Você está na página 1de 35

Nome do Autor, Nome do Texto / 1

Encontro de Arte Viva

2011
Encontro de Arte Viva

2011
4 / Créditos Sumário / 5

Artistas 07 / Articuldores - V::E::R 2011


Ana Luisa Lima, Bernardo Moscheira, Bruno Caracol, Encontro de Arte Viva
Bruno Jacomino, Bruno Miguel, Denise Alves,
Élcio Rossini, Jairo dos Santos, Jamil Cardoso, 08 / Sobre os Participantes
Julia Pombo, Julio Callado, Lucía Russo, Luis Parras,
Maicyra Leão, Michel Groisman, Michele Moura, 11 / Nadam Guerra
Pontogor, Rubiane Maia, Shima e Vitor Butkus. Muito Além da Performance

Articulação
15 / Bruno Caracol
Alex Cassal Contrabando
Beatriz Lemos
Domingos Guimaraens
19 / Alex Cassal
Marcela Levi
Artistas no corpo
Marcus Vinícius
Nadam Guerra
23 / Elcio Rossini
Produção Rito Inaugural

Domingos Guimaraens
Produção local 26 / Vitor Butkus
Mariana França Uma máquina desmontada
Marina Dain
32 / Luis Parras
Assistente de Produção Esperando passarinho
Clarissa Palma
51 / Kenny Neoob
Design gráfico Fontoura: um personagem conceitual
48
56 / Rubiane Maia
Fotografia Sim...
Julio Callado
59 / Vitor Butkus
Realização Havendo
Terra UNA
60 / Julia Pombo
Agradecimentos Convivendo
Escola Frei Wulff, Maria da Glória dos Santos Pereira,
Valdinei dos Santos, e aos moradores de Terra UNA. 64 / Jamil Cardoso
Sobre o V::E::R
6 / Nome do Texto, Nome do Autor V::E::R 2011 - Encontro de Arte Viva

Organizar um encontro de arte fora de um grande centro urbano, em um contexto particular de


uma Ecovila, foi uma oportunidade única de reunir artistas e críticos para um intenso convívio.
Durante dez dias colaboramos entre todos na montagem e realização dos trabalhos propostos via
edital, além das experiências em parcerias que surgiram a partir das aproximações. Em Terra
UNA, a arte dialoga constantemente com as diversas dimensões da sustentabilidade, estimulando
um campo sensível para a ação e interação. No VER – Encontro de Arte Viva este estímulo pro-
piciou ref lexões, debates, performances, instalações, objetos, esculturas, intervenções, dese-
nhos, textos, fotografias, vídeos, pintura e falas para além da especificidade da arte. A produção
realizada para o VER carregou (e continua reverberando) um toque de emotividade de quem vi-
venciou tal experiência. Arte viva é nada mais do que arte na vida.

A segunda edição do VER reuniu em Terra UNA 21 artistas e críticos, além dos quatro articula-
dores e produtora do evento, durante o período de 22 a 30 de janeiro de 2011. Foram realizados
trabalhos instalados, instantâneos, vivências, falas e oficinas, sem contar os espontâneos que
ganharam vida sem notoriedade.
Anda dedos, de Michel Groisman

Para esta publicação convidamos todos os participantes para que descrevessem seus pontos de
Criando rodando afeto, de Bernardo Mosqueira
vistas acerca das obras realizadas, do encontro, do lugar e da experiência individual. Certos de
que não haveria melhor descrição, relato ou texto crítico do que os escritos por aqueles que se
sentiram ávidos ao chamado, é com imensa satisfação que apresentamos ao público o resultado
deste grande encontro. Viva arte viva.

Os articuladores

Alex Cassal, Beatriz Lemos, Domingos Guimaraens,


Marcus Vinicius, Marcela Levi e Nadam Guerra
Sobre os Participantes Sobre os participantes / 9

Ana Luisa Lima (PE) _ Fala _ “Qual Arte?”, linha dentada contínua durante a locomoção e conceitual ‘Heterônimo Fontoura’, durante a Maicyra Leão (SE) _ Fala _ Apresentação de
sobre a relação arte, crítica e mercado. a mesma linha se estabiliza nas pausas entre que estadia em Terra Una, ser ‘capturada’ alguns trabalhos artísticos recentes que
_ Vivência _ “Pequenos Tratados Sobre”, um lugar e outro percorrido. pelo pensamento do filósofo Gilles Deleuze de explorem processos alternativos de
livro/objeto que passará de mão em mão, modo a deixar que seu fluxo de pensamento colaboração, envolvendo diretamente o
sofrendo intervenções, por todos os artistas Élcio Rossini (RS) _ Instantâneo e Instalado se misture ao meu e ao que é percebido no “público” na ação. Para tanto, foram
participantes do VER. _ “Ora bolas”, um espaço para criação de espaço, nas atividades do local, de modo que apresentados experimentos tanto do campo
uma performance que conta com a minha verbalização seja o resultado do do teatro quanto das artes visuais, buscando
Bernardo Mosqueira (RJ) _ Fala _ “Criando participação do público. Feita com balões discurso de um ‘Outro’. Este Outro, o compreender esse fenômeno como uma
Rodando Afeto”, uma espécie de construção transparentes cheios de água e ar pendurados personagem Heterônico, não sou eu, nem recorrência ampla na arte contemporânea.
coletiva e polifônica de pensamento vivo/ativo por fios de nylon essa instalação também Deleuze, mas uma mistura.
sobre a vida e a arte contemporâneos. pode ser definida como um grande Marcus Vinícius (ES) _ Instantâneo _
instrumento que produz sonoridades Lucía Russo (ARG) _ Vivência _ Nas derivas “Espera”, no alto de uma cachoeira, contra o
Bruno Caracol (POR) _ Instalado _ “A Voz”, semelhantes a de uma cuíca. do contra-bando: guias, contatos e redes fluxo da água, esperar amparado por tecidos
receptores de rádio enterrados em pontos informais de contrabando de historias e brancos amarrados nas árvores.
distintos da Ecovila. Jairo dos Santos (MG) _ Instantâneo _ “E contradictorias, de Liberdade-MG.
nós que nos amávamos tanto”, pendurar um Michel Groisman (RJ) _ Instantâneo _ Três
Bruno Jacomino (RJ) _ Instalado _ ninho de João Garrancho abandonado na Luis Parras (BA) _ Instalado _ “Projeto ações realizadas. “O Polvo”, “Sirva-se”,
“Consuor”, máquina de lavar roupa barba e esperar que algum pássaro pouse. Caramujo/Tenda do Amor”, criação de um “Anda Dedos” e o “Instrumento de
doméstica, com sistema de engrenagens ligado ambiente de lona amarela, nos moldes dos Comunicação”.
a uma bicicleta, movida pela força humana. Jamil Cardoso (RJ) _ Instantâneo _ Um moradores de rua, camelôs ou toda gama de
arranjo coreográfico para um coadjuvante em arquitetura efêmera presente nas grandes Michele Moura (PR) _ Instantâneo _ “O
Bruno Miguel (RJ) _ Instalado _ um rito inaugural. Pesquisa da trajetória cidades, neste ambiente costumamos Oco”, realização de ação ao ar livre que
“Refeitório”, perfis de casas em como intérprete, tantas vezes fonte de instigar a ocupação do mesmo na tentativa carrega o enunciado de que “existe separação
compensado sobre cumpimzeiros e outras matéria artística, apropriador de materiais de criar um espaço neutro onde os entre corpo e mente”. Uma performance de
interferências na paisagem. estrangeiros. Compor ambientes no corpo, ocupantes dão a lógica de criação coletiva. dualismos, mover/sermovido, grotesco/
frases de movimento. A ação de comer. A sublime, introspecção/excitação.
Denise Alves (SP) _ Instalado _ “Nível”, investigação rítmica e plástica do corpo. Luisa Nóbrega (RJ) _ Instantâneo _ Performance realizada com auxílio de
trata-se de uma passagem alternativa, Possuidora de uma leve deficiência auditiva de Pontogor, instalando microfones de contato no
construída com escavação feita no solo em Julia Pombo (RJ) _ Instalado _ “Desapego”, nascença, a artista se submeteu a cinco dias corpo da artista.
área demarcada. O trabalho se desdobra caixa com objetos pessoais, relacionados à de surdez completa voluntária, com o auxílio
através da perspectiva experimental, tanto na história de vida da artista, com “valor de tampões de ouvido. Durante esse período, Nadam Guerra (RJ) _ Instantâneo _
sua construção física como também para o emocional”, colocada em um lugar fechado da manteve-se em silêncio absoluto, evitando “Autorretrato enquanto vários”, light bodyart.
ponto de vista daquele que o atravessa. ecovila, com uma instrução e uma lista/ quaisquer formas de comunicação verbal, Corte de cabelo mudando as feições do artista.
_ Instantâneo _ “Percurso”, máquina relato de cada objeto. Durante os dias os tais como ler ou escrever. No sexto dia, após
construída e usada pela artista para registrar participantes trocaram um objeto da caixa retirar os tampões, se dirigiu a um local ao Pontogor (RJ) _ Instalado _ “Escultura
as vibrações e movimento do seu corpo por outro próprio, sem comunicar ar livre onde se manteve de pé, imóvel, Sonora”, captadores de vibração instalados
enquanto se desloca pelo espaço. Derivada da previamente a artista. durante o dia todo, falando em cordas que sustentam pedaços de
idéia de um sismógrafo, a máquina possui ininterruptamente durante 24 horas. troncos. Ao serem tocados produzem
uma agulha que marca sobre o papel uma Kenny Neob (RJ) _ Vivência _ Personagem diferentes sonoridades.
10 / Sobre os participantes Muito Além da Performance

Rubiane Maia (ES) _ Vivência _ “O livro dos OS ARTICULADORES ARTE :: VIVA – ARTE :: ÚNICA INSTALADOS: obras vivas, site specifics e instala-
sonhos”, criação de um ‘livro de sonhos’ a ções – trabalhos instalados na sede do evento du-
ser registrado durante todos os dias do Alex Cassal (RJ) _ Historiador, criador e Quando penso em arte viva imagino a unificação rante todo o período do festival.
festival. Ação situada nas fronteiras entre performer, atuando nas áreas de teatro, de todas as artes e da vida. Imagino uma arte única
performance e registros, realidade e ficção. dança, performance e vídeo. [1] sem discriminação de tempo, espaço, credo, Um público de mais de 1000 pessoas e todo o even-
matéria, cor, sexo ou ritmo. to patrocinado pelos próprios artistas. Chamava-se
Shima (SP) _ Instantâneo _ Três Marcela Levi (RJ) _ performer e “V::E::R - Live Art, Encontro do Rio.” O saudoso
performances noturnas do acervo Terra UNA coreógrafa. Seus projetos, que se situam Vida quando é boa é arte. Reynaldo Roels, diretor da escola na época foi quem
baseadas nas práticas cootidianas da ecovila: entre a dança contemporânea e as artes Entendo a arte (arte única, arte viva ou apenas nos explicou “ Arte Viva não existe. O que existe é
“Trauma”, “Redenção” e “Romaria (vaga- visuais. arte) como uma presença especial ou uma atenção Live Art”. Tudo bem. Ficamos com live art no título
lume)” mais intensa a algum aspecto da realidade seja ele do evento em homenagem ao movimento inglês no
Beatriz Lemos (RJ) _ curadora qual for. Arte é quando colocamos nossa vida para qual nos inspiramos muito, é verdade. [2]
Vitor Butkus (RS) _ Vídeo _ “Havendo”, independente. Sua pesquisa é voltada para as fora de nós mesmos, quando compartilhamos
registro quase-documental, um vídeo que artes visuais contemporâneas e seus nosso impulso vital pelo mundo. Pode ser fazendo Mas queríamos mais. Não queríamos inventar uma
malogra decididamente em apresentar um desdobramentos em redes. um quadro. Uma música. Pode ser fazendo uma nova categoria muitos menos nos enquadrar em
relato integral do evento. Sua ambição é caminhada. Pode ser fazendo um bolo ou coletando uma que já existisse. Queríamos algo além da per-
maior, e menor. Descumprindo a função de Domingos Guimaraens (RJ) _ poeta e imagens em uma câmera fotográfica. Tudo que é formance. Algo além da live art. Algo além da arte!
um registro do havido, cria-se uma escuta e artista visual, doutourando em Estudos da feito com vida é arte.
uma retransmissão do durante. Literatura na PUC-Rio, realiza suas Algum tempo antes eu escrevi um poema:
performances buscando fundir linguagens. Arte quando é boa é vida.
Então falávamos do V::E::R. Que seria um en- Sonho com um mundo sem arte
Nadam Guerra (RJ) _ artista visual e contro de arte viva. Arte é vida concentrada
performer. Constrói obra multidisciplinar pessoas vão aos poemas
unindo dança, vídeo e artes visuais. Em 2005 fizemos a primeira edição na Escola de pegar emprestada vida de mentira
Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro. para as suas tão aguadas.
Marcus Vinícius (ES) _ artista, pesquisador Foram dois finais de semana, participaram cerca Um dia, haverá mais poesia
e curador independente. Realiza projetos de de 40 artistas ligados às artes do corpo e da perfor- nas pessoas que nos livros.
intercâmbio e produção em performance e mance além de 30 vídeos nacionais e internacio- Um dia, ir a padaria será poema.
live art. nais. Os artistas foram convidados e fizemos uma Abrir a porta e olhar o dia
convocatória para vídeos. Organizamos os traba- será mais que uma resposta a
lhos por suas características fisico-temporais em: “levo guarda-chuva?”
Um dia, viver será o bastante.
INSTANTÂNEOS: performances, espetáculos e (Nadam Guerra, 2002)
ações artísticas - trabalhos a serem apresentados
em local fechado ou itinerantes, na sede do evento; ARTICULANDO

DESLOCADOS: intervenções urbanas - trabalhos Em 2005, vínhamos de três anos de intensas ex-
que aconteçam nos arredores da sede do evento, perimentações pessoais e coletivas com o Grupo
FOTOS, TEXTOS e VÍDEOS em www.terrauna.org.br/ver2011 pelas ruas e espaços públicos da cidade; UM (por uma arte única) que depois de várias
12 / Nome do Texto, Nome do Autor Nadam Guerra, Muito Além da Performance / 13

que é diferente. A intenção da arte única é justa-


mente o contrário: desclassificar para incluir o
diferente. A arte única diz “eu sou a diferença, eu
sou você”. Nesta fraternidade utópica em que tudo
é arte acolhemos com amor tudo que não somos.

No V::E::R 2011 em que todos vieram para trocar


acolhemos a Luisa Nobrega que veio para o encon-
tro com os ouvidos tapados. O Jamil Cardoso que
veio repensar seu repertório de movimentos junto
com o Bruno Miguel que veio repensar seu repertó-
rio de imagens. Lucía Russo colheu histórias e
Jairo dos Santos criou boatos. Os que queriam ser
outra pessoa e os que queriam construir coisas. Ou
o Marcus Vinícius que simplismente fica por horas
de pé sobre o rio vendo a corrente passar Eu corto
ações e fricções acabara de se condensar em duas dos da fronteira. Os alienígenas guerrilheiros. o cabelo e com o Shima vislumbramos a omelete
pessoas, eu e Domingos Guimaraens [3]. O V::E::R Os crioulos intergaláticos. sem ovos [5].
era uma sigla para arte Viva Encontro do Rio. E
vinha na sequência de eventos realizados pelo BOIYS E BRITTO Vivemos esta experiência de imersão na Ecovila
Grupo UM: Performances Fotográficas, Teatro Terra UNA. Foram trocas artísticas e pessoais Autoretrato enquanto vários, de Nadam Guerra
Abstrato, Humanogravura, Chanchada Conceitual, Claro que, como arte única, a arte viva deve con- intensas. Um ambiente propício a ao surgimento
Barroco Minimalista, Escultura Imaterial.[4] ceitualmente abarcar tudo. Do tricô ao heavy de novas idéias, novos conceitos, novas conexões.
metal. De Josef Beuys a Romero Britto. Mas A Michelle Moura me conta que esta moda de
Na época, sentimos necessidade de convidar outras quando pensamos um evento de arte viva nosso “artista criador” está oprimindo a dança que é [1] A arte única é conceito fundador do Grupo UM como
pessoas para pensar e realizar o V::E::R junto com interesse principal são as obras inclassificáveis só dança, que às vezes não é pra pensar descrito no Manifesto UM. www.grupoum.art.br

o Grupo UM. Queríamos trazer para dentro do nos compartimentos padrões. O que transborda. demais.“É isso!” penso “o corpo é o futuro da [2] mais sobre o V::E::R 2005 encontro de live art do Rio de
processo outras visões. Que a arte viva, arte única, O que não cabe. mente que é o futuro do corpo. Os opostos se Janeiro em www.grupoum.art.br/ver/

não poderia ser pensada de um só ponto. Assim se atraem, os opostos se amam!” [3] Neste processo de condensação assinamos também muitos
uniram à proposta Marcela Levi, Alex Cassal e Talvez este papo esteja ficando um pouco clichê ou trabalhos como NGDG. Entre 2002 e 2005 cerca de 20 pessoas
integraram de alguma forma o Grupo UM.
Daniela Labra (que acabou saindo do processo até banal para a arte contemporânea. As ditas Se arte viva for mais um conceito para oprimir não
faz sentido. Ou melhor que nem exista como queria [4] Eventos realizados no Parque das Ruínas, Teatro Laura
pouco antes do evento por conta de uma viagem). E artes visuais vem incorporando grande parte do
Alvim, Parque Lage e Teatro Odisséia.
neste V::E::R de 2011 chamamos Bia Lemos e que transborda e tem mais sede de inovação e fu- Reynaldo Roels. E que se acabem todos os concei-
[5] Segundo o livro “The garden of vegan” de Tanya Bernard
Marcus Vinícius para integrar a equipe de articu- turo que outras áreas. Mas o tempo é circular e o tos! Estou me contradizendo? Tanto melhor! arte já
e Sarah Kramer os ovos podem ser substituídos por banana,
ladores junto com o grupo de 2005. O principal cordel pode ser a inovação da poesia concreta, a é vida. A vida já é arte. A arte já é viva. linhaça ou suco de maçã.
critério para estes convites, além da intuição é que cestaria pode ser o futuro dos computadores.
pessoas em pontos diferentes podem V::E::R coisas Vivamos!
que os outros não vêem. E que é necessário É habitual em processos de pensamento valorizar
multiplicidade para pensar os mutantes híbri- certas características para classificar e excluir o Nadam Guerra, Liberdade / julho de 2011
Contrabando

* caminho velho a leste e pelo novo a oeste, foi


o Caminho começava em Paraty, seguindo ficando abandonada, o que permitiu o surgi-
para a região norte do Estado de São Paulo, mento de picadas clandestinas, bandos de as-
passando por Cunha, Guaratinguetá e Cruzeiro. saltantes e contrabandistas. Tentando retomar
Ao fim de alguns dias, entrava na região mi- o controlo da região, o governador Freire de
neira, passando por Passa Quatro, Itanhandu, Andrade decretou, em 1755, os distritos da
Itamonte, Pouso Alto e Baependi. Daqui, seguia Mantiqueira área proibida1 .
para as cidades de São João Del Rei e
Tiradentes, até chegar a Ouro Preto. *
Saímos o Jairo, o Luís, o Domingos e eu, de-
Em 1725 foi terminado o Caminho Novo. pois do café da manhã. Fomos no carro do
Seguindo esta rota, começava a viagem em Domingos até à beira de uma vereda, descar-
embarcações à vela, partindo da cidade do Rio regámos o material e seguimos a pé. Eu e o
de Janeiro, entre o sopé do morro de São Domingos carregámos a caixa com o ninho e
Bento e a atual praça XV de Novembro. Depois o óleo, embrulhada numa lona amarela, um à
de uma escala na Ilha do Governador, seguia frente e o outro atrás. O Luis e o Jairo carre-
navegando até ao fundo da baía de Guanabara garam o assento, o fubá e algumas ferramen-
e adentrava-se pelo rio Iguaçu, depois pelo seu tas. Ladeámos a colina por um caminho
afluente, o rio Pilar, percorrendo um total de estreito, que acabámos por deixar para descer
doze quilômetros em rios. Desembarcava no até ao charco. Dias antes o Jairo tinha visto de
porto de Pilar do Iguaçu, donde seguia a pé, a longe algo que se assemelhava a uma vaca ou
cavalo ou em mulas, por uma estrada que leva- um cavalo, no meio do charco, o que o fez
va à vila de Xerém e depois subia a serra até à pensar que haveria terreno sólido por lá.
atual Paty do Alferes. O caminho descia a serra Começámos à procura de um caminho para
pelos atuais distritos de Avelar e Werneck até atravessar por entre a vegetação enquanto
cruzar o rio Paraíba do Sul, onde hoje está a caminhávamos em fila, seguindo as pegadas
cidade de Paraíba do Sul. Depois seguia para uns dos outros. A lama ia ficando mais funda,
norte, atravessando a Serra das Abóboras, até que nos cruzámos com um curso de água
alcançando Paraibuna, em território do atual que atravessava de lado a lado o charco.
município fluminense de Comendador Levy Desistimos e voltámos para a margem, onde o
Gasparian e, daí, adentrando-se em território Luis cavou um buraco para a base do assento,
mineiro, passava pela atual Juiz de Fora, até outro para as costas e outros dois para os pés.
chegar a Ouro Preto. Sentámo-nos no chão e descansámos. Pouco
depois eu e o Domingos voltámos para casa.
Este era um transito essencial, por onde circu- Ao anoitecer caiu uma trovoada sobre a serra.
lavam os minérios que foram o motor desta Algumas horas depois voltaram o Jairo e o
primeira colonização dos Gerais. Ainda assim, Luis, contaram que durante a tarde, enquanto
por falta de gentes e de particulares riquezas o Jairo sustinha o ninho pela barba, nu, coberto
locais, a região da Mantiqueira, ladeada pelo de óleo e fubá, um homem passou no seu cavalo,
16 / Contrabando, Bruno Caracol Nome do Autor, Nome do Texto / 17

pelo caminho que ladeava o charco. Parou, ainda assim as cidades históricas de Minas
olhou e seguiu caminho. com uma rede mitológica de túneis se espa-
lhando debaixo da terra, conectando distantes
* lugares da mesma cidade, ou mesmo cidades
A Lucia, de regresso da sua oficina em diferentes. Muitas dessas histórias descrevem
Liberdade, comentou que em conversa com uma aristocracia sempre preparada para a
um vizinho, este lhe tinha contado que a cidade fuga, conectando os seus palácios aos bosques
tinha sido em tempos um ponto de passagem marginais da cidade, as ricas igrejas barrocas
de rotas de contrabando de ouro3. a vales distantes. Noutras, os subterrâneos
são lugares de reuniões de uma burguesia
“Contrabando” tinha se tornado uma gíria no subversiva, preparando a insurreição nas suas
encontro a esta altura, dada a restrição ao galerias.
consumo de bebidas alcoólicas e carne na co-
munidade. A cachaça e a linguiça eram “de Entre duas araucárias de 10 metros de altura,
contrabando”. As festas eram ‘clandestinas’. um buraco de cerca de dois metros de compri-
mento por um de largura, por um e meio de
* profundidade. Cavada na terra uma escadaria
No filme The Great Escape de 1961, Richard até ao ponto mais fundo do buraco, que por
Attenborough, Charles Bronson e Steve causa da chuva dos últimos dias, tem o fundo
McQueen interpretam soldados ingleses que coberto por uma capa de água lamacenta.
arquitectam uma fuga em massa do campo de Sentado no ultimo degrau, de pés na lama,
concentração onde se encontram prisioneiros. fico com o olhar ao nível da terra. As duas
Cavam três túneis, que chamam de “Tom”, araucárias enquadram o meu olhar, alguns
“Dick” e “Harry”. metros à frente. Tive um flash imediato de mercados europeus, financiando a resistência. fica uma maior visibilidade e influência, nem
enquanto criança, brincar na praia e querer estes lugares são estáticos nos seus modelos.
O filme refere-se a um evento real, passado no construir um grande túnel, da beira da praia Um posicionamento crítico no meio artístico Mesmo assim, o meio não produziu um corte
campo de concentração de Stalag Luft III, na até à barraca onde os meus pais dormiam. vive nesta contradição entre dependência e com as instituições artísticas. Pelo contrário,
Primavera de 1943. 73 soldados conseguem Consegui escavar o suficiente para que senta- autonomia. Uma rede de espaços de produ- a circulação de capital do estado, de funda-
fugir pelos túneis, mas apenas 3, interpretados do dentro do buraco, ficasse com o olhar ao ção ‘independente’ veio se espalhando pelo ções ou empresas é fulcral para a sobrevivên-
no filme por James Coburn, Charles Bronson nível da terra4. globo nos últimos anos, deslocando o foco da cia da maioria dos projetos.
e John Leyton, conseguem escapar até terreno exposição para a produção, do espectáculo
seguro, sendo os restantes recapturados ou * para o processo. TERRA UNA insere-se num movimento de
mortos nos dias seguintes à fuga. Minas Gerais esteve em tempos coberta de ecovilas, comunidades ecológicas em que se
quilombos. Escravos fugidos organizavam É difícil descrever genericamente este meio, experimentam outros modelos de relação com
Nos Gerais oitocentistas, era em busca de mi- uma sociedade paralela, ainda assim não talvez seja na diversidade que resida a sua in- a natureza e de vivência comunitária. Para
nério que se escavava a terra, criando galerias autónoma, que vivia da porosidade do estado dependência. Tem vários níveis de institucio- isso gerou colectivamente formas de funciona-
de túneis que chegavam a ter várias dezenas colonial. Escavavam-se minas clandestinas, nalidade, formas de funcionamento, de gestão, mento e regras de convivência distintas da
de quilómetros de extensão. A maior parte traçavam-se quebradas e de uma forma ou de de financiamento, de seleção de projetos. Nem ‘sociedade exterior’. Em TERRA UNA estas
destas galerias estão inacessíveis, marcando outra, o ouro quilombola acabava por chegar aos sempre uma posição mais institucional signi- regras não são vividas de uma forma rígida,
18 / Contrabando, Bruno Caracol Artistas no Corpo

têm a função de mediar a convivência nos Em janeiro, participei do V::E::R 2011 –


espaços comuns e é neles que estão mais pre- Encontro de Arte Viva, que reuniu cerca de
sentes. O desvio inscreve-se no espaço, em três dezenas de artistas e pesquisadores na
clareiras e caminhos menos percorridos. ecovila Terra UNA, em Minas Gerais. Foram
dez dias conversando, criando e imaginando
No VER, produtores, artistas e público con- formas de trabalhar, da manhã à noite, numa
fundiam-se. Esta alternância de papeis gerou convivência desafiadora. Foi uma experiência
um campo intenso de troca, em que a relação rica para pensar em colaboração e contami-
artista-obra-espectador não era mais mediada, nação, para compartilhar perspectivas e
tornando inevitáveis as contaminações tanto friccionar desacordos.
dos processos criativos quanto as pessoais.
Algo disto pertence à efemeridade da experi- Num evento que se propôs habitar um “terreno
ência, não é do plano do texto ou da imagem. rugoso, impuro e mestiço, onde linguagens se
cruzam e fronteiras se borram”, era de se espe-
Estão por desenhar modelos de produção que rar que a dança estivesse bem representada, e
permitam a geração de uma vida cultural assim foi. Eu já conhecia alguns dos artistas
paralela, estrangeira aos fluxos de capital. que transitam pela dança contemporânea
Esta acontece, na maioria das vezes fora de carioca, como a performer curitibana Michelle
campos definidos como ‘arte’ e ‘cultura’. Não Moura, que depois do solo Cavalo continua a
é senão a sua sombra que é capturada, o seu explorar as propriedades muito específicas do
modo de agir é clandestino e os seus caminhos seu corpo numa dança quase expressionista,
não estão mapeados. uma espécie de Mary Wigman quântica.
Também há tempos venho acompanhando a
[1] Anastasia, Carla Maria Junho – A Geografia do Crime:
trajetória entre artes visuais e dança de Michel
Violência nas Minas Setecentistas – UFMG, Belo Horizonte, Groisman, que espalhou por Terra UNA o seu
2005.
O decreto do governador contribuiu mais para a dissemina- vasto acervo de jogos que colocam as relações
ção de atividades ilegais do que para o seu término, fazendo entre corpos no foco, como Polvo, Sirva-se e
das regiões proibidas zonas sem lei. Dois dos mais importan-
tes bandos de assaltantes atuando na região eram liderados Instrumento de comunicação. A diretora e
por Joaquim de Oliveira, de apelido Montanha e por Manoel coreógrafa argentina Lucia Russo (parceira de
Henriques , de apelido Mão de Luva, contrabandista de ouro
que deixou histórias de ter enterrado os seus tesouros em Gustavo Ciríaco no lindo Eles vão ver) cami-
várias grutas dos Gerais. nhou pelas ruas da pequena cidade de
[2] Em ‘E Nós que nos Amávamos Tanto’, Jairo Santos Pereira, Liberdade – MG, investigando os relatos de
propôs-se a suspender um ninho na barba e esperar que um
pássaro nele pousasse. seus moradores. E Jamil Cardoso levou para
[3] Lucia Russo deu a oficina ‘Ecos Fabulosos’ em Liberdade.
diferentes espaços (uma campina, um galpão
As oficinas na cidade abriam vias de contrabando, seja mate- de madeira, uma cozinha) o seu Working
rial seja de sentido, por cruzarem o nicho protegido de Terra
Una com a sua vizinhança.
process, um solo sensível e multifacetado
que confunde sua própria história com a
[4] Denise Alves, em ‘Nível’, escavou uma passagem de
aproximadamente 1,60 m de profundidade por 3 metros de história de outros.
comprido, entre duas araucárias.

Julia Pombo Élcio Rossini


20/ Artistas no Corpo, Alex Cassal Nome do Autor, Nome do Texto / 21

Mas também conheci em Terra UNA artistas Élcio é gaúcho, um artista que eu admirava
vindos de outros lugares, que também explo- desde que morava em Porto Alegre, e que
ram o corpo em sua matéria, suas propriedades continuei acompanhando de longe em seus
e suas consequências. E sinto o desejo de falar trânsitos entre artes visuais, performance,
um pouco mais sobre duas destas pessoas: teatro e dança. Há anos a coreógrafa Cibele
Júlia Pombo e Élcio Rossini. Sastre já me falava dos seus Objetos para a
ação, parangolés imensos feitos de um tecido
Júlia é uma jovem artista carioca com uma muito fino, que inflam ao serem manipulados,
produção recente de vídeos e fotografias tornando-se uma espécie de tenda ou pára-
concentrados no corpo, principalmente o seu quedas ao redor do corpo. É empolgante expe-
próprio. Muitas dessas obras têm um claro rimentar a riqueza de possibilidades de
sentido cênico ou performático, corpos em movimento destes infláveis, suas respostas
relação com o espaço, com o próprio corpo, inesperadas e envolventes, a sensação de
com outro corpo. Como Máquina, um vídeo “dançar” com o ar. Parece uma ferramenta
simples e preciso misturando corpos e engre- incrível para pensar em contato-improvisação,
nagens em movimento; ou a Série Introspectiva, no espectador-participante de Hélio Oiticica e
estudo dobrado sobre si mesmo que me remete Lygia Clark, nos poliedros de Laban, em tempo,
aos primeiros trabalhos da coreógrafa Alice em relação com o outro.
Desapego, detalhe da instalação
Ripoll; ou Still, série fotográfica que é quase
o resumo de um videodança, expressiva tanto Outro trabalho que Élcio levou a Terra UNA foi
na construção da imagem quanto no que a instalação Ora, bolas (na 1ª foto) – balões
deixa de mostrar. transparentes cheios de água pendurados em
fios de nylon, um imenso e cinético instru-
Para Terra UNA, Júlia levou uma proposta de mento musical. Como os Objetos para a ação, é
instalação – Desapego – em que ela trocava uma obra para uso que revela as suas possibi-
com os outros artistas objetos com valor afetivo. lidades ao ser tocada, um convite à relação
Cada objeto oferecido por Júlia vinha com uma entre os corpos dos participantes (como os
pequena narrativa, “herdada” pelos novos jogos de Michel Groisman). A fragilidade dos
objetos que foram aos poucos tomando o lugar balões, que ameaçam a qualquer momento
dos originais. Um trabalho delicado e lento estourar e dar um banho em todos, provoca
sobre construção de memória, sobre intimida- mais que limita, ainda mais na tarde de sol
de, sobre as histórias que nos definem, forte em que experimentávamos a instalação.
lembrando Christian Boltanski e Sophie Calle. E foi assim, com alguns alfinetes, que a insta-
E um trabalho que também me parecia falar lação se desfez em segundos, numa apoteose
de memória do corpo, um corpo ausente de gritos e jorros de água que ficou ressoando
mas persistindo naquelas roupas, brinquedos, na minha cabeça como o final de um concerto.
em um livro, em um caneca, nas fotos de
um ex-namorado.

Desapego, de Julia Pombo


22 / Nome do Texto, Nome do Autor Rito Inaugural

Passados alguns meses da experiência de ver e apresentada pelo artista, posso fazer sem
compartilhar a obra e o pensamento dos artistas culpa meu recorte.
que participaram da residência em Terra
Una, preciso recorrer à memória, sempre Tarde de sol forte nas montanhas da Mantiqueira,
falha, para escrever a respeito do trabalho provavelmente, dia 24 de janeiro de 2011. O
de Jamil Cardoso. lugar escolhido, por Jamil Cardoso, para apre-
sentar pela primeira vez seu Arranjo coreo-
Conversando com Jamil, tomei conhecimento gráfico para um coadjuvante em um rito
sobre seu projeto através das palavras que ele inaugural (agora, chamado A Casca do Ovo
escolhia e organizava para descrevê-lo. Soube, por Dentro), foi um pequeno platô em frete a
então, que era um trabalho em processo e que casa da Casula. A plateia formada pelos resi-
ele pretendia aproveitar a oportunidade do dentes sentou em torno do lugar determinado
convívio com os outros artistas para construí-lo. pelo artista, alguns tinham a casa de madeira
Primeiro, conheci o título Um arranjo coreo- de duas águas como o fundo da cena; outros,
gráfico para um coadjuvante em um rito inau- uma cerca viva de ciprestes; outros ainda,
gural, depois, tive conhecimento de que era como eu, tinham a encosta da montanha. O
Um processo de trabalho trabalhando. Essas trabalho de Jamil começou, sem alarde, tão
duas frases pareciam sintetizar, para o artis- frágil e delicado que não sabíamos que era
ta, a ideia que ele começava a construir. No um começo. O pedido de um beijo, um beijo
entanto, eu não entendia, naqueles dias, sua roubado e a sequência de ações vigorosas de
extensão e, por isso, elas soavam apenas como seu corpo.O material que Jamil apresentou
um arranjo sonoro, eu não acessava seu conte- nos mostra de imediato a qualidade e a força
údo com clareza. Passado o tempo, constatei de sua presença em cena. O trabalho é uma
meu engano. O título, agora, tornou-se mais compilação de fragmentos de coreografias,
claro porque descreve, com exatidão, a inquie- produzidas durante sua participação no pro-
tação que movia Cardoso nos primeiros dias cesso de criação de espetáculos de vários co-
de nossa residência em Terra Una. reógrafos para os quais Cardoso dançou.
Saber disso transforma radicalmente nosso
Fazer a leitura de um trabalho artístico, escrever olhar quanto ao material apresentado. Jamil
nossas ideias sobre ele é, por natureza, vê-lo de Cardoso não discute em seu arranjo apenas o
um único ponto de vista, desfocar tudo mais que seu corpo treinado pode fazer, suas habi-
que ele pode oferecer para recortar de sua rica lidades como intérprete, os limites de sua re-
complexidade alguns poucos aspectos. Esse sistência física ou questões caras à dança
limite, que ignora e omite, como é o caso aqui, contemporânea. A proposta de Cardoso é, no
questões importantes de uma obra, pode, meu ponto de vista, mais complexa e talvez
paradoxalmente, revelar e aprofundar uma urgente, ela trata de uma reflexão a respeito
questão específica. Dito isso, apresentada uma da autoria, sobre os acordos tácitos feitos entre
justificativa plausível para abandonar muitas intérprete e coreógrafo. Para ele, a urgência
das instigantes proposições da coreografia de suas indagações não deixa dúvidas, ele

”Jamil Cardoso em seu trabalho “Um arranjo coreográfico para um coadjuvante em um rito inaugural
24/ Rito Inaugural, Elcio Rossini Nome do Autor, Nome do Texto / 25

expõe para si e para nós uma pergunta que


não tem por finalidade a resposta tranquiliza-
dora da tomada de uma única posição.

A história das colaborações marcou a arte dos


anos de 1960, no entanto é muito anterior a
eles e teve sua origem na serata futurista e nos
encontros dadaístas, no Cabaré Voltaire. Na
efervescência dos anos de 1960, Anna Halprin
foi precursora na criação de coreografias que
destituíram o coreógrafo de seu poder de autor
absoluto dos movimentos dançados. Através
de suas tarefas, a dança deixou de exigir os
corpos treinados para excelência do movimento,
assim, permitindo o ingresso na arte dos corpos
“imperfeitos”. As coreografias passaram a
colocar os sujeitos e suas abordagens da ação
como colaboradores na criação dos movimentos.
As tarefas que Halprin propunha a seus dan-
çarinos absorviam a particularidade dos cor-
pos, mas também integravam o material
criativo que cada um dos participantes trazia.
Essa modalidade de colaboração marcou defi-
nitivamente a dança contemporânea e alterou
os limites da própria definição de coreografia. Jamil Cardoso
O coreógrafo pode, dessa maneira, transfor-
mar-se em propositor de questões para serem
respondidas corporalmente pelos dançarinos. trouxe à tona outra forma de olhar para aquilo
Desde sua origem, os processos de colabora- que, no passado, surgiu como uma transfor-
ção para criação de uma coreografia dependem mação irreverente, marginal e que permitiu
de muitas variáveis que dizem respeito às inquestionáveis conquistas para arte em todos
técnicas corporais, às proposições conceitu- os campos. Agora, Cardoso revisita a questão,
ais, mas, acima de tudo, dependem e preci- revela-nos e expõe incisivamente o potencial
sam ser fundadas em um acordo ético entre criativo desses intérpretes-autores. Fala de
as partes envolvidas. um anonimato incômodo e talvez, nem sempre,
justo. O rito que Jamil Cardoso quis inaugu-
Atualmente, pensamos pouco sobre esse tipo rar durante o V:E:R, em Terra Una, teve como
de colaboração muito própria do teatro e da finalidade investir a si mesmo daquilo que ele
dança contemporâneos. O trabalho de Cardoso sempre foi: criador, coreógrafo e intérprete.

Ora, Bolas, de Elcio Rossini


Uma máquina desmontada Vitor Butkus, Uma máquina desmontada / 27

Este texto é uma máquina desmontada. Suas Denise é tão autora quanto a felpa da madeira máquina corpo com a terra. Figura e fundo testam aí os
peças estão nuas, visíveis nos seus volumes e o barranco do riacho. As ideias se desenvol- A princípio uma experiência inédita, esse seus limites intermediários. O rosto se desfigu-
mais íntimos. Descontínuos, os fragmentos vem imediatas à matéria viva, ou seja, rente à caminhar vai se tornando, dia-pós-dia, roti- ra, o corpo se torna linha esquelética. O risco,
podem vir a funcionar, se uma leitura ativa estiver densidade da fita isolante, ao peso das pilhas, neiro. Antes disso, o corpo aprende as curvas negro sobre branco, nos lembra de uma existên-
disposta a produzir esse funcionamento. ao giro da manivela. Essas peças, retiradas e os veios da terra. E sim, há uma máquina cia ondulatória das carnes. E temos a prova do
do tecido do mundo, são manipuladas pela que registra esse peso antes que ele fuja, antes inumano energético, pulsante e radioso que nos
É mais ou menos assim que Denise Alves- artista sem nenhuma preocupação formal ou que ele vire história, palavra, pesei. Antes que constitui como vivos em um planeta vivo.
Rodrigues vem construindo o seu percurso compositiva. O que rege o lugar de cada uma vire imagem, o corpo anda, é e vibra.
como artista: relendo, ou translendo as peças das peças, no arranjo, é a sua função. fresta
disponíveis na sua volta. Do enorme e fragmen- obra Exposto ao encontro de nossos olhos e corpos,
tado tecido do mundo, Denise extrai alguns A transparência do plástico é expulsa de seu O que sobra de um encontro? Uma imagem, o que resta do Percurso é um texto escrito em
pedaços sobressalentes, dando a eles uma puro teor qualitativo, e propriamente visual; uma frase, um cheiro na memória. preto sobre branco. Mas a chave de leitura de
função em suas máquinas. Foi esse jogo de ela ingressa, pelas mãos da artista, no campo tal texto não está acessível. O risco negro foge
reciclagem e reposicionamento das partes, o da utilidade. E assim sucessivamente, cada ele- O que sobra de uma vida? Uma trilha, um início lepidamente de nossa tentativa de decodifica-
traço que motivou esta escrita. mento se agrega conforme a sua funcionalidade e um fim, um currículo e uma biografia. ção. No rastro de sua fuga, esse risco nos abre
para o conjunto maquínico. Percebemos então uma fresta para a infância do sentido. Ali,
Desmonto aqui uma das tranqueiras de que, naquele acoplamento de peças, nenhuma O que sobra de um caminhar? Uma linha onde não há ainda rosto, figura ou fundo, ali
Denise. Desmonto para melhor compreendê-la delas é desprovida de função. No percurso de acidentada, metade produzida pelo corpo, acontece o abalo sísmico que nos faz humanos.
– aceitando o risco de que, uma vez remontada Denise, nenhum fragmento é decorativo. metade causada pela terra. É esse abalo que o risco registra e relata.
pelo leitor, a máquina volte a funcionar de
uma outra maneira. lugar linha Ausente, o corpo que anda nos lembra, por obra
Percurso foi um projeto concebido na cidade Mas essa linha não divide duas dimensões. de sua ilegível escrita, da inteligência rumorosa
pergunta de São Paulo, e executado em Terra Una. Entre o corpo e a terra, entre o indivíduo e seu que é essa do corpo-terra. E a aparente bruta-
Mais de um mês depois do nosso encontro em A ecovila, instaurada em meio à serra da lugar, há um limiar: aquele que dá forma ao lidade que essa linha nos relata tem também a
Terra Una, perguntei à artista Denise Alves Mantiqueira, no sudeste do país, é formada por dentro e ao fora. Essa linha não existe, sua sua suavidade. Rítmico, ainda que irrepetível,
Rodrigues o que era Percurso. Ela me respondeu: algumas casas e outras edificações, habitadas espessura é infinitesimalmente minúscula. o caos que nos delimita deve ser luminoso: é o
e praticadas por seus habitantes. Todos esses Ela dá forma justamente ao que ela divide, que lemos das fagulhas, ao longe.
já foi controle (de tentar anotar tudo, o q pen- habitantes são oriundos do meio urbano – po- colocando em imediato e f lexível contato.
so, o q vejo, o q imagino) rém, decidiram mudar de ares, de paisagem Desde o ponto de vista dessa linha, o corpo
e de vida. Em São Paulo, caminhar é um há- perde a sua mais civilizada humanidade. A
já foi desenho (pq desenho é mais rápido, é bito cultivado com entusiasmo por Denise. artista perde o rosto, vira terra e osso, mús-
quase a idéia né?) Caminhante diurna e noturna da selva cin- culo. E o que resta nos oferece o testemunho
za, a moça desloca seus passos, seu ritmo e de uma oscilação vibratória entre mim e o
é sempre projeto sua f lutuação para as trilhas. E em Terra outro. Entre o retrato e a paisagem, o que
Una as veredas se mostram mais acidenta- aparece é uma linha frágil e finita.
ideia/matéria das. Subitamente íngrimes, movediças.
O projeto existe e se conforma rente à maté- Sulcadas pela chuva e pelos passos que já infância
ria manipulada. A ideia não vem apenas da deixaram seu peso. A loucura das máquinas passa a ser esta: a de
interioridade individual da primeira pessoa. possibilitar o registro, em ato, do encontro do
28 Nome do Autor, Nome do Texto / 29

Nível, de Denise Alves-Rodrigues


30 / Nome do Texto, Nome do Autor Nome do Autor, Nome do Texto / 31
Esperando Passarinho Nome do Autor, Nome do Texto /

O dia que Insã venceu Kant No dia seguinte, tomamos aquele fantástico
café natureba, com aquele monte de coisas
É um lugar cheio de vaga-lumes. Uma brecha saudáveis e logo depois fumamos um cigarro
gigante no meio da serra onde ficamos hospe- de palha cada um. Pegamos um carro e ru-
dados para o encontro. Depois de alguns dias mamos eu, Jairo, Bruno Caracol e Domingos
na residência artística V::E::R. 2011 e na Guimarães até o local escolhido por Jairo para
noite anterior ao dia em que Jairo faria a ação se instalar e esperar passarinho. Fomos até
“Ninho”. Fomos, Jairo e eu, para o galpão, um um local perto para depois seguir a pé. Era o
espaço que serve para palestras, vivências e próprio exército de Branca Leone. Andamos
afins, mas na verdade passaríamos direto até um bocado e chegamos ao local, um charco
a casa da tartaruga, usar umas ferramentas cheio de mosquitos. Uma várzea entre dois
do Bruno Jacomino artista inventor que adap- morros cobertos de árvores, fazia muito sol.
tava uma bicicleta ergométrica a uma máquina Montamos o banco e o encosto de madeira,
de lavar. No entanto algo nos reteve no galpão também a barraca que serviria de suporte
no momento em que separávamos madeira para a aventura estética, além de um cara-
para confecção do banco que Jairo usaria na mujo para almoçarmos. E depois desta última
ação, era um som estranho que vinha do pé ação Jairo começou a se preparar: tirou toda
de uma árvore. Andei desconfiado até o local a roupa, fixou o ninho de João Garrancho na
e para minha surpresa, depois de alguns dias barba, se besuntou de óleo e se polvilhou de
sem escutar uma música proveniente de um fubá. Pronto sentou e eu fiquei sentado escon-
aparelho mecânico, o Adoniran entrava em dido a uns 30 metros dele...
meus ouvidos como uma poesia num local im-
provável. Fui invadido de extrema nostalgia e Espera. Depois de um tempão ele me fez um
pude descobrir que aquele dia era aniversário sinal, fui até ele que me pediu água. Atendi o
de São Paulo. Tratava-se do trabalho “A voz” pedido. Pegávamos água num regato que pas-
de Bruno Caracol, que eram rádios a pilha sava perto de nós. Levei para Jairo acompa-
escondidos por Terra UNA. Foi incrível pois nhado dum palheiro no canto da boca, ele me
aquilo de certa forma dava um tom de “agora pediu um trago. Foi engraçado que antes dele
começou” a ação do Jairo, o fato de estarmos sentar, falamos sobre tudo, filosofia, estética,
em Terra UNA, uma eco vila que recebe ar- política, gente, fofoca, piadas... neste momen-
tistas contemporâneos, carregados de seus to, não falamos nada. Deu o trago e eu voltei
existir urbanísticos, para desenvolverem em pra minha tocaia. Mais um tempão danado.
ambientes florestais, ações artísticas. Ouvindo Passarinho nada.
Adoniran Barbosa em homenagem a cidade de
São Paulo me pareceu sintomático já que no Nossa passou um tempão. Outro aceno. Fui até
dia seguinte a proposta era ficar em um local lá e ele que estava nessa hora sentado, levan-
ermo, longe da residência duas horas andando, tou, e me perguntou, e ai? Antes de responder
durante 24h esperando um pássaro pousar ele mesmo me disse, o povo ta ai.
num ninho instalado na barba de um sujeito.

Páginas anteriores: E nós que nos amávamos tanto, de Jairo dos Santos Enfrentamento, de Jairo dos Santos e Luis Parras
34 / Esperando Passarinho, Luis Parras Nome do Autor, Nome do Texto /

Chegaram: Domingos Guimarães, Julio mento, ao longe, e isso me pegou na hora que
Callado, Bruno Jacomino, Julia Pombo, saímos do vale debaixo de raio e trovão.
Kenny Neoob, (quem mais?). Subi até eles por Seguimos o caminho inverso do homem do
que Jairo pediu que não houvesse aproxima- cavalo pois vimos o Julio Callado indo embora
ções, menores que 100m ? conversei, peguei por ele, Julio sabe desses negócios das trilhas
as coisas que os coleguinhas carinhosamente de lá porque já fez um trabalho a ver com isso
levaram pra nós e voltei pra minha tocaia. no passado.
Entretanto anoiteceu.
Naquele dia andamos muito até a Casula, nossa
Tenho dúvidas quando tento lembrar, do mo- residência em Terra UNA. Chegamos acabados.
mento que a chuva era evidente e o começo da Havia uma sessão de cinema nesse dia lá, não
tempestade de raios, a gente devia estar falando sabíamos. Nessa noite eu tive um pesadelo,
de arte. Sei que foi um consenso irmos para depois de ter várias noites sem sonhar. O
a barraca, já completamente noite. Os raios Shima me disse que isso era por causa da ca-
começaram a crescer estava extremamente choeira que tinha perto da casa, ela tranqüili-
escuro, o barulho das árvores balançadas pelo zava o sono e não lembrávamos dos sonhos.
vento só me traziam Wagner com as Valquírias Na manhã seguinte o Shima estava propondo
nos ouvidos. Eu estava alucinado, víamos o uma ação chamada Auditório Man, que con-
vale inteiro iluminado por segundos. Raios de sistia em ouvir alguém por 16 minutos e
cor violeta que tocavam o solo. Isso começou a guardar tudo o que fora dito para sempre, de
dar muito medo. modo que não vou contar o que contei para
ele, pois isso tiraria todo o motivo de eu ter
O medo aquela possibilidade naquele dia. Contei meu
sonho e fiz uma pergunta.
Não sei explicar aquela grandiosidade, meu
medo era sair dali e se perder, na chuva no - shima se tem medo?
meio do mato, pois na vinda para o vale, ficamos
meio desorientados, estava muito escuro isso - agora eu não posso falar disso.
poderia ser bem desagradável na chuva. Mas
depois de muita tensão, Jairo pegou um estilete
e cortou os cabelos e pelos da barba que pren-
diam o ninho de 5 quilos ao seu corpo e disse:
cara vamos embora. Não titubeei. Pegamos a
lanterna, foice e facão e andamos. Eu só queria
saber o que pensou o homem a cavalo que pas-
sou na hora da visita da galera. Ele passou por
uma trilhazinha, olhou desconfiado para Jairo,
atravessou o corregozinho, a porteira e sumiu
na mata. Ficamos olhando ele naquele mo-
36 37

Refeitórios, de Bruno Miguel Oco, de Michele Moura


38 39

Voz, de Bruno Caracol Inflável bicolor, de Elcio Rossini


40 Nome do Autor, Nome do Texto / 41

Tenda do amor, de Luis Parras Colaborações em performance e Experiência cromática azul, de Maicyra Leão
Artistas e articuladores do VER 2011
;Em pé ao fundo: Ana Luisa Lima; Alex Cassal; Bruno Caracol; Luis Parras
Jairo dos Santos; Jamil Cardoso; Julia Pombo; Pontogor
42
Na segunda fila: Michel Groisman; Marcela Levi; Lucía Russo; Shima; Michele Moura; Nome do Autor, Nome do Texto / 43
Bernardo Moscheira; Beatriz Lemos; Bruno Miguel
Sentados em primeiro plano: Vitor Butkus; Denise Alves; Élcio Rossini; Marcus Vinícius;
;Domingos Guimaraens; Maicyra Leão; Julio Callado; Nadam Guerra; Rubiane Maia
Clarissa Palma; Luisa Nóbrega; Kenny Neoob; Bruno Jacomino
44 Nome do Autor, Nome do Texto / 45

O polvo, de Michel Groisman

Espera, de Marcus Vinicius


46 47

Redenção e Romaria (vaga-lumes), de Shima


48 Nome do Autor, Nome do Texto / 49

Consuor, de Bruno Jacomino Escultura sonora, de Pontogor


50 Fontoura: Um personagem conceitual

Quando um personagem, é criado ele passa a se mover pelo mundo; a cada passo vai
se distanciando de quem o criou, vai tomando vida própria. Em Terra UNA, encontrei
Heterônimo Fontoura. Dizem que usava chapéu de palha; outros, que tinha densa barba,
que usava óculos, olhos de águia, que era gordo, que era magro, mulher, homem, indecifrá-
vel. Fontoura se transforma aos olhos de quem o olha. Recebe em si o conhecimento de outras
eras e deixa tudo fluir sem as portas trancadas dos preconceitos que estão nos corpos que
o recebem. Fontoura é puro fluxo de consciência, pensamento em corrente caudalosa. Seu
nome, biotônica energia, faz pulsar o verbo a cada pensamento. Há alguém andando na
corda bamba entre a realidade e a ficção; se cai, para cá é real; se cai para lá; é invenção.
Mas, neste espaço tensionado e tênue, este ser se equilibra e lança suas perguntas. Sinta
aqui sua explosão sensível. Quem é ele? Será ela? Heterônimo Fontoura, quem é você?
Domingos Guimaraens

Quando chegou à idade de preocupar-se com a tes da noite. Às portas de Terra Una, Fontoura
liberdade de pensamento, o autor quitou sua encontra o artista Luis Parras, que lhe devolve
Degredo, de Luisa Nóbrega cidade, seus hábitos urbanos e subiu a monta- a pergunta:
nha em direção à Terra Una, um lugar onde a
natureza impera: cachoeiras, rios, florestas e — O que veio fazer aqui?
seres humanos com suas paixões. Apenas in- — Nada. Quem faz é o corpo — responde
ventar personagens não era suficiente, o autor Fontoura.
desejava viver um personagem. Passou, assim, — Mas você não é o corpo?
a utilizar um heterônimo: — Este corpo não é meu. Encarno em corpos.
— Como se fosse um furto de corpos? Um
— Olá, meu nome é Fontoura. empréstimo?
— Prazer, sou Jamil Cardoso. — Um compartilhamento.
— O que veio fazer em Terra Una? — Então fique à vontade, quando quiser...
— Uma oficina de conscientização corporal. Mas, agora, estou falando com o Fontoura ou
E você? com o dono do corpo?
— Não vim fazer nada, sou apenas um perso- — Com o Fontoura.
nagem. Não tenho corpo. — É sempre bom conhecer outra pessoa! Co-
— Ah!... Você é “o” Fontoura ou “a” nheci alguém muito parecido com você, a
Fontoura? Matilde: é uma paraguaia, uma cambiadora
— Como lhe disse, não tenho corpo, logo não de corpos. Ela tem a capacidade de mudar de
tenho sexo. corpo através do beijo. Muda de corpo, à me-
— Que pena para você! dida que beija. Fez a passagem do Paraguai a
Salvador em dois mil e tantos beijos.
Era preciso apressar o passo, para chegar an- — Tomo o corpo apenas quando há necessidade.
52 / Fontoura: um personagem conceitual, Kenny Neoob Kenny Neoob, Fontoura: um personagem conceitual / 53

— É mais simples! ça entre “presença” e a ideia de um persona- ais, para dizer aquilo que eles pensam. te transformador da vida. Tudo o que faço,
— Será? gem. A presença pode acontecer, mesmo sem o — Mas esses personagens foram escritos com chamo de “estratégias do corpo”.
— Não sei qual o processo da Matilde, porque personagem. Eu posso fazer uma cena em que a palavra. Viver um personagem é uma expe- — Eu também sou fluxo, um fluxo que se atu-
não deixei ela me beijar. eu tenha um estado de consciência diferencia- riência diferente, há outras implicações: há a aliza no corpo – afirma Fontoura.
— Ficou com medo? do e, ainda assim, ser eu mesmo. Esse estado presença, há a relação com as pessoas, há
— Eu gosto muito do meu corpo! de natureza é diferente do personagem. f luxos subjetivos e indizíveis; por exemplo, Os dois se abraçam. Silêncio. Fontoura continua
— Qual a consciência de um personagem? empatias... — pondera Élcio. sua caminhada, deixando a figura longilínea sob
O personagem continuava a insistir nas Seria possível instaurar um plano e pensar — Esta é a riqueza! O que me interessa são as a copa da árvore. No outro dia, Fontoura en-
mesmas perguntas, com outros artistas: a partir desse plano? Seria possível criar um relações entre fluxos diferenciados. contra Michel Groisman, outro visitante de
personagem desvinculado das forças imperan- — Como isso acontece? Como se processa? Terra Una, e insiste:
— Qual seu nome? O que veio fazer aqui? tes e deixá-lo viver? Não; não me diga isso agora!
— Olá, meu nome é Michelle Moura; farei uma — Viver isolado? Élcio se afasta com Michelle. Fontoura fica só e — O que veio fazer aqui?
performance, chama-se Cavalo. — Viver na imaginação? percebe alguém sob uma árvore ao longe. — Eu trouxe propostas de experiências inte-
— Cavalo, no sentido do Candomblé? De — Interagindo com os outros? Um persona- — Você está sozinho? Vou subir a colina, quer rativas. Uma delas é realizada com copos: as
incorporar? gem tem uma lógica, uma estrutura complexa vir comigo? Qual o seu nome? pessoas colocam copos no corpo; eu ajudo a
— Eu não incorporo nada. Eu comecei a me – afirma Elcio. — Marcus Vinícius. descobrir uma maneira de passar a água de
interessar por uma mudança no estado de — Estou interagindo com você; sou um perso- — O que veio fazer aqui? um copo para o outro e de um corpo para
consciência, mudança no estado de presença. nagem, e não sou tolhido por certas forças que — Vim fazer um trabalho que está em proces- outro corpo.
Isso é muito comum em performance, nas pe- imperam sobre os donos dos corpos. so... Um processo muito intenso, muito livre. — A água passa de um corpo a outro?
ças que trabalham com a cena. Quando se vai — Você não está sendo tolhido pelas forças Chama-se “Espera”. Fala de fluxo, de fluido. — O trajeto da água é uma consequência; a
apresentar alguma coisa, entra-se num esta- que o situam! – Exclama Élcio. De tudo o que se esvai. ênfase está no f luxo, na continuidade. Eu
do de concentração, num estado de presença, — Posso interagir com diferenças, indivíduos, — O fluxo sempre me interessa! comecei a investigar o comportamento da
para desenrolar a tarefa. Nesse momento de sem ser cerceado por essas forças e, assim, — O trabalho fala de mim e de tudo o que água, da qualidade da água. E como essa qua-
concentração, nessa mudança de algo para es- posso pensar mais livremente do que os donos me rodeia. As pessoas fazem parte desse flu- lidade poderia funcionar na investigação do
tar em cena, já se ultrapassou o estado ordi- dos corpos. xo que é minha vida. Levo meu corpo pelo corpo, na investigação de si mesmo. A água é
nário de consciência. O que é essa mudança? — Você está pensando através de uma lógica mundo e minha passagem por Terra Una é um dinamizador desse fluir. Eu percebo que
Interesso-me por ficções. que é a de um outro... uma transformação. Sinto-me transformado o que atrapalha o f luir são as posturas men-
— Personagens? — Estou pensando a partir de um plano feito de uma maneira que não sei qual é. Sou do tais, mais do que atitudes físicas.
— É muito ligado a personagem. Ser um e ser de memórias e do que é percebido no momen- mundo e vou experimentando o mundo: como — Posturas mentais...
vários personagens. Existe uma narrativa in- to presente. Não preciso me preocupar com o a água que passa no rio. Eu me sinto água – — Quando o pensamento está em dissonância
terna. futuro. afirma Marcus Vinicius. com a atividade, atrapalha o fluxo. O pensa-
— Várias narrativas que af loram numa — Que personagem é esse? Tem uma estru- —Você é um fluxo dentro de um fluxo. mento pode ser considerado como uma ação da
mesma pessoa? tura como um personagem teatral? Tem uma — Existe uma tentativa de reter esse fluxo, mente. Eu tenho percebido que é muito difícil
subjetividade? mas não é possível: é como a água! induzir a integração do pensamento e da ação
— Sim. — Você toma como parâmetro o personagem — O que o leva a fazer esse trabalho? – insiste do corpo. Talvez seja mais fácil evitar a dis-
teatral; prefiro os personagens conceituais da Fontoura. cordância entre o pensamento e a ação. O que
Elcio Rossini, que escutava a conversa, retruca: filosofia, aqueles que não estão, necessaria- — Sempre tive uma relação afetiva com a eu percebo, na prática de minhas atividades, é
mente, tão separados do próprio autor. Inú- água, de contemplação. Sou extensão da água. que o pensamento projeta os desdobramentos
— Eu queria falar o seguinte: há uma diferen- meros filósofos criaram personagens conceitu- O fluxo me faz pensar... a água...é um agen- que vão acontecer em seguida e, muitas vezes,
54 / Fontoura: um personagem conceitual, Kenny Neoob Nome do Autor, Nome do Texto / 55

a coisa em si vai numa direção diversa. do meio-dia, encontra um jovem sorridente e


— Num outro fluxo? insiste:
— Exatamente.
— O movimento é antecipado, sem o conhe- — Qual é o seu nome? O que você faz aqui?
cimento de outros f luxos que vêm interferir — Eu sou Bernardo Mosqueira. Eu vim fazer
no movimento: a projeção torna-se ilusão – uma curadoria experimental, algo fora dos pa-
conclui Fontoura. drões esperados para um curador ou crítico. É
— Exatamente. O fluxo acontece. O pensamen- um posicionamento artístico, mas não é um
to tem uma temporalidade muito diferente da comportamento de artista. Eu me apaixono
ação. Uma atemporalidade. Devido às proprie- pelos artistas, eu me envolvo com eles.
dades do pensamento, ele tende a se confundir — Uma aproximação da teoria com a prática?
com a imaginação, com a fantasia e os estados — Eu sempre tento colocar a primeira pessoa
emocionais que trazem todo um colorido. no discurso. O relato do Eu, o relato do Nós.
— Sou um personagem que vive no movi- Meu texto se aproxima da literatura, da poe-
mento do pensamento, na interação do sia – que é minha origem dentro das artes.
pensamento com outra individualidade. Só O que aconteceu aqui foi uma transformação,
nesse movimento alcanço a vida – explica que lembrou minha origem: eu estudava en-
Fontoura. genharia, sempre tive facilidade com as ciên-
— Ah, entendi: na ação, saímos da forma fe- cias exatas. Eu nunca havia pensado em fazer
chada do pensamento: o momento de interação outra coisa além de engenharia; tradição de
é um momento de abertura! Mente sincroni- família: avós, bisavós... Em um determinado
za-se com corpo e o corpo com a mente... momento, eu vi que fazia tudo aquilo para os
— Como a água que passa de um corpo a outros: para meus pais, para a sociedade. En-
outro corpo. tão decidi fazer as escolhas para mim. Pode
parecer egoísta, mas é uma questão de auto-
Neste momento, chega Ana Luisa Lima e conhecimento e liberdade. Procurei seguir o tando-me das imposições culturais, hegemô- Agora, o autor podia descer a montanha e vol-
pergunta: caminho onde eu poderia ser melhor. E, as- nicas, ideológicas, familiares... Quando eu me tar para sua cidade. Ele havia se transformado
sim, consegui meu caminho. libertei disso, eu vi tudo o que eu podia fazer. no seu próprio personagem.
— Você que é o Fontoura? Sagrado, não é? – — Você é um criador? Se todo mundo tivesse essa noção e mais res-
gargalha amigavelmente. — Minha intenção é dissolver as estruturas peito por si, pelo outro e pelo mundo... Se todo
— Faço parte dos fluxos existentes: insisto em dos sistemas. Tornar as coisas mais líquidas. mundo pudesse ter essa transformação, ima-
Texto realizado a partir de conversas gravadas entre os
ganhar corpo, em interagir com fluxos de ou- Essa minha transformação aconteceu em um gino que o mundo seria... artistas citados e o personagem conceitual criado por Kenny
tra natureza: com a voz, a luz, a água... Preci- momento em que eu não admitia as minhas — Sou um personagem, uma possibilidade de Neoob, em janeiro de 2011.
so interagir para viver. necessidades e vontades. Eu admitia apenas as pensar livre. É muito livre ser Outro.
estruturas de fora. — Um exercício de alteridade! Em vez de co-
Ouve-se o canto de pássaros nas cercanias. A — Certas forças lhe formatavam a vida até locar-se no lugar do outro, colocar o outro no
noite cai tranquila; Fontoura só acorda quan- quando você resolveu escolher a sua própria seu lugar.
do a manhã ainda não se anunciou. No céu, forma? – pergunta Fontoura. — É um prazer estar aqui com você – afirma
a lua parecia foice ao lado da estrela. Ao sol — Sim. Eu expandi isso para o mundo, liber- Fontoura.
Sim... Rubiane Maia, Sim... / 57

Como tudo no mundo começou com um sim tanto estranha para qualquer criatura ávida de um toque, uma neblina, uma flor, um passo, de retorno, denunciou em mim uma aflição pe-
(já dizia Clarice), ali estávamos na espreita ocupação. Aos poucos, deixávamos para trás um arco-íris, um perfume, as borboletas colo- los excessos. Não foi difícil perceber que mui-
de uma nova oportunidade de roçar: pele com um regime de velocidade d e vida em constante ridas como flores ao vento. A preparação e comu- ta engenhosidade é necessária para que com
pele, pele com terra, pele com água, pele com aceleração e movimento para estar num deter- nhão dos alimentos, a harmonia dos espaços, nossas práticas, sejam elas artísticas ou não,
ar, pele com mato, pele com arte... minado intervalo, um ponto de possibilidades os quartos coletivos com conversas na madruga- tomemos parte nos dispositivos de criação de
que, na falta do que “fazer“, nos provocava a da, a construção das ações e performances, as outras perspectivas de realidade - criação e
A primeira lição de tempo: sentir uma empatia fluida pelas inúmeras miu- vivências, os passeios e mergulhos nas cacho- experimentação de mais lugares de encontros
uma espera. dezas de tudo que se passava ao nosso redor. eiras. Tratava-se da tentativa de construção de e afetos; no estabelecimento de relações mais
No caminho de ida a primeira parada foi em Juiz um comum compartilhado entre todos. E ainda: íntimas; na prática de gestos mais suaves. Ex-
de Fora onde, junto a Marcus Vinícius e Shima, A segunda lição de tempo: o canto dos pássaros, algum silêncio, uma roda, periências comuns, mas que nas atuais confi-
fiquei a espera, aguardando o horário do ôni- uma intensidade. uma fogueira, um canto, uma vida – era a escuri- gurações da vida contemporânea têm-se facil-
bus para Liberdade por quase 10 horas. Nossas Em Terra Una um processo, no qual as palavras dão do desconhecido que se aproximava, fazendo mente desqualificadas e descartadas. Como foi
opções não eram muitas, mas é claro que pode- não nos penetravam somente através dos pensa- surgir o momento perfeito de abrir as janelas para e está sendo todo o processo? Transbordante.
ríamos ter escolhido sair, caminhar sem rumo mentos, mas principalmente via ações de corpo ousar enxergar um tempo de céu estrelado. Sobre o que fui fazer lá? Ver. Desprender-me.
pela cidade. Entretanto, não sei se por inércia, inteiro. Uma multiplicidade de outros sentidos Diluir-me. E sobre os sonhos? Uma alquimia.
cansaço, preguiça ou mesmo qualquer outra habitava o nosso cotidiano e, dia após dia, nossa A terceira lição de tempo: Visíveis ou invisíveis, estiveram presentes em
coisa, fomos ficando ali. Hoje fica muito claro convivência era pautada na simplicidade (e em os transbordamentos. cada elemento, cada corpo, cada gesto, cada
perceber que o nosso primeiro contato foi com alguns momentos outros: nas complexidades) Ao retornar para a cidade, os estranhamentos se fala, em cada momento de silêncio.
o Tempo. Mergulhados neste espaço-tempo de de muitas partilhas. Falo de um cheiro, uma tornaram muitos - barulhos, pessoas, imagens,
espera e paciência, crescia uma sensação um palavra, um abraço, um banho, um pão, palavras. Uma agitação que, naquele instante Gratidão!

O livro do sonhos, de Rubiane Maia


Texto /
Nome do Autor, Nome doHavendo

Registro quase-documental do VER 2011 – tação disjunta e inclusiva. Talvez, aqui, esse
Encontro de Arte Viva, ocorrido em janeiro traço de união seja mais bem encontrado nos
de 2011 em Terra Una, ecovila situada na tropeços do gesto, nos maravilhamentos que
Serra da Mantiqueira, no sudeste do Brasil. calam, nos acidentes que pontuam o texto dos
O encontro durou dez dias, reunindo 21 ar- homens, delineando uma geografia sutil que
tistas. Este vídeo malogra decididamente em não é mais cultural que natural. Os silêncios
apresentar um relato integral do evento. Sua por onde a mata nos fala. Havendo foi cons-
ambição é maior, e menor. Descumprindo truído para dar futuro a esse passado recente,
a função de um registro do havido, cria-se guardando dele o inacabamento vivo pelo qual
uma escuta e uma retransmissão do durante. a memória passa a nos interrogar – desde que
Alguns depoimentos foram colhidos, algumas deixemos margem a uma experiência aberta
falas foram roubadas. Essas palavras foram do tempo.
extraditadas da ordem segura do “eu falo”,
suspensas do plano reto do “esta é a minha Agradeço enormemente a todos os artistas que
obra”. Esse recorte, esse exílio contextual das estiveram e estão presentes: Ana Luisa Lima,
frases obedeceu ao plano B traçado pelos lap- Bernardo Mosqueira, Bruno Caracol, Bruno
sos de memória, pelos duplos sentidos, pelos Jacomino, Bruno Miguel, Denise Alves, Elcio
grunhidos assignificantes que vicejam no Rossini, Jairo dos Santos, Jamil Cardoso,
calor do próprio estar falando. Interessou-me Kenny Neoob, Julia Pombo, Lucia Russo, Luis
principalmente, no verbo falado, o momento Parras, Luísa Nóbrega, Maicyra Leão, Michel
de hesitação. Ali onde a língua balbucia, sur- Groisman, Michelle Moura, Pontogor, Rubiane
preendida no presente do encontro, entrecor- Maia e Shima. Também aos organizadores do
tada pelo silêncio da terra e pelo murmúrio encontro – que também estiveram lá, que tam-
da chuva. Ali o ruído ambiente tem lugar de bém estão aqui: Alex Cassal, Beatriz Lemos,
música. Domingos Guimaraens, Marcela Levi, Marcus
Vinicius e Nadam Guerra. E especialmente ao
Ao todo, 21 projetos in situ, ações performá- Tuan, que veio nos ensinar a ver. Também aos
ticas e falas foram realizados no encontro. habitantes de Terra Una, sem exceção.
Havendo não os apresenta um a um, mas de-
seja extrair, do embate coletivo com a terra, 30 min / 2011
um traço de união: o plano de uma co-habi- Concepção e edição: Vitor Butkus
Convivendo Nome do Autor, Nome do Texto / 61

Conviver em comunidade, ter o tempo trans-


portado, praticar atividades colaborativas,
construir novos locais de ação... Residir.

Trabalhar = viver. Ser artista, crítico (a),


curador (a), historiador (a), produtor (a) – ser
todos e nenhum ao mesmo tempo.

Um encontro para ver, mas também para dei-


xar de ver – as relações, as experimentações,
as trocas, os limites. E vivenciar.

Sair da cidade para residir durante 10 dias em


uma ecovila. Sair de um grande corpo social –
onde a qualidade de comum parece se reduzir
cada vez mais –, para coexistir numa pequena
comunidade – onde o ‘comum’ é extremamen-
te presente. Viver e trabalhar nesse contexto,
Julio Callado, Shima, Ana Luisa Lima, Bernardo Moscheira, Maicyra Leão
com essa mudança, o que pode gerar? Pessoas
e profissionais confundindo suas vidas com
seus trabalhos, através de falas, performances, onde é preciso colaborar e respeitar regras. O trabalhos que foram desenvolvidos durante o mesma forma os artistas se “encaixaram” no
vivencias e instalações. O Encontro V::E::R de que inicialmente pode ser um embate, com o encontro. Mas, ao mesmo tempo, não existia ambiente através de ações que os integraram
Arte Viva, janeiro de 2011, Terra Una. passar dos dias se transforma em compreen- pressa, e, como disse o artista Luis Parras “a à paisagem. E também enterraram e pendu-
são e troca. As ‘questões’ da ecovila passam melhor maneira de controlar o tempo é rela- raram equipamentos, comuns ao trabalho na
Nesse lugar acontece uma imersão numa nova a ser dos residentes do encontro, ao mesmo xar”. As ações, vivencias e instalações propu- cidade, no espaço de toda ecovila.
maneira de viver e trabalhar, seja para aqueles tempo em que suas questões (e as dos traba- seram um eco atemporal para aqueles que as
que já estão familiarizados com ecovilas, seja lhos) passam a ser da comunidade. Isso tudo viram, participaram e usaram. Ações de 4 ou Esse intenso envolvimento com os trabalhos
para aqueles que têm seu primeiro contato. sem ilusões ou imposições – cada um escolhe 2 horas, de 1 dia ou 1 semana reverberaram propostos para o encontro se deu também
E isso não é só pela proposta de residência o quanto se envolve –, mas, com certeza, com como eternas em nosso imaginário. Trocas através de ações colaborativas que vieram de
artística que o encontro carrega, mas pelo mudanças para todos. que se estenderam até o último dia, ou que amizades antigas ou recém construídas. Os
mergulho (mais, ou menos profundo) no meio duraram apenas o tempo de uma conversa dei- trabalhos aconteceram, também, por essas
da natureza, e pelo que trazemos das cidades Trabalhar em meio a essa intensa convivência xaram rastros. E objetos instalados ou cons- colaborações, por esses encontros. E pelas dis-
para essa natureza. e deslocamento geográfico gerou uma transpo- truídos tiveram suas funções ressignificadas, cussões do que seria uma arte colaborativa.
sição temporal, uma aproximação (quiçá uma independente de permanecerem naquele local. Pode o espectador ter autonomia quando se
Nós, os 21 artistas residentes, convivemos eliminação) dos limites que cercam a vida do envolve em um trabalho de arte? Como dife-
não só com outros profissionais da área artís- trabalho; a arte da vida. As atividades cotidianas do dia-a-dia (co- renciar colaborações de coletivos de artistas?
tica, mas com pessoas que moram nesse outro zinhar, limpar, conversar, caminhar, etc), E quanto aos outros profissionais que se envol-
contexto. Entramos não só num ambiente A todo tempo algum trabalho acontecia, a todo compartilhadas por todos, foram encaixadas vem na produção e criação? Muitas tentativas
cercado pela natureza, mas numa nova rotina, tempo pensávamos e agíamos em torno dos nas performances, vivencias e instalações. Da de respostas, muitas discordâncias, e alguns
62 / Convivendo, Julia Pombo 63

consensos. Mas, talvez, o mais interessante é lugar tão isolado e específico? Terra Una é um
que o processo de trabalho durante o encon- novo local de ação para arte, assim como mui-
tro mostrou, na prática, algumas formas de tos que vem acontecendo nas cidades. Esses
colaboração e provou para todos como isso é locais se expandem na medida em que estão
essencial não só para a vida, mas especifica- em algum momento para alguém. Não é por
mente para a arte. uma demanda de mercado que eles aconte-
cem, mas pela necessidade que têm aqueles
Muitos trabalhos saíram de seu planejamen- que fazem acontecer. E é justamente essa ne-
to original justamente porque dependiam da cessidade que desloca-os para outros locais. A
participação de todos para acontecer. Alguns experiência que uma pessoa tem com a arte
projetos foram modificados porque, sem pro- encontra muitas pessoas simplesmente atra-
por essa participação, contaram com ajuda em vés de sua vida.
seu processo de produção, e outros, porque
ao buscar um distanciamento, acabaram por Através das vidas das 35 pessoas (entre os 21
provocar a proximidade. artistas, equipe de produção, moradores e vi-
sitantes) que estavam em Terra Una, durante
Em fim, o tempo vivido na ecovila trabalhando os dias 22 a 31 de janeiro, o Encontro V::E::R
e participando de diversas proposições trouxe de arte viva poderá ultrapassar os limites da Visita a Augusto Pestana
questionamentos sobre o controle que o artis- ecovila. E aí, mais uma vez podemos falar da
ta tem de seu trabalho, desde a idealização aproximação entre trabalho e vida, vida e arte.
até a apresentação para o público. Mostrou o
embate entre o artista e o espaço – com suas Este texto é totalmente dependente da con-
condições específicas. E as diferentes manei- vivência com os artistas, críticos, curadores,
ras que uma proposta artística pode se desen- historiadores e produtores que estavam no
volver quando pensamos na quantidade de encontro. Além de todas as outras pessoas/
público e na atuação deste frente ao trabalho. profissionais que moram/trabalham em Terra
Modificou o individualismo característico dos Una. Que merecem ter seus nomes escritos
centros urbanos em coletivismo, descentrali- aqui.
zando as atividades culturais desses centros, e
transportando-as para novos locais de ação. Alex Cassal, Ana Luisa Lima, Beatriz Lemos,
Bernardo Mosqueira, Bruno Caracol, Bruno
O Encontro V::E::R é mais uma ótima demons- Jacomino, Bruno Miguel, Clarissa Palma, Denise
tração da possibilidade de intercessão entre a Alves, Domingos Guimaraens, Elcio Rossini, Glorinha,
instituição e iniciativas independentes no meio Jairo dos Santos, Jamil Cardoso, Jaya Pravaz, Júlio
da arte. É mais um projeto que gera ações mi- Callado, Kenny Neoob, Lucia Russo, Luís Parras,
cro políticas em arte, que se espalham para Luísa Nóbrega, Maicyra Leão, Manu, Marcela Levi,
toda a sociedade. Mas como? Como colocar no Marcus Vinicius, Mari, Michel Groisman, Michelle
mundo um encontro tão frutífero para aqueles Moura, Micheline Torres, Nadam Guerra, Nana,
que participaram, mas que aconteceu em um Pontogor, Rubiane Maia, Shima, Tuan, Vitor Butkus.
64 / Sobre o V::E::R, Jamil Cardoso Jamil Cardoso, Sobre o V::E::R / 65

“Trata-se de um arranjo coreográfico para um por parte, em percursos irregulares de apro- essas... Fico pensando se o “cuidar” não é e o óbvio virou fantasma. Em outros momen-
coadjuvante em um rito inaugural. ximação, reflexão, busca, acordos, afetos, uma forma de doação de tempo. E, criação, a tos o som do rádio era como o despertador
gostos e tudo o mais que eu não vi. criação de sentido. E aí, “ser” é coisa da cria- para o sonho. Há, mesmo ali, em Terra Una,
A pesquisa começou quando tomamos conhe- ção, da representação, da memória, de um onde se reconstrói o mundo, a vida, o velho
cimento da presente edição do V::E::R. Esse No ônibus, com Kenny e Fontoura, nos apresen- modelo. Quando a gente chora experimenta mundo que nos foi apresentado, não só como
trabalho revê nossa trajetória como intérpre- tamos, falamos dos projetos e de nós mesmos... uma elipse de tempo? memória.
te, tantas vezes fonte de matéria artística, Guardo um exercício de imaginação. Imagine
apropriador de materiais estrangeiros a si, um uma esfera. Imagine um ponto ao centro desta Jairo dos Santos me falou de Guimarães Rosa. Em alguma das conversas com Elcio Rossini,
interlocutor. esfera. Imagine um dos pontos que formam Fenômeno, Corpo Fechado e outros escritos... fui questionado sobre o nome da minha core-
esta esfera. Trace uma linha saindo deste pon- ografia: “- É uma referência a um modo de
Compomos ambientes no corpo. A ação de to, passando no ponto do centro e chegando A instalação de Bruno Caracol, A voz, me tomou produção? Uma piada, uma crítica?”. Nessa
comer. A investigação rítmica e plástica do a qualquer outro ponto, que também forma de assalto. Depois do banho, fui procurar um conversa descobri que a motivação para o
corpo. Um questionário: você pode me tocar? a esfera. Simultaneamente, imagine todos os som que não poderia estar ali. Entre a casa trabalho era uma batalha corporativa, uma
Eu posso me excitar? Etc... pontos possíveis que formam esta esfera tra- que tomava banho e o Galpão de atividades, defesa do intérprete como artista, tentativa de
çando linhas até os outros pontos formadores onde eu dormia, tocava uma música estranha. legitimar o meu lugar. Contra quem eu brigava?
Nossas motivações giram ao redor de: como é da esfera. O ponto do centro seria Deus. Tinha alguém que comentava a música, era
o corpo. Como é o mundo que me cerca. Somos um som de rádio... Tudo estava ali, sempre. Entre idas e vindas, fazendo uma comuni-
dois? Qual a troca possível com este mundo? Apresentei-me a todos: Meu nome é Jamil Se eu visse a caixa de som não seria assalto cação entre Liberdade e Terra Uma, ao lado
Como interferir nele? Como construir, a partir Cardoso, eu vim aqui para continuar a seria anúncio do óbvio, ele escondeu as caixas de Lucia Russo entendi: Aquilo que me move
da dança, um espaço para permanecer?” trabalhar!

Assim foi... a proposta de pesquisa enviada Entre as tarefas funcionais partilhadas por
para o edital do V::E::R 2011... todos, aquela que eu gostava de fazer era a
“harmonia do jantar”. Enquanto arrumáva-
Por onde então começar meus comentários so- mos a cozinha, sempre rolava uma cantoria,
bre o encontro? Continuar... Do início do meu uma batucada, o Rap Haribol...
próprio processo criativo? A partir da chegada
a Terra Una? Minha primeira anotação que Na hora do almoço, eu me apeguei à girafa.
indica Liberdade é a palavra polifonia.
Na fala de Bernardo Mosqueira estava dita a
A estrutura do texto aqui apresentado é palavra polifonia: “Soma na troca”. Foram su-
de tópicos ou fotográfica ou fragmentada. geridos alguns assuntos para uma dinâmica,
Embora não seja a melhor forma de leitura, o grupo escolheu o “Tempo, entidade ontológi-
essa estrutura serve como metáfora da própria ca e prática” como tema. Eu fiquei pensando
experiência nesse encontro. Afinal, eu escolhi no “momento”, na hora “H”. O tempo da cena,
dançar! Como dar conta da experiência vivida, o tempo na cena... Fui achando que o tempo
em um texto? Que coisa foi a que aconteceu? parece “eu”, dentro. E que o espaço parece o
Aquilo aconteceu em um só fôlego, porém, outro, o fora. Dizem que os japoneses têm a
descontinuamente, de pessoa a pessoa, parte palavra tempo dividida em duas partes como

Qual arte?, de Ana Luisa Lima


66 / Sobre o V::E::R, Jamil Cardoso

não é necessariamente o sentido daquilo corpo fora do programa de aquecimento que


que danço, aquilo que digo. estou acostumado. Um reencontro dos cami-
nhos do corpo. A cachoeira Jacuzzi. Suportar
Ensaio com/para Michelle Moura: “Você quer o frio da água. Aquecer o corpo para suportar
saber o que eu enxergo no seu trabalho? Fique outro estado de alerta - corporeidade.
com o que te interessa, vejo gosto pela forma,
gosto pelas ligações entre os passos.” O objeto aerado de Élcio Rossini, Objeto para a
ação - espaço interno, espaço global, o objeto
Da fala de Ana Luiza Lima vêm as questões: como extensão e que estende o corpo.
“Que arte?”. Modos de visibilidade da arte
contemporânea. Ela afirma o pensamento Jairo dos Santos produziu, para mim, o verda-
modernista: arte que é emancipação, arte deiro encontro. O “enfrentamento”. Jairo e Luís
que é política. Como fazer da arte um novo Parras correram, um de encontro ao outro. No
espaço público? A posição dos agentes é que alto de uma montanha, amarelados pelo fubá,
alteraria a realidade e não a arte? Uma reação chocaram-se um contra o outro. Caíram e deixa-
da arte para certa exigência de transparência ram-se rolar. Nada tão gráfico, eu vi. Nada tão
da contemporaneidade seriam os trabalhos simbólico, tão representativo do que eu vivi ali.
de ressentimento. E eu, cá com meus botões:
O meu ressentimento é minha força motriz Hoje, chamo o meu trabalho de “a casca do
para a existência! E agora? - Ela continuou... ovo por dentro” - uma pesquisa que ainda não
Necessidade? Risco?. Valor de mercado X está acabada. Que talvez nunca encontre esta-
valor simbólico. Acessibilidade não seria a bilidade em uma só forma de se apresentar...
exposição/imposição de um sistema? Fruição, Trata-se de um solo. Meu primeiro esforço
experiência estética e outros parangolés... autoral, profissionalmente. Ele tem a marca
Errância X Comódite. Eu me pergunto: Quem da memória, da recriação. O trabalho nasce
merece mais o dinheiro público? Edital X da vontade de afirmar a poética do intérprete
ditadura X iniciativa privada. Existe uma luta em artes cênicas, artes vivas. Pretendo, dan-
e eu me sinto a Mãe Coragem de Brecht. çando, a partir de minhas memórias, reparar
no tipo de encontro que se dá na cena. Entre
Ensaio para Lucia Russo e Marcela Levi: Atenção a dança e o espectador. Uma maneira de deli-
as palavras que você usa para descrever o near a distância entre o sujeito que performa a
trabalho! Nelas estão as maneiras de lidar coreografia e o sujeito que assiste.
com o material. Enquanto me explicava, dizia:
Inversão das referências de gravidade, estar Acredito que apenas acompanhados nos
entre. Combinação, harmonizar partes dema- percebemos indivíduo. Quando estamos sozi-
siadamente estranhas entre si, fazer analogias nhos, nos orientamos pela lembrança de
para descobrir pontos de fuga. quando estamos em relação.

Os trabalhos do Michel Grosman... Aquecer o

Você também pode gostar