAVARRO, 2007, p.
12) expressas no culto às divindades marinhas e no temor diante das
águas que deixam de ser, tão somente, um elemento físico, e passam
a portar uma dimensão mágico-religiosa que implicou em um modo
específico do homem grego arcaico interagir com o mar que não foi
a mesma do Período Clássico e Helenístico, quando instrumental
náutico encontrava-se mais desenvolvido. Em função disso, é que “no
campo científico, a água é objeto da química, da geologia e da física
— das chamadas ciências naturais —, como também o é das ciências
humanas” (CUNHA, 2000, p. 16).
Como bem ressaltou Navarro (2007, p. 3), o espaço atua
como “[...] uma dimensão existencial essencial do ser humano”. Para
melhor entender a afirmativa, analisemos, primeiro, como Pearson

479
Das utopias ao Autoritarismo

e Richards (2005), se valendo de uma metáfora elaborada por Marx,


relacionaram “construção do espaço” e “consciência humana”.
Segundo considerou Marx (2013, p. 188):
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e
uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura
de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o
pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro
tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a
cera.
O ser humano, não sendo o único animal a construir alguma
coisa, projeta o que será construído (antes) em sua consciência.
Desse modo, “as pessoas em todos os lugares agem em seu ambiente
e estão cientes desse ambiente, praticamente e discursivamente”
(PEARSON; RICHARDS, 2005, p. 2). Não sendo a consciência inerte,
a ação humana interage com o meio, não é determinada por este. A
assertiva dos autores não vale apenas para o ambiente construído,
pois, “o que escolhemos da natureza para servir aos nossos propósitos,
também chamamos de arquitetura” (PEARSON; RICHARDS, 2005,
p. 2). Como os gregos experimentaram e representaram o ambiente
natural, sobretudo o mar, é o que a Odisseia, num quadro mais amplo,
nos permite compreender. Assim, a visão de mundo “[...] é construída
dos elementos conspícuos do ambiente social e físico de um povo.
Nas sociedades não tecnológicas [dentre as quais podemos incluir os
gregos antigos], o ambiente físico é o teto protetor da natureza e sua
miríade de conteúdos. Como meio de vida, a visão de mundo reflete
os ritmos e as limitações do meio ambiente natural” (TUAN, 2012, p.
116).
O espaço marítimo experimentado pelos gregos antigos,
foi alvo de várias representações, algumas já expostas: o mar como
paisagem do medo, mas também como morada, padrão de civilidade,
de modo que a atitude em relação a ele era ambivalente: “O mar tinha
beleza e utilidade, mas era também uma força escura e assustadora”
(TUAN, 2012, p. 171). Tais representações, ambivalentes em si
mesmas, estiveram enraizadas num conjunto de práticas sociais
próprias da Idade Homérica (compreendida como o período entre os

480
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

séculos X e VII a.C.), em que o mar, conforme afirmamos, serviu aos


interesses ligados à subsistência dos povos gregos, cadentes de uma
agriculta que lhes fornecesse alimentos em quantidade suficiente à sua
subsistência. Dessa maneira, “[...] nem as inteligências nem as idéias
[em relação ao mar] são desencarnadas” (CHARTIER, 1991, p. 180).
Citando Marcel Mauss, Chartier (2002, p. 18), explica que “mesmo as
representações colectivas mais elevadas só têm uma existência, isto é,
só o são verdadeiramente a partir do momento em que comandam
actos”. Homero, nesses termos, não falou de um mundo apartado
da realidade social de um povo, pelo contrário, as representações
elaboradas em seus poemas estiveram, a todo momento, em simbiose
com o mar, os ventos, a terra, palco da vida concreta. Na avaliação de
Vidal-Naquet (2002, p. 32), “existe efetivamente um mundo que, aso
olhos de Homero, é um mundo real. O indício que denota a ‘realidade’
desse mundo é o fato de que os homens cultivam a terra e que esta
produz trigo para fazer pão”.
Tomando de empréstimo os pressupostos teóricos da
história cultural, podemos dizer que as representações e as práticas,
conjuntamente, significam e constroem o mundo social. De maneira
que na avaliação de Chartier (1991; 2002), uma tal história cultural nos
permite articular três modalidades da relação com o mundo social:
em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de
delimitação que produz as configurações intelectuais
múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente
construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as
práticas que visam fazer reconhecer uma identidade
social, exibir uma maneira própria de estar no mundo,
significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por
fim, as formas institucionalizadas e objectivadas graças
às quais uns “representantes” (instâncias colectivas ou
pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada
a existência do grupo, da classe ou da comunidade”
(CHARTIER, 2002, p. 23).
Nos atemos, sem que isso implique numa desarticulação
com as demais configurações apresentadas, à segunda, ou seja:
as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade

481
Das utopias ao Autoritarismo

social, exibir uma maneira própria de estar no mundo,


significar simbolicamente um estatuto e uma posição
(CHARTIER, 2002, p. 23).
Dentre as características que fizemos menção ao longo
deste texto, como sendo próprias do Período Arcaico, encontra-se o
surgimento no “mundo grego” da edificação de templos dedicados
exclusivamente ao culto à uma determinada divindade (BURKERT,
1993; BUXTON, 2000). Nos períodos que antecederam o século VIII
a.C., os ritos e cultos eram realizados ou em santuários naturais ou,
mais frequentemente, na Idade do Ferro (séc. XI a VIII a.C.), junto a
estruturas mortuárias (SOUZA, 2010).
A religião grega, evidentemente, não é uma invenção
do século VIII a.C., mas nesse contexto, os gregos haviam-na
incorporado em todos os espaços pelos quais circulavam. Com o mar,
conforme já destacamos, não foi diferente. Nele, os mais diversos
serem marinhos se manifestaram: Oceano, Tétis, Anfitrite, Nereu e
suas filhas, as Nereidas, Proteu, Cila e Caríbdis são, na Odisseia, as
divindades secundárias mais recorrentes. Mas se por um lado figuram
tantas deidades, não resta dúvida que o senhor dos mares à época
de consolidação do poema fora Possêidon, identificado como o
“monarca dos mares”, o “abala-terra”. O deus aparece recebendo culto
em diversos momentos da narrativa e é, sobretudo, uma divindade
temida pelos gregos que o viam associado às tempestades de inverno.
Fora o responsável pela perseguição a Odisseu, reunindo as temíveis
forças das águas e dos ventos e lançando toda sorte de azar sobre o
herói.
Acerca de tal envolvimento com o sagrado, recordemos que
ao analisar a obra de Rudolf Otto, Das Heilige (1917), Eliade (2013,
p. 13 et seq.), considera a originalidade do autor ao descobrir “[...]
o sentimento de pavor diante do sagrado, diante desse mysterium
tremendum, dessa majestas que exala uma superioridade esmagadora
de poder; encontra o temor religioso diante do mysterium fascinans”
(ELIADE, 2013, p. 16). Tal sentimento esteve presente no “mundo
grego” que Homero nos permite conhecer por intermédio de seus
poemas. Possêidon é o exemplo, par excellense, de tal expressão

482
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

religiosa. Mas sem desconsiderar os aspectos suscitados por Otto,


Eliade propõe outra grade de interpretação para pensar o fenômeno
do sagrado. Busca entendê-lo “[...] em toda a sua complexidade, e não
apenas no que ele comporta de irracional” (ELIADE, 2013, p. 16).
Segundo o autor, “não é a relação entre os elementos não-racional e
racional da religião [...]” que o interessa, “mas sim o sagrado na sua
totalidade” (ELIADE, 2013, p. 17).
Os deuses comungam, na Odisseia, de todos os momentos
da vida social dos homens, desde os mais corriqueiros em ambiente
doméstico, como no preparo e consumo de alimentos, até aqueles
mais elaborados, que demandavam o empenho de recursos difusos do
oîkos, como foram as expedições marítimas. Dessa maneira, podemos
afirmar que eles experimentaram, numa alusão à obra de Eliade,
o “sagrado em sua totalidade”. Sob tal configuração, foram capazes
de elaborar práticas em favor do reconhecimento de sua identidade
social. Por isso, o templo emerge como símbolo máximo de expressão
da vida religiosa, assim como a representação construída por Homero
acerca do mar na condição de espaço de hierofanias. Vemos que “o
homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se
mostra como algo absolutamente diferente do profano” (ELIADE,
2013, p. 17). É com o objetivo de explicar o ato da manifestação do
sagrado, que o autor emprega o termo hierofania. Para Eliade,
este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão
suplementar: exprime apenas o que está implicado no seu
conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos
revela (ELIADE, 2013, p. 17).
O mar, ao comportar tais hierofanias fez com que a água
fosse um elemento que “[...] está, assim, na natureza, e, a um só
tempo, na cultura” (CUNHA, 2000, p. 16). Os gregos, possuindo uma
vida religiosa em comum, moldaram sua identidade sob a ótica do
sagrado, isso porque “a construção da identidade é tanto simbólica
quanto social” (WOODWARD, 2014, p. 10) e essa “[...] está vinculada
também a condições sociais e materiais” (WOODWARD, 2014,
p. 14). O homem grego ao “marcar” a presença do sagrado pelos
diversos espaços que ocupou, assumiu uma posição de sujeito que o

483
Das utopias ao Autoritarismo

revelou como sendo essencialmente religioso. Uma representação de


si e do mundo sob a ótica do sagrado. Nesses termos, o mar atuou
como um grande sistema simbólico e as representações sobre ele, das
quais falamos ao elencar os exemplos extraídos da Odisseia, incluem
práticas de significação
e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados
são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por
meio dos significados produzidos pelas representações
que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos
(WOODWARD, 2014, p. 17-18)
e, assim, o fizeram os gregos da Idade Homérica.

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Das utopias ao Autoritarismo

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486
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Patrimônio e educação: a visita técnica e o


estudo do meio a partir de uma abordagem
interdisciplinar
Rossana G. Britto1
Adriana N. Campos2

Se nossas vidas são dominadas pela busca da


felicidade, talvez poucas atividades revelem
tanto a respeito da dinâmica desse anseio –
com toda a sua empolgação e seus paradoxos –
quanto o ato de viajar.
Alain de Botton

Este artigo tem como objetivo principal a análise teórica e


empírica da visita técnica3, enquanto estratégica educacional, em
patrimônios culturais, reconhecidos ou não pelos órgãos públicos, em
aulas de História em diferentes níveis de ensino.

1  Doutora em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro


(UERJ). Professora de História do Brasil na Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES), desde 2011. Pesquisadora do Laboratório de História das Interações Político-
Institucionais (HISPOLIS/UFES).
2  Professora da rede municipal de Santos. Mestra em Arqueologia na área de
Gestão de Patrimônio, pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo (USP). Atualmente trabalha no Departamento Pedagógico da Secretaria de
Educação de Santos (SP).
3 No campo da Educação, as visitas técnicas no ensino superior podem
configurar-se como estratégias alternativas para a inserção do estudante universitário
nos problemas socioambientais nos quais estão inseridos. As visitas técnicas são
experiências práticas que possibilitam o estudo da realidade através do deslocamento
de alunos para ambientes fora de seu cotidiano (a sala de aula). Constituem
momentos que permitem aos estudantes um reconhecimento do ambiente que lhes
circunda e desta forma criar um senso crítico sobre ele. As viagens educacionais
ou as visitas técnicas tiveram como precursor o pedagogo francês Celestin Freinet
(1998), que considerava essas saídas a campo como fonte natural de aprendizagem
em nossa família e na sociedade, ou seja, através do erro, da tentativa e da experiência
(FREDERICO; NEIMAN; PEREIRA, 2011).

487
Das utopias ao Autoritarismo

O estudo do meio e a visita técnica propiciam o


desenvolvimento de um olhar sobre a realidade que ultrapassa os
dados visíveis, pois por meio da mediação de um professor, o aluno
poderá observar características do modo de viver e perceber o que não
está explícito. Olhar um espaço como um objeto investigativo é estar
sensível ao fato de que ele sintetiza propostas e intervenções sociais,
políticas, econômicas, culturais, tecnológicas e naturais, de diferentes
épocas, no diálogo entre os tempos, partindo do presente. É, também,
desconstruir a visão espontânea do local, impregnada de ideias,
ideologias, teorias científicas e mitos não conscientes, da cultura
contemporânea, tendo a oportunidade de reconstruir a interpretação
do mundo, encarando-o de modo novo. Nesse sentido, até os espaços
escolares e familiares podem ser escolhidos como objetos de estudo
do meio. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s):
É no local, conhecendo pessoalmente casas, ruas, obras
de arte, campos cultivados, aglomerações urbanas,
conversando com os moradores das cidades ou do campo,
que os alunos se sensibilizam, também, para as fontes de
pesquisa histórica, isto é, para os “materiais” sobre os quais os
especialistas se debruçam para interpretar como seria a vida
em outros tempos, como se dão as relações entre os homens
na sociedade de hoje ou como são organizados os espaços
urbanos ou rurais. O estudo do meio é, então, um recurso
pedagógico privilegiado, já que possibilita aos estudantes
adquirirem, progressivamente, o olhar indagador sobre o
mundo de que fazem parte (BRASIL, 1998, p. 89).
Porém, visitas técnicas e estudos do meio às cidades
históricas4 têm sido uma ação permanente na área da educação e
turismo. Esta experiência realizada com fins pedagógicos ou turísticos
demonstram problemáticas cada vez mais contundentes em relação à
construção de cidades - espetáculo pelas quais passam pelo processo
de museificação e são conservadas ou inventadas com o intuito de
representar um passado.

4  A paisagem urbana de Ouro Preto (MG) foi a primeira cidade brasileira a


ser tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
em 1938. O IPHAN foi precedido pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN) criado em 13 de janeiro de 1937.

488
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Tal fato, pode ser exemplificado em cidades como Paraty


(Rio de Janeiro), Tiradentes e Ouro Preto (Minas Gerais) ou em
cidades cinematográficas, como por exemplo, Gramado (Rio Grande
do Sul) e Blumenau (Santa Catarina). Há ainda as cidades revitalizadas
ou até reconstruídas, caso da cidade de Santos, localizada no estado
de São Paulo, onde é possível perceber o uso das representações
arquitetônicas, que demonstram diferentes temporalidades que vão
desde a ocupação dos sambaquieiros, perpassando pela ocupação
portuguesa chegando ao presente com marcas visíveis e invisíveis de
diferentes períodos da nossa história. Na grande maioria, a imagem
da cidade que é refletida ou que se procura retratar busca valorizar
o patrimônio material, em especial o de pedra e cal, estimando uma
herança europeia idealizada. Essa tendência também pode ser sentida
e vivenciada em cidades da América Latina, como por exemplo, a
cidade de Montevidéu e Colônia do Sacramento, no Uruguai.
Segundo Pierre Jeudy (2005), a transformação de
centros históricos urbanos em objetos de conservação patrimonial
museificados, tão em voga a partir dos anos noventa no Brasil, tiveram
como mola impulsionadora o turismo como atividade econômica
capaz de gerenciar e injetar recursos capazes de promover essa
revitalização.
O que o autor critica nesse processo é a exacerbação da
estética urbana que transforma a cultura em objeto que dá origem a
produtos globalizados. Nesse sentido, segundo o autor
o mundo deve se tornar um grande museu para que a
identidade, a etnicidade, a alteridade não sejam mais
do que rótulos, e que a invocação destas últimas sirva
sobretudo para o comércio turístico mundial (JEUDY,
2005, p. 42).
Mas como utilizar as visitas técnicas e estudos do meio como
formas de refletir sobre o patrimônio e ir além do senso comum? É
possível realizar visitas técnicas e propor novas interpretações do lugar
e buscar a construção de conhecimentos? A experiência na realização
de processos educativos sobre patrimônio cultural requer pensar no
desenvolvimento do conceito de patrimônio e como, ao longo do

489
Das utopias ao Autoritarismo

tempo, inúmeros significados foram construídos. Quando falamos


em patrimônio é comum associarmos a palavra ao conjunto de bens
de uma família, ao valor monetário dos bens materiais, ou ainda ao
patrimônio histórico composto pelos bens arquitetônicos de um lugar.
De uma forma ampla, ao percebermos a preocupação dos governantes
em preservar os bens ao longo da nossa história, deparamo-nos com
os grandes monumentos, representativos de uma determinada classe
social. Isso é demonstrado pela primeira carta patrimonial, a carta de
Atenas de 1931 que valorizava a preservação de grandes edifícios e
grandes monumentos com “valor histórico e artístico”, com ênfase
no patrimônio nacional, levando em consideração que a carta surgiu
em um contexto entre guerras e sob o impulso do nacionalismo
(FUNARI; PELEGRINI, 2006, p. 22).
Contudo, a concepção atual é muito mais abrangente.
Considera-se patrimônio tudo o que é criado pela natureza ou pelo ser
humano e que é de interesse da sociedade manter preservado devido
ao seu significado ou valor, seja histórico, artístico, paisagístico,
arqueológico, ecológico ou por representar os costumes ou
conhecimentos de um povo (LIMA, 2007 p. 51). Segundo Cavanaghi,
patrimônio cultural pode ser definido como:
uma atração e ao mesmo tempo um produtor de memórias
do grupo que o edificou e o preserva. Ele continua existindo
porque há, em sua interpretação e em sua ressignificação
constantes, o modelo ideal no qual as forças sociais
hegemônicas se mantêm na lembrança daqueles que os
visitam ou participam de eventos ligados a sua manifestação,
tal qual uma festa tradicional na qual o patrimônio cultural
intangível é o elemento de atratividade. Nesse momento
da visita, a história manifesta-se e concretiza as relações
sociais entre os indivíduos (CAVANAGHI, 2013, p. 174).
Assim, de uma certa forma, ao longo dos anos, o uso do
patrimônio, material ou imaterial, por meio de representações para
uma determinada classe e demais manifestações culturais de um povo,
sempre estiveram presentes nas escolas e universidades brasileiras,
seja por meio de visitas a museus, a centros históricos ou em materiais
pedagógicos. Nesse sentido, a educação patrimonial pode ser

490
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

compreendida a partir de duas nuances, de uma visão tradicional, que


reforça uma história linear positivista e, nesse caso, os patrimônios
escolhidos para representar essa sociedade são portadores dessa visão
e reforçam ou ilustram verdades, ou uma visão construtivista, que
apregoa uma história composta de múltiplas abordagens e feita por
diferentes sujeitos históricos.

Estudo de caso: experiências em Ouro Preto


Ouro Preto em Mina Gerais é umas das cidades históricas
do Brasil mais visitadas no mundo. Tanto por turistas e curiosos
quanto por estudantes dos mais diversos níveis educacionais. A cidade
de Ouro Preto, nascida nos fins do século XVII, ainda hoje conserva
identidade e singularidade capazes de proporcionar fruição estética
peculiar de resgate da memória e do alheamento da cotidianidade.
Cidades-labirinto, como Ouro Preto, não foram
inicialmente planejadas segundo um sistema de medição, como
ocorre nos projetos das cidades modernas, mas são ao mesmo tempo
arquitetura e paisagem, onde monumentos, edificações, becos e ruas
estão inseridos nas montanhas...onde a única continuidade é realizada
por intermédio da mediação do olhar (PEREIRA, 2011, p. 12).
A cidade de Ouro Preto tem a estética do labirinto. O que
seria a estética do labirinto? Cidade cravada no alto, cidade colonial
com aclives e declives em pedra moleque. Cidade labiríntica que atiça
a curiosidade da descoberta. Andar por estas ruas centenárias, foi
para os alunos da graduação em História da Universidade Federal do
Espírito Santo a experimentação do ofício em espaços abertos, fora
das salas de aula.
Em Ouro Preto, a ocupação das serras e a fixação dos
povoados próximos aos córregos, rios e encostas dos
montes em decorrência da busca incessante pelo ouro e
pedras preciosas, somadas às contingências dos períodos
de construção da cidade, deu origem às ruas tortuosas e
ladeiras íngremes que se acomodavam à configuração
original do sítio. O crescimento do organismo urbano por

491
Das utopias ao Autoritarismo

meio da somatória de novas casas, na forma de mônadas


erguidas em vizinhança, deu origem a uma continuidade
de fachadas determinantes dos arruamentos de forma
semelhante ao que pode ser observado nas cidades
medievais europeias (PEREIRA, 2011, p. 11).
Foi uma organização dramática do espaço em busca do
ouro! Labirinto que esconde a visão exterior dos que a visitam, que
ficam imersos no universo de sua história colonial. As ruas de Ouro
Preto absorvem os seus visitantes de tal forma, que uma “volta ao
passado” torna-se certa através de uma vivência sensível. As visitas
técnicas familiarizam os alunos com os conteúdos estudados de uma
maneira agradável e lúdica. As visitas realizadas às cidades que são
patrimônio histórico promovem a educação patrimonial tão cara
nos dias de hoje com tantas depredações de monumentos e descaso
político. É uma ação educativa com atribuição de responsabilidades
para cada integrante da tarefa.
Visitas técnicas demandam as seguintes ações de seus
integrantes, coordenadas pelos docentes que buscam desenvolver
conhecimentos e habilidades relevantes para construção do saber
histórico: observação; descrição; pesquisa; registro; documentação;
representação; análise; comparação e síntese.
O lúdico e o criativo são elementos constituintes do homem
que conduzem o viver para formas mais plenas de realização; são,
portanto, indispensáveis para uma vida criativa e saudável, do ponto
de vista da auto-afirmação do homem como sujeito, ser único,
singular, mas que prescinde dos outros homens para se realizar, como
ser social e cultural, formas imanentes à vida humana. A ludicidade
é colocada em lugares periféricos da existência humana, enquanto o
ideal das sociedades contemporâneas é gerar produtos e resultados
(FERREIRA, 2004, p. 10).
No contexto capitalista, a produtividade e o lucro ocupam
o primeiro lugar na vida social. Atitudes lúdicas e valores espirituais
como criatividade, sensibilidade, humor, idealismo, altruísmo,
solidariedade, senso estético são colocados em planos secundários,
gerando resultados desastrosos para a vivência individual e coletiva

492
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

atualmente. Viajar com grupos de estudantes coordenados por


professores e monitores constitui uma experiência ambígua
pedagogicamente. São momentos únicos em que professores e alunos
se encontram sem a cobrança da sala de aula e das rotinas escolares ou
acadêmicas.
Os alunos de História – da disciplina História do Brasil
Colonial do segundo semestre de 2014, experimentaram a organização
da atividade em todo o seu planejamento logístico (Locação do ônibus,
reserva do “hostel”, contratação de um guia local, etc).
Entre os dias 13 e 16 de junho de 2014, a visita técnica a
histórica cidade de Ouro Preto em Minas Gerais concretizou-se. Os
alunos e os professores em um processo de aprendizagem intenso, com
visitas guiadas a museus, a centros culturais e às igrejas. A presença
dos alunos em espaços culturais, desperta a atenção dos turistas.
Não são turistas em viagens de férias. São sujeitos em processo de
aprendizagem e de investigação científica. Uma atividade como esta,
deste porte, constitui uma prática pedagógica com início, meio e fim.
O início é o planejamento; o meio é a concretização do evento e o fim
é constituído pelas atividades avaliativas que ressaltam a criatividade
e não a memorização
As igrejas e o barroco são as estrelas da apresentação do
guia oficial, assim como a história didática e linear da Inconfidência
Mineira que permeia o discurso do guia local. Narrativa enaltecedora
dos inconfidentes com pouca inserção nos contextos específicos da
Vila Rica insurgente e descontente com a tributação pesada da Coroa
Portuguesa (MAXWELL, 2009).
O interessante desta experiência, justamente é a possibilidade
de confrontar a história oficial (contada faz tantos anos e até séculos)
com as novas pesquisas sobre a cidade colonial de Ouro Preto das
suas origens à Inconfidência (1788-1789). Este exercício de confronto
entre as narrativas – narrativa oficial e narrativa acadêmica - é um dos
fios condutores para as atividades avaliativas em sala de aula.
No retorno desta viagem, os alunos realizaram apresentações
em power point com as fotografias acompanhadas de textos explicativos

493
Das utopias ao Autoritarismo

sobre a experiência na cidade, confrontando a visão historiográfica


oficial com as mais recentes pesquisas sobre a cidade e sua história.
(FURTADO, 2001). As fotografias também foram disponibilizadas
em uma página na rede social Facebook denominada Viajando
com Brasil Colonial.5 Nestas apresentações, uma experiência mais
intimista e de devaneio poético em relação à cidade foi demonstrada
pelos alunos pesquisadores que apresentaram detalhes de paisagens
naturais, ruas de pedra, igrejas e oratórios. É relevante ressaltar os
pontos favoráveis da visita. Um deles, é a preservação do patrimônio
natural, arqueológico e histórico. Os alunos aprendem esta atitude
e comportamento. E mais do que isso, desenvolvem a sensibilidade
histórica tão importante nos dias de hoje. Como diz o filósofo: “O
devaneio nos põe em estado de alma nascente” (BACHELARD, 1993,
p. 06).

Estudo de caso: experiências em Santos


A cidade de Santos, localizada no litoral do estado de São
Paulo, proporciona muitas possibilidades para realização de estudos
do meio valendo-se da cidade como espaço educativo, pois preserva
um número significativo de patrimônios referentes ao seu período
colonial, imperial e republicano.
Fundada em 1545 pelo português Brás Cubas, trazido para
o Brasil na esquadra de Martim Afonso de Souza em 1532, Santos
nasceu entre o Monte Serrat e o Outeiro de Santa Catarina como um
pequeno porto e é uma das cidades mais antigas do país devido à sua
importância na formação dos primeiros assentamentos portugueses
no século XVI, juntamente com o município de São Vicente, primeira
unidade política implantada pelos portugueses em sua colônia.
O Centro Histórico atual mantém o traçado original
colonial de muitas de suas ruas e vielas, pois, até a primeira década
do século XX, Santos conservava ainda todo o seu antigo aspecto
5  Viajando com Brasil Colonial é um projeto desenvolvido por Professores do
Dep. de História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) coordenado pela
Profa. Dra. Rossana G. Britto desde 2012.

494
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

colonial, mantendo suas ruas estreitas, poucos sobrados, casas baixas


e largos beirais (LANNA, 1996, p. 39). Contudo, a cidade estava se
transformando, crescendo a sua população, surgindo novos costumes,
mudando o seu traçado urbanístico.
O fato de ter preservado muito de suas características
coloniais pode ser elucidado pelo fator econômico, já que a cidade só
irá sofrer grandes transformações urbanísticas somente na passagem
do século XIX para o XX. Será com o advento da cultura do café
no planalto paulista e pela modernização do porto, como principal
escoadouro da produção brasileira, que Santos irá reafirmar a sua
função portuária e comercial que permanece até hoje.
Contudo, apesar das transformações decorrentes do café
e da materialização de visões de civilização, a cidade hoje reafirma a
sua identidade enquanto cidade histórica e turística, percebida pela
revitalização do Centro Histórico6 e do bonde turístico como marca
oficial da cidade.
A realização de roteiro histórico no Centro da cidade
iniciou-se em 1963, com a professora da Universidade Católica de
Santos, Dra. Wilma Therezinha7 que sempre valeu-se da paisagem
histórica e natural como estratégia para suas aulas de História.
A realização dos estudos do meio, em especial para alunos
de escola pública em Santos, organizado pela Secretaria de Educação,
realiza um roteiro capaz de abordar a história colonial do município
desde a sua fundação, com a chegada dos portugueses, contemplando
as transformações urbanas até os dias atuais, sem contudo, deixar de
lado, o conhecimento arqueológico que foi gerado ao longos dos anos
sobre os assentamentos pré-históricos e indígenas na região, assim
como as construções erigidas pelos colonizadores que não fazem

6  Instituído pela lei complementar nº 470/2003, o Alegra Centro é formado por


uma série de ações voltadas ao crescimento econômico e social do Centro Histórico,
repercutindo em toda a cidade. O projeto apoia a instalação de empreendimentos
em imóveis históricos voltados ao comércio, prestação de serviços, entretenimento e
turismo. Empresários recebem incentivos fiscais com a restauração dessas edificações.
7 Disponível em: <http://www.unisantos.br/upload/
menu3niveis_1370894618425_af_10_13.pdf>. Acesso em: 26 set. 2016.

495
Das utopias ao Autoritarismo

mais parte da paisagem urbana atual. Para tal, optou-se por analisar
a história de Santos a partir de uma visão interdisciplinar, onde são
abordados diferentes aspectos da nossa história, a partir dos conceitos
básicos da disciplina tais como tempo, fato e sujeito histórico, e dos
processos de transformações e permanências.
Os roteiros acercam-se dos suportes materiais tais como os
edifícios e monumentos tombados existentes no Centro Histórico,
além de mapas e fotografias antigas objetivando vislumbrar o passado
da cidade pelos olhos do presente, a fim de que nossos alunos sintam-
se parte de um lugar e de uma paisagem que está em profunda
transformação.

Referências Bibliográficas:
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: M. Fontes, 1993.
BOTTON, Alain de. A arte de viajar. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares
Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos
parâmetros curriculares nacionais / Secretaria de Educação Fundamental. –
Brasília: MEC, 1998. 174p.
CAVANAGHI, Airton José. Turismo, hospitalidade e Ensino de História.
In: SILVA, Marcos (Org). História, que ensino é esse? Campinas: Papirus,
2013, p. 173-183.
FERREIRA, A. F. et al. O lúdico nos adultos: um estudo exploratório nos
frequentadores do CEPE - Natal/RN. HOLOS, Natal, ano 20, p. 1-7, out.
2004.
FREDERICO, Isabela Barbosa; NEIMAN, Zysman; PEREIRA, Júlio César.
A Educação Ambiental através das visitas técnicas no Ensino Superior:
Estudo de caso. Educação Ambiental em ação, n. 38, ano X, Não paginado,
dez. 2011. Disponível em: <http://revistaea.org/artigo.php?idartigo=1123>.
Acesso em: 29 set. 2016.
FREINET, C. Ensaios de Psicologia sensível. São Paulo: M. Fontes, 1998.
FURTADO, J. P. Uma república entre dois mundos: Inconfidência Mineira,
historiografia e temporalidade. Revista Brasileira de História, São Paulo,
v. 21, n. 42, p. 343-363, 2001. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.

496
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882001000300005>. Acesso em: 20 de


out. de 2018.
FUNARI, P. P. A.; PELEGRINI, S. Patrimônio Histórico e Cultural. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
LANNA, Ana Lúcia Duarte. Uma cidade na transição: Santos 1870-1913.
São Paulo: Hucitec, 1996.
JEUDY, Pierre. O espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.
MAXWELL, K. A Devassa da Devassa. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
PEREIRA, Larissa de Souza. Ouro Preto e a Estética do Labirinto. 2011. 101
f. Dissertação (Mestrado em Urbanismo) – Pontifícia Universidade Católica
de Campinas, Campinas, 2011.

Anexos
Sobre o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional: 8

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional


(Iphan) é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura
que responde pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro.
Cabe ao Iphan proteger e promover os bens culturais do País,
assegurando sua permanência e usufruto para as gerações presentes
e futuras.
O Iphan possui 27 Superintendências (uma em cada Unidade
Federativa); 28 Escritórios Técnicos, a maioria deles localizados em
cidades que são conjuntos urbanos tombados, as chamadas Cidades
Históricas; e, ainda, cinco Unidades Especiais, sendo quatro delas no
Rio de Janeiro: Centro Lucio Costa, Sítio Roberto Burle Marx, Paço
Imperial e Centro Nacional do Folclore e Cultura Popular; e, uma em
Brasília, o Centro Nacional de Arqueologia.
O Iphan também responde pela conservação, salvaguarda
e monitoramento dos bens culturais brasileiros inscritos na Lista do
Patrimônio Mundial e na Lista o Patrimônio Cultural Imaterial da
8 Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/29>. Acesso
em: 4 nov. 18.

497
Das utopias ao Autoritarismo

Humanidade, conforme convenções da Unesco, respectivamente,


a Convenção do Patrimônio Mundial de 1972 e a Convenção do
Patrimônio Cultural Imaterial de 2003.
Histórico – Desde a criação do Instituto, em 13 de janeiro de
1937, por meio da Lei nº 378, assinada pelo então presidente Getúlio
Vargas, os conceitos que orientam a atuação do Instituto têm evoluído,
mantendo sempre relação com os marcos legais. A Constituição
Brasileira de 1988, em seu artigo 216, define o patrimônio cultural
como formas de expressão, modos de criar, fazer e viver. Também são
assim reconhecidas as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as
obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados
às manifestações artístico-culturais; e, ainda, os conjuntos urbanos
e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico.
Nos artigos 215 e 216, a Constituição reconhece a existência
de bens culturais de natureza material e imaterial, além de estabelecer
as formas de preservação desse patrimônio: o registro, o inventário e
tombamento.
Patrimônio Mundial segundo a lista o IPHAN:
Patrimônio Mundial Cultural:
• Brasília (DF);
• Cais do Valongo - Rio de Janeiro (RJ);
• Centro Histórico de Goiás (GO);
• Centro Histórico de Diamantina (MG);
• Centro Histórico de Ouro Preto (MG);
• Centro Histórico de Olinda (PE);
• Centro Histórico de São Luís (MA);
• Centro Histórico de Salvador (BA);
• Conjunto Moderno da Pampulha - Belo Horizonte
(MG);

498
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

• Missões Jesuíticas Guaranis - no Brasil, ruínas de


São Miguel das Missões (RS);
• Parque Nacional Serra da Capivara (PI);
• Praça São Francisco, em São Cristóvão (SE);
• Rio de Janeiro, paisagens cariocas entre a montanha
e o mar (RJ);
• Santuário do Bom Jesus de Matozinhos - Congonhas
(MG);

Patrimônio Mundial Natural:


• Complexo de Áreas Protegidas do Pantanal (MT/
MS);
• Complexo de Conservação da Amazônia Central
(AM);
• Costa do Descobrimento: Reservas da Mata
Atlântica (BA/ES);
• Ilhas Atlânticas: Fernando de Noronha e Atol das
Rocas (PE/RN);
• Parque Nacional do Iguaçu (PR);
• Reservas da Mata Atlântica (PR/SP);
• Reservas do Cerrado: Parques Nacionais da
Chapada dos Veadeiros e das Emas (GO).

499
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

O testemunho presente na ata das mártires


africanas Perpétua e Felicidade e seu uso no ensino
de história da África
Camila Fagundes Ribeiro 1

Introdução
Sabemos que a Lei 10.639 estabeleceu novas diretrizes e
bases para a educação nacional, incluindo no currículo oficial da
rede de ensino a obrigatoriedade da temática “história e cultura afro-
brasileira”, e que desde então profissionais da educação e editoras
de manuais didáticos vêm enfrentando desafios de promover novas
abordagens e métodos para o tratamento do conteúdo da história
africana. Em especial, os especialistas da área da história antiga se
deparam com a problemática de reconectar a antiguidade africana
à história do mundo ocidental e percorrer novamente os caminhos
das relações políticas e trocas culturais mediterrânicas. É um processo
de desconstrução da imagem de uma História da África isolada,
descolada e desconectada da história do mundo ocidental.
O artigo 26 previa que esses conteúdos seriam ministrados
nas escolas de ensino fundamental e médio, públicas e particulares, e
sendo a temática que aborde os conteúdos da cultura e história afro-
brasileira, o “estudo da História da África e dos Africanos” também
deve estar incluída. Essa premissa tem como objetivo o resgate
histórico da contribuição dos negros na formação da sociedade
brasileira. A partir disso, por meio do ensino de história e cultura afro-
brasileiras, poderíamos estimular e promover uma alteração positiva
na realidade vivenciada pela população negra. É um currículo que
pretende estimular a formação de valores, hábitos e comportamentos
que respeitem as diferenças e as características próprias de grupos e
minorias; a valorização da história, cultura e identidade da população
afrodescendente, combatendo o racismo e a discriminação e formando
1 Aluna mestranda da Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de
Ciências Humanas e Naturais. Programa de pós-Graduação em História (PPGHIS).

501
Das utopias ao Autoritarismo

cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial (SOUZA


NETO, 2015, p. 425).
É pensar em novas formas de articular passado, presente e
futuro para um ensino de História da África tratada em perspectiva
positiva, não só de denúncia da miséria e discriminações. O ensino de
História da África deve estar integrado aos temas a ela relacionados. O
que defendemos é que a história africana deve estar presente em sala
de aula desde a Idade Antiga explorando as relações entre as diversas
sociedades, superando uma narrativa de viés eurocêntrico (SOUZA
NETO, 2015, p. 426-427).
O uso de documentos clássicos pode nos ajudar a atingir
essa integração da História Antiga e História da África. A Ata de
martírio de Perpétua e Felicidade é documentação riquíssima e seu
uso pode contribuir para a revalorização da antiguidade africana,
dentro de um contexto de pluralidade cultural do império romano.
Além de servir como importante fonte sobre o ato do martírio cristão
antigo, é um documento que se caracteriza por conter elementos
que possibilitam tratar sobre a história das mulheres e trabalhar com
estudos das relações de gênero na sociabilidade da cidade de Cartago
no século III d. C.

Sobre a pluralidade religiosa romana em Cartago


Existia em Cartago, no século III d. C., um contexto de
pluralidade religiosa que não pode ser omitido, mesmo que esse
pluralismo seja um aspecto esperado, vale ressaltar que as formas de
expressões religiosas também foram variadas, em menor ou maior
grau, em diferentes partes do mundo romano. Não existe um quadro
único e geral que possa responder ou definir a complexidade das
experiências religiosas no império (ORTERO, 2017, p. 99). Outro
ponto importante é destacar que a difusão dos novos cultos greco-
orientais, os chamados cultos “de mistério”, não causou um declínio
da experiência religiosa romana, paganismo2, e a própria ideia de
2 Um sistema de práticas e cultos, com uma ampla e singular estrutura
fomentada também por regras estabelecidas no direito – ius fas. (OTERO, 2017, p. 98).

502
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

crise desse sistema religioso é um mito historiográfico, “o sistema


religioso ia bem e a crença dos deuses igualmente continuava a
determinar tudo, sobretudo em período de crise” (SCHEID, 1997,
p.135). Os novos cultos orientais assim como os movimentos cristãos
apenas acrescentaram novas formas e experiências religiosas.
O sistema religioso tradicional romano possui um caráter
público, que significa priorizar as práticas tradicionais e os cultos,
além de alguns outros que foram adicionados aos cultos ancestrais,
no espaço coletivo ou cívico. Esse elemento é de extrema importância
ao pensar sobre os impactos das práticas de martírio sobre sociedade
romana, tanto do ponto de vista da população comum, quanto às
autoridades e representantes imperiais.
As perseguições a esses mártires cristãos expressam uma
atitude de confronto entre a religiosidade do Império Romano e a
fé dos cristãos, que professavam e defendiam a sua fé em oposição
à concepção religiosa romana. Na África, especialmente após o II
século d.C., esta perseguição se amplia gradativamente na proporção
que o confronto se declara. Logo, o martírio teve uma participação
importante na formação e desenvolvimento do cristianismo africano.
Existe uma literatura bastante significativa sobre as práticas
de martírio cristão norte africano, em especial nos séculos II e III
d. C., expressa em três gêneros diferentes, os atos, as legendas e as
paixões. As paixões são relatos que acompanham os últimos dias de
vida de um mártir. As atas se caracterizam por serem documentações
que relatam decisões de caráter judiciário, então trazem as acusações
feitas e as justificativas da condenação. E a legenda é um gênero que
possui muitos elementos fantasiosos. Esses documentos demonstram
a preocupação que existia, por parte dos movimentos cristãos, em
registrar e descrever para variados públicos sobre as ações e atitudes
dessas pessoas excepcionais, esses mártires, que declararam seu
credo publicamente, e levaram essa confissão de fé até as últimas
consequências. Esses indivíduos servem como exemplo e modelo de
comportamento cristão para aqueles que se negavam a professar em
público um credo religioso, não apenas diferente, mas que entrasse
em conflito com o credo oficial do império (SIQUEIRA, 2006, p. 60).

503
Das utopias ao Autoritarismo

Essa literatura martirológica descreve uma riqueza e


diversidade dos movimentos cristãos no mundo romano, e traz
também a reação dos não cristãos à difusão dessas novas práticas de
confissão de fé em expansão por todo o mediterrâneo. E por meio
de documentações como a Ata de Perpétua e Felicidade podemos
alcançar a participação de indivíduos de diferentes categorias sociais
e de gênero: ricos, pobres, matronas, escravos e escravas atuando
como protagonistas numa narrativa que reafirma uma e outra vez
sua crença diante todos, das autoridades imperiais e da população em
geral, mesmo que provoque uma desordem, uma ruptura no status
quo da sociedade romana, que tinha uma maneira bem particular de
tratar os credos e o mundo sobrenatural. Vide a importância dada a
Pax Deorum, e a preocupação em manter esse estado de harmonia e
equilíbrio, de manter esse contrato com o divino, e a observância dos
ritos e cultos é imprescindível na manutenção dessa ordem.
A palavra martyr, literalmente, significa testemunho,
o termo passou a designar, a partir de meados do século II d. C.,
sobretudo para as comunidades cristãs, aqueles indivíduos, tanto
homens quanto mulheres, que morriam e sofriam em nome de sua
opção religiosa (SIQUEIRA, 2006, p. 61). A palavra martyr é uma
palavra grega, que significa testemunha, e martureo, testemunho. Este
último, necessariamente, precedia a morte. Para Erin-Ann Ronsse a
própria palavra “mártir” já indicava um caráter normativo. O mártir,
testemunha de algo, era alguém respeitável socialmente e com alguma
autoridade. Então, os cristãos confessores, sentenciados pela morte,
executados, transformados em mártires pelas suas comunidades e
pelas práticas discursivas, já estavam inseridos em contextos retóricos
do mundo greco-romano. Ao recusarem a prática do culto ao genius
do imperador quebravam a Pax Romanorum e a Pax Deorum. O
martírio encerrava em si uma grande problemática para o império,
que normalmente dialogava bem com essa pluralidade religiosa
(ORTERO, 2017, p. 29).
As pessoas que confessavam sua fé, que não aceitavam
praticar sacrifícios às deidades romanas, eram submetidas a sanções
e castigos previstos na lei, e a última consequência e condenação

504
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

mais dura era a sentença de morte. Essas pessoas eram condenadas


a uma morte exemplar, que aplacasse a ira e cólera dos deuses,
reestabelecendo a ordem social e harmonizando as relações entre
homens e deuses, e também servia como exemplo e provocar medo
em todo aquele que pensasse em ferir esse estado de equilíbrio.
Até o fim do século I d. C., a atitude primeira das autoridades
romanas quanto aos mártires era desencorajar as confissões. Segundo
Siqueira (2006), ao final do governo de Marco Aurélio, já podemos
perceber evidências de uma irritação substancial por parte da
população não cristã. Em El apologético, Tertuliano (1997) relata
pichações nas paredes que pretendiam desqualificar e estigmatizar os
cristãos, com acusações que envolviam temas tabus como canibalismo
e incesto, sempre os acusando pela ira dos deuses e por conseguinte
pelos desastres naturais que eram lidos como consequência desse
desequilíbrio nas relações entre os homens e o mundo sobrenatural.
Ao final do século II d. C., novas ações são adotadas pelas autoridades
imperiais para lidar com esses atos de martírio e afins. Principalmente
durante a dinastia dos Severos, as acusações de ateísmo e oposição
às divindades protetoras do império são respondidas com ações de
natureza mais violenta, em especial sobre aqueles que se recusavam a
efetuar qualquer tipo de ato ou rito religioso exigido pelas autoridades
imperiais e religiosas romanas.
O palco para os espetáculos das mortes desses indivíduos
transgressores eram os anfiteatros, com a capacidade de abrigar uma
imensa plateia assistia e acompanhava a execução desses homens e
mulheres que se negaram a abraçar e reconhecer os ritos e cultos do
sistema religioso oficial do Império.
Socialmente, o reforço simbólico interagia em ambas as
partes: entre aqueles que se divertiam e sentiam em seu
interior a morte como compensação da desobediência e
do risco da ira dos deuses e, publicamente na arena, entre
aqueles que repudiavam o medo aos deuses e acreditavam
que seguir o exemplo da morte de Jesus Cristo era o
caminho para a vida eterna (SIQUEIRA, 2006, p. 62).
Apesar de constituírem um grupo socio politicamente

505
Das utopias ao Autoritarismo

minoritário, esses mártires cristãos desafiaram as normas e a ordem


vigentes. Devemos salientar que as condenações não foram um
processo generalizado e contínuo, mas não deixou de provocar um
incômodo na população não cristã que via na prática do martírio um
perigo que precisava ser neutralizado.
O martírio representa inúmeras considerações, em especial,
ele serve como um reforço do referencial simbólico cristão, porque
está expressa no martírio a ideia de reviver a morte de Jesus, de
reproduzir uma narrativa sagrada que concede dons e santificação.
As reações populares, a estigmatização, a resposta e a violência do
poder imperial, só reforçava a narrativa martirológica, quanto maior
o desafio, maiores também são a graça e os dons desses indivíduos
que se fazem enfrentadores de uma ordem, e confessores de uma fé
(SIQUEIRA, 2006, p. 64).
Tendo em mente que a narrativa desses relatos tem objetivo
primeiro de enaltecer uma categoria de cristãos excepcionais, que
foram perseguidos por confessarem seu credo, não podemos esquecer
o intuito da construção textual de servir como exemplo para toda
a comunidade cristã, de elaborar imagens e modelos de conduta,
associando e revivendo fortes referências simbólicas cristãs e também
símbolos de poder e força que eram comum a toda a sociedade
romana.
Os mártires configuram-se numa categoria de santificação
especial, recebem dons e autoridade que os diferem dos bispos, das
virgens ou monges ascetas. Segundo Le Goff (2003), pouco a pouco
foram se tornando objeto de culto popular entre as comunidades cristãs.
O nosso artigo se concentra nas narrativas do martírio das
personagens Perpétua e Felicidade que morreram condenadas ao
suplício ad bestias, um castigo penoso e com intenções humilhantes.
O documento serve para a construção de um arquétipo de mártir e
é um interessantíssimo material que registra duas figuras femininas
do século III d. C. exaltadas por muito tempo na tradição cristã,
inclusive foram alvos de dois salmos escritos por Agostinho de
Hipona. Pensamos que o uso de documentações clássicas, como o

506
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

caso da Ata de Perpétua e Felicidade, contribuem para a revalorização


da História Antiga da África, e que poder trabalhar um tema como
a prática de martírio, como sendo uma manifestação cristã especial
e específica do norte africano, reforça a contribuição da história das
sociedades africanas para o patrimônio cultural material e imaterial
das sociedades ocidentais.

Ata de Martírio de Perpétua e Felicidade


A Ata selecionada para o estudo desse artigo é um dos mais
antigos representantes do gênero literário martirológico, relata o
martírio de Perpétua, Felicidade e seus companheiros catecúmenos.
Pode ser caracterizado na interseção dos dois gêneros literários,
chamados Acta e Passiones. Acta martyrum seriam, lato sensu, todos
os relatos mais ou menos amplos que contêm notícias de execuções
de réus cristãos após condenações oriundas de julgamentos oficiais
(BUENO, 2003, p.136-141).
As Passiones eram redigidas por testemunhas oculares, por
pessoas próximas aos acusados ou ao evento, e continham textos
atribuídos aos próprios réus supostamente narrando sua versão dos
acontecimentos. O sofrimento, as dores e a obstinação dos acusados,
os castigos infligidos a eles, e a narrativa dramatizada dos suplícios,
são traços característicos deste gênero. Acreditamos que os autores
das Atas utilizaram
registros do interrogatório dos réus (consultados em
documentos de arquivos públicos, ou mediante a consulta
de notas tomadas por estenógrafos), alegando fidelidade
aos eventos, sem uma preocupação maior com a elaboração
literária da narrativa (OTERO, 2017, p. 255).
Podem ser consideradas narrativas autobiográficas.
Sobre a datação do documento Passio Perpetuae partirmos
de dados da própria narrativa. O aniversário de Geta, em 7 de março
do ano 203, comemorado com jogos e espetáculos promovidos em
Cartago, e a referência ao edito imperial decretado por Septímio
Severo, em 202 (OTERO, 2017, p. 255).

507
Das utopias ao Autoritarismo

Esse texto está registrado num diário, teria sido redigido na


prisão pela própria Perpétua, que, antes de ser levada para o anfiteatro
para enfrentar sua sentença, entregou o documento a um membro
da comunidade de identidade desconhecida. Esse autor adiciona uma
introdução onde fala sobre a origem do texto e a vontade de Perpétua
de que fosse levado ao conhecimento de todos (SIQUEIRA, 2006, p.
65).
Após iniciar-se com o prólogo doutrinal, apresentando
e exaltando os acusados, segue-se a narrativa da própria Perpétua,
relatando a detenção – numa residência privada – em Tebourba
e nessa ocasião foram batizados. Logo após foram conduzidos ao
cárcere, podendo se tratar da prisão proconsular de Cartago. Perpétua
narra algumas de suas visões, ao passo que o martírio se aproxima, as
provações a serem enfrentadas se tornam mais duras, em concordância,
os dons e graças sobrenaturais se tornam mais frequentes e com um
poder simbólico mais expressivo.
Os confessores são levados ao fórum, e subiram à tribuna
para serem interrogados pelo procurador Hilariano, que inicia com a
confissão de identidade cristã. Acontece a condenação, sentenciando-
os às feras. Os confessores voltam ao cárcere onde aguardarão a
execução. Perpétua volta a narrar outras visões miraculosas com
premeditações. Depois é mencionada a solidariedade de soldado
que teria demonstrado compaixão pelos prisioneiros. A véspera
do combate Perpétua tem outra visão sobre o que viria a enfrentar
anfiteatro e qual seria o resultado. Saturo, nesse momento do texto,
narra suas visões. O redator retoma a narrativa confirmando as visões
nos informa a respeito da jovem Felicidade e seu estado de gravidez.
Prossegue informando sobre as condições dos detidos no cárcere,
e os confessores suplicam melhores tratamentos na prisão militar.
Finalmente, os mártires são levados ao anfiteatro, o redator apresenta
o enfrentamento da condenação, do suplício e da morte. O texto
termina com o epílogo final louvando os exemplos dos mártires.
O destinatário coletivo seria a própria comunidade de
cristãos cartagineses para uso em contextos rituais e de catequese.
Assim começava a ser produzida a leitura litúrgica das atas dos

508
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

mártires. O autor apresenta duas categorias de ouvinte: os cristãos


batizados e os catecúmenos, que deveriam ser educados na fé, e
que os que estavam presentes nestes eventos também serviam de
testemunhas. Podemos perceber uma intenção nessa literatura
à criação de modelos de comportamento para os cristãos
que fossem chamados perante um juiz, mas também, a
criação de um consenso na comunidade contra eventuais
controvérsias doutrinais, criando exempla cristãos
(OTERO, 2017, p. 252-268).
Como principais temas presentes na obra temos a
autoridade exercida em prol do cumprimento da lei e do exercício da
justiça, envolvendo diferentes agentes, os magistrados, juízes e seus
assistentes, os servidores. Especialmente, os procedimentos do direito
penal, que envolviam inquérito, julgamento e sentença. Do ponto de
vista dos cristãos podemos retirar a narrativa da história dos acusados,
submetidos ao processo criminal, interpelados pelo procurador em
exercício na província, e o inquérito. O réu é o mártir, apresentado
como uma testemunha, que confessa sua fé diante da ameaça de
morte na presença de um juiz, e chega à execução, ao martírio. Por
fim, o elemento que provoca toda a narrativa da condenação, no caso,
a recusa de sacrificar aos deuses romanos e através desse ato, pela
saúde do imperador.
Há ainda temas secundários como a multidão, por exemplo,
que simboliza a população romana cristã e não cristã que observaram
os mártires, incluindo aqueles a favor das execuções, e também aqueles
que os encorajaram, escutaram suas exortações, veneraram os objetos
que os acusados deixaram durante o combate na arena – como Saturo
que entrega um anel a um soldado, manchado do seu próprio sangue –
a multidão se integra à cultura do espetáculo. Também se apresentam
na narrativa os espaços de manifestação do poder, das ações jurídicas
e processuais, mas também elementos vinculados ao interrogatório, às
condições e ao tratamento dos réus na prisão, assim como alusões aos
espectadores, e à execução pública – ou seja, ao espetáculo público do
poder (OTERO, 2017, p. 259-261).
A Ata de Perpétua e Felicidade foi lida e estudada

509
Das utopias ao Autoritarismo

posteriormente por muitos autores, que sempre destacam a beleza da


narrativa:
as circunstâncias nas quais este breve trabalho foi escrito
e a simplicidade e sinceridade de seu tom fez-lhe um dos
mais comoventes exemplos que temos da literatura Cristã,
certamente da literatura em geral (LE GOFF, 1990, p. 49).
O fascínio que gerou em seus leitores que não parecem
refletir a função ou mesmo a construção da obra, mas parecem estar
ligadas ao impacto da composição narrativa. Concordamos com a
beleza da construção literária do texto, mas destacamos que a obra
tem muito mais temas possíveis de serem explorados, de uma riqueza
de dados políticos, religiosos e sociais que permite explorar de forma
particular a experiência do martírio cartaginês.
Uma questão interessante nessa narrativa é a função
curatorial dos grupos proféticos do norte da África que se constituía
como forma de criação de identidade no Cristianismo Primitivo e
operava enquanto propaganda de novos movimentos em disputa.
Também podemos destacar pela obra que o imaginário cristão da
época reverberava não somente imagens bíblicas, como também
captava imagens da Roma Imperial, retrabalhando-as e aplicando-as
a seus heróis: os mártires. Em sua primeira visão, por exemplo, vemos
Perpétua evocar armas que tem mais relação com uma autoridade
imperial, do uso da força, do que uma alegoria religiosa cristã: “Nos
lados da escada havia cravados toda classe de instrumentos de ferro.
Havia ali espadas, lanças, arpões, punhais, socos” (Martirio, 2003, p.
422, tradução nossa).
Perpétua é de longe a personagem que mais se destaca na
obra, sua identidade se transforma durante a narrativa de matrona
romana a matrona christi, quando confessa sua fé uma e outra vez,
quebrando uma ordem pré-estabelecida, um status quo, e nesse
processo ela se transforma num elemento de desordem para o meio
social romano. Suas visões e milagres a colocam como indivídua
híbrida, mediadora da ordem natural e sobrenatural ao passo que a
morte se aproxima, a morte que é o ato final, o ápice e realização do
próprio martírio. Sua intrepidez e coragem, primeiro sofre a violência

510
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

do pai e depois não pode mais ser atingida, enfrentando até Satanás.
Sua autoridade, se transformando de discípula, na visão da escada,
seguindo Saturus, a mestra do cristianismo primitivo, em seu martírio.
Toda a obra parece conspirar para o ápice atingido no
momento da morte de Perpétua, que é descrito com vibração e
emotividade. Ela é exaltada ao status de mártir ao não simplesmente
morrer, mas ser instrumento de sua própria morte, pela sobriedade
e quase insensibilidade a dor, causados, na trama narrativa, pela sua
inerente justiça. “Talvez uma mulher tão grandiosa, que foi temida
até por um espírito imundo, não poderia ter sido assassinada a não
ser que ela mesma quisesse” (Martirio, 2003, p. 438, tradução nossa).
O relato foi composto pela combinação dos imaginários
dos textos culturais do cristianismo, textos canônicos, mas que
também sofreram acessos por parte da imaginação do culto imperial.
Essas interpenetrações imagéticas parecem ocorrer somente nas
visões, onde há maior necessidade de criação de mundos. Dessa
forma, podemos concluir que as experiÊncias cristãs não tiveram
sua identidade moldada por conceitos distintos da cultura, mas
pela combinação de imaginários e formas imagético-redacionais
da sociedade romana às experiências cristãs do início da Era Cristã.
O diálogo com a cultura, desde antes da cristianização do Império
Romano, foram basilares na construção da identidade cristã no
terceiro século de nossa era e, em especial, tornaram-se parte
intrínseca à obra Passio Perpetua e do cristianismo, como um todo
(CARDOSO, 2015, p. 26).
A confissão pública tornou-se uma das estratégias e
expediente fundamentais para garantir e afirmar a identidade cristã
em solo africano. A publicidade do evento em contexto processual
e em lugares de espetáculo se constituiu em fortes elementos de
comunicação e de linguagem simbólica, reinterpretando os códigos
culturais de referência. A morte heroica fez nascer uma vasta literatura
cristã e se transformou em exempla para as suas comunidades,
intensamente valorizada em solo africano, haja vista a formação de
um calendário festivo em comemoração aos seus mártires. O relato
da paixão por Perpétua traz algumas ações curiosas que expressam a

511
Das utopias ao Autoritarismo

vontade de comandar a própria cena da sua exposição pública durante


o processo e da execução no anfiteatro
Porém, muitas vezes essa conduta foi lida como exemplos
de obstinação e de contumacia e, em contexto de vigilância
e regulação religiosa, pode ter significado uma pretensão
à desobediência cívica, ao admitir e persistir em atitude
de negligência, em relação a assumir práticas cúlticas
aceitas socialmente ou persistir em associações interditas
(OTERO, 2017, p. 227).
Perpétua e Felicidade são um exemplo da força feminina
que reveste a história cristã.
As duas protagonistas são, hoje, reconhecidamente
santificadas pelas Igreja Ortodoxa, Igreja Copta, Igreja
Anglicana e Igreja Católica, um testemunho que
prevaleceu à história marcada pela dominação masculina
(CARDOSO, 2014, p. 30).
A primeira, uma matrona que abandona família, status,
filhos, enfrenta o pai, autoridades imperiais e o próprio Diabo. A
segunda, uma escrava, que passa duas vezes por um ritual de libação,
de renascimento, que tem o parto adiantado para poder prosseguir
com a sentença, a morte, e a conclusão de seu martírio junto a seus
irmãos de fé. As duas que sofrem a humilhação pública pensada para
elas enquanto mulheres, a exibição de sua nudez lactante frente a todos
na arena pública, e a morte por uma vaca enfurecida, sempre frisando
seu estado de mulher, de fêmea. E mesmo assim, as duas controlam
sua própria morte na narrativa, e ascendem um título para poucos.

Considerações Finais
É necessário ser pensado, pelos profissionais, numa
abordagem que articule passado, presente e futuro para um ensino de
História da África tratada em perspectiva positiva, não só de denúncia
da miséria e discriminações. A história africana
deve estar presente em sala de aula desde a Idade Antiga
explorando as relações entre as diversas sociedades, superando

512
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

uma narrativa de viés eurocêntrico. O retorno dos clássicos à sala


de aula, pela riqueza e atratividade da narrativa, pode ser meio
convidativo no trabalho dos conteúdos de História da África.
Valorizando contribuições africanas para o patrimônio cultural
mundial, reafricanizando grandes autores personalidades da cultura e
conhecimento ocidental como Agostinho – que quase sempre tem sua
origem não mencionada.
É desconstruir no imaginário dos alunos a ideia de que
a África, antes da colonização moderna, não possuía História, não
possuía passado e patrimônio cultural. Desconstruir a noção de que a
civilidade chegou com a invasão europeia. É reapropriar à África o que
é de África, autores clássicos para a filosofia ocidental, experiencias
políticas e religiosas, conhecimentos diversos que contribuíram e
contribuem para a produção científica.
O caso da paixão de Perpétua e Felicidade reconecta o
estudo de História da África ao estudo de História Antiga, destaca
Cartago e a região norte africana nas relações do mediterrâneo,
explora uma experiência religiosa cristã característica da África
romana. Além de ser uma documentação elogiada por muitos autores
devido a beleza da composição narrativa e as alegorias do martírio,
é fonte rica para os estudos da história de gênero e da história das
mulheres: o relato de uma matrona e uma escrava que tornaram-se
mártires, e por isso receberam dons, graças e uma autoridade de poder
religioso heroicizantes diferente de qualquer outra categoria de poder
e autoridade sagrada cristã.
Esta ata de martírio possui contribuições enriquecedoras
e propícias para o ensino de História da África e para o tratamento
da antiguidade africana dentro da sala de aula, com uma belíssima
construção narrativa, ainda encerra conteúdos extremamente
convidativos.

Referencias bibliográficas:
CARDOSO, S. K. Identidade e autoridade no cristianismo primitivo:

513
Das utopias ao Autoritarismo

introdução ao martírio de perpétua e felicidade. Revista Oracula, ano 10, n.


15, p. 20- 31, 2014.
CARDOSO, S. K. Reverberações culturais de identidade no cristianismo
primitivo: análise retórica e iconográfica de Passio Perpetua. Revista
Oracula, ano 11, n.16, p. 15- 28, 2015.
MARTIRIO de las Santas Perpeteua y Felicidad y de sus compañeros. In:
BUENO, D. R. Acta de los mártires. Introducciones, traducción y notas. 5.
ed. Madrid: BAC, 2003, p. 397-469.
OTERO, U. B. Os mártires latinos de Cartago: as fronteiras entre o lícito
e o ilícito (202-258 E.C). 2017. Tese (Doutorado em História) – Programa
de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
SIQUEIRA, S. M. A. Memórias das mulheres mártires: modelos de resistência
e liberdade. Horizonte, Belo Horizonte, v.4, n.8, p. 60-76, jun. 2006.
SOUZA NETO, José Maria Gomes de. Uma velha África: Heródoto e o
ensino de História da África. In: OLIVEIRA, Francisco; TEIXEIRA, Cláudia;
DIAS, Paula Barata (Coords.). Espaços e paisagens: Antiguidade Clássica e
heranças contemporâneas. Coimbra: Annablume, 2015, p. 425-430. Vol. II.
TERTULIANO. El apologético: introducción, traducción y notas de Julio
Andión Marán. Madrid: Ciudad Nueva, 1997.

514
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

História Oral: contribuições para uma pesquisa


sobre o pós-abolição no Brasil1
Geisa Lourenço Ribeiro2

O “13 de Maio” e a Princesa Isabel possuem lugar especial


na memória da população negra descendente da última geração de
pessoas escravizadas no Brasil? Existem outros momentos e/ou
personagens com importância paralela ou mesmo que os substituem
em seu discurso sobre a abolição da escravidão no Brasil no século
XIX? Há uma memória minimamente consolidada nesse grupo a
respeito do colapso do regime escravista? Como a população negra
viveu e percebeu a inserção dos libertos e seus descendentes na
sociedade livre logo após a lei que aboliu a escravidão no Brasil?
Todas essas questões são de grande importância para a historiografia
brasileira, mas, talvez, exista uma ainda mais importante: os
documentos escritos, tradicionais, conseguem responder a esses
questionamentos? Em outras palavras, é possível acolher/discutir a
versão dessa população historicamente marginalizada na produção
do conhecimento histórico?
A década de 1980 assistiu não apenas ao centenário da Abolição
da escravatura no Brasil – determinada pela Lei 3.353, de 13 de maio de
1888 –, mas também a uma renovação historiográfica responsável por
rever muitos dos conceitos e “verdades” estabelecidos sobre a História
brasileira e, especialmente, sobre a escravidão. Nas décadas de 1950 e
1960 – até mesmo parte da década de 1970 – procurava-se enfatizar
os efeitos negativos causados pela nefanda instituição, que, segundo se
afirmava, não corrompera apenas os escravos, mas toda a sociedade
brasileira (COSTA, 1998; CARDOSO, 1977).

1 Texto produzido originalmente como requisito parcial para avaliação na


disciplina de Memória e História Oral, ministrada pela prof.ª Dr.ª Maria Cristina
Dadalto no semestre 2018/1.
2  Professora do Instituto Federal do Espírito Santo (campus Viana) e estudante
do curso de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo,
sob orientação da prof.ª Drª Adriana Pereira Campos.

515
Das utopias ao Autoritarismo

A ênfase dos trabalhos desses historiadores e sociólogos,


é importante que se aponte, foi determinada por sua oposição à
outra corrente acadêmica, derivada de Gilberto Freyre (1987), que
defendia que a escravidão teria sido mais “branda” no Brasil do que
em lugares como os Estados Unidos, bem como à consequência
lógica derivada de tal afirmação – a de que o racismo não existiria ou
seria menos influente do que aquele existente na América do Norte.
A crítica incisiva da Escola Paulista, como ficou conhecido esse
grupo, à ideia de democracia racial os levou a outro extremo. Se a
escravidão foi forte suficientemente para prejudicar até seus próprios
beneficiários, os senhores escravistas, o que pensar sobre suas
consequências em relação aos escravos? Em sua opinião, de forma
geral, eles teriam sido reduzidos a coisas, vítimas passivas, apolíticas,
que só sabiam responder com a mesma violência com a qual eram
tratados (CARDOSO, 1977). Tal passividade, no entanto, começa
a ser criticada a partir da consideração de novas fontes e da adoção
de métodos que privilegiavam análises quantitativas, demográficas,
da crítica às macroabordagens centradas na economia. É nesse
contexto, iniciado lentamente na década de 1970 e impulsionado a
partir da década de 1980, que ocorre uma renovação historiográfica
sobre a escravidão, inclusive, incentivado pela proximidade da
“celebração” dos 100 anos da Lei Áurea. Essa produtiva fase da
nossa historiografia produziu trabalhos incríveis, que mudaram
nossa perspectiva sobre o sistema escravista brasileiro. Entre eles,
não pode-se deixar de mencionar alguns se tornaram clássicos na
área, como o “Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil
escravista”, de João José Reis e Eduardo Silva; “Crioulos e africanos
no Paraná, 1798-1830”, de Horácio Gutiérrez; “Campos da violência:
escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808”, de
Silvia Hunold Lara; “Lares negros, olhares brancos: famílias escravas
no século XIX” e “Na senzala, uma flor: Esperanças e recordações na
formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX”, de Robert
Slenes; “Visões da Liberdade, uma história das últimas décadas da
escravidão na Corte” de Sidney Chalhoub; “A paz das senzalas:
famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790-1850”, de
Manolo Florentino e José Roberto Góes; “Das cores do silêncio: os

516
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil, século XIX”,


de Hebe Mattos.
Para essa historiografia renovada, o escravo surge como
agente ativo, portador de sonhos e projetos, lutador incansável
para transformar a sua vida da melhor forma possível, alguém que
se recusava a ser apenas instrumento de trabalho, enfim, um sujeito
histórico. Sem esquecer os méritos da produção acadêmica das décadas
de 1950 a 1960 – importantes, entre outros motivos, por proporcionar
a reflexão sobre o racismo no país – é preciso reconhecer que a
mudança sobre a visão do negro significou um ganho muito grande,
acadêmica e socialmente. Era preciso reconhecer que, por mais
nefasto que tenha sido o cativeiro, ele não pôde retirar a humanidade
dos sujeitos escravizados, não logrou reificá-los. A partir disso, um
mundo novo de possibilidades investigativas se abriu, permitindo,
por exemplo, que a família escrava fosse reconhecida como parte
fundamental do sistema (FLORENTINO; GÓES, 1997; SLENES,
1999). A religiosidade, as diversões, a busca por autonomia, enfim,
diversos aspectos pouco conhecidos até a década de 1970, puderam
emergir a partir da renovação historiográfica.
Contudo, há que se reconhecer que as novas fontes
adotadas permaneceram majoritariamente do tipo escritas. Isso se
constitui em um obstáculo para o avanço sobre questões que não são
contempladas nesse tipo mais tradicional de fonte por dois motivos:
primeiramente, devemos lembrar que populações subalternas,
classes baixas, grupos minoritários, não são contemplados da
mesma forma que as elites nesse tipo de fonte – seja ela oficial ou
não; em segundo lugar, por mais habilidoso que os historiadores
sejam, tais fontes não respondem a determinado tipo de perguntas,
como aquelas realizadas no início do texto.
Como já foi notado exaustivamente pela historiografia, o
escravo brasileiro não foi alfabetizado por uma opção da sociedade
escravista, como mecanismo de controle – ainda que exista exceções
à regra. Os ex-escravos e as primeiras gerações de seus descendentes
também não foram o centro de políticas públicas educacionais para
correção do atraso e desvantagem causados pela escravidão. Neste

517
Das utopias ao Autoritarismo

ponto, cabe uma ressalva. O trabalho de Marcos Vinícius Fonseca


(2002) chama atenção para o fato de que algo que, em linguagem
atual, poderia ser chamada de “políticas públicas” foi empreendido
no Brasil entre o final do período escravista e os primeiros anos após a
abolição, contudo o objetivo não era contribuir para a ascensão social
e econômica desses sujeitos.
Há ainda outra questão a ser considerada em relação às
fontes. A renovação historiográfica mencionada adotou um tipo de
fonte pouco usual até aquele momento e que privilegiava análises
quantitativas e demográficas, o que proporcionou a própria mudança
na forma de ver a escravidão brasileira. No entanto, sabe-se que houve
uma tendência do desaparecimento da cor nos registros de livres, desde
a década de 1850, justamente no tipo de fontes que proporcionaram
a renovação. Tal tendência se afirma no período posterior à abolição,
dificultando a identificação dos ex-escravos e seus descendentes
até mesmo nos registros oficiais onde era legalmente obrigatório o
registro de cor, como as certidões de batismo. O próprio Censo de
1920, seguindo essa tendência e demonstrando suas preocupações
racialistas, não registra a cor (RIOS; MATTOS, 2004, p. 176). Dessa
forma, torna-se mais difícil identificar os libertos e descendentes
nesse período. Desafio ainda maior é pesquisar sua participação e
perspectivas no momento de transição do regime de trabalho e de
governo que o Brasil vivenciou no final do século XIX. Essa, talvez,
seja uma das explicações para a ausência de pesquisas focadas nos
libertos no Brasil durante muito tempo. Como lembrado por Ana
Maria Rios e Hebe Mattos,
inúmeros trabalhos se dedicaram a estudar os projetos das
elites a respeito dos libertos e da utilização dos chamados
“nacionais livres” como mão-de-obra. Detalhes sobre
diagnósticos e projetos de construção nacional, produzidos
por elites invariavelmente conservadoras, pautaram por
muito tempo a discussão historiográfica sobre o período
pós-emancipação. Melhor dizendo, o pós-abolição como
questão específica se diluía na discussão sobre o que fazer
com o “povo brasileiro” e a famosa “questão social” (RIOS;
MATTOS, 2004, p. 170).

518
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Até poucas décadas, portanto, a pesquisa sobre o pós-


abolição no Brasil não se concentrava na perspectiva dos ex-escravos,
o que deixou uma lacuna em relação ao período e a esses sujeitos que
só começou a ser explorada a partir da década de 1990. Além das
fontes escritas, das mais diversas, a renovação exigiu a adoção de um
novo tipo de fonte – mesmo que combinado com o tradicional – e
nova metodologia: a História Oral.
É a História Oral que permite se aventurar a responder as
questões expostas no início do texto, além de tantas outras. Por essa
razão, tal metodologia tem sido crescentemente adotada no Brasil,
ainda que exista resistência por parte da comunidade acadêmica.
Nosso intuito com este texto, portanto, é esclarecer alguns pontos
sobre a História Oral e apontar algumas vantagens para estudos de
comunidades tradicionais e grupos populacionais não integrantes
das elites.
Nosso contato com a História Oral aconteceu há pouco
tempo, justamente quando decidimos empreender uma pesquisa de
doutorado sobre a população liberta nas primeiras décadas após a
abolição. Até o mestrado, o contato com tal metodologia havia sido
superficial, de modo que indagações e questionamentos simples
integravam nosso imaginário. Assim, este texto foi construído a
partir das recentes descobertas realizadas na disciplina de “Memória
e História Oral”, ministrada pela professora Dr.ª Maria Cristina
Dadalto, no semestre 2018/1.
Nosso projeto de pesquisa em desenvolvimento no curso
de Pós-graduação em História na Universidade Federal do Espírito
Santo, sob orientação da prof.ª Dr.ª Adriana Pereira Campos, intitula-
se “Laços de família: terra, escravidão e liberdade no Espírito Santo
(1850-1961)”. A fim de cobrir tamanho recorte temporal, optamos
por usar diversos tipos de fontes e, por conseguinte, de metodologias.
Trabalharemos com fontes cartoriais, que privilegiam análises
quantitativas, mas não abriremos mão da análise qualitativa até
mesmo para esses documentos – amparando-nos no indiciarismo.
Ainda que fontes de natureza não quantitativa integrem

519
Das utopias ao Autoritarismo

o trabalho, como jornais, inventários post-mortem relatórios de


presidente de província e de estado, processos de terra etc., sentimos
a necessidade de trabalhar com um tipo específico de fonte para
dar conta de um momento histórico e, mais especificamente, de
um grupo social que não foi privilegiado nas fontes escritas, como
dito anteriormente. Os libertos, assim como os escravos, não foram
“ouvidos” pelos registros oficiais – e, quando o eram, a versão que
prevalecia era filtrada por outros grupos sociais. Dessa forma, é
difícil encontrar fontes históricas tradicionais que nos ofereçam
sua visão de mundo, angústias, perspectivas, projetos... Diante de
tal cenário, a História Oral pode oferecer grande contribuição neste
tipo de pesquisa.
Entre as reflexões realizadas sobre a História Oral, uma
das que se destacam inicialmente é o “alívio” e segurança oferecidos
por autores que admitem seu interesse e envolvimento pessoal com
o tema escolhido, caso de Alistair Thompson (1998), com o trabalho
“Quando a memória é um campo de batalha: envolvimentos pessoais
e político com o passado do exército nacional”. Ao pesquisar sobre
as memórias australianas na Primeira Guerra Mundial, explorando
as recordações de veteranos de guerra e uma lenda popular, o
autor admite seu envolvimento emocional e político com o tema:
além de ser filho e neto de militares, sua família integra a memória
oficial da participação do exército australiano na Primeira Guerra
Mundial. Algumas questões levantadas pelo autor são especialmente
interessantes para nosso intuito, pois são consideradas de forma mais
evidente dentro da História Oral:
Quais são as motivações inconscientes ou explícitas
que nos levam às nossas pesquisas? Quais os temas que
exploramos de nossas próprias vidas e que necessidades
psíquicas e sociais encontramos através do processo de
pesquisa? Como será que nossas pautas conscientes e
inconscientes formam nossa relação pesquisa-descobertas?
(THOMPSON, 1998, p. 278).
Tais preocupações foram consideradas por Harald
Weinrich (2001) em sua obra “Lete. Arte e crítica do esquecimento”,
especialmente em um capítulo intitulado “Auschwitz e o

520
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

esquecimento impossível”. O autor comenta sobre alguns autores


que escreveram a partir de suas (intensas) experiências de vida, como
Elie Wiesel, Primo Levi e Jorge Semprún – todos sobreviventes de
campos de concentração nazista. Assim como Alistair Thompson,
Weinrich não apenas admite o interesse pessoal do autor em seu
tema de pesquisa, como demonstra a legitimidade dessa relação.
Quem melhor para tentar “colocar em palavras compreensíveis
o incompreensível” (WEINRICH, 2001, p. 249) dos horrores
de viver em um campo de concentração do que uma pessoa que
viveu em um deles, como por exemplo o autor e Nobel da Paz Elie
Wiesel? Thompson oferece uma contribuição importante nesse
sentido ao lembrar que a ideia de neutralidade dos estudiosos já
foi desmascarada pelas pesquisadoras feministas que chamaram a
atenção para a existência de motivações pessoais, conscientes ou
não, em relação aos objetos de pesquisa. Reconhecer essa relação é
especialmente importante na História Oral graças à “relação direta,
pessoal entre pesquisador e pesquisado, e na qual o pesquisador cria
e analisa sua fonte primária” (THOMPSON, 1998, p. 278).
A ideia de criar a própria fonte causa estranheza para
os historiadores mais tradicionais, acostumados a trabalhar com
documentos escritos e a submetê-los à rigorosa crítica interna.
No entanto, comunidades tradicionais nem sempre possuem ou
privilegiam esse tipo de documentação, valorizando-se a tradição oral.
É o caso, por exemplo, do nosso objeto de pesquisa: a comunidade
quilombola de Monte Alegre, localizada em Cachoeiro de Itapemirim-
ES. É nessa comunidade que buscaremos, em parte, entender quais
eram as expectativas, projetos, sonhos dos últimos escravos libertados
pela Lei Áurea e seus descendentes. À exemplo de Ana Lugão Rios
e Hebe Mattos (2005), procuraremos realizar entrevistas a partir de
roteiros temáticos com perguntas direcionadas sobre as memórias dos
membros mais velhos dessa comunidade, sobre as histórias contadas
por seus avós e bisavós que foram escravos ou filhos destes a respeito
de seus familiares que viveram no período próximo e após a Abolição.
É necessário investigar o que aquelas pessoas escolheram
compartilhar com seus descendentes, bem como as influências de

521
Das utopias ao Autoritarismo

outras fontes de informação e interesses que ajudaram a construir


a história de uma parcela da população brasileira. Essa comunidade
representa, ao menos, um dos meios empregados pelos libertos
para se estabelecer no mundo “livre” que pode, à primeira vista, ser
interpretado como uma crítica à sociedade que procurava controlar
a mão de obra dos libertos, mantendo-os subalternos aos grandes
senhores de terras (e ex-senhores de pessoas). Importa, pois, conhecer
e comparar as visões dos dois grupos sobre o período e escolhas dos
sujeitos.
A análise das narrativas será realizada com atenção aos
processos de “transmissão” e reprodução da memória dos membros da
comunidade que serão nossos colaboradores ao fazer suas narrativas.
Afinal, as recordações não são simplesmente transpostas de um
indivíduo a outro, pois ocorrem diversos fenômenos na “transmissão
da memória que precisam ser considerados já que “o polo “receptor”
assimila, reinterpreta, rememora e reproduz as narrativas em questão,
e são esses imperativos, operados pelo presente, que levam a falar ou
a silenciar sobre as memórias do passado” (WEIMER, 2010, p. 67).
Embora não tenha relação direta com o movimento
quilombola, é inegável o pano de fundo da escolha dessa pesquisa
que passa pela construção da minha identidade negra, do incômodo
pessoal de ver a lacuna histórica do pós-abolição em relação ao negro
ser preenchida por preconceitos que alimentam cotidianamente outros
preconceitos contra a população negra e limita suas possibilidades
sociais e econômicas. Ao ver Thompson (1998) produzindo a partir de
sua experiência desde a infância com o exército nacional australiano,
reconhecendo que seu trabalho também é uma tentativa de entender
sua própria história, temos a convicção da possibilidade de fazer
um trabalho sobre um tema que nos afeta pessoalmente, mas com
total rigor metodológico e, portanto, com o devido reconhecimento
acadêmico.
Outro ponto que gostaríamos de destacar é a honestidade
intelectual que ajuda no entendimento do processo de construção do
trabalho: é necessário reconhecer as limitações específicas da pesquisa
desta natureza. As fontes serão produzidas a partir de colaboradores

522
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

que estão vivos! Essa constatação elementar requer um cuidado


especial com as subjetividades dos sujeitos envolvidos na pesquisa,
com suas memórias, emoções, traumas. O pesquisador Alistair
Thompson oferece grande contribuição nesse sentido quando revela a
negociação feita por ele com seu pai para a publicação de um trabalho
que envolvia a memória da família. Vejamos:
Não foi surpresa o fato de meu trabalho sobre a lenda do
Anzac [Australian and New Zealand Army Corps] causar
desgosto e revolta em minha família. [...] A discordância
entre meu pai e eu foi, em uma parte, uma discordância
entre duas diferentes visões da história e de interpretação
de historiador. [...] Esse episódio lembrou-me que
nossas histórias de vida nos afetam profundamente; que
geralmente são mal-resolvidas, contraditórias e dolorosas;
e que podem ser a dinamite emocional. Ele também me
mostra que a história de uma pessoa pode penetrar e
intervir na de outra e, por conseguinte, propõe questões
éticas sobre a posse e controle da memória, e sobre os
direitos e responsabilidades dos historiadores orais. Meu
pai achava que a história de Hector pertencia a ele e, assim,
a versão de nossa história de família, a qual foi publicada,
inclui as retificações propostas por ele, sendo, na verdade,
uma história negociada (THOMPSON, 1998, p. 284-285).
A produção da entrevista, bem como de seu tratamento
e publicação posteriores, são, portanto, exercícios de negociação.
Precisa-se ter isso em mente e adotar o caminho da honestidade
intelectual, como fez Thompson, para reconhecê-lo.
É igualmente necessário lembrar, como fez Michel Pollak,
em “Memória, esquecimento, silêncio”, que a fronteira entre aquilo
que se pode dizer e aquilo que não se pode separa a memória coletiva
subterrânea (de grupos como os quilombolas, por exemplo) e a
memória coletiva oficial. Em suas palavras:
Por conseguinte, existem nas lembranças de uns e de outros
zonas de sombra, silêncios, “não-ditos”. As fronteiras
desses silêncios e não-ditos com o esquecimento definitivo
e o reprimido inconsciente não são evidentemente
estanques e estão em perpétuo deslocamento. Essa
tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e

523
Das utopias ao Autoritarismo

metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma


escuta, de ser punido por aquilo que se diz ou, ao menos,
de se expor a mal-entendidos (POLLAK, 1989, p. 7).
Reconhecer tais zonas de silêncios é fundamental para
o desenvolvimento do trabalho. Buscar outras fontes ou outros
colaboradores para preencher tais lacunas são ações possíveis
para resolver tal situação, mas antes deve-se, acreditamos a partir
dessas leituras realizadas até aqui, respeitar o tempo do indivíduo
e compreender o significado de seus silêncios, bem como de sua
linguagem de forma geral. Aliás, a própria maneira de narrar é elemento
a ser considerado pela História Oral, conforme lembrado por Walter
Benjamin em “A Imagem de Proust”, em “Obras escolhidas volume
1: magia e técnica, arte e política” (1985). A maneira de narrar, com
suas pausas, ênfases, digressões, avanços, saltos, possuem significados
especiais que precisam ser interpretados pelo pesquisador – tal como
pelos leitores e analistas de Proust.
A comunidade quilombola de Monte Alegre possui uma
memória que, provavelmente, não coincide com a oficial. É preciso
saber procurar e acolher a memória subterrânea dos descendentes
de escravizados em nosso país que buscou durante tanto tempo
sustentar uma memória coletiva apoiada na substituição do escravo
pelo imigrante europeu e na transição pacífica de um regime
de trabalho a outro. Nesse sentido, um outro trabalho ofereceu
contribuição importante ao fazer um diálogo com Pollak. O trabalho
de Portelli (1998), “O massacre de Civitela Val di Chiana”, apresenta
o conceito de Giovani Contini de “memória dividida”. A memória
coletiva oficial pode ser privilegiada pelas instituições, públicas ou
privadas, mas não é única. Existe uma outra memória, geralmente
de grupos “marginalizados” que não pode ser apagada, que convive
com a dominante. Portelli avança nesse ponto de disputas das
memórias, demonstrando que ela possui muito mais divisões que
a oficial, por um lado, e a espontânea, por outro. Todas as duas
possuem inúmeras divisões:
Como tentarei demonstrar, na verdade, quando falamos
numa memória dividida, não se deve pensar apenas num

524
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

conflito entre a memória comunitária pura e espontânea


e aquela “oficial” e “ideológica”, de forma que, uma vez
desmontada esta última, se possa implicitamente assumir
a autenticidade não-mediada da primeira. Na verdade,
estamos lidando com uma multiplicidade de memórias
fragmentadas e internamente divididas, todas, de uma
forma ou de outra, ideológica e culturalmente mediadas
(PORTELLI, 1998, p. 106).
Reconhecer a fragmentação e, portanto, a riqueza das
memórias ajuda a problematizar nosso objeto de pesquisa. Até
o momento, pensávamos ser possível encontrar na comunidade
quilombola uma memória diferente da memória oficial, subterrânea,
mas ainda a imaginávamos como homogênea. Agora, entretanto,
estamos mais alertas para a diversidade. Aliás, o texto ressaltou algo tão
básico que quase causa constrangimento notar: a necessidade de não
construir ideias precipitadamente, seja sobre fatos ou sobre personagens.
Quem pensa que a memória coletiva sobre a Resistência
italiana é homogênea e sempre ligada à reverência aos seus heróis-
personagens, por exemplo, percebe o engano logo no início do texto:
os heróis para uns, podem ser os vilões para outros. Daí a necessidade
de reconhecer essa diversidade de memórias. Somando-se a isso
a contribuição de Candau (2011) referente às celebrações (ou o
esgotamento de seu sentido ou ainda a decisão de não comemorar
determinados acontecimentos) e sua importância na construção
identitária, caberia fazer mais algumas questões além das levantadas no
início. Qual seria a memória, ou melhor, as memórias da comunidade
Monte Alegre sobre o “13 de Maio’”? A comunidade celebra essa data
importante durante tanto tempo para a cronologia oficial ou prefere o
“20 de Novembro”, que na última década emergiu para a cronologia
oficial? Existiria ainda outros momentos mais significativos para a
memória comunitária?
Michael Pollak (1992) esclarece outras questões sobre a
memória que serão úteis ao desenvolvimento do nosso trabalho. Ao
concordar com Maurice Halbwachs sobre a memória como fenômeno
construído coletivamente, ele nos apresenta os critérios básicos para
sua construção e que permitem que ela sofra flutuações, mudanças:

525
Das utopias ao Autoritarismo

acontecimentos, personagens e lugares. Se tais elementos são reais


ou frutos de projeção, de transferência, não importa. A “memória
quase herdada”, como o autor menciona, é tão importante quanto
a memória vivida. É plenamente possível – e não raro – pessoas
mencionarem acontecimentos “vividos por tabela”, isto é, eventos
que nem saberiam dizer se participaram diretamente, mas que por
sua relevância acabaram se tornando elementos constitutivos da
memória da coletividade.
Conforme lembrado por Pollak, esses aspectos – a
projeção e a transferência – não devem ser vistos como indicadores
de dissimulação ou falsificação. Eles recordam uma característica
importante da memória que se deve ter em mente durante toda a
pesquisa: “a memória é seletiva.” (POLLAK, 1992, p. 203). É sempre
importante lembrar que há disputas políticas na estruturação da
memória que podem ser notadas até nas definições das datas oficiais
de celebração: o que deve ser registrado e celebrado pelo povo é
matéria de disputa, embora isso não anule os elementos espontâneos
que, muitas vezes, se materializam em desafios às cronologias oficiais.
Outro argumento ajuda a confirmar que a memória é
um fenômeno construído: o fato dela ser organizada com base nas
preocupações pessoais e políticas do presente.
Quando falo em construção, em nível individual, quero dizer
que os modos de construção podem tanto ser conscientes
como inconscientes. O que a memória individual grava,
recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado
de um verdadeiro trabalho de organização. Se podemos
dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno
construído social e individualmente, quando se trata da
memória herdada, podemos também dizer que há uma
ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o
sentimento de identidade (POLLAK, 1992, p. 204).
Vale ainda lembrar que tanto a memória quanto a
identidade podem ser negociadas, pois são valores disputados. Essa é
uma questão sensível que deve ser considerada como tal e observada
à luz de outro conceito que nos ajuda a entender a memória enquanto
constituída: o enquadramento da memória. Esse trabalho, geralmente

526
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

feito por profissionais, mas não restrito a eles, alimenta-se do material


fornecido pela própria história. Em outras palavras, o enquadramento
da memória possui limites, não pode ser feito arbitrariamente, sendo
obrigado a satisfazer exigências de justificação que irão, pelo menos,
limitar as possibilidades de falsificação do passado. É preciso ter claro
que o enquadramento da memória acontece a partir da reinterpretação
constante do passado, mas “em função dos combates do presente e do
futuro.” Pollak esclarece ainda que:
Se a análise do trabalho de enquadramento de seus agentes
e seus traços materiais é uma chave para estudar, de cima
para baixo, como as memórias coletivas são construídas,
desconstruídas e reconstruídas, o procedimento inverso,
aquele que, com os instrumentos da história oral, parte
das memórias individuais, faz aparecerem os limites desse
trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um
trabalho psicológico do indivíduo que tende a controlar as
feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do
passado e suas lembranças pessoais (POLLAK, 1989, p. 12).
A investigação sobre a vida dos entrevistados e de suas
famílias precisa levar em conta um aspecto para o qual Thompson,
Pollak e Weinrich chamam a atenção: revirar o passado em busca da
memória sobre determinado fato ou momento pode ter implicações
que vão muito além da pesquisa ao tocar em questões pessoais doloridas
para o entrevistado. É necessário desenvolver uma sensibilidade mais
aguçada para realizar o trabalho de campo da história oral por conta
desses desencadeamentos. A mágoa que o pai de Thompson sentiu
pelo tratamento que este gerou pela produção de seu trabalho, bem
como o desgosto e revolta da família, de forma geral, é exemplar.
Um caso igualmente significativo, mas mais dramático, é o
exemplo de Sônia Novinsky e sua pesquisa sobre a vida de famílias
judias de origem alemã no Brasil. Além do procedimento padrão
da História Oral que é o de fazer a leitura das narrativas com os
entrevistados antes da publicação, Barros permitiu nesse processo
de devolução que passagens das entrevistas fossem lidas por outros
membros da família. O resultado disso foi uma transformação intensa
nos colaboradores, uma reflexão sobre a vida familiar em conjunto

527
Das utopias ao Autoritarismo

que permitiu, inclusive, a revelação de um ato de violência sexual de


um pai contra a filha que havia acontecido muitas décadas antes da
entrevista e fora silenciado até aquele momento. Lembra a autora a
respeito desse processo fundamental em História Oral que
o documento de história oral é um documento transitório,
que tem o valor do momento em que é textualizado
e transcriado – o que não é negativo –, pois mostra seu
valor interventivo e transformador das realidades (apud
MEIHY; HOLANDA, 2017, p. 165-166).
Essa realidade, que não é comum ao historiador que utiliza apenas do-
cumentos escritos, não deve ser encarada com desconfiança, apenas
precisa ser considerada com seriedade como integrante do trabalho
com História Oral.
Para finalizar, devemos falar de uma grande preocupação
para aqueles que não conhecem bem a área de história: os atos falhos
da memória, os esquecimentos, as possíveis mentiras e manipulações
sobre o passado, a falta de verdade que as entrevistas podem apresentar.
No entanto, como nos recorda Thompson ao apresentar suas reflexões
sobre as discordâncias de seu pai em relação ao seu livro que incluía
um trecho autobiográfico (1998, p. 284),
Ao mesmo tempo que concordava que era importante
mostrar de que maneira minha memória fora distorcida,
eu também queria provar que a memória, incluindo a
memória de família, nunca é uma reprodução exata dos
acontecimentos do passado, mas sim um complicado,
contraditório e contestado conjunto de representações.
A discordância entre meu pai e eu foi, em parte, uma
discordância entre duas diferentes visões da história e de
interpretação de historiador.
Ter em mente ao ir para o campo fazer as entrevistas que a
verdade dos colaboradores, isto é, sua percepção sobre os fatos ou a
versão que decidem nos apresentar, são tão válidas quanto a verdade
apontada por outras fontes, é libertador e pode enriquecer qualquer
trabalho. Qual é a visão da comunidade quilombola de Monte Alegre
sobre o período de construção daquela comunidade, isto é, a transição
do regime escravista para o livre? Qual é a memória da comunidade

528
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

sobre a “substituição” da mão de obra negra pela livre e imigrante?


Não vemos a hora de fazer tais questionamentos apoiados na preciosa
bagagem obtida na disciplina “Memória e História Oral”.

Referências bibliográficas:
BENJAMIN, W. A imagem de Proust. In: BENJAMIN, W. Mágina e Técnica,
Arte e Política. 3. ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985. Obras Escolhidas,
Volume I.
CANDAU, Jorge. O jogo social da memória: fundar e construir. In:
CANDAU, Jorge. Memória e identidade. São Paulo: Ed. Contexto, 2011, p.
137-157.
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil
Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. 3. ed. São Paulo: UNESP, 1998.
FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias
escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790-1850. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1997.
FONSECA, Marcus Vinícius. A educação dos negros: uma nova face do
processo de abolição da escravidão no Brasil. Bragança Paulista: EDUSF, 2002.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. 25. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1987.
MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro: narrativas e etnotexto. Revista de
História Oral, v. 8, n. 1, p. 43-60, jan.-jun. 2005.
MEIHY, José Carlos Sabe Bom; HOLANDA, Fabiola. História Oral: como
fazer, como pensar. 2. ed, 5. reimp. São Paulo: Contexto, 2017.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, vol. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.
PORTELLI, A. O massacre de Civitela Val di Chiana (Toscana: 29 de junho
de 1944). In: AMADO, J.; FERREIRA, M. M. (Coord.). Usos & abusos da
história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998, p.
103-130.

529
Das utopias ao Autoritarismo

RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro: família, trabalho


e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
SLENES, Robert. Na senzala, uma flor: Esperanças e recordações na
formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999.
THOMPSON, A. Quando a memória é um campo de batalha: envolvimentos
pessoais e políticos com o passado do exército nacional. Proj. História, São
Paulo, n. 16, p. 277-296, fev. 1998.
WEINRICH, H. Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
WEIMER, Rodrigo de Azevedo. “O meu avô me contava”: dinâmicas de
circulação da memória do cativeiro entre descendentes de escravos. Osório,
século XX. Revista de História Oral, v. 13, n. 2, p. 65-87, jul.-dez. 2010.

530
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Comer e dietética: alimentação para Francisco da


Fonseca Henriques pela Âncora Medicinal (1721)
Mariana Costa Amorim1

Se alimentar é algo natural. O comer é construído. No


primeiro, o fisiológico nos alerta de um dos aspectos essenciais de
sobrevivência. No segundo, uma série de fatores mais complexos está
envolvida: a influência do local geográfico, a história de um povo e
sua relação com os alimentos, além do simbolismo cultural que rodeia
essa relação. Raramente repensamos nossos hábitos alimentares, os
quais estão cercados por elementos sociais, políticos e econômicos.
Sim, políticos e econômicos. Se analisarmos o consumo de vários
alimentos nativos ou não da região, podemos entender a história da
mesma e de sua população, assim como suas influências recebidas.
O consumo cotidiano dos alimentos acaba por não nos fazer
perceber o que significa utilizar as técnicas, temperos e ingredientes
para o cozer, mas que é relevante para compreendermos nossa própria
história. A antropóloga Paula Pinto e Silva, sobre a alimentação no
Brasil, afirma:
O processo inevitável de miscigenação culinária, calcado
na preparação de pratos simples e de sabor local, pode ser
atribuído a esse convívio mais profundo, que permitiu, no
dia a dia, as trocas constantes entre as diferentes culturas
envolvidas, na busca não só da adequação necessária à
sobrevivência, mas também da satisfação dos anseios do
paladar (SILVA, 2005, p. 57).
Comer abrange uma simbologia que difere ou aproxima
uma cultura da outra. Já se alimentar é entendido como tendo a
“função básica, ligada diretamente à cultura material, que diz respeito,
em primeiro, à subsistência” (SILVA, 2005, p. 126). Esse simbolismo
muda de acordo com as épocas e transformam nossas relações
1  Graduada em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (2017).
Atualmente é mestranda e bolsista pela FAPES. Também atua no Grupo de Estudos
de Modernidade Ibérica sob a orientação da Profª. Drª. Patrícia M. da Silva Merlo na
mesma universidade. E-mail: mariiana.amorim.ma@gmail.com.

531
Das utopias ao Autoritarismo

com a natureza e com os indivíduos. Podemos observar que, para a


maioria dos indivíduos das sociedades ocidentais, se alimentar não é o
suficiente. Quando vamos a um restaurante, pagamos pela experiência
total. O ambiente, o atendimento, o que se propõe no cardápio, se
usam ingredientes frescos, nossa própria postura e comportamento no
ambiente, além da etiqueta e, principalmente, quando o prato escolhido
chega, nos deliciamos primeiro pelos olhos. Afinal, a apresentação do
prato é a primeira impressão antes da primeira garfada. Todos esses
passos até o momento em que o prato seja apreciado pelo paladar é
o que envolve o prazer de comer. Você é o quê você come também é
reflexo da construção dos gostos pessoais que acabam por determinar
os hábitos alimentares dos indivíduos. Se se come do bom e do melhor, a
pessoa é associada à condição social abastada, com acesso ao conforto e
despreocupação com dificuldades financeiras. Frequentar restaurantes
mais caros, que servem determinados tipos de comida não tão
acessível ao populacho é uma forma constante de se mostrar prestígio.
A sociedade atual tem como uma de suas estruturas demonstrarem
sempre que possível um bom status social e a alimentação é um dos
instrumentos mais utilizados para a afirmação de que temos uma boa
condição de vida. Na era digital do século XXI, a ostentação é feita
por meio das redes sociais, principalmente o Instagram, onde fotos
de pratos de comida e check-ins em restaurantes conceituados são
uma das coisas que mais atraem curtidas e seguidores. O importante
é demonstrar de alguma forma que se consome o melhor que suas
condições financeiras permitem (ou não. Para isso existem os cartões
de crédito). Chegamos a um nível de gosto construído onde tudo é
válido para comer o que está na moda, inclusive gastar o que não se
tem. Como será que acabamos nisso? Montanari sugere que
O vínculo entre consumos alimentares e estilos de vida,
definidos em relação à hierarquia social, prossegue com
modalidades diversas nos séculos mais recentes. O tema
da qualidade se define, dando-se por certo que a área do
privilégio social se exprime no direito/dever de consumos
qualitativamente melhores, mas também permanecem as
correspondências entre tipologia de alimentos (e bebidas) e
tipologias de consumidores (MONTANARI, 2013, p. 129).

532
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

O que comemos e como comemos é resultado da construção


de gostos específicos e releva nosso pertencimento social. Esses gostos
revelam ao que temos acesso e de onde viemos.
Em nosso cotidiano, geralmente não nos damos conta em
como nossos hábitos alimentares podem ter surgido. Usamos diversos
tipos de temperos, formas de cozimento, comemos alimentos que não
são nativos do nosso país, mas que se tornaram comuns estarem em
nossa mesa. Além disso, herdamos o hábito de relacionar alimentos
que nos fazem bem ou mal, quais possuem ou não calorias suficientes
para que possamos nos sentir satisfeitos para trabalhar e, por mais que
vivamos em um país como o Brasil, que nos dá acesso a variedades
enormes de produtos alimentícios, as classes sociais ainda são
definidas pelos alimentos (caviar, sorvetes com fios de ouro, chocolates
e produtos importados, etc.). Aliás, não só o tipo ou a marca. O fato
de se ter acesso a alimentos mais facilmente do que a maioria da
população de muitas regiões já nos distingue socialmente. A verdade
é que somos obcecados por comida. Queremos diminuir o consumo
do que pode nos fazer sair dos padrões de beleza ocidental atuais, ao
mesmo tempo em que não resistimos a comer nosso prato favorito ou
de ter um dia de tralha após termos seguido a dieta à risca durante a
semana. Ela nos cerca com os tipos de comida fitness, sem lactose ou
glúten, do que faz bem ou mal e pela ampliação de site e livros e até
canais de televisão com receitas para nos reatar com a comida caseira.
A relação do ser humano com o alimento acabou por se tornar
fonte de estudos de antropólogos, sociólogos, biólogos e, para nós,
historiadores. É multidisciplinar e um assunto que gera interesse tanto
para os pesquisadores quanto para os leitores por sua familiaridade. A
Nova História Cultural foi de grande importância para impulsionar
um novo olhar sobre os indivíduos na história. Não somente para as
grandes figuras históricas, a História deve se atentar para os sujeitos
que tiveram sua vivência descartada, para as manifestações das classes
menos abastadas, os sujeitos invisíveis na história. Pesquisas pelo
viés das artes, da literatura e outras manifestações, se atentando as
tradições e as modificações culturais durante os séculos e em diversas
sociedades. Ressalta o conceito de representação, buscando entender o

533
Das utopias ao Autoritarismo

olhar do sujeito e como este concebe o mundo, se afastando de noções


generalizantes sobre o cultural. Assim, se mostra a importância da
história do corpo e suas representações. A História da alimentação
se introduz nesse viés, pois os simbolismos que se relacionam com
as práticas alimentares se interligam com a história do corpo e do
consumo, abrindo caminho para que se possam compreender as
práticas culturais de um determinado cotidiano. Afinal, todos nós
comemos e as populações, durante o decorrer das eras, criaram rituais,
simbolismos e diferentes tipos de imaginários ao redor da alimentação
que ainda refletem atitudes de sociedades contemporâneas. Ora,
enquanto tais questões estiverem chamando a atenção do historiador,
ele se sentirá impulsionado a conhecê-las através da dimensão de seu
trabalho (DEL PRIORE, 1995, p.23).
Comer abrange uma simbologia que difere ou aproxima
uma cultura da outra. Já se alimentar é entendido como tendo a
“função básica, ligada diretamente à cultura material, que diz respeito,
em primeiro, à subsistência” (SILVA, p. 126, 2005). Esse simbolismo
muda de acordo com as épocas e transformam nossas relações com a
natureza e com os indivíduos. O estudo do cotidiano ampliou a visão
dos historiadores, pois passa a utilizar não somente documentação
como fonte, mas imagens, relatos e outros objetos materiais. O estudo
da alimentação nas eras da humanidade virou objeto de interesse
dos historiadores, pois o alimento está interligado a ritos, a religião,
ao cotidiano e a saúde. Devido a crescente obsessão com os corpos
perfeitos e pela saúde perfeita do segundo milênio, a história da
alimentação tem sido uma demanda para se entender a sociedade
atual e a intensificação do alimento como aliado à saúde.
O alimento esteve por muitas épocas associado a tratamento
e prevenção de doenças, que é o assunto abordado na pesquisa que
está sendo realizada. Na medicina ocidental hipocrática essa junção é
fundamental e é encontrado nos tratados médicos do considerado o
“pai da medicina”. Hipócrates embasou os estudos médicos por muitos
milênios após ter feitos seus estudos na Grécia Antiga. A alimentação
como tratamento e prevenção das doenças descrita em seus textos
é relacionada à prática de exercícios em conjunto, a chamada dieta

534
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

para os gregos antigos. O termo dieta ligada à alimentação pela


primeira vez se encontra no tratado Da medicina antiga, um dos mais
importantes tratados do Corpus hippocraticum, também como o
termo dieta ligado à saúde. A dieta nessa concepção é um modo de
vida. Ela é organizada por cinco componentes: alimentação, exercícios,
atividades profissionais (distinções sociais), entorno geográfico e
climático, além de separar os indivíduos por idade e sexo. O médico
deve analisar tudo isso para receitar a melhor dieta para o paciente,
assim como o sono, os sonhos, a frequência de atividades sexuais,
o sol e o vento que se toma onde reside, alimentos à disposição do
paciente, etc. A prescrição média dialogava com a natureza tanto do
indivíduo quanto na qual o indivíduo estava inserido (o ambiente). A
dieta era como uma “arte de viver”, com um alimentação, exercícios
e hábitos para se ter uma saúde equilibrada. Conhecer os alimentos
e suas propriedades nutricionais era essencial. Hipócrates catalogou
alimentos e seus escritos sobre sua classificação é considerado um dos
mais importantes catálogos de alimentos datado da Antiguidade. A
comida conserva a saúde e cura as doenças.
Não só pela sua leitura e apropriação no campo da medicina
e pela constituição de uma “verdadeira” dietética como se a conheceu
até o século XIX, uma vez que de todos os supostos catálogos dietéticos
alimentares foi precisamente este o único sobrevivente (CAIRUS,
2007, p. 217). Deve-se também aos estudos de Hipócrates a chamada
Teoria dos humores, que também perpetuou por muitos séculos nos
estudos médicos ocidentais. Acreditava-se que os corpos possuíam
quatro humores: a bile negra, a bile amarela, a fleuma e o sangue.
O desequilíbrio de um desses humores originava as doenças e estas
deviam ser tratadas com a dieta apropriada para serem novamente
equilibrados. A escola hipocrática registrou diversos casos clínicos
epidêmicos, usando como métodos a observação e investigação.
Analisava a relação entre os alimentos e os sintomas, assim como o
sono, o ar, as bebidas, os exercícios, a água, o clima, etc., para que o
tratamento ou prevenção de doenças estivesse de acordo como modo
de vida e as demais características do paciente já citadas.
Na doutrina dos escritos hipocráticos de Cós, a dieta

535
Das utopias ao Autoritarismo

é constituída por cinco componentes principais: a


alimentação, os exercícios, a atividade profissional (o que
implica em distinções sociais), o entorno geográfico e
climático, e inclui também as atividades políticas da cidade
em que o indivíduo vive; devia considerar a sua compleição
física, a sua idade e sexo (CAIRUS, 2007, p. 213).
Os ensinamentos hipocráticos atravessam as eras,
adentrando a sociedade moderna em várias regiões da Europa, onde se
encontra o recorte histórico de minha pesquisa, mais especificamente
no século XVIII português.
A era moderna em Portugal tem seu maior destaque
quando D. João V ascende ao trono. Durante seu reinado, D. João V se
atentou em modernizar Portugal. Inspirou-se em Luís XIV da França
que era na época a personificação de tudo o que os monarcas visavam
para si e seus domínios: requinte, controle social, vitórias militares e
o reconhecimento de sua grande riqueza e poder em outros reinos.
D. João V tratou de trazer para Portugal o significado de riqueza e
requinte. Por coincidência do destino ou não, havia sido descoberto
ouro na colônia brasílica no reinado de D. Pedro II de Portugal,
seu pai, no final da década de 1690. Assim, ele pôde ter a grande
oportunidade de tomar posse de um reino rico e aplicar o dinheiro
como achasse mais conveniente. A glória do reino português seria
restituída pela riqueza do ouro encontrado e Portugal seria conhecido
no exterior por isso. A opulência que transparecia na corte lisboeta
foi inspirada na corte de Versalhes. D. João V foi capaz de criar um
regime absolutista, superficialmente similar ao do extremamente mais
rico reino francês (BIRMINGHAM, 2015, p. 86).
De Paris vieram tecidos, vestimentas, maquiagem, perucas
e costumes. Utilização de peças e louças em porcelana, pratarias,
talheres eram os primeiros passos de um novo tempo. Atingia seu auge
o Barroco Português com construções majestosas de igrejas, palácios,
pátios, escadarias e jardins. O convento de Mafra (1730) é um grande
destaque na construção no reinado de D. João V, era a queridinha do
rei. Por ter dado novos ares bastante similares aos da corte francesa,
ficou conhecido como o Rei Sol português, referenciando este ao

536
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

próprio Rei Sol francês, Luís XIV. Os excessos eram costume tanto
para a corte francesa quanto para a portuguesa, que tentou imitar
a primeira como pode. Apesar de todo o esforço de D. João V em
modernizar o Portugal durante seu reinado, essas mudanças foram
feitas em áreas específicas.
Na área científica, as transformações foram ainda muito mais
específicas, mesmo com contratações de professores estrangeiros por
iniciativa da coroa. Sendo um país com profundas raízes no cristianismo
católico, estudos científicos eram sempre estudados para se entender as
coisas de Deus, jamais para profana-las. Um exemplo disso era o estudo
de anatomia dos cursos de medicina das universidades lusitanas, que
não usavam corpos humanos em hipótese alguma, mas sim animais,
como o carneiro. O próprio D. João V havia decretado em 1739 que a
dissecção de cadáveres humanos era estritamente proibida. Os jesuítas
eram de grande influência nos estudos acadêmicos, o que fez os novos
estudos feitos por cientistas de outros reinos seres obstaculizados a
chegar às universidades portuguesas. A medicina do corpo deveria estar
em harmonia com a medicina da alma, então os estudos ou publicações
acadêmicas precisavam ser lidas e analisadas pela hierarquia clerical
para serem aprovadas para publicações, pois o que não provém ou não
está associado a Deus é, portanto, maligno e herético.
Em Portugal, também no século XVIII, sobretudo com a
contratação de professores estrangeiros de renome, por
iniciativa de D. João V e, posteriormente, com a reforma
pombalina da Universidade, ocorreu alterações no ensino
médico. No entanto, de maneira geral, os autores da
Antiguidade, a exemplo de Hipócrates e Galeno ou de
seus comentadores árabes na Idade Média, como Avicena,
continuaram a constituir a base do conhecimento médico
que subsidiava a formação na Universidade de Coimbra
ainda no século seguinte (MERLO, 2015, p. 73).
O médico de D. João V e fonte de pesquisa de trabalho se
enquadrava no que era esperado de um médico do rei. Muito douto
e racional, porém com o objetivo de sempre respeitar e entender as
coisas de Deus. Francisco da Fonseca Henriques viveu no Portugal
do século XVIII (1689-1750), sendo médico na corte do rei D. João

537
Das utopias ao Autoritarismo

V. Escreveu obras sobre assuntos da arte medicinal e em sua maioria,


eram voltadas a auxiliar e dar acessibilidade aos leigos da profissão.
Preocupou-se em escrever muitas delas no idioma nativo para
aumentar essa acessibilidade para quem procurava em seus escritos
formas de conservar a saúde e de entender como surgem os males do
corpo.
Francisco da Fonseca Henriques nasceu em Mirandela em
1665, ficou conhecido por “Dr. Mirandela”. Estudou em Coimbra
e escreveu diversas obras. Pleuricologia, de 1701, foi escrita me
latim e abordava as inflamações da pleura. Os Tratados do uso do
Azougue nos Casos Proibidos em conjunto com a Medicina lusitana
são os segundo e terceiro escritos são do ano de 1710 e escritos
já em português. A quarta obra data de 1711, o Apiario Medico-
Chymico, Chyrurgico e Pharmaceutico. Madeira Ilustrado, de
1715, são ilustrações à obra de Duarte Madeira em conjunto com
uma Dissertação dos humores naturais do corpo. A penúltima obra
Âncora Medicinal – Para conservar a vida com saúde é do ano de
1721 e a última obra, Aquilégio Medicinal, foi escrito em 1726. A
obra de maior destaque e inovação demonstrada por Henriquez foi
a Âncora Medicinal, publicado em 1721 e que teve várias edições
posteriores (1731, 1754 e 1769). Nela o autor trabalha a manutenção
da saúde para as pessoas que a tinham. Os verdadeiros cuidados
médicos eram destinados, nesse tempo, a indivíduos já enfermos,
se valendo de tratamentos como sangrias, vomitórios, purgantes,
sanguessugas, etc., métodos para que fossem expelidas as impurezas
que causavam o desequilíbrio humoral. Era uma época difícil para
os que ficavam doentes ou para os que se incumbiam de tratar as
enfermidades, pois se a pessoa não morria do que contraiu, podia-se
morrer do tratamento médico que recebeu. A proposta da Âncora
Medicinal é de um cuidado diário para manter a saúde que se tem
pela alimentação. O autor se preocupa em deixar para os não doutos
as informações de forma simples aos que procurarem em seu manual
uma melhor forma de viver. Ao escrevê-la na língua nativa do país
demonstra a preocupação dar acesso aos conhecimentos registrados
em seu livro. Ele ressalta no espaço dedicado ao leitor

538
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Inclui este livro um tratado de alimentos, coisa muito


necessária para os que não são médicos, porque é razoável
que saiba cada qual que alimentos usa sem mendigar
de notícias alheias (que às vezes não são muito certas) o
conhecimento de suas qualidades quando o pode alcançar
com certeza e sem mais diligência que a de abrir este
livro, onde com distinção, clareza e brevidade o achará
facilmente (HENRIQUES, 2004, p. 26).
Sabemos que não era comum se escrever na língua nativa e
sim em latim. No final do século XVIII, o número de livros publicados
sobre medicina traduzidos e escritos por autores portugueses aumentam
gradativamente, estando relacionado com a tentativa de fixação da
produção científica em Portugal. O fato é que textos na língua nativa
acabam por ser um veículo de divulgação e de propagação de ideias,
produzindo uma nova prática de comunicação. A Âncora Medicinal
possuiu várias edições durante o século. Observa-se que as publicações
de traduções e de outros livros de medicina deviam atender os critérios
de utilidade e notoriedade na visão científica da época, o que afirma a
importância da obra de Henriques para os acadêmicos modernos.
A obra é dividida em seções que nelas são divididas os
capítulos. São analisadas as seis coisas, segundo o Dr. Mirandela, mais
importantes para se conseguir manter a saúde dos indivíduos: o ar
ambiente, o comer e o beber, o movimento e o descanso, os excretos
e os retentos e as paixões da alma. Essa separação é uma influência
da Escola de Salerno2 que já havia feito essa separação em tópicos
explicando a importância de cada um, totalmente influenciado pela
escola hipocrática. Como o Corpus hippocraticum, explica de forma
detalhada os alimentos e seus nutrientes, separa os estudos por sexo,
classe social e ocupação, idade e analisa detalhadamente o, clima, o
ar, as estações do ano. O saber médico se dá pela percepção sensorial,
pela inteligência do médico e pela operação manual, herança da escola
hipocrática.
2  Escola italiana originada do Mosteiro de Montecassino (séculos XII e XIII)
com tradição grega e árabe. Importante para a inserção do ensino da medicina nas
universidades e deixou grande material escrito, como manuais de anatomia de
animais e descrições e tratamentos de enfermidades. Influenciou os estudos médicos
na Era Medieval e Moderna (cf. PALMESI, 2014, p. 38).

539
Das utopias ao Autoritarismo

Entretanto, pode-se observar as mudanças alimentares


das classes abastadas dentro do manual. A comida, como sabemos,
também é símbolo de distinção social. Dissertar sobre alimentos de
acesso a uma parcela seleta da sociedade nos demonstra para qual
público a obra é destinada. A posição social justificava a quantidade
de refeições no decorrer do dia. Henriques afirma que os homens
“rústicos”, se exercitam muito e dessa forma, comem e bebem
largamente durante ou dia, caso contrário não estariam em condições
de trabalhar. Aos nobres, seria o costume de comer tantas vezes por
dia desde muito cedo em tenra idade não faria mal aos corpos, mesmo
não se ocupando de trabalhos pesados.
Porém o discurso dos excessos está sempre presente, afinal
além da justificativa dos males que causava, o religioso condenava
a gula. Os glutões e suas paixões pelos excessos estariam sujeitos
a passarem extremamente mal ou a morrer logo. O ditado tudo
demais, sobra é o que rege o discurso moralizador médico, que está
associado ao discurso bíblico, pois a influência do cristianismo está
sempre presente. Mas para os nobres que costumavam se fartar com
mais de três refeições diárias e com banquetes festivos sem praticar
trabalhos pesados como os homens rústicos também estavam
justificados. Henriques dá a entender que por terem hábitos de comer
pelo menos quatro vezes ao dia desde o começo de sua criação, essa
comilança não poderia fazer mal devido ao costume adquirido, por
mais que diga que se deva comer até estar saciados, não passando
desse ponto. Sabemos que, como médico do rei, Henriques conhece
os costumes alimentares do contexto social em que está inserido,
sendo ele também parte.
Em seu livro o discurso moralizador religioso anda
atrelado aos ensinamentos médicos, associando ao pecado da gula e
das paixões pelos excessos e os males que resultavam por ao corpo
ao se ceder a essas paixões. Não se encontra uma crítica real aos
costumes dos nobres quanto à alimentação gourmand, e sim aos que
a praticam, não comentando a classe social. Mas como não associar
com a nobreza, já que essa teria alimentos à disposição? Um manual
alimentar médico escrito em português para melhor entendimento

540
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

dos que buscam a informação, não seria dirigido a essa classe? Afinal,
quem seriam os letrados do século XVIII em Portugal? Sabemos que
eram os mais abastados. Pode-se observar que as próprias preferências
alimentares de Henriques estão também em sua obra. Pensamos o
autor e o lugar que ocupava na sociedade. Chocolate, café, açúcar,
por exemplo, recebem ponderações, mas são muito elogiados por
suas propriedades medicinais (e devo dizer que pelo gosto do autor
também). O chocolate, por exemplo, ele aponta
O chocolate é a melhor bebida de quantas inventaram os
castelhanos. É quente e seco, ainda que não falte quem
diga que é temperado, sem excesso de calor, nem de frio. O
certo é que ele se compõe de baunilhas, de canela e açúcar,
que são quentes (...). Toma-se em jejum, ao almoço, de
tarde e ao jantar, ou seja antes, ou depois de comer, que em
qualquer tempo e a qualquer hora o recebe bem o estômago,
falando em comum; porque estômago pode haver que
sempre o receba mal, mas ordinariamente o aceitam bem
os estômago; e não retarda o seu cozimento, ainda que se
beba no tempo dele. As bebidas quentes sempre são mais
próprias para os tempos frios, mas o chocolate, no inverno,
no estio e em todo ano se pode tomar, usando-o com tal
prudência que não ofenda por excessivo, o que aproveitará
sendo moderado (HENRIQUES, 2004, p. 250).
Além disso, ao adoçar o chocolate, podemos perceber que
o açúcar começa a ganhar um espaço específico, não tão misturado
a carnes e algumas sopas como ocorria ainda no final de 1600. Já na
segunda metade do século XVIII é demonstrado na obra de Henriques
que o açúcar é cada vez menos utilizado no preparo de alimentos
que já se usam o sal como tempero, resultando numa “separação” de
pratos doces e salgados.
Assim, a obra pode nos ajudar a elucidar os hábitos
alimentares dos mais abastados e do próprio Henriques. Essa busca
irá considerar o lugar que ele ocupava na sociedade, um lugar de
notoriedade e prestígio, seu acesso aos alimentos finos e distintos e
seu gosto pessoal, que está discretamente demonstrado em seu livro,
para que se possa entender a construção dos gostos da aristocracia
portuguesa e nos mostrar o quanto sua obra sobre dietética é

541
Das utopias ao Autoritarismo

influenciada pelo modo de vida e hábitos alimentares do rei, ou seja,


o seu cotidiano.
Sabemos que comida régia abrange a dimensão política. O
corpo do rei é coberto de simbolismos que interliga a o sacro, o político e
o natural, indissolúveis em uma só pessoa. Ele é representante de Deus
na terra, o soberano do reino, mas possuidor de um corpo mortal. É
de suma importância que o corpo real seja preservado em sua saúde.
A alimentação do rei também era distinção social, ostentação e poder.
Fazer várias refeições durante o dia era demonstrava essa distinção,
com variedade de produtos que significavam a riqueza do soberano.
A fartura, o luxo, a ostentação e abastança ratificam a singularidade,
a distinção e o poder. A ostentação ia-se tornando o sinal distintivo
e o principal motivo da mesa de grandes e de poderosos; cada vez
mais longe de constituir um “lugar” de coesão social, ela era agora um
espaço de separação e de exclusão (BUESCU, 2013, p. 26).
Rituais e hierarquias para que rodeavam a hora de comer são
aspectos do simbolismo alimentar cortesão. A gula e a ostentação é, de
fato, parte do cotidiano da corte, Henriques é ciente disso. Por isso o
discurso de moderação se faz tão presente no decorrer de sua obra.
Além do discurso acadêmico que os excessos trazem desequilíbrio
dos líquidos humorais corpóreos, que atinge o corpo natural do rei,
podem abrir espaços para outro viés. A gula, por exemplo, poderia
abrir caminho para outras paixões carnais, associadas à luxúria ou
qualquer outro excesso. Desta forma, se entende a predicação do
controle das paixões e da moderação, para que o monarca não se
adquira de vícios e enfermidades facilmente. Um rei não comedido
poderia trazer a ruína ao reino.
Não apenas um manual dietético, mas aparentemente
um manual de auxílio para a conduta real, que precisava visar ser
equilibrada o máximo possível, apelando para a racionalidade para
evitar agir por impulsos.
Sendo pois certo que as paixões da alma fazem tantos e
tão graves danos, os que forem estudiosos de conservar
a saúde, devem solicitar muito a tranquilidade do
ânimo, resistindo à veemência daquelas afecções,

542
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

desprezando toda a ocasião e motivos que possam excitá-


las, prevalecendo sobre todos os estímulos da paixão os
superiores poderes do entendimento, que tudo dominam.
É verdade que muitas são tais os casos e tão inopinados
os sucessos, que não podem evitar-se as paixões, nem
prevenir-se os sofrimentos. Mas passado o primeiro
impulso, o que podem fazer os homens é divertir-se com
vários entretenimentos, ou, empregos, que lhe moderem
os sentimentos. Uns jogando, outros lendo, outros
caçando, segundo as suas inclinações e todos conversando
com pessoas de seu agrado, que nada diverte tanto quanto
a conversação de quem se gosta, com a qual os prazeres se
moderam e os trabalhos se aliviam (HENRIQUES, 2004,
p. 285).
Além disso, o gosto poderia ser melhor apreciado se o
comedimento fosse praticado. O prazer ao comer é pregado pela
dietética como importante para que o corpo preservasse o equilíbrio
humoral. Se o alimento agradasse ao palato do indivíduo era entendido
que o estômago digeriria bem e o corpo absorveria os nutrientes,
resultando no equilíbrio dos humores e ajudaria na manutenção da
saúde, esse ensinamento perpassou eras desde a Antiguidade, junto
com outros ensinamentos hipocráticos.
A relação prazer-saúde, que o imaginário contemporâneo
tende frequentemente a perceber em termos conflitantes,
nas culturas pré-modernas foi pensada como um nexo
inseparável, no qual os dois elementos (o prazer e a saúde)
se reforçavam alternadamente. A ideia de que o prazer seja
saudável, que o “que agrada faz bem” é uma ideia-base
da dietética antiga e medieval. E as “regras da saúde” são,
primeiramente, regras alimentares, entendidas não no
sentido da restrição (...), mas da construção de uma cultura
gastronômica (MONTANARI, 2013, p. 90).
Na Âncora Medicinal podemos observar que esse
ensinamento ainda vigora no pensamento médico do autor, que
destaca que
O gosto é entre as paixões da alma a única que conduz para
a preservação da saúde, porque, sendo moderado, faz com
que o calor natural, os espíritos e o sangue se difundam a

543
Das utopias ao Autoritarismo

todo o corpo, de eu resulta grande vigor em todas as suas


partes e boa nutrição, boa cor e boa umectação em todo
ele. Por isto dizia o sábio: A alma alegre faz a vida florida
(HENRIQUES, 2004, p. 284).
A conduta alimentar podia interferir na conduta moral
(e vice-versa) do rei sendo, onde uma linha tênue dividia o prazer
considerado saudável e o prazer maléfico. Dar vazão aos desejos
carnais era perigoso e acarretar a corrupção da alma. A medicina tinha
a função de se entender as coisas de Deus, assim o discurso médico
lusitano nesse período era indissociável da moral religiosa, tendo o
corpo como o templo de Deus, principalmente o corpo real, já que se
tratava do representante da vontade do Todo-poderoso na terra.

Referências Bibliográficas:
BIRMINGHAM, David. História Concisa de Portugal. São Paulo: Edipro,
2015.
BUESCU, Ana Isabel. Dimensão política e de poder da comida régia e do
corpo do rei. Libros de la corte.es. n. 7, ano 5, outono-inverno, 2013.
CAIRUS, Henrique F.; ALSINA, Julieta. A alimentação na dieta hipocrática.
Revista Clássica, v. 20, n. 2, p. 212-238, 2007.
DEL PRIORE, M. L. M. História do corpo. Anais do Museu Paulista, n. 3,
p. 9-26, 1995.
HENRIQUES, Francisco da Fonseca. Âncora Medicinal - Para conservar a
vida com saúde. 4. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2004 [1. ed. 1731].
MERLO, Patrícia M. da Silva. Os estudos médicos e o (des) conhecimento
sobre o corpo no Setecentos português. Dimensões, Vitória, v. 34, p. 50-68,
2015.
MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. 2. ed. São Paulo: Editora
Senac São Paulo, 2013.
PALMESI, Luca. Saber e sabor: corpo, medicina e cozinha na obra de
Francisco da Fonseca Henriques. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
SILVA, Paula Pinto. Farinha, feijão e carne seca: um tripé culinário no
Brasil colônia. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005.

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A Belle Époque, as mudanças sofridas após a


Primeira Guerra Mundial e as influências sobre a
moda e a carreira do costureiro Paul Poiret
Natália Dias De Casado Lima1

Introdução
Na França, o período que começa no fim do século XIX
e que se estende até 1914 é comumente chamado de Belle Époque,
com mudanças socioeconômicas e culturais, além de transformações
urbanas importante para o remanejamento da cidade. A cidade
se expande, torna-se mais homogênea, dotada de infraestrutura e
equipamentos sanitários e, sob esta nova lógica urbana, o modo de vida
das pessoas também teve que se adaptar à nova realidade, assim como
a moda. Esta foi extremamente influenciada pela estética do estilo Art
Nouveau com suas linhas orgânicas e motivos florais. Assim, a figura da
mulher ganha novos contornos e papéis culturais e socioeconômicos
renovados, dado que este tipo de consumo se tornou um os mais
importantes para a França a partir dessa época. Com esse destaque à
moda, os costureiros tornam-se figuras célebres e, dentre eles, há Paul
Poiret, homem que revolucionou as roupas femininas perto do fim da
Belle Époque e mostrou sinais do estilo artístico que mais tarde seria
chamado de Art Déco e que foi largamente adotado após a Primeira
Guerra Mundial. Entretanto, Poiret não alcança o mesmo sucesso
que antes da Guerra mesmo tendo lançado tais tendências e, por
isso, este artigo busca analisar como as mudanças sociais, artísticas
e econômicas ocorridas nesse meio tempo influenciaram a moda, a
carreira e a queda do costureiro Paul Poiret.

1 Mestranda em História pelo programa de Pós-Graduação em História


(PPGHIS) da Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista CAPES. nataliadsw@
gmail.com.

545
Das utopias ao Autoritarismo

A Belle Époque
Apesar de não haver total consenso entre os pesquisadores
sobre a data de início da Belle Époque, este artigo considera que ela
começou em 1871, momento que se segue à instauração da Terceira
República francesa, e quando a França e Alemanha assinaram o Tratado
de Frankfurt, permitindo um período de paz e desenvolvimento entre
as potências europeias (MÉRCHER, 2012, p.1).
Dito isso, passa-se à modernização da cidade de Paris
ocorrida durante a Belle Époque. Até o início do século XIX, a
cidade tinha uma imagem distante daquilo que ela viria a ser. A sua
modernização foi possível graças a um conjunto de fatores, dentre
eles, a chamada Segunda Revolução Industria que ocorreu por volta de
1850, quando se acelera o avanço tecnológico, científico e industrial,
e que permitiu a expansão de estradas de ferro, novas formas de
utilização de materiais, novas fontes de energia e também melhorias
nos sistemas de transporte e de comunicação.
Com o novo e crescente desenvolvimento da população,
das tecnologias, da cidade e do comércio a partir da modernização de
Paris, novas necessidades foram colocadas em pauta. Para isso foram
necessários investimentos capazes de transformar a capital francesa
em uma metrópole moderna, entre eles a substituição das antigas vielas
e ruas estreitas, tortuosas e de difícil circulação, por largas avenidas
longitudinais. Aos olhos do governo, a antiga estrutura urbanística
também favorecia revoltas populares e a construção de barricadas,
que não eram incomuns. Assim, o problema da circulação e da ordem
pública fez com que o governo procurasse novas soluções, modificando
a estrutura urbanística e o traçado das ruas, o alargamento de grandes
avenidas e também investimento em saneamento básico.
Para comandar as necessárias mudanças logo em 1851,
o Imperador escolheu o prefeito do antigo departamento do Sena
Georges-Eugène Haussmann, mais conhecido como o barão de
Haussmann, e um dos primeiros planejadores urbanos. Durante seu
governo (1853-1870) ele submeteu Paris a um verdadeiro processo de
reconstrução ao demolir antigas ruas, casas e pequenos comércios, e

546
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

reorganizou a cidade sob a lógica geométrica de grandes avenidas, que


dificultariam os levantes populares e as barricadas.
Com a transformação da cidade, o modo de vida de muitas
pessoas também mudou, principalmente das classes mais favorecidas
e que podiam desfrutar das novidades, como a bicicleta. Segundo
WEBER (1988, p. 239), a bicicleta “foi um emblema do Progresso e um
de seus agentes no fin-de-siècle”. Por anos ela foi um luxo e o ciclismo
era considerado um passatempo caro, mas o número de bicicletas
passaria de 300 mil em 1897 para 3,5 milhões em 1914 (WEBER, 1988,
p. 244). Tanto homens quanto mulheres passaram a experimentar os
prazeres dos passeios que esse meio de transporte possibilitava, que
também gerava uma mobilidade rara na época sendo que Clubes de
ciclismo estimulavam atividades e surgiram competições.
Dentro da modernização de Paris, na Belle Époque, e das
transformações culturais traduzidas pelo modernismo, também
é importante ressaltar os “boêmios”. Esta palavra pode significar
apenas quem é natural da região da Boêmia, e também os nômades
ciganos. Mas, no contexto espaço-temporal apresentado, representa
a pessoa que se identifica mais com a rua que com sua própria
casa. Não se preocupa tanto com o conforto, preferindo frequentar
bares, salões e cafés, desfrutando da companhia de míseros poetas,
músicos, pintores, de diferentes nacionalidades que escolhem para
viver e trabalhar em Paris.
A burguesia também passou a frequentar os salões de
música, restaurantes e cafés, além do próprio teatro, que também teve
grande importância na nova vida urbana de Paris – e não desbancado
pelo cinema - sendo ele um lugar de luxo. Outra grande obra que
veio da modernização de Paris foi a Ópera Garnier, projeto de um
concurso em que o vencedor foi Charles Garnier. Sua construção
terminou em 1875 e passou a abrigar a Ópera Nacional de Paris, além
de servir de inspiração para diversos teatros pelo mundo, como o
Teatro Municipal do Rio de Janeiro (1909) e o de São Paulo (1911).
Apesar de a modernidade trazer bem mais coisas
aproveitáveis para a sociedade do que seus difamadores estavam

547
Das utopias ao Autoritarismo

dispostos a reconhecer ou sequer perceber, a experiência do


progresso não foi totalmente unânime, como já foi visto ao longo
do capítulo. A “noção de fim” era percebida através de “sintomas de
degeneração”, que traziam implícitos pensamentos de diminuição
e decadência. Homossexualismo e travestismo andavam na mesma
esfera social, pois trazia esse sentimento ao fin-de-siècle. Não muito
longe disso estavam as mulheres, tratadas sempre de maneira
ambígua ao longo da história.
Mesmo que a situação das mulheres não fosse “inteiramente
negra”, para a maioria dos homens e mulheres, a função principal
delas era a maternidade, ou seja, não eram vistam como outra coisa
a não ser um útero. E isso se aplicava a todas as camadas sociais.
As mulheres mais ativas não estavam mais tão interessadas em
serem mães e preferiam ser livres, trabalhar e namorar. Métodos
contraceptivos começaram a evoluir, como o “coito interrompido”, e
essa emancipação do destino biológico serviu como um degrau para a
emancipação do destino social (WEBER, 1988, p. 115).
Isso torna possível dizer que os direitos das mulheres
estavam evoluindo. Elas conseguiram conquistas importantes – o
que poderia ser visto com desgosto por alguns -, como: mulheres
podiam abrir poupanças sem a permissão dos maridos em 1886;
em 1893 mulheres solteiras tiveram capacidade legal reconhecida; o
direito de testemunhar em ações civis em 1897, etc. De acordo com
WEBER (1988, p. 11), em 1884, o divórcio se tornou possível, ainda
que difícil, e em vinte anos a proporção de casamentos para divórcios
e separações passou de 93:1 para 23:1. Contudo, isso não foi suficiente
para acabar com seus problemas.
Outra questão que envolvia as mulheres era sua vestimenta.
Algumas preferiam usar calças ou vestir-se como homens, e eram
consideradas extremamente exóticas. WEBER (1988, p. 51) afirma
que em 1892 o Ministro do interior chegou a emitir uma circular
avisando a todas as prefeituras que as mulheres só poderiam usar
roupas masculinas “para fins de esporte velocípede”. Algumas usavam
também para se disfarçarem de homens em fábricas para conseguirem
emprego, ou para ganharem salários maiores. Esse tipo de censura

548
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

acabou com o passar dos anos e, como EKSTEINS (1991, p. 57) afirma:
“o mundo de 1893, quando um manual de etiqueta francês declarava
que um jovem respeitável nunca se sentaria no mesmo sofá com uma
moça, parecia, vinte anos mais tarde, decididamente medieval”.
Como se pôde perceber, as mudanças ocorridas durante a
Belle Époque também foram importantíssimas para as mudanças nas
vestimentas de acordo com os novos modos de vida associados à vida
moderna. Assim, passamos agora para uma análise do fenômeno da
moda e os seus desdobramentos durante a Belle Époque.

A moda na Belle Époque e sua relação com as artes


Quando falamos de “moda”, nos referimos à indumentária, e
este termo será usado aqui como sinônimo de “roupa” ou de “vestuário”.
De acordo com LIPOVETSKY (2014, p. 79) pode-se dizer que foi
durante o século XIX que ela se instalou e que surgiu “um sistema de
produção e de difusão desconhecido até então e que se manterá com
uma grande regularidade durante um século”. Porém, antes de adentrar
o tema, é preciso fazer uma pequena análise de alguns conceitos sobre a
moda para que a compreensão do assunto seja melhor captada, como a
sua definição e a sua relação com o “novo”.
Primeiramente, expõe-se a definição do Dicionário
Brasileiro da Língua Portuguesa (1980, p. 1156):
Moda, s. f. (fr. Mode). 1. Uso corrente. 2. Forma atual do
vestuário. 3. Fantasia, gosto ou maneira como cada um
faz as coisas. 4. Cantiga, ária, modinha. 5. Estat. O valor
mais frequente numa série de observações. 6. Sociol. Ações
contínuas de pouca duração que ocorrem na forma de
certos elementos culturais (indumentária, habilitação, fala,
recreação, etc.). S. f. Pl. Artigos de vestuário para senhoras
e crianças. Antôn.: anti-moda.
Portanto, a moda é encarnada por diversos elementos
culturais, e não somente a roupa. Entretanto, é com o estudo da
indumentária que o fenômeno da moda se torna mais evidente, sendo
assim sua maior representante.

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Das utopias ao Autoritarismo

Nesse sentido da relação entre moda e vestuário, o que


significaria a palavra “moda”? Como o seu estudo não é uma ciência
exata, diversos estudiosos têm respostas diferentes para essa questão.
KAWAMURA (2005, p. 03) afirma que a etimologia da palavra “moda”
vem de modus, que significa “maneira” ou “modo” em português,
“manner” em inglês e “maniére” em francês. Dentro dessa noção,
enquanto a roupa significa o conjunto genérico de materiais que uma
pessoa usa, a moda possui um grande número de significados sociais
diferentes.
SVENDSEN (2010, p. 12) afirma que o termo “moda”
é especialmente difícil de definir, mas que pode se referir a duas
categorias principais: ao vestuário ou ao fato de que é um mecanismo,
lógica ou ideologia que se aplica à área do vestuário. Ele cita Baudelaire,
que afirma que a moda é um esforço para alcançar a beleza (2010, p.
28), Kant, que considera a moda a ordem da vaidade e da insensatez
(2010, p. 43), e Thorstein Veblen, que considera a moda uma forma
de promoção social, pois “não basta ter dinheiro e poder: isso tem de
ser visível” (2010, p. 44).
Para CALANCA (2011, p. 11) a moda é “um fenômeno
social da mudança cíclica dos costumes e dos hábitos, das escolhas
e dos gostos, coletivamente validado e tornado quase obrigatório”, e
este concerne a todos os meios de expressão e de transformação do
homem (2011, p. 14). Desta forma, a moda seria um fenômeno que
espelha de certa forma os fenômenos socioeconômicos, culturais e
políticos, diferente do que a autora considera como “costume”, que
seria um hábito de se vestir constante e eu determina o modo de ser
de pessoas de um mesmo contexto histórico-social.
KAWAMURA (2005, p. 01) defende que a moda é uma
atividade coletiva, uma instituição que produz fenômenos e conceitos.
Ela dá às roupas elementos imaginários, como uma marca, e o que
as pessoas realmente compram são esses valores. A teórica considera,
por isso, que “tentar definir uma peça como moda é fútil, pois a moda
“não é um produto material, mas um produto simbólico, que sozinho
não tem conteúdo ou substância” (2005, p. 02, tradução nossa).

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Partindo para q questão do “novo”, segundo SVENDSEN


(2012, p. 06), ele e a “moda” frequentemente andam juntos devido às
suas naturezas voláteis. CALANCA (2011, p. 12) chega a afirmar que
“pode-se dizer que existe moda quando o amor pelo novo se torna
um princípio constante, um hábito, uma exigência cultural” e, assim,
o “novo” se torna um item comprável (KAWAMURA, 2005, p. 06).
Entretanto, como lembra MONNEYRON (2007, p. 114), é
extremamente difícil, diria até impossível, abstrair-se do que já existiu.
SVENDSEN (2010, p. 10) afirma que a moda é a “eterna recorrência
do novo”, sendo os dois termos coisas diferentes. “A moda não precisa
de fato introduzir algo novo; ela pode dizer respeito igualmente ao que
não se está usando, como quando se tornou moda não usar chapéu”
(SVENDSEN, 2010, p. 15). A moda também pode ser considerada
como mudança, mas nem toda mudança é necessariamente moda. De
acordo com SVENDSEN (2010, p. 24), ela só se configura como tal
quando busca a mudança por si mesma, e ocorre com uma frequência
relativa. E, de acordo com GODART (2010, p. 86), essas mudanças na
moda podem ser endógenas e exógenas, ou seja, devido a mecanismos
internos ou externos em relação a ela. SVENDSEN (2010, p. 31) afirma
que as mudanças na moda ocorrem mais por causa de condições
internas do que com desenvolvimentos políticos, porém, vale lembrar
que uma esfera influencia a outra.
Ainda segundo SVENDSEN (2010, p. 26), a noção de “novo”
só surgiu com o advento das ideias iluministas durante o século XVIII,
quando “ser moderno se torna um valor em si mesmo”, e também
se torna sinônimo de “novo”. Cria-se então uma tendência ao gosto
pela novidade, mesmo que essa na verdade tenha grandes inspirações
em elementos já usados no passado. Assim, pode-se considerar
que a moda tem um movimento cíclico e, com o passar dos anos, o
intervalo entre esses ciclos se torna cada vez menor, diminuindo a
distância entre o novo e a reciclagem. Assim como outros estudiosos,
SVENDSEN (2010, p. 31) conclui que a moda é irracional, pois busca
a “mudança pela mudança”.
Sobre a relação entre o fenômeno da moda e a sua relação
com a arte, existem diversas interpretações possíveis sobre elas entre

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Das utopias ao Autoritarismo

estudiosos que defendem que a moda seria uma forma de arte ou não.
Esta pesquisa considera que a moda está mais próxima da arte visual e
plástica do que, por exemplo, a linguagem verbal defendida por Roland
Barthes no livro O Sistema da Moda (2009). A semântica da moda e das
roupas seria instável porque, de acordo com SVENDSEN(2010, p. 80),
na sociedade pós-moderna elas funcionariam como “textos abertos”
que podem adquirir novos significados a qualquer hora dependendo
do contexto e da temporalidade, ao passo que a linguagem verbal tem
uma estabilidade muito maior.
Nem todos concordam que a moda seja de fato arte,
mas defendemos a visão de que a moda pode ser considerada arte
dependendo da interpretação a ela dada, e considerando que na
atualidade as fronteiras da arte se diluíram e a mesma deixou de ser
pura, hibridizando-se com outras formas de linguagens, processos e
saberes.
Segundo GODART (2010, p. 13), a indústria da moda possui
uma dualidade fundamental pois, ao mesmo tempo que é atividade
econômica, é também atividade artística, já que seus designers e
criadores transformam matérias-primas inertes em objetos dotados
de significado expressos através de cortes, cores ou uma logomarca.
Portanto, a indústria da moda gera símbolos carregados de significado,
podendo ser considerada uma indústria cultural ou criativa. Além
disso, mesmo podendo ser considerada arte, SVENDSEN (2010, p.
105 e 106) afirma que a moda ocupa um lugar especial entre a arte e o
capital e que, desde o tempo do estilista Paul Poiret, “a arte foi usada
para aumentar o capital cultural do estilista”.
A questão de a moda ser arte ou não gera muitos debates
justamente por não ter sido considerada como tal de forma tradicional.
Sob um ponto de vista de demarcação de uso, SVENDSEN (2010,
p. 119) afirma que a moda usável pode ser vista como arte aplicada
ou ofício, e a peça de roupa que acaba não sendo usável não pode
ser considerada moda, mas pode ser arte. Entretanto, esta visão
seria problemática por que no fim todas as roupas pretendem ser
usadas e nem todo objeto inútil pode ser visto como arte. Há a visão
de que a moda é arte quando esta faz algum tipo de reflexão com o

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seu meio, ligando-se à autorreflexividade da arte moderna (2010, p.


121), mas ao mesmo tempo ela não chega a nenhuma conclusão já
que seus significados mudam rapidamente com o tempo e lugar. Na
opinião do autor (2010, p. 122), alguns exemplos de moda podem
ser considerados arte e que os conceitos de arte e moda já foram
expandidos o suficiente para englobar as duas coisas. No fim, uma
acaba influenciado a outra e vice-versa.
Neste jogo de influências, destaca-se na Belle Époque a
relação entre a moda e o estilo do Art Nouveau, que influenciou a
grande maioria dos costureiros da época, dentre eles Paul Poiret.

Moda e Art Nouveau na Belle Époque


O Art Nouveau esteve em voga aproximadamente entre 1890
e 1914, portanto, dentro da Belle Époque e completou seu ciclo junto
com a chegada da Primeira Guerra Mundial. Ele explodiu na França
por volta de 1895, espalhando-se em diversos países como a Bélgica
e a Rússia. Entretanto, suas origens começam antes, pois usualmente
associa-se o estilo com o Arts and Crafts, um movimento estético e
social inglês que durou relativamente pouco tempo, mas que deu as
bases para o surgimento do Art Nouveau. De acordo com um catálogo
da National Gallery of Art de Washington – NGA (2000, p. 07) -, a
Inglaterra vinha se industrializando em ritmo acelerado e maior que nas
outras nações justamente por ter tomado a dianteira desde a primeira
Revolução Industrial, e as insatisfações com o “progresso” fizeram com
que homens como John Ruskin e William Morris quisessem chamar
a atenção para a restauração do status do artesão, pois temiam que a
máquina padronizasse e serializasse os objetos, contribuindo para a
banalização e a massificação dos valores estéticos.
A partir de 1880, algumas associações inspiradas pelas ideias
de Morris e Ruskin – como a Century Guild – surgiram na Inglaterra,
destacando-se a The Arts and Crafts Exhibition Society. Era uma
exposição quadrienal que englobava principalmente móveis, tapeçaria
e estofados, fundada em 1888 por Walter Crane e este foi o momento
em que se utilizou o termo “Arts and Crafts” pela primeira vez.

553
Das utopias ao Autoritarismo

Por volta de 1890, o Art and Crafts se misturou com o Art


Nouveau. Segundo GOMBRICH (2013, p. 412), Ruskin e Morris
tinham a esperança de que a arte pudesse voltar quase que para o
status medieval do artesão, mas muitos artistas, cansados da repetição
de formas, métodos e ornamentos clichês de épocas passadas,
perceberam que isso não seria possível e, por isso, foram atrás de
uma “Arte Nova”. O termo foi usado pela primeira vez em 1894 por
Edmond Picard em L’Art Moderne, e em 1895 Siegfried Bing abre a
Maison L’Art Nouveau em Paris. O catálogo da The National Gallery
of Art (2000, p. 07) atesta que o Art Nouveau herdou do Arts and
Crafts a crença na união de todos os tipos de arte e sem fazer uma
distinção entre Belas Artes e Artes Aplicadas. Além disso, contribui
para a aproximação com o artesanato e a “arte pela arte”, dando
importância à “simplicidade elegante”, individualismo romântico e a
uma tendência ao erotismo.
De fato, as mulheres eram de central importância no Art
Nouveau. De acordo com Rose (2014, p. 07), elas serviam de “musas
inspiradoras” em diversas obras, mas não eram apenas temas das artes,
como do comércio: estavam nos Cafés, nos postes de rua, nos Balés
Russos e até no absinto. Não faltariam na época figuras femininas
vestindo um elegante vestido com espartilho, nas representações da
beleza ideal das ilustrações de Alphonse Mucha ou nas pinturas de
Gustav Klimt, representações essas consideradas provocativas na época.
GOMBRICH (2013, p. 412 e 427) também afirma que
aqueles que se colocaram sob a bandeira do Art Nouveau queriam
ter um novo olhar sobre o desenho, a pintura, a ornamentação e as
possibilidades que os novos materiais possibilitavam.
Linhas curvas e orgânicas e motivos da flora e da fauna
eram extremamente comuns, na nova arte. Segundo o catálogo da
NGA (2000, p. 08), para uma pessoa vivendo no fim do século XIX,
a recorrência à natureza não era neutra, pois sugeria um modelo
de transformação e metamorfose. Também apontam para o fato de
que a sexta edição de A Origem das Espécies, de Charles Darwin,
fora publicada em 1871 e ilustrada pela primeira vez, o que pode ter
influenciado o interesse dos artistas pela dinâmica da natureza.

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LAHOR (2007, p. 236) afirma que a paixão dos artistas


pelo Art Nouveau foi diferente na França em relação a esses motivos
florais do que em outros países, pois “ao invés de apenas decorarem
esquematicamente a natureza, os artistas franceses se concentraram
em embelezar novas formas com ornamentações esculpidas que
mantinham a graça natural das flores”.
Convém destacar a influência oriental sobre o Art Nouveau,
pois, como afirma GOMBRICH (2013, p. 412), “se a tradição
ocidental estava demasiadamente ligada aos antigos métodos, por
que não buscar no Oriente outra gama de padrões e novas ideias?”.
Segundo François BOUCHER (2010, p. 373), a industrialização, o
desenvolvimento de meios de transporte e a melhoria das relações
internacionais contribuíram para que aspectos orientais adentrassem
a cultura europeia – inclusive através das Exposições Universais – e
intensificassem o intercâmbio artístico e cultural.
Os balés russos influenciaram a moda e culturas árabes e
trouxeram a utilização de cores que antes eram ignoradas. Segundo
o catálogo da NAG (2000, p. 07), a arte islâmica sempre teve algum
grau de influência na Europa, mas o Art Nouveau foi “especialmente
receptivo às suas curvas sinuosas e ‘arabesques’”, além de contribuir
com temáticas exóticas que poderiam exaltar o “luxo sensual” e o
erótico.
Havia também o Japonisme e Kitayama (2010, p. 64) propõe
diversas interpretações do que representava esta palavra. O termo
começou a ser usado em meados do século XIX para ilustrar o espírito,
as artes ou os modos japoneses. Depois passou também a designar
produtos artesanais japoneses – como cerâmicas, leques e quimonos -,
podendo ser visto como a comercialização do gosto refinado japonês
nessa época. O ponto é que o Japonisme também se infiltrou no
Art Nouveau. A estampa Ukiyo-e deu o espírito floral e natural ao
movimento e inspirou diversos artistas. Um exemplo dessa influência
japonesa seria o quadro “Irises” (1889) – também conhecido como
“Iris” ou “Lírios” -, de Van Gogh, inspirado pela estampa Ukiyo-e
chamada Iris (anos de 1820), de Katsushika Hokusai. Van Gogh
utilizou essas estampas como inspiração para diversos outros quadros,

555
Das utopias ao Autoritarismo

da mesma forma que outros artistas contemporâneos à época, como


Gauguin, Manet, Degas e Toulouse-Lautrec. Até mesmo Siegfried
Bing, fundador da já citada Maison de L’Art Nouveau, era um grande
conhecedor da arte japonesa.
Todas essas características do Art Nouveau também
acabaram influenciando os costureiros e a moda em algum nível.
Nesse ambiente de intercâmbio artístico e intelectual cresceu a Haute
Couture (alta-costura) e as primeiras lojas de departamento francesas
(Le magasin). Apesar de a confecção industrial ter surgido antes da
alta-costura, esta
monopoliza a inovação, lança a tendência do ano; a
confecção e as outras indústrias seguem, inspiram-se nela
mais ou menos de perto, com mais ou menos atraso, de
qualquer modo a preços incomparáveis (LIPOVETSKY,
2014, p. 80).
Logo no começo da Belle époque, por volta de 1870, já havia
a influência do japonisme. Segundo STEVENSON (2012, p. 60), as
cores de vermelho ouro passaram a ser mais vistas, e os designers
procuraram novas formas de utilizar os tecidos, além do uso extensivo
de objetos como o leque.
De acordo com STEVENSON (2012, p. 67), a nova curvatura
de meados de 1880 era considerada melhor para a saúde por a
tournure (uma espécie de crinolina) ter sido concebida como suporte.
A linha da silhueta da mulher começou a ficar mais esbelta e novos
tecidos foram incorporados à moda, como cetins e rendas, mas estes
não poderiam ser usados em quaisquer ocasiões, pois foi também por
volta desse momento que ficaram mais notáveis as diferenças entre os
trajes dependendo da hora do dia e da ocasião.
Segundo BOUCHER (2010, p. 376), O desaparecimento da
tounure inaugura a fase de 1885 a 1900, quando havia uma loucura
por chapéus com flores e plumas. As saias menos longas e em formato
de sino, os espartilhos e a gola alta deram ao busto feminino uma
postura arqueada e de cabeça erguida. Segundo James Laver (2014,
p. 213):

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

A moda, como sempre, era um reflexo da época [...].


Preferia-se a mulher madura, fria e dominadora, com o
busto pesado, cujo efeito era enfatizado pelos chamados
espartilhos ‘saudáveis’ que, num esforço louvável para
evitar a pressão sobre o abdômen, tornava o corpo
rigidamente ereto na frente, levantando o busto e jogando
os quadris para trás. Isso produzia a postura peculiar em
forma de S tão característica da época.
Os “espartilhos saudáveis” eram reforçados com cordões
e eram uma alternativa aos espartilhos tradicionais de barbatanas.
Esse formato em “S” é uma das influências mais evidentes do Art
Nouveau na moda. Além dos novos tecidos, motivos florais e das
plumas de pavão, o “S” também seguia o gosto pela linha ondulada
tão característico do estilo.
Há também a influência inglesa com os costumes tailleurs
em 1886, que os franceses adaptam para que tivessem linhas menos
severas. De acordo com BOUCHER (2010, p. 387), o “traje da cidade”,
que não precisava necessariamente seguir todos os mandamentos da
moda, “se simplifica com o surgimento do costume tailleur, em tecido
liso, de aspecto masculino, com cinto de couro. As blusas chemisier,
de gola alta, são roupas práticas para as mulheres que começam a levar
uma vida mais ativa”. Segundo LAVER (2014, p. 211), a década de
1890 foi uma época de mudança de valores:
A velha e rígida estrutura social estava se desfazendo
visivelmente, com milionários sul-africanos e outros
nouveaux riches tomando de assalto as cidadelas da
aristocracia. Para os jovens, havia uma brisa de liberdade,
simbolizada tanto pelos seus trajes esportivos quanto pela
extravagância de suas roupas cotidianas.
Deste modo, a mudança do estilo de vida das pessoas e da
visão da mulher na sociedade influenciaram diretamente a moda.
Entretanto, o “império do espartilho” ainda não tinha acabado.
Por volta da década de 1890 ocorreu o surgimento do “ideal da
ampulheta” a partir da Gibson Girl, outro exemplo da influência das
formas orgânicas do Art Nouveau, mas dessa vez tendo sua origem
nos Estados Unidos. Estampas florais, rendas, seda e cetim marcaram

557
Das utopias ao Autoritarismo

boa parte da moda Art nouveau. Um exemplo é um “Evening Gown”


da Maison Worth, que ficou conhecido como La robe aux Lis.
Os anos entre 1900 e 1914 provavelmente foram os que
mais sofreram mudanças na moda durante a Belle Époque. Por
volta de 1908 a silhueta feminina se modificou novamente, com a
diminuição do formato em S e a utilização de chapéus enormes, o que
dava a impressão de que os quadris estavam ficando cada vez mais
estreitos. No ano seguinte chegaram os Ballets Russes em Paris, o que
causou um grande impacto na moda de até então. De acordo com
STEVENSON (2012, p. 78),
os costureiros foram rápidos em sua resposta à vanguarda
russa, com Paul Poiret ao timão. A riqueza do colorido, a
decoração bizarra e o corte exótico foram traduzidos numa
mudança fundamental que baniu a figura rigidamente
espartilhada.
BOUCHER (2010, p. 389) concorda que é por volta de 1910
que a cintura dos vestidos muda sob a influência dos costureiros que
preconizam o abandono do espartilho. A linha da cintura sobe e o
corte fica mais reto, lembrando os vestidos da época do Diretório (por
volta de 1790), mas que, ao invés de terem a aquela pureza branca,
tinham uma “interpretação muito mais exótica em termos de cor
e padrão” (STEVENSON, 2012, p. 80). É nessa época que também
surgem os vestidos entravées, em que uma faixa reta reveste a barra
dos vestidos, dificultando a caminhada. As mulheres não podiam
dar passos maiores que 8 centímetros, porém, arranjos com dobras
ajudaram a burlar essa parcial imobilidade.
Por fim, BOUCHER (2010, p. 393) afirma que em 1914
o traje feminino alcançou o estilo que pode ser resumido como
o da “linha”: “ela condensa a renúncia ao volume e à liberdade
de aparência, bem como a suavização dos tecidos e a audácia dos
coloridos”, preconizando características do Art Déco2 alguns anos
depois viria a ser moda alguns anos depois, e da qual o costureiro

2 Art Déco: estilo artístico marcado pelo uso de linhas geométricas. Foi
direcionado principalmente à burguesia do pós-guerra, apesar de também atingir um
público-alvo mais amplo graças à crescente produção em massa de roupas.

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Paul Poiret foi o principal “vanguardista”. Assim, passamos à análise


das principais modificações que foram encabeçadas pelo estilo deste
grande costureiro da Belle Époque.

Paul Poiret e suas criações


Charles Frederick Worth sem dúvida foi um dos costureiros
mais importantes do período, mas sua morte em 1895 deixa espaço
para que outros costureiros possam alcançar os holofotes no auge da
Belle Époque. A partir do começo do século XX, e principalmente nos
anos de 1910, um dos costureiros que mais se destaca é Paul Poiret, e
seu estilo influenciou e inspirou por quase uma década grande parte
dos costureiros, criando tendências e realizando inovações que o
tornaram digno de ser reconhecido como “King of Fashion” ou “Le
Magnifique”.
Paul Poiret nasceu no dia 20 de abril de 1879, em Paris
(França). Portanto, ele foi um homem de seu tempo, nascido em
plena Belle Époque. Em sua autobiografia chamada King of fashion:
the autobiography of Paul Poiret (2009), publicada pela primeira vez
em 1931, Poiret afirma ser um “Parisiense de Paris” (2009, p. 01).
Quando já era um rapaz, foi trabalhar em uma loja que
fabricava guarda-chuvas. Enquanto fazia entregas do produto por
Paris, Poiret passou a vender alguns de seus esboços para Maisons
de Couture famosas como Doucet, Worth e Paquin. Em 1898, ele
foi chamado por Jacques Doucet para que parasse de “deixar seus
ovos em cada cesta” (POIRET, 2009, p.11) e produzisse apenas para
ele. Assim, Paul Poiret enfim entrou no mundo da Alta Costura e da
produção de vestidos, trabalhando para Doucet quando este estava
no topo.
Poiret fazia de tudo para ganhar importância dentro da
Maison e chegou a ser chefe do departamento da alfaiataria. Lá ele
conheceu os mais importantes clientes de Doucet e também participava
das criações de novos modelos toda semana. Suas criações pessoais
ainda seguiam bastante o modelo da época e tinham grande influência

559
Das utopias ao Autoritarismo

de seu mestre, mas não demorou muito para que suas opiniões fortes
entrassem em conflito com Doucet e ele teve que deixar a Maison.
Desde a morte de Charles Frederick Worth em 1895, seus
filhos Gaston e Jean deram continuidade à Maison Worth. Gaston,
em determinado momento, falou com Poiret que seu irmão Jean
se recusava a fazer determinados tipos de vestidos mais práticos e
simples, mas que lhes eram pedidos. Era como se um restaurante só
servisse trufas, mas precisava criar um setor de batatas fritas. A Poiret
foi oferecida a tarefa de fazer as “batatas fritas” e assim ele passou a
trabalhar para a Maison Worth.
Desde cedo, Jean Worth não gostava das roupas que
Poiret fazia. Segundo ele, elas rebaixavam o status da Maison. Os
desentendimentos com Jean e alguns de seus clientes fizeram com
que Poiret não conseguisse ficar lá por muito tempo. Uma casa vazia
na rue Auber fez com que Poiret começasse seus planos de abrir sua
própria loja. A procura de apoio, ele chegou para Gaston Worth e
disse (POIRET, 2009, p.34 – tradução livre):
Você me pediu para criar um departamento de batatas
fritas. Eu fiz isso. Estou satisfeito com isso e espero que
você também. Mas espalha-se pela casa um odor de fritura
que parece incomodar muita gente. Assim penso em me
mudar para outro quarteirão, fritando batatas por minha
conta. Você poderia pagar pela minha frigideira?
Gaston disse que entendia a impaciência de Poiret e
admirava sua iniciativa, mas que não podia nem sonhar em investir
em outro negócio que não fosse o seu, desejando-o boa sorte. Para
poder conquistar seus objetivos, Poiret teve que contar com a ajuda
da mãe, pois seu pai não fazia mais questão de ampará-lo. Em 1904,
a Maison Poiret foi inaugurada. Apenas um mês depois, boa parte
da alta sociedade de Paris já havia passado pela Maison, inclusive
atrizes famosas.
As principais criações de Paul Poiret foram feitas por volta
de 1910, consagrando seu estilo na História da moda da Belle Époque.
Ele influenciou outros costureiros e pode ser considerado o precursor
de uma nova era, estendendo suas influências pelos anos vindouros.

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Entretanto, antes de alcançar sua “marca”, o estilo de Poiret passou


por diversas mudanças, assim como é comum a qualquer artista que
procura se desenvolver.
Durante o período em que trabalhou na Maison Worth com
a missão de criar um departamento de “batatas fritas”, com roupas
menos complicadas e mais “populares”, Poiret começou uma fase
de transição entre o que era “comum” e o seu estilo reconhecido. Lá,
ele fez criações baseadas nos quimonos japoneses, que mais tarde
ele evoluiria a técnica e faria mais “Kimono coats”. Em 1906, já na
Maison Poiret, ele era capaz de criar vestidos com tecidos mais soltos,
mas, no mesmo ano, também fazer algo mais parecido com o que era
feito até então.
A partir de 1906, Poiret também começou a popularizar
vestidos de cintura alta. Isso levou a uma das principais revoluções
na moda nessa época e é uma das coisas que mais fazem Poiret ser
lembrado: o abandono do império do espartilho. Nesse ponto, seu
estilo começou a ser mais baseado em formatos, linhas e construções
simples. As linhas do pescoço passaram a ficar mais abertas e os
tecidos soltos criavam uma silhueta mais longa e reta. Esse formato
foi inspirado nas roupas do Primeiro Império, quando não se dava
tanto destaque aos quadris.
Essas mudanças foram chocantes para a época, mas
bem aceitas pelas mulheres. A supressão do espartilho deu a elas
“liberdade”. De acordo com BOUCHER (2010, p. 390), a moda
passou a ter um seguimento mais sóbrio a partir desse tipo de corte
mais simples, sendo preciso o uso de acessórios. Poiret critica essa
tendência “homogênea”. Segundo LIPOVETSKY (2014, p.86): “Paul
Poiret abandonou o espartilho, deu uma flexibilidade nova ao andar
feminino, mas permaneceu fiel ao gosto da ornamentação sofisticada,
à suntuosidade tradicional do vestuário”. De acordo com ROSE
(2014, p. 26), foi justamente a simplicidade da estrutura do vestido
que deu destaque à beleza dos tecidos e estampas, sendo então um tipo
de costura muito bem aproveitado pelo Art Nouveau.
Segundo BOUCHER (2010, p.374), antes mesmo de 1910 e

561
Das utopias ao Autoritarismo

da invasão oriental, Paul Poiret já estava revolucionando no uso das


cores na moda feminina, “substituindo os tons pálidos e evanescentes
pelo roxo-escuro, o vermelho vibrante, o laranja quente, o verde e o
azul vivos que ‘fizeram tudo cantar’”. Ele criou foram novidades em
que seus colegas viram potencial, pois, além de serem diferentes,
também agradavam a clientela. Mais uma vez fica clara a busca de
Poiret pela individualidade e como essa época foi essencial para a
criação da moda contemporânea.
Por intermédio do Novo, a organização artesanal, com
suas lentidões e suas inovações aleatórias, pôde dar lugar
precisamente a ‘uma indústria cuja razão de ser é criar
novidade’ (Poiret) (LIPOVETSKY, 2014, p. 119).
Mas Poiret não tirou suas inspirações do nada. Ele foi
influenciado pelas próprias tendências do Art Nouveau característico
da época, mas seu trabalho ficou realmente conhecido por causa das
inspirações orientais. Em 1909-1910 ocorreu a citada invasão oriental
que mudaria o seu estilo e o da moda na Belle Époque. De acordo
com ROSE (2014, p. 26), Poiret foi profundamente influenciado
pela chegada do Balé Russo de Serge Diaghilev a Paris em 1909, com
cenários que ilustravam a cultura exótica da Ásia central e o Oriente
Próximo. LAVER (2014, p. 224) afirma que a peça Schéhérazade,
com o figurino de Leon Bakst, tinha muitas cores espalhafatosas e “a
sociedade as adotou com entusiasmo”. Poiret foi muito influenciado
por Bakst, tanto que a autoria de algumas de suas peças foi
erroneamente atribuída ao figurinista.
Por volta dessa época que Poiret criou os vestidos entravés.
Em sua autobiografia, o próprio Poiret admite que libertou o busto,
mas algemou as pernas (2009, p. 36). Segundo LAVER (2014, p. 224),
para evitar que a mulher desse um passo mais largo e rasgasse a saia do
vestido entravé, “costumava-se usar uma tira larga de cadarço. Parecia
que todas as mulheres (...) estavam determinadas a ter o aspecto de
uma escrava de harém do Oriente”.
Mas Paul Poiret ainda tinha muito mais a mostrar. De
acordo com BOUCHER (2010, p. 374-375):

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André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

Poiret, que se defendeu de ter ‘sofrido’ o orientalismo


violento dos Ballets Russes, não imaginou apenas ‘tecidos
de fogo e alegria’, criou também o turbante à oriental, os
vestidos entravés, as saias sultanas, as túnicas suntuosas, as
capas pesadas cobertas de borlas e franjas, os penachos de
plumas multicoloridas e os torçais de pérolas rebrilhando
sob echarpes de raposa branca.
A ocidentalização dos turbantes também pode ser atribuída
a Poiret. Em sua autobiografia (2009, p. 95), ele afirma que visitou o
Museu South Kensington (renomeado Museu Victoria and Albert em
1899), onde viu diversos tesouros da Índia. A exposição de turbantes
foi o que particularmente lhe chamou atenção, e Poiret inclusive
obteve permissão para pegar nas peças e examiná-las de perto. Ele
chamou uma artista para o museu e ela copiou diversos modelos para
lhe servirem de inspiração. Segundo Poiret, em poucas semanas eles
fizeram os turbantes se tornarem moda em Paris. De fato, os turbantes
ficaram populares e foi uma moda que seguiu também pelos anos de
1920, provavelmente por causa do advento dos carros motorizados e a
proteção que os turbantes ofereciam aos cabelos das mulheres.
Com o início da Primeira Guerra Mundial, Paul Poiret
foi servir no exército como costureiro e o mundo da moda deu uma
estagnada geral por alguns anos. Após seu retorno em 1919, Poiret
não conseguiu se adequar muito bem às ideias modernistas, falindo
em 1929. Entretanto, é preciso fazer uma análise um pouco mais
profunda das mudanças sofridas pela sociedade e pela cultura da
época para que se possa compreender por completo a queda deste
costureiro que, mesmo lançando tendências que seriam moda nos
anos de 1920, como os turbantes e os vestidos “retos”, não conseguiu
o mesmo sucesso.

As mudanças do pós-guerra e o fim da carreira de Poiret


A Primeira Guerra mundial foi um evento extremamente
traumatizante principalmente para a Europa, que presenciou em
primeira mão e em seu próprio território os horrores da “guerra de
trincheiras” e de novas armas letais. Ela perdurou durante os anos

563
Das utopias ao Autoritarismo

de 1914 e 1918, e não teria como o mundo e a sociedade europeia


serem os mesmos que eram antes. Diversas mudanças nas artes, nos
costumes sociais e na cultura de forma geral, na política e na economia
transformaram a sociedade europeia para algo que não poderia mais
voltar atrás naquele momento da História.
Entretanto, algumas dessas mudanças já mostravam seus
primeiros sinais de mudança antes mesmo da guerra, como nas artes.
Segundo GOMBRICH (2013, p. 379-380), a “quebra de tradição” que
possibilitou o surgimento do modernismo como movimento artístico
começou desde a Revolução Francesa em 1789, que modificou o
contexto em que os artistas viviam e trabalhavam. A Revolução
Industrial possibilita a adoção de novas tecnologias, máquinas e
materiais.
Nos campos da pintura e da escultura, GOMBRICH (2013,
p. 381) afirma que, no século XIX, os artistas perderam a segurança
com os quais estavam acostumados em relação ao seu ofício.
Artista nenhum precisava se perguntar sobre o porquê de
sua presença no mundo. Em certo sentido, seu trabalho
era tão bem definido quanto qualquer outra vocação (...).
Em todas as tarefas, ele podia trabalhar a partir de linhas
mais ou menos preestabelecidas.
A quebra da tradição abriu aos artistas um leque ilimitado
de opções ilimitado. Já em 1802, John Constable escreveu que
“não há espaço para um pintor natural. O grande vício dos dias de
hoje é a bravura, a tentativa de fazer algo que vá além da verdade”
(GOMBRICH, 2013, p. 375), isto é, além do objetivo.
Em meados do século XIX, a fotografia também contribuiu
para essa visão da rejeição do objetivo, pois, para muitos artistas, não
fazia mais sentido fazer uma reprodução da realidade na pintura se
ela já poderia ser captada através da foto, mesmo que em preto e
branco. Mesmo que o academicismo ainda priorizasse movimentos
mais tradicionais, como o Neoclassicismo e o Romantismo, foi com
vanguardas e novos estilos artísticos, como o Art Nouveau, que muitos
artistas resolveram seguir ao longo dos anos. Foram movimentos

564
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

que deram mais importância à forma, às cores, ao movimento e ao


sentimento subjetivo do que o realismo, mas, segundo GOMBRICH
(2013, p. 382), quanto mais se ampliava a gama de possibilidades,
maior a probabilidade de que o gosto do artista não coincidisse com
o gosto do público.
Devido ao fato de a subjetividade artística ter ganhado
importância, esta também foi possivelmente a primeira vez que a arte
se tornou um meio de expressão individual. Poucos artistas de sucesso
na época que seguiam a arte acadêmica são lembrados anos depois,
mas os vanguardistas, muitos reconhecidos apenas postumamente,
têm suas obras expostas em museus e coleções particulares, expostas
para uma diversidade enorme de pessoas. GOMBRICH (2013, p. 386-
387) defende que a provável causa para isso é que “nossas concepções
a respeito do passado tendem a mudar muito rápido”, e talvez em
outro momento da história essas obras esquecidas sejam resgatadas
e recebam seu mérito, mas o fato é que o que atualmente restou
do século XIX foi feito por um seleto grupo de artistas que tiveram
coragem para enfrentar as convenções de sua época.
O ano de 1914 marca não só o fim da Belle Époque como o
fim da era de ouro do Art Nouveau com a chegada da Primeira Guerra
Mundial, momento em que todas as esferas públicas e privadas entram
em crise na Europa. Entretanto, o estilo foi perdendo força já por volta
de 1910, quando outro estilo artístico que mais tarde seria conhecido
como Art Déco começou a dar os seus primeiros sinais, mesclando-se
com o Art Nouveau de então.
Além disso, GOMBRICH (2013, p. 427) afirma que alguns
artistas sentiam que haviam “perdido alguma coisa” em meio a essa
busca da “arte pela arte” e a ornamentação puramente bela, citando
Cézanne, que achava que havia perdido o “senso de ordem e equilíbrio”,
Gauguin, que estava insatisfeito com a arte do momento e aspirava
algo mais simples e direto, e Van Gogh, que sentia que “ao render-se
às impressões visuais e não explorar nada além das qualidades ópticas
da luz e da cor, a arte corria o risco de perder a intensidade e a paixão
que são os únicos meios pelos quais o artista pode comunicar seus
sentimentos aos demais”.

565
Das utopias ao Autoritarismo

GOMBRICH (2013, p. 427) defende que a Arte Moderna


surgiu desses descontentamentos e que gerou movimentos como o
Expressionismo, Cubismo e Primitivismo. Diante de tantas novas
tendências artísticas, o Art Nouveau foi se esvaindo aos poucos e, após
a Primeira Guerra Mundial, ele não seria retomado.
De acordo com LIPOVETSKY (2014, p. 80-82), a confecção
de roupas no pós-guerra sofreu transformações com uma maior
divisão do trabalho, o maquinismo aperfeiçoado e o progresso da
indústria química. Na metade dos anos 20, a indústria de luxo da
Alta Costura parisiense ocupou o segundo lugar nas exportações.
Por causa desses fatores e do mundo novo que surgiu após a guerra,
as mulheres passaram a exigir roupas mais “práticas” e menos
ornamentadas. ALVAREZ (s.d., p. 47) também defende essa ideia,
dizendo que após a Primeira Guerra o papel da arte sofreu mudanças
com o novo estilo agitado da vida urbana e foi necessário criar novas
estruturas de pensamento e expressão do subjetivo. Foi graças a isso
que o Art Nouveau deu lugar ao Art Decó, um estilo artístico marcado
principalmente pelo uso de linhas geométricas e relativamente mais
simples que a ornamentação exagerada do Art Nouveau.
Poiret já vinha lançando essas tendências de linhas
mais retas e simples na moda e algumas de suas características se
mantiveram como inspirações, como o extenso uso de penas. A
própria supressão do espartilho não sumiu imediatamente com ele,
mas foi a tendência dos anos de 1920. Entretanto, mesmo que Poiret
tivesse se diferenciado do que era mais comum ao Art Nouveau, ele
também era um homem de seu tempo e sempre prezou pela riqueza
de detalhes e a ornamentação.
Essa mudança de estilo e de formas de pensamento foram
empecilhos para Poiret. Ele teve muitos problemas para se adaptar
e teve dificuldade de abandonar tendências que não correspondiam
mais a o que as mulheres procuravam e aos novos anseios da sociedade.
Como a moda está sempre em movimento, se ninguém mais usar
determinado tipo de roupa, ele se torna ultrapassada; deixa de ser
moda. Segundo Boucher (2010, p. 400), Poiret mantém a exuberância
das cores nas suas criações, uma de suas características favoritas, e,

566
André Ricardo Valle Vasco Pereira [et. al.] (org.).

apesar de tudo, ainda consegue fazer vestidos que se destacam, mas


sem o mesmo alvoroço de antigamente.

Conclusão
Diante da análise apresentada neste artigo, conclui-se que
uma guerra pode gerar tantas mudanças nas mais diversas esferas
públicas e privadas que toda uma cultura de uma sociedade pode
ser modificada a ponto de afetar escolhas que antes eram bem vistas
pela maioria, como pinturas, esculturas e roupas, mas que se tornam
insuficientes para expressarem os novos modos de pensar das pessoas.
Paul Poiret foi um costureiro que ditou a moda da Belle
Époque principalmente por volta de 1910 e lançou tendências que
seriam moda na década seguinte, mas como as pessoas do pós-guerra
tinham a inclinação de negarem grande parte das coisas que eram
de antes da guerra, Poiret foi enxotado pra um limbo de onde não
conseguiu sair por não ser capaz de adaptar suas criações à novas
necessidades culturais e sociais exigidas nas roupas, principalmente
das mulheres e seus novos papéis sociais.

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BOUCHER, François. História do vestuário no ocidente. São Paulo: Cosac
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