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Vigdis, a IndomávelVigdis, a Indomável SIGRID UNDSET

Título original: Vigaljot og Vigdis

Tradução de H. Ferreira Alves cedida por Editorial Estúdios Cor, Lda.

© 1909, Sigrid Undset © 2004 BIBLIOTEX EDITOR, S.L., para esta edição

Impressão

Printer, Industria Gráfica, S.A. Barcelona

ISBN 84-96180-44-1 Dep. Legal B. 47 673-2003

BIBLIOTEX EDITOR 2004

De venda conjunta e inseparável com este jornal

Vigdis, a Indomável

Sigrid Undset
Prémio Nobel 1928Havia na Islândia, estranha ilha do Atlântico Norte, um homem de nome
Veterlide que era oriundo do Ostfjord e se ausentava com frequência para longe, durante o
Verão, a fim de tratar dos seus negócios.
Seu sobrinho Hauksson, filho de sua irmã, chamava-se Ljot. Este era o filho de Gissur
Hauksson de Skomedal, que foi assassinado quando Ljot era ainda pequenito. Veterlide
encarregou-se de vingar o trágico fim de Gissur, conquistando assim grande honra, mas isto
é uma outra história. A mãe de Ljot chamava-se Steinvor, e morreu muito nova. O pequeno
Ljot acolheu-se em casa de Torbjorn, no Eyre, onde se criou, e mais tarde foi para junto de
Veterlide, que lhe queria como se ele fosse seu filho. Muito jovem ainda, Ljot começou a
conduzir-se com a maturidade dum homem feito. Desde os quinze anos, dera-se a
acompanhar os filhos do seu protector Torbjorn nas expedições de «vikings» e depressa
adquiriu grande renome pela bravura e destreza nos combates. Tinham-no na conta de moço
invulgarmente dotado e com as qualidades dum chefe. Muito consciencioso, não faltava
nunca à palavra. Mas, pouco loquaz, era a custo, morosamente, que estabelecia quaisquer
convívios, e preferia em geral estar só. Por uma ou outra razão o apelidavam de Viga Ljot.
No Verão em que perfizera os vinte anos, Ljot acompanhou Veterlide à Noruega. Possuíam
em comum (sendo de um terço a parte de Ljot) um magnífico barco perfeitamente
adequado à navegação no alto mar.
Veterlide tinha família no Romerike, e pensava em pedirhospitalidade a esses parentes. Na
realidade, era sua intenção empregar alguns dias na compra de madeira de construção na
Noruega.
O Verão ia já bastante adiantado quando eles chegaram à baía de Folden. Ajudando-se com
os remos, fizeram passar o barco por entre as ilhas da embocadura do rio Frysja, no fiorde,
porquanto o vento amainara. Ao anoitecer, o nevoeiro dissipou-se, agarrando-se às
vertentes das montanhas. Veterlide e Ljot, em pé à proa, contemplavam a costa altaneira,
que naqueles tempos estava recoberta duma densa floresta. Nas vizinhanças do rio havia
algumas quintas, na quase totalidade pouco importantes.
Na foz, algumas canoas de pesca sustidas pelas fateixas balouçavam nas ondas. Os
pescadores observavam o grande barco que, esfumado pela névoa, deslizava por entre as
ilhas. Veterlide gritou-lhes uma saudação e perguntou-lhes donde vinham. Os pescadores,
compreendendo que estavam na presença de navegadores pacíficos, responderam que
trabalhavam de jorna por conta de Gunnar de Vadin. Este era proprietário do domínio mais
extenso perto da ribeira. Veterlide pediu aos homens dos barquitos que os conduzissem a
casa de Gunnar. Já fazia escuro quando eles lá chegaram. Gunnar encontrava-se na sala,
sentado num elevado cadeirão. Era homem de boa presença e de elevada estatura, de
cabelos compridos e barba grisalha que lhe cobria todo o peito. Junto da lareira estavam
duas mulheres. Uma delas fiava à luz da chama do lume. Não era nova e envergava vestes
negras, mas o seu rosto era belo e claro. A outra, uma rapariga bastante jovem, conservava-
se sentada, com as mãos juntas, imóvel.
Veterlide avançou para saudar o dono da quinta, e, antes de ter acabado de explicar ao que
vinha, Gunnar ergueu-se, deu-lhe as boas-vindas e à gente que o acompanhava, e disse às
mulheres que fossem buscar comida e bebida.
A mulher mais idosa levantou-se, chamou as criadas e pôs-se ela própria a tratar dos
preparativos do repasto, entrando e saindo incessantemente, enquanto a mais nova, de pé
junto da lareira, se limitava a olhar os forasteiros. Vendo-a em melhor exposição à luz, os
visitantes notaram que ela era formosíssima, esbelta e sólida. O seu peito era alto, os olhos
acinzentados, e a exuberante cabeleira pendia-lhe até aos joelhos como manto brilhante e
espesso, dum louro carregado. As suas longas mãos brancas estavam ornadas de anéis.
Vestia um trajo de lã de cor acastanhada, ricamente bordado. Prendia-lhe os cabelos uma
estreita faixa de oiro, e tinha sobre si mais jóias e anéis do que é costume uma mulher
exibir em dia de semana. Nesse momento, reapareceu a outra mulher, que trazia uma
grande comucopia cheia de hidromel. Entregando-lhe a rude vasilha com a bebida, a
mulher disse para a jovem:
É a ti, Vigdis, que cumpre dar as boas-vindas nesta casa.
A rapariga pegou na comucopia e, perpassando ao longo dos bancos, ofereceu de beber
primeiro a Veterlide e depois aos restantes homens. Ljot foi o último a quem ela se dirigiu.
O moço, que começara por se sentar no extremo do banco junto da porta, havia-se
aproximado seguidamente da lareira, a fim de se enxugar ao calor do lume, pois estava
molhado. Aconchegava com uma das mãos a capa em que se envolvera. A sua escura
grenha cobria-lhe a fronte, de modo que Vigdis apenas lhe viu, por assim dizer, do rosto os
olhos dum azul sombrio, profundamente enterrados nas órbitas. Quando a jovem lhe
apresentou o hidromel, ele deixou de segurar o manto e, enquanto bebia, pôs-se a olhar
Vigdis por cima da vasilha. A maneira como o rapaz a contemplava pareceu não lhe agradar
e, agarrando no recipiente que ele lhe restituía, foi sentar-se outra vez na banqueta donde se
erguera pouco depois da chegada dos visitantes.
Ljot sentou-se também, mas de maneira a poder ver Vigdis. Decorridos instantes, ela lançou
disfarçadamente um olhar na sua frente e encontrou os olhos do rapaz. Então, Vigdis corou
e voltou-se. Daí a um momento, porém, ergueu de novo a cabeça e pôs-se a mirar
insistentemente o moço estrangeiro até que ele baixou a vista.
Nessa conjuntura, trouxeram um repasto tão opulentamente servido que bem poderia
chamar-se-lhe um banquete.
Gunnar manifestou a intenção de mandar os criados aoSigrid Undset
cais para trazerem a tripulação do barco. E acrescentou que, a fim de aquela gente poder
repousar das fadigas da viagem, não se opunha a que o seu próprio pessoal olhasse pelo
barco naquela noite. Veterlide agradeceu, mas ainda não tinha acabado de falar quando
Ljot, vendo-o titubeante, disse para o parente:
A noite vai já avançada, os nossos homens podem, sem risco algum, permanecer a bordo.
Assim, escusamos de incomodar os serviçais do dono da casa.
Vigdis soltou uma risada sonora:
Oh! exclamou ela. Este islandês parece receoso pelos seus bens!
Gunnar repreendeu-a, embora sem cólera, e disse:
O islandês teve uma boa ideia em querer poupar o nosso pessoal, mas os homens que
remaram hoje contra o mau tempo necessitam dum tecto por cima das suas cabeças e de
comida fresca. De resto, não é conveniente, minha filha, responder dessa forma ao hóspede
que está na tua casa.
Ljot riu-se, e observou:
Ela não teve certamente má intenção. Além de que não se deve conceder demasiada
importância às palavras duma rapariga nova.
A outra mulher falou por seu turno, mas em voz baixa, para Vigdis, que não lhe prestou
atenção, contentando-se com sorrir, sentada no pequeno banco. Gunnar enviou então a sua
gente à praia e os outros comeram e beberam. A conversação incidiu sobre o péssimo tempo
de nevoeiros que fazia de há uns dias àquela parte. O dono da herdade sofrera também com
tal tempo um grande prejuízo, visto que as searas já deviam estar a ser ceifadas, o que não
fora possível. Gunnar ajuntou:
Na minha mocidade, eu ia também para o mar durante o Verão, e detestava acima de tudo
os dias de chuva, de nevoeiro e de calmaria podre...
Ljot interveio com um comentário em forma de canção que, na realidade, nada tinha que
ver com a fala do anfitrião daquele solar:
Falaste certo,
Ó hospitaleiro Gunnar.
Escura de breu era a noite,
As filhas de Rans dormitavam;
Não é bom brincar com elas.
Doce é o repousar
Na casa que nos acolhe amistosa.
Deusas adornadas de jóias
Põem a mesa.
Formosas como ela outras não vi no mundo.
Foi próximo dela,
A mais bela,
Que jubiloso me sentei
Esta noite,
Em aprazível conversa.
O rapaz disse em voz mais baixa as últimas linhas da cantilena, e Gunnar, que começava a
estar um pouco toldado pela bebida, não fez reparo nisso. Mas Veterlide notou-o, e para
distrair a atenção de Gunnar pôs-se a falar-lhe da viagem.
Momentos depois, Vigdis e as restantes mulheres subiram para os seus aposentos.
Quando os homens cessaram de conversar e se foram deitar, Veterlide disse para o
sobrinho:
Não compreendo a tua maneira de proceder, meu filho. Não pareceu bem que, tendo-nos
Gunnar recebido com tanta generosidade, dirigisses, logo na primeira noite, poemas a sua
filha.
Ljot não deu qualquer resposta, e Veterlide continuou:
Vendo que não tiraste os olhos de cima de Vigdis durante todo o serão, concluí que estás
um homem a quem as mulheres entusiasmam. Convém, todavia, não perderes a cabeça à
vista duma mulher, pois de nada teriam servido as nossas longas e duras viagens por mar, se
não aprendeste a dominar-te.
Também desta vez Ljot nada respondeu e, voltando-se para o outro lado, fez menção de
dormir.

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II

No dia seguinte, depois do almoço, Gunnar e Veterlide dirigiram-se a cavalo para a praia.
Ljot estendeu-se no banco, pretextando que estava fatigado. Mas, assim que os outros
deixaram a quinta, ergueu-se, pois estava decidido a ir à procura de Vigdis e a falar-lhe.
Ljot vestia um trajo de viagem, porquanto todas as suas outras vestimentas haviam ficado
no barco. Envergava um longo manto com capuz fechado no peito por um travessão de
oiro. Sob a capa, cingia-se-lhe ao corpo uma espécie de gibão bordado a prata e a lã azul
em todas as costuras, porque Ljot gostava de luxo. Por este motivo e em conformidade com
os usos da sua ilha, usava ricas pulseiras nos braços e nos pulsos. Fazia vista, o, rapaz! De
elevada estatura, peito largo, de cintura estreita, os seus membros eram robustos e bem
conformados. No seu rosto delgado, um pouco crestado pelas intempéries, uma boca
rasgada de lábios pálidos atraía o olhar. Tinha, como já dissemos, os olhos azul-escuros, e
cabeleira castanha atada atrás com uma fita de seda azul.
O sol brilhava, o tempo estava bom naquele dia, e, quando Ljot saiu para o exterior da casa,
descobriu Vigdis, que caminhava no prado ao norte dos edifícios.
Seguiu-a com passo rápido e alcançou-a na orla do bosque. Ele saudou-a e perguntou-lhe se
ia desempenhar-se de qualquer tarefa. Vigdis, respondeu-lhe que o seu único desígnio era ir
até ao bosque para comer bagas.
Então you acompanhar-te disse Ljot. Não é pru-Sigrid Undset

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dente que vás sozinha. Ouvi dizer que os ursos frequentam os recantos onde crescem as
bagas.
Se eu tivesse medo, poderia ter trazido o meu criado respondeu Vigdis. De resto, venho
armada.
E, dizendo isto, mostrou uma grande faca presa à cintura. Em torno do cabo enrolava-se um
fio doirado e sobre a lâmina viam-se caracteres rúnicos.
Ljot apoderou-se da faca, examinou-a e disse:
Que curiosa faca; deve ser muito velha. Donde a obtiveste?
Pertenceu sempre a minha família respondeu Vigdis. Conta-se que os meus antepassados
iam realizar sacrifícios lá no cimo da floresta. Mas isto foi há muito tempo. Ninguém sabe
já grande coisa a este respeito. Os nossos escravos vão lá matar galos e suínos, mas meu pai
apenas crê no seu próprio poder, na sua própria força, e meu avô também não acreditava em
mais nada, segundo me disseram.
A mim sucede-me o mesmo disse Ljot, rindo. Contudo, eu recebi um dia o baptismo dos
cristãos.
É uma estranha crença a sua observou Vigdis. O seu Cristo branco não pode ser de grande
ajuda, pois ouvi dizer que ele não conseguiu libertar-se a si mesmo, e que os inimigos o
mataram no País Azul.
Não sei exactamente o que se passou volveu Ljot e também não creio muito no seu poder.
Mas you contar uma coisa que se deu comigo. Havia um homem que levava vida pura e que
vivia no Sul da Dinamarca. Ele socorreu-me, curando-me duma grave ferida que eu tinha
na perna. Não quis aceitar-me qualquer paga, e acedi a que me baptizassem para não o
contrariar.
Tu deves ter viajado muito disse Vigdis. Mas como se explica que não tivesses ido com o
teu parente, a fim de veres o que se leva do barco? com certeza hás-de possuir, também, a
bordo alguns bens, despojos... Doutra forma como se compreenderia que te chamassem
Viga Ljot?
Oh! tenho arranjado, de facto, alguma coisa de bastante valor disse Ljot , mas parece-me
que o que tenho a intenção de obter é ainda mais precioso.

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É possível respondeu Vigdis. Diz-se, porém, que os islandeses são avaros dos bens e
pródigos nas palavras.
Ljot retrucou:
Sempre ouvi dizer que todos os homens desejam ser ricos. Talvez porque, se lhe seguram as
dele, o dinheiro dá asas... Mas o que nunca me tinham afirmado é que eu fosse avaro.
Vigdis pôs-se a rir e, evocando uma frase depreciativa que lhe ouvira na véspera, disse:
Não se deve ligar importância às palavras duma rapariga
nova como eu.
Acabo de crer que me detestas, Vigdis. Nem um olhar me concedeste desde que nos
encontrámos.
Vigdis respondeu:
Não é costume nesta terra olhar muito para os estrangeiros.
Ljot riu-se:
Mas por certo não ornaste a tua cabeleira com um aro de oiro para te ocultares atrás das
tuas criadas, Vigdis.
Porque não havia eu de usar o oiro que meu pai me dá?
Tinham chegado ao lugar dos sacrifícios, situado numa clareira. A floresta cercava-o
estreitamente. Em torno da ara de sacrifício haviam cravado pedras a prumo, mas muitas
delas estavam derrubadas e, em toda a clareira até ao cimo do montículo, cresciam
pequenos carvalhos, bétulas e sorveiras. Entre os altos pedregosos elevavam-se hastes de
flores, algumas das quais começavam já a ter sementes. O vento arrebatava a sua branca
penugem felpuda, que ia aderir às vestes e aos cabelos de Vigdis e de Ljot. Enquanto
caminhava, ela sacudia o vestido e os cabelos.
Ljot disse a Vigdis:
Meu tio tenciona pedir a Gunnar que nos dê guarida durante todo o tempo que nos seja
necessário para encontrarmos a madeira de construção, que vimos procurar a estes sítios.
Mas quer-me parecer que ficarias contente de nos ver partir assim que chegámos aqui. Em
suma, creio que não simpatizas nada connosco.
É meu pai quem elege as pessoas que recebe em casa.

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Não costuma pedir a minha opinião. Porém, deixa-me tomar as decisões que me dizem
respeito.
Acredito sem dificuldade exclamou Ljot, rindo. Tens um ar decidido, não há dúvida.
Dizem que sim. Mas olha que tu, por teu lado, pareces-me um rapaz desembaraçado a valer.
Tenho essa reputação aquiesceu Ljot, com irónica modéstia. Espero, no entanto, que não
seremos inimigos um do outro.
Não, certamente, não leva jeitos disso respondeu Vigdis.
Sentaram-se num rochedo e puseram-se a comer umas raízes de polipódio que Vigdis tinha
desenterrado. Quando se levantaram, Vigdis esqueceu-se da sua faca. Ljot apanhou-a sem
que ela desse por tal e escondeu-a no peito. Depois voltaram juntos para casa, trocando
impressões amenas, num entendimento perfeito.
Veterlide comprou madeira a Gunnar. Este não quis que os islandeses pagassem a
hospedagem. Pediu-lhes, pelo contrário, que se deixassem estar o tempo que quisessem, e,
quando Veterlide falou da sua intenção de ir mais adiante, Gunnar objectou que, se era por
causa do alojamento, não valia a pena apressarem-se. Ljot, por seu turno, era da mesma
opinião e procurava ver Vigdis o mais frequentemente possível.
Veterlide falou-lhe daquelas conversas um dia em que estavam sós, e Ljot declarou então:
O que mais desejo no mundo é fazer de Vigdis minha mulher. Nunca encontrei outra com
quem me fosse tão agradável passar a vida. É mais bela do que a maioria das raparigas que
encontrei até agora. Tem elevação de espírito e fala com bom critério. Nem poderia arranjar
casamento mais rico, visto ela ser filha única de Gunnar. Suponho, também, que não
desagradei a Gunnar.
Não obstante, não podemos dizer de certeza que o contrato lhe convenha observou
Veterlide visto que lhe levarias a filha para muito longe de casa. Mas, se o coração de
Vigdis se inclina para ti, isso será o essencial, dado que ela quererá por certo decidir por si
própria no que respeita ao seu casamento. E tu deves conhecer bem as suas ideias a teu
respeito, porque vocês os dois têm passado muitas horas juntos.
Ljot ficou pensativo. Daí a um momento disse:
Não é fácil conhecer o estado de espírito duma mulher.

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Por vezes, pareceu-me que ela gostava deveras de mim; mas encoleriza-se com facilidade e
as palavras ternas podem ser enganadoras.
Não creio que haja qualquer fingimento em Vigdis respondeu Veterlide , mas a rapariga é
muito nova e pode ser que não lhe sorria a ideia de casar, de curvar a cabeça diante dum
esposo. Parece-me fortemente obstinada. Aconselho-te, por conseguinte, a prosseguir no teu
intento com toda a paciência e discrição que o caso aconselha. Nós vamos partir para o
Norte, e visitar os nossos parentes. No regresso, ver-se-á bem quais os sentimentos que
nutre por ti e se a tua ausência lhe foi penosa.
Mas Ljot retorquiu:
Não me irei desta casa sem saber no que virá a dar este assunto.

IV

Naquela mesma tarde, ao anoitecer, Ljot foi ter com Vigdis que, sentada num banco, estava
a coser nos seus aposentos. Ela envergava um vestido azul ricamente bordado, os cabelos
louros desatados flutuavam-lhe em torno do busto, e na lareira um braseiro lucilava
brandamente.
Vendo Ljot, a moça pousou o trabalho para ir ao encontro do visitante. Mas Ljot não lhe
deu tempo, e foi sentar-se ao lado dela, em cima dumas peles. Então Vigdis falou-lhe nestes
termos:
Que é que te obriga a vir tão sem-cerimónia ao meu quarto, numa altura em que começa a
escurecer e meu pai se encontra fora de casa?
Pouco te tenho visto nestes últimos dias explicou Ljot e preocupam-me muitas coisas que
eu gostaria de discutir contigo.
No entanto, temos falado todos os dias.
Tenho ainda muito que te dizer. É por isso que prefiro falar contigo a sós. Veterlide disse-
me hoje que eu deveria conhecer os teus sentimentos e saber se tens amizade por mim. Por
vezes, creio que me queres bem, mas os teus critérios são frequentemente tão estranhos, e
mostras-te tão pronta a zangar-te comigo, que quase receio que me queiras mal no íntimo.
Porque te quereria mal? disse Vigdis, que ficou um momento silenciosa, sem olhar Ljot.
Depois, continuou: É curioso que fales assim. Porque mais de uma vez me pareceu, quando
estávamos juntos, teres um feitio arrebatado. E, em
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várias ocasiões, não pude compreender porque nos zangávamos, ou se zombavas de mim.
Passei toda a minha vida nesta floresta, e raras pessoas aparecem por estes sítios, Mas tu
viajaste por países distantes e viste muitas coisas. É verdade que, por vezes, me irritei
contra ti.
Falta-me a prática de conversar com mulheres disse Ljot lentamente. Mas nunca encontrei
nenhuma com quem me fosse tão aprazível estar como contigo, nem com quem eu mais
desejasse viver.
Como Vigdis não respondesse, acrescentou:
Se isto for do teu agrado, pedirei a tua mão a Gunnar, e tomar-te-ei por esposa.
Vigdis continuava silenciosa, e, então, Ljot rodeou-lhe o pescoço com os braços e premiu
os lábios contra os dela. Como a jovem não o repelisse, ele entusiasmou-se e pô-la sobre os
joelhos. No mesmo instante, ela desatou a chorar e, repelindo-o, correu a sentar-se no
escabelo diante da lareira. A sua doirada juba envolveu-a como um véu, que a chama do
lume fazia cintilar. Ljot pensou que jamais um tão belo espectáculo se oferecera a olhos de
homem. Aproximou-se de Vigdis e, com a mão pousada no mantel da chaminé,
contemplou-a em silêncio, e depois disse:
Sinto-me bem triste por te haver feito chorar, a ti que és a mais bela das mulheres. Mas
responde, suplico-te, à pergunta que te fiz.
Concede-me algum tempo implorou Vigdis. Vai ver a tua família, lá às Terras Altas, visto
ser essa a tua intenção, e, quando voltares aqui, onde a tua barca está ancorada, responder-
te-ei. Creio que a minha resposta será tal como a desejas, mas assim terei de ir viver para
muito longe de meu pai e de o deixar só. Acho também que tudo isto sucedeu muito
depressa.
Não tão depressa como dizes exclamou Ljot. Há três semanas já que eu estou aqui. Ignoro
quais são as potestades que decidem do destino dos homens. Mas os acontecimentos
juntaram estreitamente os fios dos nossos destinos. Convenci-me disto a partir do dia em
que nos falámos lá em cima na clareira dos sacrifícios.

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Vigdis exclamou:
Vejo no teu semblante que estás encolerizado. Lembra-te de que sou muito nova e de que é
cedo para mim o pensar no casamento.
Ljot afastou-se e quis sair do quarto:
Oh! já temos idade bastante para nos casarmos, e noto que não sabes o que queres...
Vigdis ergueu-se, aproximou-se dele e disse
Espera algum tempo, como te pedi. Desejo deveras que não me tenhas feito a tua proposta
em vão. Mas acho que ainda não te conheço bem, e, se me levares contigo, será para bem
longe de tudo o que me pertence.
Dizendo isto, ela lançou-lhe os braços em volta do pescoço, beijou-o e, seguidamente,
empurrando-o com suavidade para a porta, pediu-lhe que se retirasse.

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Depois dos sucessos descritos, Vigdis não saiu do quarto durante dois dias. Nesta
conjuntura, deu-se a chegada dum novo visitante à herdade. Era Kare de Grefsin.
Este último voltava para a sua terra após uma viagem ao norte de Trondhjem, e contava
muitas coisas acerca de Hakon de Lade, que tinha sido morto recentemente pelo seu servo
Kark, e a respeito do rei Olav. Vigdis compareceu na sala no decurso do serão. Sentou-se
próximo de Kare e puseram-se ambos a conversar amigavelmente. O recém-chegado era
muito jovem, loiro, alto e de bom parecer.
Ljot viu, contrariado, Vigdis sentar-se ao lado do visitante e beber com ele. E disse-lhe o
desgosto que aquilo lhe causou, quando, por um instante, pôde encontrar-se junto dela.
Parece que sabes muito bem o que deves pensar de Kare de Grefsin?
Ela respondeu:
É verdade o que dizes. Kare e eu fomos criados juntos e é para mim uma grande alegria
tornar a vê-lo.
Mas, depois deste incidente, Ljot olhou Kare com antipatia, e a cada palavra que ele
pronunciou naquela noite, a qualquer elogio que ele fizesse, Ljot encontrava logo meio de
opor um objecto mais digno de louvor. Por fim, a conversação incidiu sobre cavalos. Kare
fez o panegírico do seu cavalo, um animal de boa raça a que tinham dado o nome de
Slongve. Fora criado nas terras de Gunnar, que presenteou com ele Kare por amizade. Ljot
respondeu que tinha visto Slongve, porque dias an-

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tes haviam trazido cavalos da floresta para as lavras de Outono. Entendia que um cavalo
que ele próprio comprara ao filho de Arne de Grimelundare era superior a Slongve. O
cavalo tinha o nome de Arvak.
Não há afirmou Ljot melhor corredor em todo o país.
Tem realmente boa estampa opinou um velho que estava sentado junto de Ljot mas o
cavalo de Kare venceu-o este ano e no ano passado. E não é nada airoso acrescentou gabar
nesta casa um animal adquirido ao filho de Arne.
Mas porquê? interrogou Ljot.
Existe uma grande inimizade entre Vadin e Grimelundare desde que Eyolf Arnesson
pretendeu contrair matrimónio com Vigdis, e viu recusada a sua proposta.
Nunca tinha ouvido falar nisso esclareceu Ljot. E, então, o velho prosseguiu:
Gunnar estava disposto a aceitar Eyolf como genro, mas diz-se que Vigdis não queria. Não
deve surpreender tal atitude, atendendo a que os filhos de Arne são acusados de mais de
uma malfeitoria; e diz-se, também, que uma grande amizade une, desde a infância de
ambos, Vigdis a Kare. A partir de então, os filhos de Arne proferem ameaças contra Gunnar,
mas abstêm-se por enquanto de as pôr em prática, porque, embora velho, Gunnar ainda tem
bons dentes.
Ljot não disse mais nada. Observava Kare e Vigdis com ar pensativo. Daí a momentos,
acercou-se de Kare e observou:
Têm-se trocado muitas palavras esta noite. Não achas que seria conveniente que tu e eu
submetêssemos os nossos cavalos a uma prova? Assim, todos poderiam ver qual deles
merece o primeiro lugar.
Aceito de bom grado a tua proposta replicou Kare, rindo , mas não há pressa, porque o
resultado da prova é antecipadamente evidente para toda a gente destes sítios.
Vigdis interveio:
Não exponhas a danos, Ljot, o precioso cavalo que compraste. Ele pode ser excelente ainda
mesmo que se dê o caso de haver outro melhor.

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Ouvindo isto, Ljot ficou possuído de furor.


Não tenho tanto receio como julgas de arriscar quaisquer valores que me pertençam. Desejo
que Kare nos mostre o que vale o seu cavalo na corrida! Façamos correr os nossos cavalos
amanhã. Não levarei Arvak para a Islândia, se ele não vencer.
Eyolf não aceitará a devolução comentou Vigdis, rindo.
Não lhe pedirei certamente semelhante coisa. Matarei o cavalo se ele ficar vencido.
O assomadiço Ljot tirou, acto contínuo, uma argola de oiro do seu braço, e lançou-a para o
braseiro da chaminé, clamando:
Não te rirás de mim, Vigdis, dizendo que eu tenho excessivo apego ao que possuo.
Mas a jovem, inclinando-se para a frente, retirou o bracelete do braseiro e, apresentando-o a
Ljot, disse:
Não adiantas nada em proceder como um insensato. Então, Ljot, cego de cólera, pegou no
bracelete e atirou-o
para o meio do grupo dos servos amontoados ao pé da porta, e declarou que a pesada argola
de oiro ficaria sendo propriedade daquele que a apanhasse. Elevou-se logo grande tumulto.
Um dos servos derrubou, com um murro, outro que se apossara primeiro da pulseira.
Tornava-se manifesto que o repasto tendia a acabar numa desordem.
Veterlide correu para o sobrinho, agarrou-o pelo braço, e repreendeu-o severamente, mas
Ljot limitou-se a soltar uma risada.
No fim da conversa, ficou resolvido que Kare e Ljot fariam lutar os seus cavalos no dia
seguinte.

VI

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No campo destinado à corrida, juntou-se gente de toda a região para ver lutar os cavalos.
Entre a multidão viam-se também muitas mulheres. Os animais deveriam medir-se num
terrapleno não longe de Vadir.
Ljot chegou antes de Kare. Conduzia o seu cavalo e tinha uma chibata na mão esquerda.
Armado duma espada recurva e com um capacete na cabeça, ostentava, pendente das
espáduas, um esplêndido manto escarlate bordado a oiro. Colocou o manto sobre uma pedra
à margem do campo, e apareceu vestido com um curto gibão vermelho. Os filhos de Arne
achavam-se entre os assistentes. Saudaram Ljot e apertaram-lhe a mão.
O magnífico cavalo a que Ljot dera o nome de Arvak, robusto e de boa linha, era de facto
uma estampa.
É um animal de grande valor diziam na assistência.
Manifestamente indiferente àqueles elogios, o cavalo relinchava, vendo os outros cavalos
amarrados em redor do campo.
Decorreram uns momentos antes da chegada de Kare. Os filhos de Arne trocavam
comentários sarcásticos, dizendo que ele se arrependera sem dúvida de ter aceite o desafio,
e Ljot ria com tais ditos.
Mas Kare chegou, acompanhado de Gunnar e de Vigdis. Kare vinha completamente armado
e trazia couraça. Lançara sobre as espáduas uma pele de urso e tinha na mão uma espécie
de chuço, além da chibata.
Assim que Arvak descobriu o outro cavalo, reconheceu-o

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logo e, lembrando-se verosimilmente do seu recontro anterior, arrancou-se, numa upa, da


mão de Ljot e tentou safar-se para fora do círculo dos assistentes.
Estes ulularam risos por toda a volta da praça, mas Ljot foi-lhe no encalço, e, agarrando-se-
lhe com a mão esquerda pelas crinas, fustigou com a chibata os flancos e a garupa do
animal. O rosto de Ljot estava vermelho, congestionado de raiva. Reconduziu o cavalo ao
local donde se evadira, puxando-o com violência.
Iniciada a corrida, Slongve, o cavalo de Kare, depressa ganhou vantagem. Aplicava fortes
pancadas, com as ferraduras das patas dianteiras, no espavorido Arvak, que corria à sua
frente, e mordia-o de forma tão cruel que o outro equídeo tentou pôr-se a salvo.
Ljot puxou então da espada que tinha à cintura na intenção de atirar uma cutilada a Arvak,
mas escorregou na erva e deu um profundo golpe na pele do ventre de Slongve.
Na queda, ficou debaixo dos cavalos e a situação adquiriu um aspecto grave. Vigdis gritava
com voz agudíssima, pedindo que separassem os cavalos. Kare correu para o seu, e bateu-
lhe com o couto da lança. O quadrúpede levantou-se a pino instantaneamente e largou
Arvak. Este, vendo-se livre, fugiu para a floresta, a sangrar e bastante deprimido. Mas os
intestinos de Slongve saíam pela ferida que Ljot lhe fizera. Estendendo a mão a Ljot para o
ajudar a levantar-se, porque o rapaz apanhara um coice na cabeça e o sangue corria-lhe para
os olhos, Kare disse-lhe:
Nunca vi ninguém proceder como tu num combate de cavalos. Tens de me dar uma
indemnização pelo que me estropiaste.
Aí tens a indemnização disse Ljot, fazendo voar para cima dele uma porção de terra com
um pontapé. Assustaste o meu cavalo com a tua pele de urso; dir-se-ia, ao ver-te, que és um
duende dos bosques.
Tu não nos metes medo, Ljot disse Kare , mesmo se tiveres morto inimigos na Islândia.
E, brandindo a sua lança, dirigiu-lhe a ponta na direcção de Ljot.

V
27

Este último, que tinha a espada na mão, atirou uma cutilada sobre a lança de Kare,
atingindo-o levemente no braço. Kare deitou fora os fragmentos da lança partida, puxou da
espada e dirigiu-a contra Ljot. Mas este no mesmo instante caiu para trás e perdeu os
sentidos, vomitando sangue. Os cavalos tinham-no pisado de maneira assaz perigosa.

Veterlide avançou, e, agarrando Kare pelo ombro, disse-lhe:

E pagarei o teu curativo e o teu cavalo.

Não aceitarei de ti qualquer indemnização, ó islandês, porque vejo que teu sobrinho quer a
minha morte.

Mas eu não quero que nós tenhamos uma desavença com os amigos de Gunnar volveu
Veterlide. Ele não o merece, em atenção ao bom gasalhado que nos dispensou. E Veterlide
afastou-se com o jovem Kare, para lhe falar.

Gunnar brandiu a sua curta lança e traspassou com ela o peito de Slongve, que agonizava
devido ao golpe que recebera.

Koll e Eyolf, os filhos de Arne, ergueram Ljot, que recuperou os sentidos ao fim de uns
momentos. Kare conversava à parte com Veterlide. Enxugando o sangue que lhe corria pelo
rosto, Ljot procurou Vigdis com o olhar. Acocorada junto do cavalo morto, ela acariciava-o,
chorando. Ljot dirigiu-se para onde ela estava e, rindo-se, perguntou-lhe:

Que pensas desta batalha de cavalos, Vigdis?

A jovem pôs-se a chorar ainda com mais força, e replicou:

Não quero falar contigo.

Recearás tu que aconteça a Kare de Grefsin o mesmo que aconteceu ao seu cavalo?
perguntou Ljot.

Não foi Kare quem se cobriu hoje de vergonha ripostou Vigdis desviando as crinas do
cavalo e afagando-lhe o focinho. Já não quero tornar a falar contigo. Ela chorava, e ambos
se separaram.

Os filhos de Arne lembraram-se de convidar Ljot a acompanhá-los a sua casa.

É impossível respondeu Ljot , não convém que eu quebre assim a amizade que me liga a
Gunnar.

Falta saber se Gunnar não teme acima de tudo perder a amizade do genro.
28

A quem te referes?

Koll interveio, então, dizendo:

A quern há-de ser senão a Kare, embora se não tenha a certeza de que ele queira comprar
Vigdis, posto que ela já se lhe entregou.

Mentes protestou Ljot.

Eu sustento o mesmo que Koll insistiu Eyolf. O nosso pegureiro contou-nos que tinha
visto Kare atravessar a ribeira, a cavalo, esta Primavera, para se encontrar com Vigdis no
alto das sebes. E acrescentou até que os tinha visto deitados ao lado um do outro.

Esse teu pastor é um grande mentiroso volveu ainda Ljot, que se desviou para se ir embora.
Mas Eyolf inquiriu junto dos outros que tinham ficado a pouca distância:

Para onde teria ido Kare de Grefsin? Viga Ljot quer falar-lhe.

Foi a Vadin com o outro islandês responderam os interpelados.

Ljot deteve-se um instante, com o olhar magoado dirigido para a herdade. O seu rosto
desfigurado e lívido estava maculado de sangue. Um momento depois cambaleou, e teria
caído por terra se os filhos de Arne não o amparassem, em seguida ao que o içaram para um
cavalo, dirigindo-se todos para oeste na direcção de Grimelundar.

VII

29

Veterlide não ficou nada contente com a ida de Ljot para Grimelundar. Foi lá passados
poucos dias, e encontrou o sobrinho deitado no quarto do piso alto.

Indemnizei Kare disse Veterlide e por consequência peço-te que evites quebrar a paz com
ele.

Ljot não respondeu, mas daí a um instante perguntou.


Que dizem em Vadin de tudo o que se passou?

Quase se não fala nisso respondeu Veterlide , como era de esperar da parte de Gunnar,
porque é um homem de espírito elevado e eu não teria prazer algum em ouvir-lhe dizer o
que pensa da tua conduta.

Ljot pôs-se momentaneamente a arrancar os pêlos da sua cobertura de peles felpudas, e por
fim contou a Veterlide os mexericos que os filhos de Arne pretendiam ter ouvido ao seu
pegureiro.

Isso que diz o pastor de Eyolf não vale grande coisa, nem valeria mais ainda que fosse
repetido por todos os guardas de suínos. São as mulheres enciumadas que têm o costume de
espalhar semelhantes balelas, meu sobrinho. Fizeste mal em ligar-te com tal gente.

Peço-te que tentes ver a disposição em que se encontra Gunnar a meu respeito, para o
assunto que sabes volveu Ljot.

É difícil fazer-lhe essa pergunta enquanto permaneceres aqui. Gostaria que regressasses
comigo para Vadin imediatamente.
30

31

Doem-me as costas disse Ljot e não suportaria o trajecto, a cavalo.

Enfim, já que vieste para aqui, saberás também abandonar estes sítios observou Veterlide.
Evidentemente, ninguém se admira com o teu pouco interesse em voltar para Vadin, dado
que toda esta história não te prestigia, mas é necessário, no entanto, que aceites este
regresso. É o conselho que te dou. Os filhos de Arne desejam provocar o desacordo entre ti
e Gunnar. Receiam abordá-lo sozinhos e querem empurrar-te à frente. Deixa-os por
conseguinte ruminando maldades junto à lareira, e não te metas nos seus assuntos.

Ljot insistiu em afirmar que não tinha forças para montar a cavalo. Os filhos de Arne
pediram a Veterlide que se demorasse ali para o repasto, mas ele recusou e partiu logo para
Vadin.

Sucedeu, na herdade, o que Veterlide tinha previsto. Quando ele contou a Gunnar que Ljot
estava enamorado de Vigdis, Gunnar respondeu:

Podes ter a certeza de que eu não desejo, ó islandês, que a inimizade se instale entre nós,
por que sinto grande simpatia por ti e quero crer que Ljot Gissursson seja melhor do que a
sua maneira de proceder. Mas não me entusiasma a ideia de ver ir minha filha para além
dos mares, com ele, e também não me agrada procurar genro em Grimelundar.

Quem se admiraria dessa atitude? limitou-se a responder Veterlide.


A partir de então, não se voltou a falar daquelas coisas entre eles. Vigdis nada soube desta
conversa.

VIII

Veterlide foi diversas vezes saber do estado de Ljot e conversar com ele. Tentava persuadi-
lo a deixar Grimelundar, mas Ljot objectava sempre que se sentia muito mal. Disse também
que não podia acompanhá-lo ao Romerike; e quando Veterlide regressou e fazia os seus
preparativos de embarque para a Islândia, Ljot manifestou a determinação de ficar na
Noruega. Veterlide renunciou então ao seu regresso a penates, porque, se ele, o sobrinho,
ficasse com os filhos de Arne explicou-lhe , os outros arrastá-lo-iam a acções de que ele
poderia envergonhar-se.

Parte sem receio, meu tio respondeu Ljot. Agora já me sinto com forças bastantes para me
pôr a caminho para o Norte até Romerike, e depois disso irei procurar o rei Olav e ver as
pessoas da nossa terra que estão junto dele. Os filhos de Arne não me pediram jamais que
os ajudasse, têm-se limitado a testemunhar-me amizade.

Prometes-me que partirás para o Norte? perguntou Veterlide.

Ljot assim o prometeu, e, quando o sobrinho abandonou a região, Veterlide tratou do seu
próprio regresso à Islândia. Separou-se de Gunnar em termos de grande estima, e ambos
trocaram ricos presentes. Veterlide ofereceu a Vigdis uma fibula de oiro e um espelho
importado dos países do Sul. Ela ofereceu-lhe, no momento da partida, uma capa bordada,
de seda vermelha.
33

XI

Já se notavam prenúncios de Outono. Dizia-se na região que Viga Ljot tinha voltado.
Habitava em casa dum camponês chamado Torbjorn, em Hestlokken, na zona florestal entre
Grimelundar e Vadin. Mas encontrava-se frequentemente com os filhos de Arne.

Certo dia, ao anoitecer, apareceu em Vadin um rapazito que vinha para falar a Vigdis.
Chamava-se Helge; era filho duma pobre mulher que vivia nos bosques perto da quinta.
Contou que a mãe estava doente e que Vigdis praticaria uma boa acção, acompanhando-o
para a socorrer. Vigdis respondeu que Aesa (era o nome de sua mãe adoptiva que governava
a casa em Vadin) conhecia bem melhor a maneira de curar enfermidades, e que seria
preferível para a doente que Aesa a fosse ver. Mas o pequeno insistiu, sua mãe desejava
falar a Vigdis, tinha umas coisas a dizer-lhe.

Então Vigdis abrigou-se num manto e seguiu Helge.

Era já noite quando saíram. Caminharam pela vereda durante uns momentos, depois o
garoto dirigiu-se para a orla do bosque, pretextando que não era possível passar pelos
campos, em virtude de se encontrarem encharcados pelas chuvas.

Assim que penetraram na floresta, veio um homem ao encontro de ambos. Vigdis perguntou
quem era aquele homem.

O recém-chegado, respondendo pelo rapaz, disse:

Sou eu, Ljot.

Helge tentou desprender a mão da de Vigdis, para se pôr em fuga, mas a jovem reteve-o, e
exclamou:
34

Foi este quem te deu ordem para me ires chamar? O rapazelho conservou-se mudo, mas
Ljot interveio:

Sim, fui eu. Ele dirigia-se a tua casa em busca de Aesa, e pedi-lhe que, seguindo o plano
que lhe indiquei e cumpriu, manobrasse de modo a trazer-te até aqui, para eu poder falar-te.
Pareceu-me que não serviria de nada ir eu a Vadin para tentar falar contigo a sós.

Tens uma forma de procurar por mim deveras curiosa obtemperou Vigdis.

Não achei outra melhor. Há muito tempo que deambulo em volta da tua quinta na esperança
de te ver.

O rapazito tentou mais uma vez pôr-se em fuga, mas Vigdis não lhe largava a mão. Então,
Ljot pediu à moça:
Deixa que o petiz se vá embora; não deves ter receio de ficar só comigo, e eu próprio irei
acompanhar-te até às casas.

Bem, podes ir-te embora! disse Vigdis a Helge, que logo se pôs a caminho. E a jovem
acrescentou, falando para Ljot: Que intenção é, pois, a tua para me atraíres assim a esta
floresta?

Conheces perfeitamente a minha intenção a teu respeito redarguiu Ljot. Como Vigdis se
mantivesse silenciosa, ele ajuntou: Agora já sei que quanto mais me afasto de ti mais me
custa estar sem ti. Jamais, enquanto viver, chegará o dia em que eu te esqueça.

Vigdis desatou a chorar:

Oh! porque te conduziste de maneira tão pouco amistosa para com meu pai?

you dizer-te a razão da conduta que me censuras. Corre na região que Kare de Grefsin te
obterá para esposa.

Crês então que, se assim fosse, eu te teria recebido quando foste falar-me aos meus
aposentos naquela noite? A primeira coisa que fizeste foi destruir tudo que nos era caro a
ambos.

Sim, tens razão, as coisas tomaram uma feição adversa aquiesceu Ljot. Mas neste assunto
com Kare é de facto teu pai quem decide?

Gunnar não conseguiria nunca impor-me um marido

35

que não fosse escolhido por mim própria. Ele prometeu-me, aliás, que não me obrigaria.

Queres-me então a mim? fez Ljot num alvoroço de esperança.

E Vigdis respondeu:

Quero, se isso for possível.

Seria bem estranho que o não fosse exclamou Ljot, abertamente jubiloso, atraindo a jovem
a si. Depois, ele sentou-se num tronco de árvore, e Vigdis, sentada nos seus joelhos,
abraçou-se-lhe ao pescoço e beijou-o.

Ljot não tinha alma de a largar, e cobriu a jovem de beijos tão apaixonados que ela teve
medo e disse que lhe era indispensável regressar a casa.

Será melhor que eu te acompanhe, e assim poderia falar a teu pai esta noite mesmo. Desejo
arrumar imediatamente todo este assunto com Gunnar.
Não faças isso suplicou Vigdis , estás só, e sem mais armas do que esse pequeno estoque.

Ljot pôs-se a rir.

E pensas que eu não saberia defender-me com ele? Mas seria muito lamentável que nós
trocássemos cutiladas, Gun-

nar e eu.

Vigdis reflectiu um instante e sugeriu:

Ouvi dizer que há muitos islandeses no Norte, junto do rei. Não conheces nenhum deles?

Certamente que conheço. Por exemplo, Toralv e Gissur, os filhos de Torbjorn, meu pai
adoptivo.

Não poderias ir falar-lhes? Se eles anuíssem a servir-te de intermediários, isso facilitaria as


coisas com meu pai.

Tens uma pressa enorme de me expulsar dos teus sítios objectou Ljot, abraçando-a e pondo-
a novamente nos joelhos.

Vigdis desfez-se em lágrimas.

Receio que sejas mal sucedido, se fores apresentar-lhe sozinho a tua pretensão. Dominas-te
com dificuldade, e a cólera de Gunnar contra ti é grande. Seria preferível que fosses
acompanhado por um homem capaz de te apoiar e dar conselhos.

36

Ljot repeliu então Vigdis, e ela começou a descer a vereda, sem cessar de chorar. Ljot
seguia-a a um passo de distância. Decorridos instantes, ele disse-lhe:

Procederei conforme desejas, Vigdis, se bem que a viagem, como não ignoras, seja longa
no Inverno. E não é absolutamente certo que os filhos de Torbjorn mostrem grande
entusiasmo em acompanhar-me a Vadin. Que farei eu em tal caso?

Decidirás tu próprio a dificuldade redarguiu Vigdis, voltando-se e pegando-lhe na mão.


Caminharam juntos até às vizinhanças da casa da herdade. Ljot prometeu a Vigdis que
partiria para o Norte, e que iniciaria a viagem em dia pouco distante. Separaram-se diante
do portão, mas Ljot ajuntou ainda que, antes de encetar a viagem, desejava tornar a vê-la
mais uma vez. Agarrou com as duas mãos a cabeleira da jovem e envolveu com ela o
próprio pescoço.

Volta amanhã ao alto dos sacrifícios, porque não te vejo há imenso tempo e esta noite mal
pude ver-te por causa da escuridão. Eu estarei lá antes do pôr-do-sol. Tu perdeste um
objecto por ocasião do nosso primeiro encontro lá em cima, e quero restituir-to. Guardei-o
por me parecer que poderia proporcionar-me uma oportunidade para te voltar a ver, se tanto
fosse necessário.

Não sei de que objecto se trata disse Vigdis.

Ljot pôs-se a rir, e afirmou-lhe que ela teria ensejo de o ver bem, após o que se despediram.

37

Quando Vigdis chegou a casa, era já muito tarde e todos que nela residiam estavam
deitados. A jovem foi direito ao seu quarto e Aesa, que se levantara, veio trazer-lhe pão e
leite. Enquanto Vigdis comia e bebia, Aesa perguntou-lhe como estava Astrid.

Deves ir vê-la amanhã disse Vigdis que, um momento depois, acrescentou: Não consegui
ir tão longe esta noite.

Perdeste-te talvez nos bosques?

Não.

Houve um silêncio e Vigdis continuou:

Encontrei Ljot na colina e falei-lhe.

Uma mulher que se chamava Torbjorg e desposara o feitor do dono da herdade, enquanto ia
e vinha ao quarto com toda a espécie de utensílios apanhou aquelas palavras no ar, e
exclamou:

É pois verdade que Ljot ronda em volta da quinta? com má intenção, sem dúvida?

Oh! as suas intenções não devem ser tão más como isso retorquiu Vigdis, rindo.

Acautela-te bem com ele, Vigdis tornou a serviçal. Não tardará muito que não digam que
ele te seduziu, também.

Aesa pediu-lhe que se calasse.

Não tornes a falar a Viga Ljot recomendou ela a Vigdis , nunca se sabe o que pode
acontecer com semelhante homem.

A menina já não é uma criança interveio Torbjorg por

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39
seu turno , visto que já fez dezoito anos. E vale mais que ela saiba que deve acautelar-se,
manter-se de pé atrás. Seria mau que se acreditasse como papalvos em tudo o que se diz.
Corre que ele se conserva por estes sítios e que escreveu cantigas alusivas todas elas a
Vigdis. Foi Ljot quem espalhou o rumor de que ela tinha sido desonrada por Kare. É
verdade que ninguém das redondezas lhe liga o menor crédito, pois todos sabem que ele
procede como as crianças que depreciam aquilo que não podem obter!...

Ljot não inventou nada disso emendou Aesa. A calúnia veio dos filhos de Arne, pois são
eles que percorrem os lugares dizendo mentiras.

Vigdis, sentada num escabelo, corava e empalidecia alternadamente, com as emoções que
lhe dava aquela troca de palavras.

Não posso crer que Ljot levantasse esse falso testemunho contra mim declarou ela.

Então, Torbjorg repetiu, cantarolando, duas quadras e uma quintilha com alusões
despeitadas do bardo a pueris derretes que teria tido com Vigdis. No fim da sua cantilena a
meia voz, a mulher fez o seguinte comentário:

Ora nunca me constou que Eyolf Arnesson fizesse versos.

Bem; já ouvi o que baste das tuas cantigas esta noite rematou Vigdis, que se retirou para se
ir deitar.

Aesa dormiu junto de Vigdis e teve ocasião de notar que ela não conciliou o sono nessa
noite, conservando-se no entanto imóvel e sem proferir palavra.

No dia seguinte, Vigdis dirigiu-se aos aposentos de Gunnar, sentou-se perto dele e
perguntou:

Que darias tu a Ljot Gissursson, o sobrinho de Veterlide, se ele viesse aqui pedir tua filha
em casamento?

Aguarda a sua vinda à herdade disse Gunnar e dar-lhe-ei uma resposta que ele não
esquecerá. Ele, porém, terá o cuidado de não aparecer aqui nesta altura.

Mas não se fizeram já as pazes entre ele e Kare? insistiu Vigdis.

Veterlide reconciliou-se com Kare, mas Ljot não. Ninguém retribuiu jamais tão mal a
minha amizade.

Ele ignorava o que se tinha passado entre Eyolf e nós.

Agora já sabe o que se passou e muitas outras coisas que não se passaram. Mas Kare e eu
temos a intenção de ir procurá-lo a Hestlokken, e hei-de arrancar-lhe os dentes da boca.
Veremos, depois, que poemas difamatórios poderá ele ainda compor.
Oh! Não se deve fazer uma coisa dessas exclamou Vigdis tomada de terror.

Mas Gunnar ripostou:

O que não deves fazer, por teu lado, é tornar a falar-lhe; e também não quero que me digas,
daqui em diante, nem mais uma palavra sobre este assunto.

Vigdis calou-se e saiu.


XI

41

Vigdis conservou-se todo o dia no seu quarto, mergulhada em grande angústia, e incerta
sobre o caminho a seguir. Deveria ir ter com Ljot ou não? Porém, quando o sol se
aproximou do ocaso, ela lançou sobre os ombros um manto escuro e saiu de casa.

Caíra geada toda a noite da véspera, e o nevoeiro estendia-se agora como branca mortalha
sobre o fiorde. Mas, para o sul, o sol brilhava com luz bastante clara por cima das
montanhas. No pátio da casa não havia ninguém. Vigdis hesitou um momento, e depois
afastou-se precipitadamente da herdade, dirigindo-se para o norte, em demanda da floresta.
A sua partida não fora notada por pessoa alguma. Ljot encontrava-se já no outeiro dos
sacrifícios quando ela chegou. O rapaz estava em trajo de viagem, mas depusera a capa e as
armas e amarrara o cavalo a uma árvore. Correu para Vigdis e, pondo a mão em pala sobre
os olhos, saudou-a com um madrigal:

Eis agora que o sol zeloso me impede de ver a tua beleza! Sê bem-vinda, Vigdis.

Pôs as mãos na cintura da jovem e arrastou-a para o lado da sombra. Ela, no entanto,
soltou-se-lhe dos braços, cruzou as mãos atrás das costas e disse:

Compareci aqui, mas tenho sérias perguntas a fazer-te. Dize-me se é verdade que correm
atoardas por estes sítios acerca de Kare e de mim?

Ljot respondeu corando intensamente:

Perguntei-te ontem se era certo que ele te obteria em casamento.


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Nesse caso eu preferia não ter vindo aqui disse Vigdis , porque receio que tenham falado
verdade aqueles que eu supunha mentirem a teu respeito.

Não sei o que queres dizer redarguiu Ljot. Mas Vigdis insistiu:

Ou falaste do que se passou entre nós e eu pensava que jamais seria revelado por ti a
ninguém, ou então foste tu quem compôs as cantigas que por aí correm.

Ljot manteve-se silencioso. Então, Vigdis afastou-se dele e tentou ir-se embora. Mas Ljot
seguiu-a e disse:

Desejaria que tais canções não houvessem sido feitas. Não podes imaginar quanto me senti
desesperado durante todo aquele tempo em que acreditei haver-te perdido. Em casos assim,
mais de um homem profere coisas que depois lastima ter dito.

Tens razão exclamou Vigdis e arrependo-me de quase tudo que porventura te tenha dito.
Não fales desse modo suplicou Ljot. Nunca mais tornarás a ter ocasião de te queixar de
mim.

Plenamente de acordo, porque esta é a última vez que nos falamos.

É, então, coisa tão grave ter composto uma cantiga ou duas, e queres abandonar-me só por
isso? Na realidade, tens bem pouco amor por mim.

Vigdis exclamou, com expressão de dor:

Tu não me tiveste mais amor do que eu por ti. Deste ouvidos a maledicências contra mim e
ainda por cima as espalhaste.

Não espalhei qualquer maledicência ripostou Viga Ljot e não acreditei em nenhuma.

Não posso crer no que afirmas disse ela, tentando repeli-lo.

Não digas isso exorou Ljot, ao mesmo tempo que a cobria de beijos. Esqueceste o que
ontem me prometias quando estavas sentada nos meus joelhos?

Ela mordiscou-o no pescoço e durante um momento os seus rostos confundiram-se,


deixando de se afrontar.

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Mudei de tenção disse ela.


Kare não te obterá nunca por tua livre vontade resmoneou Ljot entre dentes. Eu não
poderia viver se te perdesse. Proferidas estas palavras, o rapaz tomou Vigdis nos braços, a
despeito da sua resistência, e levou-a para detrás duns arbustos, onde abusou dela, apesar da
energia com que durante bastante tempo a rapariga se defendeu. Por fim ficou muda e o seu
pranto cessou.

Ljot tocou-lhe a mão e o rosto. Estava como que gelada.

O rapaz ergueu-se, foi buscar a capa e cobriu Vigdis. Depois beijou-a. O frio era tanto que a
respiração condensava-se, branquejando, nos seus lábios.

O sol havia desaparecido no poente, mas divisava-se o clarão dum vermelho de sangue do
céu por detrás da floresta.

É tempo de nos irmos embora daqui disse Ljot, tentando ajudar Vigdis a erguer-se.
Chegaremos a Storvannet esta noite, e lá teremos um abrigo.

Vigdis quebrou enfim o seu mutismo:

Se meu pai te perseguisse e abatesse à machadada, homem perverso, terias ainda assim uma
morte bem melhor do que a que mereces.
Dizendo isto, endireitou o busto e pôs-se a descer a encosta do cômoro. Ljot foi
caminhando à retaguarda, e a certa altura disse:

O melhor que há a fazer é acompanhares-me. Sei que procedi mal para contigo, mas a
maior desgraça para nós ambos seria a separação.

Vigdis não se voltou uma única vez para ele, e Ljot pressentiu que o seu silêncio e os seus
olhos secos eram piores do que tudo. Seguiu-a até Vadin.

Chegada à sebe da herdade, Vigdis baixou-se, apanhou uma pedra do chão e atirou-a a Ljot.

Vai-te embora, cão! gritou ela.

A pedra atingiu-o na boca, embora ao de leve, mas com violência bastante para o ferir nos
lábios e fazê-los sangrar. Ele disse, então:

Voltarei ainda uma vez a pedir-te em casamento, mas


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agora quero deixar-te tempo para reflectires. No solsticio do Estio tornarei a procurar-te
para saber se me queres ou não.

Hás-de ver, Viga Ljot respondeu Vigdis , que a minha vontade é tão dura como a tua.

Dizendo isto, voltou costas, fechou o portão da quinta e foi direita ao quarto, onde se meteu
na cama.

Aesa notou perfeitamente que Vigdis dormiu pouco nessa noite, e que ela gemia em sonhos,
porém a rapariga não lhe contou nada do que lhe tinha sucedido.

Ljot voltou ao alto dos sacrifícios, desprendeu o cavalo, saltou-lhe para a sela e partiu.
Jornadeou toda a noite e chegou a Hakedal; dali endireitou a montada para a travessia do
Romerike e prosseguiu a viagem até Trondhjem, sem se importar com o mau tempo que
começou a fustigá-lo naquela conjuntura. A travessia das montanhas foi-lhe em extremo
penosa. Os seus irmãos adoptivos, os filhos de Torbjorn, consideraram um verdadeiro
milagre que ele tivesse saído vivo de tal jornada.

XII

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Vigdis continuou a viver em sua casa em Vadin. Andava muito triste e nada a alegrava. Mal
tinha ânimo para beber, comer, vestir-se ou pentear os cabelos. Não podia tirar da ideia o
mal que Ljot lhe fizera com a sua violência. À noite, estremecia com a ideia de se deitar só,
na companhia dos seus pensamentos; de madrugada sentia medo de se levantar, e
mortificava-a a lembrança de ter de passar todo o dia a lidar e a conversar com as outras
pessoas da casa. Dizia para consigo: «Sinto-me como a ave que, tombada no solo, agita as
asas partidas. Que não pode afastar-se do lugar onde caiu, nem ver, prostrada por terra,
mais além do rasto deixado pelo sangue que perdeu. Se tento pensar no que foi o passado,
apenas me ocorre o que está sendo o presente. Se recordo o tempo em que vivia contente e
sem cuidados, afigura-se-me que esse tempo só existiu para preparar a minha desgraça de
hoje.»

Pensava com frequência que o melhor que tinha a fazer era deitar-se a afogar. Quando se
aproximou o Inverno, Vigdis compreendeu que se agitava nela uma vida, almejando pela
luz, que só da sua vida dependia.

Certa noite em que se conservou acordada enquanto Aesa e as outras mulheres dormiam,
levantou-se, envolveu-se num manto e saiu para o pátio do solar. Dali enfiou pela vereda
que descia para o ribeiro. Não saía nunca só; por isso a noite e as trevas pareceram-lhe
muito mais medonhas do que imaginava. Estava-se na época do equinócio, chovia e o
temporal açoitava furioso tudo o que encontrava à sua frente.
Sigrid Undset

46

A obscuridade profunda não lhe consentia distinguir o céu da terra. Mas, por vezes,
rasgava-se uma estreita aberta entre as nuvens, e as estrelas apareciam. Ao fim de certo
tempo de marcha, Vigdis deixou de ver qualquer vestígio do caminho por onde seguia.

Achava-se no meio dos campos, mas não conseguia ver onde punha os pés.

Tão depressa se enterrava em camadas de neve mole, como era detida por algum buraco. A
maior parte do tempo, porém, caminhava sobre um solo coberto de espessa geada, em
virtude de a neve ter deslizado ao longo das vertentes que iam dar a Frysja. Não tardou
muito que Vigdis não se perdesse no trajecto que fazia, sem saber onde se encontrava, onde
ficava o rio, nem sequer onde era a herdade. Vadin estava situada muito perto da água, mas
na escuridão a distância parecia-lhe infinita. Ao cabo de mais algum tempo daquela dura
caminhada, Vigdis escorregou no gelo, caiu e foi rolando pelo declive até esbarrar,
momentos depois, com um objecto a que se agarrou com ambos os braços. Adivinhou que
era um pinheiro, porque os ramos arranhavam-lhe a face. Enquanto rolara, na queda, sentira
agitar-se-lhe o filho no seio.

Agachou-se, então, debaixo da árvore. A chuva e o frio traspassavam-na como se tivesse


estado deitada na neve. Enroscando-se um pouco sob os ramos, procurou abrigar-se da
chuva. O vento uivava e fazia um ruído medonho nas árvores que havia à sua volta, e da
noite elevavam-se rumores sinistros. Vigdis, meia alucinada, perguntava a si mesma que
seres eram aqueles que rugiam e tão furiosamente se agitavam em torno dela.

Conservou-se no seu abrigo até que as trevas diminuíram um pouco. Viu então que,
precisamente por baixo do sítio onde se encontrava, o terreno descia em rampa para a
ribeira, dum negrume de tinta e cuja corrente arrastava grandes pedaços de gelo. Vigdis
acabou por perder toda a coragem e voltou para a quinta. À claridade do dia que
despontava, apercebeu-se, então, de que se tinha afastado menos do que supunha.
Despojou-se das vestes e meteu-se na cama. Sentia-se mal a

47

ponto de crer que tinha contraído qualquer afecção de morte durante a sua digressão
nocturna. «Tanto melhor», pensou ela para consigo.

No dia seguinte de manhã, Aesa perguntou-lhe:

Porque está a tua roupa tão molhada, minha filha?

Vigdis respondeu que se lembrara de ir ao estábulo durante a noite. (O gado fora atacado de
moléstia naquele ano). E esclareceu que a escuridão era tamanha que só a custo achara o
caminho do regresso a casa.
Aesa não lhe dirigiu mais nenhuma pergunta, contentando-se com pensar que Vigdis não
deixaria de ser mais explícita quando assim o entendesse.

Um dia, convenceu-se de que Vigdis, atenta a maneira como descorava e se mantinha


enroscada no banco, devia estar doente. Insistiu para que a jovem lhe confiasse o segredo
daquele seu estado. Mas Vigdis limitou-se a dizer a Aesa que não se apoquentasse por causa
dela.

A saúde de Gunnar não era boa naquele ano. Por esse motivo, apareceram poucos visitantes
na herdade, e, como o Inverno se aproximava, Aesa decidiu dispensar as outras mulheres e
ficar só com Vigdis, em Vadin. A rapariga começara a usar sob o vestido um corpete
acolchetado, e conservava-se a maior parte do tempo em casa. Assim, ninguém se
apercebeu do que se passava nela, exceptuando Aesa, que não se atrevia a dizer nada.
49

XIII

Quando chegou a Primavera, Vigdis declarou que ficaria no chalé durante o Verão, com
Aesa. E assim foi, embora Gunnar não se mostrasse nada satisfeito com tal decisão. Aesa
insistiu tanto tempo com ele, para que acedesse ao desejo da filha, que o homem acabou por
aceitar as razões que ela lhe apresentava. Elas partiram cedo para os bosques, levando na
sua companhia um homem de nome Skofte. Era filho de Aesa, e Gunnar dera-lhe a alforria.
Tinha a seu cargo a guarda dos cavalos e do gado contra os animais ferozes.

Uma tarde, Aesa achava-se à porta do estábulo reunindo as vacas, quando Vigdis correu
para ela muito assustada, dizendo:

Gunnar atravessa o prado e dirige-se para cá, e eu não sei o que se vai passar; matar-me-á
se descobre o estado em que me encontro.

Vai meter-te na cama aconselhou Aesa , dir-lhe-ei que estás doente. Ele não deve demorar-
se por aqui muito tempo.

Vigdis obedeceu e não se levantou durante os dois dias que Gunnar passou no chalé. Disse
que não admirava que ela estivesse doente, atendendo à escassez de leite que havia na casa.

com efeito, as duas mulheres tinham ido tão prematuramente para o chalé que a geada caía
ainda todas as noites, e a floresta oferecia pouco pasto ao gado.

Depois desta visita, Aesa não cessou de pensar que o seu dever era falar a Vigdis e dar-lhe
alguns conselhos. Um dia, pois, achando-se a rapariga de pé junto da mesa, limpando umas
vasilhas de leite, Aesa disse-lhe:
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Deixa isso, que eu faço esse trabalho. É demasiado violento para o teu estado.

Vigdis atirou com a vasilha ao chão, e a mãe adoptiva assustou-se notando o seu olhar
desvairado.

Se me falas nisto, nem sei o que sou capaz de te fazer. Aesa não teve ânimo para voltar a
referir-se àquele assunto

e o Estio avançava.

Uma noite, Vigdis levantou-se e saiu do chalé. Já tinha passado o solstício do Verão, o
tempo estava sombrio e sem vento. A rapariga atravessou o prado. Quando chegou à sebe
da propriedade, faltaram-lhe as forças e deitou-se no chão. Pela orla da floresta ia passando
um cavalo negro. Não seguira a manada, detendo-se nas proximidades das casas. Gostava
de ser acariciado, principalmente por Vigdis. O cavalo acercou-se dela e cheirou-a. Não a
deixou mais. Quando as dores se acalmaram, a rapariga ergueu-se para se afastar um pouco.
O animal seguiu-a. Cada vez que o sofrimento tornava a pungi-la, ela abraçava-se ao
pescoço do cavalo, amparando-se ao animal. Este voltava então a cabeça, mordiscava,
afectuoso, o ombro e as costas de Vigdis e ficava imóvel junto dela. Por fim, ela chegou
junto dum extenso pego de água sombria.

No mais alto do céu, aparecia uma aberta entre as nuvens e o lago reflectia-lhe o azul; tudo
o mais em redor era negro.

Em certo momento, Vigdis soltou um grande grito, respondendo-lhe um eco lúgubre dos
rochedos da outra margem. Aterrorizada, fincou os dentes no seu manto, dilacerando-lhe,
em tiras, um bocado. Encheu-se-lhe a boca de fios de lã, e por pouco não vomitou. Próximo
dela, ouviu murmurar um regato. Abrindo os olhos, viu que o dia ia nascer; pequenas ondas
escuras enrugavam a superfície do lago, mas Vigdis já não teve forças para se arrastar até
lá, e a noite foi-se escoando naquela espécie de agonia.

O sol veio, por fim, ferir-lhe a vista. Momentos depois, a sua luz caía como uma bênção
sobre um novo ser.

Vigdis ficou como morta durante grande parte de tempo, mas, ao cabo do seu desmaio,
sentindo-se reanimar pelo calor do astro fecundo, ouviu o choro do seu filho. Olhou-o. Era
um

51

rapaz. A mãe não ousava tocar-lhe, mas pegou num man tele te com que tinha coberto a
cabeça e as espáduas. Desdobrou-o e envolveu com ele a criança, depois colocou esta no
meio de duas pedras e cobriu-a com musgo e ramitos de árvore. Em seguida, arrastou-se até
ao regato e bebeu. À beira da água havia uma extensa laje já aquecida pelo sol. Vigdis
deitou-se sobre ela, para descansar um instante. Depois, erguendo-se, tomou o caminho do
chalé.

Encontrou ali Aesa possuída de grande angústia. Skofte partira em busca de Vigdis. A
rapariga dirigiu-se para o quarto e deitou-se ardendo em febre.

Durante vários dias esteve muito mal. Aesa tratou dela e deu-lhe massagens no peito com
manteiga quente, mas nem uma nem outra disse palavra acerca do que se tinha passado.

Vigdis nunca mais quis voltar à floresta, conservava-se em casa, donde nunca saía. Aesa
tinha a impressão de que ela não estava menos cheia de desespero do que antes do que
acaba de ser descrito.
53

XIV
O Verão foi muito quente, as vacas não se recolhiam à noite deitando-se pelos bosques.
Aesa e Skofte viam-se obrigados a fazer grandes percursos nas montanhas e nos brejos para
as descobrir e para as trazer novamente para o estábulo. Vigdis não gostava de ficar sozinha
no chalé. Mas a floresta causava-lhe temor e resignava-se a permanecer em casa. Sentada
no limiar da porta, deixava errar a vista pelos declives verdejantes O chalé estava situado
num ponto muito alto, cercado por todos os lados por montanhas e florestas. Ao sul, porém,
Vigdis conseguia divisar um trecho do fiorde. Uma tarde, estando ela assim sentada, a
passar tempo, o seu cão, que apoiava o focinho nos joelhos da dona, mostrou-se
subitamente inquieto. O animal interrompeu a sua posição de repouso sobre as patas
traseiras, ergueu-se de um salto e, latindo, pôs-se a descer a encosta do prado.

Vigdis distinguiu um cavaleiro que, um instante depois, se apeou do cavalo e foi prendê-lo
à sebe. A jovem teve medo, ergueu-se e pensou em fugir para os bosques, a fim de procurar
nas suas espessuras um esconderijo, mas ao mesmo tempo o homem voltou-se e ela
reconheceu Ljot. Este chamou-a, dizendo-lhe que nada tinha a recear dele. Vigdis
conservou-se de pé, à porta.

Sei bem disse ela que não devo arrecear-me de ti. Ljot deteve-se para a contemplar e
depois disse lentamente:

Que pretendes significar com essas palavras?


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Vigdis teve um riso mau, mas não deu qualquer resposta. Ljot veio encostar-se ao umbral
da porta. O seu olhar errava pela pradaria em declive, e, enquanto falava a Vigdis, raspava o
solo com a ponta da sua curta lança.

Chegou a altura explicou ele de eu voltar para a Islândia. Em Tunsberg espera-me,


ancorado, um navio que pertence a parentes meus. Não ignoro que a súplica que you
dirigir-te é temerária, pedindo-te, aliás, que me perdoes todo o mal que te fiz. Contudo, é
certo que, se te decidires a acompanhar-me, serás venerada e amada como nunca o foi
qualquer outra mulher antes de ti.

Vigdis ria ainda ao responder:

As tuas promessas não valem grande coisa, Ljot. Seduziste-me um dia com belas palavras,
após o que me infligiste a mais cruel das afrontas e me causaste uma dor intolerável.
Nenhuma mulher sofreu transes semelhantes aos que sofri. Acho que a que casar contigo
poderá gloriar-se da tua forma de te insinuares junto das pessoas, de lhes matar os cavalos,
de abusar das raparigas e de espalhar por toda a parte as tuas canções e as tuas mentiras.
Não me pareces capaz para realizar grandes proezas, Viga Ljot.

Ljot desviou a vista e disse:

Não há dúvida de que tens boas razões para me falar assim. Mas eu realizei outrora outras
acções melhores. E houve um tempo em que gostavas de me ouvir descrever-tas. Eu não te
parecia tão repulsivo naquela época, visto que não te recusavas a beijar-me repetidas vezes.
Mas a alegria fugiu-me desde a nossa última conversa, e as horas pareceram-me
horrivelmente longas sem te tornar a ver.

Talvez julgasses ripostou Vigdis que eu fiquei à espera doutro próximo encontro entre nós!

Ljot ergueu os olhos e encarou-a:

Sim confirmou ele.

Ambos ficaram silenciosos durante uns momentos. Depois, Ljot acrescentou:

Diz-me, Vigdis, não terei eu porventura um filho por estes sítios?

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Vigdis respondeu, rindo:

É possível que sim, mas desconheço-o. Não me apoquentei mais com os teus feitos e
atitudes.

Uma onda de sangue avermelhou o rosto de Ljot, que guardou silêncio.

Vigdis prosseguiu:

Vai agora compor canções sobre a tua força máscula e não te esqueças de a gabar
prolixamente. Conta aos outros como és corajoso e ousado quando te encontras com uma
mulher. Mas não esperes que alguém dê crédito às tuas palavras nesta região. Aqui ninguém
se interessa muito pelo palavreado dum pretendente despeitado...

Ljot ficou imóvel, sem já saber o que lhe havia de objectar, e não tinha ânimo para se ir
embora. Compreendia claramente, não obstante, que Vigdis não mudaria de disposições a
seu respeito, e que nunca mais conseguiria reconquistá-la. Mas a ideia de a perder para
sempre fazia-o sofrer imenso. De repente lembrou-se da faca que a rapariga um dia deixara
cair e que ele guardou sem que ela o notasse. Tirou-a de sob a roupa do peito e apresentou-a
a Vigdis:

Recordas-te de teres perdido esta faca na primeira vez que estivemos juntos no alto dos
sacrifícios, o ano passado?

Vigdis pegou na faca, e, num gesto brusco, inclinou-se e vibrou um golpe na direcção da
garganta de Ljot. Atingiu-o no alto da clavícula. O golpe cortou-lhe a roupa, passou de
raspão pela pele e o sangue correu. Ljot agarrou Vigdis, apertou-a um instante contra si e
declarou:

Ser-me-ia agora fácil raptar-te, Vigdis; mas desta vez não quero agir contra tua vontade.
Suplico-te: não me deixes; por todo o mal que me fizeste, só bem te farei.
Vigdis respondeu, nos braços de Ljot:

Não lograrás fazer-me atravessar viva as ondas do mar. Ele beijou-a e respondeu:

Desejo, então, que encontres muita felicidade neste mundo; eu não esquecerei nunca o meu
desgosto.

Vigdis gritou-lhe:

Oxalá que morras da mais cruel das-mortes, que vivas


56

muito tempo uma vida desgraçada, tu e todos aqueles cuja presença possa ser regozijo para
o teu coração. Que possas, enfim, ver morrer os teus filhos duma morte horrorosa diante
dos teus olhos!

Ljot largou-a e desceu o declive relvoso. Mas, depois de ter desprendido o cavalo da árvore
a que o atara, voltou-se e ficou durante alguns instantes com os olhos erguidos para o chalé.
Em seguida levou o cavalo para a floresta, saltou para a sela e afastou-se. Muito tempo se
passou e numerosos foram os acontecimentos que se deram antes que Vigdis o tornasse a
ver.

XV
Nas proximidades do Outono, as mulheres deixaram o chalé. O Inverno que se seguiu
também não foi muito feliz para a filha de Gunnar. A rapariga inquietava-se por ver Kare de
Grefsin e os homens da família respectiva em conversações com seu pai a respeito do
casamento que pretendiam concluir entre ela e Kare.

Vigdis pediu a Gunnar que deixasse aquele assunto em suspenso, por mais algum tempo
ainda. Pretextava que não era seu desejo casar-se tão nova. Gunnar prometeu a Kare que lhe
seria dada uma resposta definitiva no Outono. Vigdis, entretanto, via bem que o pai queria
aquele casamento.

A rapariga declarou que não iria ao chalé no Verão. Ao cair da tarde dum dia de Primavera,
saiu e pôs-se a caminhar através dos campos. O Sol ia sumir-se no ocaso, e o tempo estava
bom. Era na época em que rebentam os botões das bétulas, em que as aves cantam. Um
suave perfume evolava-se da ervagem. Vigdis sentiu o desejo de esquecer o seu desgosto.

Uma mulher habitava uma pequena casa ao sul da herdade. Era casada com um dos criados
de Gunnar. Quando Vigdis passou pela frente do casebre, a mulher estava sentada à porta e
fiava. Vigdis deteve-se para conversar com ela. Uma criança tamanina chorava dentro da
casa. Vigdis observou:

Esta criança chora como se tivesse um grande desgosto. Não deve já ser muito pequena,
pois notei que os gritos dos recém-nascidos são muito feios: dir-se-ia que se ouve um gato
ou um mocho e não um rapazinho.
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58

A mulher entrou na casota e voltou trazendo a criança nos braços. Era uma pequenita de
dois anos ou pouco mais. Assim que se viu sentada nos joelho de sua mãe, passou-lhe a
amargura e deixou de chorar.

Daí a instantes, deixou-se escorregar do colo materno para o chão e pôs-se a cirandar pelo
prado, colhendo flores. Era ainda tão pequena que, ao pisar o vestidito, caiu. Vigdis foi
levantá-la e a criança deu-lhe as flores que segurava na mão e que tinha arrancado sem as
hastes respectivas, de modo que Vigdis logo as deixou cair.

Então, a mãe da pequenita disse:

Essas flores chamam-se «noites e dias». Pega numa delas e dá-ma, Vigdis; revelar-te-ei a
tua sina.

Vigdis aquiesceu e a outra prosseguiu:

Vejo duas pétalas escuras, depois duas muito claras, a última é clara em cima, mas escura
nos rebordos. Isto quer dizer que, a princípio, terás grandes desgostos, mas que mais tarde
não te faltarão bastas alegrias. Contudo, o rebordo escuro da última pétala é inquietante, e
não pressagia nada de bom para a tua velhice.

Vigdis respondeu:

Eis aí uma predição pouco fagueira, ao que parece, e eu não te pedi para me vaticinares o
meu futuro. Não obstante, quero recompensar-te do trabalho que tiveste.

Desprendeu do corpete um alfinete de prata, deu-o à mulher e em seguida retirou-se.

A meio do prado elevava-se uma pequena colina onde cresciam arbustos. A erva achava-se
recamada de flores iguais às que a camponesa denominara «noites e dias». Vigdis sentou-
se, cruzou as mãos nos joelhos, e contemplou o fiorde que brilhava, ao sul, em toda a sua
beleza enquanto o sol ia descendo para as montanhas.

A rapariga conservou-se assim absorta muito tempo; os seus pensamentos não eram alegres,
quer fossem para Ljot quer voassem para o ser que deixara lá em cima nos bosques. com
frequência se interrogava sobre se dele restaria alguma coisa entre as pedras ou se tudo teria
sido devorado pela bi-

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charada daquele matagal. Lembrava-se de que, no local onde se estendera contorcida de


dores naquela noite, saíam formigas e outros bichos rastejando de todos os lados. Apesar de
não sentir qualquer ternura pela criança que dera ao mundo, custava-lhe imaginá-la coberta
de formigas a correrem-lhe sobre o corpo ainda vivo.

Ao cair da noite, Vigdis levantou-se e meteu-se a caminho para regressar a casa. Fez a
correr grande parte do trajecto, para não chegar muito tarde. Quando chegou à herdade,
encontrou Aesa, que lhe disse:

Assustaste-me terrivelmente, minha filha. Já não sabia que pensar da tua longa ausência,
pois não ignoro que a noite te aterroriza agora mais do que nunca.

Vigdis respondeu:

Tenho medo da noite e tenho medo da floresta. Na minha própria casa tenho medo. A minha
vida é sem ventura e melhor seria para mim pôr termo a esta existência.

Não fales dessa maneira disse Aesa , tu podes ser ainda feliz. Não és tão idosa que te seja
impossível esquecer a tua dor. Ninguém a conhece, e toda a gente te crê pura como
nasceste. Kare gosta de ti, e junto dele serás rica e venerada.

Essa perspectiva é justamente a pior para mim tornou Vigdis. Agora afigura-se-me que
melhor do que isso seria que a minha vergonha fosse conhecida de todos, ainda mesmo que
meu pai me expulsa-se de casa. O mais atroz é dissimular, parecer que sou ditosa como
outrora. Acompanha-me sempre o pensamento da minha desdita. E de pouco serve que as
criaturas destes sítios me julguem diferentemente, porquanto eu conheço o meu opróbrio, e
nem sei onde hei-de meter-me desde que Kare pretende obter a minha mão.

Aesa e Vigdis tornaram a reunir-se ao serão na mesma casa, e Vigdis perguntou-lhe:

Não te seria agradável, ó minha mãe adoptiva, partir para o país do Sul a fim de tornares a
ver a tua família? Disseste-me, não é verdade, que não era gente menos bem nascida do que
nós?

Aesa respondeu:
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61

Ignoro se vivem ainda as pessoas de minha família ou se morreram, e é demasiado


tarde para ir procurá-las e mudar as condições da minha vida. Mas porque me fazes
essa pergunta?

Vigdis manteve-se silenciosa por longos momentos e depois disse:

Noutro tempo, quando eu tinha qualquer dissabor, ia para junto de ti e sentava-me


nos teus joelhos. Mas hoje, Aesa, oculto-me mais de ti do que de qualquer outra
pessoa.
Aesa não respondeu, e Vigdis continuou:

Lastimo, agora, ter abandonado aquela criança, porque ele desperta-me todas as
noites soltando gritos pavorosos. Desejaria que o meu destino me tornasse
implacável; que o filho de Ljot se convertesse no seu castigo e que o pai não pudesse
escapar à vingança do filho.

Aesa, vivendo num ambiente primitivo e bárbaro e imbuída dos preconceitos que
nele predominavam, não manifestou nenhum espanto ao ouvir aquelas palavras
dementadas, e murmurou em voz baixa:

Desejaria saber se é esse realmente o fundo do teu pensamento.

Vigdis respondeu afirmativamente. A aia revelou-lhe, então:

É tempo de o saberes. A criança que nasceu de ti, no ano passado, foi recolhida por
meu filho Skofte.

Vigdis ergueu-se bruscamente. Ficou um instante muda, pálida de morte, e depois,


deixando descair a cabeça sobre a mesa, desfez-se em lágrimas.

Aesa disse:

Não há necessidade de tornar conhecida a tua desventura. E, na minha opinião, seria


de bom aviso que continuasse ignorada como até aqui. Falei-te nisto apenas para o
caso de teres o desejo de ver teu filho.

Vigdis continuou a lamentar-se:

Julgava-me suficientemente infortunada para crer impossível uma existência ainda


mais cruel. Mas falta-me o ânimo para continuar a viver aqui, exposta a encontrar
essa criança. Oh! porque não tive eu a coragem precisa para a lançar ao

lago naquela noite! Apesar de tudo, não posso crer que me tenhas dito a verdade.

Aesa foi abrir o seu armário, e retirou dele um mantelete de pano forte que entregou
a Vigdis. Esta viu imediatamente que era o mesmo em que ela abrigava a cabeça
naquela noite sombria. Ainda se notavam nele as manchas de sangue, e nas dobras
havia restos de raminhos e de musgos. Vigdis atirou-o para longe de si, chorando e
disse:

É necessário contar tudo isto a meu pai. Não poderei viver se tiver de partilhar com
Skofte ou com quem quer que seja este segredo. Nunca pensei que tu me
abandonasses desta maneira.

Aesa respondeu:

Naquela manhã, quando despertei e não te encontrei a meu lado no leito, assustei-me
e mandei Skofte à tua procura. Ele achou o pequenito e trouxe-o. Pareceu-nos um
lindíssimo garoto e Skofte ofereceu-se para o criar. Revelo-te esta noite tudo isto, na
intenção de te proporcionar algum consolo, sabendo que tens um filho que é o mais
belo petiz destas redondezas.

Pois sim; mas seja como for exclamou Vigdis , estou farta desta vida.

Aesa respondeu:

Não digas isso. Um nascimento ilustre não serve de grande coisa neste mundo. Bem
ou mal nascida, a pessoa vergada pela vergonha, vergada fica. Fui obrigada a
aprender isto, e you contar-te como o aprendi, depois decidirás o que quiseres fazer.
63

XVI
Aesa começou assim a sua história:

Meu pai, que era conhecido por Harald «Barba de Oiro», habitava no Sul, em Seeland. Já te
contei um pouco da minha infância, que decorreu feliz e alegre como a das minhas irmãs.
Ingrid e Astrid eram já raparigas muito crescidas quando eu contava apenas treze anos.
Uma tarde fomos até ao Sund com as nossas criadas para tomarmos banho. Barcos à vela
passaram a certa distância. Eram tripulados por «vikings» de Oeland, que acostaram os
barcos e nos levaram para bordo. Nenhuma de nós conseguiu fugir. Os navios pertenciam a
três irmãos e eles raptaram-nos, a mim e a minhas irmãs, por se terem apercebido à
primeira vista de que nós éramos filhas de senhor importante. O mais velho dos três irmãos
chamava-se Arngrim. Dormi a primeira noite no seu leito, e reteve-me durante dois anos.

Os irmãos separaram-se pouco depois da nossa captura, os outros dois regressaram à sua
terra, mas Arngrim continuou a correr os mares, tanto no Inverno como no Verão. Ele era
destemido, robusto e de agradável semblante, porém mostrou-se ríspido a meu respeito
porque me recusei sempre a manifestar-lhe amor. Não tornei a ver minhas irmãs e não
soube jamais qual foi o seu destino. Arngrim não queria responder-me quando lhe
perguntavam qualquer coisa a tal respeito. Como temia que eu me evadisse, tirara-me todas
as minhas roupas, mas dava-me muitos abafos preciosos, túnicas e jóias. Havia a bordo um
moço de nome Asbjorn. Persuadi-o a fugir comigo
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e a levar todo o oiro do navio. Mas Arngrim descobriu os nossos projectos. Matou Asbjorn,
e tornou-se ainda mais duro no seu trato para comigo do que era anteriormente.

Um dia em que estávamos ao largo das ilhas Soder, fomos abordados por «vikings»
noruegueses, e Arngrim foi morto. Gunnar, teu pai, era o chefe dos «vikings» noruegueses.

Quando ele me mandou sair do camarote do barco, pude ver na ponte o cadáver de
Arngrim. Ajoelhei-me ao lado dele e molhei as minhas tranças esparsas no sangue que lhe
corria das feridas, por me lembrar de que o corsário costumava, à noite, atar os meus
cabelos em redor do seu pescoço, para dificultar a minha fuga.

Gunnar perguntou-me o nome, e interrogou-me acerca de minha família, «porque se me


afigura disse ele que o teu nascimento está de harmonia com a tua beleza». Contei-lhe o
que se tinha passado na noite da minha captura e de minhas irmãs.

Gunnar prometeu-me que me levaria para a Dinamarca. Deu-me as vestes mais belas e
dignas da minha estirpe e manifestou-me tanta amizade que me apaixonei por ele.
Confessou-me então que tencionava separar-se de sua mulher. E pedir-me-ia
oportunamente, na Dinamarca, em casamento aos meus pais. Mas eu preferia ficar junto de
Gunnar a voltar para a minha família. Fiquei portanto no seu navio até que lancei ao mundo
um filho. Desde então, Gunnar tornou-se ainda mais meu amigo, porque Alvsol, sua
mulher, era estéril.

Conduziu-me a Vadin, mas naquela época o Jarl chamava os senhores às fileiras do exército
e Gunnar foi obrigado a deixar-me. Recomendou a Alvsol que olhasse por mim e que
cuidasse da criança como se fosse sua. Separámo-nos, pois, e eu senti-me, mais uma vez,
infinitamente desditosa.

Alvsol e a mãe adoptiva estavam à minha beira quando me nasceu o filho. Elas pegaram
imediatamente na criança e mandaram-na expor, pedindo a todas as pessoas da herdade que
dissessem a Gunnar que o bebé era nado-morto, e ameaçaram-me com a mais cruel das
mortes se eu ousasse queixar-me.

Um pouco mais tarde soubemos que Gunnar estava grave-


65

mente ferido e que durante muito tempo não devíamos contar com o seu regresso. Alvsol
fez-me então conduzir para a casa onde viviam os seus escravos. Um deles chamava-se
Svart. Defendeu-me contra os outros e mostrou-se bom para mim em todas as coisas, mas
tomou-me como sua mulher. Alvsol deu-lhe habitação na floresta, na casa onde reside hoje
Skofte, e fez constar por toda a parte que eu me tornara mulher dum escravo do seu
domínio.

Quando Gunnar voltou, ela contou-lhe que eu me juntara voluntariamente a Svart, e Gunnar
ficou possuído de tal furor que nos quis matar a ambos. Porém, eu disse-lhe a verdade sobre
o meu filho, que ela mandara abandonar, e sobre o mais que tinha ocorrido.

Então, ele expulsou Alvsol de sua casa e propôs-me que deixasse Svart para ser a
administradora de sua casa. Mas eu aconselhei-o a que antes de mais nada tomasse uma
outra mulher. E ele desposou, então, Herdis, tua mãe, que era mais nova e mais bela do que
eu naquela época. Não ignoras que ela morreu quando tu nasceste. Pedi a Gunnar que me
permitisse cuidar da tua educação, e ele acedeu ao meu desejo. Desde então governei esta
casa, como sabes. Gunnar tomou conta dos meus filhos e deu-lhes a alforria. Ele só me fez
bem desde o dia em que o encontrei.
67

XVII
Vigdis disse:

O que me parece mais estranho é que tenhas ficado em casa do escravo à mercê do qual te
haviam posto. Eu teria pedido a Gunnar que o mandasse esquartejar por cavalos fogosos.

Aesa respondeu:

Gunnar honrou-se muito mais trazendo ao domínio uma esposa rica e bem nascida do que
mantendo-me junto dele. Mas o que principalmente me decidiu foi o facto de ter filhos de
Svart. Não desejava que me tirassem mais uma vez os meus filhos.

Tu não tens o mesmo carácter que eu, minha mãe adoptiva disse Vigdis, acrescentando
após uma pausa: Meu pai também não foi muito feliz por ter desposado minha mãe, e
ainda o será menos quando souber que eu tenho este filho.

Deixa o pequeno onde está enquanto Gunnar for vivo disse Aesa. Mais tarde, poderás
então trazê-lo para junto de ti e alegrar-te com a sua presença. Poderemos, por nosso lado,
arranjar-nos sem inquietações com Kare.

Vigdis colocara as mãos sobre os joelhos e olhava o lume na lareira:

Não posso continuar a viver na angústia e no desespero, procurando incessantemente


escapar às adversidades. Acho preferível arriscar-me ao pior, que não será, aliás, mais
temeroso do que a minha condição presente.

Ela pegou no mantelete, correu à porta, e, chamando um homem que rachava lenha no
pátio, disse-lhe:
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Leva isto a Skofte, e dize-lhe para vir aqui esta noite mesmo, e que me traga o que
achou ao mesmo tempo que este mantelete.

Depois meteu-se na sala de estar da casa, e sentou-se próximo do lume, à chaminé.


Aesa sentou-se a seu lado. As duas mulheres conservaram-se em longo mutismo, e
por fim Aesa exclamou:

Só daqui a muitas horas Skofte chegará a esta casa. Seria melhor deitarmo-nos.

Vai-te deitar tu respondeu Vigdis. Eu ainda me demoro aqui.

Aesa calou-se e não respondeu. Um pouco mais tarde Vigdis repetiu:


Vai-te deitar, Aesa.

A mãe adoptiva compreendeu, pelo torn de voz de Vigdis, que seria inútil tentar
resistir-lhe. Meteu-se portanto no leito, mas não dormiu. Vigdis conservou-se no
mesmo ponto, e apenas se movia para deitar lenha no lume quando este tendia a
apagar-se. Depois, retomava a sua posição imóvel. A noite passou-se assim até ao
momento em que os galos se puseram a cantar.

Então, alguém bateu à porta:

Vai abrir, Aesa disse Vigdis.

Aesa foi abrir e entrou Skofte. Transportava nos braços a criança embrulhada em
peles que a aqueciam. Vigdis ergueu-se e acendeu um pau resinoso. Skofte libertou o
pequenito dos abafos em que o envolvera e elevou-o até junto da luz, o que o fez
começar a chorar, pois acordara naquele mesmo instante.

Vigdis contemplou-o um momento, sem ousar tocar-lhe. De pouca altura e delgadito


para a sua idade, o rapazito tinha compridos cabelos negros e olhos azuis e
luminosos. Parecia-se muito com Ljot. Skofte pô-lo no chão, para mostrar que o
petiz já sabia manter-se de pé quando se lhe pegava na mão, mas não podia andar. E
não cessava de chorar, agarrando-se à vestia do pai adoptivo.

Vigdis atirou o pau resinoso para o lume, e tornou a sentar-se no lugar onde estava
antes.

69

Skofte disse, vendo que o rapazinho não se calava:

Ele chora porque tem sono, pois costuma portar-se bem. Vai, então, deitá-lo
respondeu Vigdis senão é capaz

de acordar toda a herdade.

Aesa tomou-o nos braços e quis levá-lo para o leito, mas Vigdis interveio:

Não o quero nesse leito. Procura outro canto para ele. E tu, Skofte, vai-te deitar na
sala. Recompensar-te-ei pelo que fizeste, com uma dádiva de mais valor do que vale
esta criança.

Aesa estendeu o menino em cima do banco e deitou-se ela própria ao lado dele.
Vigdis ficou a pé toda a noite.

71

XVIII
Aesa Haraldsdatter foi ter com Gunnar logo de manhã cedo, mas ele estava ainda deitado.
Pediu então aos criados que se retirassem e sentou-se à beira do leito. Gunnar e ela
conversaram durante muito tempo a sós. Depois da conversa, Gunnar levantou-se, vestiu-se
e dirigiu-se à casa onde estava Vigdis.

Esta ergueu-se precipitadamente quando o pai entrou; estava muito pálida e em profunda
ansiedade. Mas Gunnar pouco disse, e Aesa não se tirou de ao pé dele.

Por fim, foi contemplar o pequenito:

Vê-se bem quem é o pai disse ele. Vigdis guardou silêncio e Gunnar continuou:

Até agora parecia-me bem punível o destino que tão-só me dera uma filha e nenhum filho,
Mas julgava ter-te sempre testemunhado carinho, e nunca ter sido duro para contigo.
Desejava ver-te feliz e respeitada antes da minha morte. Teria sido preferível ver-me sem
filhos a ouvir alguém chamar-te dissoluta e ver crescer o teu bastardo na herdade, na minha
velhice.

Vigdis respondeu:

Dizes bem, pai. Mais valera que não tivesses filha. Gunnar não disse mais nada e saiu.73

XIX
O tempo passava e o silêncio reinava em Vadin. Recebiam-se ali poucas visitas, e as
pessoas da casa evitavam todo o convívio com gente da região. Gunnar ficara seriamente
acabrunhado com a aventura da filha. Envelheceu depressa, a estatura curvou-se-lhe ao
peso da vida e dos dissabores e a saúde tornou-se-lhe precária.

O rapazito vivia na herdade. Aesa tratava dele e tributava-lhe grande carinho. Mas Vigdis
não lhe manifestava a menor ternura e ainda não lhe dera sequer um nome. Mostrava-se
sempre triste e não abandonava o recinto da espécie de eremitério em que Vadin se
convertera.

Um dia, Vigdis e Aesa preparavam pão na cozinha; o pequeno ia e vinha dum lado para
outro, pois já tinha dois anos naquela época. Aesa amassou dois pães pequenos e mostrou-
os ao petiz, dando-lhe a perceber que ia enforná-los para ele. Ficou de tal forma contente
que, não podendo conter o júbilo, corria duma mulher para a outra, pedindo
incessantemente os pãezinhos, e na sua agitação esbarrou no taleigo da farinha, derrubando-
o. Vigdis agarrou a criança, sacudiu-a rudemente e bateu-lhe.

Não fazes senão maldades disse ela.

O pequeno gritava e chorava. Vigdis pegou nele e foi sentá-lo no banco.


Deixa-te estar aí, e cala-te; não quero ouvir-te chorar por tão pouco.
74

Voltou à amassadura e consagrou-se uns momentos ao trabalho. Depois disse a


Aesa:

Este rapaz não me dá alegria, e temo que ele não seja o instrumento da minha
vingança. Não se parece comigo.

Não fales assim volveu Aesa.

Vigdis calou-se e continuou o trabalho. O garoto não cessava de chorar, mas cobriu
o rosto com as mãos e, quando a mãe o olhava, estendia-se no banco e ocultava a
cabeça nuns sacos que ali se encontravam.

Pouco depois, Aesa saiu da cozinha. Vigdis pegou então nos dois pequeninos pães e
deu-os ao filho.

Cala-te e come disse ela, colocando os pães em cima dos joelhos do petiz.

Este calou-se e olhou para a mãe, ao mesmo tempo que tocava nos pães com a
extremidade do dedo. Mas achou-os quentes de mais e o temor paralisou-o. Então,
de repente, ela acariciou-lhe o cabelo repetidas vezes, e depois mandou-o ir ter com
Aesa.

XX
O Inverno passou sem que se dessem quaisquer acontecimentos que valha a pena
narrar. Já se transpusera o equinócio; o sol ganhava dia a dia mais força por aquelas
paragens e a água caía em gotas dos tectos durante o dia. O pessoal abatia árvores
nas florestas. Numa bela manhã, Gunnar partiu sozinho, a cavalo, para ir ver os seus
servos que trabalhavam nos bosques.

Cerca do meio-dia, Aesa e Vigdis preparavam-se para pôr o almoço na mesa, quando
Aesa lançou um olhar para a porta.

Olha disse ela , ali vem Gunnar já de volta; mas aguenta-se a muito custo na sela.
Ou bebeu de mais ou está doente.
Proferidas estas palavras, correu ao seu encontro. Vigdis tirou do lume a marmita
cheia de cozido, e começou a distribuir os talheres. De repente, ouviu gritar Aesa.
Um instante depois, Skofte e um outro homem entraram na sala, amparando Gunnar.
Aesa seguia-os erguendo os braços ao céu. Vigdis notou que o pai estava lívido e
que a sua barba branca se encontrava coberta de sangue à altura do peito.

A jovem deixou cair por terra tudo que tinha na mão. Correu para o pai e perguntou-
lhe o que lhe sucedera.

Gunnar fez sinal a pedir que o transportassem para junto do banco. Ficou ali sentado
alguns instantes, com a nuca apoiada contra a parede.

Aconteceu que falei a Eyolf de Grimelundar disse ele por fim e depois da conversa
que tivemos não voltaremos a trocar uma palavra.
75
76

Vigdis inquiriu:

Eyolf foi morto?

Não respondeu Gunnar , mas o meu próprio destino está cumprido; acho-me ferido
mortalmente.

Aesa e Vigdis libertaram Gunnar da roupa para lhe examinarem o ferimento, e


compreenderam que as suas palavras eram exactas. Vigdis exclamou:

É preciso dizer-nos, pai, como as coisas se passaram. Gunnar esclareceu:

Encontrámo-nos na floresta das grandes árvores, Eyolf e eu. Eyolf falou-me de ti,
Vigdis. Não consenti que zombasse de mim à custa da desonra de minha filha.

Vigdis guardou silêncio. Meteram Gunnar na cama. Ele mandou sem demora Skofte
em direcção ao norte para se avistar com os seus criados e trazê-los à herdade,
porquanto ninguém sabia o que seriam capazes de empreender os filhos de Arne, e,
disse ele, «Eyolf afirmou-me que Vigdis seria sua amante».

Aesa sentou-se cerca de Gunnar; entretanto Vigdis levou Olav, o homem que viera
trazer seu pai a casa, para um canto da sala, e interrogou-o sobre o que se tinha
passado.
Como defendeste tu o teu amo, Olav?

O melhor que pude. E Gunnar defendeu-se como era de esperar. Cada um de nós
matou um dos agressores. Mas eles eram seis. Quando Gunnar, mortalmente ferido,
caiu do cavalo, corri para ele e recebi-o nos meus braços; os outros puseram-se
então em fuga.

Sabes em que direcção?

Sei que Grimelundar se encontra próximo da lagoa da floresta de Gautesstad, a que


chamam Lagoa da Criança. Abatem troncos por aqueles sítios na vertente da
montanha.

Vigdis ficou silenciosa. Mas, instantes após, acrescentou:

Eyolf imagina sem dúvida que praticou uma bela acção esta manhã.

Depois dirigiu-se ao seu quarto, abriu o armário, tirou de lá a faca, atou um


mantelete negro sobre a cabeça e envolveu-se num manto escuro. Desceu em
seguida ao pátio, muniu-se dos

dois esquis e das competentes varas, no corredor, e deslizou através dos campos em
direcção à floresta. Seguiu constantemente pela orla dos bosques até Gautesstad,
contornou as casas e o sopé da pequena colina que se encontra por detrás das
herdades. A neve era dura sob as árvores, e os esquis deslizavam sem esforço e tão
bem que Vigdis distinguiu a breve trecho a superfície branca do lago e a cabana de
troncos construída pelos homens de Grimelundar.

Parecia ter trabalhado muita gente naquele lugar. O solo estava juncado de pedaços
de madeira, de cascas de árvores, de porções de feno arrancados pelas carretas. Mas
Vigdis não viu ninguém. Manteve se ao abrigo das árvores e descobriu um
esconderijo precisamente contíguo à cabana. Tirando os esquis, a jovem lançou um
olhar para o interior da cabana. Perto da porta achavam-se um machado e um escudo
que ela reconheceu como sendo os de Eyolf. A cabana era alta e muito estreita, e
Vigdis tratou de penetrar-lhe no interior. Descobriu ali dois homens adormecidos.
Um deles era Eyolf. Ela dirigiu-se primeiro à cama do outro; levantou com uma das
mãos o manto que o cobria e envolveu-lhe a cabeça com ele. com a outra mão
ergueu a faca, enterrando-a na garganta do homem. Em seguida, Vigdis voltou-se
para o lado de Eyolf. Colocou-lhe a mão no peito para o despertar.

Acorda, Eyolf. Obtiveste o que desejavas há tanto tempo. Aqui tens Vigdis de Vadin
que vem conversar contigo.
Eyolf acordou em sobressalto. Fazia escuro na cabana, e ele divisava a custo Vigdis.
Ela continuou:

É verdade que sou uma rapariga sem pudor, atendendo a que venho procurar-te no
teu próprio leito.

E dizendo isto, atirou-lhe um terrível golpe com a faca, golpe que ainda daquela vez
atingiu certeiramente a vítima. Eyolf caiu para trás, deitando sangue em borbotões
pela garganta. Ela enterrou-lhe a faca na garganta mais duas vezes, mas da segunda
não a retirou e, abandonando-a na ferida, inclinou-se para a frente para ver morrer
Eyolf. Enxugou as mãos, que mergulhara no sangue, aos cabelos da vítima, que
soltava o último suspiro. Então, Vigdis saiu da cabana.calçou novamente
77
78

os esquis para deslizar sobre a neve e tornou a descer através da floresta o caminho que a
conduziria a casa.

O frio era cada vez maior. Vigdis ia depressa, porque deslizava por uma ladeira abaixo. Por
vezes, era obrigada a deter-se, tremiam-lhe as pernas e continuava a ter diante dos olhos a
imagem de Eyolf morrendo sob as suas punhaladas. Parecia-lhe haver feito mais do que
vingar Gunnar do ferimento mortal. Tivera à sua mercê um homem tão incapaz de se
defender como ela fora incapaz de se defender contra Ljot. Sentia-se perturbada a ponto de
não notar que deslizava sobre a terra coberta de neve sem ver sequer aonde ia. Ao subir
uma colina que lhe interceptava o caminho, encontrou-se numa encruzilhada com Koll
Arnesson e alguns dos seus homens. Conduziam encosta acima alguns trenós vazios e,
vendo Vigdis, saudaram-na à passagem. Koll e um outro homem perseguiram-na na neve,
mas esta não estava suficientemente dura, e eles enterraram-se nela, porque não iam
munidos de esquis. Vigdis dirigiu-se através da ervagem para uma ribeira que corria na
baixada do terreno. Conseguiu deslizar sobre o gelo, apesar de este ser frouxo, entrecortado
de charcos e quebrar atrás dos seus esquis. Contudo, pôde alcançar a outra margem e
escapar assim à perseguição dos dois homens.

Não tardou a parar no trajecto até ao pátio da propriedade, e, uma vez ali, dirigiu-se
imediatamente para os aposentos de Gunnar e aproximou-se do leito, onde o encontrou
dormindo. Aesa estava sentada à cabeceira. Vigdis gritou:

Acorda, pai, para ouvires a notícia que mais alegria poderia dar-te. Agora, o nosso
vilipêndio foi diminuído da melhor maneira que pude. Matei Eyolf, filho de Arne.

Gunnar pediu que o sentassem no leito e Vigdis contou a sua façanha. Depois, Gunnar
disse-lhe que se inclinasse para ele poder beijá-la, e pronunciou estas palavras:

Acabas de mostrar que és uma mulher intrépida e digna de respeito. Sempre esperei que
serias um dia uma mulher assim resoluta. E já não sinto nenhuma cólera contra ti por te
haveres deixado seduzir por esse islandês. Desejo-te e a teu filho todo o bem possível.
79

Vigdis contou-lhe também o seu encontro com Koll, e Gunnar perguntou-lhe se este a
reconhecera.

Não sei respondeu Vigdis , mas ele não deixará de reconhecer a faca com que matei Eyolf.
Deixei-a ficar na garganta do nosso inimigo.

Então, Gunnar disse:

Eu já não estou capaz para as defender, e passar-se-á talvez muito tempo antes que Skofte
regresse com os nossos homens. O melhor que tens a fazer é agarrar no teu filho e partir
imediatamente para Grefsin. Estou certo de que Kare não esquecerá a amizade que tive por
ele. Olav tomará todos os objectos preciosos da casa e irá escondê-los na gruta da ribeira
que corre para o sul, no sopé da encosta onde está a granja.

Não quero deixar-te, pai disse Vigdis. Mas Gunnar volveu:

Quero que tenhas um refúgio para ti e para a criança, pois não desejo que a minha família
se extinga. Restam-me muito poucas forças. De resto, a minha vida foi assaz longa. Partam
imediatamente para Grefsin, Aesa e tu.

Aesa disse:

Não sei andar em esquis, e recuso-me a abandonar-te agora, Gunnar. Tu foste um bom amo
para os meus e para mim. Não é certo, aliás, que Koll venha aqui esta noite. Mas é
necessário que Vigdis parta para Grefsin. Kare não deixará de vir socorrer-nos o melhor que
possa.

E fez-se como Aesa desejava. Ela ficou junto de Gunnar. Nada a demoveu a abandoná-lo.
Vigdis foi ao pequeno quarto do filho, despertou-o e vestiu-o.

Meteu quanto possuía de precioso em oiro e jóias num saquitel de couro. Preparou um
farnel de pão e carne fumada, porque não tinha tempo para dar de comer ao filho antes de
partir. Em seguida tomou-o nos braços, e foi aos aposentos de seu pai para se despedir dele.
Gunnar beijou a filha e o neto. Vigdis disse seguidamente adeus a Aesa com uma viva
afeição.

Oxalá que possamos tornar a encontrar-nos.


81

XXI
No pátio calçou os esquis, fixando-os aos pés por meio de sólidas correias. Escolheu um
«alpenstock», ou seja um pau munido duma longa ponta de ferro e duma rodela. Depois,
utilizando umas faixas à guisa de alforje, pôs o filho às costas e abandonou a toda a pressa a
herdade na direcção do norte. O sol estava quase a desaparecer no horizonte, e a neve era
tão dura que os esquis mal a raspavam, apesar de Vigdis transportar a criança sobre o dorso.
Foi seguindo a ribeira para montante até achar um ponto onde o gelo resistia. Depois subiu
a colina, tornando-se a marcha penível. A corrida precedente fatigara Vigdis. Quando se viu
no topo do planalto, deteve-se e lançou um olhar para a retaguarda. O céu estava vermelho
por cima do fiorde. Não divisou alma viva em toda a extensão que a sua vista abarcava,
pois naqueles tempos a região achava-se coberta de florestas e matagais.

Vigdis subiu para Grefsin. A marcha não foi rápida e as estrelas acenderam-se no céu antes
de ela chegar às casas. Não viu uma única luz e achou todas as portas fechadas. Avançou e
bateu com o seu pau ferrado, mas ninguém apareceu para a receber e não ouviu o menor
ruído. Compreendeu que não havia um único ser humano na granja.

Indecisa sobre o que havia de fazer, pôs o pequeno na neve para tomar fôlego. Então, o
petiz puxou-lhe por uma aba do manto e apontou com o dedo a região da retaguarda, ao
longe. E Vigdis viu o céu esbraseado para as bandas de Vadin. O clarão aumentava e por
cima dele distinguia-se uma coluna de
82

fumo negro. A criança estava cheia de medo, batia os dentes e escondia a cabeça nas saias
de Vigdis. Ela tomou o filho nos braços e disse:
Teu avô está na iminência de ser calcinado vivo com Aesa, tua ama. Olha bem, meu filho,
para nunca mais esqueceres.

Vigdis via lavrar o incêndio. Elevavam-se chamas e a fumarada tinha tons vermelhos ou
dourados. O fogo ganhara a granja, e os fenos e cereais que ardiam projectavam para o céu
feixes de centelhas. O clarão iluminava tudo como se fosse dia, até mesmo no lugar distante
onde Vigdis se encontrava. Ela divisou, então, um grande número de homens em esquis,
que se precipitavam através dos campo, do lado da ribeira, e julgou prudente afastar-se para
achar um refúgio na floresta. Levantou o filho e partiu tão velozmente quanto lho
permitiram os seus esquis. Ò melhor partido a tomar, sem dúvida, era seguir durante algum
tempo a pista que, nascendo no aldeamento, se perdia nos campos. Assim, aqueles que
pretendessem ir-lhe no encalço teriam dificuldade em achar o seu rasto confundido com os
outros. Dirigiu-se para o norte, sabendo que a periferia do grande lago por cima do vale era
habitada. Não iriam, por certo, procurá-los tão longe.

Fazia escuro quando ela se embrenhou nos bosques, guiando-se, apenas, pela brancura da
neve. O terreno subia para a montanha e Vigdis avançava com dificuldade. Caiu para a
frente várias vezes, ferindo-se profundamente no rosto e nas mãos. A noite estava fria; mas
Vigdis não dava por isso, porque se encontrava coberta de suor e o coração batia como se
quisesse saltar-lhe do peito. O que principalmente a embaraçava era o petiz, que se lhe
agarrava ao pescoço e quase a estrangulava enquanto ela subia a encosta.

Por fim, alcançou o cimo e foi-lhe mais fácil avançar, mas tudo dava a impressão de que
jamais passara alguém por aquelas paragens. Voltando-se, Vigdis viu o reflexo avermelhado
do incêndio por entre os abetos, mas o clarão já havia empalidecido bastante.

Um pouco mais tarde, o pequeno começou a bater os dentes, tiritava e tinha fome.

83

Não chores, meu filho disse a mãe , não tardará que encontremos gente. Terás a tua
papinha e cama para dormir.

E ainda falta muito, mãe?

Não, não tarda nada.

Vigdis tirou o manto, fez uma espécie de saco com que embrulhou o filho, e fixou-o
solidamente sobre o dorso. Uma vaga claridade aparecia numa baixada da vertente.
Equilibrando-se o melhor que pôde com a ajuda do pau ferrado, foi descendo na direcção
da claridade, saltando dum ponto de apoio para outro, mas a ladeira era tão ruim que, a cada
paragem dos esquis, sentia tremer os joelhos e correr o suor ao longo do corpo. As estrelas
brilhavam no céu, mas nos bosques reinava uma obscuridade sinistra. A Lua só nasceria
pela madrugada alta. De repente, uma extensão branca surgiu ante os olhos de Vigdis; devia
ser um lençol de água. Tentou abrir uma passagem para a alcançar, mas esbarrou com uma
árvore e, caindo, escangalhou a fixação de um dos esquis. Como estava munida de uma
faca, serviu-se dela para cortar uns ramos de salgueiro, com a ajuda dos quais reparou o
esqui o melhor que lhe foi possível. Durante todo esse tempo, assentou a criança na neve.
Só ao fim de considerável lapso de tempo concluiu aquele trabalho, e ficou apta a pôr-se
novamente em marcha. Então, disse ao pequeno, levantando-o do chão:

Tens frio, meu filho?

Não disse ele.

Vigdis tocou-lhe nas mãos, estavam geladas e a criança ficou insensível quando ela lhas
cerrou entre as suas. Sentou-o nos joelhos e friccionou-as com neve até que o petiz
começou a chorar, dizendo que lhe doía.

Em seguida, a mãe voltou a envolver a criança ainda mais estreitamente no manto e,


aventurando-se sobre o gelo do lago, tomou a direcção do noroeste, para onde, segundo as
suas vagas recordações, deveria encontrar casas habitadas.

Foi tão-só naquele instante que Vigdis se apercebeu de que fora seriamente afectada pelo
frio enquanto se ocupava do filho.

O vento norte glacial soprava com força-por cima do lago.


84

Vigdis caminhava contra o vento, cujo açoite lhe retalhava as carnes através das
vestes encharcadas de suor. Tinha a impressão de se encontrar nua. Manteve-se na
zona esquerda do lago, mas, por mais que escrutasse com a vista o horizonte, não
divisava nenhuma casa. Não obstante, acabou por descobrir numa vertente branca
algo que lhe pareceu ser uma habitação. Dirigiu-se para lá rapidamente. Era uma
granja, Mas Vigdis achava-se esgotada a ponto de não poder dar mais um passo. A
porta, que encontrou sem grande dificuldade, estava aberta.

Tirando os seus esquis, a jovem avançou para o interior do casebre, duma


obscuridade fuliginosa. Não fazia ali menos frio do que no exterior. Mas Vigdis,
tacteando o solo e as paredes, topou a um canto com um pequeno montão de ervas
secas. Abriu um buraco naquele feno e anichou-se-lhe no interior, mas a palha estava
gelada e não a aquecia.

A criança perguntou:

Já chegámos? Vão dar-nos caldo?

Os habitantes desta casa não estão cá disse Vigdis. Mas é natural que te sintas muito
fatigado. Por isso deitar-nos-emos, esperando pelo seu regresso, que não deve
demorar.

Tenho fome disse o pequenito.

Vigdis retirou do taleigo pão e carne, que mastigou e meteu na boca da criança. O
rapazito acalmou-se um pouco depois de ter comido. Mas tanto ele como ela
tremiam de frio. Abrindo o vestido à frente, a rapariga abrigou o filho, unindo-o ao
seu corpo. Depois estendeu cuidadosamente o manto sobre ambos e pôs feno em
redor e por cima daquele improvisado cobertor. O pequenito adormeceu. Ao
contacto do seu bafo sobre o peito, ela sentiu também diminuir um pouco o frio que
a atormentava. Por instantes, Vigdis dormitou, mas nesses momentos sonhava que
estava caminhando nas trevas por entre pântanos e soerguia-se em sobressalto. A
criança acordou e ela tratou de a tranquilizar. As palavras que as mães dizem aos
filhos tamaninos subiam-lhe aos lábios com naturalidade perfeita.

Estiveram assim muito tempo, e Vigdis ouvia os estalidos dos muros de madeira sob
o gelo. Por uma fenda, viu que a lua

85
começava a brilhar sobre a neve. O pequeno despertou, dizendo que tinha sede.
Também ela sentia sede; tentou sair para apanhar neve e ao mesmo tempo para
verificar se lhe era possível mover os membros paralisados pelo frio. Mas o
garotinho pôs-se a chorar por não querer separar-se dela. Ela tomou-o então nos
braços para ir abrir a porta.

Vêm além os homens que habitam aqui notou o rapazito. Vigdis divisou, de facto,
uns homens que avançavam pela margem, bastante longe, ao sul; vinham munidos
de archotes.

A rapariga saiu, tornou a pôr os seus esquis e, após um momento de marcha, sentiu-
se melhor do que no casebre. Entretanto, começava a interrogar-se sobre qual seria o
fim daquela aventura. Um curso de água barrou-lhe o caminho, e tratou de seguir ao
longo dele, pois ouvira dizer que havia uma ribeira que se lançava no lago de
Hakedal, e decidiu continuar até encontrar lugares habitados, se ainda lhe restassem
forças para isso. Porém, ela ignorava a que distância se encontravam esses lugares. A
fadiga de Vigdis aumentava a cada passo. «Acabarei por ser obrigada a deitar-me
debaixo dum abeto dizia ela para consigo , mas que importa, a desgraça não será
grande.»

Apesar de tudo, continuava a sua marcha. Atravessou sobre o gelo uma vasta lagoa,
e começou de novo a caminhar contra o vento. De repente, ouviu uivar lobos ao
longe. Apressou o passo, calculando que o frio excessivo não permitiria aos lobos
farejar a sua presença.

A breve trecho, com efeito, deixou de os ouvir; apenas o sussurrar da ribeira no sopé
da encosta quebrava o silêncio ambiente. A lua brilhava com uma claridade fria, e as
sombras alongavam-se escuras sobre a neve. Então, Vigdis distinguiu sob as árvores
uma grande mancha negra. Daquela vez não pôde mais. Deslizou para aquele abrigo,
partiu a maior quantidade que lhe foi possível de ramos de abeto, fez o melhor que
soube um ninho para ela e para o filho, que deitou sobre si a fim de que ele
aproveitasse ao menos todo o calor que lhe podia dar. Apoiou em seguida o queixo
sobre a cabeça do filho e, quase inconsciente, apertando contra si o pequenito,
mergulhou numa espécie de sonolência.
87

XXII
Veio o dia, e Vigdis observou que estava ao pé dum despenhadeiro abrupto. Por
cima dela a muralha de rocha subia direita para o céu, e por baixo uma ribeira
impetuosa corria num vale estreito. O pequenito dormia. Não parecia ter passado
mal a noite a despeito do trágico desconforto, e Vigdis decidiu pôr-se a pé e ir em
busca de qualquer habitação. Mas onde encontrá-la? Sentia-se tão alquebrada e tão
cheia de cansaço que se deixou ficar sentada. Mas, no instante em que se preparava
para se mover, ouviu-se um zunido próximo dela, passou uma flecha por entre as
árvores e cravou-se no tronco dum abeto, um pouco acima da jovem. A flecha
vibrava ainda quando um homem em esquis surgiu do bosque e avançou na direcção
da rapariga. Deteve-se ao vê-la, e a sua surpresa era tão grande que não disse coisa
alguma. Por fim, conseguiu, vencendo o assombro, pronunciar algumas palavras:

Está aqui alguém?!

Vigdis não sentiu forças para responder. Ele caminhou para ela, e, notando que
estava acompanhada duma criança, pareceu ficar ainda mais estupefacto. Era um
homem de elevada estatura. Tinha os cabelos e a barba loira anelados e muito
compridos. As suas vestes consistiam apenas em peles de animais. Da cintura
pendia-lhe um machado, trazia um saco sobre a espádua e uma flecha na mão.

Dirigiu-se a Vigdis e perguntou-lhe como conseguira ela chegar àquele sítio. Vigdis,
incapaz de falar, contentou-se com olhar para o interpelante. Foi a criança que
respondeu:
88

Eles queimaram a casa de meu avô.

De verdade? exclamou o homem. E onde era essa casa?

Eu venho de Vadin pôde esclarecer, enfim, Vigdis. A casa foi incendiada esta noite.

O outro disse, espantado:

Tu chegaste aqui esta noite? Nunca até hoje ouvi dizer que uma mulher fosse capaz de
efectuar semelhante trajecto.

Um momento depois, continuou:

A minha casa não tem nada de extraordinário, mas sempre se está melhor do que cá fora.
O homem ajudou Vigdis a erguer-se, amparou-a e quis levar ao colo o pequenito. Mas este
resistiu, agarrando-se à mãe, e não quis que o desconhecido lhe pegasse. Vigdis disse,
então, que poderia ainda conduzi-lo ela própria. O homem enlaçou-a com o braço e desceu
com ela na direcção do ribeiro. Depressa notou que ela mal podia ter-se de pé, e, então,
tirou-lhe os esquis, e agarrou ao mesmo tempo nestes, em Vigdis e no filho e afastou-se
com toda esta sobrecarga. Vigdis só recuperou os sentidos quando chegaram a uma espécie
de garganta estreita na montanha, onde se elevava uma pequena casa.

O homem depôs o seu fardo e disse:

A tua mão não está nada boa. E dizendo isto levantou a mão esquerda de Vigdis,
apercebendo-se então a rapariga de que ela se lhe pusera dum branco esverdeado de gelo. O
seu hospedeiro tirou-lhe igualmente as meias e o calçado e friccionou-a durante muito
tempo com neve. Mas uma das mãos continuava a ter um aspecto inquietante. Cansado dos
seus esforços, o homem fez entrar Vigdis na cabana e indicou-lhe um leito.

Ele deu-lhe uma bebida tonificante, e a moça adormeceu quase imediatamente, apesar de
lhe doer muito a mão gelada. Durante a noite, Vigdis acordou. Viu que tinham acendido
lume. Perto da lareira estavam sentados três homens, vestidos de andrajos, mas bem
armados. Um deles era o que ela havia encontrado na floresta.

A dor de Vigdis passara a tomar-lhe a mão toda, e mal pôde


89

tocar nos alimentos que os homens lhe ofereceram. Os seus sofrimentos não cessaram de
aumentar durante a noite. A breve trecho, doía-lhe todo o braço e até o peito.

De manhã, o homem que ela tinha visto primeiro e que se chamava Illuge informou-se do
seu estado. Vigdis respondeu que nunca sofrera tanto.

Achas que a minha mão poderá pôr-se boa? perguntou ela.

O interpelado examinou detidamente a mão tolhida e opinou que esta tinha muito mau
aspecto.

Nesse caso, ajudem-me a cortar estes três dedos disse Vigdis.

Illuge olhou-a durante um momento, e depois acabou por dizer que talvez ela tivesse razão.
E fez o que Vigdis propusera. Um dos homens pô-la nos joelhos e manteve-a firme, de
modo que ela não pudesse mover-se. Então, Illuge cortou-lhe com o machado os três dedos
do meio da mão esquerda. Vigdis não soltou um gemido. Disse simplesmente, quando tudo
terminou:

És dotado de grande força, Illuge, e tens a mão ligeira.

Illuge aplicou pensos às feridas e amparou Vigdis até ao leito. A rapariga sentiu-se mal
durante uns momentos, mas pôde depois contar aos três companheiros todos os pormenores
da sua aventura.
XXIII
91

Os três homens que habitavam a cabana eram caçadores das florestas. Vigdis lembrava-se
bem deter ouvido falar daquela espécie de malteses armados que tornavam pouco segura a
travessia das florestas nas regiões do Norte. Dois destes homens eram irmãos, tinham os
nomes de Ille Hermod e Einar Hadelending. Illuge, o terceiro, vinha de regiões mais
setentrionais. Era um homem de boa presença, nariz aquilino, olhos azuis, compridos
cabelos loiros e barba anelada.

Uma manhã em que Vigdis se sentiu muito melhor, Illuge veio procurá-la quando ela estava
só com o filho. Trocaram algumas palavras, e a seguir Illuge comunicou:

Os meus companheiros e eu já falámos do que quero dizer-te. Não é fácil ter uma mulher
em casa, por aqui, na floresta. A tua situação também não é melhor do que a nossa, visto
que não podes regressar aos teus sítios. É, pois, necessário que tu e eu façamos em vida
comum e, na Primavera, construirei uma casa um pouco mais ao norte, próximo do lago.
Hermod e Einar desejam também ter, cada um deles, a sua companheira.

Vigdis conservou-se sentada, com o filho nos joelhos, e respondeu:

Tenho confiança em ti, Illuge e espero que não penses em forçar-me.

Illuge respondeu ao fim dum instante de reflexão:

Não penso em forçar-te a aceitar o que proponho, mas não sei bem o que podes esperar,
porque, em suma, terás de acabar por te juntar a um de nós, e parece-me que sou eu quem
tem mais di-
92
reito à tua preferência. O lago, à que chamamos o Lago dos Ursos, e as suas cercanias são
excelentes para a pesca e para a caça; assim, as condições de vida que te ofereço são
melhores do que aquelas em que te encontravas quando te topei com teu filho. Vigdis
respondeu apenas, após longo silêncio:

Apesar de eu não ser senão uma mulher jovem e só, não tenho a intenção de permitir a Koll
Arnesson, que queimou vivo meu pai na sua casa, que nos expulse, a meu filho e a mim, da
nossa herdade. Eu sei bem onde meu pai ocultou o seu oiro antes de morrer, e conto poder
reavê-lo. Se vocês quiserem ajudar-me, tu e os teus companheiros, repartirei os meus bens
convosco, como é de uso entre amigos, e teremos um só e idêntico destino.

És uma mulher de coração intrépido respondeu Illuge , mas a cidade de Aslo fica muito
próxima e os nossos assaltos para conseguirmos mantença são ali perfeitamente
conhecidos. O rei Olav não está em Hadeland este Inverno?

Vigdis tornou:
Isso seria uma sorte para nós todos. Tenho sérias queixas a expor ao rei. E ouvi dizer que
ele prega a nova fé e que se mostra muito bom para aqueles que se fizeram baptizar. Entre
nós, contudo, são numerosos aqueles que estão apegados fortemente aos deuses e aos
sacrifícios no bosque sagrado de Tor. Entendo, portanto, que devo ir procurar o rei Olav, e,
se nenhum de vós se atrever a acompanhar-me, bastará que me indiqueis o caminho através
das florestas. Depois disso, espero que as possibilidades serão maiores, e prometo-vos que
as minhas serão as vossas.

Vigdis falou destes projectos aos outros dois exploradores dos bosques. Einar Hadelending,
que era o mais jovem dos três, tinha grande vontade de tentar reconquistar o domínio que
fora de seus pais e Hermod disse que estava farto da sua existência de proscrito. Queria
embarcar e partir para longe daquelas terras. Illuge menos disposto do que os outros a
abandonar a floresta, falava frequentemente a Vigdis, quando estavam sós, do desejo de a
tomar por mulher. Ela respondia-lhe que voltariam a tratar do assunto, quando reentrasse na
posse das suas propriedades em Vadin. Illuge decidiu-se por fim a acompanhar Vigdis até
junto do rei, em Hadeland.

XXIV
93

Vigdis e Illuge chegaram à corte no dia em que o rei e a sua guarda celebravam o Domingo
de Ramos.

Foram alojados numa casa vizinha. Depois da hora de noa, dirigiram-se ao palácio, e Vigdis
pediu audiência ao rei. Vestira-se o melhor que pudera e, avançando com um porte distinto,
em harmonia com o ambiente que a cercava, expôs as suas queixas. Enquanto ela ia
falando, o rei observava-a, e, quando Vigdis terminou, disse-lhe:

Fizeram-te grande iniquidade, Vigdis, se as coisas se passaram como contas. De resto, já


me constou que esses filhos de Arne eram homens de ruins acções. Mas quem vem a ser
esse homem que te acompanha?

Illuge aproximou-se e disse:

Chamam-me Illuge o loiro, Senhor, e nestes últimos anos tenho vivido na floresta para as
bandas do sul.

O rei franziu os sobrolhos:

O teu nome já foi citado na minha presença.

E voltando-se para Vigdis, acrescentou: Lastimo que não tenhas escolhido outros
companheiros em vez deste tunante e de malteses dos bosques.

Sire respondeu a rapariga , estes homens acudiram-me e salvaram-me a vida e a meu filho,
quando me expulsaram da minha terra. E quando lho pedi, Illuge indicou-me o caminho
que conduz aqui, apesar de ele ser um proscrito e de arriscar a vida cedendo ao meu rogo.
Por conseguinte, não estaria bem, Senhor, que eu aceitasse de vós o mínimo socorro se
94

não me concederdes a promessa de que Illuge encontrará benevolência perante vós, ou


ficará livre para voltar para as florestas se não quiserdes, outorgar-lhe direitos e liberdades.

O rei disse, então, que Illuge fruiria de direito de asilo enquanto durassem as férias da
Páscoa, e que consentiria em que Vigdis voltasse a expor-lhe noutra audiência toda a sua
história. Acrescentou que os recém-chegados seriam seus hóspedes até que se tomasse uma
decisão. Nos dias seguintes o rei trocou, com frequência, algumas impressões com Vigdis.
Esta não hesitou em contar-lhe todos os pormenores da morte de Eyolf, filho de Arne, e
bem assim as peripécias das suas próprias aventuras. Na Segunda Feira de Páscoa, o rei
mandou-a chamar. Encontrava-se só na sala, e convidou Vigdis a sentar-se a seu lado no
banco. Anoitecia. O rei fez, então, algumas perguntas a respeito de Illuge. Era ele o pai da
criança com que ela aparecera na corte?

Vigdis respondeu negativamente, e disse que não havia qualquer ligação daquele género
entre ela e Illuge.

O rei Olav perguntou, seguidamente, a quem pertencia a criança, onde estava o progenitor e
porque não se tinha Vigdis casado.

Pouco sei a seu respeito, Sire disse Vigdis. Ele não era deste país. Eu era nova e
inexperiente, e por isso me deixei seduzir. É com grande repulsa que falo dele e peco-vos,
Senhor, que não me interrogueis sobre este assunto.

O rei cercou Vigdis com o braço, e disse-lhe:

Não hás-de ficar viúva por muito tempo, Vigdis, bela e inteligente como és.

Vigdis tentou erguer-se, mas o rei Olav reteve-a e sentou-a nos joelhos. Ela observou,
então:

A minha vida não é de molde a que eu me sinta tentada a procurar o amor de quaisquer
homens. Peco-vos, Sire, que me deixeis partir, porque se está fazendo tarde.

E como ele insistisse e pretendesse forçá-la, a rapariga colocou a mão sobre o peito do rei e
exclamou:

O Deus em que tu crês padeceu por ti maiores sofrimentos do que os que poderás sentir,
consentindo que eu me retire.

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Ouvindo aquelas palavras, o rei Olav largou-a, e levantando-se disse a Vigdis que a
autorizava a partir quando ela o desejasse. Decorrido um instante, Vigdis ergueu-se e saiu
da sala, dirigindo-se à casa reservada às mulheres.

Vieram em seguida os três grandes dias de festa. Durante os dois primeiros, o rei não falou
a Vigdis, mas ao terceiro dia mandou-a chamar. A jovem achou-o cercado, de grande
número de cortesãos.

Dirigindo-se a ela, o rei declarou que a faria acompanhar até Grefsin por uma escolta
numerosa e que estava disposto a ajudá-la para que ela pudesse readquirir todos os seus
direitos. Prometeu ajudar Illuge e os seus companheiros a desquitarem-se do pagamento
dos direitos de resgate. Depois, afastou-se um pouco com Vigdis e, olhando-a bem de
frente, inquiriu:

Diz-me a verdade, Vigdis, tens a tenção de desposar Illuge o loiro quando houveres
reentrado na posse dos teus domínios?

A interpelada levantou os olhos e respondeu:

Senhor, tu não tens por mim a menor estima se pensares que eu prefiro divertir-me com o
lobo em vez de o fazer com o leão. Mas agora demonstras-me uma tão grande bondade, que
eu não posso deixar de reconhecer que não tens par entre todos os senhores e desejo fazer-
te uma súplica: Permite que um padre me acompanhe a Vadin e manda-me instruir e
baptizar na tua fé. Meu pai punha toda a confiança nas suas próprias forças, e eu pensei
como ele; mas agora vejo bem que aquilo em que tu crês é melhor.

O rei pareceu abalado, as palavras de Vigdis agradaram-lhe. Illuge também se fez baptizar,
ficou em casa do rei e Einar Hadelending fez o mesmo, quando acabou de regular a sua
situação, mas Hermod comprou um barco e abandonou o país.

O rei mandou alguns dos seus homens na direcção do sul com Vigdis seguindo também um
padre no séquito que a acompanhou. Foram a Grefsin, onde Kare os acolheu. Ele informou
Vigdis de que, no dia em que incendiaram a herdade, todos os habitantes de Grefsin tinham
ido assistir a um ban-
96

quete. Distinguindo o clarão do fogo, Kare reunira a sua gente e fora na perseguição de
Koll, filho de Arne. Encontrara-o e tirara-lhe a vida. Desde então, todos tinham procurado
Vigdis sem nunca a encontrarem, e acreditaram por isso que ela tinha morrido.

O assunto foi discutido na reunião da Assembleia local, e não se concedeu qualquer


indemnização pela morte dos filhos de Arne. E aqueles a quem cabia o direito de os vingar
tiveram de pagar um resgate pelo assassínio de Aesa, e uma pesada multa pelos estragos
causados no domínio e no gado de Vadin.

Vigdis fez reconstruir as casas no Verão. Depressa se apercebeu das suas capacidades e do
seu ânimo. Fez baptizar o filho e deu-lhe o nome de Uivar, porque o levara naquela noite
para a floresta dos lobos. Mais tarde, mandou edificar uma capela com formosas madeiras
em Frysja, nas cercanias da ribeira ao sul.

A população ligou-se à nova fé em toda a região de Aslo, e Vigdis manteve-se fiel ao


baptismo, se bem que não mostrasse grande fervor, pois as suas terras davam-lhe muitos
cuidados. Passaram alguns anos de calma sobre Vadin.

Chegados a este ponto da narrativa, voltemos a falar de Ljot e das suas aventuras.

XXV
Já dissemos que foi Torbjorn Haleg de Eyre quem educou Ljot Gissursson. Era um senhor
opulento e considerado. Torbjorn teve muitos filhos de sua mulher, mas esta história não
lhes diz respeito. O mais velho chamava-se Lyting e morreu muito novo. A mulher de
Lyting chamava-se Gudrun, mas conheciam-na pelo nome de «Sol de Ostfjord», e era tida
como umas das mais formosas mulheres da Islândia. Era muito rica, muito inteligente e
muito capaz, boa e fiel para as suas amizades, afável para os que dela dependiam, mas tinha
um carácter fogoso e obstinado e uma boa dose de orgulho.

Lyting e Gudrun tinham tido uma única vergôntea, uma filha chamada Leikny. Dizia-se que
ela se parecia com a mãe, mas apenas pelas suas qualidades. Toda a gente gostava de
Leikny Lytingsdatter. O pai, Lyting, prometera-lhe que ela não seria jamais dada em
casamento contra sua vontade. Muitos homens tinham pedido a mão de Leikny, mas ela
respondera com o não a todos.

No mesmo Outono em que falara a Vigdis no chalé, Ljot regressou à Islândia. A primeira
coisa que soube ao chegar foi que Veterlide e Gudrun estavam noivos. O casamento deveria
realizar-se seis semanas depois do solstício de Inverno. Ljot foi direito às suas terras de
Skomedal, e ali permaneceu todo o Inverno sem ver ninguém. Não assistiu ao casamento do
tio e não faltou quem se admirasse por isso.

No Verão, quando toda a gente seguiu para a Assembleia, Ljot não abandonou Skomedal,
mas Veterlide e Gudrun com-
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pareceram e, no regresso, passaram por Skomedal. Não mostraram má cara a Ljot


por causa da sua ausência ao casamento de ambos, mas insistiram tanto para que ele
os acompanhasse a Holtar que por fim acedeu, após longa recusa.

Veterlide deu uma grande festa a que afluiu muita gente. O ágape foi esplêndido e
tudo decorreu bem. Contudo, muitas das visitas notaram o ar triste e nostálgico de
Ljot. Não dizia palavra e não tomou parte nos jogos dos outros rapazes.

Num dos primeiros dias da festa, Veterlide vestia um magnífico manto bordado. Era
aquele que lhe oferecera Vigdis. Os olhares de Ljot fixaram-se repetidas vezes
naquele manto. Pelo dia adiante, Veterlide tirou o manto e pô-lo em cima do banco.
Ljot sentou-se e, pegando no manto, cobriu os joelhos. Quando, um pouco mais
tarde, Veterlide se aproximou dele, Ljot disse:

Façamos uma troca, estimado tio, dá-me este manto e dize-me o que queres por ele.

Eu não vendo um presente que me deram respondeu Veterlide.

Então dá-mo exclamou Ljot , é a primeira coisa que te peço.

A princípio Veterlide não deu resposta, mas Gudrun veio juntar-se aos dois homens,
e, tendo ouvido algumas palavras da conversa, disse:

Não seria digno de ti, Veterlide, recusar um favor a teu sobrinho quando ele to
solicite. Cumpre-nos ser hospitaleiros para quem nos visita. E vê por isto, Ljot, até
que ponto nós desejamos o teu bem. Deixa essa melancolia e diverte-te com os
outros rapazes, mostra-nos as proezas de que és capaz.

Seguidamente, pediu-lhe que se levantasse e pôs-lhe o manto nos ombros.

Fica-te às mil maravilhas comentou ela , como se tivesse sido feito para ti.

Depois Gudrun saiu. Ljot ficou de pé, com o manto pelos ombros, e Veterlide
assegurou-lhe:

Não terias obtido esse manto sem a intervenção de Gudrun. Melhor fora que tu o
houvesses merecido doutra manei-

99

rã, mas agora o que é preciso é arredar da tua memória aquela que o bordou. Ljot
respondeu:

Eu gostava daquela rapariga, mas desta vez é o próprio manto que me agrada,
porque me fica bem. Agradeço-te este presente que me ofereces contrariado, meu
bom tio.

Ljot sorriu sem alegria dizendo estas palavras, e, pegando na capa, foi guardá-la.
Momentos depois, dirigiu-se ao terreiro da casa onde outros mancebos jogavam, em
alardes de destreza e valentia, como era frequente entre gente moça. Havia ali dois
homens, os irmãos Odd e Sigur Bernesson, notavelmente hábeis em todos os
exercícios físicos. Odd passava por ser o homem mais forte daquela banda da ilha.

Ljot era também muito hábil no manejo das armas e fez boa figura na competição, se
bem que se encontrasse um pouco destreinado em exercícios daquela índole. Mas
aqueceu enquanto lutava, e no fim os espectadores comentaram que Ljot era mais
apto do ponto de vista de rapidez e finura, sendo Odd, porém, melhor nas provas de
força.

Gostaria no entanto de ver disse Ljot , se Odd é homem para me fazer morder o pó.

E os dois fanfarrões, cedendo ao atiçamento dos que pretendiam vê-los maltratar-se


reciprocamente, decidiram sem demora medir forças. Ljot compreendeu depressa
que a sua força não se comparava com a do outro. Mas, chamando a si toda a
energia, e dado que Odd se fiava de mais na própria força e não se precavia por esse
motivo, foi Ljot quem, por fim, pregou com o outro no chão. E os jogos terminaram
assim naquele dia.

Ljot passou a noite numa dependência da herdade. De manhã, sentiu-se sem vontade
de abandonar o leito. E ouviu mulheres que falavam numa quadra vizinha. Uma
delas disse:

Que te pareceu ver o Odd Bernesson ir-se a terra? Já não se poderá gabar de não
encontrar quem lhe ponha o pé à frente.

A outra mulher pôs-se a rir, e volveu:

Pouco me importa que Odd tenha encontrado ou não quem o vença, mas alegrou-me
o triunfo deste belo rapaz.

É a Ljot que chamas belo rapaz? continuou a primei-


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rã voz de mulher. O seu rosto é pálido como o de um fantasma.

Não obstante, é precisamente dele que eu quero falar; não conheço outro que tenha
triunfado de Odd.

Ljot levantou-se, vestiu-se e entrou na sala contígua ao quarto onde dormira. Viu ali muitas
mulheres, e entre elas havia uma que ele não notara nos dias precedentes. A rapariga
envergava um vestido bordado verde-claro. Era uma mulher bastante atraente, de estatura
um tanto baixa mas bem modelada e robusta, com as mãos e os pés pequenos; um rosto
lindíssimo, de tez clara, com olhos azuis de alegre brilho. O que mais impressionava nela
era a farta cabeleira, muito comprida, fúlgida e loira como o linho, na qual ela podia
envolver-se completamente. A rapariga estava precisamente a pentear-se quando ele entrou.

Ljot, momentaneamente liberto da sua melancolia, pôs-se a conversar com as raparigas,


mas os seus olhares não cessavam de procurar a bela dos cabelos de linho. Quando a
moçoila acabou de se pentear, Ljot dirigiu-se-lhe e pediu-lhe que lhe permitisse também
uma rápida penteadela na própria trunfa, ao que ela acedeu. E o rapaz inquiriu, então:

Foste tu quem me chamou belo moço? Corando um pouco, a rapariga pôs-se a rir e
observou:

Como poderia eu adivinhar que estavas a ouvir? Mas não ignoras que se é favorável àquele
a quem se conhece desde a infância, e que de bom grado se diz bem dele.

Estas palavras surpreenderam Ljot, que, passado um instante, continuou:

Diz-me então o teu nome, porque não te conheço, que eu saiba.

Oh! pouco importa exclamou a jovem, em torn que lhe deu a perceber que já estava
enfadada. Então, o moço tornou:

Não eras nem metade tão bonita como és agora, na época em que vivemos juntos, pois já
adivinhei, enfim, que és Leikny Lytingsdatter.

E vocês não olhavam para min, tu e os outros rapazes,

no tempo em que vivíamos em Eyre em casa do meu avô comentou Leikny enquanto as
outras raparigas riam.

Soube que ela passara algum tempo junto de Torbjorn e que tinha voltado na véspera. Ljot
pediu-lhe notícias de Eyre e conversou longamente com Leikny, que era inteligente e falava
bem. Ao serão, sentou-se-lhe ao pé e bebeu com ela. E, entre outras coisas, disse-lhe:

É curioso que não tenhas casado, Leikny, e creio que não achas nenhum homem digno de ti.

Não, não é por isso respondeu Leikny. Mas não prejudica ninguém pensar um pouco antes
de realizar um contrato desses. Não quero por preço nenhum agir de forma tal que necessite
um dia de recomeçar... uma nova experiência.

Ljot pôs-se a rir:

Deves ser difícil de contentar, e eu por mim, não me arriscarei a enfileirar entre os teus
pretendentes.

Leikny nada objectou, e ambos começaram a falar doutra coisa.

No dia seguinte Ljot voltou para as suas terras.


103

XXVI
Pelos fins do Outono, Gudrun deu ao mundo um filho. Veterlide deitou água sobre a criança
e pôs-lhe o nome de Atle. Naquela altura dos acontecimentos, Gudrun continuava ainda de
cama. Uma bela manhã, Leikny estava próximo da cabeceira do leito da mãe, e entretinha-
se a enfaixar o bebé. Quando terminou, pôs o pimpolho nos joelhos, e, beijando-o, começou
a acariciá-lo. E, de súbito, observou:

Como é belo e gracioso este bebé! Preferia, minha mãe, que ele fosse meu e não teu.

Gudrun respondeu em torn de ralho:

Dá-mo cá, e não estejas para aí a dizer tolices. Não seria precoce, aliás, que fosses mãe tu
própria. Já fizeste vinte anos. Não sei o que esperas, nem o motivo por que não te casarias,
como toda a gente. Devias ter desposado Odd Bernesson, e a tua situação teria sido
excelente desde todos os pontos de vista, quer-me parecer.

Leikny replicou:

Já te disse que não desposarei um homem que não tenha, pelo menos, hábitos corteses.

Então, porque não atendeste a proposta de casamento sincera que te dirigiu Runolf? volveu
a mãe.

Leikny exclamou, por entre grandes risadas:

Não estás a falar a sério, mãe! Consta que os criados têm de meter na cama esse pobre
velho e de levantá-lo na manhã seguinte.
Também hás-de envelhecer um dia, se viveres, minha fi-
104

lha, e os homens cansar-se-ão dentro em breve de te ver zombar deles quando te pedem
para esposa.

Oh! acabarei por achar marido respondeu Leikny, ajuntando daí a um instante:

«Se Viga Ljot viesse pedir-me em casamento, submeter-me-ia aos teus desígnios, e
desposá-lo-ia. Assim, deixarias de ter a preocupação da minha presença aqui em casa.»

A mãe respondeu:

Tens ideias quase tão falsas como as que passavam às vezes pela cabeça de Lyting. Se eu
fosse uma rapariga, os sítios onde vive Ljot seriam os últimos em que, à falta de melhor,
consentiria em me instalar: é um vale deserto e tristonho onde não aparece vivalma.
Porém, eu ouvi dizer que a herdade é bem bonita objectou Leikny. O meu padrasto e toda
a minha família haviam de regozijar-se com a minha decisão. O que há de melhor no
mundo é estar de acordo com a família, não é verdade?

Não há dúvida de que um tal casamento daria muita satisfação a Veterlide disse Gudrun.
Esse consórcio agradar-lhe-ia para o filho de sua irmã. Mas tenho tido sempre em mira ver-
te casar com homem mais rico e mais poderoso.

A fortuna não seria assim tão medíocre, juntando uns aos outros os nossos bens, e, além
disso, tenho ouvido dizer que Ljot tem naturais condições para ser um chefe.

Dizendo isto, Leikny conservou-se ainda uns momentos sentada, sem dizer palavra, e, por
fim, insistiu:

Fala nisto a Veterlide, mãe, mas não digas que fui eu quem to pediu.

XXVII
Ljot encontrava-se em casa em Skomedal quando Veterlide veio fazer-lhe uma visita, uns
tempos antes do solstício de Inverno. O moço acolheu muito bem o tio, e ambos se
mostraram contentes por se tornarem a ver.

A propriedade era situada num vale que tinha o mesmo nome de Skomedal. Ladeiam-no, a
um lado e outro, altas montanhas. Da banda da ribeira onde se estendia a herdade, havia
naquele tempo bosques povoados de bétulas. As pastagens da região, e bem assim o peixe
da ribeira, eram abundantes. Ljot conseguia criar assim grande número de cabeças de gado.
Veterlide examinou atentamente a maneira por que Ljot dirigia os seus bens. E
compenetrou-se de que o rapaz era um proprietário diligente, com capacidade
administrativa bastante superior ao que se poderia esperar da sua idade.

Disse-o ao seu anfitrião, num dia em que percorreram juntos os campos.

Tudo se encontra bem cultivado e organizado na tua herdade, estimado sobrinho, e só te


falta uma coisa. Chegou o tempo de te casares, de tomar mulher que trate da tua casa,
porquanto assim, sob as vistas da dona de casa, tudo prospera com mais facilidade. A
governanta que tens pode possuir todas as qualidades possíveis, mas está muito velha.
Acrescentarias também os teus domínios, reforçando-os com os bens dum casamento
vantajoso.

Ljot respondeu que a idosa mulher que lhe governava a casa cumpria muito
satisfatoriamente a missão. E acrescentou:
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106
Além de que, tenho muito tempo para me casar.

É o que tu dizes respondeu Veterlide. Ljot calou-se, e o tio continuou:

Não posso crer que penses ainda em Vigdis Gunnarsdatter! Ljot corou, e volveu
precipitadamente:

Não sei aonde dirigir-me para encontrar uma esposa...

Falaste a Leikny Lytingsdatter este Verão lembrou Veterlide. Que pensas a seu
respeito?

Muito bem respondeu Ljot com lentidão. É bela, tem uma conversa agradável e
judiciosa, mas nunca pensei em figurar entre os seus pretendentes.

Leikny prosseguiu Veterlide é tão inteligente como amável, equitativa para o


pessoal, hábil para dirigir a casa, e laboriosa. Falei-lhe de ti, e não me parece que
recebas um não daquele lado. Será, de resto, Torbjorn quem decidirá do casamento,
além da própria Leikny e de Gudrun. Para falar verdade, estimado sobrinho, acho
que tanto Leikny como tu estão bem um para o outro, e muitas pessoas se alegrarão
com o vosso acordo mútuo.

Vejo bem, estimado tio, que os teus conselhos são bons disse Ljot e é grande fineza
da tua parte querer ajudar-me a fazer este casamento. Mas não sinto ainda desejo de
me casar.

Veterlide pediu-lhe que pensasse no assunto, mas naquela ocasião não tornou a
insistir. Limitou-se então a vigiar Ljot e apercebeu-se de que ele dormia mal à noite
e que parecia, a maior parte do tempo, acabrunhado por tristes pensamentos.

No último dia que Veterlide passou em Skomedal, perguntou a Ljot se tinha


reflectido na possibilidade de desposar Leikny. O rapaz volveu:

Agradeço imensamente a tua solicitude, estimado tio. E quero pedir o teu apoio
nesta questão, porque reconheço perfeitamente que o teu conselho é bom.

Ljot acompanhou, portanto, seu tio Veterlide até ao lar onde o esperava a família.
Gudrun e Leikny acolheram-no com bondade, e celebraram-se os acordos de
esponsais. O casamento realizou-se na Primavera. Veterlide organizou as festas com
magnificência. Depois, Ljot e Leikny partiram para Skomedal e a sua vida conjugal
decorreu feliz.
XXVIII
Num dia do Verão seguinte, Ljot subiu a vertente do vale para ceifar uns prados que
possuía no cimo da mesma encosta. Fazia um sol esplêndido e ardente. Ljot foi
acompanhado por dois homens, que se incumbiram de ceifar de um lado da ribeira,
enquanto ele trabalhava na outra margem. Havia-se desembaraçado das vestes
exteriores, ficando em mangas de camisa e calções. Os prados estavam demasiado
longe da casa, facto que não permitia aos ceifeiros a ida até lá para tomarem os
repastos. Por isso, à hora de nona, Ljot dispôs-se a reunir-se à sua gente e a comer
alguma coisa com eles. Nesse momento, porém, lobrigou Leikny, que caminhava ao
longo da ribeira. Vestira-se com cuidado, e trazia na mão um grande embrulho atado
com um pano. Chegada junto dos trabalhadores, deteve-se um instante a falar com
eles, e deu-lhes qualquer coisa do volume que transportava. Em seguida atravessou a
corrente do arroio, por cima dumas pedras elevadas, a fim de se reunir a Ljot.

Minha mãe enviou-me hidromel disse ela ao marido e pareceu-me que seria
agradável a vocês os três beberem uns goles dele após uma ceifa com este calor.

Mas escusavas de vir aqui trazer-no-lo: podias ter encarregado alguém desse
trabalho observou Ljot.

Oh, a canseira não é assim tão terrível! bom tempo é coisa rara e além disso eu
desejava ver até onde vão os nossos prados.

Ljot propôs então a Leikny atravessarem o ribeiro para irem


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ter com os ceifeiros que tinham as provisões. Mas Leikny pôs-se a rir e disse,
indicando o embrulho que trouxera:

Devias logo calcular que eu trago comida, visto que venho procurar-te aqui no fundo
do vale. Assentemo-nos acolá em cima no prado, deve correr fresco e o tempo está
bom. Dizendo isto, pôs-se a trepar a encosta. De vez em quando inclinava-se sobre o
feno, e tomava uma mancheia dele para lhe aspirar o perfume. No cimo do prado
havia um maciço de bétulas, e Leikny não resistiu ao desejo de descansar naquele
sítio. O olor das folhas novas era deveras agradável. A jovem conseguiu descobrir
um abrigo recatado entre uns rochedos. Havia ali sombra, arbustos e erva, e o vão
entre as rochas era suficientemente espaçoso para caberem lá ambos. Leikny
convidou o marido a tomar lugar a seu lado.

Poderás deitar-te e dormir quando tiveres acabado de comer.


Comeram e beberam ambos. Leikny não cessava de rir e gracejar.

Terminado o repasto, Ljot estendeu-se na ervagem, no desejo de dormir a sesta.


Colocou um braço sobre a fronte para se proteger do sol. Mas Leikny tirou o lenço
da cabeça e cobriu com ele os olhos de Ljot. Pouco depois ela sugeriu:

Se queres, deita-te de modo a poderes reclinar a cabeça nos meus joelhos. Ficarás
assim com mais espaço.

Ljot obedeceu. Ergueu a vista para o rosto de Leikny, cuja cabeleira o sol iluminava,
e observou:

Pareces-me neste momento exactamente como te vi quando nos encontrámos em


Holtar.

Leikny sorriu e exclamou:

Dize-me, meu Ljot, se crês que esse encontro foi para a nossa felicidade; dize-me se
estás contente por me teres trazido para Skomedal?

Bem sabes que estou contente respondeu Ljot. Leikny insistiu:

Como posso eu saber isso? Muitas vezes cismo que trazes o coração acabrunhado
por um grande peso. Eras muito diferente quando te conheci em criança. Naquele
tempo eras

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capaz de fazer todas as farsas, não pensavas senão em rir e brincar. Mas agora tudo
mudou e vejo-te, em regra, bem taciturno.

Seria deplorável objectou Ljot que ficássemos sempre nas tolices que se fazem
quando se é rapaz.

Leikny obstinava-se na sua ideia:

Ouvi dizer que sabias muito bem compor e cantar canções. Não és capaz de me
deixar ouvir uma delas?

Quem tal te disse, apenas te contou mentiras. As minhas canções não têm nada de
notável.

Mas, a mim, podes repeti-las, isso interessar-me-ia deveras.


Não me lembro de nenhuma agora, pois há muito tempo que deixei de compor
cantigas.

Leikny, à guisa de resposta, tomou entre as mãos o rosto de Ljot e pôs-se a embalar-
lhe a cabeça, ao mesmo tempo que cantava:
Quando eu penso na jovem de loiros cabelos

Afogam-me tristezas e não posso dormir;

Todas as noites meus pensamentos voam,

Por cima e para além das escuras ondas

Até repousarem suas asas fatigadas

Nos altos aposentos onde ela, tão gentil, dorme,

Onde ela está deitada e sem cuidar

Das aves que voam no seio da noite.

Sinto durante o dia a lassidão

Do tormento das minhas noites.

Disseram-me disse Leikny ao terminar que foste tu quem escreveu esta canção.

Talvez respondeu Ljot , mas podes crer que já não me lembro dela.

Quem é esta rapariga? interrogou Leikny. Era uma pequena que te queria para
marido?

Oh! compreendes bem que, quando se vive só, pensa-se muitas coisas. Faz-se na
mente uma espécie de misturada e os
110

versos que se compõem tanto podem dirigir-se a uma como a outra.

Leikny calou-se, e depois inquiriu ainda:

Era talvez uma rapariga com quem gostarias mais de casar do que comigo?

Não retorquiu Ljot. Ouvindo aquela negativa, ela inclinou-se para a face do marido e
beijou-o. Em seguida, tirando do colo a cabeça de Ljot, exclamou:
Bem, sinto também vontade de repousar estendida a teu lado.

Tens razão disse ele, afastando-se um pouco para lhe dar lugar. É agradável descansar
aqui. E dizendo isto, tornou a cobrir o rosto com o lenço de cabeça da mulher.

Leikny estirou-se ao lado dele, no feno, mas conservou-se apoiada num cotovelo para o
observar. Ao cabo de instantes, exclamou:

Estás, na verdade, cheio de sono. O que precisas é de dormir.

Ljot pôs-se a rir:

Sim, se puderes estar tranquila um momento. Eu julgava que tinhas sono, também.

Sentes-te fatigado?

Muito fatigado, sem dúvida.

Estiraram-se lado a lado e Ljot adormeceu, mas a mulher ficou a contemplá-lo enquanto ele
dormia.

XXIX
111

Já dissemos que o vale era deserto. Por baixo de Skomedal, havia algumas habitações de
trabalhadores do campo e de libertos, e mais ao sul erguia-se um lugarejo chamado
Svartabakke. Nas casas daquela pequena courela habitava um camponês de nome Asbrand.
Era pobre e só com grandes dificuldades ia vivendo, com os seus dez filhos, dos quais
apenas o primogénito estava em idade de o ajudar no trabalho. O rapaz chamava-se
Halstein. Era alto e forte, muito laborioso e muito bom para o pai, mas em contrapartida
tinha um temperamento conflituoso, impaciente e desconfiado. Não gostavam dele na
região.

Mais de uma vez implicara com Ljot, porque o irritava ver alguém numa abastança que lhe
faltava a ele e aos seus.

Porém, Ljot suportava-lhe os destemperas, com serenidade, por ver no outro um simples
rapazola. Asbrand fazia-lhe dó, e este sentimento levava-o a fechar os olhos quando
Halstein se apossava duma parte maior do que a que lhe correspondia na ceifa, na pesca ou
na caça.

Ora a ribeira de Svarta penetra profundamente nas terras de Skomedal, coleia por
desfiladeiros e ravinas, e ao sul de Skomedal dilata-se em esteiro, depois, mais adiante,
forma uma cascata. As melhores terras de Ljot ficavam próximo desta cascata. Era o único
tracto onde amadureciam cereais. A pluviosidade era reduzida no vale embainhado nas
muralhas de rochedos e Ljot teve a ideia de construir uma barragem na barreira, a fim de
poder irrigar os seus campos e prados. E co-
112

meçou os trabalhos, em determinado ano, antes das cheias primaveris. Halstein enfureceu-
se e disse que a barragem prejudicaria enormemente Svartabakke. Percorreu a região,
contando a toda a gente o dano que Ljot lhes causava com aquela iniciativa. O rumor
daqueles falatórios chegou aos ouvidos de Ljot, que se pôs a rir e comentou que o rapazote
tinha desculpa porque não sabia o que dizia.

Um dia, Halstein apareceu no local da barragem quando se trabalhava na construção desta


última. Dirigiu-se a Ljot e disse-lhe que suspendesse aquela obra, pois, de contrário,
exporia o assunto perante a Assembleia, e esta lhe faria ver que ele não tinha o direito de
causar prejuízo à courela de pobres rurais.

Está bem, Halstein respondeu Ljot rindo , trata de ir à Assembleia. Teu pai sabe
perfeitamente que lucrará com a barragem tanto como eu próprio, visto que poderá servir-se
da água por mim captada, na medida em que dela necessite. E agora, segue o teu caminho,
que não tenho tempo para perder a tagarelar contigo.

Falas com tanta soberba, Ljot Gissursson exclamou Halstein , porque és o homem mais
rico destes sítios. Mas espera algum tempo, e hás-de ver que nós temos quem nos coadjuve,
pessoas que examinem esta questão e que não valem menos do que tu.

Isso é verdade? volveu Ljot, continuando a rir. Vai então ter com esses teus aliados, dá-
lhes cumprimentos da minha parte, e dize-lhes que terei prazer em encontrá-los.

Leikny chegou naquele momento. Vinha à lagoa para lavar umas lãs, e, tendo ouvido as
palavras de Halstein, observou:

Asbrand não tem nenhum motivo para se queixar de Ljot, a meu ver, pois sempre foi por
ele tratado com generosidade. Por exemplo, este Outono quando reunimos os carneiros na
montanha.

Halstein corou intensamente e gritou:

Pretendes acusar-nos de roubo, Leikny?

Não tornou ela , mas lembro-me bem de que foi Ljot quem encontrou os carneiros que tu
procuravas em vão,

113

e que efectuou a partilha de tal forma que nessa ocasião vocês mostravam-se muito
satisfeitos com este homem tão rico... Halstein ripostou:

Congratulamo-nos, Leikny, de te ver tão desvanecida do esposo que tens, já que tanto
desejaste casar-te com ele.

Leikny quis responder-lhe, mas Ljot não lho consentiu:

Não dês ouvidos a este garoto, tanto mais que temos mais que fazer do que tagarelar com
ele. Halstein, não te demores mais aqui, e trata de te ir embora.

Halstein afastou-se alguns passos, depois, voltando-se de repente, gritou:

Tu casaste bem, Ljot e tens sorte em possuir esta mulher, porquanto ouvi dizer que, em
Nidaros, sofrias por causa duma rapariga da Noruega tão pouco admiradora das tuas
proezas viris que tomou outro homem mesmo nas tuas barbas.

Ljot soltou uma espécie de rugido, agarrou num venábulo que se encontrava perto dele no
solo, e atirou-o contra Halstein. A ponta da lança penetrou nos olhos do rapaz, que, como
fulminado, caiu por terra, morto.

Ljot mandou um dos seus homens anunciar a morte do rapaz a Svartabakke, e em seguida
regressou a casa acompanhado por Leikny.

Em certo momento do dia, a esposa inquiriu:

A que se referia Halstein? Ele aludiu a uma mulher norueguesa.

Oh! é um assunto que o tempo deliu, e com que não deves preocupar-te. Não me digas mais
nada, porque não desejo falar nisso.
115

XXX
Asbrand ficou fora de si quando soube da morte de Halstein. A dor e o desespero fizeram-
lhe perder todo o domínio sobre si mesmo. Persuadiu-se de que Ljot lidava por despojá-lo
inteiramente, quer com a barragem, quer pelos seus restantes actos. No dia seguinte, Ljot
foi a Svartabakke, mas Asbrand havia-se ausentado e dirigira-se a casa dos parentes e
amigos para lhes implorar auxílio. Apresentou-se em casa dos filhos de Beine ligados a sua
mulher por um parentesco afastado e pediu-lhes que se encarregassem da vingança.

Odd respondeu que Ljot não era com certeza homem para pagar o preço do sangue, e que
provavelmente trataria de meditar nas piores acções.

No entanto acrescentou Odd eu gostaria deveras de ensinar Ljot a conduzir-se melhor.

Ora, Odd conhecia a lei e tinha muitos amigos. Aceitou, portanto, o encargo de tratar do
assunto.

Asbrand ficou em casa de Odd até ao momento de partir para a Assembleia.

Ljot quis estar também ali presente e Leikny decidiu acompanhá-lo, embora ele lhe pedisse
que o não fizesse. Ela esperava um filho e a viagem era longa e perigosa. Mas Leikny
chorou, suplicou, e disse que não poderia estar sossegada em casa, sem saber o que se
passaria com Odd. Por fim, partiu com o marido. Levaram consigo o filho, que se chamava
Lyting e contava apenas dois anos. Por causa do rapazito, a viagem foi morosa e chegaram
à Assembleia com algum atraso. Instalaram-se
116

na casa que Veterlide habitava, porque este tinha vindo a Allting com sua mulher,
Gudrun. No dia seguinte ao da chegada de Ljot, o velho Asbrand saiu sozinho, de
manhã, e deu um passeio por entre as lojas. Em dado momento topou com Gjest
Oddleivsson, e pôs-se a conversar com ele. Asbrand disse ao outro quem era e
contou-lhe as razões de queixa que tinha contra Ljot. Gjest contou-lhe, então:

Soube que Ljot tivera a intenção de pagar uma compensação pela morte de Halstein,
mas que na altura presente se encontrava zangado e disposto a não ceder por causa
de Odd.

Falaram ainda algum tempo deste assunto, e depois Gjest retirou-se.

Asbrand continuou o seu passeio solitário, deambulando por um lado e por outro e
reflectindo em toda aquela questão. E sentiu receio de perder tudo por causa de Odd.
Ocorreu-lhe, então, a ideia de ir a casa de Veterlide e de ter uma conversa com Ljot;
e, sem mais hesitações, executou o projecto.
Ljot e Veterlide tinham acabado de se levantar, e estavam sentados à mesa para o
desjejum acompanhados por alguns homens das suas relações. Gudrun e Leikny
achavam-se também na sala. Asbrand arrependeu-se de ter entrado e quis partir, mas
Ljot chamou-o:

Que fizeste do teu protector, Asbrand? Acaso Odd se aborreceu desta história, e
renunciou a ajudar-te?

Asbrand mantinha-se de pé no limiar, gaguejando e balbuciando. Por fim, conseguiu


dizer que era sua intenção perguntar, a sós, a Ljot, se ele estava disposto a pagar
indemnização pelo assassínio de Halstein.

E dizendo isto, pôs-se a chorar.

Ljot respondeu:

Se bem que Halstein me provocasse incessantemente, e a ninguém possa


surpreender a minha cólera contra ele, lamento tê-lo morto, por saber que ele era
para ti, tão velho e pobre, uma boa ajuda. Por isso, a minha intenção era oferecer-te
toda a indemnização exigível por morte de homem. E se quiseres aceitar
imediatamente a minha oferta, mantenho-a. Mas, se consultares Odd, nada ganharás
com isso, porque, a ele, não

117

cederei. Se queres aceitar um acordo, mandarei gente minha para te ajudar e dar-te-
ei o que necessitares. Nem tu nem os teus filhos ficarão prejudicados com este
acordo. Farás, pois, como entenderes, mas lembra-te de que eu não ofereci jamais,
até hoje, indemnização por um homem.

Asbrand aceitou imediatamente a oferta de Ljot, a quem Veterlide logo facilitou a


soma necessária. No momento da partida, ofereceu a Asbrand um cinto de prata.
Asbrand voltou para casa, conformado. Mas Odd ficou furioso ao saber o que se
tinha passado e encheu Asbrand de insultos.

Falou-se muito desta história. Todos acharam que Viga Ljot se tornara singularmente
complacente desde uns tempos àquela data. Mas Leikny louvou a grandeza de alma
de Ljot diante de quem quer que a escutasse. Ele não se reconciliara nunca de
maneira semelhante com qualquer indivíduo, e acabara de o fazer com aquele pobre
velho que não tinha condições para lhe resistir. Mas riam-se dos argumentos de
Leikny, e comentava-se que, fizesse Ljot o que fizesse, já era sabido que sua mulher
se declararia sempre concorde.
119

XXXI
Depois da Assembleia, Ljot e Leikny acompanharam Veterlide e Gudrun a Holtar,
onde permaneceram algum tempo. Um dia, Ljot partiu a cavalo para ir examinar
uma das éguas que Veterlide criava na campina. A certa altura do trajecto encontrou
Odd Bernesson, que ia acompanhado por um dos servos. Odd saudou Ljot e disse-
lhe:

Uma vez que seguimos o mesmo caminho, poderíamos percorrê-lo juntos nos nossos
cavalos. E pois que te reconciliaste com o pobre velho Asbrand, seria natural que
nós também fôssemos amigos.

Ljot limitou-se a responder que não via inconveniente em que jornadeassem juntos,
se o seu interlocutor assim o desejava. Odd pediu notícias dos habitantes de Holtar,
e, depois, da saúde de Leikny. Ljot respondeu laconicamente às perguntas que o
companheiro de viagem lhe dirigiu. Ao fim de certo tempo, desceram dos cavalos e
comeram os lanches que traziam consigo. Odd, enquanto comia, disse:

Admiro-me do que se passou entre Halstein e tu, Ljot, que és um homem de espírito
tão conciliador e pacífico. Será verdade o que se conta duma velha história de
casamento, de que não queres que te falem?

Uma vez que pareces tão desejoso da minha amizade volveu Ljot, melhor será que
não procures saber dessas coisas. Ou dar-se-á o caso de seres tu próprio quem anda a
espalhar tais histórias por toda a região?

Os que te encontraram em Nidaros na época em que


120

choravas por amor duma rapariga da Noruega, é que contaram isso. Foi o velho Asbrand
quem pagou por ela.

Ljot, ao ouvir tais palavras, irritou-se e deitou a mão ao machado.

Odd fez o mesmo e, protegendo-se com o escudo, empunhou o seu venábulo para se
defender.

Creio que não vai ficar nada para os teus aliados exclamou Ljot, partindo-lhe o cabo do
venábulo com uma machadada. Como escumas de inveja contra mim, aqui me tens.

Após estas palavras, despedaçou o escudo do adversário com outra machadada que o foi
atingir no ombro. Odd, mortalmente ferido, caiu de costas por terra. O criado que
acompanhava Odd era muito jovem e, cheio de terror, desatou a fugir.

Ljot regressou a Holtar e contou o que se passara. Veterlide perguntou-lhe o que tencionava
fazer depois daquela tragédia.

Nada respondeu Ljot ; porém, creio que não terão ensejo para grandes regozijes, aqueles
que quiserem vingar Odd.

Veterlide saiu momentos depois da sala, e Ljot ficou só com Leikny e as duas crianças, que
brincavam junto da bancada. Ljot atirou-se para cima da cama, a fim de descansar. Leikny
pôs-se a arrumar as suas coisas espalhadas pela quadra. Enquanto procedia àqueles arranjos
domésticos, interrogou Ljot acerca da morte de Odd, mas apenas obteve repostas lacónicas.
Então, a mulher acabou por dizer:

Acho que poderias repetir-me as palavras que tu e Odd trocaram antes de chegarem a bater-
se.

Oh! não foi coisa importante volveu Ljot. É certo que Odd começou a provocar-me assim
que nos encontrámos.

Não foi certamente a meu respeito que vocês disputaram aventou Leikny num torn seco.

Não retorquiu Ljot , mas era em ti que pensava. Leikny foi sentar-se na borda do leito,
olhou Ljot e, obseryou:

Não creio que tu fizesses outro tanto, que pensasses em mim.

121

Ljot estremeceu, abriu a boca para responder, mas a esposa colocou-lhe a mão no peito e
continuou:
Sei o bastante para compreender que não foi por minha causa que vocês se bateram. Tu,
depois do regresso da Noruega, tornaste-te muito taciturno e melancólico, e não sou eu
quem ocupa os teus pensamentos dia e noite. Mas nada sei do teu desgosto, nem do que se
passou entre Odd e tu, ou entre ti e outra pessoa.

Ljot protestou:

Alegrar-me-ia que o teu casamento te desse a felicidade, Leikny, e fiz quanto pude para te
ver contente. Todavia, se sofri um desgosto que tentei ocultar de todos, fui o primeiro a
sofrer com isso, e darias provas de boa vontade não me atormentando a este respeito.

Enquanto procurava uma resposta ao que ele acabara de lhe dizer, Leikny pousou a vista no
manto bordado de Vigdis e que esta oferecera a Veterlide, de quem Ljot o houvera por
dádiva amistosa. A rapariga deitou a mão ao manto, que estava aos pés da cama, e atirou-o
para o chão com violência, clamando:

Pensas dez vezes mais na rapariga da Noruega, que te repudiou, do que em mim, que nunca
te fiz senão bem.

Ljot saltou da cama e quis apanhar o manto, mas sua mulher, mais prestes, passou-lhe à
frente na intenção de o atirar ao lume, para o que se dirigiu, correndo, na direcção da
chaminé. O marido foi-lhe no encalço e tentou tirar-lhe a peça de vestuário que ela
segurava, frenética, com as duas mãos. Ljot enlaçou-a fortemente com um dos braços e
com a outra mão livre torceu-lhe os pulsos, o que a fez gritar. A mulher, porém, não largava
o abafo, e apenas cedeu quando o marido lhe bateu na mão com o punho fechado. Leikny,
desesperada, atirou-se ao chão, chorando. Ljot saiu levando o manto consigo.

A mulher foi, acto contínuo, sentar-se no limiar da porta. Chorava, com a cabeça entre as
mãos, e não deu pela chegada da mãe. Gudrun interrogou-a acerca do motivo das suas
lágrimas. Entretanto, acercou-se Atle, que subiu a pedra da soleira da porta e disse:
122

Ela chora, mãe, porque o marido lhe bateu. Espancou-a indecorosamente, perto da
chaminé.

Isso não é verdade desmentiu Leikny vivamente.

Mas Gudrun penetrou na casa e topou com Lyting em lágrimas sobre o pavimente,
porque o pai fora violento para Leikny. Gudrun sentiu-se dominada por terrível
cólera, e expandiu-se em palavras violentas contra Ljot. Regougava:

Egil, meu primeiro marido, aprendeu à sua custa que não devia levantar a mão
contra mim, que sou quase uma pomba sem fel, e a prova é que, após ter sido
espancada por ele, fugi, e pouco depois ele foi morto por se ter recusado a restituir-
me os meus bens, coisa evidentemente mesquinha. Os outros com quem
sucessivamente me casei tiveram o bom critério de renunciar a semelhantes abusos,
tanto Lyting durante toda a nossa vida de casados, como agora Veterlide.

Vê se te calas, mãe exclamou Leikny , meu marido não me bateu e apenas fez com
que eu me atirasse ao chão, além de que fui eu quem provocou o incidente.

Ljot entrou naquele instante. Não ouvira o que Gudrun tinha dito e, inclinando-se
para a esposa, murmurou:

Não procedi bem para contigo, minha Leikny; o que disseste é verdade: fizeste-me
sempre todo o bem que te foi possível.

Leikny desfez-se em lágrimas. Tapou o rosto com o avental e saiu, correndo, de


casa. O marido seguiu-a, e não tardou muito que regressassem. Leikny deixara de
chorar e, com expressão de felicidade, apertava-se estreitamente contra o corpo do
esposo.

No dia seguinte, encetaram a jornada de regresso a casa. A sua estadia deveria


prolongar-se por mais tempo, porquanto Gudrun desejava que a sua filha se
demorasse até que esta desse ao mundo o terceiro filho. Gudrun dizia que este
projecto seria bom, de todos os pontos de vista. Mas os dois esposos decidiram, de
repente, de comum acordo, voltar ao seu lar em Skomedal. Veterlide e Gudrun
propuseram educar Lyting com o seu próprio filho Atle, que tinha mais um ano de
vida do que o outro pequenito. Ljot e Leikny aceitaram aquela oferta. Em seguida,
deixaram Holtar.

123

Durante a viagem para penates, reinou perfeita concórdia entre ambos. Foi o último
dia de claridade. Ljot e Leikny cavalgavam ao longo dum desfiladeiro rochoso. O
pessoal havia-lhes tomado a dianteira. Ljot conduzia o cavalo de Leikny à brida por
entre as pedras, e soltara o seu próprio cavalo, que o ia seguindo sozinho. Fazia um
tempo baço e tristonho, e durante momentos uma tempestade de neve vergastava o
rosto dos viageiros. Enquanto iam caminhando daquele modo, Leikny teve de súbito
a ideia seguinte, que logo expressou:

Não me passa da cabeça o que me disseste em Holtar. Mas se me falaste verdade


contando-me que o teu maior desgosto foi ver-te repelido por aquela gente, poderias
achar compensação consoladora pensando no facto de que fomos nós, aqui, que te
procurámos. O casamento que fizeste era considerado como um bom casamento, e a
mulher que desposaste havia sido, antes, pedida por muitos.

Não se trata de desgosto respondeu Ljot , mas deves compreender que eu não posso
deixar de me encolerizar sabendo que os filhos de Beine e os seus amigos espalham
esta história por toda a região.

Não percebo continuou Leikny passados instantes porque conservas tão


empenhadamente esse manto bordado, uma vez que já não pensas naquela que o
bordou.

Oh! por achar que me fica bem.

A neve cegava-os, e ambos seguiram silenciosos durante algum tempo. Logo que a
borrasca amainou, Leikny inquiriu:

Essa rapariga da Noruega era mais bela do que eu?

Não volveu Ljot sem olhar para a esposa , não; a maioria das pessoas, se pudessem
comparar, diriam que és mais bela.

Seria mais rica do que eu? perguntou ainda Leikny.

Oh! creio que os bens se equivalem respondeu Ljot no mesmo torn.

Contudo, ela continua a ser, nos teus pensamentos, superior a mim murmurou
Leikny, com mau humor.

Superior em nada, a não ser, talvez, em fazer menos per-


124

guntas do que tu tornou Ljot, que não pôde impedir-se de rir, daquela vez.

A esposa inclinou-se na sela para observar melhor a cara do marido. O rosto dela
estava branco como as pedras do caminho.

Jornadearam, então, algum tempo sem que qualquer dos dois proferisse palavra.

A neve deixara de cair quando saíram, enfim, do desfiladeiro. Haviam desembocado


num vasto plaino encharcado e cheio de turfa. Ljot entregou as rédeas à mulher e
preparava-se já para subir para a sela do cavalo, quando lhe chegaram aos ouvidos
estas palavras que Leikny murmurou em voz baixa:

Este assunto não tornará a ser jamais evocado entre nós, daqui em diante, assim to
prometo. Mas peço-te que não me recuses uma coisa: dize-me o nome dela.

Ljot apoiou-se contra a montada e ficou um largo espaço de tempo sem responder; o
seu olhar não incidia sobre a esposa, errava ao longe. Por fim, disse muito baixo:
«Vigdis».

Acto contínuo saltou para a sela, e Jornadearam muito tempo lado a lado sem trocar
palavra; quando chegaram a casa, Leikny conservou-se triste e silenciosa, o seu
humor não melhorou no transcurso do Verão. No Outono deu ao mundo um filho.
Ljot aspergiu a criança com água e pôs-lhe o nome de Gissur.

Depois daquele período, Leikny retomou o carácter habitual.

XXXII
125

No decorrer do Outono seguinte, ao conduzirem os carneiros a Skomedal,


aperceberam-se de que lhes faltavam alguns. Ljot, com um dos criados, foi à procura
dos animais. Três dias depois, estando Leikny no pátio de sua casa, viu chegar o
criado, que trazia à frente os carneiros. Como Ljot não aparecesse, perguntou ao
servo onde tinha ficado o amo. O homem respondeu que ele partira para o chalé, a
fim de efectuar ali umas reparações na cerca. O tempo estava bom e duma invulgar
claridade. A neve nova, na encosta, brilhava ao sol. Ao fim de momentos, Leikny
disse ao pessoal que ia subir ao chalé. Uma vez que Ljot decidira fazer arranjes no
cercado, aproveitaria a oportunidade para lhe falar numas coisas que ela desejava
instalar na vivenda. Os criados trocaram um sorriso ao ouvir aquelas palavras. Após
algum tempo de conversa com a sua gente, a dona da casa declarou que já era tempo
de se pôr a caminho, e acrescentou:

Não vale a pena que vocês me acompanhem.

Seguidamente, chamou um velho servo que vivera junto dela desde a infância e que
lhe era fiel como um cão, e pediu-lhe que a acompanhasse ao chalé.

Ao pôr-do-sol, chegaram à cerca mas não viram Ljot. Notaram que ele havia
arrancado quantidades de turfa do lameiro durante o dia, pois que a pá e a picareta
estavam ainda encostadas à parede do chalé. Este era construído de pedra e tinha
uma cobertura de turfa. No interior fora preparado um leito, por cima do qual, um
pouco à margem, corria uma corda don-
126

de pendiam peles de abafo e vastos tapetes para protegerem quem ali dormisse contra as
correntes de ar e o fumo.

Leikny esperou longo tempo, mas Ljot não apareceu. Ordenou, então, ao velho criado que
se fosse deitar no estábulo. E como fazia frio e a provisão de lenha da lareira lhe pareceu
muito pequena para activar o lume até à chegada do marido, tratou de se meter na cama e
puxou sobre si a manta, a fim de ter menos frio. Momentos depois, adormeceu.

Pela noite adiante, foi despertada por um ruído de vozes. Espreitou por entre os tapetes
suspensos, que a ocultavam, e viu lume aceso na lareira. Ljot encontrava-se sentado num
banco em frente. Mas havia um outro homem na quadra. Quando ele falou, reconheceu que
era a voz do padrasto, e ouviu-o dizer:

Acho que és pouco prudente, caro sobrinho, ficando aqui só, nestes sítios desertos,
enquanto durar a questão com Sigurd Beinesson e os seus aliados. Leikny sofreria um
terrível desgosto se te perdesse, tanto mais que os filhos são ainda muito pequenos.

Ljot apoiou a nuca na parede, e respondeu:

Os meus inimigos não são dignos, quer-me parecer, de que eu lhes ligue qualquer
importância, rodeando-me de pessoal numeroso. Sei que não será deles que me virá o golpe
mortal. Há só uma pessoa, que eu saiba, que me deseja a morte mais cruel, mas creio que
ambos nos encontraremos ainda antes do fim. Já vês que pouco me importa o que possa
acontecer daqui até lá.

Veterlide exclamou:

Mas do que é que estás a falar?

Ljot não respondeu a esta pergunta do tio. Porém, decorridos momentos, acrescentou:

Melhor seria para Leikny ficar viúva assaz jovem para poder ainda consolar-se.

Conheces mal o seu carácter, se supões que ela pudesse consolar-se observou Veterlide.
Não creio que ela se casasse com outro homem, se te perdesse, de tal maneira aprecia a
honra daquele a quem ama.

127

Ljot calou-se, e Veterlide insistiu:

Compreendes, não é assim, que poderias dar a volta ao mundo sem achar uma esposa que
valha a tua?

É verdadeiro o que dizes declarou por fim Ljot. Mas prefiro um sinalzinho que ela tem no
seio a toda a graça de Leikny. Eu tinha-lhe mais amor quando ela me feriu no pescoço com
o punhal do que tenho a Leikny quando me rodeia o pescoço com os braços. Sentia-me
menos desgraçado na época em que, vagueando pelas montanhas do Dovre, em pleno
Inverno, pensava nas palavras de maldição que ela me dirigiu, do que quando entro em
Skomedal sabendo que Leikny me acolherá com palavras de afecto, no limiar da nossa
casa. Mais grato me seria que um urso me partisse os ossos num amplexo feroz do que
pensar que Kare possa tê-la sentada nos joelhos.
Veterlide estava encolerizado:

Colocaste-te numa posição bem desagradável, estimado sobrinho. Mas a tua pior acção foi
a de nada haveres dito antes de tornares Leikny tua mulher.

Sim aquiesceu Ljot ; mas por essa época julguei possível expulsar a outra do meu espírito,
casando-me com a tua enteada. Reconheço agora que o mal que lhe fiz é um mal ainda
maior para mim. Porque sofrerei, enquanto durar a minha vida, por ter possuído um dia
aquela rapariga de cabeleira doirada e por a haver assim perdido.

Receio, estimado sobrinho, que tenhas pago bem mal a hospitalidade de Gunnar.

Pior ainda do que supões confessou Ljot ao ouvir aquelas palavras do tio. A mais bela hora
da minha vida foi aquela em que Vigdis e eu, sentados lado a lado no alto a que chamam
dos sacrifícios, nos entretivemos a comer amoras vermelhas. Sentia-me mais feliz naquele
dia do que no dia em que, sendo ainda rapaz, matei o assassino de meu pai nas
proximidades do Hauketind. Mas, quando ela me deixou após a nossa última entrevista,
levava consigo uma grande dor. Todavia, soube-o mais tarde, a minha tristeza ainda era
maior.

Veterlide comentou, com dolorosa indignação:


128

Tu violaste, pois, a filha de Gunnar? Nesse caso cometeste um acto infame de que jamais te
julgaria capaz.

Ljot teve um sorriso breve e respondeu:

Talvez nem eu próprio me supusesse também capaz de semelhante coisa.

Vê ter lide insistiu:

Portaste-te muito mal, nesse caso.

Mal, sem dúvida.

Os dois homens ficaram silenciosos. Por fim, Ljot ergueu-se e começou a preparar-se para
se ir deitar. E perguntou a Veterlide se não lhe pareciam já horas de dormir. Entretanto,
Leikny coseu-se o mais que pôde com a parede, tremendo, como uma folha; porém, com os
olhos fechados, tentou simular que dormia a sono solto. Ljot desembaraçando-se das vestes,
procurou fazer deslizar o tapete na corda, para se meter na cama. Descobriu, então, Leikny.
Subiu-lhe ao rosto uma onda de sangue, largou o tapete e em seguida inclinou-se sobre a
esposa, chamando-a, baixinho, pelo nome.

Leikny não respondeu, respirava profundamente como alguém que está dormindo.
Ljot aproximou-se de Veterlide e disse:

you preparar uma cama para ti em cima daquele banco, estimado tio. Acabo de ver Leikny,
que veio aqui esta noite.

Veterlide soltou um grito, mas Ljot fez-lhe sinal para se calar, e murmurou:

Parece que tem estado toda a noite a dormir.

E sem dizer mais nada, Ljot ocupou-se da instalação do tio. Logo que lhe aprontou a cama,
voltou para junto de Leikny; mas, antes de se deitar, quis certificar-se se ela dormia,
colocando-lhe a mão sobre o peito. E sentiu-a a tremer toda sob os dedos. O coração de
Leikny saltava como um peixe na rede.

Ljot estendeu-se ao lado da mulher, sem saber o que dizer-lhe. Manteve-se, pois, silencioso;
contudo, naquela noite, nenhum dos dois dormia, embora tanto ele como ela simulassem o
contrário.

Ao romper do dia, Ljot deixou-se vencer pelo sono. Então, Leikny pôs-se a chorar
brandamente, e assim chorando aca-

129

bou por adormecer também. Quando despertou, viu que os dois homens, já levantados,
estavam em preparos para fazerem o primeiro almoço. Leikny vestiu-se rapidamente, e foi-
lhes dar os bons-dias. Veterlide perguntou-lhe em que altura tinha ela chegado ao chalé.
Não tinha dado pela presença deles na véspera, à noite? Enquanto Veterlide falava, Ljot
ergueu-se precipitadamente, e saiu, dizendo que ia ver se os cavalos tinham sido
convenientemente tratados.

Leikny expôs, entretanto, a Veterlide que chegara ao chalé quase à hora da ceia, e que,
tendo-se metido na cama para esperar o marido, adormecera e só naquele instante acordara.

E, dirigindo-se a, Ljot, já de volta da inspecção às cavalariças, perguntou:

Mas onde estavas tu, Ljot, e donde veio Veterlide? Ljot respondeu que tinha ido examinar
as suas armadilhas

de caça e que em Gaglemyr encontrara Veterlide a caminho para Skomedal. Os


companheiros de Veterlide haviam partido à frente para a herdade. Ljot deitou
seguidamente a mão a umas perdizes que pendurara à porta e rogou a Leikny que as fizesse
assar para o almoço.

Ao mesmo tempo que obedecia, a mulher contou ao marido o motivo que a trouxera ao
chalé. Ljot prometeu fazer as estantes com que ela desejava guarnecer a vivenda, e instalá-
la conforme ela queria. Pouco tempo depois do almoço, Leikny voltou para casa na
companhia de Veterlide, a fim de cuidar do pessoal chegado na véspera.

Ao anoitecer, Ljot regressou, a cavalo, a Skomedal. Leikny achava-se à entrada do solar,


mas, assim que lobrigou o esposo, deu-se pressa em retirar-se para a sala de tecelagem. Ljot
seguiu-a, e colocou as mãos nos ombros da mulher para a obrigar a olhar para ele. Leikny
tinha o rosto banhado em lágrimas. Ele beijou-a, e disse:

Sei quanto poderia ser feliz se o teu amor me enchesse o coração de alegria. Nenhuma
mulher no mundo te ganha em bondade.

Leikny respondeu:

Não lamento ter ouvido a tua conversa da noite passada


130

com meu padrasto. Sofri muito mais no dia em que me disseste o nome dela, quando
íamos atravessando o lameiro.

Que vai ser de nós, agora? perguntou Ljot. E ela respondeu:

Será como quiseres. Podes fazer sempre de mim o que quiseres.

Ljot voltou-se durante instantes. Depois, num ímpeto, dirigiu-se à mulher, beijou-a e
saiu.

XXXIII
131

Assim é a vida. Todos os desgostos se atenuam com o tempo, e o mesmo se deu em


Skomedal. Durante anos, os dois esposos, absorvidos por outras preocupações,
pensaram menos nas suas agruras e desse modo sofreram menos. Eram, de resto,
muito dedicados um ao outro e viveram em boa harmonia. Conservavam-se de
preferência na herdade, e ninguém os via fora daquele âmbito. Tinham três filhos. O
mais velho, Lyting, fora educado em casa da avó, em Holtar. Morreu quando era
ainda pequeno. Depois vieram Gissur e Steinvor. Ljot gostava mais da sua filhinha
Steinvor do que dos dois rapazes. Tanto Gissur como Steinvor morreram num
desastre da seguinte maneira:

Numa noite de Primavera, as crianças de Skomedal brincavam no campo. Havia no


gárrulo bando alguns rapazes em serviço na propriedade. Entre tinham-se a atirar ao
arco e Gissur imitava-os. Este contava, então, sete anos e a pequena Steinvor quatro.
A pequerrucha brincava sozinha perto do arroio que corre ao longo da cerca na
direcção de Svarta. O regato era tão pouco importante que secava no Verão, mas,
como se estava na Primavera, a corrente tornava-se assaz volumosa. Os rapazes
haviam construído uma barragem semelhante à que tinham visto na grande ribeira.
Arranjaram uma represa em que um homem de estatura pouco elevada teria água
pelas joelhos.

Steinvor cirandava dum lado para outro, falando sozinha. De repente, viu na outra
margem do arroio a-encosta nua dou-
132

rada pelo sol poente. Era ainda tão novinha que já não se lembrava do Estio precedente e
julgou, notando aquele colorido, que a terra estava coberta de flores. E tratou de atravessar
o regato um pouco a montante, onde as águas eram mais baixas.

Sentia-se tão contente no declive cheio de sol, que decidiu fazer um montículo de pequenos
ramos e pedras, com a intenção de construir uma «quinta» em que não faltariam muitos
carneiros, vacas e cavalos.

Eu devia obrigar estes cavalos a recolher ao cercado disse ela, designando um pequeno
amontoado de pedras amarelas. Ajuda-me a recolher este cavalo, é doido, e não consigo ter
mão nele.

Dizendo isto, a falar sozinha atirou sobre a encosta a pedra maior do montículo que reunira,
e correu atrás dela. Gissur, que aparecera entretanto, quis tomar parte na brincadeira. Mas a
«quinta» construída por Steinvor pareceu-lhe bastante mesquinha.

Eu you partir para a Noruega, para comprar madeira de construção disse o petiz.
Apoderou-se de um dos sapatos de Steinvor, encheu-o de raminhos secos colhidos duma
exígua mata de salgueiros e fez vogar o seu barco na água da represa. Em seguida
construiu, ajudado pela irmã, uma casa magnífica; mas, quando terminaram o seu trabalho,
o sol tinha desaparecido. As duas crianças estavam molhadas, tinham frio e só pensavam
em voltar a casa, para que lhes dessem de comer. Mas onde estava o sapato de Steinvor?
Esta estremeceu com a ideia de ter de entrar com os pés nus na água gelada.

Levar-te-ei ao colo, para atravessarmos o ribeiro, irmãzinha disse o garoto e, erguendo-a


do chão, pôs-se a patinhar na água.

Olha, está além o pai, na charneca gritou Steinvor. Levantaram ambos a vista e tentaram
fazer-lhe sinal. Mas Gissur escorregou num pequeno bloco de gelo imerso, e caiu com a
pequenita.

Ljot acabara de chegar, a cavalo, pelo cerrado do gado, ao outro lado do ribeiro. Lobrigou
as crianças e fez-lhes um gesto afectuoso com a mão, mas entretanto elas caíram na água da

133

presada e não tornaram a levantar-se. O pai saltou do cavalo para o chão e desceu a direito
por entre o cascalho. Atingindo a outra margem, correu pela encosta até ao arroio. As
crianças jaziam, inertes, na represa. Ljot notou que Gissur batera com a têmpora numa
pedra, e que ele tinha a irmã tão estreitamente apertada nos braços que esta lhe ficara
debaixo do corpo. Ambos se tinham afogado. Ljot compreendeu imediatamente que tanto
um como outro estavam mortos. No entanto, regressou a casa com os dois filhos nos braços
e ordenou que trouxessem cobertores e que fervessem leite.

Leikny tornou-se duma palidez mortal ao ver os dois pequenitos. Porém, disse que o seu
estado talvez não fosse muito grave, e que eles não tardariam a recuperar os sentidos. Tudo
que se tentou para reanimar as duas crianças não serviu de nada. Gissur e Steinvor já não
eram deste mundo. Ljot acabou por ir sentar-se ao pé do lume, com a cabeça entre as mãos,
mas Leikny não queria renunciar à luta. Não cessava de lhes introduzir à força leite entre os
lábios, e de os friccionar com panos de lã, embora todos os presentes lhe afirmassem que os
seus esforços eram inúteis. Por fim, tomou nos braços os dois pequenos corpos, dizendo:

Hei-de restituir-lhes a vida, you deitar-me sobre eles e aquecê-los até que recuperem a
consciência. E deitou-se na cama com os filhos, soprando-lhes na boca o seu bafo quente.
Ljot ergueu-se, e atraiu-a a si.

Deixa-os repousar em paz disse ele , não se deve proceder assim com os mortos.

Mas ela soltou-se-lhe dos braços, dando gritos terríveis. Atirou para longe o lenço, arrancou
os cabelos, depois dirigiu-se a correr para a porta, a fim de se ir afogar também na ribeira.
Ljot precipitou-se sobre ela, ergueu-a nos braços e levou-a para a cama. Teve de empregar
toda a força para a libertar das roupas e para a deitar. Toda a noite se viu obrigado a segurá-
la; chegou a crer que ela ia enlouquecer. Pela madrugada, a pobre mãe acalmou-se e,
quando se levantou, já dia alto, mostrava-se tranquila, não teve mesmo grandes crises de
choro, dir-se-ia uma defunta saída do ataúde.

135

XXXIV
O tempo passava tristemente em Skomedal. Depois veio o dia da Assembleia. Ljot devia ali
comparecer e quis levar consigo Leikny, mas ela recusou-se a acompanhá-lo, dizendo que
não tinha ânimo para sair. E Ljot viu-se obrigado a partir sozinho.

Quando ele regressou, Leikny disse-lhe que ficara muitas noites na sala de tecelagem e
suplicou-lhe que a deixasse dormir só durante algum tempo. O marido respondeu àquele
pedido assegurando-lhe que não se opunha, se tal fosse o seu desejo. Mas o Estio
aproximava-se do seu termo; Leikny conservava-se na sala de tecelagem, e ali dormia.
Deixara de cuidar do arranjo dos caseiros e vagueava pela sala sem fazer nada. Ia todas as
noites à capela que Ljot mandara construir perto da casa e ali passava em oração grande
parte da noite.

Uma vez, quando a mulher se preparava para sair, Ljot entrou ha sala de tecelagem e pediu-
lhe uns momentos de atenção.

Quando tencionas voltar para junto de mim, Leikny? Como ela não respondesse à pergunta,
Ljot acrescentou:

Creio que nem tu nem eu temos qualquer vantagem em ir cada um para o seu lado,
suportando sozinhos o nosso desgosto. Acho que seria melhor dedicares-te à tua casa, e
viver com todos nós, atendendo aos cuidados que o lar requer. Talvez assim o teu
sofrimento se atenuasse.

Já não tenho ânimo para velar pela casa disse ela. Parece-me a cada momento que perdi
qualquer coisa, e, quando tento lembrar-me, apercebo-me de que foram os meus fi-
136

lhos que perdi e que eles nunca mais necessitarão de mim. O marido volveu:

Queres voltar para tua casa, para junto de tua mãe? Se assim é, irei levar-te a Holtar.

Leikny murmurou:

Há uma coisa que eu desejaria, se concordares em deixar-me seguir a minha vontade.

Estou pronto a aceder a tudo que me peças. Nada te recusarei.

E se fosse nunca mais coabitar contigo? Permite-me que eu saia daqui e que vá viver na
pureza e no jejum, como fazem outras mulheres nos países cristãos.

Ljot franziu o sobrolho e disse:

Sei que a tua vida não foi muito feliz junto de mim, e eu nunca te teria trazido para
Skomedal, se adivinhasse o que ia suceder. Mas uma vez perguntei-te que vida seria a nossa
daí em diante, e tu escolheste não me abandonar jamais, a despeito do passado. Depois, fiz
quanto pude para que tivesses uma existência feliz, e desde então não trocámos nunca uma
palavra colérica, nem jamais tornei a usar de violência contra ti. Fruíste nesta casa tanta
autoridade como eu, e sempre me abstive de te contrariar. Também não me diverti com
outras mulheres, e os meus filhos foram os que me deste.

Tu também não tens filhos meus exclamou Leikny, que cobriu o rosto com as mãos,
debulhando-se em lágrimas.

O meu desgosto por isso foi tão grande como o teu, e admiro-me, portanto, de que
pretendas quebrar a nossa vida conjugal.

Leikny ergueu-se e respondeu:

Deverás pedir o divórcio. A minha recusa de viver contigo será uma razão suficiente.
Poderás ainda desposar outra mulher e afastares-te para longe destes sítios desertos. Nunca
te vi contente um só dia, durante todos os anos que passámos juntos.

Ljot perguntou em voz sumida:

Dize-me a verdade, Leikny. Desejas verdadeiramente

137

deixar esta terra, ou pretendes sobretudo que não partilhemos o mesmo leito?

Dizendo isto, atraiu-a a si, e ela tremia de tal forma que não podia falar. Ljot acrescentou,
então:

Disseste-me um dia que farias tudo que eu quisesse. Leikny apoiou a face contra a mão do
marido e balbuciou

por entre soluços:

Pensava que querias deixar-me. Ljot inclinou-se para ela:

Isso foi há imenso tempo, Leikny. Eu ignorava nessa altura que não poderia viver sem ti.

Nessa mesma noite, Leikny voltou para a sala comum e retomou o seu antigo lugar à mesa.
Ninguém a ouviu jamais dizer que desejava fazer-se freira. Viveu com o marido em perfeita
união; e demonstravam um pelo outro um grande amor. Leikny continuava a chorar os
filhos, mas já não falava nisso.

Um dia em que se encontravam juntos na casa de Lanhos, Leikny deixou os cabelos soltos
para os secar.

Ljot juntou entre as suas mãos aquela cabeleira esparsa e exclamou:

Os teus cabelos são ainda mais fúlgidos e mais belos do que dantes, Leikny.

Esta, ouvindo o cumprimento, fez-se vermelha como uma papoila e deitou a cabeça para
trás. Mas Ljot reparou então que os cabelos grisalhos eram tão numerosos como os cabelos
de oiro. Próximo das têmporas haviam-se mesmo tornado completamente brancos.
XXXV
139

Passou-se um ano. Ljot notou que Leikny chorava com frequência à noite. Interrogada
ternamente por ele sobre o motivo daquela tristeza, recusou-se a elucidá-lo. Um dia, o
marido disse-lhe:

Creio que não tornarás a reencontrar alegria enquanto não tiveres dado ao mundo a criança
que trazes no seio.

Leikny pôs-se a chorar ainda com mais força. Um dia, Ljot entrou na despensa das
provisões, e viu a mulher, de joelhos, ocupada a despejar o conteúdo duma grande caixa.
Pediu-lhe que não se cansasse com aquele trabalho, visto que, a seu ver, não era coisa de
urgência.

É, sim respondeu ela. Quero deixar a casa em ordem quando se me acabar a vida, e devo
fazer, agora, o que me for possível.

Vamos, põe de parte semelhantes ideias disse Ljot, tentando aparentar um ar risonho.
Julgas acaso que vais morrer?

E fê-la sentar-se a seu lado no banco. Então, Leikny respondeu:

Vejo Gissur e Steinvor atravessar a sala todo os dias. Os nossos pobres filhos vêm
escorrendo em água, e querem subir para a nossa cama. Ou, ainda, que eu me deite ao lado
deles e que os cinja nos meus braços. Explico-lhes que não posso por causa dum seu
irmãozinho que espero. E eles respondem-me: «Quando ele nascer, mãe, vem dar-nos um
pouco de calor, como nos prometeste.»
140

Tu sonhaste disse Ljot. Sabes perfeitamente que as crianças estão junto de Nosso Senhor.
Só os pagãos não podem ser lá admitidos; porém, os nossos filhos foram baptizados, e
demos-lhes sepultura em terra cristã. Não fales, portanto, dessa maneira, e afasta do espírito
esses pensamentos concluiu ele em voz suplicante.

Vi-os tão nitidamente, como te estou vendo a ti. Acercaram-se de mim e tocaram-me; o seu
contacto era tão frio que me senti gelar até aos ossos.

Vejamos, deve ter sido qualquer corrente de ar que te transiu desse modo observou Ljot
sentando-a nos joelhos.

you mandar arranjar a parede que fica por detrás do leito. Mas não digas que vais morrer.
As crianças não sofrem onde estão, e eu necessito mais de ti do que eles.

Algumas semanas depois, Leikny deu ao mundo um bebé. Ljot interrogava incessantemente
as parteiras acerca do estado de Leikny, e elas respondiam sempre que tudo caminhava
bem. Mas, quando mostraram o recém-nascido ao pai, aquele apresentava-se tão
raquiticamente conformado, que todos os da casa aconselharam Ljot a expô-lo.

Porque este desgraçadinho nunca há-de ser um homem

diziam-lhe. Será um aborto para o qual a vida jamais terá qualquer alegria.

Seria um acto indigno dum cristão como eu replicou Ljot e não o farei. Deus poderá vir
em socorro desta criança e melhorar o seu estado. Movido daqueles humanos sentimentos,
mandou pouco depois baptizar o pequenito e deu-lhe o nome de Torbjorn.

Leikny chorou ao inteirar-se da mísera conformação física do filho. Pensou, influenciada


pelos inconscientes que nisso lhe falaram, que seria preferível, para ele, não viver. O recém-
nascido tinha um rostozito alongado em bico de lebre, e faltava-lhe o palato. A sua mão
direita, pequena e como que ressequida, metia dó a quem a olhava. Quando Leikny falou
nisto a Ljot este riu-se e disse que a mão esquerda também não era muito grande.

A parturiente levantou-se decorridos dez dias, mas nessa

141

mesma noite foi salteada pela febre e teve de recolher novamente ao leito. No dia seguinte,
o seu estado piorou. Ljot sentou-se-lhe à beira da cama. De súbito, a enferma disse:

Temo que venha a suceder o que eu receava, se bem que tenha orado ardentemente para que
a morte não nos separe ainda. Duas coisas me enchem de tristeza: primeiro, o facto de vires
a ficar só com esta pobre criança doente, e depois pensar que melhor fora ter morrido na
época em que não me prantearias.

Ljot afagou-a e disse:

Acho absurdos os teus sonhos e visões, e conheci as maiores alegrias da minha vida durante
os dias felizes que temos passado juntos. Coisa alguma pode fazer esquecer este
sentimento.

Leikny adormeceu. Ljot conservou-se junto dela, de vigília, toda a noite. Ao avizinhar-se a
manhã, a enferma ergueu-se de repente no leito e estendeu as mãos para a porta, no gesto de
quem acolhesse seres invisíveis. Em seguida, rodeou o pescoço do marido com os braços, e
caiu para trás, arrastando-o consigo na queda. Mas no mesmo instante largou-o, estirou os
membros, e morreu.

Ljot chorou sentidamente a esposa, mas os que o cercavam acharam que ele suportou com
ânimo a sua dor, não se excedendo em lástimas. Entretanto, tratou de cuidar ele próprio da
criança, com grande carinho. Continuava sempre esperançado em que o pequenito venceria
o estado enfermiço, mas os outros eram de opinião contrária, e o seu pessimismo acertou.
com efeito, passado o Inverno e a Primavera, a criança foi salteada por convulsões que lhe
causaram a morte. Nesse mesmo ano, Ljot fez saber à Assembleia da gente da região que
desejava vender as propriedades. Tempos depois, comprou uma barca e abandonou a
Islândia. Chegado à Normandia, separou-se de alguns conterrâneos que tinham partido na
sua companhia. Na ilha nunca mais se ouviu falar dele.
XXXVI
143

Depois da morte, em combate, do rei Olav Trygvesson, da Noruega, Illuge, o loiro partiu
para Aslo. Não queria servir mais nenhum suserano após a morte daquele homem, o maior
entre todos os que viveram nos países do Norte. Illuge pensava em instalar-se na vida e em
consorciar-se. Voltou ainda a pedir casamento a Vigdis. Esta acolheu-o benevolamente, e
deu em sua honra uma grande festa para a qual convidou também Kare de Grefsin.
Testemunhou aos dois homens a maior estima. Um dia, pediu-lhes que a acompanhassem
ao depósito de provisões, porque desejava falar-lhes a sós, e disse-lhes:
Ambos vós me haveis pedido que fosse vossa mulher, e eu não esperava a honra de
semelhantes propostas, vindas de dois homens tão considerados e de tão grande valor. Mas
não pretendo casar-me. Tudo o que ambiciono é que meu filho possa viver em condições de
fortuna e de posição tais que a ausência dum pai não seja para ele motivo de infortúnios.
Torna-se, então, necessário que não se veja obrigado a partilhar os seus bens com filhos
legítimos que eu pudesse vir a ter. Além disso, devo a vós ambos tanto reconhecimento que
não saberia a qual escolher. Ocorre-me, porém, aconselhar-vos o seguinte: tu, Kare, darás
tua irmã Helga como esposa a Illuge e ele comprará a propriedade de Baugstadir que fica
por detrás da serra. Kare pedirá em casamento Ragna Gjotgardsdatter, minha prima, que
vós haveis visto aqui hoje. São as mais belas raparigas da região e as mais ricas e, se vós
ambos fordes amigos, como cunhados, dominareis por todas as redondezas dês-
144

ta terra. Dizei-me agora se porventura tomastes bem nota do que vos sugeri, e o que pensais
dos meus conselhos. Kare tomou a palavra:
Por mim, estou disposto a ter Illuge por cunhado, se ele quiser, por seu turno, fazer o que
dizes. Acho que a conclusão dum tal acordo seria vantajosa tanto para um como para outro.
Garanto que não me mostrarei avaro, quanto a dote, casando minha irmã.
Illuge respondeu:
Assentemos, então, que casarás com Ragna no mesmo dia em que Helga e eu bebermos
pela nossa boda.
Kare não respondeu, mas Vigdis acrescentou:

Ficai absolutamente certos de que eu não me casarei jamais, mas vós ambos aumentareis as
vossas riquezas e o vosso poderio realizando este acordo. Sois aproximadamente iguais em
tudo, nenhum de vós ganhará grande coisa tentando ultrapassar o outro. Unindo-vos como
cunhados, redobrareis as vossas possibilidades.
Kare estendeu então a dextra a Illuge que lha apertou, e seguidamente começaram a
examinar os pormenores do assunto. Vigdis foi, entretanto, abrir um grande cofre cheio de
objectos preciosos, e pediu aos hóspedes que escolhessem o que lhes agradasse.
Permiti-me ainda acrescentou ela que recorra à vossa amizade, pois tenho um pedido a
fazer. Ensinai meu filho Uivar a servir-se das armas, e a comportar-se como é próprio dum
rapaz brioso, a fim de que, quando for mais crescido, se pareça convosco.
Ambos prometeram o que ela desejava, e agradeceram-lhe os magníficos presentes que lhes
ofereceu.
Terminada assim a recepção, os dois homens regressaram a suas casas com as valiosas
dádivas com que ela os obsequiara, e que contribuíram para aumentar a boa conta em que
era tida naqueles sítios.

XXXVII
145

Vigdis havia mandado construir uma igreja, que foi confiada a um sacerdote de nome Eirik.
O padre viera da Dinamarca, e Vigdis tributava-lhe grande estima, sendo por ele com
frequência visitada, em Vadin.
Numa noite em que ambos se haviam sentado em redor do lume da lareira, após as
cerimónias da Ceia do Senhor, Vigdis pediu ao padre que lhe contasse uma lenda,
porquanto ele sabia grande número delas, e, acedendo, o pastor Eirik narrou-lhe a seguinte:
Houve, em tempos que já lá vão, num lugar chamado Odinso, uma mulher de nome Tora. A
sua formosura era extrema. Mas um dia deixou-se seduzir e aconteceu-lhe ter um filho que
ela ocultou de todos, resolvendo, por fim, atirá-lo ao mar.
Mais tarde, realizou um bom consórcio, e viveu feliz e considerada. Certo dia, adoeceu
gravemente, teve um delíquio e chegaram a julgá-la morta. No seu delírio de enferma,
imaginou que a vestiam, que a adornavam e que lhe haviam dado o corpo à sepultura.
Ouvia os filhinhos chamarem por ela, chorando por toda a casa, e sentiu o angustiado
desejo de ir ter com eles para os consolar. No mesmo instante, notou que alguém penetrava
no túmulo onde ela jazia. O desconhecido, que estava envolto num manto negro, pegou-lhe
na mão e disse: «Levanta-te, Tora, e acompanha-me.» A partir de então, ela deixou de
pensar que estava morta, e pediu ao homem que a levasse para junto dos filhos, que
choravam a sua ausência. O homem do manto fez um gesto de assentimento e conduziu-a
146

para mais longe. «Não é por este caminho que devemos seguir» observou ela. «Enganas-te,
é exactamente por aqui» murmurou o guia.
Depois de terem caminhado durante muito tempo, chegaram a um vale profundo e obscuro.
Ao fundo do vale, achava-se um lago de águas negras para o qual o terreno descia em
pendor abrupto. A margem do outro lado era também fortemente escarpada. Mas, no cimo
da montanha, brilhava um castelo com tal fulgor que dir-se-ia de oiro puro. Diante desta
edificação, viam-se cavaleiros revestidos de armaduras de oiro, e no interior havia gente
que cantava e tocava em instrumentos de cordas. A enferma jamais havia sonhado coisa
alguma de tanta beleza; e perguntou ao seu condutor a quem pertencia aquele castelo de
oiro. «É meu informou o homem , queres ir até lá para ver o meu domínio?» Desejava-o,
sem dúvida, mas o que ela queria acima de tudo era tornar a ver os filhos no lar.
Começaram, entretanto, a descer a encosta, e, ao aproximar-se do fim do vale, Tora julgou
ver uma quantidade de cordeiros brancos. Apertavam-se uns contra os outros como num
redil e, atropelando-se, tentavam escalar as muralhas rochosas que os cercavam. Vendo-os
de mais perto, apercebeu-se de que se tratava de crianças tamaninas. Havia ali muitos
milhares delas, em completa nudez e com aspecto de recém-nascidos; mas os seus rostos
eram velhos, e algumas das crianças apresentavam ferimentos sangrentos, parecendo terem
sofrido maus tratos, e outras estavam encharcadas. Procuravam subir para fora daquele
vale, mas quase no mesmo instante rolavam até ao sopé da encosta, de tal forma eram
pequenas e débeis. A mulher achou aquele espectáculo tão triste que se pôs a chorar.
Perguntou ao homem do manto de quem eram aquelas infelizes crianças e como tinham
chegado àquele lugar.
«Foram os pais que ali as meteram porque assim lhes deu na vontade» disse o homem.
«Eis uma coisa que me custa a crer» ,exclamou Tora. As crianças conservavam o dom da
fala, e intervieram: «Mas é verdade, e estamos condenados a ficar aqui. Gostaríamos de ir
ver o vasto mundo para além des-

147

te vale, mas somos muito pequeninos, e temos de nos conservar onde estamos e onde tudo é
feio e desolado e padecemos muito frio.»
Então, a mulher tirou o seu agasalho de peles e rasgou-o, envolvendo nos largos pedaços do
manto as crianças que se encontravam mais perto dela. Todas se aglomeravam à sua volta, e
Tora continuou a despojar-se das roupas, com que foi cobrindo muitas dentre elas, até ficar
ela própria também completamente nua. Subsistiam sempre, porém, tantas crianças sem
vestuário que o seu número ascendia a milhares. Enquanto ela ia caminhando ao lado do
homem, as crianças assediavam-na com as suas súplicas, pedindo-lhe que as tomasse nos
braços, para poderem ver o mundo.
«Este espectáculo é horrível» disse Tora.
«Não obstante, todos os que se encontram aqui não desejam renunciar à vida, todos querem
voltar para o mundo como tu própria o desejas.»
«Eu apenas aspiro a regressar para junto dos meus filhos» volveu a triste mulher.
Seguidamente, o guia e ela penetraram na água, que estava igualmente cheia de criancinhas.
Estas viam-se cobertas pela água até ao pescoço, aperta das umas contra as outras como um
cardume de arenques. Tremiam de frio e todas tentavam agarrar-se à companheira do
homem do manto negro. Tora sentia dó delas a ponto de chorar, e tomou nos braços tantas
quantas lhe foi possível. Depois, pediu ao homem que lhe permitisse levá-las consigo até ao
castelo de oiro. «Sim, permito-o» respondeu o interpelado. Todavia, o número de crianças
que ela podia transportar nos braços era reduzido. Solicitou, então, ao seu guia que lhe
emprestasse o manto para as enrolar. Quando ele o tirou, a mulher pôde ver que o
desconhecido vestia uma magnífica armadura toda de oiro, ornada no peito duma cruz de
pedrarias. Sobre a cabeça brilhava-lhe uma coroa resplandecente, mas o brilho da sua face
era ainda mais vivo. «Nunca pensou Tora vi um personagem mais belo e majestoso.»
O homem disse-lhe: «A encosta é tão áspera neste local que
148

te será impossível subi-la; é necessário que eu te leve. Devo transportar-te em


primeiro lugar, ou preferes que comece pelas crianças?»
«Leva primeiro as crianças solicitou ela. Se não podes transportá-las todas ao
mesmo tempo, eu permanecerei aqui à espera.»
«Longo tempo terás então de esperar observou o rútilo cavaleiro. Repara como são
numerosas, e que outras vão chegando incessantemente. Não me disseste que tinhas
grande desejo de ver o meu castelo de oiro, após o que tencionavas regressar a casa
para junto dos teus filhos? Ora, em tais condições, poderias ser obrigada a ficar aqui
até ao fim do mundo, antes de eu ter levado todas estas crianças para o meu
domínio.»
«Bem! esperarei todo o tempo que for preciso exclamou a companheira do
cavaleiro resplandecente. Não tenho ânimo de abandonar estes pequeninos
desventurados. Os meus estão bem abrigados em casa, e estes têm mais necessidade
de nós.»

Ouvindo isto, o homem acrescentou:

«Devo dizer-te, em todo o caso, que é o teu filho mais velho a criança que apertas
contra o peito. Todas estas crianças foram privadas da vida antes de terem vivido, ou
de terem conhecido o caminho que leva ao meu castelo.»
Tora caiu de joelhos e exclamou, assombrada:
«Mas quem és tu, Senhor, como te chamas?»
«Eu sou o Cristo» disse ele. E ao mesmo tempo emanou da sua presença uma
claridade tão deslumbrante que dir-se-ia ter nascido o Sol por sobre o vale e
aquecido todas as crianças. Tora foi obrigada a fechar os olhos ofuscados por
tamanha luz. Quando os reabriu, achou-se deitada no seu leito, em casa.
Mandou chamar imediatamente o marido e a família, e contou-lhes a visão que
tivera, sem nada ocultar da sua vergonha passada, dizendo-lhes que tinha morto o
fruto das suas entranhas. O marido ficou de tal maneira encolerizado que lhe
ordenou que se levantasse e que saísse de casa naquele mesmo instante, apesar de
estarem a meio da noite.
Tora fugiu através da localidade, ladrando-lhe os cães à passagem, e sentia-se bem
desditosa por haver pecado tão grave-

149

mente. Na sua confusão, não descortinando como continuar a viver, correu para a
ribeira. Chegada à beira da corrente, ouviu alguém chorar entre dois grandes
pedregulhos. Orientando-se pelo ruído, descobriu um garotinho recém-nascido, que
vivia ainda. Envolveu-o nas suas vestes, aproximou-o do peito e deu-lhe o seio. E
logo ali tomou a resolução de criar aquela criança. Embrenhou-se nas florestas e
caminhou muito tempo até chegar a um lugar onde ninguém a conhecia. Depois, por
suas próprias mãos, construiu uma cabana e instalou-se nela com o pequenito. Mais
tarde, restituíram-lhe o oiro e o dinheiro que lhe pertenciam por herança, e então fez
saber por aquelas redondezas que criaria os bebés expostos pelos respectivos
progenitores. Comprava alimentos para as crianças com o produto da venda dos seus
bens e do seu oiro, mas ela própria nutria-se apenas da erva que nascia na terra e só
bebia água dos regatos.
Quando os frades vieram pregar a verdadeira fé naquela região, ficaram muito
surpreendidos vendo que Tora conhecia Deus e o honrava nos seus actos.
Baptizaram-na e baptizaram as crianças, e quando ela morreu proclamou-se que,
pela sua penitência, adquirira a santidade.
Vigdis agradeceu ao padre a história que ele lhe acabara de contar, e ficou pensativa
durante o resto da noite.
Quando chegou a hora de recolher ao leito, tendo-se os criados já retirado, chamou
Uivar para junto de si. O rapaz contava por aquela altura nove anos de idade e era
amicíssimo da mãe. Sentando-se-lhe nos joelhos, o pequeno abraçou-se a ela:
Mãe, serias capaz de me esperar a mim naquele vale até ao fim do mundo?
perguntou ajuntando: Estou certo que sim.
Vigdis apertou-o contra o coração e disse:
Certa noite, como sucedeu a Tora, aprendi o que devia fazer. Eu iria até ao fim do
mundo para te proteger no momento em que necessitasses de tua mãe.
O rapazito beijou-a e acariciou-a. E pouco depois acrescentou:
150

Nunca quiseste dizer-me quem é meu pai.


Não evoques a sua recordação quando estou contente respondeu-lhe a mãe e não quero que
me faças perguntas a seu respeito.
Uivar insistiu:
Quando eu for mais homem, partirei em busca dele e obrigá-lo-ei a desposar-te, pois de
contrário arrepender-se-á.
Vigdis esboçou um ligeiro sorriso:
Há-de passar ainda uma boa temporada antes de seres homem feito, meu filho disse ela e
muito tempo até que tu me deixes. Não falaremos dele jamais, ele nunca te verá e não te
causará dano. Mas farei tudo o que puder pelo teu bem e esquecerei mesmo aquilo de que
se me tornou insuportável a recordação.

XXXVIII
151

Uivar crescia e ia-se tornando um esplêndido moço sobre o qual se podiam fundar grandes
esperanças. Era de estatura elevada, mas um tanto escorrido de formas. Tinha olhos azul-
claros, e compridos cabelos escuros a atirar para ruços. Desde muito novo, mostrou
invulgar sisudez, porque a mãe, sendo ele ainda bastante jovem, industriava-o praticamente
em tudo que respeitava à administração das suas terras e outros bens, e ao relativo bem-
estar dos seus dependentes. Vigdis não hesitava até mesmo em pedir-lhe conselho, e falava-
lhe como a um adulto, cuja opinião pudesse ser-lhe de grande vantagem. Em consequência,
o rapaz era grave e taciturno, mas afável e cortês no trato, e toda a gente o estimava. A mãe
e ele viviam numa grande ternura recíproca. Mas sempre que o mancebo perguntava quem
era o pai, Vigdis não lhe respondia, afirmando que nada de bom tinha a dizer de tal homem,
cujo nome não queria tornar a ouvir pronunciar. Depois de perguntas desta índole, a sua
progenitora mostrava-se triste e Uivar não ousava continuar a interrogá-la.
Kare, Illuge e Vigdis haviam-se ligado por firme amizade, e todos três se convidavam
mutuamente, todos os anos, para um grande festim. Os dois homens ensinaram com todo o
cuidado a Uivar os exercícios físicos dignos de um homem.
O rapaz ia com frequência a Grefsin, a herdade mais vizinha da de sua mãe; mas rejubilava
sobretudo com as suas digressões, a cavalo, a Baugstadir, onde vivia Illuge que tinha viaja-
152

do muito e visto muitas coisas. Agradavam-lhe em especial as narrativas que Illuge por
vezes, lhe fazia.
Numa tarde em que Uivar se encontrava em casa de Illuge o padre apareceu em Baugstadir,
e o dono da casa lembrou-se de lhe pedir que contasse uma história para se distraírem. O
sacerdote Eirik contou-lhes, então, a história de São Gregório, que matou o dragão de
Capadócia, e Illuge no fim da narrativa, disse-lhe:
Depois da de Cristo, que venceu o diabo, essa é a mais bela façanha executada por um
homem. Só conheço duas que se lhe possam comparar. A de Sigurd Sigmundsson, que
matou Fafne, e a de Olav Trygvesson, que não fugiu, em Svold, diante de três exércitos.
Tão-só em tempos muito antigos se poderiam achar proezas semelhantes, na época das
lendas, jamais tornará a existir suserano que se lhe equipare, enquanto o mar bater nas
costas da Noruega.
O padre Eirik observou:
Não ha dúvida que Olav foi o maior homem de guerra que existiu neste país, mas agora
quero contar-lhes as acções dos santos mártires que, nas regiões do Sul, padeceram com
coragem e com um coração viril os piores sofrimentos pela sua fé. A fim de que vocês
conheçam a valentia destes crentes, you contar-lhes o que sei acerca da firmeza duma
rapariga.
E contou-lhes a lenda de Santa Ágata. Illuge exclamou:
Essa rapariga era verdadeiramente dotada dum espírito magnânimo. A sua fama jamais se
apagará. Mas agora you falar-lhes da mulher mais notável que encontrei neste mundo. Por
tua parte, Uivar, deves ter ouvido falar um pouco do que lhes contarei, mas penso que
precisas de saber ainda muita coisa que ignoras.
E fez a narrativa da viagem de Vigdis através dos mil obstáculos da floresta, na noite em
que os inimigos de seu pai incendiaram Vadin. Absteve-se, porém, de citar o nome dela, e,
quando terminou a narração, disse ao rapaz:
Sabes a quem se refere a história que acabei de lhes con-

153

tar? Conheces uma mulher a quem faltam três dedos da mão esquerda?
Uivar fez um sinal afirmativo e apertou com afecto a mão de Illuge. Este prosseguiu:
Se te pareceres com tua mãe, falar-se-á um dia dos teus altos feitos.
No dia seguinte de manhã, quando Uivar entrou no pátio de Vadin, distinguiu Vigdis, que se
entretinha a dar de comer aos frangos. Uivar saltou abaixo da montada, correu para a mãe e
passou-lhe o braço em redor da cintura. Vigdis pôs-se a rir:
Que tens, meu filho?
Nada volveu ele , mas creio, minha querida mãe, que não há no mundo outra mulher com
tanto valor como tu.
Dizendo estas palavras, agarrou na mão esquerda de Vigdis e beijou-lhe as falanges
mutiladas.
Não podes adivinhar no que penso, mãe. Teria sido admirável se houvesses desposado Olav
Trygvesson. Foram feitos um para o outro.
Vigdis corou, sem responder. Beijou o filho na face e conduziu-o consigo a casa, a fim de
que ele tomasse algum alimento.155

XXXIX
Certo dia, ao sol-posto, dois negociantes islandeses que se dirigiam a Tunsberg pediram, em
Vadin, hospitalidade para aquela noite. Vigdis recebeu-os bem, e ofereceu-lhes um repasto
abundante. Eram homens de espírito conceituoso e tinham maneiras nobres. Vigdis veio
sentar-se perto deles no decurso do serão e travaram conversa.
Ela acabou por lhes perguntar se tinham ouvido falar dum homem chamado Viga Ljot e se
ele vivia ainda.
Responderam que em Raudasand tinha vivido um homem com aquele nome. Mas fora
morto quando eles eram ainda crianças.
Vigdis observou que não podia ter sido há tanto tempo, porquanto o homem a quem se
referia estivera naqueles sítios numa época de que ela ainda se lembrava.
Então, um dos negociantes disse para o outro:
Não se dava ainda o nome indicado pela dona da casa a Ljot Gissursson, de Skomedal, na
época em que vingou o pai. Ele era por então um rapazote que guardava ovelhas nas terras
de Eyre Torbjorn.
Vigdis esclareceu:
Aquele a quem aludi chamava-se Ljot Gissursson. Sabeis se ele é vivo ainda?
Uivar, que estava sentado no banco, inclinou-se sobre a mesa, e pediu em torn suplicante:
Oh! contem-nos isso; contem-nos como ele vingou o pai quando era ainda um pastorinho
que guardava gado!
Vigdis olhou para o filho, mas não disse nada. Um dos comerciantes tomou a palavra:
156

Dize o que sabes, Helge, visto que a nossa hospedeira deseja ouvir-te.
Helge principiou a narrativa deste modo:
Esse Ljot era o filho único de Gissur, que foi morto por Gunnar, senhor de Geitabakke e
seus aliados. Oito sicários auxiliaram Gunnar, e um deles chamava-se Arne Kollson. Fora
ele o principal autor do assassínio. Gunnar pagou a indemnização e todos consideraram o
assunto arrumado da parte daqueles que se tinham incumbido de vingar Gissur. Nesse
tempo, eram homens de pouco peso em comparação com Gunnar e os seus. Ninguém podia
medir-se com Arne. Ljot contaria, por então, apenas dois ou três anos de idade.
Num dia de Inverno, tendo Ljot já feito treze anos, encontrou-se, na companhia de alguns
companheiros, no alto de uma montanha. Tinham-se sentado todos num rochedo, donde se
dominava o horizonte e onde eles resolveram comer os lanches, depois de haverem dado
inúmeras voltas para acharem e reunirem alguns ovinos extraviados pelas cercanias. Cada
um dos rapazes gabava-se, enquanto comiam os lanches, das suas façanhas respectivas.
Ljot pretendia ser um atirador de venábulo excepcional e que nunca errava o alvo. Um dos
companheiros, que perscrutava os horizontes enquanto Ljot falava, disse de repente:
« Vês aquele grupo de cavaleiros que segue pelo vale ao pé de Hauketind? Se não me
engano é Arne Kollsson que vai passando ali em baixo. Se fosses capaz de atingir aquele
alvo, Ljot, a indemnização assim paga pela morte de teu pai teria mais valor do que todo o
oiro desembolsado por Gunnar.
«Os rapazes tinham trazido três venábulos. Ljot apoderou-se de todos eles e correu na
direcção do norte por cima das rochas cobertas de musgo. A senda da colina que
atravessava o vale estreitava pouco a pouco até se converter numa exígua vereda. No ponto
mais estreito havia um desfiladeiro, que dum lado era limitado por uma muralha e do outro
por terreno pedregoso e escarpado.
«Ljot foi esconder-se atrás duma grande pedra, e entretanto Arne entrou no desfiladeiro.
Vinha acompanhado por quatro homens. A vereda subia por um relevo áspero. Quando
aqueles homens chegaram ao ponto que ficava por baixo do local onde Ljot
157

se ocultava, o rapazelho saltou para cima do rochedo e disparou o primeiro venábulo, que
atingiu um cavaleiro que cavalgava ao lado de Arne. Ljot voltou a ocultar-se com a rapidez
do relâmpago. Os homens não tiveram tempo de ver quem lançara o venábulo. Detiveram-
se para olhar à volta. Ljot saltou imediatamente para cima da pedra e atirou os outros dois
venábulos. Uma das flechas não atingiu o alvo, mas a outra matou um homem que seguia à
frente de Arne. Ljot gritou então:
« Aqui estou em melhor posição do que se viu meu pai, porque ele teve de lutar contra oito
homens, e vocês são apenas três contra mim!
«Da cintura pendia-lhe uma machada de lenhador. Como Arne se inclinasse para ele, o
rapaz deu-lhe uma machadada que lhe fendeu a maxila. Um dos companheiros de Arne
atirou a sua lança contra Ljot, mas este apanhou a arma no voo e desatou a correr através do
declive pedregoso, abrigando-se de rochedo em rochedo de tal sorte que os outros não
puderam atingi-lo. Chegado à beira do barranco, saltou por cima do abismo apoiando-se na
lança, e correu ao longo do rebordo do alcantil, do outro lado do desfiladeiro. Os cavalos
dos homens que tinham sido derrubados espantaram-se e fugiram até ao extremo do
caminho. Ljot conseguiu agarrar um deles pela brida no momento em que o animal, em
corrida desordenada, ia precipitar-se no fundo barranco. O rapaz saltou-lhe logo para a sela
e regressou a cavalo ao lugar do Eyre, onde então habitava.
«Toda a gente do sítio se admirou com a proeza do rapaz, e muitos vaticinaram que Ljot se
tornaria um dia célebre por toda a parte com as suas façanhas. E puseram-lhe por tal motivo
o nome de Viga Ljot.
Neste momento da narrativa do islandês, Vigdis fez-lhe uma nova pergunta:
Sabes, Helge, o que foi feito dele depois dessa época?
Nunca mais se ouviu falar dele, nos últimos anos. Desde que casou, o seu viver tornou-se
tranquilo.
Ah! Casou-se? murmurou Vigdis.
Simrespondeu Helge.
Conheces a mulher dele?
158

Mal a vi, uma vez. Passava por ser a rapariga mais bonita daqueles sítios. É uma mulher de
boa índole e abastada. Depois de se consorciar com ela, Ljot tem-se conservado em sossego
na sua herdade.
Vigdis calou-se um momento, e a seguir acrescentou:
Sabes se tiveram filhos?
Sim, ouvi dizer que têm uns três ou quatro.
Após este esclarecimento, Vigdis não fez quaisquer outras perguntas. Mas, quando os
islandeses se foram deitar, ela ficou junto à lareira, a olhar para o lume. De repente, sem
erguer a vista para o filho, disse-lhe:
Ouviste bem o que estes homens contaram? Estiveram a dar-te notícias de teu pai.
Uivar saltou do seu lugar e exclamou:
É então meu pai aquele que matou três homens no desfiladeiro da serra, quando contava a
idade que tenho agora?
Sim, é teu pai, o que tem aquela linda esposa de que falou Helge.
Uivar insistiu:
Que te fez ele, mãe? Deve ser, apesar de tudo, um homem valente. Gostava de o encontrar
um dia e mostrar-lhe-ei que tem um filho que se lhe assemelha.
Se te pareces com ele, és no entanto meu filho, e o vosso encontro apenas poderia terminar
duma única maneira: seria necessário que viesses depor a cabeça de Ljot sobre os meus
joelhos.
Uivar, perante tamanha ferocidade, empalideceu. E acabou por declarar:
Jamais se ouviu dizer que um filho matasse o pai.
Vigdis ergueu as mãos e cruzou-as no peito:
Não queres, pois, vingar-me como eu vinguei meu pai? Fica sabendo que por amor de ti
passei tormentos indescritíveis. Ele procedeu de tal maneira comigo que, se eu te dissesse
tudo, não mais terias repouso até me trazeres a prova, a que aludi, da minha vingança. De
contrário, ter-me-ias menos amor do que eu julgava. Mas faltam-me as forças para
continuar a falar destas coisas.
Uivar correu para a mãe e abraçou-se a ela. Então, Vigdis desfez-se em lágrimas e o
rapazito exclamou:
Bem sabes que farei sempre o que quiseres que faça.

XL
159

Uivar ia fazer dezassete anos. E disse, um dia, à mãe que tinha grande desejo de viajar um
pouco fora da ilha, e de ver mundo. Vigdis achou tal aspiração legítima e prometeu
comprar-lhe uma barca boa e grande, mas com a condição de que ele viajaria acompanhado
por homens de idade e com experiência.
Informado destes projectos, Illuge a quem tinha morrido a mulher, disse que não lhe
desagradaria fazer nova viagem, e falaram muitas vezes, depois daquele dia, nas
possibilidades de partida.
Certa vez, pelos fins do Inverno, Illuge deslocou-se a Vadin. Ficou só na sala com Vigdis, e
esta perguntou-lhe para que país tencionava dirigir-se. Illuge respondeu:
Não ignoras que é acima de tudo para a Islândia que Uivar deseja fazer-se de vela.
Como Vigdis não desse qualquer resposta, Illuge continuou:
Calcularás com que fim quer ir àquela ilha, mas não deve causar-te surpresa que eu te diga
que não me sinto tentado a acompanhá-lo em semelhante aventura.
Vigdis murmurou:
Uivar foi falar contigo a tua casa muitas vezes. Deve ter conversado contigo a respeito de
muitas coisas. Falou-te do pai?
Sim, muitas vezes. Só tem um desejo: encontrar o pai, ver o que ele vale, qual a sua
maneira de ser. Que dizes, concordas com isto? Foste tu quem deu este conselho a teu
filho?
160

Não disse Vigdis. Após uma pausa, ajuntou: Ljot não sabe que tenho um filho. Preferia
que Uivar renunciasse a esta expedição.
Uivar ia passando naquele instante pela frente da porta. IIluge chamou-o e disse-lhe,
quando o moço entrou na sala:
Falávamos, tua mãe e eu, da tua expedição à Islândia. Uivar corou e disse
precipitadamente:
Não deves surpreender-te, mãe, do meu desejo de encontrar o homem que me deu o ser, e
de ver como ele me receberá.
Ele nunca se preocupou connosco exclamou Vigdis, colérica e tem mulher e filhos nessa
ilha. Só encontrarás zombarias, se fores a casa dele.
Uivar zangou-se:
Mas eu sou teu filho, mãe, e por conseguinte não permitirei que se zombe de mim. Outrora,
incitavas-me à vingança. Não me disseste um dia que a melhor maneira de te vingar
consistiria em que eu te trouxesse a cabeça de Ljot e a depusesse nos teus joelhos?
E, dizendo estas palavras, o rapaz saiu da sala. Vigdis exclamou com violência:
Desejaria nunca mais tornar a ouvir o seu nome. Illuge olhou-a e respondeu:
Como deves ter amado esse Ljot para lhe teres tanto ódio ainda hoje! Quase se é levado a
pensar que continuas a amá-lo.
Tenho-lhe tanto amor como ao lobo da floresta. Se um dia nos encontrássemos, um de nós
teria de morrer.
Illuge pensou para consigo que dificilmente se encontraria debaixo do Sol uma ferazinha
daquela força, e perguntou:
Desejarias, então, vingar-te de Ljot?
Sim, é verdade isso.
Nesse caso observou Illuge , acompanharei Uivar à Islândia e velarei por ele como se fosse
meu filho. Mas, para tanto, peço-te que te cases comigo quando nós regressarmos.
Vigdis não respondeu imediatamente, e Illuge insistiu:
Não achas que permaneceste já muito tempo viúva, a sofrer pelo abandono desse homem?
És ainda nova e bela, podes

161

esperar que a vida te dê muitos dias felizes. Bem o sabes. Eu serei bom e cheio de atenções
por ti, e ajudarei o teu filho com todo o meu poder.
Vigdis estendeu-lhe a mão, e ele beijou-lha. Depois, discutiram as possibilidades do
casamento. Vigdis falou naquilo a Uivar, que se limitou a dizer que a mãe era o único juiz
em semelhante assunto.

163
XLI
Mas Uivar não chegou a ir à Islândia. No mar do Norte encontraram nevoeiros e ventos
contrários, depois desencadeou-se uma tempestade tão violenta que os viajantes foram
obrigados a atirar pela borda fora a maior parte da carga que transportavam, a fim de não
naufragarem. Acabaram por perder o leme, e na tormenta que os açoutava tornou-se-lhes
impossível dirigir o barco, o qual, levado ao sabor das vagas, foi dar a uma costa rochosa,
llluge calculou que aquela costa era a da Escócia. Os homens içaram uma vela e, ajudando-
se com os remos, navegaram por entre ilhas, onde a tempestade se fazia sentir com menos
fúria.
À boca da noite, deitaram âncora numa enseada. No estuário da ribeira havia uma praia
arenosa. Fragas altíssimas elevavam-se em toda a volta daquele local. Tão longe quanto a
vista alcançava, não se descobria uma casa. Durante a noite, a tempestade tornou a soprar, a
âncora foi arrancada e o barco encalhou, porém a tripulação pôde alcançar terra firme.
llluge declarou que, se fossem encontrados por gente com direito aos destroços, perderiam
a vida às suas mãos. Opinou, consequentemente, que o melhor seria tentarem reparar o
barco de maneira a pô-lo novamente a flutuar, e fazerem-se seguidamente ao largo.
Trabalharam todo o dia, e ao anoitecer achavam-se prontos para a partida. Mas, como já
não havia alimentos a bordo, Uivar propôs que se fizesse uma incursão pela margem. Para
além da enseada, apercebia-se um vale cultivado. Os náufragos dirigiram-se ali, en-
164

traram na primeira grande quinta que encontraram, expulsaram os habitantes e


tomaram as provisões e vestes de que careciam. Ninguém lhes resistiu, nem eles
pensaram pagar o saque feito.
Ao voltarem para a praia, viram uma multidão de homens no seu barco. Illuge disse
que deviam ser escoceses, vindos por outro caminho e que, pelo seu número,
venceriam os marinheiros que tinham ficado de guarda ao navio.
No mesmo instante, um grupo de cavaleiros desembocou do vale pela entrada que
eles haviam, pouco antes, palmilhado.
Illuge observou:
Que pensas desta aventura, Uivar?
Parece-me que sempre uma pessoa se aborrece menos assim do que a pairar ao largo
e a ser encharcado pelas vagas! respondeu Uivar, rindo. Mas tratemos de subir sem
demora a bordo e de atirar estes intrusos pela borda fora antes de sermos atacados
por forças mais importantes.
Illuge entendia que era mais prático expulsar primeiro os escoceses que desciam o
vale, e tentarem, depois, a escalada do barco.
Os que estão no barco farão o possível para nos cortarem as mãos com os machados,
ao passo que os cavaleiros que vêm avançando para nós não são tantos que nos
infundam temor.
Também os não receio disse Uivar , mas o pior que poderia suceder-nos era
roubarem-nos o nosso barco, pois ficaríamos aqui como numa ratoeira.
Dizendo isto, o moço meteu-se à água com a maior parte dos seus homens.
Protegiam-se com os escudos contra as flechas que lhes atiravam os que se tinham
apoderado do barco. Uivar compreendeu a breve trecho que não era coisa tão fácil
como supôs trepar a bordo. Os escoceses tinham a vantagem de brandir os machados
da parte de cima.
Apesar de os noruegueses se defenderem com bravura, reenviando à origem os
venábulos que eram lançados contra eles, só avançavam a muito custo e, entretanto,
os cavaleiros escoceses já começavam a entrar na água. Uivar e os compa-

165

nheiros estavam cercados pelos inimigos, e, como a água ainda apenas lhes dava
pela cintura, lutavam duramente. Então, Uivar confessou a Illuge:
O teu conselho era bom, pai adoptivo.
Vales bem por dois homens, Uivar respondeu Illuge , e seria muito lastimável que
Vigdis perdesse um filho tal como tu.
Assim dizendo, Illuge atirou-se contra o flanco do barco. Próximo da pavesada,
achava-se um homem de elevada estatura, de cabelos ruivos, que era o chefe do
bando que se apossara do navio. Illuge atirou-lhe com o seu escudo e, num salto,
agarrou o escocês pelas pernas. Este último deu-lhe uma machadada na cabeça. Os
dois homens rolaram por cima da borda do barco, e Uivar matou o chefe dos
assaltantes, ao mesmo tempo que, dentre os restantes, desorientados, uns recuavam e
outros se atiravam à água. Deste modo, muitos dos noruegueses conseguiram trepar
até ao convés. Uivar foi o último a subir, porque queria içar Illuge para bordo. Mas
este disse-lhe:
Isso já não servirá de nada. Trata de te salvar tu próprio. Gostaria que saudasses tua
mãe por mim, e que ela soubesse como perdi a vida.
Será com grande desgosto que ela me verá voltar sem ti, Illuge.
Uivar conseguiu escalar os paveses da balaustrada de resguardo e os seus homens
ajudaram-no a içar Illuge para bordo, mas este tombou no convés assim que ali
chegou. Estava morto.
Uivar achou-se a bordo com treze homens, todos mais ou menos feridos. Os
escoceses eram mais de cinquenta, e aglomeravam-se em torno do barco. Enquanto
uns vibravam machadadas no costado do veleiro, dando passagem à água que lhe
penetrava em ondas no interior, os outros protegiam os companheiros com os
escudos e atiravam nuvens de flechas sobre os noruegueses,
Uivar distinguiu naquele instante um grande navio que entrava por entre as ilhas e
foi deter-se junto do seu barco. Ao mesmo tempo o rapaz gritou para os
companheiros:
166

A nossa expedição durou pouco, mas devemos estar satisfeitos com o trabalho feito esta
tarde. Dez escoceses acabavam de tombar sob os seus golpes.
O navio desconhecido lançou âncora, e a equipagem saltou para bordo do barco de Uivar. À
frente vinha um homem abaçanado, de elevada estatura, que atirou uma corda sobre os
paveses e subiu a bordo, correndo para o mastro contra o qual se apoiava Uivar.
Ao acercar-se, o homem gritou em norueguês:
Sabes bater-te admiravelmente, jovem senhor, e foi uma sorte termos podido vir em socorro
de homens como tu e os teus.
Momentos depois, os seus homens enchiam o barco de Uivar, e as coisas tomaram outro
aspecto. Os escoceses saltaram ao mar para alcançarem a margem, mas poucos foram os
que lá puderam chegar.
Terminado o combate, o estrangeiro atirou os escoceses mortos pela borda fora, e tentou
rebocar o barco de Uivar. Mas viu-se logo que o veleiro sofrera avarias demasiadamente
grandes e que não poderia aguentar-se no mar. O desconhecido pediu então a Uivar e aos
seus homens que se recolhessem a bordo do navio, e, concluído o transbordo, desfraldaram
as velas e navegaram para o largo. Favorecia-os naquela altura uma brisa propícia, pois a
tempestade acalmara.
O desconhecido mandou tratar dos ferimentos de Uivar e dos companheiros, e pediu que
lhe descrevessem toda a batalha. Declarou chamar-se Uspak, que nascera na Islândia, mas
que naquela ocasião vivia no Northumberland. A sua tripulação compunha-se de
noruegueses e de dinamarqueses estabelecidos igualmente na região que tinha citado.
Quando veio a noite, lançaram âncora num canal e foram-se deitar. Uspak e Uivar
partilhavam o mesmo beliche sob o convés. Uivar não conseguia conciliar o sono, porque
os ferimentos enchiam-no de dores.
Uspak falou-lhe, então, e disse:
Lutaste como um valente, Uivar, e por certo vens de boa casta. Onde é a tua casa na
Noruega, e quem é teu pai?
Uivar respondeu:

167

Sou da região de Vingulmark. A herdade onde vivo tem o nome de Vadin. Fica perto de
Folden.

Uspak voltou-se bruscamente para o companheiro:


E teu pai? Como se chama teu pai? Uivar esclareceu:
Não devo ocultar-te, senhor, que sou bastardo. Por isso, uso o nome de minha mãe,
Vigdisson: Uivar Vigdisson.
Uspak ficou longo tempo silencioso, e duas ou três vezes pareceu querer reatar a conversa,
sem no entanto se decidir a fazê-lo. Uivar não deu por tais perplexidades. Por fim, Uspak
disse muito baixo:
Que idade tens, Uivar Vigdisson?
Completarei dezoito anos no início do Verão.
O desconhecido calou-se, e só depois duma longa pausa acrescentou:
Tua mãe ainda vive? Não se casou, Vigdis de Vadin? Uivar respondeu que sua mãe se
conservara só, e Uspak tornou:
Gostaria que me dissesses mais alguma coisa a respeito de tua mãe. Deve ser uma mulher
de valor, como há poucas, a que soube educar sozinha o homem que tu és. Dize-me, tua
mãe ama-te muito?
Uivar informou então:
Quando cheguei aos quinze anos, ela deu-me Vadin e metade dos seus restantes bens, para
que ninguém pudesse zombar da pobreza e da fraqueza dum filho natural. Mandou
desbravar para sua própria moradia um terreno florestal, e construiu ali um solar a que deu
o nome de Berg. Continua, porém, a habitar Vadin. Tens razão dizendo que é uma mulher
invulgar, não creio que tenha igual no mundo e, graças a ela, não sofri com a falta de meu
pai.
Uivar contou mil pormenores sobre a pessoa e carácter da mãe e, quanto mais ele dizia,
mais o interlocutor queria ouvir. Soube assim o que se passara no momento da morte de
Gunnar e da vingança de Vigdis. Uivar narrou-lhe tudo. Daquele modo se passou metade da
noite para os dois homens, um falando, o outro escutando.
168

Uma vez terminada a narrativa de Uivar, Uspak disse-lhe:


Deves uma gratidão infinita a tua mãe; ela merece que a estimes e a louves mais do que
tudo no mundo. Não tem igual, quer-me parecer, pela coragem e pela inteligência, e
nenhuma mulher mostrou querer mais a seu filho do que ela.

É verdade, e espero encontrar-me um dia em circunstâncias de poder compensar a sua


bondade para comigo.
Uspak acrescentou ainda:
Perdeste o teu barco e os teus bens, mas, se quiseres passar o Verão junto de mim, não
voltarás empobrecido para a Noruega este Outono. Serás dono deste barco em sociedade
comigo, e metade da parte do chefe reverterá em teu benefício.
Uivar agradeceu-lhe vivamente, mas pouco depois disse que tencionava ir primeiro à
Islândia.
Tens lá algum negócio a tratar? perguntou Uspak. Uivar volveu:
Talvez tu, que vens da Islândia, conheças um homem chamado Viga Ljot Gissursson, de
Skomedal?
É com ele o negócio que tens a tratar? disse Uspak no mesmo torn anterior.
É a ele que desejo ver.
É talvez um amigo de tua mãe?
Não é por certo um amigo, e nós nada de bom esperamos dele. Mas gostaria de saber como
me acolheria, porque se diz que é ele o meu pai.
Seria um homem bem singular disse Uspak, com um sorriso se não se alegrasse por ver
um filho tão belo e corajoso como tu, e é impossível que tenha esquecido uma mulher como
tua mãe.
Ele nunca tentou saber de nós disse Uivar e consta-me que tem mulher e filhos na
Islândia. Mas desejo muito ir vê-lo da parte de minha mãe, a quem ele seduziu e
abandonou.
Uspak explicou, após uma pausa:
Ljot já não está na Islândia. Ouvi dizer que ele deixou a ilha há muitos anos, e sua mulher e
os filhos morreram.
Ele era teu amigo?
Não, não foi melhor amigo para mim do que para tua mãe.
169

Uivar, fatigado, adormeceu.


Horas depois, em dado momento, o outro aproximou-se dele, e pôs-lhe a mão no rosto.
Uivar abriu os olhos. Uspak tinha aberto a vigia e o sol da manhã incidia em ondas sobre o
rapaz. Uspak, inclinado sobre ele, olhava-o.
Adormeceste, Uivar disse e vim ver como te encontravas, mas torna a deitar-te e dorme,
porque um pouco mais de repouso só poderá ser-te útil.171

XLII
Uivar conservou-se junto de Uspak até quase ao fim do Outono, e, durante aquele período,
realizaram com os «vikings»1 dinamarqueses incursões nas costas marítimas dos povos de
Inglaterra, da região dos Kinnmare, e da França, amontoando assim grandes riquezas. Uivar
Vigdisson demonstrou sempre em tais razias grande coragem, e isto deu-lhe largo renome.
No Outono, Uspak e Uivar estiveram uma temporada em casa de Jarl Sigvard, no
Northumberland. Era um amigo de Uspak, e dispensou magnífico acolhimento a Uivar, a
quem ofereceu ricos presentes, decerto influenciado pelas referências do seu amigo
navegador.
Numa noite em que estavam reunidos na habitação de Uspak, este perguntou ao jovem
companheiro:
Desejas realmente ver teu pai?
No tempo em que eu vivia em casa respondeu o rapaz era esse o meu maior desejo. Sentia-
me profundamente infeliz por ser um bastardo, e pensava que valia menos que os outros
que podiam dar-se a satisfação de respeitar e honrar os pais. Cismava constantemente em ir
à sua procura e em exigir-lhe reparações por todos os danos que causou a minha mãe e a
mim, e pela injustiça que lhe fez sofrer.
Pode muito bem ser que o encontres um dia disse Us-
1. O nome de «vikings», segundo alguns eruditos, não tem qualquer significado racial, e designava apenas, em acepção de classe, os
«comerciantes e navegadores» escandinavos. (N. do T.)

172

pak em voz baixa. Mas que sucederia se ele te recebesse com ternura, e exultasse
com o facto de ter um filho como tu?
Não teria nada que imaginar-se merecedor de encómios por isso, e eu não lho
agradeceria exclamou Uivar. Não lhe devo mais nada, que eu saiba, além da minha
vida. E arrisquei com bastante frequência esta vida, pelo que não lhe ligo grande
importância. Aprendi a teu lado que podia passar sem ele, e é a ti que devo esta
convicção, tantas são as tuas bondades para comigo, Uspak. Não necessito de meu
pai, nem do seu carinho, e pouco me importa que ele seja ou não um miserável.
Uspak escutava, com a cabeça oculta entre as mãos. Ao fim de momentos,
perguntou:
E tua mãe? Que diria ela se teu pai, tendo ouvido falar de ti, fosse a Vadin pedi-la
em casamento?
A falar verdade, creio que perderia o tempo, dirigindo-lhe tais interrogações. Um
dia, minha mãe declarou-me que só considerava uma justa reparação ter a cabeça de
meu pai, degolado, entre as suas mãos. Mas, em regra, ela nada dizia a respeito dele,
e, quando eventualmente isso sucedia, ficava depois triste e melancólica por longo
tempo. Devo dizer, não obstante, que minha mãe não concordou com a minha ida à
Islândia em busca do meu progenitor.
Uspak mantinha-se sentado na mesma atitude, e por fim observou:

É bem duro o que acabo de te ouvir, Uivar! O rapaz ripostou:

Também foram bem cruéis as condições de vida que ele impôs a minha jovem mãe,
quando se foi da região e a abandonou com um filho dele nas entranhas. Além de
que, nunca mais procurou informar-se a respeito dela.

Mas sabes, com certeza, que ele nunca procurou notícias a seu respeito?

Minha mãe, pelo menos, repetiu-me várias vezes que ele era um homem mau e sem
coração.

Essas palavras, vindas dum filho, são na verdade duras, Uivar suspirou Uspak.
173

Não sei dizer outras respondeu Uivar, rindo talvez por me parecer com ele.

Uspak olhou-o sem responder e não falaram mais de Ljot, mas Uspak man teve-se
pensativo e taciturno naquela noite,

Antes de se ir deitar, o companheiro de Uivar tirou do cofre um manto de seda


vermelha bordado a fio de oiro e entregou-o ao rapaz, dizendo:

Faço-te presente dele. Uivar aceitou e agradeceu-lhe a dádiva.

Pelos fins do Outono, quando Uivar manifestou vontade de regressar a casa, Uspak
brindou-o com um navio completamente aparelhado, e deu-lhe ainda opulentos
presentes, entre eles, em sinal de amizade, um manto de seda verde com fivelas de
oiro e forrado com uma pele felpuda preciosa.

Em troca, Uspak pediu a Uivar que lhe restituísse um velho manto de seda vermelha
que lhe havia emprestado.

Uspak agradeceu ao seu anfitrião todas as provas de estima que lhe dera, e pediu a
Uspak que, dentre a presa acumulada por ele próprio no Estio, escolhesse o que mais
lhe agradasse.

Tenho maior soma de bens do que preciso respondeu Uspak , mas ser-me-ia grato
que me oferecesses o bracelete que tens no braço esquerdo, como lembrança tua.

Uivar tirou do braço a sua argola de oiro, e deu-a a Uspak, dizendo:

Não tem grande valor. Uso-o, porque foi minha mãe que mo deu, mas é um objecto
excessivamente medíocre para ser oferecido, e peço-te que escolhas outro qualquer
mais valioso.

Não quero mais nada respondeu Uspake o que me deste tem grande valor para mim
por ser o que trazias no dia em que tão valentemente te defendeste no estuário
escocês.

Uivar disse, então:

Certamente Vadin não é tão atraente como o domínio de Jarl. Mas dar-me-ás grande
alegria aparecendo por lá e aceitando a minha hospitalidade em casa de minha mãe.

Não deixarei de ir visitar-te, podes estar certo disso, e não tardará muito que não nos
tornemos a ver. Eu iria a Vadin ainda mesmo que não mo pedisses.
174

Dizendo estas palavras, Uspak abraçou e beijou Uivar, e desejou-lhe boa viagem.

O moço fez-se de vela para a Noruega, e quatro dias depois entrava no golfo de Folden.

XLIII
175

Vigdis sentiu enorme alegria tornando a ver o filho, e não se cansava de lhe ouvir contar as
aventuras. Uivar falava principalmente de Uspak, que, na sua opinião, era um homem
extraordinário e o melhor dos amigos. Vigdis declarava com frequência que seria para ela
uma grande honra receber a visita de Uspak, se bem que, acrescentava, nunca saberia
agradecer bastante ao homem que lhe salvara a vida do filho e lhe dispensara tantas
bondades.

Chorou muito a morte de Illuge e realizou uma cerimónia fúnebre em sua honra,
prometendo que cuidaria da educação de Olav e Ingebjorg, os filhos de Illuge, como se
fossem seus. A partir daquele momento, os dois rapazitos passaram a viver em Vadin. O ano
estava no fim, e ia celebrar-se a festa do Natal. Durante a noite comemorativa do
nascimento de Nosso Senhor, os habitantes da região dirigiram-se à capela para assistirem à
missa. Vigdis e Uivar também lá compareceram, tendo saído de Vadin a cavalo, seguidos
duma multidão de cavaleiros. Naquele ano caíra muita neve antes do Natal, fazia muito frio
e a Lua cheia brilhou durante as festas. O luar era tão luminoso que a igreja pareceu
obscura a Vigdis quando ela lhe transpôs o limiar com o filho, a despeito dos círios que
brilhavam diante das imagens santas.

O padre cantou numa bela voz ante o altar, e os meninos de coro baloiçavam os turíbulos,
que espalhavam um odor agradável. As pessoas que entravam dobravam o joelho e
persignavam-se com água benta, murmurando orações.
176

Quando Vigdis ergueu a cabeça e se levantou, reparou num homem que se encontrava ao
fundo da capela. Abrigava-se numa capa escura, que segurava por baixo do manto, e estava
um pouco inclinado para a frente, de modo que Vigdis não lhe via do rosto senão os olhos
sob a cabeleira negra que lhe caía sobre a fronte. Mas adivinhou no mesmo instante que
aquele homem era Ljot. Os olhos dele fixavam-na insistentemente, e, quando ela encontrou
o seu olhar, viu-lhe tremer as mãos a ponto de as deixar pender ao longo dos flancos.
Estava pálido como um defunto.

Vigdis pôs-se a tremer, por seu turno, e foi-lhe necessário encostar-se ao umbral da porta.
Parecia-lhe que o solo lhe oscilava sob os pés. Já não era o chão da capela, mas um rio
vermelho que deslizava por entre a assistência. Diante do altar estendia-se um lago de
sangue. De súbito, Uivar ergueu-se e, inclinando-se diante do forasteiro, estendeu-lhe a
mão, sorrindo, cheio de prazer. Vigdis teve imediatamente a percepção de que Ljot havia
adoptado o nome de Uspak.

Quis avançar pela igreja, mas as forças faltaram-lhe. Arrastou-se ao longo das paredes,
segurando-se aos balaústres. Chegada a uma reintrância do muro, tentou ajoelhar-se, mas as
mulheres que ali estavam afastaram-se para lhe abrirem passagem na direcção do altar.
Voltando-se, então, viu Ljot, que continuava de pé junto da porta e que não cessava de a
fitar. Uivar achava-se ao lado dele. Vigdis deu ainda alguns passos e caiu diante do
santuário, ocultando o rosto com as mãos e descansando a cabeça de encontro ao muro.

Enquanto o cântico religioso se elevava e diluía à sua volta e temendo o encontro iminente
que a enchia de terror, sentia-se percorrer de estremecimentos gélidos ou febris. Parecia-lhe
que fora na véspera que se tinham encontrado pela primeira vez, e tudo que se passara entre
eles surgia-lhe na memória como no primeiro dia. Os sentimentos, que nela se
hipertrofiaram com o tempo, foram levados como a floresta e a vegetação da montanha é
arrastada pela avalanche: o rochedo fica nu. Vigdis obteve a certeza de que, após tantos
anos, não cessara de esperar uma solução para o drama que entre ela e Ljot se desenrolara.

177

Depois, manteve-se acabrunhada diante do altar, sentindo aumentar o pavor por ter de falar
àquele homem. Havia uma abertura na parte inferior da parede, perto do lugar onde se
ajoelhara.

Tinham retirado o tapume de madeira daquela exígua porta. Vigdis via cintilar a neve no
exterior e ouvia o nitrir dos cavalos que faziam ressoar os cascos das patas no solo. Então,
sem forças para continuar ali, ergueu-se a meio do ofício divino e fugiu da igreja.

A Lua vogava muito alto no céu. Vigdis correu sobre a neve para o lugar onde tinham
amarrado os cavalos. Soltou o que lhe pertencia e conduziu-o até à paliçada do cemitério.
Mas foi alcançada por dois homens vindos do templo com uma tal precipitação que lhe
deixaram a porta aberta. O brilho das luzes das velas e o som dos cânticos jorraram no
exterior com eles.

Ljot segurou o cavalo de Vigdis pela rédea, no momento em que a mulher, desorientada, ia
fugir a galope, e rogou:

Concede-me uns momentos de atenção, Vigdis. Ela olhou-o do alto da sela, e retorquiu:

As tuas malfeitorias são agora tão numerosas, que se tenha tornado necessário ocultares o
nome?

Antes de Ljot poder responder, ela fez recuar o cavalo tão bruscamente que o homem
largou a rédea do animal.

Vigdis partiu na direcção do norte, fazendo galopar a montada até ao limite das suas forças.
Chegada a Vadin, não se deteve, descreveu uma curva e continuou o galope até à sua
vivenda de Berg. A casa era apenas habitada por um feitor, a mulher deste e alguns servos.
Vigdis penetrou na sala quase vazia, porquanto as edificações haviam sido concluídas
pouco tempo antes. O mobiliário compunha-se somente de bancos em redor da parede e
uma mesa. Vigdis tratou de ir acender o lume na lareira e de barricar a porta da sala. Passou
a noite de Natal completamente sozinha.
XLIV
179

Após a fuga brusca de Vigdis, Ljot e Uivar ficaram um momento a segui-la com a vista.
Ljot abraçou o filho, osculou-o na fronte e disse:

Que Deus te abençoe, meu querido filho, porque não sei se nos tornaremos a ver ainda.

Uivar beijou-lhe a mão e exclamou:

Não sei o que queres dizer, mas, se verdadeiramente és meu pai, não posso crer que desejes
abandonar-nos.

Ljot respondeu:

Não me atrevo a esperar que tua mãe consinta em me falar, e tu não pronunciaste palavras
excessivamente severas contra teu pai no dia em que evocaste o passado nesse dia eu
queria dizer-te quem era. Depois, pareceu-me que seria melhor que tivesse uma conversa
com Vigdis antes de te chamar meu filho. Mas fixa bem que eu ignorava a tua existência.
Foi quando te ouvi dizer que Vigdis era tua mãe que a luz se fez no meu espírito. Dize a
Vigdis que está bem vingada, visto que é forçoso separar-me de ti. Assegura-lhe, também,
que eu não fui jamais feliz um só dia depois do nosso último encontro.

Uivar suspendeu-se do pescoço do pai e suplicou-lhe que o acompanhasse a Vadin. Sua


mãe não deveria esquecer que Ljot tinha salvo a vida de Uivar, e que lhe dispensara um
auxílio cheio de estima. Ljot acabou por ceder aos rogos do filho, e seguiram nos cavalos
até Vadin, mas não encontraram Vigdis.

Ljot inclinou-se na sela e observou:


180

Bem vês, Uivar, que isso não servirá de nada. O nome de Uspak é realmente o que me
convém, porque nenhum homem agiu com menos argúcia do que eu, e passou demasiado
tempo para poder reparar o mal que fiz.

Uivar desceu da montada e insistiu para convencer Ljot a entrar na casa, dizendo:

Minha mãe foi provavelmente para Berg. Entra, peço-te, meu pai, a fim de tomares algum
alimento e de repousar.

Porém, Ljot mal tocou no repasto, e não pronunciou uma palavra. No dia seguinte de
manhã, Uivar anunciou a intenção de ir a Berg e de falar a sua mãe, enquanto Ljot o
esperaria em Vadin.

Ljot ergueu-se, no entanto, e disse:


É necessário que este assunto termine como parece inevitável; nada poderá modificar o
curso das coisas. Quero falar-lhe, eu próprio, que só este desejo tive durante dezassete anos.

Saiu acompanhado do filho e ambos saltaram para as selas dos cavalos, galopando
seguidamente na direcção de Berg, com toda a celeridade que puderam obter das suas
montadas.

Encontraram a porta da sala barricada, mas Uivar bateu, gritando:

Escuta, mãe, tenho que falar-te de coisas muito importantes.

Vens sozinho? perguntou Vigdis do interior da habitação.

Meu pai está junto de mim respondeu Uivar.

Não quero ouvi-lo.

Mas Uivar insistiu, em voz muito alta:

Exijo-te, mãe, e a ele igualmente, que me digam agora porque não tenho pai. Não me irei
embora, nem permitirei a Ljot que se vá, sem que nos abras esta porta.

Vigdis correu o ferrolho e deixou-os entrar. Os olhares de Uivar iam de um a outro, e disse:

Meu pai tem os cabelos grisalhos, e tu envelheceste, mãe, como se nota pelas rugas que
circundam os teus olhos. Haveis passado por muitas provações desde o vosso último en-

181

contro. Se o que então se partiu pudesse ser reparado, eu seria bem feliz, porque os amo a
ambos com um grande amor. Vigdis ergueu a cabeça:

Os meus olhos envelheceram à força de chorar disse ela , ninguém me fez mal a não seres
tu, Ljot.

Este respondeu:

No entanto, a tua sorte foi bem melhor do que a minha, Vigdis, pois que ficaste aqui com
teu filho. Compreendo bem que não pudesses amar-me depois de haver traído a tua
confiança, mas eu continuava a querer-te. O meu desgosto acompanhava-me todos os
passos dado que não podia ir ao teu encontro.

Vigdis teve um riso duro:

E tua mulher, que diz ela de ti, que vás pelos caminhos do mundo para ver as tuas amantes?
Era a melhor das mulheres e a mais digna de ser amada. Actualmente, já não vive. Foi bem
desditosa na nossa vida em comum. Era em ti que eu pensava incessantemente, e mostrei-
lhe pouco amor. A sua lembrança pesa-me mais do que tudo, porque ela foi privada de toda
a alegria sem ter disso culpa. Podes consolar-te sabendo que estás bem vingada; vi
morrerem afogados dois filhinhos meus, perdi tudo que me era caro, conforme me tinhas
desejado, quando me amaldiçoaste.

Vigdis repuxou com violência o seu manto, cuja fivela se lhe partiu sobre o peito, e gritou:

Que sabes tu, Ljot, da grandeza da minha dor; que sabes tu, meu filho, da paixão com que
aspirei à vingança? Jamais sofreste, Ljot, o que sofri pela minha impotência, vendo crescer
meu filho, na sua semelhança com o homem que eu desejaria ver arrastado e feito em
pedaços por cavalos fogosos. Não foste tu quem correu para a corrente caudalosa do
ribeiro, a fim de te afogares em certa noite fria do Inverno. Não havia, então, para mim
outro meio de me libertar da minha desgraça. Achas que te deve um grande amor o rapaz
que eu dei ao mundo em cima dum montão de pedras na floresta, sem ninguém ao pé de
mim para me dar sequer uma gota de água em meio das dores que me torturavam? Tu
navegavas, entretanto, para regiões
182

longínquas, lamentando veres-te separado de mim. Belo socorro as tuas saudades, não haja
dúvida, quando me trouxeram Gunnar coberto de sangue, ferido de morte, insultado e
escarnecido pela vergonha que lhe fora infligida contra minha vontade. bom socorro o teu
amor pela criança e por mim, quando os inimigos fizeram deflagrar em Vadin o fogo em
que meu pai foi queimado vivo, na noite em que eu, transportando o pequenito, tive de
fugir em esquis para a floresta selvagem onde, expulsada dali pelos lobos, me vi
constrangida a refugiar-me numa cabana de malteses!

«Julgavas, talvez, que me oferecias uma reparação plena e completa na ocasião em que
voltaste a procurar-me para me pedir que fosse contigo para a Islândia. Como não quis
aceitar a tua proposta, casaste-te com outra rapariga cuja beleza e riqueza eram dignas de ti.
Eu, durante esse tempo, para aqui estava, sem poder responder às recriminações de meu
pai, às perguntas de meu filho, que me interrogava a respeito de seu pai, dado que jamais
tive ânimo de falar da afronta que me fizeste. Recompensas mal aqueles que te estimaram,
Ljot, e és certamente o pior e o menos compreensivo dos homens.

O semblante de Ljot pusera-se branco como a neve batida pela borrasca. E só após uma
longa pausa conseguiu dizer:

As tuas palavras são mais cortantes do que a faca com que me golpeaste na ocasião do
nosso último encontro. Eu poderia objectar relembrando-te coisas de que tu só, pela tua
irreflexão e obstinação, foste culpada. Mas já não vale a pena e, para te dar satisfação,
morreria hoje de bom grado. Repito-te, porém, Vigdis, que o peso da minha tristeza não era
menor do que o da tua, porque ignoras a vida desgraçada que pode ter aquele cujo único
desejo é reencontrar um ente querido.
É certo replicou Vigdis que apenas sei do amor o que me ensinaste naquela tarde em que
estivemos no cabeço dos sacrifícios. Desde então, todos os homens que me pediram em
casamento só pavor me inspiraram...

Uivar interrompeu-a:

Como quer que seja, parece que apenas vos haveis encontrado para desdita de ambos... Mas
lembra-te, mãe, de que

183

foi ele quem me salvou a vida. Nunca um pai demonstrou a seu filho maior carinho do que
ele.

Dizendo estas palavras, Uivar rompeu a soluçar.

Vigdis olhou o filho e disse:

E tu não esqueças que, um dia, prometeste vingar-me. Ljot, sem esperar a resposta de
Uivar, disse:

Pensava que seria possível reconciliarmo-nos por causa de Uivar, mas vejo perfeitamente
que não me perdoarás, fiz-te um mal excessivo. Regressarei aos lugares donde venho, mas
Uivar herdará todos os meus bens.

Vigdis exclamou, colérica:

Um dia prometeste-me tudo, e eis que voltas agora para me roubar o que possuo. Entreguei
aos lobos e às águias esta criança que me forçaste a conceber. Os nossos servos
encontraram-na e preservaram-lhe a vida. Mais tarde, tive piedade do inocente, sem defesa,
tal como eu me vi na tua frente. Para salvar o meu filho, acho-me eu própria enferma e
mutilada. Criei-o e amei-o durante dezoito anos. E agora pretendes tirar-mo!

Eu não penso em tirar-to objectou Ljot. É a ti que ele deve seguir, são os teus conselhos
que ele deve escutar, porque não tenho nenhum direito sobre ele, mas podes perfeitamente
consentir-lhe que me estime também. Podes igualmente permitir que eu lhe dê tudo que
tenho de algum valor. E nunca mais tentarei tornar a vê-lo.

Não aceito quaisquer partilhas contigo tornou Vigdis erguendo a mão mutilada e não
quero filho teu. Escolhe, Uivar, aquele de nós dois a quem queres pertencer.

Eu não posso escolher exclamou o rapaz, soluçando.

Nesse caso, escolheste Ljot observou a mãe, dirigindo-se para a porta. Uivar correu,
porém, atrás dela e tomou-a nos braços.
Onde vais tu, mãe querida? Vigdis respondeu:

Não sei. Melhor fora que tu e eu não tivéssemos saído vivos da floresta naquela noite, se
houver agora de me ver só na minha velhice e viver o momento em que me abandones por
184

um estranho. Na verdade, pareces-te com teu pai, e não admira que o escolhas.

Mãe exclamou o filho , bem sabes que cumprirei a tua vontade e que não voltarei a
ver meu pai.

Eu não sei se sou tua mãe suspirou Vigdis. Não se te assemelhava a criança que
concebi no ódio e na dor. Deves ser antes aparentado com Aesa, e terás sangue de
servos. Submetes-te se encontras mais forte do que tu...

Ljot avançou para ambos, e, com voz trémula disse por sua vez:

Sei eu também, porventura, se Uivar é meu filho ou de Kare de Grefsin? Faze o que
tua mãe quer, Uivar!

Vigdis voltou-se vivamente para Ljot, mas este, agarrando Uivar pelo braço, levou-o
consigo apressadamente para o exterior.

XLV
185

Ljot e Uivar marcharam através dos bosques nos cavalos, sem se olharem nem
trocarem palavra. Mas, ao fim de algum tempo, Uivar acabou por dizer:

Certamente nunca esperei uma separação com palavras infamantes, após a vergonha
que infligiste a minha mãe.

Oh! as coisas passam-se como ela quis respondeu Ljot. É natural que se cumpra
agora a sua vontade.

Dizendo isto, apeou-se do cavalo e amarrou-o a uma árvore; depois pegou na sua
espada e no seu escudo, e convidou Uivar a fazer o mesmo. Acrescentou que o
cabeço dos sacrifícios a que Vigdis fizera referência se encontrava perto, e que
podiam efectuar o recontro naquele lugar. Ali ninguém pela certa os perturbaria.
Uivar seguiu-o sem responder e andaram um tracto de caminho sobre a neve.

Chegados ao cimo, Ljot escolheu o local que se lhe afigurou conveniente para o
combate. Atirou a primeira estocada e atingiu o escudo de Uivar. Este exclamou:

Outrora, tive ensejo de te ver esgrimir com mais destreza, Ljot.

Estou cansado e fraco respondeu Ljot , mas tu és novo, e inexperiente num combate
singular, e desta maneira as nossas possibilidades igualam-se. Trata de me atirar
golpes decisivos, porque eu também não te pouparei. Porém, é necessário que este
recontro a que Vigdis nos impeliu se cumpra segundo o seu desejo.

Uivar brandiu a sua arma, ao mesmo tempo Ljot deitou fora


Sígrid Vndset

186

o escudo e pegou na espada com as duas mãos. Entretanto, Uivar atingia-o no ombro
esquerdo e o braço de Ljot pendeu inerte. A violência do golpe obrigou o ferido a
procurar, vacilante, apoio contra uma árvore vizinha. Uivar, vendo o sangue a correr
do ferimento que lhe fizera, largou a sua espada e o escudo, e, muito pálido,
exclamou:

Isso basta. Não continuarei a bater-me contra ti.

Não bastavolveu Ljot, resvalando até ficar de joelhos. Uivar, voltado para ele, com a
vista ofuscada pela luz do Sol

que lhe batia no rosto, não viu bem o que se passava. Ljot tornara a deitar a mão à
espada, apoiou o punho desta contra uma grande pedra, e voltou-lhe a ponta contra o
próprio peito. Em seguida, atirou-se sobre ela num desesperado impulso, e no
mesmo instante rolou sobre a neve.

Uivar correu para ele, soergueu-o, apoiou-o contra um rochedo e depois disse:

Eu não me teria jamais batido contra ti, se não tivesses dito o que disseste em
relação a Kare de Grefsin.

Ljot sorriu na sua agonia, e murmurou:

Era precisamente o que eu previa, e só por essa razão pronunciei tais palavras. Mas
não te aflijas, Uivar. Era preciso que isto acabasse assim. Queira Deus, meu filho,
que não herdes um destino tão inclemente como o nosso. E, agora, faze a vontade a
tua mãe. Há muito tempo que aspiro a repousar a minha cabeça nos seus joelhos.

Poucos instantes depois, dobrando-se sobre si próprio, Ljot morreu.

XLVI
187

Vigdis andava dum lado para outro pela sala. Punha e tirava sucessivamente o
manto. Mas gelava no exterior e a geada era tão forte que se ouvia o sussurro da
queda nas paredes. Desistindo da ideia de sair em busca do filho, decidiu sentar-se
junto da lareira. Mas, de momento a momento, erguia-se para ir à porta olhar o
exterior. Entretanto, ia-se pondo o Sol e o seu disco vermelho esbatia-se na bruma
gelada.
De súbito, viu um cavaleiro que marchava pela orla do bosque e reconheceu Uivar.
Vinha só e avançava passo a passo. Vigdis sentiu tremer os joelhos, e voltou para o
lugar junto do lume.

Não teve ânimo de levantar os olhos quando ouviu o filho abrir a porta. Trazia um
embrulho que deixou cair pesadamente sobre os joelhos de Vigdis, em seguida ao
que, sem proferir palavra, se afastou dela, indo meter-se no quarto, cujo ferrolho
fechou por dentro.

Vigdis conservou-se sentada, pousando as mãos sobre o objecto que lhe repousava
no regaço e que se encontrava envolto num manto de seda vermelha que ela
reconheceu: era o que tinha bordado um dia e que oferecera a Veterlide.

O manto, endurecido pela geada, soltou como que um gemido quando ela tentou
separar-lhe os rebordos para o abrir. Renunciou à tentativa e retomou a anterior
imobilidade. Mas daí a momentos a geada começou a fundir, e do embrulho correu
água e sangue, molhando os joelhos de Vigdis. Esta abriu então o embrulho e viu
que tinha a cabeça de Ljot entre as mãos.
Sigríd Undset

188

Primeiro, distinguiu a nuca, e depois voltou a cabeça para lhe poder ver o rosto. Os
cabelos caídos sobre a fronte estavam colados à pele. Afastou-os e, com uma aba do
manto, enxugou o sangue. Enquanto fazia isto, aflorou com os dedos a boca de Ljot,
que lhe pareceu mesquinha e emagrecida, e lhe sobressaía, violácea, no rosto
bacento. Tentou erguer-lhe as pálpebras e ver-lhe os olhos, mas estavam mortos e
sem expressão.

Recordou-se do instante que passara a olhar o cadáver de Eyolf Arnesson, e de não


ter então sentido qualquer pesar. Mas, quanto mais olhava a cabeça de Ljot, maior
era a tristeza que a invadia. Aquele rosto estava bem envelhecido e marcado pelo
sofrimento. Não encontrava qualquer consolo para a sua desdita naquela mísera
cabeça decepada. Não era para isso que ela tinha sofrido e lutado durante tantos anos
após a morte do pai.

Vigdis tornou a cobrir-lhe o rosto e colocou o embrulho a seus pés. Em seguida


ergueu-se e foi bater à porta de Uivar.

Este não respondeu quando ela o chamou.

Insistiu em pedir-lhe que abrisse a porta, mas em vão, e ante aquela recusa decidiu ir
novamente sentar-se, com as mãos apoiadas nos joelhos ensanguentados.

Veio a noite. Uivar abriu a porta e atravessou a sala, sem distinguir a mãe, pois o
lume estava quase apagado. O moço, que envergava um trajo, de viagem, dirigiu-se
para o pátio da casa. Vigdis levantou-se e seguiu-o. E quando o viu tirar o cavalo da
cocheira e pôr-lhe a sela, aproximou-se do filho.

O luar era muito claro e ela notou naquele instante, com uma acuidade com que
jamais o fizera, a grande semelhança de Uivar com Viga Ljot.

O rapaz estava pálido como um defunto. Vigdis desejava interrogá-lo sobre as


circunstâncias do combate, mas não se atreveu, limitando-se a dizer:

Tencionas partir para alguma viagem?

Sim respondeu o filho.

Vais para Vadin? perguntou ainda.

Sim, mas irei para muito mais longe amanhã, porque não desejo continuar a viver
nestes sítios.

Vigdis ergueu a vista, e acrescentou:


189

Não queres ficar junto de mim?

Mãe, demonstrei-te a minha gratidão pelo teu amor, conforme me tinhas pedido um
dia que fizesse volveu Uivar. Doravante não me seria possível dar-te qualquer
alegria, e melhor é que me deixes partir.

Não fales desse modo suplicou a mãe, que continuou após uma pausa: Se não
desejas tornar a ver-me, eu ficarei em Berg até que queiras, mas não deixes esta terra
em pleno Inverno.

Ser-me-ia insuportável permanecer nestes lugares. Passaram-se neles tantas coisas


cruéis, que a sua lembrança impedir-me-ia de me sentir bem em Vadin.

Vigdis enlaçou nos braços o pescoço do cavalo e amparou-se de encontro ao animal.


Não se atrevia a insistir para reter o filho, mas o coração pesava-lhe no peito como
uma pedra, pois já não duvidava de que a resolução do moço era irrevogável.
Enquanto se apoiava ao animal, lembrou-se de repente da noite em que dera o filho
ao mundo sem ter junto de si nenhum ser vivo a não ser um humilde cavalo a que se
amparara.

Já não gostas de mim, meu filho? murmurou ela.

Gosto respondeu Uivar. Mas agora é necessário que me deixes partir. E após uma
pausa, acrescentou: Peço-te ainda uma coisa. Por amor de mim, esforça-te por fazer
a Ljot um enterro decente.

Prometo fazer o que desejas disse Vigdis. Uivar disse ainda:

Não me agradeças a sua morte, foi ele próprio que se matou.

Já com as rédeas na mão, ocorreu-lhe de súbito inquirir:

Responde à pergunta que te faço, mãe: tiveste tu jamais amor a Viga Ljot?

Vigdis desatou a soluçar e ocultou o rosto no pescoço do cavalo. Depois, disse por
entre lágrimas:

Como poderia eu odiá-lo durante tantos anos se... Ele era, entre todos os homens, o
único a quem eu quereria dar o meu amor, e isto constituiu o meu tormento mais
cruel...
190

Uivar inclinou-se na sela, ergueu o rosto de sua mãe e beijou-a. Então, ela perguntou-lhe:

Voltarás um dia para junto de mim?

Se eu viver respondeu Uivar , voltarei. Mas é tempo de abalar, mãe.

Vigdis largou o cavalo e Uivar deixou-a.

XLVII
191

A partir daquele dia, Vigdis Gunnarsdatter passou a habitar na sua casa de Berg. Mandou
sepultar Ljot Gissursson perto da igreja que mandara construir, e sobreviveu dez anos ao
homem que por amor dela fez da vida um rosário de amarguras até que lhe pôs fim.
Durante aquele período, viveu sempre só e não via ninguém.

Mas no último ano, quando ela adoeceu, Ingeborg Illugesdatter, a quem criara como filho,
veio instalar-se junto dela e ficou em Berg até ao seu passamento. Olav e o irmão,
Ingebjorg, tomaram posse de Vadin após a morte de Vigdis. Esta assim o decidira, mas, no
caso de Uivar regressar, os dois irmãos obrigavam-se a entregar-lhe as propriedades ou a
transferi-las para os seus herdeiros legítimos, se os houvesse.

Contudo, Uivar Ljotsson nunca mais deu notícias. Os habitantes da região de Aslo
concluíram, uma vez que ele prometera a sua mãe que voltaria e nunca mais ninguém soube
dele, que Uivar teria perecido em qualquer ponto do estrangeiro. Olav e Ingebjorg
conservaram Vadin e fizeram amplas dádivas à igreja que se construiu próximo de Frysja
em consequência de ter ardido a capela de madeira. Deram também grandes auxílios para a
igreja, construída de pedra, que se edificou ao norte do grande lago. Foi consagrada a Santa
Margarida e daí em diante o vale tomou o nome de Margretadal. Vigdis foi sepultada perto
desta última igreja.

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