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Narrativa hipertextual:
Uma análise do cinema de David Lynch
UERJ
2007
Filipe Feijó
Narrativa hipertextual:
Uma análise do cinema de David Lynch
Rio, 2006
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FEIJÓ, Filipe
130 p.
Dissertação de Mestrado.
Universidade do Estado do Ri de Janeiro.
Faculdade de Comunicação Social, 2005.
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Filipe Feijó
Narrativa hipertextual:
Uma análise do cinema de David Lynch
BANCA EXAMINADORA
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço a meus pais, o Sr. Fernando Feijó e a Sra. Regina Feijó, pela
paciência.
Em segundo lugar, agradeço ao meu excelentíssimo orientador Prof. Dr.Erick Felinto, pois
busquei um orientador, e, além disso, encontrei um amigo.
Em terceiro lugar, agradeço a Autéris pela ajuda de extrema valia no plano intelectual e
afetivo (“São Salva” forever!).
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Em quarto lugar, agradeço a todos aqueles que colaboraram de uma forma ou de outra para
as investigações aqui presentes: eles sabem quem são.
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RESUMO
entanto, diversas transformações que foram operadas no viés narrativo e nos meios de
cibercultura. Nosso objetivo é pôr foco nas transformações supracitadas, para só então,
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SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................6
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Conclusão..............................................................................................................123
Bibliografia...........................................................................................................125
Filmografia...........................................................................................................127
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Introdução
tinta sobre uma tela que jazia no solo de seu estúdio, uma revolução copernicana no
universo da pintura estava prestes a acontecer. Instigado com este movimento involuntário,
o pintor continuou a repeti-lo, imergindo cada vez mais nestes cosmos que dele próprio
cuidadosamente sobre o cavalete, e trabalhados com apuro e técnica pela mão do artista
através do pincel. Ao deitar a tela no chão, e manipular seu bastão embebido em tinta com a
agilidade e a leveza de um acrobata, Pollock pintou o ar. Ele não inventou novas tintas,
nem uma nova tela. Os meios de que dispunha eram os mesmos. No entanto, com um
visionário. Mas seu gesto já vinha, de algum modo, ecoando pelos séculos. Bem como o da
sua primeira projeção pública paga, bem como quem a executou. Mas o momento preciso
da origem, não, pois as diversas histórias do cinema nos apresentam diferentes narrativas
de origem, que chegam mesmo a retroceder à antiga caverna platônica. Mídia de massa, o
muitas questões são suscitadas. Na ordem do dia, não podia deixar de constar o debate
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visualidade e hiperestímulo são alguns dos temas recorrentes deste momento. As imagens
de síntese instauram um novo universo a ser analisado, na medida em que toda uma
Contudo, curiosamente, as efetivas quebras de ordem narrativa ainda têm sido muito
novamente. Textura, som, movimento, cor. O ideário de nosso universo imagético exauriu-
se em torno de algo que já vem ficando claro há algum tempo: cada vez mais, o impossível
contrai-se nas possibilidades do áudio-visual. Mas, se tanto se pôde fazer pela “aparência”
e som? Talvez, a impressão mesma de que o debate sobre a narrativa no cinema tenha
minguado venha de uma exacerbada atenção dada a este quesito em sua primeira fase. A
povoou o cinema de tal forma, que dentro em pouco haveria de ser criado um gênero
voltado só para ele. Lá, os exercícios da imaginação, técnica e (porque não?) da predição,
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tornariam-se marcas. Não só como tema, portanto, a tecnologia entra em cena nos filmes de
ficção científica. Ela, enquanto meio de produção, ajuda a criar a ilusão de outras
técnicas forem a ele acopladas. As novas tecnologias ajudaram ainda mais aquela mídia que
tinha como grande trunfo a arte de criar ilusões. A computação gráfica visa tornar mais
palpável aquilo que tem ares de quimera. Desta maneira, os limites entre o imaginário e o
real são forçados. O que estas simulações de universos tridimensionais acabam por
produzir é uma nova forma de representar determinadas realidades. Crê-se que essa nova
forma significa uma completa revolução nos modos de interação com o espectador. Não
obstante, o modo pelo qual essas realidades são apresentadas dentro de uma narrativa
películas com animações inseridas. Nas animações em 3D podemos até argumentar sobre
em seu uso. Mesmo com os recursos atuais, tais questões ainda estão freqüentemente
amarradas a um paradigma industrial. A forma com que os enredos são “contados” acaba
Não é a intenção deste trabalho, argüir somente sobre o cinema digital – aquele
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pode abarcar uma nova articulação narrativa. Que ligação esta narrativa possui com os
novos meios? Somente os meios digitais podem produzi-la? Para ajudar-nos nessa
pesquisa, selecionamos o cineasta David Lynch, cuja obra (ou pelo menos parte dela)
cremos trazer uma configuração análoga à do hipertexto e dos princípios narrativos nele
hipertexto que toma corpo plenamente nas mídias digitais, e que apresenta enormes
principais é o descentramento. A world wide web, por exemplo, não tem um centro, um
eixo principal que ser percorrido para que possamos experimentar com plenitude sua
essência. Este fato gera implicações temporais, pois se não somos obrigados a mergulhar
num fluxo, numa ordem temporal ou espacial pré-estabelecida, a noção de começo, meio e
fim, aristotelicamente falando, perde o sentido. Os caminhos percorridos pelo usuário vão
A partir da hipótese de que o hipertexto pode ser entendido como uma categoria de
estudo. Em seus filmes, ele seria capaz de gerar, por exemplo, um efeito análogo ao do
começo, meio e fim da projeção. Ora, se nossas especulações se derem nesses termos,
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indicando, cronologicamente, seu início, meio e fim. A questão aqui é a possibilidade de
escolhas dentro de um sistema a ser acessado. O grau de “mobilidade” apresentado por este
sistema. É claro que o cinema não possui os recursos próprios de um computador. Apenas,
reflexos destes. Quando se trata da falta de centro num filme, nos referimos a instabilidade
perfeitamente nutrida e acomodada. Mais do que isso, podemos chamar aquele que assiste
ao filme de usuário, no momento em que ele poderá reorganizar a trama de acordo não só
com seu pensamento, mas também seu desejo, por meio de sensações e emoções. Ao invés
de pensar um cinema que recorre ao lúdico e ao fantástico através de uma nova ordem
imagética e sonora, gostaríamos de, em primeiro lugar, pensar na trama, na rede que
sustenta estas imagens e sons, para só então analisa-los sob a luz desta nova perspectiva.
Três capítulos irão compor esta dissertação. No primeiro, uma breve genealogia das
com esta ao longo do século XX. Paralelamente, serão caracterizados os cenários sociais e
culturais que englobam estes processos, e suas possíveis influências sobre os mesmos. O
segundo capítulo abrange, em sua análise, um período recente na história das mídias. O
digital, entendido não apenas como algo que reformulou nossas maneiras de comunicar,
mas também, por extensão, nossos próprios modos de vida, será objeto de esmiuçada
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novas mídias, bem como a estrutura hipertextual, sobre a qual estão alicerçadas. O estudo
desta vez, específica do meio cinematográfico. Sem dúvida, esta narrativa se estruturaria
em moldes análogos (ou como uma metáfora epistemológica 1) aos do hipertexto presente
nas novas mídias. No terceiro capítulo, veremos como esta chamada narrativa hipertextual
terá reverberações na obra do cineasta David Lynch. Cremos que, pelo menos parte dela,
associações, devires. Com isso, a obra de Lynch se ofereceria a nós como fonte de
possibilidades oferecidas pelas novas mídias. Pois sem esses outros modelos e
pensamos, é a grande questão que se coloca a nós neste momento de consolidação de uma
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O conceito de “metáfora epistemológica” aparece em Obra Aberta, de Umberto Eco. Eco argumenta que,
com freqüência, as obras de arte atuam na cultura como metáforas epistemológicas das descobertas científicas
(ou tecnológicas) de uma época. Desse modo, certas experiências participativas das artes das vanguardas
estariam metaforizando princípios de instabilidade e participação do observador tipificados na moderna física
quântica. Cremos que algo semelhante se dá na obra de Lynch em relação a certos paradigmas tecnológicos
contemporâneos (como o hipertexto eletrônico). Cf. Eco (1986 ).
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1.A construção e a desconstrução da narrativa cinematográfica
1.a Gênese
concepção de que seu início ocorre com a célebre exibição dos irmãos Lumiére em 1895,
Muybridge e Albert Londe. Ou ainda pelo fenaquisticópio, de Joseph plateau. Seja através
teatros de luz, de Giovanni Della Porta. O fato, é que podemos continuar nossa especulação
até chegarmos à época das cavernas, para percebermos que sua gênese converge, em certos
aspectos, com a gênese da representação. Não é a toa que o artifício cinematográfico já foi
guia a título de análise. Será-nos vantajoso situar uma França cultural e economicamente
hegemônica, tal qual são os EUA hoje, como o epicentro do que seria, não apenas, o
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Rasgando a cortina do silêncio e da quietude, uma rajada de sons heterogêneos,
projetados alhures, atinge os tímpanos dos presentes. Metralha. Ruídos, barulhos, alguns
reconhecíveis, outros não, espantam, atrapalham, encantam. Compõem, tal numa sinfonia,
pelo ambiente. Explodindo, pululando em todos os cantos, num desfile pulsante, deslizando
sobre as retinas. Podemos pensar que a descrição anterior, refere-se a algum tipo de
primórdios, não sem um toque poético. Descrita dessa maneira, o espaço que se forma entre
repetitividade e alienação. Na medida em que seu trabalho consistia num gesto, cuja
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proliferação de toda sorte de técnicas, mecanismos, aparatos, tem profundo impacto na
população urbana. É nesse contexto industrial, maquinal, que surge, em sua forma icônica,
o cinema, ele próprio máquina, técnica e posteriormente, indústria. Para que não
adentremos numa discussão que está longe de ter-se dado por acabada, consideraremos o
momento inaugural do cinema como sendo a primeira projeção pública, paga. A dos irmãos
este plano inaugural, podemos observar o registro daquilo que, em síntese, representa um
da própria morte. De um sistema que, com agressividade, avança sem pedir licença,
hiperestímulo. Por um lado, as atrações da virada do século XIX para o XX, servem como
uma descarga, uma válvula de escape para as tensões, o perigo, e a própria estupefação dos
real. No entanto, o excessivo estímulo gerado no ambiente urbano acaba por esgotar os
sentidos, por exauri-los, de modo que necessitem cada vez mais de choques e adrenalina. É
um jogo de tensão e alívio em proporções cada vez maiores. Ainda nos dias atuais, a
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É o grotesco que dá o tom ao engatinhar, aos primeiros vestígios daquilo que
posteriormente viria a ser chamado de cinema, e cujo conteúdo possuía, ainda, algo de
estranho, excêntrico, selvagem. Algo que ainda não havia tornado-se domesticado por
forças moralizantes. A expressão popular domina esta fase embrionária, dando vazão a
manifestações que nos remetem aos rituais e festividades medievais. Na praça medieval,
encontramos uma ambientação cuja atmosfera ainda não foi plenamente tomada pela
medida da fé. Temos ainda o corpo embebido na imanência, na materialidade de uma práxis
constantes ameaças aos valores do poder vigente, pois relativizavam sua eficácia como
referencial absoluto. Tal como no imaginário da Idade Média, vemos surgir nas casas de
variedades do século XIX toda uma série de atividades pagãs, que arranhavam, através do
prazer, a formalidade da alta cultura. Qualificados como afronta, mas ainda assim legais,
o cinema está longe de ser uma atração principal. Até pelo motivo da baixa duração dos
filmes. A mídia que viria a ser sinônimo de entretenimento, era exibida no intervalo de
atrações ao vivo, como shows cômicos, de dança, quadros picantes ou peripécias perigosas,
aos pratos principais. Nos circos e nas feiras, ele circulava juntamente com a mulher
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a projeção do movimento gravado na película causava espanto. Sem muito crédito como
material a ser vastamente explorado, e vivendo, ainda, à margem, fará das trevas seu
imigrantes europeus, algo que não é de se surpreender, já que os índices de imigração nesta
época eram altíssimos. Impedidos pela barreira da língua inglesa de assistir a outras formas
movimento. O assim chamado cinema das atrações, que vigora até 1908, era para a
audiência uma experiência fragmentária, mas não isolada. Parte de um contexto maior, que
envolvia uma série de atrações de duração curta ou mediana, tanto esta como as outras
formas espetaculares eram um reflexo da experiência urbana. Aqueles que saiam em busca
constituem as duas faces de uma mesma moeda. O que os primeiros anos do cinematógrafo
irão captar, para posterior exibição, são seqüências sem narração. Chamemo-las de
atrações. Não há narração no trem que se aproxima dos irmãos Lumiére. Nem nos brica-
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Aparelho individual, com visor, para a apreciação de filmes curtos.
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braques e prestidigitações de Meliés. Neste último caso, é apresentada na tela uma
disposição ainda bastante teatral. Num plano fixo, Meliés disporá de um cenário que servirá
de fundo. Mais a frente, ele poderá executar suas acrobacias, perseguições e números de
narrativo clássico. Por enquanto, o que se tem são trucagens obtidas a partir do corte e da
colagem. O próprio Georges Meliés tem creditado em seu nome o primeiro efeito especial
da história do cinema. Com sua câmera estacionada num dos lados de uma rua, o diretor
filmava, do outro lado, um grupo de pedestres, quando naquele instante é requerida a troca
do rolo. Executada a operação, Meliés continuou filmando. Quando as duas partes, o final e
o início dos rolos, são coladas, o efeito que se obtém é o do desaparecimento. Assim, ele
prestidigitador. O corte surgia aí, como um efeito, uma brincadeira. E não em prol da
narrativa.
Nos primórdios, uma projeção caracterizada por imagens esparsas era bem aceita
pelo público. Primeiro, pela novidade que isso representava. Segundo, porque as exigências
em relação às possibilidades do novo meio não eram tão grandes. Hoje, não. Se tomarmos
como exemplo, nos dias atuais, um filme de ação, perceberemos que a narrativa está a
serviço das atrações. Mas é fundamental, num filme comercial, a presença de um fio
narrativo condutor, para que o público seja envolvido. Mesmo que este fio seja tênue. Se
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pudéssemos medir, num filme massivo, as porções referentes à narrativa e às atrações,
grande. Quase como uma desculpa, a parte narrada aparece intercalada a cenas de
este aparato, e os nickelodeons 3, de maneira geral, era necessário começar a inventar novas
estratégias de investimento.
Estigmatizados por uma crônica má fama e alvos de duras críticas por parte de
forças civis e religiosas, esses locais começaram a sofrer severas interdições promovidas
pelo governo americano. Fosse pela alegação de precariedade nas condições de segurança
(algo que não deixava de ser verdadeiro, vide o número de acidentes por fogo com as
películas à base de nitrato de prata), fosse pela proibição de bebidas alcoólicas no local, ou,
ocular que dará engendrará um gênero chamado filme de voyeurismo), pela individualidade
proporcionada por sua fruição, também irá contribuir para a ainda incipiente formação do
modelo narrativo clássico. Ele chama a atenção, em sua própria estrutura, para dois
elementos que, hoje, chamamos de câmera subjetiva e primeiro plano. Como num
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Casas de atrações, cujo preço de entrada era um níquel.
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microscópio, o recorte e o enquadramento ampliado das imagens estavam justificados no
visor deste aparato ótico. Bem ao gosto voyerístico, ele exibe imagens de belas garotas (as
vezes, “recortadas” e mostradas do busto para cima, como num primeiro plano)
formação de um novo público. Mais acético e familiar. Menos dominado pelos instintos, tal
como costumava florescer ali. Mas, como atraí-lo, mediante a péssima reputação das casas
animadas pelo projetor? Se o alvo a ser atingido era a burguesia,, medidas voltadas para
denominado Motion Pictures Patents Company (MPPC). “ Mas só a censura não era
suficiente; ela estabelecia apenas o que não se podia fazer, mas o grande problema era: o
que se deve então fazer?” (MACHADO, 1997, p.83). Por que não tentar o drama burguês?
Afinal, o que seria de Narciso, em sua paixão, se não fosse sua imagem espelhada? O
transcendente desta última, habitada por deuses e heróis. A realidade romanesca, tornada
poesia que haviam perdido. “ O tema básico do romance seria o conflito entre a ´poesia do
século XIX, o romance burguês passa a ser o principal referencial para as tentativas de
fazer o cinema ingressar entre as chamadas belas-artes. Tanto que diversos autores do
século XIX (Tolstoi, Dickens, Poe) são levados a tela por diretores como D. W. Griffith.
“Claro que toda essa diversidade de talentos era traduzida por ele nos termos de sua
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formação protestante e vitoriana: nas mãos de Griffith, todo romance, acaba virando uma
deste diretor, com O nascimento de uma nação (1914) e Intolerância (1916), algumas
tentativas foram feitas em direção a essa chamada credibilidade do cinema. Ele próprio, na
eficazmente, do que o chamado film d’art. Esta manifestação, surgida em 1908, em Paris,
com a companhia Films d’art, contava com a apresentação de artistas de alto quilate como
seu idílio elisiano e passa a cobrir suas “vergonhas”, para ingressar num universo moral,
lógico e, sobretudo, capaz de reproduzir um dado índice de “realismo” exigido pela nova
proposta.
repercussão eram reproduzidos, com a ajuda, ou não, de imagens autênticas dos fatos
de Havana, apenas três meses após o incidente, em agosto de 1898. Não obstante, o
documento oficial, ainda havia algo de burlesco e estapafúrdio na tentativa de alguns filmes
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permitiriam a demorada e cuidadosa instalação dos equipamentos necessários para a
filmagem.
Os filmes de reconstituição vigoraram por uma década (1897 a 1907). Até mesmo o
The great train robbery (1903), de Edwin S. porter, é considerado pelo copyright
americano, como uma fiel reprodução dos ataques de trens naquele período. Com uma
temática girando em torno de guerras, desastres, assaltos, havia uma tendência geral à
brincadeiras, o mal começa a ser demarcado nessas produções, num visível apelo de recorte
moral em relação à cultura. Nesses filmes de ficção (apesar de não terem sido encarados
dessa forma, na época), cujo principal objetivo é o efeito de mimese, o formato teatral
começa a ceder espaço para o que mais tarde irá se concretizar como narrativa
imanentistas das atualidades, temos o sublime representado nas “paixões”. Estas, que
Constituídas por quadros fixos, com planos gerais que se sucediam (tableaux vivants, ou
moving pictures), com intertítulos como “Adoração dos reis magos”, ou “Fuga do Egito”,
que, apesar de A paixão de Cristo ser marca fundante, no ocidente, de uma história contada
linearmente, ainda são muitos aqueles que não conhecem precisamente a ordem da
“história entre as histórias”. Para esses, o embaralhamento das cenas (como de fato
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ocorria), não faria muita diferença, já que havia autonomia entre os quadros apresentados,
ainda como nas atrações dos vaudevilles. Inclusive, os quadros que, reunidos, podiam
formar um único filme, também eram vendidos separadamente. Por vezes, eram
remontados, formando filmes cujo Cristo era interpretado por atores diferentes, que
1907, quando os filmes não são mais vendidos, e sim, alugados aos exibidores, garantindo
ao produtor a posse da obra (algo que também geraria diversos problemas), e impedindo
(explicador) nas exibições foi um sinal de que o cinema já começava a caminhar com as
próprias pernas. Era básico o fato de que o cinema necessitava utilizar, e antes de tudo,
descobrir os próprios meios expressivos. Seu próprio jeito de “falar”. O quadro primitivo
era por demais confuso. Algumas vezes, ações intrincadas ocorriam, todas num mesmo
confundidos pela falta de definição. E não eram apenas as expressões faciais, ou alguma
gestualidade peculiar que poderiam ser ocultados, mas determinadas seqüências que, se não
sussurrado por lábios que se fazem compreensíveis, todos esses elementos precisavam de
destaque. A vontade que sentimos, ao assistirmos a uma película cuja ação se passa toda
num único plano, e onde as figuras se apresentam diminutas e pouco nítidas, é aumentá-las,
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dar destaque ás ações, utilizar mais planos e mais planos-detalhe. E, de certa forma, foi
quadro “confuso”, dá lugar a um novo público que, ao entrar nos nickelodeons, não estava
preparado para aquela poluição visual. Este, que por sua vez, podia ser considerado
contigüidade entre os planos, que não fosse análoga à mudança de cena no teatro, pois a
única maneira de observarmos essa mudança na ribalta seria com a ação seguinte passando-
se num outro espaço ou tempo. Sem dúvida, há uma simplificação aí, que não engloba a
plano a outro poderia ser melhor engendrada. Não podiam ainda ser considerados como
negativos, como fazia Meliés em algumas elaboradas seqüências. Além disso, era preciso
saber como encaixar o primeiro plano de forma orgânica na seqüência, pois, como
observamos no caso clássico de The great train robbery, Porter não sabia o que fazer com a
imagem aproximada de um dos bandidos. Suponhamos que uma seqüência do cinema atual
priori, pelo fato deste pedaço do filme estar disposto num mesmo espaço e num mesmo
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tempo, poderíamos pensar que a transposição para um único quadro, como no raciocínio
problemático. Se tentássemos posicionar todo o processo num plano geral, para que tudo
coubesse na tela, os atores apareceriam por demais reduzidos, e fatalmente alguns detalhes
dança. Tudo isso, inevitavelmente, ficaria prejudicado. Optando por um plano mais
aproximado, no qual os atores são mostrados de corpo inteiro, como nos filmes de Meliés,
a situação só piora. O efeito produzido soaria um tanto cômico, já que a enorme escada não
caberia, em toda a sua extensão, na cena, e Eliott Ness (interpretado por Kevin Costner),
ficaria reagindo a tiros, palavras e gestos que viriam, sabe-se lá, de onde. Portanto, era
imperioso, que a noção de linearidade, como vemos na literatura, fosse transposta para as
telas. Com isso, a idéia de causalidade estaria salvaguardada. Quando temos várias ações
que ocorrem, quase que simultaneamente num mesmo espaço, representá-las todas num
mesmo plano, pode tornar-se tarefa inviável. Na medida em que não havia um domínio do
movimento de câmera, pelo menos a inserção de novos quadros, e uma articulação coerente
entre eles, deveria ser efetuada. É claro que não se poderia exigir demais. A continuidade,
Como arquitetar uma cena de perseguição verossímil, se os personagens “não podiam” sair
do retângulo, como na “caixa” do palco italiano? Se, sair de cena pelas laterais, era como
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entrar nas coxias de um teatro imaginário, findando a ação. Os personagens, argumenta-se,
poderiam ficar correndo em círculos, um atrás do outro, durante algum tempo. Findada a
correria, os personagens saem. Vão para o “extracampo”, que os suga como um buraco
negro, para de lá nunca mais voltarem. Isto ocorria de fato, mas convenhamos, não podia
ser considerado propriamente verossímil. A não ser que o propósito da perseguição fosse
esquerda. Este movimento obriga o diretor a inserir mais quadros, “esticando”, assim, a
necessário.
narrativa. No filme Stop Thief! (Pega ladrão!), do inglês James Williamson, é justamente a
introdução de mais dois quadros para exprimir a ação, que marcará o primeiro passo em
ele esconde-se num barril, mas é descoberto por um cão, através do faro, e é posteriormente
a contar histórias. Esse modelo não apresenta nenhuma novidade. A não ser, pelo simples
fato de ser apresentado cinematograficamente, por planos com mútua dependência. Mesmo
torna a inverter-se novamente, o público era capaz de compreende-la como uma unidade. A
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partir daí, toda uma série de filmes foi produzida seguindo essa estrutura prévia. O que
Cutgheon aborda pessoas solitárias, que publicam notas “pessoais” no jornal New York
hora e o local do encontro. Quando chega a hora marcada, uma multidão de mulheres o
intertítulos, muito usadas, inclusive, para cobrir os espaços criados por elipses (hiatos)
temporais. O cinema vai aí, pouco a pouco, dispensando a ajuda do explicador, para, então,
A força centrípeta, que puxa a encenação para o plano único primitivo, acaba por
tornar-se centrífuga, “empurrando” a trama numa cadeia linear. Agora, já não é mais
possível fazer a “leitura” dos acontecimentos num só momento, pois a história passa a
depender de cada parte, de cada fragmento do todo que se prolonga. O filme de perseguição
são uma unidade. Um todo, e não uma compilação de quadros independentes. Mais
precisamente, o filme Personal, nesse sentido unitário, “como uma sucessão coerente de
Alvo de um debate judicial entre Edson, Porter e a Biograph, o filme, alegava a empresa,
havia sido plagiado por, ninguém menos que Porter, para a companhia de Edson. O que
estes alegavam, era que a Biograph não tinha direito a película, pois esta era composta de
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vários quadros, cujo copyright, a empresa não possuía. Em maio de 1905, foi proferida a
jurisprudências. No processo, o juiz argumentou que, mesmo que uma série de imagens,
tendo sido capturadas em diferentes momentos, e com diferentes pontos de vista, projetadas
rapidamente, e em sucessão, sobre uma tela, acabam por contar uma e mesma história, de
modo coerente.
Apesar dos avanços, ainda faltava muito para que a câmera adquirisse uma
verdadeira liberdade. Uma ubiqüidade permitida pela montagem, que caracterizaria todo o
os lugares que se seguem são, em muitos casos, completamente distintos uns dos outros.
“original” da trama. Outro problema para os realizadores dessa época, incluindo o próprio
Griffith, era o corte no meio da ação. Para eles, este recurso que viria mais tarde
multidão adentrasse correndo a borda esquerda da tela, seria esperado que todos, sem
exceção, adentrassem a borda direita, até que não sobrasse mais ninguém. Também não
havia a noção de que perseguidores e perseguidos não só podiam, como deviam ser
mostrados em quadros separados. Para não dizermos que o período careceu, por completo
de exemplos, temos o filme de 1903, The pickpocket, realizado por Alfred Collins. Nele, de
quadros separados. Há, portanto, uma evidência de que, por mais que o cinema estivesse
avançando na direção de algo que um dia viria a ser chamado de montagem, prevaleciam,
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ainda, as características de um tipo de espetáculo ligado ao vaudeville, e destinado a um
de perseguição. Cunhadas linked vignettes (vinhetas ligadas), por Tom Gunning. Nelas,
mesmo se não tivéssemos a perseguição propriamente dita, havia, pelo menos, uma
quantidade de gags ligados entre si, por algum elemento comum. É o próprio Gunning que
usa o termo “geografia sintética”, para argumentar que, nessas películas, podemos
No filme Une dame vraimente belle de 1908, Louis Feuillade nos apresenta uma
atraente mulher, que desvia a atenção dos homens, causando catástrofes. O humor, de
algum modo, vai caminhando na direção de uma psicologização, que é capaz de costurar o
enredo. Os motivos, digamos assim, para a concatenação dos quadros, começam a ser
melhor elaborados. Em seus primeiros trabalhos como diretor, todos de 1908, Griffith
contribui para o gênero com filmes como The redman and the child e The courtain pole.
Nessa altura, o diretor utilizava um método de produção, no qual todos os planos que
faziam parte do mesmo cenário, eram filmados, sob um mesmo ponto de vista, e só então,
se passava para a próxima locação. Desta forma, ele produziu mais de 400 curtas, só para a
Biograph. Mesmo se não fosse um homem criativo, o dilatado número indica que não
faltaram oportunidades para a experimentação. Como os filmes tinham poucas cenas, havia
uma necessidade de intercalá-las. Gerou-se, então, uma movimentação que já não era mais
compatível com o tipo de entretenimento proporcionado pelo teatro. A partir daí, o caminho
para a montagem paralela (sua marca registrada) era natural, posto que o exaustivo trabalho
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contemporâneos, que não conseguem resolver os problemas colocados pela concatenação
de seqüências paralelas. Muitas vezes, a desarticulação é tamanha que algumas cenas cuja
Life of an american fireman (1903), de Porter, no qual um mesmo bombeiro salva a mesma
um obstáculo transposto com graça, por Griffith. Em The fatal hour (1908), o diretor irá
Diante de um mecanismo que comporta um relógio e uma arma, encontra-se uma detetive
que foi amarrada e amordaçada por bandidos. O relógio marca 11:40, e está preparado para
restando pouco tempo para resolver a questão. A partir daí, tem-se todo um ambiente
montado, para que o padrão a-b-a-b, de montagem, seja explorado. Instaura-se uma
trajetória teleológica que irá culminar num ápice de tensão. Ao contrário dos filmes de
perseguição, já não temos mais a possibilidade de inserir quadros ad infinitum (já que o
filme tem “hora marcada” para terminar. Também já não é mais possível entrelaçá-los, pois
a ordem dos fatores irá alterar o resultado. O quadro perde a autonomia. Além disso, a
mocinha e seus salvadores estão em espaços diferentes, o que torna a construção da ação,
toda em um único quadro, impossível. A precisão, agora implantada, nos remete ao controle
espectador com os olhos grudados na tela. Até que se chegue ao desfecho. Sem dúvida,
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material produzido naquele momento. De um modo geral, a noção de continuidade não
havia sido tão plenamente absorvida. No caso de Griffith, podemos afirmar que, para a
introduz o plano americano, gerando inúmeras possibilidades para a linguagem. Ele torna-
se um mestre da montagem paralela, até porque, esta não demonstrava-se tão complexa em
termos de decupagem. Decupar em cenas sucessivas uma mesma ação. Ou, o que podemos
desse formato na história do meio narrativo. Aos poucos, o primitivo quadro frontal se
nation (1914), filme-estigma de Griffith, o corte não é dado no fim da ação, mas em seu
ápice, gerando mais agilidade para a montagem. Mas é com a gradual transformação da
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Nascido em 1898 e morto 50 anos depois, Sergei Mikhailovich Eisenstein assiste
político. Articular a revolução, vivenciá-la, refletir sobre ela, são operações que
Principalmente pelo recorte que fez sua existência, através do tecido de um país que, nas
dividido em gêneros, o cinema possuía como denominador comum o verossímil. Fosse uma
ficção científica ou um musical, era fundamental que aquele universo apresentado na tela
se fizesse crível, enquanto uma suposta representação de uma realidade concreta. Todo esse
sonhos), a mentira poderá ser apontada em tudo aquilo que for oposto a esses princípios. É
campo. Observando a reação de distintas platéias, ele intenta encontrar a razão de uma
atitude diferenciada por parte dos espectadores. Suas conclusões o levam a apontar uma
35
diferença provocada pelo fator montagem. E mais do que isso, a apontar o sucesso do
cinema americano devido ao ritmo deste que, ao contrário da dos europeus, possuía uma
“verdade” em mãos, ele empreende um extenso estudo sobre o modo como os planos se
encadeiam e os efeitos a partir daí obtidos, o que a seu ver, é a essência do cinema.
Por princípio mecanicista e anti-ideológico (algo que mais tarde será revertido), o
pensamento de Kulechov impregna tudo com uma rigidez objetivista que culminará na
ao famoso princípio conhecido como “efeito Kulechov”4, que causou grande impacto na
antipsicologista), no qual o ator chega a uma perfeição gestual inconsciente, posto que
principal discípulo de Kulechov, entra em discordância com o mestre. Sua visão está ligada
aquilo apreendido pela visão direta, aquilo que é um dado imediato do mundo real e
4
O efeito consistia em colocar um rosto humano intercalado com algumas imagens (um caixão, um prato de
comida), e mesmo sabendo que o rosto está imóvel, tenderíamos a notar uma diferença na expressão facial.
5
Efeito de contigüidade espacial oferecido pela montagem a imagens captadas em espaços totalmente
distintos, provocando uma aparência de realidade num todo irreal.
36
concreto. O realismo seria a procura de uma fidelidade “à própria lógica da situação
representada em suas relações não visíveis com o processo mais global a que ela pertence”
elementos no cinema pode ser mais expressiva que o contrário. Ela é a apresentação da
visão particular de um autor sobre os fatos sociais. Ambos os pensadores concordam nos
teoria da narração de Kulechov está baseada nesses elementos. Eles também concordam
com a abordagem “sem ambigüidades” do cinema. Porém, o cinema proposto por Pudovkin
apresentados na tela. Eles não irão mostrar nada que seja estranho aos mundos nos quais
sua narrativas discorrem. Entretanto, Eisenstein quebra com suas concepções quando está
cinematografia, elementos que não pertencem ao espaço da ação serão introduzidos com
intuitos metafóricos, como é o caso do filme A greve (1925), em que um matadouro, que
narrativos, e uma montagem que não obedece às leis de continuidade, tal como em
37
Potemkin. O diretor, com suas intervenções explícitas, e muitas vezes aleatórias, pretende
guiar o espectador numa direção bem específica. Em prol da ruptura com o projeto
ilusionista, ele propõe a montagem de “choques”, que porá o espectador em contato com o
plano ideológico da obra que está sendo exibida. Assim, estímulos que não estão
“montagem figurativa”, como ocorre na escrita japonesa (com os ideogramas, nos quais
duas idéias se juntam, num desenho, para formar uma terceira) e no teatro kabuki,
interesses confessos do artista. Esta justaposição “figurada” provoca uma significação, uma
imagem, podendo ser compreendida como uma constituição de planos que, montados,
cinema passaria da “esfera da ação” para a “esfera da significação”. Ele assume-se, então,
como discurso, e a estilização que se produz na montagem estende-se para o trabalho dos
atores. Ambos estão a serviço da ideologia. O estranhamento, portanto, será uma forma de
provocar o espectador, para que ele deixe seu estado de torpor, hipnose e acomodação em
No viés documental, Dziga Vertov que, tal Eisenstein, dá enorme atenção à questão
crítica chega ao ponto de estender-se a qualquer forma de ficção no cinema. Ele considera
38
revolucionário) mostrar a realidade, deixando clara a sua oposição ao cinema espetacular.
Para isso, Vertov quer capturar com sua câmera a não interpretação, as feições e
destituído. Por outro lado, sua desconstrução irá girar em torno da reflexão do cinema e
seus próprios meios constituintes. O homem da câmera (1929) propõe, com seus kino-
através das lentes de uma “câmera-olho”. O filme antecipa, com seus diversos
cai numa armadilha. A do idealismo, da câmera e das imagens por ela produzidas, como
agentes de uma objetividade absoluta. Algo que nos remete às vontades naturalistas de
1.d Vanguardas
cinematográficas? De uma radical ruptura com o realismo, algo que também irá ocorrer em
outras modalidades artísticas. Do ponto de vista narrativo, e com todos os “ismos” que lhes
cabem, serão tomadas como não realistas se as compararmos com o sentido oficialista
engendrado pelo senso comum. Sentido este repleto de uma linearidade cronológica e
39
com uma determinada visão artística que se quer mostrada. Cada uma dessas visões é, de
forma geral, orientada para um sentido comum. Mesmo que haja divergências.
opostas. O sonho e o real. Literalmente, o resultado dessa fusão é o surreal. Plano onde tudo
cinema dadaísta de René Clair. Entre ambos, é notável uma afinidade que, se não é
estéticas vigentes. A narrativa surrealista deseja inscrever-se numa ordem que a pintura já
sonho. Quem aguarda uma relação espaço/temporal bem delineada, será frustrado. Quem
aguarda uma narrativa clara, composta por uma montagem preocupada em gerar uma ilusão
sucederem, revelam uma tal instabilidade, um tamanho “non-sense”, que serão, em última
instância, comparados ao universo onírico. No filme, a cena que se inicia numa quarto em
Paris, conclui-se num jardim desconhecido. O princípio que rege esta montagem, na
verdade, é o da “associação livre”. Talvez, a psicanálise fosse o único método que desse
conta de sua ordem simbólica. Nada no filme irá simbolizar algo, já que o método de
40
construção do roteiro, feito em parceria entre Buñuel e Salvador Dali, consistia em peneirar
e juntar apenas aquelas imagens que não tivessem qualquer implicação de sentido possível,
mas que fossem capazes de comovê-los. Era uma motivação irracional que os guiava. O
Para a cineasta americana Maya Deren, a liberação dos surrealistas seria uma forma
ainda estaria implicada uma racionalidade, mas cujo objetivo final consistiria na dupla
eliminação das funções da consciência e da inteligência. Para o surreal, ainda existe o real.
assumidamente consciente, que faz do controle seu eixo central. Em A choreography for
the camera (1945), temos uma afirmação da consciência humana, no gesto do dançarino
que, por mais que atravesse espaços não contíguos (como em O cão andaluz), continua
natureza e conscientemente produzir uma forma, levaria, juntamente com o abandono das
vertical, poética, neste cinema que justamente por sua questão formal, precisa fazer-se
visível. O tempo será abolido e não a imagem que, tensionada, ainda precisa ser
reconhecida na película como registro objetivo para que seu efeito não seja dissipado. O
41
abstracionismo e as superposições que alteram o registro fotográfico não são bem-vindos.
dará pela nitidez, capaz de provocar a significação. Negado o realismo como construção,
adere a cineasta (como Epstein) à idéia do cinema como metáfora para a teoria da
relatividade. Para Deren, a câmera lenta é nobre ferramenta, pois distorce o tempo, sem
completamente, temos o expressionismo. Este, por sua vez, sofre ataques de todos os lados.
Tanto pelos próprios teóricos de vanguarda, quanto pelos divulgadores do realismo. Mas
algo é certo: o expressionismo inscreve-se na tradição dos filmes que transfiguram a noção
artificial, cujas formas desproporcionais retorcidas nos remetem a arte moderna e ao teatro
objetos de cena) deixaria pouco espaço criativo para a câmera (que serviria apenas de
não são apenas evidentes rupturas com o modelo clássico, mas permanecem instigantes até
(1931), também são provas disso. A estilização generalizada que permeia este movimento é
forma de libertar-se do real imediato. De todo aquele a priori que se associa à percepção do
mundo em que vivemos, e que deseja tornar escondido num espaço que já não se faz
42
plenamente compreensível. A sombra emerge e, com ela, a composição de um quadro que
não é claro em sua totalidade. Contraste. É aí que estranhas criaturas irão esgueirar-se, e a
esta a alma humana ou a divindade. Por meio do suspense, não chegamos agora, num final
redentor clássico, mas numa forma de incômodo e dúvida que reside nos estilhaços de uma
Com a vanguarda francesa, o cinema ruma, cada vez mais intensamente, para aquilo
que Ismail Xavier chama de “opacidade” da tela. Seu oposto, a transparência, se caracteriza
pela propriedade que tem a película de simular o real, como se fosse uma janela. A película
“opaca” é aquela que, expondo um conteúdo cada vez menos simulacral, evidencia sua
própria materialidade enquanto meio. Sua própria superfície. O caminho percorrido pelos
discursiva. A imagem que de início é centrada seja num rosto em primeiro plano ou num
objeto claramente focalizado, serve a um ritmo estabelecido. É este que dita sua aparição, e
não mais o espaço dramático e narrativo, que se desintegrou. A inclinação à poesia e a uma
Léger. Seu objetivo é lançar uma luz sobre os objetos e situações do cotidiano, mas
imagens num ritmo que reflita a nova percepção advinda de uma sociedade industrial, o
artista visa desdramatizar a relação entre elas, em prol de uma celebração do “advento do
43
objeto”. Ao gosto dos futuristas, o cinema é pura montagem, puro movimento e
plasticidade.
imagem e som. Germaine Dulac, Viking Egglin e Hans Ritchter são alguns exemplos. O
ideal de pureza avança nas experiências por eles ministradas, chegando ao extremo. Não é
só a narrativa, ou o espaço dramático, que serão suprimidos, mas todo e qualquer traço
da luz sobre a tela representa a única realidade possível. Não existe nada “fora” do filme,
nada além da luz e da superfície da película. Não há decupagem. Somente luz, sombras, ou
redução é ainda maior. Ele trabalha só com variações geométricas (digamos, retângulos) em
Robert Brur e Peter Kubelca, e chega a firmar que o cinema não é movimento, e sim
que brota a partir da decupagem clássica é absorvida, e o cinema firma-se como indústria
produzindo em sua linha de montagem, espetáculos cada vez mais engenhosos do ponto de
para entreter. O número de atrativos e estímulos não pode jamais diminuir. Superadas as
44
dificuldades técnicas na implementação do som e da cor, diversos gêneros serão
A divisão de filmes nessas categorias era um meio mais fácil de orientar a platéia
para o consumo, pois tendia a eliminar ambigüidades. O horror, o épico, a ficção científica.
Todos os gostos deveriam ser atendidos. No entanto, apenas três gêneros de filmes são
não podemos ignorar as mudanças ocorridas na era sonora. Sabemos que um filme mudo é
tão legítimo quanto um filme falado. Mas também sabemos que, se assistindo um filme
novos campos com a chegada de novos recursos. As primeiras exibições som gravado
juntamente com o filme, deram-se na década de vinte. Uma das mais célebres foi a da
Vitaphone, em fevereiro de 1927. Don Juan foi exibido numa sessão de gala, em sua
melhor sala de Nova York, mas para o público não havia grande novidade já que o som
poderia ser executado ao vivo. Com o surgimento da fala em Jazz Singer (1927), abre-se
Intercalando-se, números musicais cada vez mais complexos e diálogos leves, quase
sempre em tons humorísticos, compõe uma fórmula. As soltas atrações do vaudeville, que
também incluíam música, dança e comédia, agora ganham um fio condutor. Sofrendo com
a depressão, a década de 30 disporá de uma fantástica válvula de escape. Com a cor, outro
poderoso aliado, a noção de espetáculo se engrandece. Mais elementos são postos em cena,
45
coreografias mais complexas demandam um soberbo poder de organização. As tomadas se
Astaire, em Núpcias Reais (1951), chega a subir pelas paredes de um hotel com sua dança.
Mas não é só a decupagem que se destaca. A montagem, com a intensa movimentação dos
lentamente, aproxima-se da câmera. Plano geral. Parte para sabe-se lá onde, a figura do
cavaleiro solitário, até sumir na imensidão. Um western é o que acontece entre estes dois
planos. Retrato da avidez pós-guerra civil, permeado pela embotada esperança da “corrida
que Porter não soube utilizar já pode ser perfeitamente encaixado. A paisagem desértica é o
cenário no qual a montagem paralela ganha sua dimensão épica. No plano homólogo ao da
nação, o encontro maniqueísta entre mocinho e bandido já tem vencedor prévio. A tela
estende-se até onde alcança a arma. Aumenta a tensão, aumenta-se a velocidade com que os
formas saturam-se, ou são encaradas como um velho amigo pelo público. O drama
psicológico aparece enquanto alternativa para o trivial massacre indígena propagado pelo
herói. É claro que a ação não se desfaz, mas a velha dicotomia atração/ narração encontra
sua personalidade, para não mais cair na caricatura. O eixo narrativo precisa de mais
substância para conduzir melhor. É assim com os diversos relógios que permeiam a trama
46
passado em tempo real. Os planos gerais ganham dramaticidade nas mãos de mestres como
Huston e Ford. A aridez solitária dos cawboys atormentados e a lenta passagem do tempo
Dando vazão, e sendo a expressão das trevas que, de certo modo, rondaram os EUA
nas décadas de 30 e 40, com a depressão e a Segunda Guerra, o policial incorpora a estética
quem não tem onde se ancorar (algo que Wyler aborda em Os melhores anos de nossas
vidas, de 1946; porém sob o viés puramente dramático). O homem comum, sufocado pelo
expressionista, para embasar esta manifestação. Filme noir é o título dado por críticos
algumas peculiaridades comuns, os filmes Noir (negro) têm seu nome advindo da série
Noiré, de romances policiais, criada por Marcel Duhamel em 1945. Populares, eram
traduções, em sua maioria, das histórias de autores como Dashiell Hammet e Raymond
Chandler. Algo que nos remete a toda uma fase da indústria americana, obcecada com o
roteiro e para obter “eficiência” neste quesito, contratando escritores consagrados para
cinematográfica. A era falada teria levado às telas um uso excessivo do diálogo e um tom
coloquial, que haveriam de extinguir a necessidade de planos mais intensos que refletissem,
47
como no cinema mudo, extremos conflitos interiores. Uma certa atmosfera decadente e
blasé dominava, principalmente, as ruas de Los Angeles, cidade que foi o principal cenário
roteiros”, grandes filmes foram produzidos. A ação possuía tanto peso quanto os close-ups
dos sensuais lábios pintados de femme-fatales, envoltos por uma sinuosa nuvem de fumaça.
iluminação acentuava a estranheza dos rostos que perambulavam pela noite. Não havia
homem. Do lado de fora dos grandes estúdios, ali onde o cineasta Louis Delluc reclama
chamada “poética das ruas” terá sérias implicações no cinema italiano (e, por que não dizer,
no cinema como um todo) por pelo menos três gerações. Oposta à idéia de espetáculo,
homem metafísico, kantiano, mas aquele que circula e se apresenta tal como é. Cuja
expressão de dor não é verossímil, mas verdadeira, e que requer nossa solidariedade. O
guerra, e para o destino humano cuja tragédia não é ficcional. Os estilhaços de corpos e
bombas, os escombros, resíduos de uma sociedade destruída, estão, de fato, nas ruas.
48
Daí a oposição feita pelo neorealismo ao cinema americano. Hollywood é, por
fantasia ao real, para torná-lo mais atraente, mais chamativo aos olhos do consumidor. A
vida e do real, para que o papel da imaginação ficasse de lado. O discurso de tal prática
cinematográfica quer-se igual ao real. A confiança na realidade concreta e no que ela seria
capaz de revelar enquanto cena fazia-se meta. Zavattini chega ao ponto de imaginar um
em sua caminhada, por uma câmera, sem que nenhuma intriga, nenhum fato digno de nota,
aconteça. A inclinação ideológica deste projeto aponta para uma crítica ao ilusionismo da
indústria, alienado em relação a uma observação paciente, que é sustentada por uma idéia
tornar-se dispensável e, até mesmo, perturbadora. O próprio Rosselini a coloca como algo
dispensável, visto que o mundo já está aí, dado, então por que manipulá-lo? Basta mostrar
confessar seu sentido. Da proposta clássica, que julgava obter, pela montagem, o vero,
clássica, perde seu aspecto revelador da essência. A imagem do neo-realismo não quer
apenas “parecer” real, mas “ser”. O sujeito narrativo criador de um mundo imaginário,
alienante, precisa desaparecer. Algo que atesta um pensamento entre os italianos é o caráter
49
inconcluso de alguns dos roteiros de Zavattini. Este é o resultado da busca de um diretor
1.f Anos 60
diversos diretores que, na década seguinte, iriam arquitetar uma revolução no cinema. Suas
objetivo da realidade. Porém, ele rompe com a vanguarda quando reivindica um cinema
narrativo, cada vez mais realista. Em seu pensamento, tudo aquilo que contribui para o
uma ação de fundo, cujo plano não conseguisse focar, deveria ser distribuída em dois
planos. Bazin está do lado da técnica, pois apenas de considerar como preciosas algumas
divisão da ação contínua em dois ou mais segmentos. Valoriza, então, o plano seqüência,
ineficiência e seu ilusionismo. Por mais que esta respeita uma sucessão causal na
imposição de uma ordem de leitura para o espectador. Enfim, André Bazin deseja
50
Sua morte prematura, em 1958, o impedirá de assistir Acossado (1959), primeiro
filme de Jean Luc Godard. Talvez como na morte de um pai respeitado, o cineasta tenha se
livrado das amarras de um superego artístico. Sua obra primogênita conta com uma boa
servia literalmente de pré-texto. A poesia estava guardada nas imagens que, captadas seja
por uma câmera na cadeira de rodas ou escondida num triciclo disfarçado, jamais perderá o
encanto. O diretor precisava filmar Belmondo e Jean Seberge entre os transeuntes das ruas
de Paris, sem que estes percebessem. Numa “cajadada só”, livra-se da precisão do
travelling, da artificialidade dos figurantes e dos altos custos. Acrescenta todo o som na
pós-produção, o que para o mestre do “corte descontínuo” (à moda dos filmes de atrações),
é mais um quebra-cabeças a ser montado. Mais um estímulo. Tal qual o gesto precede a
fala, a linguagem irá impulsionar as inventividades desse criador. Seja num primeiro
momento com Uma mulher é uma mulher (1961) ou O desprezo (1963), no qual Fritz Lang
interpreta a si mesmo. Seja posteriormente, com Eu vos saúdo Maria (1985), ou Rei Lear
“No outro lado da rua”, podemos ver (talvez num travelling), François Trufaut um
tanto cabisbaixo. É que ambos, ele e Godard, iniciam suas careiras, mas tem divergências
criativas. Nada muito grave para o diretor de Jules e Jim (1961) e A noite Americana
(1973). Brigas a parte, podemos observar em sua obra o reflexo de duas iniciativas no
plano intelectual. Um respeito parcial aos princípios bazinianos (fotografia bem delineada,
Detenhamo-nos mais no segundo ponto. O cinema de autor foi porta-voz de toda a geração
51
artista focará determinados temas e procedimentos, de acordo com suas necessidades
pessoais, como sucede com Chabrol, Rohmmer, Vardin, entre outros. Mas a liberdade do
diretor era mais um empregado contratado, e entre tantos outros, obedecia às ordens de um
produtor geralmente irascível. A política dos autores contava com um processo de resgate
dos autores que, mesmo sob pressão, conseguiam exercer um notável controle criativo.
Tidos por muito tempo como próximos a fantoches, criadores como Nicholas Ray e Otto
resgate na célebre entrevista a ele concedida por Alfred Hitchcock. O mestre do suspense
Na Itália, inúmeros diretores dão continuidade aos processos iniciados com o neo-
realismo. Dentre eles, destaquemos dois, pelas peculiaridades narrativas que seus filmes
abarcam. Apesar de uma vasta obra, que se estende até a década de 90, Federico Fellini
articula seus experimentos mais radicais em 60. Após o abismo existencial encenado em A
doce vida (1960). Surge a encenação em abismo, de Oito e meio (1963). Quase tudo em
sucesso e alter-ego do verdadeiro diretor do filme. Os dois fundem-se, num ensejo iniciado
em A doce vida. Fellini, além de ser um dos mestres de cinema, é um mestre me falar de si
refletem numa espiral sem fundo.Mise-em-abîme. Sem título e roteiro, Guido desespera-se
52
em meio ao impasse. Veremos que, mais tarde, esta será a condição para que as amarras de
se com o realismo, a incidência de planos cada vez mais oníricos nos impede de distinguir
aparece vestido de toga e chapéu de cowboy, armado com um chicote. O que é isso?
Fantasia. Já não sabemos mais quem é quem, o que é o que. Na urgência dos
película. O filme que o diretor fictício tem na cabeça é tão grande e vasto, que já não pode
se realizar. Ele é a própria vida de Guido. A própria vida. Fellini o realiza. Então, por que
quase tudo em Oito e meio é metaligüístico? É auto-referencial? Porque o filme que Guido
não conclui, é concluído por Fellini, celebrando o inconcluso numa roda, um tanto circense,
embalada pela belíssima música de Nino Rota. A outra coisa é o meio. Este é o oitavo
trabalho do cineasta, e não o oitavo e meio. Então, o que será o meio? Ele é o plus e o
ocultamento. Rompe com o neo-realismo nos anos 60 quando ergue uma estrutura de
emblemáticos disto são o passeio de Jeanne Moreau pela cidade e o plano em que
Mastroiani tem, atrás de si, uma parede branca completamente vazia. Ambos pertencem a A
53
noite (1960), que faz parte de uma trilogia, juntamente com A aventura (1960) e O eclipse
(1962). Mesmo com a cor em O deserto vermelho (1964), certo “devir do esvaziamento”
continua sendo encenado por seus trabalhos. Mesmo a cor intensa aparenta esmaecimento.
Grande esteta do “plano”, o cineasta vai às raias da obsessão para obter o efeito desejado na
tela. Blow up (1967) é um exemplo dessa meticulosidade. Antonioni luta por um impacto
de ordem formal junto ao público. Num enredo onde nada parece acontecer, este é seu
inesperado) somos presenteados com o apogeu do vazio, num jogo de tênis onde a bola não
no final da década de 60, e reflete uma geração órfã de pais, mas muito bem cuidada pelos
conexão direta. Rainer Werner Fassbinder permeia em Lola (1981) o suposto resgate
expressionista. Mas o faz a seu modo. Versão de O anjo azul (1930) de Josef Von
imprime uma aura de sordidez à antiga história da prostituta que seduz um professor. Com
O casamento de Maria Braun (1979), dois fantasmas alemães são exorcizados: a guerra e o
fria Maria Braun, que durante a guerra firma contrato de casamento e acaba separando-se
para tornar-se amante de industrial. Fassbinder flerta com o realismo, tanto nos cenários e
54
figurinos, como na direção dos atores. Werner Herzog, o mais hermético desta geração,
Contemplativo. Bucólico. Herzog parece querer entrar com as imagens na imanência para
(às vezes em longuíssimos planos fixos) elevar-nos a um outro estágio de percepção. Tanto
o que em Coração de cristal (1973) são os próprios atores que estão hipnotizados,
parecendo vivenciar uma outra realidade. Mesmo em O enigma de Kaspar Hauser (1975),
Kinski longa parceria, e juntos prestaram homenagem a Murnau com Nosferatu (1979).
Ele não é hermético. A influência que diretores alemães exerceram no cinema americano a
partir da década de trinta, agora se inverte. É Wenders que se deixa influenciar pelo cinema
americano. Isto podemos ver mais detidamente no O amigo americano (1980), que conta,
inclusive, com a participação dos diretores Nicholas Ray e Samuel Fuller. Flertando com o
tenha aprendido a apreciar as películas americanas (e, por tabela, o que há de Fritz Lang
nelas) na França, onde estudou. O ápice do cineasta é alcançado na década de 80, com
Adentrando os anos 60, ainda temos nos EUA, todos os gêneros que vinham
pipocam aqui e ali, até que, para assombro de muitos, a revolução é operada dentro dos
grandes estúdios, com o recurso dos grandes estúdios. Com uma concepção iniciada em Dr.
55
revoluciona o cinema americano. Durante missão para Júpiter, com o objetivo de investigar
um misterioso monólito negro, o computador HAL 900 elimina pouco a pouco a tripulação,
com o intuito de assumir o controle da nave. Não é à toa que Kubrick insere na trilha
sonora a fantástica introdução de Assim falou Zaratustra, composto por Richard Strauss.
do eterno-retorno) parecem estar sendo abordados. O maior hiato temporal produzido por
um único corte nos leva dos homens das cavernas para o espaço sideral. Não bastasse a
ainda temos pela frente todas as seqüências de tortura psicológica, protagonizadas por
atores, tripulantes, parecem comportar-se de modo menos expressivo que a máquina. Algo
que nos faz questionar: será que, de fato, vencemos a guerra? Impávido o monolito
“viagens” com imagens geradas em sinal eletrônico que deixariam qualquer videoartista
1.g Videoarte
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Vídeo. Campo fértil para o experimentalismo, tem, em seu próprio ser, a “matéria”
película, aponta outros caminhos (ideológicos, econômicos, culturais). Como disse Nam
June Paik, o grande ideólogo da videoarte: “Se criarmos uma via, as pessoas vão inventar
carros. Isso é dialética. Se criarmos vias eletrônicas, algo tem que acontecer.” Fugaz, o
vídeo é território fértil para a dissolução de identidades. Tanto de artistas, como Laurie
Anderson e Pipilotti Rist, como do próprio público. Debrucemo-nos, então, sobre a obra de
Bill Viola, grande expoente dos anos 70, que continua seu processo inovador até os dias de
hoje. Seu trabalho converge com algumas questões apontadas nessa pesquisa.
Bill Viola é notoriamente conhecido como um dos mais importantes artistas de sua
geração. Por mais de trinta anos ele vem criando vídeos, vídeo instalações, instalações
sonoras, performances com música eletrônica e trabalhos para a televisão. Sua obra abarca
diversas fases, e alguns desses momentos serão de fundamental importância para sintetizar
um conjunto de idéias, percepções e dinâmicas propostas pelo artista. Em sua visão acurada
acaba por desembocar, surpreendentemente, numa noção aurática outra, da obra de arte.
Desde seus primeiros trabalhos na década de setenta, até os dias atuais, a questão da
temporalidade é fundamental para nos guiarmos por sua obra. Porém, como veremos mais
adiante, esta questão aparentemente central gerará uma série de implicações envolvendo as
noções de espaço, corpo e narratividade. Já em 1976, com o trabalho He Weeps for You,
temos uma instalação de vídeo e som, na qual o ritmo, a cadência, ditam o caminho da
fruição. Uma goteira é filmada, de forma que cada gota é aumentada várias vezes em seu
tamanho. Esta cena é projetada num telão e, através da gota, é possível que o espectador
57
observe seu próprio reflexo, e de parte do ambiente que o circunda. Finalmente, após
alguns segundos, a gota cai e o som de sua queda é microfonado e amplificado diversas
vezes. Como bom herdeiro da arte conceitual, Viola é capaz de sintetizar camadas e
camadas de significação através de códigos e dinâmicas simples. Mas não será nossa tarefa
aqui, desvendar o significado “oculto” da obra. É importante notar como o artista força o
espectador a perceber-se sob um novo ponto de vista. A estrutura que abarca este ponto de
vista é fugaz. Ela surge e desaparece num movimento que é da ordem do cíclico. Portanto,
nos remete a uma fugacidade também do corpo), bem diferente da fixidez da imagem não-
(sujeito centrado, racional). Por vezes, parece que a gota é apenas uma desculpa para o
condicionada a um outro aparato de recepção que o corpo como (ainda) hoje o conhecemos.
O choque, o som do contato com a superfície, é seguido por mais uma formação de homens
narrativa circular, repetitiva, mas que muda, na medida em que mudam os espectadores. O
Ainda na década de 70, nos é apresentado o vídeo The Reflecting Pool. Nele, somos
postos em contato com uma “fugacidade do corpo”, mas de outro modo. O corpo de Viola é
espectral. O homem que, no vídeo, circunda uma piscina, é posto em imobilidade em pleno
salto, enquanto a água (elemento que retorna), continua serena, num vai-e-vem em “tempo
real”. O homem, então, vai desaparecendo aos poucos, até fazê-lo por completo. Mais
tarde, ele retorna como “espectro”, refletido nas águas da piscina, mas sem o seu referente
58
original agora desaparecido. Viola “desnaturaliza” o ambiente, com sua desconexão entre
espaço e tempo. Esta estratégia parece ser contrária à das mídias de massa que, através da
até certo ponto, banalizam a desconexão espaço temporal (comerciais como o da Fiat, em
que o piloto Cacá Bueno, da stock car, anda num ritmo diferente do das outras pessoas),
como forma de expressão estética, narrativa, ou porque não, expressão intrínseca do meio.
Portanto, se o artista deseja desnaturalizar algo que quer ser naturalizado por nossa
sociedade contemporânea, sua proposta perpassa o resgate. Mas de quê? Viola deseja
elementos apresentados por ele denotam este desejo. O tempo cíclico do coração de science
of the heart, e da gota de He weeps for you, é o tempo cíclico do eterno devir do mesmo, o
tempo configurado nas culturas orais. Tempo real, do aqui-agora, sem a linearidade, e a
expectativa do tempo futuro, o a nostalgia do tempo passado. Presente. A gota cai, e torna a
Durante a década de 70, e início dos anos 80, Bill Viola trabalhou um tipo de
determinada imagem desfila na tela, sem que haja cortes. Por vezes, uma seqüência de seis
minutos, como a de uma figura que aparece ao longe (praticamente um pontinho preto) e
vai se aproximando lentamente, parece longa, muito por nossa impaciência, fruto de nosso
tempo. Este tipo de trabalho seria algo como levar as teorias de André Bazin às suas últimas
conseqüências. Para ele, o cinema teria uma vocação ontológica clara, que seria a
representação do real. O real, ao qual se refere o crítico, não está ligado ao realismo
59
enquanto conteúdo, mas o real ligado ao mundo físico, à espacialidade concreta. Ele já
necessidade de reprodução do real. Com a chegada do cinema, a imagem do real não estaria
somente impressa, mas em movimento. Portanto, para manter este sentido de real, seria
preciso permitir que o cinema abarcasse uma ambigüidade que é imanente ao real.
Pois bem, Bill Viola leva estas questões ao extremo, quando uma de suas obras é
da obra. Seus filmes, literalmente, não tem história. Seu objetivo parece ser, com isso, não
só “renaturalizar” o espaço, mas aceitar o incômodo que a longa duração pode provocar.
Talvez seja este incômodo que, superado após alguns minutos, leve o espectador a estranhar
o tempo acelerado, proposto pelas mídias de massa. Algo que, talvez, seja a grande
Mas a questão não se encerra por aí. Se pensávamos que o problema da “extensão”
temporal de seus filmes havia chegado às suas últimas conseqüências, é só até observarmos
seus trabalhos mais recentes. Com a utilização da câmera em ultra slow motion , o público
mal consegue perceber o movimento enquanto tal. A lentidão é levada ao paroxismo, num
da imagem são ressaltadas. Não é à toa que muitos de seus trabalhos recentes são
60
diretamente inspirados em pinturas consagradas. Quando Viola opera nesse tipo de
velocidade, e de acordo com os temas que aborda, provoca o tipo de discussão que surgiu a
Quando Pollock “pinta sem pintar”, ou seja, pinta sem tocar o bastão na tela, e sem
cavalete, as fronteiras com a pintura tradicional estão rompidas. Do mesmo modo, quando
Viola desacelera o tempo, quase em seu limite máximo, esbarra no estatuto das imagens
artísticos vão sendo ultrapassadas. Seja pela reflexão, seja pela utilização de efeitos.
61
2. Por uma narrativa hipertextual no cinema
distorções eletrônicas. Em seu formato “pop”, esses recursos aparecem nos anos seguintes
algo que chegará a seu ápice nos anos 90. Pouco a pouco, as conexões entre o cinema e as
novas mídias se faziam mais evidentes. Porém, como salienta Lev Manovich em Language
dariam entrada tanto nas informações como nas instruções, este aparato abrangeria algumas
resultados em sua memória, estando eles prontos para impressão. Em contraste com o
daguerreótipo, nenhuma única cópia da máquina analítica foi completada. Ainda no século
XIX, em torno de 1800, um tear automaticamente controlado por cartões perfurados foi
operacional. O tear era capaz de compor intrincadas imagens figurativas, incluindo o retrato
62
do próprio Jacquard. Como se pode ver, sintetizar imagens em um mecanismo programado
O ano de 1936, foi o ano chave para a história das mídias e da computação. Nele, o
computador cuja utilidade servia a vários fins, e que mais tarde receberia o nome de seu
precisam ter as informações que guardam armazenadas em alguma mídia que possibilite, a
alemão Konrad Zuse que começa a construir o primeiro computador digital apto para uso,
cuja inovação é a utilização de uma fita perfurada, e não mais de cartões. Na realidade, a
fita utilizada era um filme de 35mm descartado. Numa releitura tecnológica do complexo
de Édipo, Manovich destaca que o código binário, mais eficiente, mata seu pai, o código
escravo do computador. Porém, destaca o autor, o surgimento das novas mídias daria-se,
abordado no filme Tron (1983) como tema, já que o protagonista é transportado para o
63
computadorizada. Ainda na primeira metade da década de 80, filmes como Blade runner: o
caçador de andróides (1982), O último guerreiro das estrelas (1984) e Duna (1984),
utilizam-se de efeitos, mas não ainda em larga escala. Possivelmente, o exemplo mais
eficaz que dispomos para ilustrar e dar continuidade a esta série, é o de O segredo do
abismo (1988). Nele, podemos observar um índice de precisão técnica e artística, que
pensarmos em uma nítida tendência ocorrida na época. Nos anos 80, a maioria absoluta
dos filmes que se utilizaram dos recursos digitais tematizava ou fazia referência a um certo
“futurismo” em suas narrativas. Não que todos eles, sem excessão, estivessem ambientados
num futuro hipotético. Mas as alusões a um tempo do porvir e de suas possíveis conquistas
35mm, suporte no qual ainda estão inseridas imagens da realidade concreta, e as imagens
duas produções massivas dos anos 90. Em O exterminador do futuro 2 (1991), dois
andróides representam dois estágios tecnológicos divergentes. Num, o ser humano é feito
sua imagem e semelhança, “encarnado” em uma réplica humanóide metálica, revestida com
pele sintética. No outro, o metal com o qual sua estrutura é constituída é de natureza
seu próprio tamanho, como numa versão cibernética da figura mítica de Proteu. O diretor
James Cameron aguardou por seis anos, até que a tecnologia digital requerida fosse capaz
64
de reproduzir, na tela, a imagem desejada do metal líquido em questão. O resultado é uma
“paz com o futuro”, regozijando-se com os louros do sucesso em produções cada vez mais
arquimilionárias, é aberto o espaço para uma nova tendência que irá perdurar até os dias
atuais: o passado. Pelo menos cinco blockbusters, nos últimos quinze anos, abordaram, de
uma forma ou de outra, o tema. São eles: Parque dos dinossauros (1993), Titanic (1997),
também dirigido por Cameron, Gladiador (2001), e a série com os dois filmes Piratas do
Caribe, ambos, respectivamente, de 2004 e 20067. Mais e mais em voga, a idéia que
Para salientar a perfeição das figuras virtuais que desfilam diante de nossos olhos, é na
realidade com perfeição, mas a reprodução de uma reprodução, do que seria esta realidade.
observa com acuidade que, apesar das reclamações de alguns a respeito da qualidade da
imagem digital (por exemplo, que as simulações feitas por computador são inferiores e,
portanto, “menos reais” que suas referentes), a chave do problema não está aí. A questão
7
Culturalmente, é possível dizer que essa tendência expressa um anseio de nossa história mais recente: o
desejo de “presentificar” o passado, de torna-lo quase uma realidade material e sensível. Cf. Gumbretch,
2004: esp. Pp 120-125.
8
Sobre esse foto-realismo característico de muitas produções cinematográficas massivas, já falava Arlindo
Machado: “Consideram técnicos e artistas da Lucasfilm que imagens integralmente nítidas do primeiro plano
até o plano de fundo, inclusive quando representam objetos velozes, divergem do modelo fotográfico com o
qual o grande público está acostumado” (1996: 59)
65
não é a falta de realismo que ocorre nessas produções, mas o excesso. A tendência da
computação gráfica é gerar o contrário de tudo aquilo que é naturalmente degradado pela
seu aspecto original e mesmo após seu estado prototípico, ainda conservavam os traços de
“limpidez” citados anteriormente. Estas criaturas, transpostas deste modo para as telas,
gerariam uma desigualdade de texturas, pois sua artificialidade mostraria-se clara diante da
seria demasiado para se obter o efeito de realidade desejado. Vários truques foram então
utilizados para poluir as imagens, tanto no sentido de dotar os animais com uma textura
granulação produzida pela própria película. Em suma, para chegar-se no grau de qualidade
destaque a qualidade eminentemente fotográfica ligada à película, e que por tantas vezes é
esquecida, devido o costume de se enxergar a tela como uma janela. Como a própria
realidade.
distópicas ligadas ao gênero ficção científica, o visual do andróide T-1000, em seu aspecto
metálico dos pés a cabeça, é notavelmente clean. Ele representa a própria “roupagem” do
tecnologias se apresente, na maioria das vezes, límpido e novo, não importa qual estratégia
66
será utilizada, mas o resultado a ser obtido em cada proposta. O que se deve ter em vista, é
todas as instancias midiáticas pelo digital, e numa escala acelerada de crescimento, parece
tendência responsável por uma hibridização entre material em CG e atores em carne e osso.
Tendência esta iniciada nos anos 80. No entanto, chegou o momento em que o outro lado
do espectro foi atingido. Se há vinte anos era a computação gráfica que dava os ares de sua
de Capitão Sky, em que os cenários e grande parte dos objetos que os atores interagem são
totalmente digitais, frutos de uma tecnologia que os permite aos designers “sentir” a
textura, a resistência do material. Deste modo, uma realidade bastante peculiar é aí criada.
“A sensação produzida no espectador do filme é o que poderíamos definir como uma certa
antigos filmes de ficção científica como Flash Gordon.”(FELINTO, 2006, pg. 416). Tal
como em Star wars, a ameaça fantasma (1999), em que praticamente tudo o que aparece na
tela é digital (com exceção de alguns atores), as filmagens foram realizadas com câmeras
digitais de altíssima definição. O uso da película não foi requerido. Diante dessa
falar em cinema, em sentido estrito, num momento histórico no qual seu próprio suporte
67
(FELINTO, 2006, pg. 412). Se por um lado é inevitável que uma nostalgia dessa
materialidade, e dos afetos por ela produzidos, paire no meio cinematográfico, temos, por
outro lado, uma abertura para novas possibilidades. Uma revolução foi operada no universo
dos desenhos animados, com a chegada do digital. A partir de Toy Story (1995), uma série
telas dos cinemas. O aparato digital permitiu uma gama de inovações no que concerne a
volume e as formas dos corpos e objetos, mesclagem de cores, iluminação, texturas, etc.
Tudo isso, aliado ao fato de que não há mais a necessidade de utilização de câmeras nessas
manipulação de elementos tridimensionais. Estando solta, esta câmera virtual pode circular
livremente pelos cenários, operando movimentações que seriam, em tese, impossíveis para
montagem.
cronologia e a noção linear de temporalidade resulta que, em alguns casos, quando quebras
são feitas, ainda se obedeça aos ditames da narrativa clássica (flashbacks, flashfowards).
68
padrão vigente. “O que é contado e a maneira de se contar a história não mudaram, ou seja,
(SILVEIRA FRANCA, 2000, pg. 3). Raras são as experiências com o uso do computador
que articulam uma diferença com relação aos tópicos supracitados. Um exemplo são os
filmes Waking life (2001) e Scanner darkly (2006), ambos do diretor Richard Linklater. A
rotoscopia. Essa técnica permite a adulteração do filme pela pintura da película, e agora foi
transportada para o digital. Primeiro obtém-se a filmagem de atores e cenários reais, para
Mesmo nos filmes que se beneficiam do uso da câmera digital, ainda é possível
questionar até onde vai uma efetiva quebra com a narrativa tradicional. Os filmes Timecode
(2000) de Mike Figgis e O livro de cabeceira (1997), de Peter Greenaway, ilustram esse
ponto. Em Timecode, a ação se desenrola em quatro telas que particionam a tela principal.
Em cada uma dessas telas acontece uma história diferente, mas que ao longo do filme,
percebemos, estão interligadas. Filmadas em tempo real, estas “partes” rumam para um
ponto comum ao aproximarem-se de seus términos, o que nos coloca o fato de que, através
ser contado de modo usual, com começo, meio e fim, até mesmo em sentido aristotélico. O
observamos uma narrativa não linear, a cronologia não é abandonada, pois o simples fato
69
de que os acontecimentos possam ser apresentados não linearmente, ou seja, adulterados
formato cronologicamente rearranjado das telas múltiplas, que, aliás, não é algo novo, visto
que Abel Gance já o utiliza em seu Napoleão (1927), rompe com a estrutura linear, mas não
com a narrativa.
montar tudo em seqüência, reorganizando a ação. O filme pode ser totalizado, e a história
de Nagiko Kiyonara pode ser contada em toda a sua extensão. A cadeia, a sucessão entre as
ações não foi fundamentalmente perturbada. Nesse sentido, o filme tem um “centro”.
começo, meio e fim. Talvez o filme se preste mais a estudos sobre o olhar, enquanto ícone
contemporaneidade.
Sendo assim, resta-nos a pergunta: Por que a chegada massiva de novas tecnologias
também não despertou um massivo interesse por novas formas narrativas no cinema? Não
talvez esteja localizado num ponto cego, numa desconsideração de alguns fenômenos sutis
70
que vem ocorrendo no campo da narrativa, e que podem representar um eclipsamento ou
certo momento, a incessantes debates sobre o estatuto da imagem e do som. Essa discussão
foi reforçada pelo aparecimento das imagens digitais. Não obstante, ao retornarmos à
questão narrativa, é justo perguntarmos, que tipo de narrativa faria jus aos novos meios que
dispomos. Aos novos recursos, tão amplamente disponíveis. Qual formato narrativo
nos cercam, tais quais são as imagens que os permeiam? O novo paradigma comunicacional
numa sociedade de redes de computador, que corresponde à nova ordem do capital. Esse
novo paradigma pode ser designado com o termo geral de ciberespaço. Apesar de ser ainda
um campo nebuloso, e cujos limites devem ser melhor traçados, podemos defini-lo da
Se por um lado é um tanto vaga a abrangência do que esta nova terminologia engloba, “por
71
2.b Hipertexto e literatura comparada: contextualizando o termo
estarão asseguradas.
comparada (dado que é na literatura que surge o hipertexto, e é nessa área que
abordado. Nascido em meados do século XIX, esse campo privilegia o estudo da literatura
como constituída num constante diálogo entre textos e culturas, agenciados de trocas, re-
imanente e engessado. Nessa linha, ao estudar o romance do século XIX, Bakhtin cria a
obra, é capaz de estabelecer variadas relações com as diversas vozes internas e com os
diferentes textos sociais. Para isso, o autor assinala o que chamou de discurso do mesmo,
não pode ser dissociada. Ele anuncia em O discurso de outrem um estudo metaenunciativo,
também será um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação. Refletindo
72
sobre as estratégias de citação, vemos que é dada a esta um a dimensão de estruturação do
fragmento produzido em outro lugar, a citação pode ou não re-significar o elemento que
cita, sem que com isso sua origem se apague. É nisso que a noção de dialogismo estará
outro, ambas organizadas na enunciação narrativa é que se estabelece uma relação ativa. O
discurso de outrem, por mais que se tente apagar sua origem, pode aparecer na forma de
do enunciado, princípio que será essencial para o funcionamento do discurso citado. Assim,
o que se entende por citação terá as fronteiras bem discerníveis entre o discurso do mesmo
e o discurso de outrem, como o uso, na língua portuguesa, de aspas, travessão para diálogos
e recursos gráficos como itálico e negrito. A partir daí, serão estabelecidas, numa narrativa,
dogmatismo narrativo, ou estilo linear tem como marca o autoritarismo (variável) do autor
pictórico já demonstra certa nebulosidade nas fronteiras entre o discurso citado e a fonte da
73
enunciação. A rigidez do autoritarismo é rompida com a adoção d fala do outro enquanto
modo linear, ou seja, sem o uso de travessão para diálogos, aspas, negrito, etc. Por fim, no
individualismo relativista terá como estratégia estilística peculiar, o uso do discurso indireto
Dostoievski. Nele, Bakhtin propõe que o “herói” de Dostoievski pode ser considerado o
autor do seu próprio discurso, e, portanto, das próprias palavras, numa dimensão similar a
dialogismo apontaria para uma preocupação constante com o outro. Mas não o outro
psicanalítico, com cujo inconsciente está identificado. Mas com o outro textual. As vozes
sociais que se cruzam no romance polifônico não têm hierarquização entre si. Diferentes
subjetividades não irão passar pela filtragem da ótica do narrador, tal qual no romance
monológico.
Tudo já foi dito. Bakhtin ressalta que, ao lidar com o discurso citado, a criação
literária, inevitavelmente, irá remeter-se a este outro lugar donde nasce o discurso que é
Inclusive, o próprio sujeito, através do processo semiótico, não será, senão, “efeito de
74
sentido”. Toda linguagem poética terá seu caráter intertextual desvelado. O intertexto será
relevante para pensar os estudos culturais. Estes, tal como a semiótica, ao operar o
conceitual, mais do que uma impostura intelectual, é o índice da ideologia subjacente a todo
projeto teórico.” (Alós, 2006, p.12). Logo, abre-se a possibilidade de reunir a chamada
Esse termo, assim cunhado por Kristeva, é o intercâmbio semiótico mantido por um
texto com um texto específico, ou corpos de textos específicos, chamados intertexto. Para
ela, texto pode referir-se a obras literárias, linguagens orais, etc. Serão levados em
no livro Palimpsestes, lê no texto, fazendo jus ao título do livro, um outro texto, mas como
tendo sido escrito antes do texto em questão. Seu trabalho é estritamente formal, ou seja,
ele exclui o texto histórico (marxista) social, que é mantido pelos outros dois autores, e
agora situada como uma dentre as cinco outras categorias do transtextual. Sua definição,
75
para Genette, consiste na presença de um texto em outro, sob a forma de citação, plágio ou
do texto com o que se convencionou chamar de seu paratexto: introduções, prefácios, notas
metatextualidade, que pode ser situada num âmbito mais conhecido como comentário, ou
seja, na união de um texto a outro, que o comenta, sem que necessariamente o cite. A crítica
literatura”. Nela, a forma abstrata romance, estabelecerá uma relação com Grande Sertão:
são o conto, a novela, o soneto, etc. A quarta modalidade de relação transtextual será
(hipertexto- hiper, prefixo grego que significa sobre, muito, mais, super) que não se
O termo hipertexto aparece, pela primeira vez, no início dos anos 60. Cunhado por
informática. Está claro que não podemos resumi-lo a esta definição. André Parente
76
argumenta que “O hipertexto estabelece, hoje, relações variáveis com os avanços que se
hitória do livro e da escrita, entre outras.” (PARENTE, 1999, pg. 75). Mas, sondados seus
sendo caracterizado por uma enorme trama, na qual palavras e definições estão
interconectadas de tal forma a produzir uma leitura não linear. Livros-jogo são hipertextos.
Bibliotecas idem, pois são um grande banco de dados que seleciona, registra e organiza
livros (que são, eles próprios, informação), de forma que haja referências suficientes para
criar uma rede de informações, na qual a recuperação dos dados seja facilitada o máximo
se o hipertexto, digamos assim, já existia antes da rede mundial dos computadores, qual a
verdadeira mudança empregada pelo aparato tecnológico? Não seria coerente colocar num
resposta é não. Por um motivo muito simples. Nesse caso, quantidade torna-se qualidade. O
77
permitiu, foi a possibilidade de manipular uma quantidade gigantesca de informações,
numa velocidade nunca dantes vista. O colossal banco de dados que é a web permite um
acesso quase que instantâneo às informações mais díspares. Tal é o volume e a velocidade
traduzem-se em cliques. Esses cliques formarão indexações mais ou manos afins, criando
uma espécie de texto. Além disso, é possível ao usuário copiar os trechos que quiser, de
onde quiser, e colá-los, formando seu próprio documento, por mais heterogêneo que seja.
Pessoas diversas podem criar um grande texto, anexando, entre si, informações diversas. E
o que chamamos de informação podem ser imagens estáticas ou em movimento, som, texto
eletrônico, etc.
somos levados, cada vez mais a pensar, em que contexto são produzidas essas informações.
contextualizante, tão mutante. Para termos idéia, se as peças imutáveis do xadrez, com seus
que, a cada contexto, mudam de sentido, de tom. A rede não se encontra num espaço onde
78
1.Princípio de metamorfose:
trabalho. Sua extensão, sua composição e seu desenho estão permanentemente em jogo para
2.Princípio de heterogeneidade:
Os nós de uma rede hipertextual são heterogêneos. Na memória serão encontrados imagens,
sons, palavras, diversas sensações, modelos, etc., e as conexões serão lógicas, afetivas, etc.
processo sociotécnico colocará em jogo pessoas, grupos, artefatos, forças naturais de todos
os tamanhos, com todos os tipos de associações que pudermos imaginar entre estes
elementos.
analisado, pode revelar-se como sendo composto por toda uma rede, e assim por diante,
críticas, há efeitos que podem propagar-se de uma escala a outra: a interpretação de uma
macrorede social)
79
4.Princípio de exterioridade:
A rede não possui unidade orgânica, nem motor interno. Seu crescimento e sua diminuição,
adição de novos elementos, conexões com outras redes, excitação de elementos terminais
(captadores), etc. Por exemplo, para a rede semântica de uma pessoa executando um
discurso, a dinâmica dos estados de ativação resulta de uma fonte externa de palavras e
imagens. Na constituição de uma rede sociotécnica intervém o tempo todo elementos novos
que não lhe pertenciam no instante anterior: elétrons, micróbios, raios-x, macromoléculas,
etc.
5.Princípio de topologia:
Nos hipertextos, tudo funciona por proximidade, por vizinhança. Neles, o curso dos
homogêneo onde haja forças de ligação e separação, onde as mensagens poderiam circular
livremente. Tudo que se desloca deve utilizar-se da rede hipertextual tal como ela se
encontra, ou então será obrigado a modifica-la. A rede não está no espaço. Ela é o espaço.
A rede não tem centro, ou melhor, possui permanentemente diversos centros que são como
uma ramificação infinita de pequenas raízes, de rizomas, finas linhas brancas esboçando
por um instante um mapa qualquer com detalhes delicados, e depois correndo para desenhar
80
“Cabe lembrar que Pierre Lévy se serviu do rizoma para definir as metáforas da rede
estruturalistas, e mais especificamente, por Gilles Deleuze e Félix Guatarri em Mil platôs.
Não é a toa que Lévy baseia-se no rizoma para pensar o hipertexto, já que este pode ser
Num rizoma, qualquer ponto pode ser conectado a qualquer outro. E deve sê-lo, pois tal
como uma erva daninha, é a própria propagação que o impulsiona. Serão conectadas
diversos.
3º: multiplicidade
Impossibilitada de ter dimensões suplementares, não tem mais qualquer relação com o uno
Aquele que manipula a marionete, também é marionete através de suas fibras nervosas...
Não há dualismo possível, pois os termos operados no rizoma são temporários em sua
81
de uma imitação. A imitação, como a significação, requereria uma lógica binária, dualista,
para desenvolver-se.
Nenhum modelo estrutural ou gerativo pode justificar o rizoma. E nem poderia. Ele seria o
lingüística. Estas disciplinas estão fundads sobre o que Deleuze e Guatarri chamam de
decalques. Estruturas previamente concebidas que irão se repetir sempre em todos os casos
em que se aplicam, provocando redundâncias. Assim, o que procuram já está dado, só que
Contra a lógica do arbóreo, o mapa. Ele é parte do rizoma, é aberto e pode se conectar em
82
dualidade, que permite uma eterna renegociação, na qual os termos implicados serão
Portanto, em resumo, salientaremos que Mil platôs aborda uma noção de plano de
são expressões deste plano de imanência, com suas ligações laterais, acentradas, múltiplas e
virtualmente ilimitadas. Dentro das chamadas figuras de linguagem, ele estaria mais para a
Alguns críticos limitam o conceito de narrativa aos gêneros narrativos. Para Gerald
Prince, os eventos, em sua representação dramática, não fazem parte do universo dos textos
narrativos, posto que seriam apresentações, carecendo de voz enunciadora. Eles teriam
83
lugar no palco. Mieke Bal, em Narratology: introduction to the theory of narrative (1985),
articule na forma de um discurso direto, indireto, ou indireto livre. Desta forma, ele terá que
ser, necessariamente, um “eu”. Isto não impede que o texto dramático inclua narrativas, se
diegese e o tempo do discurso narrativo. Pensando nos três tempos: da leitura, da história e
da narrativa, percebemos que podem haver disjunções e distorções de tal ordem entre esses
três fatores, que o próprio ato de narrar e a figura do narrador, podem ficar comprometidos,
como no discurso indireto livre. Estas e outras questões dizem respeito à narratologia,
termo introduzido por Tzvetan Todorov em Gramática do decameron (1969), e que tem
bibliotecas que melhor encarnavam este processo não linear de acesso, leitura e
(estilo, forma, conteúdo), o hipertexto surge na literatura como uma espécie de exacerbação
do discurso indireto livre. A questão, agora, já não era a mescla entre narrador e
de bifurcações, deslocamentos, inversões que visavam quebrar com uma ordem teleológica
84
da escrita, não para adentrar na não-cronologia (narrativa passível de ser remontada, sem os
fragmento, passeio por um tempo mítico, bifurcado, fractal. A idéia de começo, meio e fim,
gozando de todas as vantagens que uma plataforma tecnológica pode lhe oferecer, na
aplicação do ciberespaço.
No cinema, narrar é contar uma história através de diálogos, monólogos, voz em off,
mas também, de planos, movimentos e angulações de câmera, trilha sonora, etc. Utilizando-
hipertexto, não observamos mais este particionamento, esta discernibilidade entre as formas
realizar-se no cinema? Talvez tenha chegado a hora de pensarmos se, de alguma forma, isto
tal como ele se apresenta hoje. Para isto, iremos nos basear nos seis princípios do rizoma e
85
do hipertexto, para enumerarmos os seis princípios da narrativa hipertextual
cinematográfica:
hipertexto, que hoje se conecta a noção de hipermídia, permite-nos considerar como texto:
imagens, sons, códigos, etc. Portanto, não é de se espantar que possamos pensá-lo em
sígnica, pensamos que seria mais adequado o uso do termo policentrada ao invés de
advém de acentrado, ou seja, não ter um eixo condutor central a trama. Mas a idéia de
multiplicidade de centros deverá ser ressaltada, na medida em que sua expansão rizomática
que Deleuze e Guatarri chamariam de plano de imanência, dado que não haveria ali
obra aberta de segundo grau, pensada por Umberto Eco), haverá uma abertura para que o
expectador, instigado, acrescente a obra seu próprio léxico de informações, seu próprio
86
2.Princípio de acronologia:
cronológico. Nela, o encadeamento das ações está comprometido de uma tal maneira, que
cronológico é impossível, posto que é uma seqüência colocada fora de ordem, e portanto,
pois se pensarmos desta maneira, tudo estará sob o domínio da cronologia. Quando
Todos os tempos estão ali dispostos (bem como todos os caminhos), e portanto,
nenhum. Não há início, meio e fim. Logo, não há finalidade, teleologia ou cronologia.
viriam a ser chamadas de os três tempos do espírito. Estes são, respectivamente: a oralidade
fundamentais de comunicação. Porém, isto é algo que não deve mascarar o fato de que
processo, e que podemos encontrar esses três pólos a cada instante e lugar, pois estão
primária nos “remete ao papel da palavra antes que uma sociedade tenha adotado a escrita
87
(...) a palavra tem como função básica a gestão da memória social, e não apenas a livre
expressão das pessoas ou a comunicação prática cotidiana” (LÉVY, 1993, pg. 77). Lévy
coloca como forma canônica do tempo nas sociedades orais, o círculo, evidentemente tendo
linearidade temporal começa a ser definida, e a forma canônica do tempo será, portanto, a
linha.
nunca dantes visto. Vivemos em uma época confusa, circundada por uma nuvem de
informações que reproduz em seus dados, a acelerada obsolescência gerada pelo sistema
capitalista. Nossos arquivos não são mais “cultivados” no sentido tradicional do termo, mas
rapidamente consumidos, dando lugar a mais e mais dados, que por sua vez serão abertos
em mais e mais janelas, que em breve serão fechadas, dando lugar a outras... Vivemos em
pertence a outro momento. O tempo, aqui, não nos remeterá mais a linha, mas a
É nesse momento que o pólo da oralidade irá ressoar no pólo informático midiático
(ou cibercultura). A ação imediata e seus efeitos (ao contrário da escrita que gera um
88
fato de os agentes da comunicação partilharem um mesmo contexto, aproximam a oralidade
da era das mídias eletrônicas. Porém, esse chamado contexto compartilhado será
que tem aspecto cíclico, será, na verdade, uma estrutura rizomática. Hipertextual.
retorna, é por via de uma iniciativa particular (psicológica) e não como forma de
características do mito. Para ele, “o mito codifica sob forma de narrativa algumas das
representações que parecem essenciais aos membros de uma sociedade” (LÉVY, 1993,
p.82). Quando os mitos são vivenciados, podemos dizer que há uma saída do tempo
pelas sociedades orais, fatalmente irá nos remeter ao complexo sistema de recuperação de
89
entanto, se relacionarmos a noção de mito à era cibercultural, perceberemos que sua
aparição não vem mais cercada da função social exercida entre os arcaicos. O mito não se
presta mais à gestão da memória social, não serve mais para propósitos mnêmicos, pois
todos os dados já estão alocados na rede. Então, sob a forma de que aparece este novo devir
mítico? A resposta é simples: fetiche. Esvaziado de suas funções, o arcaísmo do mito vem
travestido sob a forma do fetiche. Algo próximo aos olimpianos anunciados por Edgar
4. Princípio de ludicidade:
certo caráter lúdico existente nesse sistema. Este, por sua vez, se deflagra na constante
constituem como que o fio e a tessitura do objeto” (HUIZINGA, 1996, p.13). Portanto,
repetimos o jogo ( procurar, ligar) para que cheguemos a alternâncias ( novos significados,
novas associações). Porém, há três outros elementos destacados por Johan Huizinga em
Homo ludens, que refletem com precisão a natureza do jogo: a tensão, o mistério e o
enigma. Esses três elementos podem ser encontrados, inclusive de maneira inseparável, em
90
quais suas intenções) só será revelado no final. No entanto, ao serem revelados os segredos
da trama, o jogo acaba. Talvez, outros elementos lúdicos permaneçam (a ambigüidade dos
acabou.
lúdico de outras instâncias, mas propomo-nos a compreender de que modo ele estaria, aqui,
que está em jogo, mas os próprios meios. O próprio ato de percorrê-lo (devido a sua
natureza não-teleológica) é o que se torna o centro das atenções. Logo, numa trama que
segue esta lógica, o “quem” e o “porque” (quem matou, porque matou) importam menos do
que o “o que” (o que de fato está acontecendo), pois o que está em jogo no hipertexto é o
5. Princípio de interatividade:
consideraríamos uma trama hipertextual. Esta possibilidade surge à partir dos pontos de
articulação da diegese, secretados pelo autor. Quanto mais pontos de articulação, mais
um cubo de argila fresca. Podemos perceber, no cubo de madeira, sua cor, textura,
quantidade de faces. Mas após algum tempo, as possibilidades efetivas de interação estarão
91
esgotadas. Já o cubo de argila é uma estrutura bem mais flexível. Se, num primeiro
momento, ele pode parecer um tanto sólido, logo em seguida, ao pressionarmos suas faces,
perceberemos que a resistência oferecida é bem menor. Que este objeto pode ser
desagregado, desfigurado, e que, inclusive, novas formas poderão ser criadas com o mesmo
material.
quando orquestra o olhar do espectador. A escultura força-o a mover-se pelo espaço, para
apreciar seus diferentes ângulos. Com um filme, não há porque pensarmos que a tal
re-contextualização, mais e mais “links” poderão ser feitos. Mais e mais contextos serão
(mudar seus enquadramentos, fotografia, figurino) e sonoridade, tal qual num programa de
com novos olhares sobre os mesmos elementos da trama, sendo esses elementos ambíguos,
92
facilitado, se a obra com o qual estejamos interagindo, ou melhor, o autor por meio dela,
seja suficientemente sugestivo e consciente de que seu trabalho permita, de uma forma ou
6. Princípio de metalinguagem
próprio contexto da diegese seja posto em cheque será tamanha, que o maior desses pontos,
portanto a mídia pelo qual a obra é veiculada ( no caso, o cinema) terá que ser atingida em
montagem, etc), bem como o próprio filme e seus meios de produção (um filme cujo tema é
deverá desagregar-se enquanto tal, para que restem cada vez menos vestígios de sua fixidez.
significações e acoplagens. Porém, este peculiar diálogo com a tecnologia não será
tecnologia. Ou seja, evidentemente nem tudo o que circula na rede “fala” sobre tecnologia.
Ao contrário, há espaço na rede para praticamente tudo. Da mesma maneira ocorrerá com a
93
cinema, e não a da tecnologia. Portanto, um filme não precisa, necessariamente, abordar a
poderão apresentar relações indiciárias, icônicas ou simbólicas. Este conceito consiste num
acúmulo de referências produzidas pelas articulações operadas nos seis princípios que,
um determinado objeto não será, ou melhor, não representará apenas este mesmo objeto,
94
3.a Consubstancialidade entre o fílmico e o narrativo
que, antes da formulação dos seis princípios da narrativa hipertextual cinematográfica, dois
Bakhtin.
fílmico e o narrativo. Ou seja, o fato de a imagem e a narrativa serem uma única e mesma
coisa.9 Este tema, abordado em sua tese de doutorado e transformada em livro (Narrativa e
modernidade – Os cinemas não narrativos do pós guerra) irá nos remeter ao pensamento de
Gilles Deleuze. Mas isto não pela atenção dada por este à narrativa, e sim por sua
metodologia que volta-se para Bergson em detrimento de Metz – algo em que ambos,
uma linguagem, será evocado o fato de que o cinema constitui-se narrativamente. Será
95
submetidos a regras lingüísticas. Metz aplica, portanto, o modelo estrutural, e opera uma
da semiótica à lingüística. Metz procede por analogia, e seus signos são “signos
imagens, a semiologia do cinema cairá num estranho círculo vicioso: “(...) a sintagmática se
aplica por que a imagem é um enunciado, mas esta é um enunciado por que se submete à
modelo de percepção natural” (PARENTE, 2000, pg. 21). Logo, a imagem faz referência a
uma realidade pré-existente, e para Metz, montagem e cinema são apenas meios de
representação. Portanto, sua análise irá restringir-se ao cinema narrativo clássico. Reduzir o
procurar no cinema traços que só pertencem à imagem” (DELEUZE, 1985, pg. 35). Mesmo
combinações diretas têm por conseqüência a narração. Para escapar do restrito território da
imagens ele irá recorrer à semiótica de Peirce. Isto, em detrimento da semiologia de Metz.
A substituição da imagem pelo enunciado conferiu a esta uma falsa aparência, dado que o
movimento, seu caráter aparente mais autêntico, foi eclipsado. O foco agora são as
imagens, e não os enunciados. Peirce argumenta que nós conhecemos as imagens, que só
conhecemos o que aparece. Para ele, a linguagem é um signo entre outros. E signo é algo
96
que representa algo para alguém. A partir daí, todo signo terá um objeto, estará referido a
Primeiridade: termo que é, tal qual é, em relação a si. Por exemplo, a tristeza (sendo
Segundidade: termo que é, tal qual é, em relação a um segundo. Este termo incide
Não sendo apenas ordinais (primeiro, segundo, terceiro), estes três tipos de imagens
são cardinais. Logo, há dois no segundo termo, e três no terceiro. Inicialmente, Peirce tenta
estabelecer a semiótica como lógica. Ele abandona esta posição no momento em que
apresenta em sua fenomenologia três tipos de imagem enquanto fato ao invés de deduzi-los.
O signo indica, em relação à imagem, uma noção cognitiva. Talvez a maior contribuição de
Peirce tenha sido no campo do conhecimento, dado que ele formula de modo acurado uma
relação na qual o signo não faz conhecer seu objeto. “Ele pressupõe, ao contrário, o
97
reencontrar as verdadeiras diferenças de natureza ou articulações do real10, ele pretende
divisão bergsoniana, ou seja, entre duração e espaço, da qual todos os outros dualismos
derivam, perceberemos que, na realidade, há uma divisão entre duas tendências. Nela, a
duração tenderá a portar todas as diferenças de natureza, posto que é capaz de variar
relação umas às outras, e não em relação a si mesmas. Sob esta perspectiva, entendemos
que diversas durações irão conviver, sejam superiores ou inferiores à nossa. E a intuição é o
método pelo qual poderemos averiguar este fato. Isto se dará ao sairmos de nossa própria
duração, pois ela, a intuição, não é a própria duração. Um salto é dado, da psicologia para a
ontologia. Se a duração não tivesse a intuição como método, permaneceria apenas como
uma experiência psicológica. E se não coincidisse com a duração, a intuição não seria capaz
imaginamos, conceituamos, e tudo aquilo que pressupõe duração não ocupa lugar no
espaço. O tempo tem realidade, mas sua realidade é virtual. Seu ser é movente e consiste
em conservar aquilo que passa. Ao contrário dos racionalistas, aqui, ser e pensar são a
mesma coisa. Não há instância mediadora. No entanto, a consciência é incapaz de criar. Ela
seria tão somente um instrumento de análise e escolha. Sendo a imagem luz, esta luz não
emana da consciência, que é capaz de refleti-la, mas da matéria. Portanto, as imagens não
são produções psíquicas. Elas são reais. Há um “em si” das imagens, e não há distância
10
Método da divisão como um platonismo em Bergson exprimido no texto de Platão sobre o ato de trinchar e
o bom cozinheiro.
98
entre imagem e matéria. A imagem não é representação da matéria, mas apresentação. Para
para existir. A matéria, ou imagem viva, distingue-se da não viva por um intervalo de
órgãos sensoriais), e uma resposta (movimento executado por centros motores), o que
motor. Tanto os movimentos como os intervalos farão parte de um conjunto que Bergson
é em si o fluxo da matéria, se reporta a nós, ela irá determinar-se como imagem percebida
por um lado e imagem agida por outro. No intervalo entre a percepção e a ação, há a
afecção. O afeto está entre o perceber e o agir. No entanto, é numa idéia de relação que se
99
primeiridade11. Pois ela se prolongará por si mesma nas outras imagens, e não exprimirá tão
somente o movimento, mas sua relação com o intervalo de movimento. Nesta associação,
portanto, não incide sobre o mundo físico. Esta qualidade pura se dá antes da ação motriz
ser deflagrada. Logo, pertence à categoria do possível, do ideal. O close será signo de
as coisas não existem nas próprias coisas. Saímos da ordem das relações físicas para as
mentais. Deleuze então levanta a tese de que o todo Bergsoniano é o todo das relações. Este
todo só pode ser pensado por que na observação o que temos são os termos que se
específico na pesquisa: “por que pensa Peirce que tudo acaba com a terceiridade, com a
imagem-relação, e que não há nada além disso?” (DELEUZE, 1985, pg. 47). Dentro do
1951) é fruto de uma percepção que não pode partir para a ação-motriz, como na ação do
mesma forma que o próprio expectador, por sua vez, é convocado a ser mais um
11
Deleuze também explora mais outros dois tipos de imagem às quais não iremos nos deter por motivos
metodológicos: imagem-pulsão e imagem-reflexão.
100
actantes, dada a valorização que é conferida à contemplação. Ao olhar. A presença do
Nos filmes de Alfred Hitchcock, está claro o fato deste diretor ser um pensador de
relações (terceiridade). Ele foi o maior lógico do cinema, e suas obras são verdadeiros
postulados lógicos, pois nelas estão expostas diversas cadeias de raciocínio através da
relações, podemos colocá-lo como um mestre deste gênero. Nada é gratuito em suas
imagens, pois em cada uma delas, a montagem está internalizada. Portanto, as relações
própria imagem, que passara a durar. Os quadros duram por que não fazem a trama durar.
Logo, a duração torna-se independente da montagem. Seu quadro é uma tapeçaria onde o
todo será exposto. Nesta trama, todas as peças serão importantes. Tendo o expectador
perdido um signo, tudo se compromete. Hitchcock não dispensa a ação. Ele a transforma
contempla, como em Janela indiscreta (1956). Num filme clássico, típico representante da
montagem. Há uma “indicação” de como se pensar, sentir etc. Num filme de contemplação,
perder uma única imagem é perder o conjunto das relações. Hitchcock está esgotando a
é, portanto, um divisor de águas. O que está sendo anunciado como novo é o domínio de
101
tempo, teremos cineastas como Fellini, Godard, Resnais (O ano passado em Marienbad-
Inicialmente adentrando o universo artístico pela via das artes plásticas (pintura e
escultura), não é de se espantar que este cineasta natural de Missoula (Montana – EUA) e
nascido nos anos 40 tenha flertado com o surrealismo ao longo de sua obra. Se o
surrealismo de Lynch tem um viés próprio, ora sombrio, ora exageradamente dramático,
podemos inferir duas coisas sobre isto. Primeiro, devemos observar que o caráter surrealista
das obras de David Lynch não é apenas estético, mas narrativo, dado o uso da associação
livre de idéias e o tom onírico, caros a este movimento. Segundo, este caráter surrealista
corresponde, strictu sensu, a uma parte de sua obra. Pois se a estética surrealista irá pontuar
momentos posteriores, a narrativa surrealista não irá mais aparecer. Este tipo de narrativa
será encontrado nos curtas e médias metragens do diretor, e em seu primeiro longa,
Eraserhead (1977). Este último, apesar de apresentar várias características do que estaria
por vir em termos estéticos e narrativos, deverá ser melhor encarado como uma espécie de
coroamento da fase inicial do diretor. Já nas décadas de 80 e 90, apesar de uma abundância
orientação narrativa mais tradicional em filmes como O Homem Elefante (1980), Duna
(1984), Coração Selvagem (1990) e História Real (1999). Por não estarem tão claramente
definidos em termos narrativos, os quatro filmes restantes: Veludo azul (1986), Twin Peaks
102
(1992), Estrada Perdida (1996) e Cidade dos Sonhos (2001), serão objeto de apontamento
em nossos estudos.
Numa das últimas seqüências deste filme, uma imagem peculiar é capaz, por si só,
“homem amarelo” devido à cor do terno que usa), aparentemente morto por um ferimento
na cabeça, do qual emergem sangue e tecido cerebral. Em contato com esta visão somada a
que está no bolso do “homem amarelo” toca, o mesmo, por puro reflexo, ergue o braço
esquerdo e acerta um abajour. Este homem não está morto. Ou, completamente morto, se
podemos assim argumentar. Mesmo com o rombo em sua cabeça, da qual emana massa
encefálica. Pelos olhos do protagonista, nos deparamos com o que Deleuze chamaria de
imagem-cristal. Temos a apresentação de uma imagem e de seu duplo especular, o que nos
leva a um impasse, a uma indiscernibilidade entre o atual e o virtual, a vida e a morte deste
sujeito. As cenas Lynchnianas cujo tema é mais marcadamente onírico (como na seqüência
inicial, na qual aparecem uma cerca branca junto a rosas acentuadamente vermelhas e o
carro do bombeiro em câmera lenta) destoam deste momento, pois de algum modo a
103
orgânico diante de uma situação que evoca tamanha bizarria, nos puxa parcialmente para a
realidade concreta. Não estamos assistindo, tão somente, a lembranças evocadas pelo
devaneio ou o sonho, e que estavam perdidas nos anais do tempo. O protagonista está, de
fato, participando daquela “imagem”. Com o ato de privar este personagem da morte, ou
fazê-lo morrer de pé (cremos que tanto faz, neste momento) Lynch opera uma evidente
(digamos até literal) quebra com o aparelho sensório-motor, na qual os elementos que
desfilam diante de nossos olhos nos conduzem ao que Deleuze classificaria como imagem-
estaríamos sendo amplos demais, dado que a maioria dos filmes de Lynch aborda, de uma
forma ou de outra, este tema. Se apontássemos o plano das perversões sexuais, estaríamos
sendo muito específicos. Veludo azul é um filme impotente, amputado, onde o fato de um
homem estar privado de seu repouso mortuário é o ápice dessas características. De certa
maneira, este estágio intermediário entre vida e morte perpassa a coletividade dos
pacatos cidadãos de classe média, movidos pela televisão e por uma rotina monótona. Seja
pela vampiresca atitude de Ben e Frank, ou pela alienada e grotesca bufonaria de seus
capangas e de senhoras gordas que, vez ou outra, executam uma dança patética. A própria
Dorothy Valeur, privada por Frank da companhia de seu filho e marido, executa seu número
no show club de maneira distante e lúgubre. Mas seu estado de apatia e morbidez culminará
104
diante das perversões e da agressividade de seu chantagista, que para utilizá-la como objeto
de ritual e “gozo” (Frank parece ser impotente), transforma-a praticamente num zumbi
Na cidade cujo principal comércio consiste em serrar árvores, adentramos cada vez
num submundo sombrio e pegajoso. Isto, juntamente com o estranho colapso do Sr.
Beaumont, compõe um prenúncio para os estranhos acontecimentos que virão mais adiante.
comunicação que esbarra na fala ceifada pela traqueotomia, no inútil esforço de sua língua
agitada e num subseqüente choro contido, vivenciamos com o protagonista uma rachadura
matagal. E, diga-se de passagem, uma orelha esquerda. A partir de alguns dos já triviais
aberrações), que serão devidamente analisados a posteriori, temos uma série de signos que
tal veludo azul, além de ser uma conhecida canção pop dos anos 60, ainda pode ser
tecido que ondula atrás dos créditos no plano da abertura. Ainda não se pode afirmar nada
sobre a obra que se verá a seguir, mas uma determinada atmosfera está sendo construída.
105
música, a melodia, ou a performance de Isabela Rosselini serão interpretados. Num
momento seguinte, o veludo azul aparece como um indiscutível objeto de perversão sexual
outro termo que possa ser utilizado para representar as lágrimas de Frank), dado que ele
acaricia uma tira deste tecido enquanto assiste ao show de sua “amada”. Finalmente, este
signo será virá associado à morte, na medida em que é encontrado na boca do marido de
Dorothy, já sem vida, próximo ao fim do filme. Os créditos finais são exibidos da mesma
maneira que os iniciais, como se todas estas possibilidades fossem condensadas numa única
imagem que abarcasse tanto as nuances da doce canção-tema, como as piores violências e
atrocidades sexuais.
mesmo um tema, que poderá levar-nos a diferentes ambiências. Ao longo do filme serão
identificados outros coágulos. No entanto, estes coágulos podem ser vislumbrados não
loura/morena será abordada em veludo azul como uma oposição entre a personagem de
Laura Dern, uma jovem idealista assustada com a eminente corrosão de valores que
Jeffrey. Em sua galeria de aberrações, contará com, além do próprio Frank e seus estranhos
variedades, o tresloucado bandido é venerado pelo principal vilão como sendo uma apurada
106
outro elemento notável que se repete no interior do filme, e que não podemos deixar de
analisar. Há nele três referências diretas a uma orelha, referências estas que comporão uma
espécie de movimento. Num primeiro instante, inclusive citado anteriormente, uma orelha é
encontrada num matagal ermo. Posteriormente, a referência a esta orelha é feita por um
primeiro plano que explicita a amputação desta mesma orelha na cabeça do marido de
Dorothy, próximo ao fim da história. No fim, é mostrada uma orelha direita, mas esta, por
sua vez, não está amputada, pertencendo a Jeffrey. Ao destacarmos apenas o momento
inicial e o final, ou seja, onde as orelhas aparecem efetivamente, percebemos uma conexão
câmera vai em direção ao órgão num lento e claustrofóbico zoom in. No segundo momento
a câmera “sai” de dentro da orelha, num zoom out, e á medida em que se afasta, torna-se
evidente quem é seu dono. Poderíamos, numa primeira leitura, lançar mão da idéia de uma
circularidade presente nesta obra. Tudo se passaria “entre duas orelhas” que se remeteriam
Dorothy recupera seu filho. Os vilões são mortos e o tordo na janela devora um besouro
com uma narrativa tradicional é inegável, e, portanto, ainda não estamos íntimos o bastante
107
3.d Twin Peaks – Os últimos dias de Laura Palmer
subtítulo do filme em inglês (fogo anda comigo). Este elemento atua intensamente em sua
filmografia, e neste caso servirá como um prenúncio para a investigação da vida de Laura
Palmer. Aliás, se é possível apontar mais uma constante na obra lynchniana, sem dúvida
algum tipo de investigação, feita com maior ou menor sucesso. No caso de Veludo azul,
que esta chega a ser maior até que a da própria polícia) a uma gangue de seqüestradores
providenciais manobras, para que só então a polícia chegue, mais uma vez, atrasada. No
desfecho de Veludo azul, há uma solução clara que é alcançada, bem ou mal, por aqueles
seres concretos que se dispuseram a nela investir. Em Twin Peaks – Os últimos dias de
Laura Palmer, a coisa não é bem assim. Primeiramente, os agentes do FBI Desmond e
Stanley são convocados pelo superior Gordon (o próprio David Lynch) para rumarem em
direção à cidade (mais uma vez uma madeireira) de Twin Peaks. O caso em questão é o
assassinato de Tereza Banks, uma bela e jovem mulher cuja história ainda não nos foi
informada. Porém, antes de partirem, o agente superior Gordon os presenteia com algumas
informações-chave para que se inicie o caso, só que na forma de música e apresentadas por
uma enigmática mulher de vermelho que, muda, faz toda sorte de gestos e expressões num
curto espaço de tempo. O que se percebe a, é uma espécie de fetiche pelo indecifrável, que
108
quando é desvendado pelo agente Desmond para seu colega Stanley, ainda continua soando
forma de uma rosa azul. Mostrado posteriormente num plano-detalhe, o broche evoca a cor
azul como um ponto de interdição, de mistério, posto que é o único elemento sobre o qual
não se poderá falar. E se é um aspecto proibido, pensamos, não deverão faltar motivos para
Um ano após o incidente, e tendo como saldo meia dúzia de provas inconclusas, o
FBI retoma seus trabalhos convocando, desta vez, Dale Cooper. A partir de alguns
incidentes, somos levados a crer que o agente possui estranhos poderes ligados à
paranormalidade. Ainda não sabemos exatamente do que se trata, porém mais à frente, o
filme deixará estas relações mais claras. O primeiro indício de que a história não transcorre
tão somente em nosso mundo, se dá com a presença do personagem de David Bowie. Dale
conta a Gordon um sonho, no qual na imagem de um circuito interno de vídeo, é retido por
Phillip Jeffries (Bowie), num estranho efeito de captura e delay (retardamento). Com esta
sobrenatural.
Mais adiante, os dois agentes o interrogam, e ele revela sua estada, em seu sumiço
de dois anos, num lugar que, haja em vista a atmosfera e os personagens que ali circulam,
não pode coabitar nosso mundo concreto. Jeffries teve acesso a um mundo paralelo que
para nós ainda é obscuro, cercado de dinâmicas improváveis e seres fantásticos. É ali que
aparece, pela primeira vez, o anão, espécie de figura central do “bestiário” lynchniano nesta
obra. O diretor, aos poucos, vai montando um pequeno circo de horrores. Intrigado com
suas próprias “visões”, Dale Cooper começa a lançar mão, em seu trabalho, de técnicas
109
pouco ortodoxas para atingir seus objetivos. Um ano após o assassinato de Thereza Banks,
ele prevê que um novo assassinato ocorrerá, e desta vez com uma jovem com
Palmer. Estudante de segundo grau, loura, com uma queda por drogas e promiscuidade. O
estado da jovem é de tamanha periclitância que ela própria comenta com seu suposto
namorado James que “já se foi há muito tempo”, e sente-se como um “peru de véspera”.
Seu corpo encontrado morto num rio, dentro de um plástico, até certo ponto retifica esta
imagem. Definido o fato de que Laura irá morrer (seja pela predição de Cooper, seja pelo
fato de sabermos que o filme trata de seus últimos dias), o suspense recai sobre seu (ou sua)
Resquício contemporâneo das tramas dos filmes noir, Twin Peaks mostrará ser uma
cidade de suspeitos. A impressão que temos é que todos são potenciais culpados. Seja no
sentido jurídico, seja no psicológico. É neste plano que o filme se articula, desliza. Na culpa
de Laura, por sua vida dupla na qual sofre abusos sexuais de uma entidade chamada Bob,
desde os 12 anos de idade. Da sua amiga Donna (a morena, desta vez, surge como símbolo
de amizade), por não conseguir ajudá-la. Da mãe omissa e do pai perturbado por seus
desejos. De Bobby, o garoto viciado. De James, o namorado cujo coração está partido, e
dos demais cidadãos que, de uma forma ou de outra, sentem o toque da degeneração
invadindo suas vidas. Há algo de tão podre e sórdido na cidade, que a trama começa a
policias tradicionais é sabotado, pois, neste caso, não adianta reunir um número específico
110
de provas e juntá-las. Aqui somente um policial sensitivo perceberia, de fato, o que está
acontecendo, pois bizarra hermenêutica lynchniana entra em ação, e desta vez, em escala
orelha amputada), a existência de um outro plano, em Twin Peaks é literal. Só que onírica.
E é isto que Dale Cooper percebe-se capaz de fazer. Ele é capaz de penetrar neste plano,
Twin Peaks significa “picos gêmeos”, tal como indica o cartaz de “bem vindos” à
cidade. Se o propósito deste trabalho fosse pura e simplesmente interpretar a obra de David
Lynch, poderíamos encontrar alguns correlatos simbólicos para os tais “picos gêmeos”. Por
duas jovens na mesma faixa etária, com um biótipo próximo e pertencendo à mesma classe
social; a saber: Thereza Banks e Laura Palmer. Ou, poderíamos encontrar este correlato até
mesmo nos seios de Laura, que, exibidos com insistência, denotam sua sexualidade
tanto essas como outras interpretações, é procurar na obra um dado objetivo de repetição do
signo que configure uma linha de pensamento do diretor. Este dado pode ser encontrado no
chão do que se convencionou chamar de black lodge (cabana negra), ou seja, o fatídico
plano onírico no qual o filme desdobra-se. Ali, o “duplo pico” estende-se para a esquerda e
a direita, para cima e para baixo, em linhas pretas e brancas, construindo um padrão prenhe
proposta conceitual “Twin Peaks”. A partir daí, diversas conexões de sentidos poderão ser
feitas, sem que se chegue a uma verdade interpretativa. Cada um poderá alimentar sua
111
associação, de acordo com referenciais intelectuais, emotivos, estados de espírito. São
permitidas “dobras”, por assim dizer. Outros elementos serão passíveis de reverberação e
reconfiguração de sentido. O anel, ou aliança, que para o senso comum significa “união
eterna” (seja pela idéia de casamento, seja pelo seu formato circular, ou seja, “sem fim”),
significará o quê, quando oferecido pelo anão? Será o anel uma aliança ruim? Dale Cooper
tenta alertar Laura, em sonho, para que não o aceite. Não obstante, o homem sem braço que
tenta ajudá-la, confirmando suas suspeitas em relação ao pai, ou melhor, em relação ao fato
de Bob ser na verdade seu pai (uma das terríveis “cenas do trânsito” de Lynch) usa um
desses meios anéis no dedo mindinho. Thereza Banks, cujo fim foi trágico, também usa o
depoimento informal, a dona da lanchonete na qual Thereza trabalhava, disse que poucos
dias antes de sua morte ela teria sido acometida por uma paralisia no braço esquerdo, e logo
em seguida, acrescentou para tal fato uma insinuação sobre o uso de cocaína. Laura,
durante um sonho, e pressionada pelo anão a aceitar o anel, também sofre este tipo de
paralisia. Ao mesmo, o anão afirma: “eu sou o braço”, ao mesmo tempo que dispõe do
Ora, não é difícil suspeitar de que haja uma conexão, uma simbiose entre dois, algo
que é evidenciado no momento em que o anão o toca e ambos dizem: “Bob, eu quero toda a
minha garmonbozia (dor e tristeza)”, quando Lelan Palmer, o pai de Laura, é “julgado” no
Black Lodge pelo assassinato da filha, juntamente com seu duplo, Bob. O anão representa o
bem ou o mal? O vício ou a virtude, já que neste outro mundo Laura finalmente parece
alcançar um certo alívio? O que podemos dizer é que ele controla esta outra realidade, e
112
que estipula jogos, que poderão ser aceitos ou não. Talvez um pouco como o diretor David
Lynch.
No fim das contas, ficamos sabendo um pouco mais sobre este caso, classificado
como uma “rosa azul”. Possivelmente, este era o código para perversão, incesto, crime
hediondo ou alguma morbidez, suscitado pela cor azul na obra lynchniana. O fato é que,
apesar de uma circularidade (os assassinatos que abrem e fecham a obra), a definição de um
plano de articulação e a incidência de coágulos sígnicos pululando pela trama, ainda não
estamos tão distantes de uma certa narrativa tradicional que prima por premissas e
uma das primeiras cenas mostra o personagem Fred ouvindo a seguinte frase em seu
interfone: “Dick Laurent está morto”. Ao longo do filme, Fred alega não conhecê-lo, e em
encerramento da película, nosso protagonista (que já havia deixado de ser Pete, e volta a ser
Fred), vai em direção a seu próprio interfone, e profere a seguinte fala: “Dick Laurent está
morto”. Ora, se uma das primeiras imagens do filme consiste em mostrar este homem
ouvindo a mensagem que ele mesmo grava no final, e não temos nenhuma indicação de que
a cena próxima ao fim seja um flashback, então estamos entrando num território narrativo
desviante. O fim e o início estão inundados, estão conectados num devir circular. Um
113
remete ao outro numa cadeia autoreferencial que não poderá ser interrompida, visto a
linear ou não linear, cronológica ou não cronológica. Apesar de os outros dois filmes de
Lynch já analisados secretarem tempos e espaços “outros”, algo que culmina com Twin
Peaks onde chegamos mesmo a um outro mundo, um mundo paralelo ao da cidade citada, a
idéia de uma quebra com a linearidade e a cronologia não é efetiva. Nessas obras, há um
potencial dispersivo, que não é levado ás suas últimas conseqüências, e o ponto onde
havíamos forçosamente parado é justamente este: o fim. Pois tanto em Twin Peaks como
tempo, ainda não fomos capazes de nos livrar da idéia de fim tanto enquanto final, como
também, finalidade. Temos aí dois filmes “juntos”, pois neles, algo é delimitado,
perdida isto não ocorre, pois o filme se desenrola para além do fim da projeção. Não há um
fim concreto, no sentido de final (teleológico) e no sentido de finalidade, pois nada está
eterno retorno dos mesmos acontecimentos não está plenamente garantida, dado que uma
pequena tangente é apresentada na história. Após sua fatídica fala no interfone, Fred foge
com seu carro em disparada, e pouco depois se inicia uma nova metamorfose, cheia de
mesma apresentada nos créditos iniciais, uma estrada “vazia”, sendo percorrida em
considerável velocidade. Esta nova metamorfose poderá conduzi-lo a uma nova realidade.
12
Lynch não é o primeiro nem o único cineasta a propor este tipo de relação espaço/temporal para além do
“fim”. No entanto, ele organiza sua narrativa de modo tão próprio que realmente chega a ser algo digno de
nota.
114
Sendo assim, o ciclo tomaria um novo rumo, desfazendo-se. Mas como a imagem
dos créditos finais assemelha-se à dos iniciais, também somos tentados a crer que tudo irá
protagonista, com razão não se lembraria de ter assassinado Dick Laurent, ou até mesmo, a
A julgar pelo título, as imagens dos créditos iniciais e finais, e seu próprio enredo,
lançamos mão da fuga como o tema central da obra. O filme opera no plano da fuga, e não
num plano DE fuga, pois estrada perdida não tem horizontes (como mostram os créditos),
e, portanto, não é possível fugir de fato, mas apenas tentar fugir. E do que é que se está
que ele não acredita ou não concebe o fato de ter assassinado a esposa, e vem a trocar de
identidade duas vezes mais adiante. A forma com que Fred transforma-se em Pete (que
inclusive é interpretado por outro ator, bem mais jovem e com biótipo notadamente
diferente) não é propriamente explicada, mas envolve a figura do senhor mistério, um ser
um tanto assemelhado a Mefistófeles, no aspecto e nas ações. Pete terá uma nova vida, mas
transformados. Não é somente a ligação existente entre o início e o final da trama que é
cabal para destrincharmos a estrutura narrativa apresentada, mas o que podemos chamar de
primeira troca de identidade, quando Pete é encontrado no lugar de Fred na cadeia. A partir
daí, o filme funcionará como dois espelhos, nos quais uma identidade irá refletir a outra, tal
13
Tal como num jogo se reiniciando.
115
qual as imagens desses espelhos paralelos, e apontados um para o outro, se refletem 14. O
adequada. O que estrada perdida apresenta como enredo é apenas um pré-texto para uma
de sentido, e logo, a uma múltipla apresentação sígnica (seja pela sua formatação
portanto não há “o” centro da narração, mas múltiplas leituras que seriam oferecidas ao
precisamente essa ‘perda de centro narrativo’ o que parece acontecer em Estrada Perdida,
2000, pg. 12). Quando a sentença “Dick Laurent está morto” é lançada no início do filme,
pensamos que existe sim um enigma a ser definitivamente decifrado. Porém, pela forma
como o filme é conduzido, ou pelo fato de Dick Laurent ser outro coágulo sígnico, estes
última vez que a frase foi mencionada, referia-se a um mero assassinato ou se, para a mente
confusa de Fred, o termo Dick Laurent poderia ser substituído por outro termo (violência,
medo, ciúme).
14
Os coágulos sígnicos surgidos a partir daí funcionarão como ponto de partida, como reconfiguradores de
contexto.
116
O caráter acronológico do filme é claro. Ele não está disposto fora de uma ordem
que deverá ser recuperada, como nos filmes não-cronológicos. Aliás, não existe uma única
A linha não será mais uma figura adequada para representar o tempo neste universo.
cores15 (ou seja, coágulos sígnicos), aparecerão não apenas como um duplo representante da
realidade concreta, mas como camadas de uma geologia virtual (lençóis do passado, como
argumentaria Deleuze) que se sobrepõem de maneira variável. Sendo assim, Fred também
poderá ser Ulisses, Édipo, Hamlet, Fausto. Não existem nele características pessoais sólidas
aniquiladas pela própria disposição do filme. Estamos diante de um devir mítico, mas não
como o das sociedades tribais, que serviam para a gestão da memória grupal. Estamos
uma cultura de consumo pop e fetichista. Onde o “pacto” é e não é feito. Onde o
frenético solo de sax que Fred executa é ouvido no rádio da oficina mecânica por Pete, que
15
Como no detalhe das unhas de Alice pintadas de azul metálico. Já foi apontado anteriormente que o azul, na
obra de David Lynch, tem uma conotação mórbida.
117
se angustia e desliza. A lúgubre Renné, cujo assassinato nos remete ao de Black Dhalia, tal
como no filme de Brian de Palma, espelha-se na voluptuosa Alice 16. Esperamos que o
espectador é inevitável.
Pois se os códigos são intercambiáveis, habitam camadas cada vez mais profundas, o
espectador entrará com seu repertório cultural para solucioná-lo a seu modo. A coleção de
assistindo, acabam por ajudar, pois nenhum espectador sabe de fato o que está acontecendo,
estados de humor. Por exemplo, o casal Madison (Fred e Renné) começa a receber fitas de
vídeo que mostram o conteúdo de sua residência. Até então, temos um quadro suspeito e
assustador. Em uma das imagens, por sua altura e angulação, temos a impressão de que a
gravação não foi feita com câmera na mão. Mas a coisa torna-se verdadeiramente bizarra
quando, assistindo à última fita, Fred se vê diante de sua própria imagem cometendo o
assassinato de Renné, sendo que sua esposa havia visto as outras fitas com ele até bem
recentemente, e no começo desta cena o marido não fez menção a respeito de um possível
sumiço de sua mulher. Estaria ele com amnésia? Não há uma referência direta a isto. Seu
estado mental está patologicamente afetado? Talvez. A questão é que o crime parece
acontecer primeiro na tela para depois surgir na “realidade”. Se a fita é uma seqüência que
sala junto a seu cônjuge é virtual. Não passa de uma projeção da mente do marido
16
O tema das histórias infantis é caro a Lynch. O nome Alice possivelmente nos remeterá a Lewis Carrol, tal
como a Dorothy de veludo azul e os sapatinhos de Laura Dem, em Coração selvagem, nos remetem ao
Mágico de Oz.
118
perturbado. Se as fitas são reuniões de momentos diferentes, resta-nos crer que seja tão fácil
entrar na residência dos Madison, ainda mais para testar excêntricas angulações de câmera.
possibilidade de que esta primeira parte do filme (até o momento da prisão) tenha se
passado na cabeça de Fred. Se persistíssemos nessa lógica, seríamos levados a crer que o
filme inteiro se passa na cabeça do protagonista. Mas não é tão simples assim. A estranha
realidade Lynchniana não discerne claramente o real do virtual, presente e passado, sonho
celular a Fred, no intuito de que ele telefone para sua própria casa. Para surpresa geral, é o
próprio Sr. Mistério que atende a chamada, abrindo a possibilidade de apresentar-se como
com crise de identidade, alguém que não quer se haver consigo mesmo, toda forma de
duplicação e de registro de si próprio será maldita. O filme começa dando indícios disto
com a estranha gravação no interfone, cuja sentença, primeiramente, leva Fred a uma
119
Laurent). Com relação às fitas, uma delas, cuja atmosfera já é por si só claustrofóbica,
mostra o casal dormindo em seu quarto. Eles chamam a polícia (que a priori consegue
finalmente ser eficiente, prendendo Fred, mas este é miraculosamente substituído por Pete,
perguntam a Fred se ele tem uma câmera de vídeo. Renné diz que ele odeia câmeras de
vídeo, e o próprio acrescenta que gosta de lembrar das coisas a seu modo, ou seja, não
necessariamente da maneira como aconteceram. Esta fala supõe claramente seu modo de
Posteriormente, ainda em sua residência, Fred entra num cômodo quase que
fundo deste cômodo há um espelho, cuja imagem refletida ele observa por alguns segundos.
Um pouco depois de seu retorno, ele assiste à última das fitas enviadas, fita esta que mostra
sua própria imagem assassinando a esposa. Chocado, então não acredita no que fez e clama
aos policiais pedindo que, por favor, digam que ele não a matou. O registro, nesse caso,
serviu para que ele próprio visse o que não cria ter feito, e retornasse à realidade. Mais à
frente, o ato da gravação em vídeo será associado à figura do Sr. Mistério, que munido de
uma câmera, irá inquirir violentamente nosso personagem central, perguntando afinal quem
diabos ele era. Mais uma vez, sua identidade é posta em cheque. Sua última possibilidade
de redenção (se é que podemos chamar assim) é quando ele assassina Dick Laurent/Mr.
Eddy, com o aval do próprio Sr. Mistério. Novamente, o registro estará associado ao
elimina.
120
3.f Cidade dos Sonhos
É claro o fato de que Cidade dos sonhos apresenta-se, em sua narrativa, de maneira
mergulharemos nas sinuosas curvas de Mulholland drive, via que dá acesso ao topo de Los
Angeles. De lá, podemos ver de um lado Holywood e de outro, o Vale são Fernando,
conhecido por sua multi-milionária indústria de filmes pornô. O próprio David Lynch
“ (...) de um lado você pode ver todo o Vale (de São Fernando) e do
outro, Holywood. Essa foi uma das primeiras idéias que me vieram, foi a
base de tudo.” (BAIANA, 2002, pg. 46).
que, também como estrada perdida, o filme tende à infinitude. Por exemplo, a loura e a
morena, desta vez, terão um affair, mas não deixarão de encarnar a relação de oposição
(Camila está com uma peruca loura), olham-se no espelho. Antes de Diane acordar, o que
centrais marca uma espécie de ápice (o qual terá continuidade com a cena de sexo entre as
121
qual o filme operará é o da ilusão. Tudo é ilusório ou iludível no filme. Até mesmo o
referência ao concurso de dança feito neste estilo, e ganho ainda no Canadá por aquela que
acreditamos ser Betty. A bela jovem aspirante a starlet é o protótipo do que o star-system
fetichista. Logo após a apresentação, observamos uma imagem que se utiliza de câmera
encerram quando Diane acorda, podemos deduzir que na verdade Diane sonhou toda a parte
convencional do que na segunda. Até o momento em que Diane acorda, três linhas
decadência do diretor de cinema Adam Cashier, e um sujeito que sonha com a figura mítica
filme está “acordado”, a montagem é bem mais fragmentária, e não faltam elementos
oníricos (como na cena em que Diane se suicida). Em segundo lugar, a circularidade deste
filme é dada pelo momento em que a limusine sobe as curvas de Mulholland dr. No início
do filme, quem está no carro é Camila, e esta sofrerá um acidente que se lhe salva de ser
Diane que será conduzida para outro tipo de acidente. A saber, a festa em que sua vida
17
A palavra jitterbug significa “o agitar-se do inseto” ou “inseto agitado”. O termo bug ainda será usado no
sentido de importunar (com a concorrente morena para o concurso do filme que é feito dentro do filme) e no
sentido de carruagem (com o caubói). Portanto, é um coágulo sígnico.
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desmorona, e na que podemos ver diversas figuras, ou coágulos sígnicos, que irão permear
a primeira parte (a manager Coco, a figura mítica do caubói, um dos irmãos Castigliani). Se
o filme é efetivamente circular, toda vez que se inicia, se reinicia. Logo, teremos que contar
com duas possibilidades. A de que as personagens centrais revivam todo o drama que já
passaram, ou que, estando as duas mortas, o filme seria uma espécie de limbo
cinematográfico. Um local de purgação dos pecados cometidos em vida. Mas não é só isso.
Também poderíamos enxergar Cidades dos sonhos já como o próprio inferno, indicado pela
sutil placa “Hell” num poste quando as duas estavam a caminho de El Club Silencio, e
pelas chamas na limusine acidentada de Camila. Ou mesmo, numa visão menos distópica,
como o filme que Adam Cashier desejaria ter feito se tivesse efetiva liberdade. Não
importa, muitas outras interpretações poderiam ser dadas. Nosso trabalho aqui não é
especular ainda mais sobre a obra, mas mostrar que, pela quantidade e qualidade de
Dois coágulos sígnicos são de fundamental importância neste filme: a cor azul e a
frase “This is the girl” “Esta é a garota”. Mais uma vez, o azul porta um dado de morbidez,
já que o código para anunciar que o assassinato de Camila já havia sido executado seria
uma chave azul colocada em um local específico da casa de Diane. No entanto, esta chave
azul que provocara risos no assassino de aluguel, quando Diane perguntara o que ela abria,
irá conectar-se, em outro momento, a uma caixa azul. Tal como a caixa de Pandora, esta
caixa parece emanar maldições quando aberta. Mas Lynch, num zoom também sugere que é
possível “entrar” na caixa. Esta então, secretaria além da idéia do próprio mistério, uma
noção de passagem, de portal entre mundos. Caberá ao espectador pensar que mundos serão
estes.
123
A sentença “This is the girl” é responsável por algumas reconfigurações de
contexto. No início, ela está associada à foto da mulher escolhida pela máfia para estrelar o
no momento em que esta outra Camila faz seu teste, selando seu pacto com a máfia. Num
terceiro momento, a frase é usada por Diane e associada à foto da Camila morena, para
ordenar seu assassinato. A única testemunha deste “contrato”, ou melhor, deste ato
monstruoso, é o mesmo homem que vê o monstro no Winkie’s (mesmo local onde estão
Diane e o assassino). Com estes três contextos, teremos um quebra-cabeças a ser montado
cuja solução não é única nem definitiva. Se Betty “sonha”, e Diane está “acordada”, então
no sonho a frase é transferida para os irmãos Castigliani, que até certo ponto encarnam a
metalinguagem. A questão metalingüística do filme fica clara por uma série de motivos.
Segundo, por que naturalmente, e ainda num plano mais simplório da metalinguagem, um
filme está sendo rodado dentro do filme. Logo, atores, atrizes, diretores, câmeras, sets de
questão metalingüística serve como um forte recurso para a desconstrução do próprio filme,
gerando um processo reflexivo que o catapulta de um plano ordinário para um plano extra-
ordinário. A intenção de Lynch de nos fazer pensar (e sentir, evidentemente!) é clara. Tanto
124
no momento em que ele exagera no comportamento dos idosos que Betty encontra no
aeroporto (e que posteriormente, irá encontrar em sua morte), como no timing sincopado
entre as ações e a música na festa de Camila e Adam. Mas o ápice deste processo é a
Primeiro, o apresentador, que mais parece uma figura demoníaca, tenta alertar o público de
que “não há banda”, sentença que já havíamos ouvido da boca de Camila, e que podemos
considerar um coágulo sígnico. Sua insistência com esta frase, acrescida de outro alerta:
“está tudo gravado”, passa para a ação física. Ele provoca a audiência primeiro
um trompetista que pára de tocar enquanto o som de seu instrumento continua. O gran
finale da casa, a grande atração da noite, é Rebecah Del Rio. Cantora de aspecto outsider e
usando maquiagem estilizada, ela inicia seu show com tamanha força e beleza na
interpretação em espanhol de “Crying” de Roy Orbison, que chega a arrancar lágrimas dos
personagens Camila e Betty. Subitamente, a cantora cai. A apreensão é geral. Mas a música
continua tocando. Era apenas um playback. Com isto, fica bastante claro que o tema da
ilusão é central ao filme, posto que é bastante coerente com a indústria que é conhecida
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4. Conclusão
percebemos, principalmente por conta do primeiro capítulo, que este tipo de narrativa
cinematográfica não era exatamente algo simples de se encontrar, e que os trabalhos mais
extremos em termos narrativos, como a vídeoarte, por exemplo, estimulavam uma quebra
de tal ordem que atingia outro espectro de interesses. Mas o fato de que este modelo
pudesse ser algo único, perdeu a importância, na medida em que o diálogo entre
que o ser desta obra é tal qual é o ser do conceito. O mesmo ocorre quando falamos na
narrativa hipertextual cinematográfica. Ela ilustra, dentro de sua própria mídia e de suas
metáfora para um hipertexto, dialoga com este, a este é análoga, e deste é reverberação.
pelo menos, dois filmes de David Lynch, percebemos a emergência do hipertexto em nossa
rede, esta forma textual é um dos expoentes de um mundo permeado pela tecnologia, e
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sobretudo, pelas tecnologias da comunicação. Neste cenário, ficam bastante evidentes as
possibilidades cada vez maiores de indexação de informações, de modo cada vez mais
veloz. O poder associativo da rede entra em foco. Assim, imaginamos que a manifestação
da velocidade, papel que caberia melhor ao expectador (“usuário”) de seus filmes, operando
suas próprias conexões. Ele é aquele que apresenta uma gama de signos, e a possibilidade
de associa-los
estranhar que seja tão difícil de ser encontrada. Como dissemos, para que haja a “química”
perfeita, é preciso que não haja demasiado tradicionalismo ou, por outro lado, demasiada
David Lynch ocupa na indústria. Sem abrir mão por completo de seu lugar no jogo de
forças promovido pelo sistema, Lynch o inocula com seu vírus de autoralidade. Ele é um
por que ele incorpora, de modo absolutamente voluntário, elementos da cultura de massa
que atingem seu próprio imaginário. A “negociação” que faz a indústria não é uma forma de
ceder à suas necessidades, mas ao contrário, um modo de penetrá-la e sabotá-la. Algo que
tem feito há muito. A completa quebra solaparia o cinema Lynchiano, e, portanto, sob este
viés, ele se mantém bastante fiel ao que propõe. Não nos esqueçamos também que nem
tudo são flores no seu cinema. Sua obscuridade, quando aflorada, é das mais sombrias na
127
contemporaneidade. E seu flerte com gêneros underground como o erótico e o horror,
128
BIBLIOGRAFIA
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SITES
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FILMOGRAFIA
Acossado
Dir: Jean-Luc Godard-1959
O amigo americano
Dir: Win Wenders-1980
O anjo azul
Dir: Josef Von Sternberg1930
O ano passado em Marienbad
Dir: Alain Resnais-1961
Asas do desejo
Dir:Win Wenders-1987
A aventura
Dir: Michelangelo Antonioni-1960
Ballet Méchanique
Dir :Fernand Léger-1924
Blade runner: o caçador de andróides
Dir: Ridley Scott-1982
Blow up
Dir: Michelangelo Antonioni-1967
Um cão andaluz
Dir: Luis Buñuel-1929
Capitão Sky e o mundo de amanhã
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O casamento de Maria Braun
Dir: Werner Fassbinder-1979
A choreography for the camera
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Cidade dos sonhos.
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Coração de cristal
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Coração Selvagem
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The courtain pole.
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O deserto vermelho
Dir; Michelangelo Antonioni-1964
O desprezo
Dir: Jean-Luc Godard-1963
A doce vida
Dir: Frederico Fellini-1960
Don Juan
Dir: Alan Crosland-1927
2001-Uma odisséia no espaço
Dir: Stanley Kubrick-1968
Dr. Fantástico
Dir: Stanley Kubrick-1964
Duna
Dir: David Lynch-1984
Une dame vraimente belle
Dir: Louis Feuillade-1908
Eraserhead
Dir: David Lynch-1977
Estrada perdida.
Dir: David Lynch-1996
O encouraçado Potemkin
Dir: Sergei Eisenstein-1926
Eu vos saúdo Maria
Dir: Jean-Luc Gosddard-1983
O eclipse
Dir: Michelangelo Antonioni-1962
O enigma de Kaspar Hauser
Dir: Werner Herzog-1975
O exterminador do futuro 2
Dir: James Camerom-1991
134
O Homem Elefante
Dir: David Lynch-1980
História Real
Dir: David Lynch-1999
O homem da câmera
Dir: Dziga Vertov-1929
Intolerância
Dir: D. W. Griffith-1916
Jazz Singer
Dir: Alan Crosland-1927
Jules e Jim
Dir: Fraçois Truffaut-1966
Janela indiscreta
Dir: Alfred Hitchcock-1956
King Lear
Dir: Jean-Luc Goddard-1987
O livro de cabeceira
Dir: Peter Greenaway-1997
Lola
Dir: Rainer Werner Fassbinder-1981
M – O vampiro de Dusseldorf
135
Dir: William Wyler-1946
Uma mulher é uma mulher
Dir: Jean-Luc Goddard-1961
Napoleão
Dir: Abel Gance-1927
noite
Dir: Michelangelo Antonioni-1961
A noite Americana
Dir: François Truffaut-1973
Núpcias Reais
Dir: Stanley Donen-1951
Nascimento de uma nação
Dir: D.W.Griffith-1914
Nosferatu
Dir: Werner Herzog-1979
Oito e meio
Dir: Frederico Fellini-1963
Personal
Dir: Wallace Mc Cutgheon-1904
The pickpocket
Dir:Alfred Collins.
Paris Texas
Dir:Win Wenders-1984
Parque dos dinossauros
Dir: Steven Spielberg-1993
Piratas do Caribe
Dir: Gore Verbinski-2004
O segredo do abismo
Dir:James Cameron-1908
Star wars - A ameaça fantasma
136
Dir: George Lucas-1999
Scanner darkly
Dir: Richard Linklater-2006
A última gargalhada
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O último guerreiro das estrelas
Dir: Nick Castle-1984
Veludo azul
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Waking life
Dir: Richard Linklater-2000
137