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Quem assistiu à série catalã Merlí (Netflix) sabe que seus episódios

em termos de estrutura são inteiramente atravessados por questões


pontualmente destacadas do pensamento de vários filósofos e filósofas
que não apenas marcam, mas fundam e ressignificam a cultura Ocidental.
Figuram, então, Sócrates, Platão, Aristóteles, Maquiavel, Hegel, Kant,
Nietzsche, Marx, Schopenhauer, Freud, até, mais recentemente,
Benjamin, Heidegger, Arendt, Kierkegaard, Bauman, Zizek, com suas
principais questões representadas ao que ocorre a cada episódio.
Dedicado a Albert Camus, o 3º episódio da 3ª temporada da série tratará
– sem nenhum spoiler -, particularmente, do absurdo da vida, do “homem
revoltado” e dos sentidos do suicídio. Mas já a esta altura, o leitor, a
leitora devem estar se perguntando: e o que isso tem a ver com
Bernardet?
Não faz muito tempo, Jean-Claude Bernardet publicara um breve
texto intitulado “Longevidade e Capitalismo” em um blog que mantinha
pela plataforma UOL, hoje hospedado no site Outras Palavras 1. Nele
escreveu uma crítica incisiva ao que chamou de “imensa máquina da
medicina” que mantém certa longevidade, muitas vezes, sem qualidade
de vida, e ao finalizar sua reflexão, fez a defesa radical para “eliminar a
fonte de riqueza da máquina: o suicídio consciente e lúcido como forma
de resistência extrema e de reapropriação de nossos corpos.” Diante do
absurdo de uma vida artificialmente longeva, o ato de suicídio, nessa
percepção, ganha novo sentido social e político, com fins de resistência,
ao sujeito na recuperação de sua autonomia corporal. Bernardet seria
atravessado pela mesma questão filosófica não muito depois.
A 10 de abril de 2019, outro texto veio à tona: “Insubmissão” 2. Um
câncer de próstata operado em 2016 retornara e, agora, com mais de 80
anos de idade, por causa dos desagradáveis efeitos colaterais, Bernardet
publicou sua decisão de interromper e dar fim à “agressividade do
tratamento” de “médicos de protocolo” e suas “terapias invasivas”.
Praticamente cego (Jean Claude possui, há décadas, uma doença
degenerativa da retina), não titubeou ao escrever, insubmisso, que “a
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longevidade não é uma finalidade em si.” “Resolvi interromper o
tratamento e deixar correr.” A repercussão de tais inscrições virtuais, tão
subjetivas, dará o que pensar. Boa parte das pessoas que se manifestaram
em comentários ao texto e, também, na página pessoal de Bernardet na
rede social Facebook, buscou compreender sua decisão, mas não sem
lamentações.
Essas correspondências públicas deram vazão, oito dias mais tarde,
a outro escrito cujo título, sintomático, Bernardet escolheu a dedo e não
ao acaso: “Tirei o corpo fora”3. Dessa vez, ...

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