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O JORNAL BOCA DE RUA COMO EMANCIPAÇÃO E RESISTÊNCIA ATRAVÉS DA

COMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA

Maria Isabel RAMOS1


Lívia SAGGIN2

RESUMO

A manifestação das mídias comunitárias pode ser considerada uma das principais ferramentas de
mobilização popular, tendo a possibilidade de desenvolver o senso crítico, a emancipação e a
autonomia dos cidadãos. O presente trabalho visa, a partir dessa perspectiva, apresentar como a
comunicação e o jornalismo comunitário contribuem para a conquista cidadã de um grupo de
moradores de rua responsáveis pela produção de um jornal impresso. A partir da análise das
principais produções do jornal denominado Boca de Rua, é possível identificar aspectos da
resistência de seus produtores em busca de visibilidade, evolução da consciência crítica e da
participação na sociedade, ou seja, a tentativa de usufruir da cidadania.

Palavras-chave: jornalismo comunitário; comunicação comunitária; jornal Boca de Rua; cidadania


comunicativa.

1 Introdução

A organização não governamental, Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação


(ALICE) surgiu em 1998 e reúne jornalistas, educadores, psicólogos e profissionais de diversas
áreas e tem como objetivo desenvolver projetos sociais com a proposta de democratizar e qualificar
a informação. ALICE é a responsável pela criação do projeto Boca de rua, criado em agosto de
2000. O Boca de Rua é um jornal trimestral produzido e vendido por cerca de 30 pessoas em
situação de vulnerabilidade social, moradores ou ex-moradores de rua da cidade de Porto Alegre,
Rio Grande do Sul.
As primeiras reuniões do grupo aconteciam na Praça do Cachorrinho, depois migraram para
o Parque da Redenção, entre outros locais. Depois de percorrer diversos pontos da capital gaúcha,
as reuniões atualmente tem como sede o Museu de Comunicação Hipólito José da Costa. Nelas são
elaboradas as produções, entrevistas, fotos e ilustrações que vão compor o jornal. A produção de

1
Estudante de Graduação 5º semestre do Curso de Jornalismo da Unipampa. E-mail: m.isabel_mr@hotmail.com.
2
Orientadora do trabalho. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professora substituta do Curso de Jornalismo da Unipampa. E-mail:
liviasaggin@gmail.com.
conteúdo é feita pelos moradores de rua e apenas a edição e diagramação são feitas por profissionais
da comunicação. As reuniões propõem que os adultos em situação de risco elaborem seus relatos
sobre o cotidiano e construam outro olhar sobre a vida em Porto Alegre, diferente daquele oferecido
pela mídia tradicional.
O jornal é vendido pelas ruas da capital e o dinheiro arrecadado é revertido para os
integrantes do grupo, se tornando uma fonte de renda alternativa. O Boca de Rua faz parte da Rede
Internacional de Publicações de Rua, entidade com sede na Escócia que reúne jornais e revistas
vendidos por pessoas em situação de risco social. Dentro da rede, o Boca de Rua é o único jornal
produzido pelos próprios vendedores. Dentro do jornal, o encarte Boquinha que surgiu em 2003, é o
diferencial do projeto. Crianças e adolescentes ligados aos sem-teto que produzem o Boca de Rua
participam de oficinas de texto, artesanato, artes plásticas e música. O resultado destas atividades
gera o encarte que ajuda a integrar as crianças na atividade do jornal e também estimula a
convivência e criatividade. A atividade das crianças é remunerada e a exigência formal é a
frequência regular na escola.
Nesse artigo, nos propomos a analisar a produção do jornal Boca de Rua a partir da
perspectiva da cidadania comunicativa. Para isso, elencamos como eixos teóricos de
problematização o pensamento dessa experiência como uma produção de jornalismo comunitário.
Tencionamos as produções do período do final do ano de 2016 ao início de 2017 e traçamos uma
análise sobre as possibilidades de conquista cidadã a partir do trabalho de emancipação midiática
proporcionado pelo jornal aos seus integrantes.

2 Perspectivas teóricas para compreender o jornal Boca de Rua

Parte da população do país é atingida pela exclusão social e pelo crescimento do


desemprego e trabalho informal. Este cenário, além de estar ligado à má gestão das autoridades,
conta com a interferência de uma mídia global que estimula padrões de consumo que poucos podem
usufruir, gerando parte da violência que mantém a sociedade constrangida. O capitalismo tem
grande participação nesse fenômeno, ao buscar eficiência e avanço no mercado promove a geração
de empregos terceirizados ou informais, sem que se questione as condições socioeconômicas nas
quais os trabalhadores são alocados (SEQUEIRA e BICUDO, 2007).
Segundo Peruzzo (2009, p. 34), a cidadania é constituída com a "efetivação de direitos da
pessoa nas dimensões civil, política e social. São direitos que garantem, respectivamente, a
liberdade individual de ir e vir, de propriedade, de expressão etc.; liberdade de associação, de
reunião, de organização e de participação política; e o acesso à saúde, à educação, ao trabalho, entre
outros".
O potencial de consumo não pode ser considerado a base para usufruir/possuir a cidadania.
Neste contexto, a comunicação comunitária e os movimentos sociais se tornam fundamentais para
garantir o direito de participação e ação em sociedade. Por isso, trabalhar conceitos como de
participação e desenvolvimento no contexto globalizado são fundamentais (SEQUEIRA e BICUDO
2007).
Ainda para Peruzzo (2009), existe uma desarticulação entre desenvolvimento e sociedade,
pois "o homem é excluído, não participa do planejamento, nem da tomada de decisões e não é
suficientemente informado". O povo se sujeita e abandona seus direitos, perde a cidadania e fica
alienado ao processo de desenvolvimento de seu país (PERUZZO apud SEQUEIRA e BICUDO,
2007, p. 3).
Entretanto, esse processo possui desvios construídos pela própria população vitimada pela
exclusão. Peruzzo (2009) colabora para esse pensamento quando propõe a ideia de que quando a
participação é impedida, o povo inventa outras maneiras de participar; é desta dinâmica que surgem
os movimentos sociais. São movimentos criativos, que promovem a resistência popular apesar dos
processos excludentes da globalização e da comunicação hegemônica. No cerne desses
movimentos, a comunicação construída por essas classes é o fator base. “Submetido a um processo
de pobreza, o povo se agrupa para denunciar, resistir, pressionar e reivindicar o acesso à riqueza
através de melhores condições de vida e o direito de participação política” (PERUZZO apud
SEQUEIRA e BICUDO, 2007, p. 4).
A ação da cidadania evolui ao longo do tempo através da pressão coletiva. O poder
governamental só oferece possibilidades de transformação e avanço aos menos favorecidos quando
ocorre a demonstração de consciência e resistência política desses grupos. Por isso, os movimentos
sociais se ampliam e ganham força no cenário atual da sociedade contemporânea. Os movimentos
sociais são formados por grupos que reconhecem seus direitos, mesmo que não sejam efetivados na
prática (PERUZZO, 2009).
Para o processo de luta dos movimentos sociais funcionar, a comunicação é fundamental.
No Brasil, os movimentos se adequam a condições de comunicação próprias que sejam possíveis
devido a opressão da mídia hegemônica. A utilização de jornais, websites, rádios comunitárias,
canais comunitários e outros, demonstra o aproveitamento do direito de comunicação como
ferramenta impulsionadora dos movimentos sociais em sua luta.
De acordo com Peruzzo (2009, p. 37), a comunicação comunitária tem características da
horizontalidade, identificada como mais “participativa e democrática e realizada por meio do
envolvimento ativo das pessoas como emissoras e receptoras de mensagens de forma a contemplar
outras perspectivas do direito à comunicação, e não apenas o acesso à informação". Segundo a
autora podemos compreender a comunicação comunitária como:

Trata-se, pois, de uma comunicação vinculada às lutas mais amplas de segmentos


populacionais organizados, a qual tem a finalidade de contribuir para solucionar
problemas que afetam o dia a dia das pessoas e de ampliar os direitos de cidadania.
É feita de forma impositiva, com os recursos que se tem e conforme as
necessidades e a realidade de cada situação (PERUZZO, 2009, p. 38).

A partir das propostas teóricas de Peruzzo (2009), compreendemos que um meio


comunitário ajuda na melhoria das condições de vida dos cidadãos e ainda proporciona a
conscientização sobre os direitos humanos. A cidadania se faz presente neste meio quando a voz do
cidadão tem espaço e ele tem a oportunidade de participação ativa na produção de conteúdo
midiático, gerando, também, conhecimento.
Para Raquel Paiva (2006, p. 64) o jornalismo comunitário possui um traço marcante, "sua
estreita conexão com a realidade e interesses da coletividade específica, perdendo completamente
campo à mera espetacularização da informação”. Se um acontecimento interessa à coletividade, se
reconhece seu valor jornalístico. Já para Sequeira e Bicudo (2007, p. 9), o jornalismo comunitário
tem entre suas características a valorização da realidade do local, "essa, aliás, é vista como uma de
suas grandes virtudes qualitativas, pois o fato de aproximar-se de seu público permite que dialogue
com ele mais com profundidade e intensidade”.
O jornalismo comunitário pode ser considerado, ainda, um patrimônio para quem se envolve
com ele, estimulando a promoção de lutas coletivas que sejam capazes de transformar as realidades
de vida. A narrativa criada no jornalismo comunitário estimula a reflexão crítica e busca garantir ao
cidadão seu direito de participar ativamente de debates e futuras decisões públicas.
Finalmente, Sequeira e Bicudo (2007, p. 11) corroboram para entender que o jornalismo
comunitário pode ser considerado uma prática contra-hegemônica, pois "mesmo que os assuntos
sejam também abordados pelos chamados jornalões, certamente receberão, dos veículos
comunitários, outros enfoques e tratamentos, voltados para as demandas e realidades das
populações menos favorecidas".
É interessante ainda, dentro da perspectiva que nos propomos a analisar as produções do
jornal Boca de Rua, a compreensão sobre o conceito – ainda em construção – de cidadania
comunicativa. É caro à nossa análise o entendimento de, ao possibilitar a autonomia e a participação
aos moradores de rua na construção noticiosa do jornal, o mesmo se configura como um espaço
importante para visualização de práticas que compõem o exercício cidadão. Assim, como propõe
Saggin (2016, p. 142) a cidadania comunicativa pode ser entendida como “um exercício e um
direito humano essencial de requerer e reelaborar planos de vida, através da utilização refletida dos
universos comunicacionais e midiáticos e suas estratégias de produção e circulação de sentidos”.
Os elementos teóricos apresentados até então fornecem uma base para analisarmos o jornal
Boca de Rua enquanto prática comunicativa potencialmente formadora de movimentos de conquista
cidadã, reivindicação e participação política. A seguir, apresentamos os direcionamentos
metodológicos que nos permitiram essa análise, para então, apontar elementos contidos na parte
analítica.

3 Abordagem metodológica

Como abordagem metodológica, optamos pela escolha da análise das versões impressas do
jornal Boca de Rua, vendidas pelos próprios produtores de conteúdo nas ruas de Porto Alegre. A
coleta desse material ocorreu junto à Agência ALICE, de maneira que foram selecionados para
análise as edições do período de final de 2016 e início de 2017, totalizando 2 edições.
Não tivemos a pretensão de realizar uma análise de conteúdo segundo análise do discurso ou
outra técnica metodológica que fornecesse parâmetros mais fechados para o desenvolvimento
analítico, mas sim, uma abordagem que permitisse uma comparação entre as produções realizadas
pelo Boca de Rua e outras feitas pela mídia hegemônica, a qual experenciamos em nosso dia a dia
de consumo midiático. Desse modo, concordamos com a argumentação epistêmico-metodológica de
Mills (1975), que concebe a prática investigativa não como receituários aprisionados em regras, leis
e processos rígidos, fixos, mas sim como um trabalho artesanal, que é conquistado, construído,
tecido minuciosamente através de arranjos intelectuais, de vivências e experimentações empíricas,
de confrontações dialéticas, de invenção, criatividade e instauração da razão polêmica no processo
concreto de construção da pesquisa.
Ainda justificando nossas escolhas metodológicas, nos aproximamos de Bachelard (1977)
que compreende que as tomadas de decisão no decorrer das investigações devem ser refletidas
como uma prática fundamentada. Desse modo, compartilhamos com o autor a ideia de que a
metodologia em pesquisa precisa se constituir como fabricação refletida dos objetos, dos processos
e dos resultados do conhecimento.
Das edições selecionadas para análise nesse artigo, recortamos alguns elementos para serem
analisados. A partir do recorte das principais reportagens de cada edição, pensamos que seria
interessante à investigação ponderar sobre: forma de tratamento dos temas; forma de
tratamento/participação concedido às fontes consultadas em cada reportagem; centralidade de
questões sobre a participação política; autonomia dos repórteres na cobertura das pautas;
abordagens semelhantes e/ou diferenciadas daquelas vistas na mídia tradicional/hegemônica.
A partir da visualização crítica das produções do Boca de Rua, tensionada a partir dos
elementos teóricos trabalhados, conseguimos agrupar uma série de apontamentos que permitem
analisar o jornal enquanto espaço de efetivação da comunicação comunitária e da cidadania
comunicativa.
É importante salientar, ainda, que a abordagem metodológica escolhida para a realização
desse artigo é tentativa, de modo que para uma pesquisa mais ampla e de caráter mais aprofundado,
outras estratégias metodológicas devem ser trabalhadas.

4 Jornal Boca de Rua como prática de conquista da cidadania comunicativa

Neste tópico, trouxemos elementos das edições dos jornais selecionados a partir de nossa
abordagem metodológica para análise, juntamente com um movimento de tensionamento teórico.
Cabe salientar que a análise realizada e apresentada nesse artigo não dá conta de trabalhar todos
espaços informativos do jornal Boca de Rua, no entanto, escolhemos, dentre os jornais que
recortamos para essa experiência, aqueles que compreendemos ser os mais interessantes para essa
produção, bem como, para a visualização dos conceitos teóricos que trabalhamos postos em
funcionamento.
Na edição de outubro, novembro e dezembro de 2016 do jornal Boca de Rua, uma das
reportagens elaboradas fala sobre a ocupação feita pelos moradores de rua no Departamento
Municipal de Habitação de Porto Alegre. Através da sua centralidade na edição do jornal e, também
por tratar de um tema importante dentro daquele período, tendo sido pauta também em outros meios
de comunicação (hegemônicos) consideramos a reportagem como de destaque.
A produção teve como título, "Invadir é uma coisa, ocupar é outra" apresentando o relato, a
reflexão e a crítica de um morador de rua que participou da ocupação que foi realizada. A
reportagem foi construída a partir da diferenciação entre os conceitos de ocupar e invadir. Sobre a
utilização do termo invadir, a reportagem assinala como ele é utilizado propositalmente pela mídia
hegemônica para definir as ações do grupo de marginalizados, conferindo aos moradores de rua e às
suas ações status de crime e desrespeito. Desta forma, o texto da produção foi construído com o
objetivo de apresentar a experiência vivenciada pelo morador de rua e colaborador do jornal,
diferente das suposições veiculadas por outras mídias. A abordagem dada ao tema em questão
propicia que o próprio personagem da histórica reconte sua experiência, possibilitando que o leitor,
ao entrar em contato com a publicação, tenha acesso a outra narrativa, que contem detalhes, pontos
de vistas diferenciados daqueles expostos tradicionalmente pelos grandes meios de comunicação.
Ainda, a publicação além de explicar o acontecimento, contribui para dar visibilidade à
pressão coletiva exercida pelos moradores de rua. Outro aspecto importante na produção é
possibilidade oferecida aos moradores de rua presentes naquele acontecimento de apresentação do
de seus entendimentos sobre o direito à moradia, bem como, da situação de desigualdade na qual se
encontram e da importância da luta organizada. Finalmente, a reportagem confere protagonismo aos
seus personagens, tanto por possibilitar que o próprio morador de rua conte sua história, quanto por
considerar sua forma de produção noticiosa como válida para a veiculação em um jornal impresso.
Esse processo permite a conquista de visibilidade para a luta social desse grupo de pessoas, bem
como, legitimidade.
Ainda na edição de 2016, a matéria intitulada de "Aldeia Harmonia ameaçada" chama a
atenção. A produção relata a intimidação sofrida pelos moradores de rua para abandonarem um
local que se abrigam há cinco anos. O texto da produção apresenta em diversos pontos a
consciência que os colaboradores do jornal têm sobre o que é de direito deles, apesar da situação
econômica e social desfavorável. Segundo a matéria, as autoridades abordaram de forma
inadequada os moradores de rua, por isso, o grupo decidiu tornar pública a ação através da mídia
comunitária. Fora do meio de comunicação, os moradores de rua também vão continuar resistindo à
opressão, pois compõem um movimento social que reconhece seus direitos apesar de os mesmos
não serem efetivados na prática.
Finalmente, na edição de 2016 selecionada para análise nesse artigo, a reportagem intitulada
como "Promessa nem sempre é dívida" o texto apresenta a verificação feita pelos colaboradores do
jornal no Albergue Municipal de Porto Alegre recém inaugurado. A produção apresenta uma crítica
sobre o espaço físico do albergue e sobre a assistência oferecida aos moradores de rua. Com a
identificação dos problemas do local, a reportagem elenca uma série de elementos que deveriam ser
melhorados, propiciando aos frequentadores do albergue melhores condições de estadia. A
finalidade dessa abordagem foi apresentar os problemas enfrentados pelos moradores de rua no
albergue municipal e chamar a atenção de autoridades competentes para solucioná-los. Na tentativa
de construir uma nova realidade e/ou, transformar para melhor a realidade de vida enfrentada, a
narrativa criada pelo jornal Boca de Rua se apresenta em forma de denúncias, contribuindo para
ampliar a voz dos moradores de rua enquanto cidadãos.
Na edição de 2017, a reportagem denominada "A verdade sobre as ocupações" demonstra
seu potencial jornalístico com um conteúdo produzido que preserva a identidade dos entrevistados e
com uma estrutura dividida em tópicos de desenvolvimento. Nessa produção, o jornal Boca de Rua
mobilizou seus repórteres para apresentar um lado diferente do acontecimento que não é tratado
pela mídia hegemônica. Uma espécie de entrevista pingue-pongue foi feita com diversas
instituições que promoveram ocupações no ano de 2016, tratando a ação nos tópicos de apoio,
organização e segurança. O texto apresenta as ocupações a partir das entrevistas de quem
participou, descartando as suposições e opiniões impostas pelas outras mídias. Este tipo de
reportagem dá visibilidade às ações como as ocupações, tratadas ao longo do último ano
exaustivamente pela mídia hegemônica, quase sempre através de abordagens que criminalizavam
esse tipo de mobilização. A produção recortada para essa análise teve a preocupação, ainda, de
tratar o tema como uma ação desenvolvida por diversas instituições – de diferentes origens – e que
tem o objetivo de desenvolver a liberdade de participação política, de debate democrático sobre a
utilização dos espaços públicos, bem como, dos investimentos em áreas estratégicas para o
desenvolvimento do país, de modo a permitir a participação coletiva de seus integrantes.
Ainda na edição de 2017, a notícia intitulada "Gente não é lixo" trata sobre a expulsão dos
moradores de rua de um importante viaduto da cidade de Porto Alegre e do tratamento
menosprezível dado ao grupo por parte das autoridades municipais. Segundo a matéria, a ação foi
realizada por autoridades que recolheram e descartaram os pertences dos moradores de rua. A
apresentação deste acontecimento dentro da edição ao jornal Boca de Rua contou com três imagens
que apresentam a retirada dos pertences feita pelo Departamento de Limpeza Urbana Municipal e a
presença da Polícia Militar. As imagens demonstram o que é descrito na reportagem, conferindo à
mesma verossimilidade e credibilidade, noções perseguidas pelo jornalismo tradicional. Essa
visualização reafirma a noção de profundidade e intensidade que produções em jornalismo
comunitário conseguem propagar, como tratado no eixo teórico desse artigo. Acontecimentos como
este, apesar de serem tratados pelos jornais tradicionais, não recebem o tratamento diferenciado nos
enfoques como feito pelos veículos comunitários. Essa prática, portanto, contribui para a reflexão
dos cidadãos nas decisões públicas.
Após esse exercício de análise sobre duas edições do jornal Boca de Rua, avistamos, ainda
que pontualmente, a efetivação de práticas de jornalismo comunitário, produzido de forma mais
participativa, mais democrática, mais dialógica e mais preocupada com questões que são de
interesse de comunidades invisíveis dentro das construções midiáticas hegemônicas
tradicionalmente realizadas. Ao propor uma produção jornalística feita integralmente por moradores
de rua, o jornal Boca de Rua proporciona que vozes, antes quase que totalmente silenciadas,
ganhem espaço dentro do universo comunicacional, fomentando o exercício da prática de
participação e debate na esfera pública; a busca por direitos; o questionamento de regulamentações
que excluem as classes menos favorecidas e a luta pela conquista da cidadania como elemento
crucial à transformação social.

5 Apontamentos finais

Ao final desse exercício, entendemos que a cidadania vai além de uma mera diretriz que
baliza uma série de direitos e deveres. Ela se constitui como a participação civil, política e social é
deve ser exercida por todos os cidadãos. Porém, existem diversos grupos de pessoas que não
usufruem dela, fenômeno fruto de uma globalização e um desenvolvimento do capitalismo quase
sempre excludentes, que acabam por determinar quais grupos e quais pessoas tem as condições
econômicas e sociais favoráveis ao acesso à cidadania. A partir disso, os movimentos sociais e a
comunicação comunitária emergem na tentativa de combater a desigualdade social e incentivar a
construção da reflexão crítica dos cidadãos, promovendo a resistência popular apesar da dominação
da mídia hegemônica e da questão socioeconômica.
A partir da análise desenvolvida no artigo, é possível considerar que o jornal impresso Boca
de Rua é um forte exemplo de mobilização e resistência popular, pois apresenta acontecimentos
através de enfoques e tratamentos diferenciados a partir da experiência real de seus colaboradores.
O Boca de Rua desenvolve a comunicação comunitária quando possibilita a participação ativa das
pessoas sujeitos comunicantes (MALDONADO, 2014), concedendo o direito à comunicação, que
deveria se constituir como um direito a todos os cidadãos.
Avistamos, portanto, que as práticas comunicacionais e jornalísticas efetivadas pelo jornal
Boca de Rua apresentam as realidades e os interesses de uma coletividade, constituída por
moradores de rua da cidade de Porto Alegre. Ao realizar esse movimento, o jornal se constrói como
um importante veículo de luta, que confere aos seus integrantes – repórteres ativos na construção
comunicacional – espaço de fala, de expressão da luta por direitos e, por fim, da conquista cidadã
através da comunicação, constituindo aquilo que temos pensado teoricamente por cidadania
comunicativa. À cidadania comunicativa caberia, então, uma centralidade no processo de
transformação social dessa comunidade, através do requerimento e da possibilidade de reelaboração
dos seus planos e condições de vida pela prática comunicacional.

REFERÊNCIAS

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cidadania para grupos em situações de vulnerabilidade social. In: MORIGI, Valdir Jose, GIRARDI,
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