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Resumo: A partir da História da feiura de Umberto Eco, apresento o que para muitos
pareceu configurar o triunfo do feio na arte do século XX. Para perscrutar a subversão
da histórica identificação da figura feminina com a beleza, analizo obras como as de
Monica Piloni e Elisa Queiroz segundo a ideia de uso do corpo de Giorgio Agamben e o
conceito de estranhamento na fruição estética defendido por Ernest Bloch. Portanto, em
meio à tensão entre os juízos de beleza e feiura, sugiro a aparição daquilo que preferiro
entender como estranha beleza.
Abstract: From Umberto Eco's book On ugliness, I present what for many seemed to
shape the triumph of the ugly in the art of the twentieth century. To examine the
subversion of the historical identification of the female figure with beauty, works such as
from Monica Piloni and Elisa Queiroz are analyzed according to the idea of the use of
the body of Giorgio Agamben and the concept of estrangness in the aesthetic fruition
defended by Ernest Bloch. Therefore, amid the tension between the judgments of beauty
and ugliness, I suggest the emergence of what I prefer to understand as strange beauty.
1 Este texto foi elaborado a partir da minha participação no Seminário Obras abertas: leituras de Umberto
Eco, organizado pelo Departamento de Teoria da Arte e Música (DTAM) do Centro de Artes da UFES.
pretendo não apenas apresentar uma das obras dentre tantas importantes
contribuições do autor, mas oferecer-lhe um verdadeiro elogio, o que somente
se dá quando seus ricos esforços alcançam êxito, ou seja, quando a apreciação
de sua obra resulta na fomentação de conhecimento a partir dos instigantes
pressupostos por ela estabelecidos. Isso se torna ainda mais evidente diante da
obra escolhida, por tratar-se de uma compilação de referências paradigmáticas
para a discussão do tema proposto.
Devo também destacar que não é sem motivo que Eco, para amenizar
o risco de ser acusado de relativismo, admite já no início da sua História da
beleza que aquilo que se considera belo é absolutamente dependente de sua
época e circunscrito à sua cultura (ECO, 2012, p. 14). E assim, certamente, cada
modelo herdará as especificidades advindas de seu criador, assim como de seu
pertencimento histórico, social e cultural.
Acontece que nenhum modelo jamais alcançou a almejada
universalidade, e modelo algum se apresenta como algo absolutamente
suficiente. A parcialidade dos modelos de beleza sobresaiu sobretudo quando a
arte precisou dar conta da representação do Cristo flagelado. Foi em momentos
como esse que se buscou argumentações suficientemente coerentes para
sustentar a ascensão da iconografia cristã. Nesse ponto, basta lembrar-mos de
uma obra emblemática como o Retábulo de Issenheim, de 1512-16, de Mathias
Grunewald (Figura 1), para percebermos claramente a distinção entre o belo
natural e o belo artístico, pois a arte seria capaz de representar de um modo belo
algo entendido como naturalmente feio.
Figura 1. Matthias Grünewald, Retábulo de Isenheim, 1512 e 1516. http://www.musee-
unterlinden.com/en/en-news/the-isenheim-altarpiece-2/
Figura 5. Tatiana Fiodorova, The world is dirty, the artist must be dirty, 2012,
videoperformance.
https://books.google.com.br/books?id=KoXJDgAAQBAJ&pg=PA322&lpg=PA322&dq=Tatiana+
Fiodorova,+The+world+is+dirty,+the+artist+must+be+dirty&source=bl&ots=tjOX4N4lK5&sig=D
DkyR5J7vzCcRirBLqhNP_hBk-U&hl=pt-
BR&sa=X&ved=0ahUKEwii0ZTDt6rXAhWBQZAKHaYSDOgQ6AEIQzAH#v=onepage&q=Tatian
a%20Fiodorova%2C%20The%20world%20is%20dirty%2C%20the%20artist%20must%20be%2
0dirty&f=false
Vinte e quatro anos após Art must be beautiful, artist must be beautiful,
Abramovic admite que "naquela época, pensei que a arte deveria ser
perturbadora e não bela. Mas na minha idade agora, comecei a pensar que a
beleza não é tão ruim” (BRYZGEL, 2017, p. 322). A ponderação da artista me
leva a acolher minha suspeição, de que o descontentamento, antes atribuído
diretamente à beleza, de fato residia no tipo de demanda exigida diante dela.
Aproveito para tratar de um elemento de tal demanda: Fiodorova tinha 36 anos
em The world is dirty, the artist must be dirty, e Abramovic era ainda mais jovem
em Art must be beautiful, artist must be beautiful, com apenas 29 anos de idade.
Quero com isso ressaltar o uso histórico da jovialidade feminina como atributo
de beleza e, em contrapartida, o uso da imagem do corpo envelhecido da mulher
como representação da feiura.
Eco destaca o trabalho de Patrizia Bettella em seu livro The ugly woman:
Transgressive aesthetic models in Italian poetry from the Middle Ages to the
Baroque, principalmente quanto à representação da velha como símbolo de
decadência física e moral na Idade Média. De modo semelhante, cabe lembrar
como a iconologia de Cesare Ripa apresenta várias imagens alegóricas nas
quais a aparência da mulher velha está relacionada ao mundano e às paixões
mais deploráveis, como na representação da Heresia (Figura 6), por exemplo,
que “foi retratada como uma velha bruxa, de traços horripilantes destilando
mentiras pela boca, liberando inúmeras serpentes, símbolos de astúcia e
malícia” (NEVES; LITTIG, 2015, p. 192). Entretanto, quero chamar a atenção
para o fato da convergência da velhice com a decadência ser posta sempre "em
oposição ao elogio canônico da juventude como símbolo de beleza e pureza"
(ECO, 2007, p. 159).
Figura 6. Cesare Ripa, Della novissima iconologia, 1625, Herefia (pièce ou n° 151 / 352),
xilogravura. http://utpictura18.univ-montp3.fr/GenerateurNotice.php?numnotice=B0086
Vem de longa data tal relação da beleza com a juventude, assim como a
busca de uma perfeição de beleza que, de fato, somente poderia ser alcançada
pela idealização artística. Lembremos que Zêuxis, um dos mais renomados
pintores da Grécia antiga, era um artista extremamente meticuloso que, para a
elaboração de uma pintura encomendada pelos agrigentinos para o templo de
Juno Licínia, “examinou suas jovens nuas e escolheu cinco para reproduzir na
pintura o mais admirável de cada uma delas” (PLINIO, O VELHO; in:
LICHTENSTEIN, 2004, p. 75). Apesar da proximidade entre juventude e beleza,
parece claro que, para o pintor clássico, jovem alguma ostentaria uma perfeição
de beleza em toda a sua aparência, possibilidade aberta somente aos deuses, e
dada aos olhos somente pela arte.
3Entrevista da artista Monica Piloni para a revista Bravo!, publicada em 8 de fevereiro de 2017. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=kTWQhFV9eaI
Figura 9. Monica Piloni, E por que haverias de querer minha alma na sua cama?,
2014, escultura e fotografia, pigmento sobre papel, edição de 13, 66 x 99 cm.
http://www.monicapiloni.com/E-por-que-haverias-de-querer-minha-alma-na-sua-cama
Figura 10. Monica Piloni, Minha alma sob a cama, 2014, escultura e fotografia, pigmento sobre
papel, edição de 13, 66 x 99 cm. http://www.monicapiloni.com/Minha-alma-sob-a-cama
Figura 11. Cena do filme Ensaio sobre a cegueira, de 2008, dirigido por Fernando Meirelles e
baseado no livro homônimo de José Saramago.
Figura 12. Lucian Freud, Retrato noturno de cabeça para baixo, ost, 2000.
https://www.wikiart.org/en/lucian-freud/night-portrait-face-down-2000
Não são poucos os artistas que adotam modelos que fogem aos padrões
específicos de beleza vigentes. Devedora da expressividade e da robustez das
pinturas de Lucian Freud e Francis Bacon, a britânica Jenny Saville é uma artista
que me parece ter uma obra bastante propícia para essa discussão,
particularmente no quadro Juncture, de 1994 (Figura 13). Pelo modo dificultoso
como o corpo figurado se acomoda no plano pictórico, apesar de sua dimensão
elevada, a superfície do quadro não parece ser suficiente para acomodar a figura
de maneira adequada. A imagem se comporta por vezes como uma fotografia
sangrada ao sofrer cortes abruptos, como no topo da cabeça da mulher,
enquanto seu nariz amassado na borda do quadro e seu braço espremido no
canto inferior denotam um esforço considerável para seu corpo entrar na história
da arte como um ícone pictórico aceitável, ainda que estranho.
Figura 13. Jenny Saville, Juncture, 1994, ost, 304,8 x 167,6 cm.
https://br.pinterest.com/dickmannl/contemporary-art-figuration/
Mas é com a obra de Elisa Queiroz que pretendo concluir minha reflexão
sobre a manifestação de uma estranha beleza na tensão entre beleza e feiura
na arte contemporânea. A artista capixaba fez uma série de autorretratos em que
o uso livre do seu corpo obeso aparece como o elemento conceitual de sua obra.
De certa forma parece acenar para o como não paulino4 como a “capacidade de
“usar” a condição factícia em que cada um se encontra” para atuar “na
desativação e na desapropriação da condição factícia, que, dessa forma, se abre
para um novo uso possível” (AGAMBEN, 2017, p. 78). É exatmente no uso de
seu corpo como um elemento relacional que a artista se insere no campo da arte
e se integra ao corpo social. Como a diversidade de possibilidades abertas com
a arte moderna e expandida com a arte contemporânea torna desconfortável a
subserviência a um modelo específico de beleza, a artista parece sentir-se livre
para usar com dignidade a imagem de seu corpo, figurando-o com referências a
imagens paradigmáticas da História da Arte e com elementos vulgares da cultura
popular e midiática.
Como Monica Piloni, Eliza Queiroz recorre à fotografia para registrar as
situações instauradas a partir da imagem de seu corpo, mas prefere a encenação
Figura 14. Elisa Queiroz, Piquenique na relva com formigas, 2004, impressão em papel de
arroz sobre biscoito, 170 x 87 x 10 cm. https://www.overmundo.com.br/overblog/arte-para-
degustar
Figura 15. Elisa Queiroz, Sirva-se, 2002, impressão em saquinhos de chá e caixa de acrílico,
160 x 160 x 40 cm. https://www.overmundo.com.br/overblog/arte-para-degustar
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O uso dos corpos. São Paulo: Boitempo, 2017.
BLOCH, Ernest. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
BRYZGEL, Amy. Performance art in eastern Europe since 1960. Manchester:
Manchester University Press, 2017.
CLARK, T. J. Modernismos: ensaios sobre política, história e teoria da arte. são
Paulo: Cosac Naift, 2007.
ECO, Umberto. História da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.
____________ História da beleza. Rio de Janeiro: Record, 2012.
MONDZAIN, Marie-José. Imagem, ícone, economia: as fontes bizantinas do
imaginário contemporâneo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
NEVES, Alexandre Emerick; LITTIG, Sabrina Vieira. A representação alegórica
na obra Mulher má de Francisco de Goya (1746-1828): análise narrativa e
iconológica. In: SANTOS, Bento Silva (org.). Mirabilia 20, 2015.
PLÍNIO, O VELHO. História natural. (Livro 35). In: LICHTENSTEIN, Jacqueline
(org.) A pintura. Vol. I. O mito da pintura. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 73-86.