Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
2019
Citação Recomendada:
FERREIRA DIAS, JOÃO, “A vida que sustenta a vida: o sacrifício e a alimentação no Candomblé”,
Ajuda em Diálogos II, Lisboa, 2019.
A presente palestra foi disponibilizada pelo autor em modo open-acess com fins estritos de divulgação
científica. Quaisquer questões contate o autor por joaoferreiradias@outlook.pt
L
OS TABUS ALIMENTARES CONSTITUEM A IDENTIDADE PARTICULAR dos mais diversos
contextos culturais-religiosos, evidenciando, por princípio, aquilo que são as “purezas”,
“perigos” e “contaminações” de que Mary Douglas (1966) falava. O ato de se alimentar não
tem, somente, uma dimensão estritamente fisiológica. Com efeito, nós comemos cultural e
historicamente, porque somos sujeitos inseridos em sociedades cultural e historicamente
constituídas. Ainda que no apogeu das liberdades individuais possamos encontra a dieta que
nos parece mais adequada às nossas necessidades, fazemo-lo em função de padrões
estabelecidos, mesmo que seja enquanto ato de rasgadura do cânone. É por isso que
alimentação e religião andam interligadas. Não é apenas na dieta bíblica, de Levítico a
Deuteronómio, mas na dieta vegan. Esta última, enquanto rutura com padrões sociais
normativados, encontra-se com as dinâmicas espirituais-religiosas da Nova Era, um roteiro
alternativo, muitas vezes self-made, mas que está em relação direta quer com o cristianismo
de onde se pretende apartar, quer com outras dimensões religiosas das quais pretende beber
seletivamente (Berger 1967, Amaral 1994, 1999, Oliveira 2011, et. al.).
No quadro de referência do Candomblé, a alimentação constitui parte essencial das
dinâmicas rituais e sociais das comunidades-terreiro. Através da gastronomia está contida a
presença continuada da África perdida nas águas do Atlântico. Nas palavras de Raul Lody
(1995: 63), “Nos terreiros [...], a comida ganha dimensão valorativa, sendo estendido o
alimento do corpo e também do espírito. Comer, nos terreiros, é estabelecer vínculos e
processos de comunicação entre homens, deuses, antepassados e natureza”. A comida é,
portanto, um ativo que se situa além da dimensão fisiológica para se posicionar no plano do
simbólico e do social. Inúmeros candomblecistas descrevem o Candomblé como “uma
religião de fartura”, justificando, nesses termos, a mesa farta que toda a festa de Candomblé
deve ter. Esse posicionamento tem suas raízes em África, nos banquetes reais, ligados no ex-
Daomé aos “grandes costumes”, e contrasta com as dificuldades quotidianas do período da
escravidão, do pós-abolição e coevas próprias das comunidades afrodescendentes. Essa
memória cultural africana está patente na valorização estética da obesidade como indicador
________________________________________________________ -2-
de beleza, conforme se encontra mencionado por Ruth Landes em A Cidade das Mulheres
(1947). A imagem de Buda é, também, a imagem de Ṣàngó enquanto representação do
homem africano próspero e poderoso. Da barriga gestante da mulher africana à barriga
próspera do homem africano, a barriga é o centro de um universo simbólico em torno do
“comer” em todas as suas aceções. Além da barriga, a boca, entendida de forma abrangente,
assume importante papel na ação simbólica de comer, ideia presente no documentário de
Eliane Coster, A Boca do Mundo - Exu no Candomblé. Ali está presente a ideia de que Exú
(Èṣù), enquanto “boca do mundo”, é o fluxo da alimentação diversificada. Como é comum
dizer-se, “Exú come tudo o que a boca come”. Ao mesmo tempo, a conexão entre Èṣù e a
boca está presente na conceção deste enquanto Òrìṣà da comunicação, que fala todas as
línguas, que é o encarregado de levar todas as mensagens. Retomando Raul Lody (ibidem),
“Tudo está na permanente lembrança e ação de que tudo come. Come o chão, come o ixé,
come a cumeeira, come a porta, come o portão, comem os assentamentos, árvores comem;
enfim, comer é contatar e estabelecer vínculos fundamentais com a existência da vida, do
axé [...]”.
________________________________________________________ -3-
Os nossos animais são reverenciados desde que são escolhidos nas feiras livres, até
o momento em que são oferecidos aos orixás, quando cobrimos seus olhos com
folhas específicas de calma e cantamos a fim de diminuir o estresse que eles possam
estar sentindo. Além disso, eles não são animais quaisquer, são escolhidos aqueles
que o sacerdote consagrado para esta função percebe que já estão no momento de
passar para outro estágio evolutivo. Não matamos o animal, damos a ele um novo
nascimento, por isso cantamos: Bi ewe yeje para lala ie, Ògún pere pa = Demos-lhes
um novo nascimento, você resistiu à prova, ultrapassou seguramente privações e
sofrimentos, você não está morto, está vivo. Somente Ogun mata.1
Com efeito, a linguagem utilizada por Mãe Stella denota uma depuração dos
conteúdos religiosos a partir de um quadro de referência filosófica-espiritual ocidental, com
a introdução do conceito de «estágio evolutivo». Não obstante, este trecho evidencia o
cuidado e o respeito que envolve o sacrifício ritual no quadro do Candomblé. Com efeito,
o sacrifício animal no Candomblé diz respeito à etimologia do termo: tornar sagrado.
Ocorrem procedimentos rituais estritos e precisos que configuram a sacralidade do ato,
nomeadamente o respeito pelo animal sacrificado. Tal como refere Juana Elbein dos Santos
(1976), o sangue constitui-se um dos axés (àṣẹ, elementos concebidos como portadores de
energia vital) mais determinantes na consagração dos objetos e atos litúrgicos e, assim, na
produção de equilíbrio comunitário. Da mesma forma que o animal utilizado no ritual se
transforma em objeto comunicante, o sangue derramado, enquanto essência da vida, assume
o papel quer de elemento comunicante, comunicando a intenção do ofertório, quer de elemento
transformador, instituindo a sacralidade dos objetos e transformando-os em “altar”, o igbá do
Òrìṣà. No entanto, como a energia é perecível e o contrato entre humanos e deuses precisa
ser renovado, é pelo sangue que a energia-axé é restaurada e que o contrato é restabelecido,
invocando a dádiva e a troca enquanto ciclo permanente de relação.
Esta relação, o contrato estabelecido entre humanos e seres religiosos pela via da
dádiva, comporta uma dupla dimensão: a utilidade e a obrigação. O sacrifício, na sua
dimensão utilitária, comporta um sentido económico pela via da troca entre a oferenda
humana e a dádiva dos seres religiosos. Na dimensão de obrigação, o sacrifício representa o
dever de restituição da dádiva ou do ofertório, contratualizando a relação bilateral.
Sucede, ainda, que a consagração do animal representa a troca da vida daquele pela
vida dos membros da comunidade. No limiar do ato ritual de sacrifício, o sujeito aproxima-
1
< http://mundoafro.atarde.uol.com.br/balaio-de-ideias-ritual-e-sacrificio/>.
________________________________________________________ -4-
se do animal e encosta a sua cabeça à daquele dizendo, lati gba orí ẹran gbà daju orí mi, i.e.,
“aceite a cabeça do animal comprometendo-se a deixar a minha”. Este ato reforça a proposta
teórica de objeto comunicante. Nesse processo, em que o animal representa a nossa vida no
ofertório e contratualiza a relação entre o humano e os seres religiosos, ele é objeto dos
maiores cuidados, sendo lavado, coberto por panos e sacrificado sob a mais profunda
comoção religiosa.
________________________________________________________ -5-
sociabilidade. Como afirma Romanelli (2006: 336), as refeições são momentos de
reprodução de sentidos, de sociabilidades positivas. Nas festividades do Candomblé, ciclo
do calendário litúrgico, o “banquete” representa a comunhão entre o plano do humano e o
plano dos Orixás, ao mesmo tempo que cumpre o papel social do terreiro como provedor
da comunidade. A carne sacralizada alimenta o corpo e o espírito dos membros da
comunidade-terreiro.
________________________________________________________ -6-
tornando-se elementos comunicantes. Nesse quadro surgem os ebós, rituais que tendem a
cair sob a penosa alçada classificatória de “trabalhos mágicos” por sua dimensão de eficácia
e manipulação. Tratam-se de ações rituais que visam alterar circunstâncias médicas,
profissionais ou afetivas, designados por “ebós de saúde”, “ebós de caminho” ou negócios” e
“ebós de amor”, respetivamente. Os ebós de saúde são aqueles onde os alimentos estão
presentes de forma mais volumosa e evidente, porque requererem uma dimensão de
“alimentação” maior. Ou seja, nos ebós de saúde alimenta-se a doença para que esta não se
alimente do corpo do paciente.
Notas Finais
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Leila, 1999, “Sincretismo em movimento: o estilo Nova Era de lidar com o sagrado”, In
A nova Era no Mercosul, p. 47-79, Petropolis: Vozes.
__________ 1994, “Nova Era: um movimento de caminhos cruzados”, Estudos da CNBB 71:
101-145.
BERGER, Peter, 1967, The sacred canopy: Elements of a sociological theory of religion, Nova Iorque:
Archor.
DOS SANTOS, Juana Elbein, 1976, Os Nagô e a Morte: Pàdè, Àsèsè e o culto Égun na Bahia, Rio de
Janeiro: Vozes.
DOUGLAS, Mary, 1966, Purity and Danger, Nova Iorque: Routedge.
________________________________________________________ -7-
FERREIRA DIAS, João (2014), “À cabeça carrego a identidade: o orí como um problema de
pluralidade teológica”, Afro-Ásia 49: 11-39.
______________ (2013e), “Orí O! A ideia de Pessoa, a Problemática do Destino e o Ritual
do Bọrí entre os Yorùbás e um olhar ao Candomblé”, Horizonte 11: 70-87.
LANDES, Ruth, 1947, The City of Women, Novo México: UNM Press.
LODY, Raul, 1995, O povo de santo, Rio de Janeiro: Pallas.
MAUSS, Marcel; HEBERT, 1899, “Essai sur la nature et la fonction du sacrífice”, Année sociologique
II: 29-138.
OLIVEIRA, Amurabi Pereira, 2011, “Da Nova Era à New Age Popular: as transformações no
campo religioso brasileiro”, Revista Caminhos 9 (1): 141-157.
ROMANELLI, Geraldo, 2006, “o significado da alimentação na família: uma visão antropológica”,
Medicina 39 (3): 333-9.
TYLOR, Edward Burnett, 1871, Primitive culture: researches into the development of mythology,
philosophy, religion, art, and custom, Londres: J. Murray.
________________________________________________________ -8-