A sociologia da religião de Danièle Hervieu-Léger: entre a memória e a emoção
Marcelo Ayres Camurça
Doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e docente do programa de Pós-graduação em Ciência da Religião (PPCIR) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). P. 249 Introdução Escola francesa das ciências sociais – a produção de Daniéle Hervieu-Léger – referência na atualidade sobre o tema do fenômeno religioso.... (Durkheim, Mauss, Leenhardt, Bastide...). P. 250 Diretora de Estudos na Ècole des Hautes Etudes em Ciences Socialese; da revista Archives des Sciences Sociales des religions, do Centre D’Etudes Interdisciplinares des Faits Religieux e pesquisadora do Groupe de Sociologie des Religions do Centre Nacional de la Recherche Scientifique (CNRS-Paris). Tem-se dedicado à pesquisa e reflexão sobre o papel da religião na modernidade em meio às suas transformações. A temática que emerge de sua obra contempla os principais tópicos: Transformações do cristianismo contemporâneo - transmissão da memória religiosa coletiva - religião e ecologia - religião e feminismo - religiões cristãs e juventude - identidades religiosas - Novos Movimentos Religiosos e surtos emocionais contemporâneos. Tem trabalhado em colaboração com importantes sociólogos do fenômeno religioso na atualidade: Jean Séguy, Françoise Champion... O artigo busca ser um resumo, a partir de uma seleção empreendida na sua obra. P. 251 Memória, transmissão e emoção Para a autora, a religião se define por meio da transmissão e perpetuação da memória de um acontecimento fundador através de uma “linhagem religiosa” ou “linha de crença”: “uma ‘religião’ é um dispositivo ideológico, prático e simbólico pelo qual é constituída, estabelecida, desenvolvida e controlada a consciência (individual e coletiva) de uma pertença a uma linha de crença particular.” [...] P. 255 Para compreender este fenômeno do radical processo de autonomia do sujeito na escolha de suas opções religiosas e enfraquecimento das instituições religiosas em sua capacidade de regulação, a autora, desenvolve um esquema conceitual a partir de quatro lógicas que constituem um grupo religioso e a pertença dos indivíduos a ele: a lógica comunitária, que diz respeito à delimitação social do grupo e à definição formal das adesões. a lógica emocional, que implica na produção do sentimento coletivo de pertença (o sentimento de fazer parte de um “nós”). a lógica ética, que introduz valores compartilhados e normas de comportamento. a lógica cultural, reúne saberes que constituem a memória comum (histórica/lendária) do grupo. O dispositivo social que assegura a integração das quatro lógicas no interior de uma tradição religiosa determina um regime de autoridade. O processo de transmissão da memória coletiva (linhagem religiosa em continuidade), característica de toda religião, fica inseparável da “memória autorizada” do grupo, funcionando como exercício de (transmissão, para) manutenção do poder religioso. A identidade religiosa (individual/coletiva) se constrói na articulação destas quatro lógicas, que funcionam em tensão equivalente, duas a duas, definindo os dois eixos que estruturam o espaço religioso: P. 256
O primeiro eixo introduz a tensão entre lógica comunitária e ética.
O segundo eixo expressa a tensão entre lógica emocional e cultural. A instituição religiosa cumpre a função de regular essas tensões e integrar essas quatro lógicas numa “linhagem religiosa”. Através do poder religioso garante a socialização dos indivíduos no tempo e no espaço. Através do processo de autonomização do indivíduo na sua escolha religiosa - desregulação do religioso -, se produzirá na modernidade:
a subjetividade religiosa do crente.
e a dissociação dos elementos que compõem o dispositivo da produção de identidade religiosa clássica. Cada polo, então, se transformando em princípio exclusivo da identidade religiosa do crente moderno. O desequilíbrio no eixo comunitário/ético levará a uma superestimação do comunitário (do nós) na identidade singular do grupo, e consequente dissolução do sistema de valores e corpos de crenças, esgotando a força simbólica que constitui sua identidade enquanto “linhagem” que permanece no tempo e espaço. P. 257 O desequilíbrio no eixo emocional/cultural implica numa disjunção, onde não se comemora mais o ato fundador, resultando num “crer sem tradição” ou numa memória que não mais se mobiliza uma fé comum, uma “tradição sem crença”. Isto implicará em duas configurações religiosas que se relacionam: de um lado religiões institucionais sem poder de regulação, frequentadas por indivíduos/grupos que a partir delas “fazem sua tradição”. e, do outro, comunidades emocionais, agregadas pelo sentimento de pertença e afetividade, dispensando a “linhagem religiosa” calcada na “memória autorizada” de uma tradição fundadora. Para as religiões institucionais, fica o desafio de tentar rearticular seu dispositivo de autoridade que mantinha a continuidade da “linha de crença” (Tradição considerada não mais como um “depósito sagrado”, mas como uma reserva de signos à sua disposição) A “memória verdadeira” sobre a qual as instituições religiosas fundaram sua legitimidade sofre um processo de desqualificação cultural. P. 258 Leva as instituições a terem de investir, como estratégia: mobilização emocional – dribla as contradições através do estímulo ao afetivo (individual/coletivo). racionalização cultural – transforma as contradições em expressões da diversidade de sensibilidades e culturas. Buscam responder às repercussões da “desregulação”, através dos dois artifícios: No registro da emoção, propiciando uma “crença sem tradição”, e, no registro da racionalização cultural, uma “tradição sem crença”. Aplicação de recursos simbólicos que lhes são próprios, em reconstruir uma “linha de crença de continuidade – “efeito de linha” ou “reinvenção da linhagem”. Quanto às novas expressões religiosas surgidas na alta modernidade, estas tomam a forma de comunidades carismáticas emocionais, e mantêm seus esquemas de sociabilidade sob um caráter eletivo, dispensando a determinação de uma “linhagem de memória coletiva” (proveniente de laços familiares, sociais ou confessionais) que as identifique. Em suma, integram-se por meio de relações emocionais. Sua identidade, enquanto religião pós- tradicional, repousa prioritariamente em um espírito de comunidade que numa tradição. P. 259 Assistimos, então, um deslocamento de “verdades autorizadas” a verdades que passam pela autenticidade do sujeito religioso. Para verdades de “testemunhas de sentido”, experimentadas em seus percursos pessoais, em meio a experiências emocionais. Ampliação do conceito de secularização: a desregulação institucional A questão do lugar da religião no mundo. P. 260 Pesquisas mais recentes evidenciaram na modernidade dita laicizada a irrupção de surtos religiosos surpreendentes, na forma de Novos Movimentos Religiosos e de renovações místico- espirituais no seio das igrejas estabelecidas. Uma controvérsia conceitual parece ter se instalado: perda ou volta do religioso? P. 206-261 A autora busca uma análise que contemple as características dessas “novas expressões religiosas”: são constituídas na intensidade afetiva das relações de seus membros e através da manifestação física disto (beijos, abraços). Na busca estética e ecológica de um espaço favorável a convergência emocional dos participantes e na atenção dispensada às formas não-verbais de expressão religiosa; na preeminência do corpo e dos sentidos sobre a formalização doutrinal- teológica, numa rejeição à “religião intelectual” e a seus especialistas. Instauraram o primado da experiência sobre qualquer norma ou controle, o que implica numa fragilidade no contorno dos grupos: entra-se e sai-se dele com facilidade, pois não há laços formais de identificação. A ideia de obrigação e permanência está ausente das “comunidades emocionais”. Uma sociologia de inspiração durkheimiana- que busca interpretar a eclosão das experiências emocionais e carismáticas. A valorização da experiência como critério de autenticidade e a crítica ao excesso de racionalismo das igrejas institucionais apontam para uma via de “dessecularização”. Por outro lado, por meio do esquema weberiano - pode-se pensar que os surtos emocionais contemporâneos, calcados em expressões não verbais de comunicação emocional, expressam o “golpe final” na linguagem religiosa como a forma de influência na sociedade. Chamou “culminância emocional da secularização”. P. 263 Para a autora, a ideia de secularização na modernidade ocidental implica menos em perda de influência da religião e mais em um radical processo de mudança operado no seu seio. A secularização é um processo cultural complexo, que combina a perda de controle dos grandes sistemas religiosos [...] e a recomposição (sob uma forma nova) das representações religiosas. A maneira como a religião se insere e se dissemina na sociedade contemporânea é marcada pelo crescente abandono de suas formas institucionalizadas dominantes. Ela chamou de desregulação institucional. P. 264 A dificuldade das religiões institucionalizadas na atualidade está em sustentar com eficácia uma “memória verdadeira, autorizada” frente à verdade subjetiva dos indivíduos. Contudo, se o processo de desregulação conduz a um novo ethos religioso marcado por uma faceta emocional e pelo trânsito a todos espaços da sociedade, causando o enfraquecimento das religiões institucionalizadas, é na tradição e na sua “grande narrativa” – da qual estas religiões históricas são depositárias – que está o mediador privilegiado, onde essas novas expressões religiosas vão ancorar suas “pequenas narrativas” individuais ou comunitárias, numa composição da emoção e da errância com os valores e normas tradicionais.