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Revista do X COPENE ­ Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros

(RE) EXISTÊNCIA INTELECTUAL NEGRA E ANCESTRAL


18 ANOS DE ENFRENTAMENTO

12 a 17 de outubro de 2018 - Uberlândia - MG


COPENE
Revista do X COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores negros
12 a 17 de novembro de 2018
Uberlândia - MG

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 3


4 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018
EXPEDIENTE
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as Leidiane Cristina Campos
Marcos Vinicius Reis
Gestão 2016-2018: Sara Oliveira Camelo Costa Morais
Presidenta
Profa. Dra. Anna Benite Projeto Grá co
Ricardo Ferreira de Carvalho
Secretária Executiva
Profa. Dra. Nicéa Amauro Impressão
Diretora de Relações Institucionais Ribeirão Grá ca e Editora - em janeiro de 2019
Profa. Dra. Fernanda Bairros Tiragem: 500 exemplares

Diretora de Relações Internacionais Revista Copene é uma publicação especial de análise das conferências reali‐
zadas no X Congresso Pesquisadores Negos intitulado (Re) existência Intelectual
Profa. Dra. Ana Beatriz Gomes negra e ancestral , ocorrido no período de 12 a 17 de outubro de 2018, no campus
Santa Mônica da Universidade Federal de Uberlândia, em Uberlândia (MG).
Diretora de Áreas
Profa. Dra. Raquel Amorim
Coordenação Geral / Editorial do X Copene http://dx.doi.org/10.14393/UFU-COPENE2018
Luciane Ribeiro Dias Gonçalves e
Benjamim de Paula Xavier X Copene
X Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as – X COPENE tem
como objetivo constituir-se enquanto espaço de divulgação, circulação e pro‐
Editor Geral moção da produção cientí ca dos/as pesquisadores/as negros/as e de estudiosos/
Gerson de Sousa as das temáticas vinculadas à população negra, sob a perspectiva do diálogo en‐
tre os povos africanos e da Diáspora, com vistas aos debates e re exões acerca da
intelectualidade negra nos diferentes campos e áreas do conhecimento cientí co
Edição e do saber, e também sob a perspectiva da resistência, do enfrentamento e do
Gerson de Sousa combate às diversas formas de racismo, de forma particular a segregação dos ne‐
gros e negras nos espaços sociais e na produção acadêmica.

Redação
Beatriz Ortiz de Camargo Aleixo Lopes Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Bruno da Silva Inácio Reitor
Cássio Fernando de Lima Valder Steffen Júnior
Clarice Bertoni
Vice-reitor
Emerson Luiz Lacerda Soares
Orlando César Mantese
Genivan Divino Fernandes Júnior
Jhonatan Dias Gonzaga Chefe de Gabinete
Jhyenne Gomes Clésio Lourenço Xavier
Leidiane Cristina Campos Prefeito Universitário
Marcos Vinicius Reis
João Jorge Ribeiro Damasceno
Sara Oliveira Camelo Costa Morais
Pró-reitoria de Graduação
Armindo Quillici Neto
Fotogra as:
Ana Luiza Pereira Costa Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação
Beatriz Ortiz de Camargo Aleixo Lopes Carlos Henrique de Carvalho
Bruno da Silva Inácio Pró-reitoria de Planejamento e Administração
Cássio Fernando de Lima
Darizon Alves de Andrade
Clarice Bertoni
Emerson Luiz Lacerda Soares Pró-reitoria de Assistência Estudantil
Felipe Vianna Elaine Saraiva Calderari
Francisco de Assis Silva Pró-reitoria de Extensão e Cultura
Genivan Divino Fernandes Júnior Helder Eterno da Silveira
Gerson de Sousa
Jhonatan Dias Gonzaga Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas
Jhyenne Gomes Márcio Magno Costa

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SUMÁRIO

8
A reconstrução do presente no
processo de descolonização do
pensamento

14
Não somos a academia do
privilégio, somos a academia da
(re)existência

18
Apresentação – Coordenação
geral do X Copene

22
O protagonismo do negro no
estudo das raças no Brasil

28
O Movimento Negro na
recolonização da Escola Básica

34
Da desumanização quilombola
aos Ensinos Básico e Superior

40
Luta e resistência na vida e obra
de Abdias Nascimento

46
Abdias: um Ancestral que
permite Re-Existência

52
Justiça racial: um debate que
precisa de interlocutores no
Brasil

58
Momentos…

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66
Saberes Tradicionais da
Congada

62
Vivência Congado

72
Contra o racismo, pela
Igualdade e o Conhecimento
Horizontal

78
A busca da liberdade na
construção das africanidades

82
As novas problemáticas da
produção do conhecimento na
América Latina

88
Hédio Silva defende a criação
de uma agenda propositiva de
Política de Estado para negros

94
A explosão do
cinema negro
no Brasil

100
Memórias de jornadas
autônomas em prol da
representatividade negra

106
A sensibilidade das
Intervenções Artísticas na
produção de autocritica

110
Copeninho

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Foto: Matheus Zerbini

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A reconstrução do
presente no processo
de descolonização
do pensamento
Prof. Dr. Gerson de Sousa

G ERSON DE SOUSA É JORNA‐


LISTA GRADUADO EM CO‐
MUNICAÇÃO SOCIAL – HABILI‐
MO E PROFESSOR PERMANENTE
DO PROGRAMA DE PÓS-GRADU‐
AÇÃO EM TECNOLOGIAS, COMU‐
TAÇÃO EM JORNALISMO PELA NICAÇÃO E EDUCAÇÃO DA FA‐
UNIVERSIDADE METODISTA DE CULDADE DE EDUCAÇÃO DA
PIRACICABA (1995) COM MES‐ UNIVERSIDADE FEDERAL DE
TRADO (2003) E DOUTORADO UBERLÂNDIA. EM SUA EXPERI‐
(2008) EM CIÊNCIAS DA COMUNI‐ ÊNCIA ACADÊMICA DESENVOL‐
CAÇÃO PELA ESCOLA DE COMU‐ VE PESQUISA PELA TEORIA DOS
NICAÇÕES E ARTES DA UNIVER‐ ESTUDOS CULTURAIS ARTICU‐
SIDADE DE SÃO PAULO E ESPECI‐ LANDO OS DEBATES NAS ÁREAS
ALIZAÇÃO EM DOCÊNCIA DO DE TEORIAS DE COMUNICAÇÃO,
ENSINO SUPERIOR (2006) PELO METODOLOGIA DA PESQUISA EM
CEUNSP. ATUALMENTE É PRO‐ COMUNICAÇÃO, CULTURA PO‐
FESSOR DO CURSO DE JORNALIS‐ PULAR, MEMÓRIA E VELHICE.

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A proposta de realizar a produção jor‐ e do passado. Mas a história de sua reali‐
nalística em revista sobre o X Copene es‐ dade é descaracterizada por um reducio‐
tá permeada por uma defesa conceitual nismo, que desloca do seu sentido de
de comunicação. Comunicar não é trans‐ viver, como sujeito, para a narrativa de
mitir informação para alterar o compor‐ uma realidade na qual ele se situa como
tamento ou conscientizar o receptor. violentado, como objeto.
Comunicar é um processo construído na Então o compromisso intelectual de
relação de produção de sentido com o ser negro está, ao entrar na universidade,
outro enquanto sujeitos. O primeiro fa‐ em lutar para efetivar uma outra narrati‐
tor, deste conceito, está em a rmar que a va da história. Eis aqui a defesa da desco‐
produção de sentido do exercício jorna‐ lonização que ressoa como grito e se
lístico se con gura em ser e se materializar estende em cada relação social inscrita na
em um trabalho intelectual. O que con‐ programação do X Copene. Ou mais
siste esta intelectualidade? Segue num precisamente em uma defesa do sujeito
movimento em que ora a sensibilidade se negro, cujos homens e mulheres devem
exterioriza como emoção de viver na rela‐ instaurar outro caminho em (re) existên‐
ção com o outro; ora a consciência se efe‐ cia. O ponto de crítica que permeia o X
tiva como razão neste desa o de articular Copene está em considerar, no estado de
em profundidade... não as palavras, mas tensão e con ito social, que se está diante
as tensões e os con itos que permeiam o de um fator de determinação cultural –
próprio contexto social. Neste movimen‐ termo que se afasta da a rmativa do de‐
to de emoção e razão se efetiva a crítica terminismo econômico. O termo cultu‐
como constituição substantiva para o ral aqui está sendo empregado em seu
concreto pensar da realidade. sentido político. Esse entendimento é ne‐
O segundo elemento articulado na cessário para que se compreenda as táti‐
produção jornalística está inserido no cas e as estratégias das quais as ações e
próprio tema do X Copene: (Re) exis‐ discursos dos conferencistas se estabele‐
tência negra e ancestral. O que vem a ser ceram como posicionamento histórico.
essa defesa explícita, de (re) existência, Há como coerência, no teor das con‐
que podemos recorrer como parâmetro ferências, que não se trata de negar, mui‐
nos discursos e nos contextos das confe‐ to menos de recusar a narrativa histórica
rências realizadas no decorrer do Con‐ ocidental, em que o negro é deslocado
gresso? O termo em si já sinaliza que não em segundo plano. Aqui está o elemento
se trata aqui da resistência, mas se estru‐ de complexidade no con ito hegemôni‐
tura a partir da reorganização da produ‐ co. O papel do intelectual negro é recons‐
ção do sentido de viver do sujeito negro. truir o sentido da universidade ao trazer
O negro existe nos contextos do presente como elemento de sua existência os valo‐

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Foto: Ricardo Carvalho

res que efetivam como mediações do exis‐ histórico. Ou mais precisamente: dos lu‐
tir negro. E se a história do cotidiano do gares em que se fala sobre o sentido de ser
negro é recusada a partir do reducionis‐ negro. Os lugares tomam corpo e os espa‐
mo violento que se estabalece na ordem ços passam a ser ocupados por novos ato‐
do sistema, é que a base epistemológica res sociais instaurando outros sentidos
em que está assentada esse discurso se para conhecer a realidade. O primeiro lu‐
efetiva como insu ciente para o compre‐ gar está no desa o da ressigni cação do
endê-lo em sua totalidade como sujeito. espaço acadêmico a partir dos novos su‐
Esse é o teor de compreender essa nova jeitos que levam a compreender o sentido
narrativa: a historicização do negro pela intelectual do ser negro. Mas a universi‐
sua construção de identidade exige que se dade, ao se efetivar como espaço de luta,
apresente outro conceito de saber, outro não pode ser dissociada da tensão e con‐
fator que permita conceituar conheci‐ ito que demarca o cotidiano do movi‐
mento. Pois é exatamente neste ponto mento de identidade que edi ca, na
efervescente que a reconstrução da narra‐ realidade social, o sujeito negro. Mais do
tiva histórica do sujeito negro se efetiva que as táticas e as estratégias, o cotidiano
como emancipatória. social desvela o enfrentamento da mili‐
A necessidade da mudança epistemo‐ tância em uma realidade cujo poder he‐
lógica para se entender a concepção de gemônico recorre a instâncias diversas
conhecimento do sujeito negro na reali‐ para negá-lo como sujeito.
dade social exige articular outro elemento Ao reconhecer os espaços de lutas, da
substantivo: o reconhecimento do sujeito militância para a intelectualidade, para a

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Foto: Matheus Zerbini
produção da identidade do ser negro, a posta tem de ser mergulhada na comple‐
narrativa histórica percorre então as esfe‐ xidade dialética do sujeito histórico, em
ras sociais com outro teor teórico: é no que os espaços da academia e da militân‐
sentido da razão e da emoção, do saber cia tecem, na circularidade do signi ca‐
cotidiano para o conhecimento cientí ‐ do social do sujeito negro, esse novo
co, que se deve entender as manifestações caminho. E toda vez que se defronta
que compõem o sentido da africanidade. com o método, o ponto central é com‐
Se por um lado a violência de uma socie‐ preender que mais do que os procedi‐
dade racista necessita ser desmascarada mentos que serão levados a frente neste
em sua complexidade assentada na cordi‐ con ito social, trata-se de entender qual
alidade, por outro os valores a rmativos concepção de sujeito está inerente neste
do negro em sua luta nos bairros, nas pe‐ processo. Eis a concretude do Teatro
riferias, nas artes como na música, no tea‐ Negro de Abdias do Nascimento.
tro, rede nem esse novo campo de saber. Ao acompanhar os embates promovi‐
Tomado com essa força, a pergunta que dos no X Copene, há outro fator que se
salta é: que histórias são essas que aconte‐ exige inerente nessa produção de signi ca‐
ceram na realidade social, que foram vi‐ do: a ancestralidade como sentido fun‐
venciadas com plenitude por sujeitos dante para compreender o presente. O
demarcando a identidade, mas que ca‐ passado deixa de ser algo estático e é dis‐
ram relegadas a epiderme do social, para posto em movimento para invadir e esta‐
que tenha força su ciente de instaurar es‐ belecer esse outro sentido na narrativa do
sa nova epistemologia? presente. Ao retirar o passado como estáti‐
A pergunta está longe de ser respon‐ co, objeti cado pelo positivismo como al‐
dida de forma simples, como se tratasse go sem sentido para o presente a partir da
de compreender o racismo como duali‐ sua utilidade, a memória se edi ca como
dade, ou mero acidente de percurso no força atuante. E a lógica da memória está
processo de civilização ocidental. A res‐ também envolta nesta complexidade: nin‐

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guém pode recorrer a momentos do seu térias aqui produzidas é que seja
passado sem que ele seja ressigni cado interpretativa: cada estudante de gra‐
pelas tensões e sentidos do presente. E duação em Jornalismo e da pós-gradu‐
nesta dialética é o próprio sujeito que se ação em mestrado pro ssional em
reconhece como histórico, enquanto se Tecnologias, Comunicação e Educa‐
vai existindo e produzindo nova narrati‐ ção, tinha como missão mergulhar na
va para se compreender as histórias em profundidade conceitual do conferen‐
suas temporalidades. cista, dialogar com as inquietações dele
O X Copene realizado em Uberlân‐ e da intervenção do público e produzir
dia retrabalhou o encontro do passado um texto que permita ao leitor enten‐
e do presente a partir da crítica à reali‐ der essa dimensão crítica na qual se
dade social e da a rmativa do valor de moveu os sentidos do X Copene.
ser negro. O passado aqui não está sen‐ A concepção de sujeito e de leitor
do cultivado como resgate - termo pe‐ está demarcado pela responsabilidade
rigoso cujo risco possível está em recair social e por permitir novos espaços
em um simulacro do qual a resultante para a re exão crítica sobre a realida‐
negativa seria o estranhamento do su‐ de. Mais do que a função do jornalis‐
jeito de sua própria historicidade. Ao ta, é assim, com posicionamento
recusar o resgate e se a rmar como re‐ crítico, que se defende a produção de
construção do trabalho de viver a iden‐ sentido do jornalismo. Agradeço a to‐
tidade, o processo comunicativo dos os repórteres que assinam as ma‐
desencadeado no Congresso instaura a térias por aceitarem esse desa o
continuidade do sentido do movimen‐ comunicativo. Agradeço ao Ricardo
to das temporalidades identitárias. Ferreira Carvalho, técnico do curso de
A proposta desta revista está mer‐ Jornalismo e mestre em Educação,
gulhada em concepção simples e com‐ que produziu e pensou de forma cria‐
plexa: entender e traduzir o signi cado tiva a edição dessa revista. E a Profa.
deste movimento de produção de sen‐ Dra. Luciane Ribeiro Dias Gonçalves
tido do ser negro. A todos os repórte‐ e ao Prof. Dr. Benjamim Xavier de
res se lançou o desa o: não se trata de Paula por apoiarem e darem a estru‐
uma matéria informativa, em que se tura necessária para que essa revista se
busca trazer somente dados e falas dos tornasse possível. Desejo a todos um
conferencistas de forma encadeada, crítico movimento de leitura na pro‐
Foto: Ricardo Carvalho

próximo de uma lógica de neutralida‐ dução de novos sentidos sobre a reali‐


de. Assim como também não se trata dade social a partir das matérias que
de um artigo, em que o repórter irá co‐ edi cam uma análise sobre as experi‐
locar a sua opinião. O objetivo das ma‐ ências vivenciadas no X Copene.

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Não somos a
academia do
privilégio, somos a
academia da
(re)existência
por Anna M. Canavarro Benite

A NA BENITTE - DOUTORA E MESTRE EM CIÊNCIAS E LICENCIA‐


DA EM QUÍMICA (UFRJ/ 2005). PROFESSORA ASSOCIADA E CO‐
ORDENADORA DO PIBID QUÍMICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE
GOIÁS. COORDENADORA DO LABORATÓRIO DE PESQUISAS EM
EDUCAÇÃO QUÍMICA E INCLUSÃO- LPEQI DA UFG (2006) ONDE INS‐
Fotos: Jhonatan Dias

TITUIU EM 2009 O COLETIVO CIATA- GRUPO DE ESTUDOS SOBRE A


DESCOLONIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS. ATIVISTA DO
GRUPO DE MULHERES NEGRAS DANDARA NO CERRADO. PRESI‐
DENTE DA ABPN (2016-2018\) SECRETARIA EXECUTIVA DA ABPN
(2018-2020) E-MAIL: ANNA@UFG.BR

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15
5
sentações culturais, 1 Copeninho (Co‐
pene dos Erês) dentre outras atividades.
Constituindo assim o maior evento de
divulgação e socialização dos(as) intelec‐
tuais negros(as) afrolatinoamerica‐
nos(as).
O X COPENE (RE) EXISTÊNCIA
INTELECTUAL NEGRA E ANCES‐
TRAL: 18 anos de enfrentamento foi
realizado pela parceria de três articula‐
dores fundamentais para sua implemen‐
O X Congresso Brasileiro de Pesqui‐ tação e execução, a ABPN, o Consórcio
sadores Negros/Negras – COPENE Nacional dos Núcleos de Estudos Afro-
com a temática (RE) EXISTÊNCIA brasileiros CONNEABS na qualidade
INTELECTUAL NEGRA E ANCES‐ de promotores do evento juntamente
TRAL: 18 anos de enfrentamento, mar‐ com o incansável e potente NEAB Pon‐
cou os 18 anos da Associação Brasileira tal da Universidade Federal de Uberlân‐
de Pesquisadores Negros/Negras - dia (UFU) na condição de instituição
ABPN, ocorreu em Uberlândia entre os sede do evento. Desta maneira eu gosta‐
dias 12 a 17 de outubro de 2018. ria de cumprimentar a UFU pela inicia‐
Aproximadamente 4000 pesquisado‐ tiva de conduzir esta discussão que é
res(as) negros(as) construíram o X CO‐ necessária e convoca à atenção para a de‐
PENE, 16 áreas cientí cas, I encontro mocratização da produção do conheci‐
de pesquisadores da temática quilombo‐ mento cientí co. Cada uma dessas
la, a materialização do Fórum Nacional entidades possui notória relevância no
de Educação Básica com a realização do contexto de desenvolvimento brasileiro
Simpósio Nacional de Educação Básica, e no trato das questões ligadas à discus‐
o Copeninho reuniram companheiros/ são étnico-racial no Brasil e mesmo no
as de todo o Brasil e de pelo menos 4 ou‐ exterior.
tros países. Estes cientistas negros/as O X Congresso Brasileiro de Pesqui‐
transitavam pela universidade e pela ci‐ sadores/as Negros/as (COPENE) obje‐
dade de Uberlândia apresentando, apro‐ tivou constituir-se em espaço de
ximadamente, 1.600 trabalhos em 150 divulgação, de circulação e de promoção
sessões temáticas, 50 mesas redondas, 20 da produção cientí ca dos pesquisado‐
minicursos, 9 conferências, 1 simpósio res/as negros/as, e dos pesquisadores/as
da educação básica, 12 encontros de que estudam as temáticas vinculadas à
área, 26 lançamentos de livros, 18 apre‐ população negra na perspectiva do diá‐

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logo entre os povos africanos e da Diáspora, com vis‐ de forma particular com o Movimento Negro, con‐
tas a debates e re exões acerca da intelectualidade ne‐ templando a participação deles no X COPENE;
gra nos diferentes campos e áreas do conhecimento d) ampliação do diálogo entre a ABPN e as Co‐
cientí co, na perspectiva da resistência, enfrenta‐ munidades Quilombolas;
mento e combate no campo cientí co das diversas Nossas produções também são poder e o que ze‐
formas de racismo e segregação da população negra e mos durante o X COPENE foi honrar nossos ances‐
dos pesquisadores/as negros/as nos espaços sociais, trais e fazer nossa história por nossas mãos. Pois se
especialmente na produção acadêmica com interlo‐ esse quadro de extrema direita se concretizar corre‐
cução com a sociedade. mos o risco de não mais existir. A despeito desse con‐
O X COPENE teve a coordenação geral da Pro‐ texto sobrevivemos, resistimos, realizamos o X
fa. Dra. Luciane Ribeiro Dias Gonçalves – UFU – COPENE, integramos a educação básica para formar
FACIP e do Prof. Dr. Benjamin Xavier – UFU – os futuros pesquisadores negros e anunciamos a im‐
FACED e aconteceu na gestão da chapa Dandaras plantação do projeto piloto de iniciação cientí ca jú‐
da ABPN : Profª Drª Anna M Canavarro Benite, nior nomeado AFROCIENTISTA que hoje
presidenta; Profª Drª Nicéa Quintino Amaro, se‐ implanta 100 bolsas distribuídas em 8 NEABs pelo
cretaria executiva; Profª Drª Fernanda Souza Bair‐ Brasil: Maranhão, Amapá, Pontal, Goiás, Brasília,
ros, diretora de relações institucionais; Profª Drª Belém, Paraíba e Amazonas.
Ana Beatriz Sousa Gomes, diretora de relações in‐ Por m cabe agradecer imensamente aos nossos
ternacionais; Profª Drª Raquel Amorim dos San‐ parceiros nesta investida, SEPPIR, Ministério da
tos, diretora de relações acadêmicas; Profª Me. Educação, MEC, Fundação Palmares, Cnpq e Ca‐
Elisabeth Santos Natel, Prfª Drª Jurema José de pes em especial ao Instituto de Pesquisas e Estudos
Oliveira, e Profª Me. Cristiane Mare da Silva com‐ Afro Brasileiros IPEAFRO . Agradecimento since‐
pondo o Conselho Fiscal. ro a todxs que xs nossxs monitores, a meus/minhas
O X COPENE foi marcado pela disposição para orientados/as do Coletivo CIATA do Laboratório
instaurar na ABPN um espaço permanente de dis‐ de Pesquisas em Educação Química e Inclusão
cussão sobre as relações de gênero na formação de LPEQI e ao Grupo de Mulheres Negras Dandaras
pesquisadores. Ademais, foram diretrizes da organi‐ no Cerrado
zação do evento: Quando falamos, escrevemos, produzimos conhe‐
a) observação da proporcionalidade de gênero na cimentos, quando ensinamos e aprendemos uns com
composição da programação geral do evento, e das os outros, quando construímos relações respeitosas,
temáticas relativas às mulheres negras; quando traduzimos a simbologia da ciência para xs
b) garantir a ampliação da relação da ABPN com nossos estamos escolhemos um projeto coletivo de
a Educação Básica buscando ampliar a participação emancipação do nosso povo. Não somos a academia
dos NEABs (Núcleos de Estudos Afro-brasileiros) e do privilégio. Somos a resistência.
dos/as pro ssionais da Educação Básica na progra‐ Que os momentos de partilha, afeto e produção
mação do X COPENE. cientí ca vividos no X COPENE sejam combustí‐
c) investir no diálogo com os Movimentos Sociais, veis para nossas trajetórias.

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Foto: COPENE

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18 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018
Por Luciane Ribeiro Dias Gonçalves e Benjamin Xavier de Paula - Coordenação Geral do X Copene

A Associação Brasileira de pesquisadores


(as) negros (as) – Abpn estabeleceu parceria com a cidade mineira que foi possível prosear.
Universidade Federal de Uberlândia - UFU, sob a co‐ Como um evento acadêmico, o X Copene não
ordenação do Núcleo de Estudos afro-brasileiro e in‐ poderia deixar de ser uma reunião acadêmico-cientí‐
dígena do Pontal – Neabi Pontal, nas pessoas do ca onde vários referenciais teórico-metodológicos
Prof.ª Drª Luciane Ribeiro Dias Gonçalves (UFU/ das pesquisas ligadas às relações étnico-raciais, nas di‐
ICHPo) e Profº Drº Benjamin Xavier de Paula versas áreas das ciências, cassem evidenciadas. Não
(UFVJM) para a realização do X Congresso de pes‐ obstante este evento, na nossa concepção, trouxe
quisadores (as) negros (as). também muitas evidências da construção de uma
Como todo evento desta envergadura, foram concepção afrocentrada de ver as ciências.
muitas di culdades no caminho de construção da O diálogo direto com a Educação Básica foi impul‐
proposta. Contudo, muitas foram satisfações no per‐ sionado pela parceria com alguns projetos que mere‐
curso de concepção do mesmo. Destacamos as várias cem destaque. O Curso de formação em Educação
reuniões preparatórias que ocorreram nas mais diver‐ para as relações étnico-raciais que vem sendo executa‐
sas cidades e locais. Em Belo Horizonte foi possível do a mais de cinco anos, e que em 2018 teve a parceria
encontrar acadêmicos e militantes da UFMG, das secretarias municipais de Educação das cidades de
UEMG e demais instituições. Conversamos com li‐ Ituiutaba, Patos de Minas e Uberaba. Formação conti‐
deranças políticas e gestores (as) públicos. Em Ouro nuada em serviço para cerca de 150 pro ssionais da
Preto além de conversarmos sobre “outros pretos”, Educação destas cidades e região. O Projeto Ubuntu
descobrindo histórias pretas invisibilizadas que con‐ Nupeeas, da Secretaria Estadual de Educação de MG,
tribuíram para construção da concepção epistemoló‐ que estendeu a iniciação cientí ca para vários municí‐
gica do evento. Ituiutaba, Uberlândia, Patos de pios de todas as regiões mineiras e tem como enfoque
Minas, Araguari e Uberaba foram parceiras-genitoras promoção da igualdade racial no ambiente escolar.
das discussões e encaminhamentos. Assim, foram Professores (as) e alunos (as) destes projetos vieram ao
em diversos espaços, lugares, pessoas, saberes e sabo‐ X Copene apresentar suas pesquisas e resultados refe‐
res. Agradecemos a recepção e a colaboração de cada rendados localmente e que fomentaram debates naci‐

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Foto: Felipe Viana
onais. As coordenadoras do Simpósio da Educação possível por conta do entrosamento com a Irmanda‐
Básica esmeraram para que a Educação Básica fosse re‐ de de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário de
conhecida como sujeitos-pesquisadores (as). Mesas re‐ Uberlândia, e mais especi camente aos ternos aco‐
dondas, conferências, minicursos, o cinas lhedores: Terno de Moçambique Estrela Guia, Ter‐
compuseram uma programação especialmente prepa‐ no de Moçambique de Belém e Marinheiro de São
rada a este público. Trabalhos com excelência acadê‐ Benedito. Certamente, esse foi o momento mais
mica foram apresentados, tanto por pro ssionais da emocionante para o grupo de pesquisadores(as) en‐
educação deste nível, como por alunos (as). volvidos(as). Gratidão.
Da mesma forma a Educação Quilombola rece‐ As atividades culturais foram diversi cadas e ti‐
beu destaque na programação. Esta comissão conse‐ veram o reconhecimento como composição do
guiu mobilizar tanto a militância quilombola quanto evento. Contou com programação própria, diversi‐
os pro ssionais e pesquisadores (as) da temática. cada e completou a proposta do X Copene como
O Copeninho, espaço educativo e recreativo acadêmico-cientí co-cultural. Bem como a Feira
criado para receber crianças que acompanharam dos afro empreendedores mostrando o potencial de
seus responsáveis para o X Copene, Este espaço muitos negros (as).
guardou a particularidade por ser o cantinho mais En m, fazer ciências para nós é “assumir o legado
movimentado por conta da vitalidade das crianças. africano como uma precondição essencial para de‐
A programação contou com várias contribuições senvolver o conhecimento” (MOORE, 2009, p.17).
de artistas e educadores (as) que puderam levar a A parte cientí ca do evento deixamos para que os
perspectiva das africanidades a cabo em diversas diversos olhares dos alunos (as) do Curso de Jornalis‐
atividades desenvolvidas. mo e do Programa de Pós-Graduação em Tecnologi‐
Um momento especialmente mágico foi a realiza‐ as, Comunicação e Educação, ambos da FACED –
ção do estágio de vivência na congada. Todos (as) UFU, coordenados pelo Profº Dr. Gerson de Sousa,
pesquisadores (as) puderam vivenciar um dia imerso nos apresentem. Essa revista é a consolidação de um
na cultura conga e participar de todo festejo. O diá‐ desejo de popularização das atividades desenvolvidas
logo do (a) pesquisador (a) com a cultura negra faz-se no X Copene. Esperamos que todos (as) apreciem.
necessário para que possamos corporei car as africa‐
nidades presentes em nosso meio. Este diálogo só foi Boa leitura.

20 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


Foto: Jhonatan Dias

Foto: Felipe Viana


Luciane Ribeiro Dias Gonçalves Benjamin Xavier de Paula
Realizou estágio pós-doutoral na Universidade Pós Doutor pelo Centro de Estudos Sociais,
de Coimbra - Portugal, no Centro de estudos So‐ Universidade de Coimbra; Professor do Ensino Su‐
ciais - CES/UC ( 2015-2016). É doutora em Edu‐ perior Adjunto na Faculdade de Educação da Uni‐
cação pela Universidade Estadual de Campinas - versidade de Federal de Uberlândia –
UNICAMP ( 2011) - UNICAMP, mestre em FACED-UFU; Professor Colaborador no Programa
Educação pela Universidade Federal de Uberlân‐ de Pós Graduação em Artes (PROF-Artes) do Insti‐
dia - UFU (2004) e graduada em Matemática pela tuto de Artes da UFU; e, Pesquisador do Grupo de
Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG Estudos e Pesquisas em Didática do Ensino de Geo‐
(1987), graduada em Pedagogia pela Universidade gra a e História – GEPEH/PPGED-UFU. É dou‐
do Estado de Minas Gerais - UEMG (1997). Atu‐ tor em educação pelo Programa de Pós-Graduação
almente é professora adjunta na Faculdade de Ci‐ em Educação da UFU – PPGED/UFU; é mestre
ências Integradas do Pontal - FACIP / UFU no em educação pelo Programa de Pós Graduação em
curso de Pedagogia. Atua na formação inicial de Educação da Faculdade de Educação da Universida‐
professores na graduação em Pedagogia ministran‐ de de São Paulo (FEUSP); e, bacharel e licenciado
do disciplinas como Estágio Supervisionado, em História pela UNESP. Tem experiência na área
Construção do Conhecimento Interdisciplinar, de História e Educação, com ênfase em Educação,
Movimentos sociais e EJA. Milita no movimento atuando principalmente nos seguintes temas: Ensi‐
negro por meio da Fundação Municipal Zumbi no de História, História e Cultura Afro-brasileira,
dos Palmares - FUMZUP e Curso Pré-vestibular História da África, Políticas Educacionais, Forma‐
para negros/as e carentes - PREVESTI. ção de Professores.

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 21


Fotos: Jhonatan Dias
A CONFERÊNCIA DE ABERTURA DO DÉCIMO CONGRESSO DE
PESQUISADORES NEGROS (COPENE) NA UNIVERSIDADE FEDE‐
RAL DE UBERLÂNDIA, NO DIA 12 DE OUTUBRO, COUBE A UM DOS
INTELECTUAIS DE REFERÊNCIA NACIONAL KABENGELE MUNAN‐
GA. PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA
BAHIA, KABENGELE MUNANGA NASCEU EM 1942 NA REPÚBLICA DO
CONGO, E SE GRADUOU EM ANTROPOLOGIA SOCIAL E CULTURAL
PELA UNIVERSIDADE OFICIAL DO CONGO. EM 1975, OBTEVE UMA
BOLSA DE DOUTORADO NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO.

Protagonismo do(a) pesquisador(a) negro(a) na produção do conhecimento sobre


a População Negra
Conferencista: Prof. Dr. Kabengele Munanga - USP/UFRB
Moderadora: Profa. Drª. Anna Maria Canavarro Benite - UFG/ABPN
Data: 12 de outubro de 2018

22 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


O protagonismo do
negro no estudo das
raças no Brasil
por Jhonatan Dias Gonzaga

Desde então, o pesquisador é uma das referênci‐ con itos entre a universidade e a militância. Para
as fundamentais para o entendimento das relações ele, o discurso da militância por muito tempo era
étnico-raciais no Brasil, principalmente no campo bastante desquali cado e não era considerado cien‐
da Antropologia. Kabengele Munanga é autor de 5 tí co ou objetivo, mas sim de “pan etagem”, viti‐
livros e diversos artigos que discutem a posição da mização. Somado a isso, o discurso da militância é
pessoa negra brasileira, as raízes africanas do nosso coberto por ideologia, e este fator é alvo de críticas.
país e as discussões sobre a mestiçagem. Entretanto, é necessário lembrar que nas áreas das
O Congresso de Pesquisadores Negros (COPE‐ ciência humanas e sociais a ideologia está sempre
NE) iniciou as atividades em 2000, na Universidade presente; a visão positivista de que a ciência é neu‐
Federal de Pernambuco (UFPE). O congresso tem tra apenas prejudica uma análise aprofundada das
origem nos antigos Simpósios Regionais de Histó‐ problemáticas sociais. “É preciso que o pesquisador
ria, e, posteriormente, houve a criação da Associa‐ saiba a qual serviço você coloca a ideologia: a servi‐
ção Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). A ço da hegemonia, do corpo dominante, ou coloca a
professora Lídia Nunes Cunha a rma que a neces‐ ideologia a serviço da promoção da igualdade”, a r‐
sidade do congresso se deu pela pouca representati‐ ma Munanga.
vidade acadêmica negra na Universidade Pública, e Estas estratégias de invalidação do discurso da mili‐
para reunir as pesquisas em geral produzidas pelos tância na universidade são uma forma de exclusão dos
negros, discutir as vivências dos pesquisadores nas negros, e a partir disso seria necessário descolonizar o
diversas áreas do conhecimento e identi car as bar‐ conhecimento. O antropólogo explica que ter acesso à
reiras encontradas. academia, que é um espaço de poder e dominação, é
O professor Munanga abre o seu discurso iden‐ fundamental, contudo, não é uma luta fácil, pois há
ti cando algumas di culdades para reconhecer a poucos anos os negros desempenham funções decisi‐
importância dos estudos raciais no país, e alguns vas nas universidades: “se pegarmos a militância negra

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 23


que precedeu a criação da ABPENE negros e 1% de descendentes de orien‐
possuía um discurso altamente quali ‐ tais. Sobre 22 milhões de brasileiros
cado, mas nossos livros nem eram con‐ que vivem abaixo da linha da pobreza,
siderados cientí cos. Isso muda pelos 70% deles são negros. Sobre 53 mi‐
intelectuais que entraram na academia, lhões de brasileiros que vivem na po‐
que começaram a questionar a ausência breza, 63% deles são negros”.
de jovens negros na universidade. Se ho‐ Munanga aponta em seu livro al‐
je temos algum resultado podemos con‐ guns motivos que causaram resistência
siderar como conquista da luta do à implantação da política de cotas, e
movimento negra”. faz uma contra argumentação. A pri‐
A admissão da população negra às meira razão que causava estranheza às
universidades se deu graças às cotas ra‐ cotas é a di culdade de de nir quem é
ciais e sociais. No livo O negro na uni‐ negro em um país mestiçado como o
versidade Munanga questiona os Brasil. O autor descredita esse argu‐
números ín mos da presença negra mento pois “num país onde a discrimi‐
nos espaços acadêmicos. A publicação nação existe e é aceita, no mínimo
é de 2004, quando apenas a UNB quem discrimina sabe distinguir os
(Universidade de Brasília), a UERJ discriminados.”. Outro motivo é a
(Universidade Estadual do Rio de Ja‐ acusação de que as cotas bene ciariam
neiro) e a UFBA (Universidade Federal apenas os negros, e, consequentemen‐
da Bahia), com outras pouquíssimas te, pessoas brancas de baixa renda não
instituições, começaram a debater a teriam o benefício. Entretanto, a lei vi‐
necessidade de cotas. O autor cita o gente garante que pessoas com baixa
texto Desigualdade racial no Brasil: renda e que não declaram a raça po‐
evolução das condições de vida na dé‐ dem concorrer às vagas como cotistas.
cada de 90, do economista Ricardo Atualmente, os resultados das polí‐
Henriques, para construir a argumen‐ ticas de inclusão racial nas universida‐
tação “Do total dos universitários bra‐ des se dão de forma lenta, mas mesmo
sileiros, 97% são brancos, sobre 2% de assim é notória a democratização do
ensino. Segundo o Instituto Brasileiro
de Geogra a e Estatística (IBGE), des‐
de a implementação das políticas de
cotas, o índice de negros com diploma
do ensino superior cresceu de 2,2%,

COPENE
em 2000, para 9,3% em 2017, con r‐
mando as previsões feitas pelo antro‐
pólogo Munanga em seu livro de 2004

24
24 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018
O professor e antropólogo Kabengele
Munanga discute a importância de os
próprios negros estudarem a antropologia
racial brasileira

O antropólogo também reitera a importância da


scalização da política de cotas, a m de evitar fraudes.
“As primeiras universidades que adotaram as cotas an‐
tes da lei como a UNB criaram comissões de controle
pois havia a consciência que poderia ter fraude. Em
uma sociedade que possui fraudes na própria justiça
também poderia haver formas de burlar a auto decla‐
ração das cotas”, a rma o professor que defende mais
controle de quem utiliza o benefício.
Ao ser questionado sobre uma possível mudança
epistemológica, Munanga a rma: “Claro. Lutamos
por isso. Não podemos car esperando que o conhe‐
cimento chegue sozinho, devemos transformar o
pensamento, a postura epistemológica”. Essa ação de
criar novas epistemologias tem estabelecido um pro‐
cesso de reexistência: recusar os conceitos que nada
têm a ver com a nossa realidade. Essa ação de recusa,
argumenta Munanga, seria transformador da socie‐
dade e tem a objetivo de descolonizar os nossos pró‐
“Finalmente, as cotas poderão ou não contribuir pa‐ prios pensamentos e enriquecer a ciência. O
ra o recuo da discriminação social e racial na nossa resultado desse processo seria acabar com essa oposi‐
sociedade? As cotas vão, sem dúvida, promover o ção entre o sujeito e objeto de estudo.” A importân‐
acesso a uma educação superior de qualidade e, con‐ cia da representatividade negra nos espaços
sequentemente, à capacidade competitiva dos alunos acadêmicos é fundamental para esta nova releitura.
brancos pobres, negros e índios. Ou seja, vão incluir “A perspectiva, em primeiro lugar, é aumentar o nú‐
os bene ciados na classe média ascendente com efei‐ mero, porque ainda somos poucos. Ainda assim, ti‐
tos multiplicadores, visto que a probabilidade dos vemos resultados nos últimos 30 anos. Hoje em dia,
lhos deles viverem a situação anterior dos pais é me‐ devemos estar presente em todos os lugares, discu‐
nos provável”, conclui. tindo e contestando ideias erradas”, conclui.

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 2


25
5
Leia abaixo trechos da entrevista do Prof. Dr. Ka‐
bengele Munanga
GERSON SOUSA - Como pensar a militância
negra no contexto de hoje, sobre qual sentido ela nos
oferece sob o conceito de resistência?
KABENGELE MUNANGA - A militância ne‐
gra, por muito tempo, foi desquali cada pela acade‐
mia que pensava que o discurso da militância não
era acadêmico, mas sim um discurso de pan eta‐
gem, de vítima, e que não era objetivo. Na realida‐
de, isso é apenas preconceito, pois ninguém
analisava o conteúdo daquele discurso para a rmar
que não era cientí co. Além do mais, o discurso da
militância, é um discurso que tem uma dose de ide‐
ologia. Na área das Ciências Humanas, que traba‐
lha com o problema da sociedade, a ideologia está ais, que apenas os brancos podem. Precisamos lutar
sempre presente em nossas análises. A questão é sa‐ contra isso, e ter acesso à academia, que é um espa‐
ber a qual serviço você coloca a ideologia: a serviço ço de poder e dominação. Essa não é uma luta fácil.
da hegemonia, do corpo dominante, ou você coloca Há poucos anos que estamos nas universidades.
essa ideologia a serviço da promoção da igualdade Porque se você pegar a militância negra que prece‐
social? Por outro lado, quando a gente analisa o dis‐ deu a criação, por exemplo, da ABPN (Associação
curso, todo o discurso é permeado por ideologias e Brasileira de Pesquisadores Negros) tinha um dis‐
visões de mundo, porque na área das ciências sobre curso altamente quali cado. Mas ele era desquali ‐
a sociedade, a neutralidade cientí ca não existe. So‐ cado. Os nossos livros não eram considerados como
mos todos posturas ideológicos. Você não pode des‐ livros cientí cos na academia. Agora, que está sen‐
quali car um discurso simplesmente porque veio do resgatado porque intelectuais negros e negras
do negro. Na verdade o que está por trás é o pater‐ entraram na academia, pois até então para o mundo
nalismo. Isso é racismo, de quem acha que o negro branco não produzíamos conhecimento. Você vê,
não tem capacidade de analisar os problemas soci‐ por exemplo, mesmo aqueles jovens intelectuais

A s primeiras universidades que adotaram


as cotas antes da lei, como a UNB,
criaram comissões de controle, pois havia a
consciência que poderia ter fraude.
26 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018
presente em todos os lugares, discutindo e contestan‐
do nos colocar ideias erradas. Isso aqui é uma conquis‐
ta muito grande. Aumentar o número de
pesquisadores, estudiosos, negras e negros na acade‐
mia poderá enriquecer a academia, vai cada vez mais
ocupar assim, ocuparemos um espaço conceitual, que
também é espaço de poder acadêmico, de poder de
transformação na sociedade. É isso que nós queremos.
Queremos estar presentes na política, na economia,
cultura, queremos estar na academia para fazer ciên‐
cia, e contribuir com a ciência.
GERSON SOUSA - Há uma necessidade de
mudança epistemológica?
KABENGELE MUNANGA - É claro que luta‐
mos por isso. Não podemos car esperando que o
que denunciavam o racismo na sociedade brasileira conhecimento chegue sozinho, devemos transfor‐
nunca questionaram a ausência de negros na mes‐ mar o pensamento, transformar nossa postura epis‐
ma universidade: falavam do racismo de modo geral temológica, criar nossas próprias epistemologias,
mas questionar os próprios espaços onde trabalha‐ criar nossos conceitos, recusar os conceitos que na‐
vam. Todo esse questionamento veio da militância da têm a ver com a nossa realidade. Isso seria trans‐
negra. Se hoje temos algum resultado, podemos di‐ formador da sociedade. E também descolonizar os
zer que é uma conquista. Os resultados que temos nossos pensamentos. E transformar e enriquecer a
hoje não caíram do céu. Tudo veio pela luta do mo‐ ciência: acabar com essa oposição entre o sujeito e
vimento negro. Atualmente, temos outra batalha objeto de estudo que eles criaram. Quem vai ganhar
importante: descolonizar o conhecimento, a m de com isso é a sociedade brasileira. Porque eles tem li‐
transformar a sociedade, e para que nós mesmos mites, tem questões que eles não podem aprofun‐
possamos discutir o nosso futuro, a situação racial. dar e entender como nós. Como os homens: tem
Queremos ser reconhecidos por eles. questões sobre as mulheres que os homens não po‐
GERSON SOUSA - Qual a sua perspectiva refe‐ dem falar melhor como as mulheres. Apesar dos
rente o pesquisador negro na academia diante desse homens serem solidários e trabalharem com isso,
quadro? mas tem questões que os homens nunca vão enten‐
KABENGELE MUNANGA - A perspectiva, em der, só mulher pode escrever sobre isso. Mesmo
primeiro lugar, é aumentar o número, porque ainda com a colaboração deles, mas há questões que eles
somos poucos. Mesmo sendo poucos, tivemos resulta‐ não podem perceber. Mas eles não podem desquali‐
dos nos últimos 30 anos. Hoje em dia, devemos estar car a gente.

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 27


Fotos: Cássio Lima

A ex-ministra da Igualdade Racial, Nilma Lino Gomes afirma que


a desconstrução do mito da democracia racial se dá por tensões
e não consensos

O Movimento Negro reeduca a


Educação Básica
Conferencista: Profa. Dra. Nilma Lino
A EX MINISTRA DA IGUALDADE RACI‐
AL, NILMA LINO GOMES TORNOU-SE
A PRIMEIRA MULHER NEGRA DO BRASIL
Gomes (UFMG) A COMANDAR UMA PÚBLICA FEDERAL,
Coordenação: Profa. Rosa Margarida AO SER NOMEADA REITORA DA UNILAB,
de Carvalho Rocha (UEMG) EM 2013. A PEDAGOGA TEM SE POSICIONA‐
Data: 13 de outubro DO, FREQUENTEMENTE, NA LUTA CON‐
TRA O RACISMO NO BRASIL.
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28 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018
O Movimento Negro
na recolonização da
Escola Básica
por Cássio Lima

Em 2 de outubro de 2015, Nilma Gomes foi no‐ O próprio movimento negro tem realizado orienta‐
meada pela presidente Dilma Rousse para ocupar o ções e produções de saber que auxiliam a escola e seus
novo , que uniu as secretarias de Políticas para Mu‐ currículos a repensarem suas ações de forma democrá‐
lheres, Igualdade Racial, Direitos Humanos e parte tica e inclusiva.
das atribuições da Secretaria-Geral. Gomes permane‐ O mito da democracia racial permeia de forma
ceu no cargo até o dia do afastamento de Dilma pelo considerável os estabelecimentos de ensino. A crença
Senado Federal. Em outubro deste ano, a docente da de que vivemos num país não racista insiste em per‐
Universidade Federal de Minas Gerais abriu o Sim‐ manecer, até mesmo em algumas práticas pedagógicas
pósio Nacional de Educação Básica da ABPN, du‐ que trabalham com o tema no calendário escolar, se‐
rante o X Congresso Nacional de Pesquisadores melhante ao que acontece no Dia da Consciência Ne‐
Negros, com o tema  “O Movimento Negro reeduca gra, comemorado em 20 de Novembro, em
a Educação Básica”. homenagem a morte de Zumbi dos Palmares. A supe‐
Educar é recolonizar: foi assim que a ex-ministra ração para a ex-ministra está em deixar de ser “român‐
Nilma Lino Gomes deu início à palestra no  X Cope‐ tico”. “Quando a escola não aceita que há racismo,
ne. “Os principais entraves da emancipação do negro é quando prega que todos os grupos étnicos raciais vive‐
a superação do racismo na sociedade como um todo, ram em harmonia no Brasil como se não tivesse havi‐
que também se manifesta na escola, pública ou não”, do tensões, relações de poder, disputas - acaba por
declara Gomes. A gênese do enfrentamento está em perpetuar a prática discriminatória”, relata Gomes. A
reconhecer que o estabelecimento de ensino ainda é ex-ministra denuncia os mecanismos de   reprodução
uma instituição que possui práticas racistas. Para que de inverdades históricas que procuram esconder um
sejam desconstruídas torna-se necessário construir passado de lutas, de resistência e ganhos de direitos so‐
uma nova pedagogia de combate a tais práticas. Atual‐ ciais da comunidade negra. A maior consequência
mente, os professores têm a nova Lei de Diretrizes Bá‐ desse comportamento escolar é a formação de novos
sicas da educação alterada, em que há uma série de sujeitos que negam o con ito e deixam de contribuir
orientações para o corpo docente da escola sobre co‐ de forma signi cativa para que ele acabe na vida social,
mo se pode construir uma educação para as relações já que é ignorado nos processos pedagógicos de forma‐
étnico raciais e, que a escola brasileira seja anti-racista. ção cidadã.
Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 2
29
9
Quando a escola assume uma posição crítica, ela
começa uma desconstrução do mito da democracia ra‐
cial e passa a entender que há um direito a todo estu‐
dante negro e não negro de ter respeitado sua cultura,
vivência, conhecimentos e valores. A partir de então,
os currículos escolares passam a inserir conhecimentos
para todos os estudantes, considerando as relações ét‐
nicos raciais. “A escola deve primar pela manifestação
da pluralidade. O negro não é apenas um estudante.
Ele vem com a sua ancestralidade, a roupa, o cabelo, o
estilo negro de ser expresso no corpo em movimento
nos ambientes do saber”, defende Gomes.
Um novo paradigma se abre aos movimentos ne‐
gros do país. Primeiro pela marcação do discurso de
implementação de novas políticas públicas na esfera
étnico racial; Segundo, pela fabricação de novos sabe‐
res que possibilita funcionar como um braço da escola
no trabalho cotidiano de inclusão. “O movimento ne‐
gro reeduca a educação básica, na medida em que traz
ao convívio escolar temáticas antes ignoradas ou pou‐
co abordadas em profundidade pela gestão escolar”,
coloca a ex-ministra. Ela defende uma nova postura aponta o educador Paulo Freire quando teoriza sobre
dos movimentos negros na reprodução dos saberes pa‐ democratizar a escola, principalmente na pluralidade
ra que ocupem lugar de protagonismo na formação da escola pública, onde é preciso tensionar para con‐
dos estudantes e deixem de ter papel periférico na rela‐ quistar direitos, com isso, ocorrerá mais expansão do
ção ensino aprendizagem. Aqui, o saber negro passa a saber inclusivo.
compor o conteúdo étnico racial da escola básica. Outro fator importante neste processo contínuo
A conferencista a rma que o fundamento da esco‐ do conhecimento pelas diferenças, é saber que a edu‐
la brasileira surgiu para não atender pobres e negros. A cação básica não está inteiramente acabada. Os novos
sua essência é de exclusão. Sendo assim, a escola públi‐ saberes funcionam como produção dialética do co‐
ca se abre por força e pressão. “Um processo contínuo nhecimento, esse mais democrático e contemplado
de tensionar para gerar o debate. Esse avança em al‐ nos diversos aspectos da vida social. Nesse caso, torna-
guns pontos e, em outros, não. Mesmo assim provoca se mais plural com a introdução efetiva da realidade
acomodações positivas de inclusão”, complementa. étnico racial. “Os projetos pedagógicos devem abordar
Para se ter um efetivo combate ao racismo na educação as questões raciais como direito adquirido, um espaço
torna-se necessário partir da premissa de que os avan‐ já conquistado, contribuindo para uma naturalidade
ços se dão nas tensões e, não nos consensos. Como no trato da temática no ambiente sala de aula”, diz

30 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


Gomes. E argumenta sobre a necessidade de evitar tra‐ turas do saber que estão consolidadas e resistentes às
balhar a questão racial com algo exótico, desconectado mudanças. “A ação de desconstruir gera propostas ree‐
do cotidiano da escola. ducativas. Isso ocorre na tensão, se houver consenso
Segundo Nilma Lino Gomes, o tratado com a di‐ esta etapa evolutiva é interrompida”, conclui. Na ten‐
versidade não pode ser de forma romântica, depen‐ tativa de impedir retrocessos, o movimento negro pre‐
dente de datas comemorativas, onde gera apenas uma cisa romper com um contexto inadequado de padrões
re exão sobre a problemática social, fora do dia dia normativos da educação   básica. Para isso deve lutar
dos estabelecimentos educacionais. O currículo étnico para: alterar os padrões de conduta, retirar os sujeitos
racial, a cultura e a crença ancestral dos negros não po‐ negros do lugar de oprimido, trazer à tona os precon‐
dem ser absolvidos como elementos exóticos, contem‐ ceitos e as concentrações de poder que não querem ser

Q
plativos, sem interação com alteradas.
a realidade fora e dentro da
escola. O recorte da questão
uando a escola A construção de uma es‐
cola inclusiva e resistente ao
social e racial estão impreg‐ não aceita que racismo depende de uma
nadas, indissociável. nova postura do movimento
As estruturas sociais são há racismo, que todos negro, com ações mais efeti‐
rígidas. As normas que regu‐ vas em todos os setores da
lamentam tais estruturas in‐ os grupos étnicos sociedade. Os negros articu‐
cidem sobre os sujeitos da
forma mais diversa possível
raciais viveram em lados politicamente abrem
uma nova perspectiva de
o lugar oprimido do negro. harmonia no Brasil protagonismo. A atuação
“O caminho é reeducar a es‐ em vários segmentos, movi‐
cola, é no ensino básico on‐ acaba por perpetuar mentos sociais e acadêmi‐
de está as primeiras cos, - considerando a
experiências de vida escolar. a prática realidade racista que deve
Uma realidade que será sem‐
pre marcada por tensiona‐
discriminatória. ser tensionada, sem roman‐
tismo e expondo os elemen‐
mentos”, diz Gomes. Então, uma rede do saber precisa tos históricos contribuem para a consolidação do
ser tensionada: a universidade com seus currículos de processo de construção dos saberes - , criam um prota‐
licenciatura, a direção escolar com a introdução da te‐ gonismo importante no currículo escolar.  “A história
mática étnico racial no eixo curricular comum, os no‐ da cultura negra veio de dentro para fora e não de fora
vos educadores com uma visão ampliada da existência para dentro. Ou seja: a emancipação passa pelo retor‐
do racismo na escola e, que precisa ser admitido para no à diáspora africana, desconstruindo ideologias ra‐
que haja o combate.  cista e desmisti cando estereótipos”, defende Gomes.
A ex-ministra chama atenção sobre a prática dos Nestes tempos de tensão política, o processo de re‐
tensionamentos, que devem ser encarados como uma educação inclusiva corre risco de emudecer. Em con‐
alternativa positiva para os enfrentamentos das estru‐ traponto, o movimento negro deve produzir

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 31


conhecimento acadêmico e de militân‐ inclusivo e contribuem de forma signi‐
cia frente à realidade nacional do racis‐ cativa na disponibilidade de conteú‐
mo epistêmico. Portanto, tornar dos a serem explorados na relação
acessível a construção do próprio saber ensino-aprendizagem. Por último, o
negro. Na prática, a escola básica volta‐ próprio Plano Nacional de Aplicação
da apenas para a arte (o gra te, por ex‐ das Diretrizes, com destaque  para as lu‐
emplo) e a   religiosidade estariam tas históricas, incluindo a formação
apenas reproduzindo o que já existe, o educacional, tendo como referência a
que está disponível em maior ou menor Constituição de 1988. Em suma, a
grau pela sociedade, sem interferir deci‐ construção da identidade negra é um
sivamente no desmantelamento do ra‐ direito, algo a rmativo e dado pelo esta‐
cismo institucional na escola. “O do democrático.
educador precisa ser incisivo nas peda‐ Para Nilma Lino Gomes, mesmo
gogias étnico raciais”, naliza. que as garantias legais estejam assegura‐
Os avanços legais da educação étnico das, os processos identitários são algo
racial em construção, assim como, a arte, a
A compreensão sobre os documen‐ história e a evolução dos povos. Nesse
tos o ciais do Governo que rege o siste‐ movimento, a escola básica tem como
ma educacional do país é de extrema dever construir um cotidiano de com‐
relevância. A primeira, as Diretrizes bate ao racismo. A pedagogia traz isso
Curriculares que obedeceu um amplo no seu cerne, na sua essência constituti‐
processo de discussão no país, onde co‐ va. Portanto, a luta também se debruça
locou a temática étnico racial como na eliminação de pedagogias racistas,
conteúdo obrigatório do eixo curricular num entendimento paralelo ao que está
comum. O segundo, as Diretrizes Qui‐ garantido na Constituição. “A resistên‐
lombolas, onde carrega uma organiza‐ cia precisa partir de questões que já es‐
ção mais aprofundada desse recorte tão inseridas, mesmo que haja tensões

A
para garantir este lugar de emancipa‐
ção”, alerta Gomes.
tentativa de tomada de Um olhar sobre o corpo negro na es‐
cola, como conhecimento de ancestrali‐
poder de grupos que dade e a rmação social são possíveis
querem assaltar o estado com uma pedagogia que abarca a ques‐
tão étnico racial. A corporeidade negra
democrático violentam todos os de resistência, com elementos sagrados
da religiosidade africana são arrancados
avanços da diversidade. da educação básica num processo de ex‐

32 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


clusão histórica.   “A ancestralidade do corpo negro parar de tensionar”, conclui..
que sofre violência é o mesmo que deve gerar a defesa Nesse momento de acirramento de forças conser‐
pela violência, rompendo e imprimindo a permanên‐ vadoras, capitalistas, de extrema direita no Brasil - nós
cia da identidade negra na sua amplitude”, a rma Go‐ temos que lutar pela nossa democracia que está em
mes ao evidenciar o racismo institucional na educação. risco, onde todos os avanços das minorias tendem a
O samba, o funk, a capoeira, a arte nos corpos negros fragilizar, como as mulheres, os negros, os quilombo‐
devem ser garantidos na sua relação étnico racial, sem las. O que se coloca na onda de conservadorismo da
a deturpação da apropriação cultural que dá outros extrema direita é uma recusa de um trato a rmativo
sentidos, desconectados da ancestralidade negra. “A de direito da diversidade, isso está colocado em jogo.
sala de aula é um local de enfrentamentos, não somen‐ “Neste momento temos que agir com força, sabedoria
te de concordâncias”, complementa. e prudência para fazer valer o que já conquistamos,
As diretrizes fundamentais para o enfrentamento são avanços simultâneos da escola e da sociedade brasi‐
do racismo na escola básica passa pela integralidade na leira, pois quanto mais se supera o racismo, melhor a
aprendizagem entre negros e brancos. Os primeiros sociedade ca para todos nós”, aponta Gomes ao re‐
anos da vida escolar devem ser marcados pela constru‐ tratar a realidade política e social no país.. A constru‐
ção de uma sociedade inclusiva. Todavia, os racismos e ção desta compreensão é um embate, gera confrontos
discriminações perpassam pela escola, mas não nascem e tensões, pois o que está em jogo são as relações de
nos estabelecimentos educacionais - por isso a tarefa poder. “A tentativa de tomada de poder de grupos que
de reeducar. Para tanto, não se pode improvisar, tal querem assaltar o estado democrático de direito, ao fa‐
prática violenta as relações étnicos raciais, reiterando o zer tais assaltos, eles violentam todos os avanços da di‐
preconceito institucional. “A reeducação que nasce versidade. Para isso, temos que voltar a tensão para a
nos quilombos e traça uma caminhada institucional escola básica”, conclui.
para existir no panteão teórico curricular - é muito re‐
cente”, diz Gomes.. Compreender essas questões pelo
aspecto negro quilombola, somado às mulheres ne‐
gras, as crianças e a juventude ainda são desa os diári‐
os. “Algumas escolas resistem, porém, os órgãos
representativos dos movimentos negros não podem

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 33


Da desumanização
quilombola aos Ensinos
Básico e Superior
por Beatriz Ortiz

G EORGINA HELENA LIMA NUNES É GRADUADA EM EDUCA‐


ÇÃO FÍSICA, MAS, AO LONGO DE SUA TRAJETÓRIA ACADÊMI‐
CA, ENVEREDOU-SE CADA VEZ MAIS NOS RAMOS VIANDANTES DA
EDUCAÇÃO. PESQUISADORA E MILITANTE APAIXONADA DAS QUES‐
TÕES DE RAÇA E GÊNERO, HOJE ATUA ENQUANTO PROFESSORA
ADJUNTA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS (UFPEL) E
ENFATIZA AS ÁREAS DE EDUCAÇÃO RURAL, EDUCAÇÃO DE
RELAÇÕES RACIAIS, EDUCAÇÃO QUILOMBOLA E GÊNERO E
POLÍTICAS AFIRMATIVAS NO ENSINO SUPERIOR.

Perspectivas e desafios das pesquisas para fortalecer os direitos quilombolas no


Brasil: 14 anos de luta em defesa do decreto 4887/2003.
Conferencista: Profa. Dra. Georgina Helena Lima Nunes
Moderadora: Ms. Givânia da Conceição Silva (UNB/CONAQ)
Data: 13 de outubro de 2018

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Fotos: Beatriz Ortiz

Foi com entusiasmo que a cientista participou lombola”, alicerçando o coração à luta e, obstinada‐
do 10º Congresso de Pesquisadores/as Negros/as mente, partindo à peleja.
(X COPENE), na Universidade Federal de Uber‐ (Des)colonização, existência e pesquisa
lândia (UFU). Ao tratar das perspectivas e desa os Latifúndio, ocupação, centro urbano, periferia,
das pesquisas para fortalecer os direitos quilombo‐ reserva indígena, quilombo. Num país de aproxi‐
las no Brasil, a pesquisadora, antes de tudo, coloca- madamente 8.516.000 km², a reforma agrária ja‐
se enquanto sujeito histórico e delimita o próprio mais acontecida pesa nos con itos de terra que
local de fala. Georgina é mulher, negra, não-qui‐ permeiam a extensão brasileira. O assassinato do
lombola, militante do movimento social negro, ambientalista Chico Mendes e o genocídio dos
professora rural e atuante na Educação Básica. Guarani Kaiowá são apenas exemplos clássicos do
Jornadeando além da docência e atuando, ao sangue que irriga nossas terras: no Brasil, só em
longo de sua experiência de vida, com formação de 2017, foram 14 quilombolas assassinados. Um de‐
professores, construção de material didático, desen‐ les, Binho, tinha acabado de deixar o lho na escola.
volvimento de políticas públicas para quilombolas e Ao entrar no carro, levou dez tiros na cabeça.
organização de encontros regionais, encontrou nos Num contexto desses, o recente decreto de lei n°
quilombos não somente um objeto de pesquisa, 4887/2003 é de suma importância à identi cação,
mas um espaço pensante de ressigni cação do olhar por autodeclaração, de terras quilombolas. Trata-se
pesquisador e de desenvolvimento de pesquisas. de um traço de reconhecimento, por parte da legis‐
Georgina, então, “se aquilombou da questão qui‐ lação brasileira, da magnitude de nossas dívidas his‐

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tóricas. O próprio artigo segundo do decreto cate‐
goriza: “consideram-se remanescentes das comu‐
nidades dos quilombos os grupos étnico-raciais
com trajetória histórica própria, dotados de rela‐
ções territoriais especí cas, com presunção de an‐
cestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida”. O decreto só ganhou
constitucionalidade em fevereiro de 2018, após
persistentes idas e vindas das lideranças políticas
quilombolas à Brasília. A vitória tardia tem desa ‐
os pela frente: segundo a Agência Brasil, até maio
deste ano, menos de 7% das áreas quilombolas ha‐
viam sido tituladas.
Adicionemos à esdrúxula realidade as ameaças
do governo de Jair Bolsonaro (PSL) e General
Mourão (PRTB) e teremos um quadro opressivo
ainda mais intenso. Em 2018, ascenderam ao po‐
der políticos com discurso explícito de retirada de
direitos, desumanização e deslegitimação discursi‐ tempos, oriundo de intelectuais de esquerda - mas
va e prática das comunidades quilombolas. Fora o de existência com resistência, em que, todos os dias,
próprio Bolsonaro, que referiu-se aos quilombo‐ a existência produz resistências renovadas.
las como pesados em arrobas - uma unidade de Georgina entende a importância de pensar a
medida utilizada para pesar animais, nomenclatu‐ pesquisa de, para, com e sobre as comunidades
ra comum nos tempos escravocratas -, um exem‐ quilombolas. Para ela, é preciso compreender o
plo é o eleito senador mais votado do Rio quilombo como possibilitante de redimensi‐
Grande do Sul, Luis Carlos Heinze (PP), onamento dos projetos sociais e de diversi ‐
que a rmou que “quilombolas, indígenas e cação epistêmica, evocando dois
lésbicas não prestam”. movimentos: a fuga à obediência aos dita‐
“Estamos sendo lembrados nas nossas não mes da ciência moderna e a desconteudiza‐
humanidades e de lugares de inferioridade ção de processos e produtos da prática
que precisamos superar na medida em que avança‐ investigativa. Assim como é impossível pesquisar
mos em políticas públicas e na proposição de um quilombo sem a ideia de totalidade, também o é
projeto de sociedade para negros e não negros”, ar‐ acomodar esse universo de experiências e pesqui‐
gumenta Georgina. E é nesse espírito que a pesqui‐ sas dentro de campos e conceitos que não colo‐
sadora coloca, então, o quilombo não enquanto cam o quilombo enquanto território de essência.
lugar de re-existência, ou ainda, de resistir para exis‐ Em outras palavras, não é possível fazer ciência
tir - discurso que predomina hegemonicamente há negra num modelo de ciência branca.

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A professora e pesquisadora Georgina Nunes
discute sobre perspectivas e desafios das
pesquisas para fortalecer os direitos
quilombolas no Brasil
No que se refere à hegemonia da branquitude Quilombo, Educação Básica e Ensino Superior
discursiva, existe, portanto, um locus efervescente Vivemos em um país em que a fala do presidente
de contradição na reprodução de ideias e ideais. do Asilo Padre Cacique sobre o Quilombo Lemos -
Georgina, ao encarar a emergência de uma gover‐ “vão sair nem que seja a última coisa que eu faça” - é
nança racista, chorou por uma semana, mas aca‐ naturalizada e legitimada. Dialeticamente, esse é o
bou erguendo a cabeça. “Eu me tomo de uma mesmo país em que cresce o número de pesquisas e
energia oriunda não sei de onde para dizer: a gen‐ pesquisadores quilombolas interessados na produ‐
te sempre existiu resistindo. Existiremos sempre ção de conhecimento de suas realidades e de realida‐
resistindo. Não nos renderemos ou nos integrare‐ des outras. Tais pesquisas vêm para provar que o
mos. Seja qual for o governo que se colocar no quilombo não é isolado do contexto político, econô‐
país, nós estaremos à frente fazendo mudanças”. mico e cultural do restante do Brasil.

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O crescimento, de 2008 a 2018, de mestrados e outras formas de conhecimento. Como exemplo, te‐
doutorados relacionados aos quilombos são, para mos o diálogo entre um professor e um aluno do Co‐
Georgina, um processo tardio de consolidação e légio Diogo Ramos:
uma produção potente na função social da pesquisa ALUNO: Bom dia, pessoal. Vou faltar na aula
à realidade quilombola. A pesquisa é uma arma hoje por causa que eu vou buscar taquara no meio
contra os ataques hegemônicos. O desa o, agora, é do mato com o meu avô.
consolidar um destino às pesquisas. “O que faze‐ PROFESSOR: Como assim, não vai à escola?
mos?”, pergunta Georgina. Transformá-las em pro‐ Pois você terá aula, não com o professor, mas com o
dutos, acúmulos ou alimento para a produção de mestre que é o seu avô. A oresta para nós também
conhecimento branco não são opções viáveis. é uma escola. Boa aula!
A pesquisadora encontrou partes da resposta na Georgina coloca a produção de conhecimento qui‐
Educação Básica. A comunidade quilombola Con‐ lombola, então, como disruptiva ao modelo hegemô‐
ceição de Criolas e o Colégio Estadual Quilombola nico e potencializadora de outros saberes e fazeres

Q
Diogo Ramos são pedagógicos. Segundo ela, é
exemplos de resultados da
função social das pesqui‐
uando se entra para uma atitude pedagógi‐
ca transdisciplinar que pre‐
sas. Pesquisas essas, vale di‐ na universidade, cisamos ser formados.
zer, fomentadas não A nal, muitas vezes, a escola
somente pela curiosidade não se entra sozinho: em si pode ser deseducativa.
cientí ca, mas por políticas
públicas histórica e doloro‐
se entra com a E, por defender que é
impossível pensar em qual‐
samente consolidadas por comunidade. quer processo de conheci‐
pesquisadores à comunida‐ mento apartado dos sujeitos
de quilombola. Com elas, emergem pedagogias e que vivem e protagonizam o movimento quilombola,
metodologias de combate às injustiças sociais, trans‐ é que Georgina levanta a questão das ações a rmativas
formando todo o processo educativo num caminho para quilombolas no Ensino Superior. “Quando se en‐
“vitorioso, resistente, emocionante e complexo”. tra na universidade, não se entra sozinho: se entra com
O caminho recebe o apoio das Diretrizes Curricu‐ a comunidade. E é preciso revisitar os compromissos
lares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola com a comunidade e os compromissos da universidade
na Educação Básica, homologada pelo Ministério da com a comunidade”, pontua a pesquisadora.
Educação (MEC) em 2012. Através delas, garante-se a Nesse sentido, já houve um encontro de estu‐
interdisciplinaridade e a multiplicidade educativa pró‐ dantes quilombolas na Universidade Federal de
pria das comunidades quilombolas. A pesquisa en m Goiás (UFG) em 2017; e, em novembro de 2018,
sai do feudo acadêmico branco e põe educadores e cri‐ acontecerá um encontro nacional no Quilombo de
anças enquanto pesquisadores, recuperando o que é Cavalcante, também em Goiás. As articulações fe‐
feito historicamente na comunidade e dialogando com cham a ideia de que a universidade e a comunidade

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quilombola têm que dialogar, nos sentidos de con‐ DF, 20 nov. 2003. Dis‐
quista coletiva e construção de outras perspectivas ponível em: <www.pla‐
de construção de conhecimento. “Os quilombolas, nalto.gov.br/ccivil_03/
assim como os negros, não têm um projeto social Decreto/2003/
voltado apenas para os quilombolas”, frisa a profes‐ D4887.htm>. Acesso
sora. “Pelo contrário, eles têm propostas sociais vol‐ em: 10 nov. 2018.
tadas ao todo, rompendo um ciclo de violência e DÉBORA BRITO
autodestruição”. (Brasília). Agência Bra‐
Georgina nalizou sua articulação, com a fala de sil. Menos de 7% das
uma quilombola pesquisadora, militante e profes‐ áreas quilombolas no
sora. Aqui, retomamos a existência com resistência Brasil foram tituladas.
digna do movimento quilombola: 2018. Disponível em:
“A gente vai pra cima para brigar pelo nosso espa‐ <agenciabrasil.ebc.‐
ço de fala, para poder dizer que a gente está aqui, que com.br/direitos-huma‐
o problema é nosso, da sociedade. Mas a sociedade nos/noticia/2018-05/
não toma o problema como seu. Então o problema é menos-de-7-das-areas-
nosso, dos quilombolas. Se é nosso, somos nós que quilombolas-no-brasil-
vamos pautar o certo e o errado, o dito o dizido. Nós foram-tituladas>. Aces‐
que vamos falar. Ninguém vai nos calar”. so em: 10 nov. 2018.
Referências DÉBORA FOGLIATTO (Santa Catarina).
BRASIL. Constituição (2012). Ministério da Sul21. Presidente do Padre Cacique sobre Quilom‐
Educação (MEC). Resolução nº 8, de 20 de novem‐ bo Lemos: ‘vão sair nem que seja a última coisa que
bro de 2012. De ne Diretrizes Curriculares Nacio‐ eu faça’. 2018. Disponível em: <www.sul21.com.br/
nais para a Educação Escolar Quilombola na ultimas-noticias/geral/2018/11/presidente-do-pa‐
Educação Básica. Brasília, DF, 20 nov. 2012. Dispo‐ dre-cacique-sobre-quilombo-lemos-vao-sair-nem-
nível em: <portal.mec.gov.br/index.php?opti‐ que-seja-a-ultima-coisa-que-eu-faca/>. Acesso em:
on=com_docman&view=download&alias=11963- 10 nov. 2018.
rceb008-12-pdf&category_slug=novembro-2012-p VICTOR PIRES (Brasil). Instituto Socioambi‐
df&Itemid=30192>. Acesso em: 10 nov. 2018. ental. Violência contra quilombolas dispara em
BRASIL. Constituição (2018). Decreto nº 2017: Lideranças e movimentos atribuem tendên‐
4887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o cia de aumento de assassinatos a contexto político
procedimento para identi cação, reconhecimento, do governo Temer. Mais de 70% dos casos, neste
delimitação, demarcação e titulação das terras ocu‐ ano, ocorreram na Bahia. 2017. Disponível em:
padas por remanescentes das comunidades dos qui‐ <www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioam‐
lombos de que trata o art. 68 do Ato das bientais/violencia-contra-quilombolas-dispara-em-
Disposições Constitucionais Transitórias. Brasília, 2017>. Acesso em: 10 nov. 2017.

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9
E LISA LARKIN NASCIMENTO CURSOU DOIS ANOS NA UNIVERSI‐
DADE PRINCETON (1971-74) E COMPLETOU SUA GRADUAÇÃO
EM CIÊNCIAS SOCIAIS, NA UNIVERSIDADE DO ESTADO DE NOVA
YORK (EUA), RECEBENDO O BACHAREL EM ARTES, SUMMA CUM
LAUDE, EM 1976. REALIZOU O MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
(1978), ASSIM COMO O JURIS DOCTOR (MESTRADO EM DIREITO,
1981) NA UNIVERSIDADE DO ESTADO DE NOVA YORK. ELA COMPLE‐
TOU O DOUTORADO EM PSICOLOGIA ESCOLAR E DO DESENVOLVI‐
MENTO HUMANO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, EM 2000.
ATUALMENTE DIRIGE O INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS
AFRO-BRASILEIROS (IPEAFRO).

A atualidade da Arte e do Pensamento de Abdias Nascimento


Conferencista: Elisa Larkin Nascimento
Moderador: Prof. Dr. Pedro Barbosa (UFG)
Intervenção artística: Milsoul Santos
Data: 13 de outubro

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Luta e resistência na
vida e obra de Abdias
Nascimento por Bruno Inácio

Elisa Larkin Nascimento, diretora do Instituto de Pesquisas e


Estudos Afro-Brasileiros, lembra a trajetória do ativista francano

Elisa tem experiência nas áreas de Educação e An‐


tropologia, com ênfase em Direitos Humanos, atu‐
ando principalmente em temas como: atitudes
étnicas e raciais, sistemas africanos de conhecimento,
negros (Brasil), diáspora africana e movimentos soci‐
ais. Em sua participação no COPENE 2018 (Con‐
gresso Brasileiro de Pesquisadores Negros), Elisa
iniciou a sua fala destacando o grave período político
que o país atravessa. E lembrou, no entanto, que esse
momento “não é diferente da situação que o negro
do Brasil enfrenta desde que chegou aqui”.
Esse aspecto político social é abordado em sua
conferência – “A atualidade da Arte e do Pensa‐
mento de Abdias Nascimento” – realizada no dia
13 de outubro.
Abdias Nascimento – com quem Elisa esteve ca‐
sada por mais de três décadas – faleceu em 2011. Ele
atuou como poeta, ator, escritor, dramaturgo, artista
Fotos: Cássio Lima

plástico, professor universitário, político e ativista


dos direitos das populações negras. Nasceu em 1914,
no município de Franca, no interior de São Paulo, e,
ao longo de sua vida fundou entidades pioneiras co‐
mo o Teatro Experimental do Negro (TEN), o Mu‐

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seu da Arte Negra (MAN) e o Institu‐ Infância e juventude
to de Pesquisas e Estudos Afro-Brasi‐ Elisa conta que ainda na infância,
leiros (IPEAFRO), atualmente Abdias Nascimento enxergou a
dirigido por Elisa. opressão sofrida pelos negros e deci‐
Abdias Nascimento atuou como diu que faria algo a respeito. Houve
professor na Universidade do Estado um momento – descrito pelo próprio
de Nova York e fundou a cadeira de Abdias, em suas memórias – que foi
Cultura Africana no Novo Mundo determinante para despertar o seu de‐
no Centro de Estudos Porto Rique‐ sejo pela luta por um mundo mais
nhos. O docente também foi confe‐ justo e igualitário. “Eu tinha um com‐
rencista visitante na Escola de Artes panheiro chamado Filisbino, que era
Dramáticas da Universidade Yale e muito pobre e, além disso, órfão de
professor convidado do Departa‐ pai e mãe. Ninguém sabia ao certo co‐
mento de Línguas e Literaturas Afri‐ mo ele sobrevivia, pois andava todo
canas da Universidade de Ife, em Ile esmolambado, tinha bicho-de-pé. E o
Ife, Nigéria. Ele ainda idealizou o coitado fazia o maior sacrifício para
Memorial Zumbi e do Movimento frequentar as aulas, pois não tinha a
Negro Uni cado (MNU) e atuou em mínima condição. Havia também a
movimentos nacionais e internacio‐ mãe de um outro colega de escola,
nais como a Ação Integralista Brasi‐ uma mulher que era o próprio espíri‐
leira, a Frente Negra Brasileira, a to de porco, que, não sei por que car‐
Negritude e o Pan-Africanismo. gas-d´ água, um certo dia encrencou
com o Filisbino. E, em pleno meio da

C
rua, começou a bater no menino, apli‐

ada vez mais, ele lia, cando-lhe uma surra tremenda, en‐
quanto as pessoas olhavam aquilo

estudava, se situava com a maior passividade e indiferen‐


ça. Mas a minha mãe, quando viu
politicamente e continuava aquela situação de violência e covar‐
dia, interveio em socorro do Filisbino.
a lutar contra a Foi a primeira vez em que eu vi a mi‐

discriminação racial nha mãe entrar em luta corporal com


alguém, e ela estava uma fera. O en‐

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volvimento da minha mãe naquela situação con i‐ irmãos. “Ele nasceu num momento em que a mão
tuosa serviu, sobretudo, como uma lição para mim. de obra de negros em fazendas estava sendo substi‐
Pois ela estava ensinando para a gente que nós nun‐ tuída pela de imigrantes europeus. Abdias, contu‐
ca poderíamos car de braços cruzados vendo uma do, acompanhava a sua mãe nas fazendas em que ela
cena daquelas, de uma criança apanhando de um trabalhava. Ele cava com vontade de estudar, mas
adulto, uma estranha, ainda mais sendo branca, não podia frequentar as escolas das fazendas, por
que, além da pancadaria, procurava humilhar o me‐ ser negro”, conta Elisa.
nino pela sua origem e pela cor da sua pele. Aquela Entretanto, depois de se formar em contabilida‐
atitude de minha mãe foi, de fato, uma lição formi‐ de, ainda na adolescência, Abdias foi convidado a ser
dável de que eu jamais esquecerei”. guarda livros e professor de uma fazenda. “Mas
Além da mãe, Georgina Ferreira do Nascimento quando a carroceria foi buscá-lo, o condutor disse
(cozinheira, doceira e costureira), Abdias viveu a in‐ que ele deveria ir na parte de trás, junto às galinhas e
fância e parte da juventude junto ao pai, José Ferrei‐ à ração. Abdias se recusou a subir na carroceria, pois
ra do Nascimento (músico e sapateiro), e os seis aquilo era totalmente humilhante”, relata.

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Em 1930, Abdias se muda para São Paulo e passa a um grupo de poetas sul-americanos e iniciou uma
integrar o Exército. Nesse mesmo período, passa a mi‐ viagem pela América Latina. “Em uma viagem ao
litar junto à maior organização política de defesa da Peru, esse grupo vai a um teatro e assiste a uma peça
causa negra do país: a Frente Negra Brasileira. “Cada sobre a questão racial. Porém, ao ver que os perso‐
vez mais, ele lia, estudava, se situava politicamente e nagens negros eram interpretados por atores bran‐
continuava a lutar contra a discriminação racial”, res‐ cos pintados de preto, Abdias decidiu, naquele
salta Elisa. Pouco depois, é expulso do Exército após se momento, criar o seu próprio teatro para lutar con‐
envolver em uma briga com um homem que não acei‐ tra o racismo”, diz Elisa.
tou que Abdias entrasse em um estabelecimento pela De volta ao Brasil após dois anos, Abdias vai para
porta principal, alegando que era a porta dos fundos a uma festa de carnaval em Jaguarão, no Rio Grande
dedicada aos negros. do Sul, onde novamente é vítima de racismo. “Ele es‐
tava dançando. Então, de repente, um homem toca o
Viagens, retorno e prisão ombro dele e diz: ‘o senhor não pode dançar’. Abdias
Abdias se mudou para o Rio de Janeiro para es‐ questiona o motivo. E o homem responde: ‘o senhor
tudar economia. Nesse período, passou a integrar é de cor baixa’. Essa foi a primeira vez que Abdias ou‐

A o ver que os personagens negros eram


interpretados por atores brancos pintados de
preto, Abdias decidiu, naquele momento, criar o seu
próprio teatro para lutar contra o racismo

44
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viu essa expressão”, relata. De volta a
São Paulo, Abdias é preso e enviado
para o Carandiru. A alegação da polí‐
cia foi que a prisão ocorreu devido à
briga em que Abdias se envolvera anos
antes, quando um homem disse que
ele não poderia usar a porta principal
do estabelecimento. “No Carandiru,
ele cria o Teatro do Sentenciado. Os
próprios presidiários escreviam os tex‐
tos e os interpretavam em apresenta‐
ções”, lembra Elisa.

Teatro e exílio
Após sair da prisão, o ator vai para
o Rio de Janeiro e funda o Teatro Ex‐
perimental do Negro, em 1944. Foi dade?”, que no ano seguinte foi lança‐
através dessa experiência que Abdias do pela editora Paz e Terra no Brasil,
identi cou e expôs o fato de que eram em versão estendida, com o nome de
raras as peças da dramaturgia brasileira “O genocídio negro brasileiro”. A
que davam papéis de destaque a perso‐ obra, considerada referência em ques‐
nagens negros. Também é através do tões raciais, foi relançada recentemente
Teatro Experimental do Negro que no país.
surge o jornal Quilombo, criado por De volta ao Brasil, após receber
Abdias. “Após esse período, ele passa a anistia, Abdias foi deputado federal de
participar de diversos eventos e festi‐ 1983 a 1987, e senador da República
vais, até que em 1968 ele vai para o ex‐ de 1997 a 1999, assumindo a vaga após
terior e é impedido de voltar ao Brasil a morte de Darcy Ribeiro. Em 2006,
pelo AI5”, conta Elisa. em São Paulo, se torna o responsável
No exterior, Abdias passa a se dedi‐ pelo projeto que instituiu o dia 20 de
car cada vez mais à arte, em especial à novembro como o Dia de Consciência
pintura. Produz inúmeras obras e se Negra. Abdias Nascimento morreu no
torna professor universitário nos Esta‐ ano de 2011, após insu ciência cardía‐
dos Unidos. Em 1977, durante o II ca, deixando como legado inúmeros
Festival de Arte Negra, na Nigéria, trabalhos que o consagraram como um
Abdias faz um discurso intitulado dos maiores símbolos da defesa da cul‐
“Democracia no Brasil: mito ou reali‐ tura negra do país.

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Abdias:
um Ancestral que permit
por Emerson Soares

E LISA LARKIN NASCIMENTO TEM HOJE 64


ANOS, É CIENTISTA SOCIAL E DOUTORA
EM PSICOLOGIA ESCOLAR PELA UNIVERSIDA‐
DE DE SÃO PAULO. COMANDA, ATUALMENTE,
O INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS
AFRO-BRASILEIROS, O IPEAFRO, LOCALIZA‐
DO NO RIO DE JANEIRO. ESTEVE NO X CON‐
GRESSO DE PESQUISADORES NEGROS,
SEDIADO NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE
UBERLÂNDIA, ENTRE OS DIAS 12 E 17 DE OU‐
TUBRO DE 2018, MESMOS DIAS PELOS QUAIS
ESTAVA DISPONÍVEL A EXPOSIÇÃO SOBRE A
VIDA, MEMÓRIA E TRAJETÓRIA DE ABDIAS
NASCIMENTO, REFERÊNCIA NOS ESTUDOS

Fotos: Emerson Soares


SOBRE A POPULAÇÃO AFRO-BRASILEIRA E
NAS ATUAÇÕES CONTRA A DISCRIMINAÇÃO
RACIAL E CONTRA A CONTINUIDADE DO
GENOCÍDIO NEGRO.

Exposição África-Brasil: o legado de Abdias Nascimento

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46 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018
te Re-Existência

Elisa Nascimento relembra a trajetória e memória de Abdias


Nascimento e sua importância para a luta negra.

Ele também fundou o Teatro Experimental Exú que, nas práticas religiosas de matriz africana,
Negro que, naquela época, tornou-se um espaço abre os trabalhos – o poder da maternidade e da fé
importante de acolhimento e de concessão de pro‐ liderando a narrativa de Abdias ali construída. Por
tagonismo a pessoas negras por meio da arte. Ab‐ ali, a vida de um Abdias que tanto re etia (e insis‐
dias fez da arte uma segunda forma de te em re etir) outras vidas negras mais: entre fotos
manifestação política. do ativista e parágrafos-síntese, o retrato da vio‐
Os textos e as imagens da exposição foram redi‐ lência policial, o símbolo de luta das religiões afro-
gidos e selecionados por Elisa Nascimento. Na brasileiras, a violência da negação de direitos a tra‐
entrada, a sutileza semântica e a força dos Orixás: balhadoras domésticas.
de um lado, a foto e a biogra a de Jose na Nasci‐ A exposição de Abdias, sendo sediada na Uni‐
mento, mãe de Abdias. Do outro, a gura de um versidade Federal de Uberlândia, ganhara dimen‐

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são simbólica. Sua mãe nasceu na ci‐ houve a possibilidade de disseminar
dade antes de tê-lo em Franca. Da e fortalecer as vozes que foram des‐
mesma forma que relembrar Abdias é cobertas e potencializadas por meio
recuperar nossas raízes, sua presença da pesquisa na academia. Mas tam‐
– pelas mensagens e trajetória vistas bém de solidarizar nossas problemá‐
em exposição – em Uberlândia foi um ticas como uma forma de melhor
retorno às terras de sua ancestral. pensá-las, e continuar a resolvê-las.
As falas de Elisa ocuparam um lu‐ Esse novo espaço de luta se efetiva
gar importante ao reviverem a me‐ como uma continuidade no processo
mória do Abdias que fora seu desenvolvido por Abdias em seus
marido, mas também um retrato da tempos: quando criou o Teatro Ex‐
resistência. Pouco antes da entrevista perimental do Negro (TEN), o que
concedida, Elisa participava de con‐ ele buscava era criar um local de aco‐
ferência sobre o processo de cresci‐ lhimento e de ressigni cação da exis‐
mento das religiões afro-brasileiras tência do sujeito negro, permitindo
em São Paulo e também dos episódi‐ convivências e novos encontros. A
os de violência relacionados a elas. atenção a performance teatral como
Ali, no Congresso, além da resistên‐ mecanismo de desenvolvimento des‐
cia, um desabafo – na verdade, vári‐ ses sujeitos e como plataforma de re‐
os, uma vez que o Congresso sistência se con guraram como
instaurou um novo espaço de acolhi‐ metáfora. Pela performance e pela
mento e de integração entre as pesso‐ imaginação, possibilidades de ser que
as negras. Por meio do evento, não fossem aquelas sempre associa‐

48 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


das a subalternidade. Pelo roteiro e mento do acervo, são textos meus.
pela fala, a concessão de voz, e voz EMERSON SOARES: Qual foi a
simboliza lugar, manifesto. Signi ca concepção por trás da exposição? O
dizer que existe. que você quis trazer do Abdias?
Ao relatar sua experiência no 10º ELISA NASCIMENTO: Na ver‐
Congresso, Elisa fala de um espaço no dade, o que nós temos são duas cor‐
qual enxerga uma juventude negra que rentes da experiência ancestral negra,
cria novos espaços de construção das que é a corrente que eles chamam da

E
próprias narrativas, de liderança e auto‐ questão do enfrentamento ao geno‐
ria em suas perspectivas.
Pelas nossas lutas, forças e ances‐ u estou presenciando
tralidades, construímos legados, co‐
mo Elisa também coloca. Resistência isso, vivenciando isso...
negra e ancestralidade é isso: legado.
A memória que se cria, a herança
a juventude criando novas
que se deixa e a força que se gera. formas de recriar, e
Pesquisadores negros novos surgem,
enchemos espaços, escrevemos sobre revivificar esse legado que é de
a nossa própria história e sobre nós
mesmos. luta, de resistência, e também
Abaixo, a entrevista concedida por
um legado de criação, de
Elisa Nascimento. construção, de autoria.
EMERSON SOARES: Você par‐
ticipou do processo de seleção dos cídio, num plano objetivamente, efe‐
elementos (da exposição) que estão tivamente político, de enfrentar
na Reitoria? mesmo a opressão; e por outro lado,
ELISA NASCIMENTO: Não só o lado criativo, o lado de cultura, o
de seleção, como eu também sou au‐ lado das artes. Então, como o Abdias
tora dos textos que estão nos painéis. sempre não só atuou nessas duas
Esses painéis são de uma exposição frentes, como as combinou, o Teatro
que nós zemos no Rio de Janeiro. Experimental do Negro era uma ini‐
Então, o IPEAFRO preparou, eu ciativa de enfrentamento ao racismo,
preparei, como curadora dessa expo‐ mas com atuação cultural, com esse
sição, escolhi as imagens, que são to‐ plano da identidade cultural que, na‐
das imagens do nosso acervo, e os quela época, foi uma coisa inédita.
(textos) que não são textos de docu‐ Não se tinha isso. Se tinha a luta

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 49


contra a discriminação racial e pela 1914. Mas ela é daqui. Então assim..
igualdade, mas não havia esse lado da a gente conta um pouco da vida dele,
dimensão de assumir os valores de e dessa trajetória de luta dele e da
origem africana e usar o plano artísti‐ produção artística. Espero que a pes‐
co como uma frente de luta. soa possa conhecer isto.
EMERSON SOARES: Pra quem EMERSON SOARES: Do que es‐
vai na exposição e não conhece o Ab‐ tá lá, tem alguma coisa que se destaca
dias, qual é a imagem que se vai ter para você? Algum material do acervo?
dele? ELISA NASCIMENTO: Pra
ELISA NASCIMENTO: Bom, mim, é difícil dizer. Eu acho que uma

E
eu espero que comunique isso que das imagens que está lá, quer dizer,
fora o Exú né, primeiro é o Exú e Três
u acho que essa é a lição Tempos de Rosa e Roxo, é a pintura
que está bem no início, junto com a
mais importante que Dona Josina na entrada, pra abrir os

ele representa: a resistência trabalhos né!? Na tradição religiosa, o


Exú é a entidade que abre sempre os
contra o autoritarismo, e em trabalhos. Então assim, todos os qua‐
dros são valiosos. Eu vou falar de um
favor da convivência em especí co que é o seguinte: é o

humana. quadro onde o Abdias toma duas re‐


ferências da África Ocidental, uma é a
estou dizendo né!? Que vai conhecer escadaria da casa dos escravos na Ilha
ele como artista vendo as pinturas de Gorée, no Senegal, que é uma ima‐
que estão lá, vai conhecer um pouco gem bem conhecida para quem co‐
da trajetória dele como ser humano nhece essa coisa África. São duas
mesmo. Porque a nal a exposição escadarias da casa colonial, em curva e
também faz uma homenagem a Do‐ na cor de rosa. E essa escadaria ele
na Josina, a mãe dele, que é de Uber‐ junta com um rosto no estilo das es‐
lândia. Ela nasceu na antiga São culturas de Benim, que são príncipes,
Pedro de Uberabinha, que depois se são bronzes famosos que representam
tornou a cidade de Uberlândia. En‐ todo um estilo artístico da África
tão ele era mineiro de pai e mãe, por‐ Ocidental. Ele junta essas duas guras
que depois ela casa, é.. o pai dele é de e faz um faraó egípcio. E o título do
Formiga, então eles vão morar em quadro, ele sempre trabalhava com os
Formiga. De Formiga eles vão para títulos, o título faz parte da obra artís‐
Franca, onde o Abdias nasce em tica, “Máscara Ancestral”.

50 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


Foto: Cássio Lima
EMERSON SOARES: Considerando esse pa‐
pel político e artístico que o Abdias teve, qual é a
importância da memória dele para o Brasil? Não
só para o Brasil em geral, mas para o Brasil atual.
ELISA NASCIMENTO: Poxa, me parece que
a memória dele é importante para o Brasil atual
exatamente porque ele representa uma postura de‐
mocrática, no sentido de convivência, porque, as‐
sim.. A Tese do Genocídio do Negro Brasileiro,
que é o livro que ele publicou em 1988, e que hoje
nós estamos fazendo uma reedição, e que inclusive
está aqui a disposição, como também O Quilom‐
bismo (1980), são duas faces da mesma moeda,
que é a busca de formas de convivência humana.
Não são, de forma alguma, propostas de aparta‐ mas pra mim basicamente é isso: é uma forma de
mento, de apartar as pessoas. Então eu acho que comunicar e de apresentar para apreciação do pú‐
essa é a lição mais importante que ele representa: a blico aquilo que você está fazendo. E, no caso dessa
resistência contra o autoritarismo, e em favor da exposição, eu acho que tem tudo a ver com o tema
convivência humana. do COPENE, exatamente porque ela é uma exposi‐
EMERSON SOARES: O que você entende como ção que traz a vida e a obra de uma pessoa, de um
exposição como conceito, e como ela pode ser vincula‐ ancestral, e cuja as referências permitem uma re-
da a resistência negra intelectual e ancestral? existência no sentido de trazer aquele mesmo emba‐
ELISA NASCIMENTO: Bom, exposição me te, aquele mesmo protagonismo, a mesma essência
parece que é uma forma de comunicação, é uma das iniciativas que estão ali, que estão acontecendo
forma de criar uma oportunidade para as pessoas aqui no COPENE, eu estou presenciando isso, vi‐
conhecerem aquilo que você está tentando transmi‐ venciando isso: a juventude criando novas formas
tir. Então, pra mim, a exposição é isso. Eu não te‐ de recriar, e revivi car esse legado né, que é um le‐
nho uma formação teórica em curadoria. Então eu gado de luta, de resistência, e também um legado de
não sei se existem embates teóricos sobre exposição, criação, de construção, de autoria.

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 51


Fotos: Gerson de Sousa

I SIS APARECIDA CONCEIÇÃO: CURRÍCULO EXTENSO E UMA


VASTA BAGAGEM INTELECTUAL. INICIALMENTE, EM 2004, ISIS
GRADUOU-SE EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL
PAULISTA JÚLIO MESQUITA FILHO (UNESP). EM 2008, ESPECIALIZOU-
SE EM DIREITOS HUMANOS PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
(USP) E, EM 2009, TORNOU-SE MESTRE EM DIREITO DO ESTADO,
TAMBÉM NA USP. POUCOS ANOS DEPOIS, EM 2013, FEZ OUTRO
MESTRADO, DESSA VEZ SOBRE LEI DE INTERESSE PÚBLICO, COM
ESPECIALIZAÇÃO EM TEORIA CRÍTICA RACIAL INTERNACIONAL,
PELA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA CALIFÓRNIA, EM LOS
ANGELES. LOGO EM 2014, CONCLUIU SEU DOUTORADO EM
DIREITO DO ESTADO, NA USP.

Tema: Justiça Racial na Diáspora Africana


Conferencista: Profª. Drª. Isis Aparecida Conceição (UNILAB)
Data: 13 de outubro de 2018

52
52 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018
Justiça racial:
um debate que
precisa de
interlocutores no
Brasil
por Leidiane Campos

E a formação da pesquisadora não parou por aí. tivesse muito a dizer sobre a temática, a pesquisadora
Para além dos cursos acadêmicos, Isis foi assessora do – experiente nas áreas de Direito Internacional, Di‐
ministro Luís Roberto Barroso, durante os anos de reitos Humanos, Direito Constitucional, Diretos da
2013 e 2014. Além disso, foi bolsista de diversas Criança, Direitos do Consumidor e Justiça Racial –
agências de fomento. Dentre elas, se destacam: o Ins‐ encontrou um auditório vazio no momento reserva‐
tituto Canadense para Desenvolvimento das Améri‐ do para sua palestra.
cas (Cida), em 2009; Organização dos Estados Ao contrário do que provavelmente alguns te‐
Americanos (Cida/OAS), em 2010; Programa das nham presumido, Isis não se surpreendeu com a falta
Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), de de quórum para a exposição que pretendia realizar.
2011 a 2012; Ministério da Educação e Cultura do Muitos pontos poderiam ser expostos para explicar a
Governo Americano (Bureau of Educational and conformação da pesquisadora frente à ampla sala do
Cultural A airs), de 2010 a 2013, no Programa auditório sem qualquer ouvinte, mas o principal está
“Opportunity Grants”; entre outros. imerso na própria problemática dos debates acerca
Em sua participação no 10º Congresso Brasileiro da Justiça Racial.
dos(as) Pesquisadores(as) Negros(as) (Copene), Isis Falar sobre esse tema, mais especi camente no
se propôs a abordar a questão da “Justiça Racial na Direito, requer aprofundamentos, habilidades e
Diáspora Africana” e a discutir sobre os principais vontades que nem todos estão aptos, dispostos ou
pontos desse campo. Entretanto, embora claramente despertos a fazer. Como a própria Isis salientou, em

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53
3
Isis Conceição, pesquisadora da
área de Justiça Racial no Direito,
discute sobre os desafios desse
campo num contexto em que
poucos pesquisadores se
arriscam a ultrapassar as
críticas vazias

entrevista concedida: “são poucos in‐ regras do terreno são uma maneira de
terlocutores que existem no Brasil, fazer com que os interlocutores de
produzindo na área de Justiça Raci‐ um debate compreendam por onde
al”. Por ser escassa a quantidade de estão caminhando, para que não se‐
pesquisadores, sempre que ocorrem jam simplesmente inseridos em um
debates sobre a temática, é necessário contexto, sem o conhecimento con‐
que, antes de qualquer coisa, os pou‐ ceitual necessário para a verdadeira
cos interessados no assunto sejam imersão e entendimento acerca da te‐
apresentados ao que Isis nomeia de mática. Assim, no Direito, por exem‐
“regras do terreno”. plo, “não tem como discutir o
Conforme a pesquisadora, que funcionamento do sistema de justiça
atua como docente na Universidade ou uma proposta de um sistema, de
da Integração Internacional da Luso‐ uma área de pensar a Justiça Racial,”
fonia Afro-Brasileira (UNILAB), as se o terreno em que a discussão se efe‐

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tivará não foi apresentado. Essa apre‐
sentação se efetiva por meio da de ni‐
ção das categorias do conceito
abordado, apresentação do viés meto‐
dológico e, por conseguinte, os casos
N ormalmente as
pessoas negras que
entram no curso de Direito
concretos que se efetivam dentro do
terreno explicitado. estão vendo uma chance de se
Para Isis, fugir das regras do terre‐
no, do entendimento real de como se
tornarem brancas,
efetivam as proposições da Justiça Ra‐ de se tornarem elite.
cial no Brasil, não é a melhor saída.
Embora alguns exponham cotidiana‐ Isis, antes de alçar voos grandiosos, em
mente críticas a respeito do sistema ju‐ busca de novos caminhos e soluções
rídico brasileiro, no que diz respeito à nesse campo, os pesquisadores preci‐
questão racial, poucos buscam, efetiva‐ sam conhecer o sistema, entender co‐
mente, a imersão completa nesse terre‐ mo ele funciona, “para depois fazer o
no – fértil, porém insu cientemente giro epistemológico”.
explorado. Constatar um problema é A citada insu ciência de interlocu‐
diferente de solucioná-lo. O que falta, tores, aliada à falta de propostas con‐
muitas vezes, na área da Justiça Racial, sistentes no campo da Justiça Racial,
bem como em tantas outras do Direi‐ tem suas raízes no próprio contexto
to, são as proposições de soluções. social brasileiro. Primeira mulher ne‐
“As críticas que nós temos das pes‐ gra a se formar em Direito na Unesp,
soas que pensam o Direito e que que‐ Isis ressalta que, nos espaços em que
rem pensar o Direito, o antirracismo, construiu sua carreira acadêmica, era a
são críticas com pouco embasamento única aluna interessada no campo e
metodológico de domínio do sistema e que, para tanto, buscou a mentoria de
são críticas vazias”, destaca Isis. O de‐ pesquisadores – também escassos –
sa o que se instaura então, dentro des‐ que estavam há mais tempo pesquisan‐
sa problemática, é o enfrentamento e a do na área: Fernando Fernandes e Hé‐
superação dessa barreira que é cons‐ dio Silva Júnior. Para a pesquisadora, a
truída logo na base das discussões a razão disso, embora não seja simples
respeito do que vem a ser Justiça Raci‐ ou fácil de ser delineada, se encontra,
al e seus reais desdobramentos. Para principalmente, no fato de que “as

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pessoas que estudam Direito não en‐ Embora sejam marcantes e necessá‐
tram no curso de Direito tentando rios, os apontamentos de Isis são me‐
pensar a questão racial. Normalmente nos uma crítica fechada ao sistema, e
as pessoas negras que entram no curso mais uma constatação de que há muito
de Direito estão vendo uma chance de o que ser feito pela frente. Entender o
se tornarem brancas, de se tornarem contexto atual, e para isso deixar para
elite. E lançam um olhar para as refe‐ trás as críticas vazias, é dar um passo
rências do que elas querem ser, que é a expressivo rumo aos avanços que o
elite branca, e se dedicam a estudar o campo da Justiça Racial precisa. A
Direito posto, tradicional conserva‐ pesquisadora entende e reforça que ser
dor”. negro e, ao mesmo tempo, pensador
A questão da identidade surge, nes‐ no Direito é um desa o frequente‐
se ponto, como um fator preponde‐ mente negado aos pesquisadores em
rante e importante na construção potencial, ocupantes dos poucos ban‐
epistemológica do que vem a ser Justi‐ cos disponíveis na academia. Como
ça Social. Porque, conforme explica bem lembra Isis, “o Direito ainda é
Isis, para se pensar a questão racial no uma área muito elitizada e, quando
Direito, é necessário que exista o “ele‐ não elitizada, as pessoas têm acesso a
mento de identidade da pessoa negra uma perspectiva do Direito que é as‐
que entra no curso de Direito não sim: você é negro, você vai ser advoga‐
querendo embranquecer”. Para além do. Você não vai ser um pensador do
disso, é preciso que não só haja esse Direito, você vai ser um apertador de
elemento da pessoa negra que não tem parafuso do Direito”. Por isso, muito
projeções de embranquecimento, co‐ da escassez de pensadores aptos, legiti‐
mo também que esse sujeito tenha a mados e dispostos a falar sobre Justiça
ávida vontade – e coragem – de ultra‐ Racial é resultado dessa segmentação,
passar algumas barreiras sociais e pro‐ que direciona os discentes negros do

V
duzir pesquisa. Direito à execução técnica e mecânica
de suas atividades pro ssionais.
amos lançar um Imersa nessa realidade, que a prin‐
cípio aparenta ser desalentadora, Isis
olhar para o que está tem optado por remar contra a maré e

funcionando e tentar acreditar que os rumos do campo – no


qual tanto tem se dedicado – podem

instrumentalizar isso de uma ser rumar para um cenário mais espe‐


rançoso. “Acho que apesar de existirem
forma mais concreta coisas que di cultam a concretização

56 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


A
dessa ambição de Justiça Racial, eu acho que a gente
já teve muitos avanços que permitem mais um olhar s críticas que nós
otimista, do que um olhar de críticas”, destaca a pes‐
quisadora.
temos das pessoas
O mais importante, para Isis, é que o debate não
que pensam o Direito e que
seja minado pela insu ciência de interlocutores. Os
auditórios onde são abordadas as questões raciais na querem pensar o Direito, o
área jurídica precisam ser palco efetivo de discussões.
E, para isso, é necessário que mais corajosos estejam antirracismo, são críticas
dispostos a, primeiro, entender as regras do terreno e,
depois, fazer dessa arena um espaço de pequenas – e
com pouco embasamento
futuramente grandiosas – evoluções. E, por tomar metodológico de domínio do
para si esse otimismo, Isis faz o convite: “vamos lan‐
çar um olhar para o que está funcionando e tentar sistema e são críticas vazias.
instrumentalizar isso de uma forma mais concreta. E,
se não está funcionando, não vamos reclamar que
não está funcionando, mas descobrir porque não es‐
tá funcionando e como alterar isso. Acho que é uma
questão de postura mesmo”.

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57
7
Momentos...
Fotos: Felipe Viana, Jhonatan Gonzaga, Cássio Lima

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Momentos...
Fotos: Felipe Viana, Jhonatan Gonzaga, Cássio Lima

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61
1
Vivência Co
Fotos: Jhyenne Gomes

A congada é uma festa em memória que veio com


os escravizados do antigo Reino do Congo, na
África Central. Congo signi ca congar, dançar. Em
Uberlândia a festa completa 141 anos de resistência.
A festa foi tombada como patrimônio histórico
de Uberlândia sendo a o primeiro tombamento não
material é comemora no mês de outubro e tem
como destino a Igreja de Nossa Senhora do Rosário,
no centro da cidade.

62
62 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018
ongado

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63
3
Atualmente existem 25 ternos de congo em
atividade e 2 em licença, sendo eles: Congo Prata,
Congo Rosário Santo, Congo Camisa Verde, Congo
Santa I gênia, Congo Amarelo Ouro, Congo Verde
e Branco, Congo São Domingos, Congo Cruzeiro do
Sul, Congo de Sainha, Nossa Senhora do Rosário
Catuapé, Catuapé Dona Zulmira, Catuapé Azul e
Rosa, Marinheiro Nossa Senhora do Rosário,
Catuapé do Mansour, Marinheiro de São Benedito,
Marujos Azul de Maio, Moçambique Raízes,
Moçambique Angola e Moçambique Guardiões de
São Benedito.

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5
Saberes Tradicionais
da Congada
por Jhyenne Gomes

Tema: Saberes tradicionais e congada


Coordenador da mesa: Jeremias Brasileiro
Autores/as: Jeremias Brasileiro, Larissa Gabarra, Antônia Aparecida Rosa
Data: 17 de outubro

66
66 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018
As manifestações culturais afro-brasileiras
ganham novas perspectivas a partir das
narrativas de pesquisadores negros

Larissa Gabarra Jeremias Brasileiro Antônia Aparecida Rosa


É professora Adjunta nos cur‐ É considerado uma das maio‐ É Pedagoga aposentada pela
sos de graduação Bacharelado em res referências sobre a congada em rede municipal de ensino de
Humanidades e História e de pós- Minas Gerais. Congadeiro desde Uberlândia. Atualmente é gestora
graduação no Mestrado Interdis‐ sua infância, começou a pesquisar voluntária do Centro de Forma‐
ciplinar em Humanidades da sobre a manifestação enquanto ção e Cultura Negra - Graça do
Universidade de Integração Inter‐ autodidata. Atualmente é coman‐ Aché é capitã do terno Marinhei‐
nacional da Lusofonia Afro-Bra‐ dante geral da Congada em Uber‐ ros de Nossa Senhora do Rosário
sileira. Larissa têm estudado lândia, presidente da Irmandade em Uberlândia-MG.
manifestações culturais afro-bra‐ do Rosário e comandante geral da
sileiras, em especial a congada Congada em Rio Paranaíba. É
desde sua graduação. A relação da historiador e autor de 24 livros.
oralidade e memória perpetuam
seus estudos sobre a Congada em
Minas Gerais.
Fotos: Jhyenne Gomes

COPENE
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67
7
Lá em 1874, em terras Uberlanden‐ da- feira as ruas do centro da cidade se‐
ses, surgem primeiros relatos da congada jam fechadas para a garantia do direito à
na cidade. A manifestação cultural que cidade e de retrabalharem a memória de
há mais de 100 anos reivindica seu espa‐ uma festa que remonta aos reis congos
ço, é mais do que festa, é um movimen‐ de África. A congada é uma festa que se
to de reexistência e de preservação dos con gura como movimento cultural em
saberes tradicionais. Mas antes de come‐ constante ligação com a sociedade, que
çarmos essa história, pedimos licença à não está alheia às discussões sobre e para
aquelas e aqueles que nos antecederam, o povo negro.
que lutaram e construíram essa história.
A descolonização do pensamento.
A descolonização do pensamento de‐
ve ser um movimento de constantes in‐
dagações e mudanças de pensamentos e
comportamentos. Segundo relatos de
Jeremias Brasileiro, Uberlândia pode ser
considerada a única cidade brasileira
que têm enquanto representação uma
Nossa Senhora do Rosário branca. Ele
explica que a imagem em exposição na
Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no
centro da cidade, não é a que representa
o povo negro, com suas vestes vermelhas
e azul, e sim a que representa os nave‐
gantes, com tons de branco e azul. Foi
A congada necessário que um pai de santo da cida‐
A congada não é só uma festa que de entrasse em discussão para garantir o
ocorre em um domingo de outubro. direito de que, pelo menos na procissão,
Preparada durante todo o ano, a festa se a imagem que durante todo o ano ca
mostra nas ruas de Uberlândia durante escondida na sacristia, ganhasse as ruas.
três meses, das quais os ternos ensaiam, E essas representações, como a da santa
realizam leilões e ocupam a cidade, visu‐ branca, é naturalizada graças ao racismo
almente e musicalmente. É um ato polí‐ que é institucional.
tico, onde diariamente se faz negocia‐ E no sentido de descolonizar esses
ções para a conquista e permanência dos pensamentos que se faz necessário o co‐
direitos de se manifestarem, que se for‐ nhecimento da ancestralidade, pungen‐
talece ao conseguir que em plena segun‐ te na congada. Na palestra “Saberes

68 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


Tradicionais da Congada” Antônia Aparecida Rosa
chega com um exemplo prático destes saberes tradi‐
cionais. Ela optou por não utilizar nenhum suporte
tecnológico em sua apresentação como forma de rea‐
rmação de uma das principais questões da congada
e da história negra: a oralidade. E essa oralidade se ex‐
pressa, como exemplo, na importância dos instrumen‐
tos utilizados enquanto contexto histórico. Para a
historiogra a ocidental, as gungas (latinhas amarradas
abaixo dos tornozelos) eram utilizadas para que, caso
um escravo tentasse fugir, fosse denunciado pelo baru‐
lho dos instrumentos. Já para a historiogra a conga‐
deira, as gungas remetem ao coites que eram
amarrados nas canelas para que, enquanto em fuga,
pudessem assustar e tirar os animais peçonhentos de
seus caminhos.
O pesquisador Jeremias Brasileiro enfatiza que a
história congadeira é a ressigni cação de uma histó‐
ria de dor. Os patangomes vêm da bateira, do bati‐ Carminda, da Unicamp, questiona essa descoloniza‐
ar, do garimpar. O instrumento de trabalho e ção do pensamento desde a infância. Para Jeremias
exploração se ressigni cam enquanto instrumento Brasileiro, deve-se então questionar como é possível
musical e reconta a história embranquecida de que que uma criança negra tenha tanta di culdade em
negros foram levados para a américa e escravizados matemática em sala de aula, mas consegue saber com
apenas por terem braços fortes, excluindo dos li‐ precisão quantas gungas, quantos patangomes e
vros, que eles eram na verdade, os detentores do co‐ quantas caixas tem um grupo de congada. Como é
nhecimento da garimpagem. possível que estas crianças tenham di culdades geo‐
No livro “No chão da sala de aula”, a professora grá cas, mas conseguem distinguir geogra camente

A congada é uma festa que se


configura como movimento
cultural em constante ligação com a
sociedade, que não está alheia às
discussões sobre e para o povo negro.
Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 69
os que estão nos ternos de Marinheiros história. A ocupação destes lugares his‐
da Antônio, de Belém, Pena Branca. Se‐ toricamente negados é de fundamental
gundo o pesquisador, essas crianças sa‐ importância para o movimento de cons‐
bem porque ela consegue lidar com a trução de novas narrativas.
espacialidade do mundo dela, enquanto Aos 8 anos de idade Jeremias Brasi‐
em sala de aula, toda sua vivência de leiro já participava das festas de congado
mundo é retirada para que ela viva em Rio Paranaíba, sua cidade natal. Já
aquela uma história eurocêntrica que adulto, na sua jornada enquanto autodi‐
nada tenha haver com seu cotidiano. data, acompanhou durante quatro anos
o senhor conhecido como “Tio Cândi‐
O sujeito pesquisador do” congadeiro de Uberlândia. Com ele
Jeremias Brasileiro é considerado um aprendeu a história, conheceu os pro‐
dos maiores especialistas na história da cessos e documentou o que foi possível.
congada mineira. Com vinte e quatro li‐ Antes de sua morte, Tio Cândido tinha
vros lançados até hoje, iniciou sua traje‐ expressado ao presidente de sua irman‐

A
tória enquanto pesquisador autodidata. dade, o desejo de que Jeremias assumisse
seu posto após sua morte. Pela tradição,
história congadeira a consanguinidade é a regente nas trans‐

é a ressignificação de ferências de postos de geração para gera‐


ção, mas Jeremias não possuía laços
uma história de dor. sanguíneos com Tio Cândido. Então, o
lho do Tio Cândido, que naturalmen‐
Seu ingresso em uma universidade acon‐ te herdaria o posto, entendeu que apesar
teceu após seus quarenta anos, tendo já de não ser lho de sangue e carne, Jere‐
lançado dez livros àquela época. En‐ mias foi escolhido enquanto representa‐
quanto homem negro e congadeiro, Je‐ ção e tradição espiritual para continuar a
remias Brasileiro reivindica seu direito história de seu pai. Atualmente, Jeremi‐
em defender os discursos e as histórias as é comandante geral da Congada em
da comunidade negra que esteve em po‐ Uberlândia e em sua cidade natal é pre‐
sição de objeto de estudo, mas não de sidente da Irmandade do Rosário e co‐
pesquisador. Na história do povo negro, mandante geral da Congada, posto que
o papel de militante era o de peso e des‐ assumiu após a morte de um primo.
taque. Mas nos últimos anos, este papel Larissa Gabarra é professora adjunta
tão importante tem encontrado en‐ nos cursos de graduação- Bacharelado
quanto complemento para a comunida‐ em Humanidades e História e de pós-
de negra, o papel de pesquisador, de graduação no Mestrado Interdisciplinar
educador e de contador de sua própria em Humanidades da Universidade de

70 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


nou-se pelo Marinheiro de Nossa Senhora do Rosá‐
rio e no ano seguinte decide sair pelo terno como
bandeirola, posto que atuou até os 16 anos, quando
o terno foi desativado. Anos mais tarde, Dona Do‐
lores assume o Marinheiros de Nossa Senhora do
Rosário, mesmo sem consanguinidade, enquanto
Antônia Aparecida Rosa se torna madrinha, posto
que ela escolheu seguir.
Antônia Aparecida Rosa, que a princípio resig‐
nou-se em assumir o posto de comandante de terno
nos convida a um novo olhar sobre as representações
visuais da congada. Observe atentamente as expres‐
sões no olhar das mulheres congadeiras. E juntas, nos
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasilei‐ questionamos: qual o papel da mulher no congado?
ra. Desde sua graduação, em meados dos anos 2000, A festa de congada enquanto manifestação não está
estuda as manifestações culturais afro-brasileiras, em dissociada das questões da sociedade em geral, e ali
especial a congada. Larissa, que aprendeu tanto com também se re ete comportamentos machistas. Os
Jeremias, utiliza de seu espaço na academia para traba‐ homens comandam com bastões e apitos, enquanto
lhar com novas narrativas, que não sejam a eurocêntri‐ as mulheres não possuem instrumentos que lhe im‐
cas, relacionando a oralidade e a memória do povo põe seu posto de comandante.
negro e suas manifestações culturais, em especial a Para entender as discussões sobre os saberes tradici‐
Congada em Minas Gerais. onais da congada, é preciso considerar o ensinamento
Antônia Aparecida Rosa é três em uma e carrega de Antônia Aparecida Rosa: “por vezes nos perdemos
em si a potência de três nomes femininos que cons‐ no processo, mas a melhor parte é a certeza de que em
truíram sua identidade. Pedagoga aposentada da rede algum momento a gente se acha, mesmo que de uma
municipal de ensino de Uberlândia é atualmente forma diferente, às vezes trazendo novas aprendiza‐
Gestora voluntária do Centro de Formação e Cultu‐ gens, mas sem esquecer as aprendizagens da nossa an‐
ra Negra - Graça do Aché e capitã do terno Mari‐ cestralidade e das nossas formas de viver”. E essa forma
nheiros de Nossa Senhora do Rosário. Sua vivência de viver as alegrias das tradições é presente na congada
na congada começou ainda na gestação e desde en‐ na dança das tas, que é uma simbologia em respeito à
tão, se faz presente nessa manifestação carregada de natureza, como na ta aberta que representa a copa da
potência e simbologias. árvore, ou o movimento das ondas quando as tas são
Antônia Aparecida Rosa assumiu o terno de trançadas por cima. Na comida, que não alimenta só
Marinheiros em 2007, após o falecimento de sua corpo, alimenta a alma e o espírito. Nas cantigas de
mãe, Dona Dolores. Mas sua linhagem é ligada ao louvor ao rei congo e na tradição de contar a história
terno Sainha, o terno mais antigo em exercício na de um povo através da oralidade. É a representação da
cidade de Uberlândia. Aos 7 anos de idade, apaixo‐ espiritualidade no dia-a-dia.

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 71


Fotos: Genivan Júnior
P ETRONILHA BEATRIZ GONÇALVES E SILVA NASCEU EM PORTO ALEGRE, NO BAIR‐
RO COLÔNIA AFRICANA, EM 1942. LICENCIADA EM LETRAS E FRANCÊS EM 1964,
TERMINOU O MESTRADO EM EDUCAÇÃO EM 1979 E O DOUTORADO EM CIÊNCIAS HU‐
MANAS EM 1987, TODOS PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
(UFRGS). ATUOU COMO DOCENTE E COORDENADORA PEDAGÓGICA NA EDUCAÇÃO
BÁSICA DA REDE PÚBLICA E PARTICULAR DE ENSINO; EM CARGOS TÉCNICOS NA SE‐
CRETARIA DE EDUCAÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL E NO CONSELHO ESTADUAL DE
EDUCAÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL; E COMO DOCENTE NA PONTIFÍCIA UNIVERSIDA‐
DE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL (PUCRS).

(Re)existência negra, intelectuais negros/as e a pesquisa científica no Brasil


Conferencista: Profª. Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – UFSCAR
Coordenação: Profª. Dra. Nicéa Quintino Amauro – UFU/ABPN
Data: 17 de outubro

72
72 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018
Contra o racismo,
pela Igualdade e o
Conhecimento
Horizontal
por Clarice Bertoni

A professora e pesquisadora Petronilha discute o enfrentamento


ao racismo, o reconhecimento dos diferentes grupos étnico-
raciais e o rompimento com a europeização do conhecimento

A docente cursou especialização em Planejamen‐ nome da comissão, foi aprovado por unanimidade
to e Administração da Educação no Instituto Inter‐ no Conselho Pleno do CNE.
nacional de Planejamento da UNESCO, na França, Entre os muitos desa os da atualidade, a descons‐
em 1977. Realizou estágio de Pós-Doutorado em Te‐ trução do racismo é um dos mais urgentes. É impor‐
oria da Educação, na University of South Africa, na tante ressaltar, explica a pesquisadora, o avanço
África do Sul, em 1996, onde atuou como professora conquistado com a política curricular de reconheci‐
visitante, assim como na Universidad Autonoma del mento e reparação das desigualdades, a lei
Estado de Morelo, no México, em 2003. Foi chama‐ 10.639/2003, que implementou o ensino de história
da para a Universidade Federal de São Carlos (UFS‐ e cultura afro-brasileira e africana. E de sua alteração
Car) onde coordenou o Grupo Gestor do Programa em 2008, pela Lei 11.645, que torna obrigatório o
de Ações A rmativas de 2007 a 2011. referido ensino em todas as escolas, públicas e parti‐
Petronilha promoveu ações vinculadas à Universi‐ culares, do ensino fundamental até o ensino médio.
dade de São Paulo (USP) e eventos cientí cos pelo Mas ainda há muito o que ser feito.
Brasil e por países como Peru, México, EUA, Canadá O Brasil é um país multiétnico e pluricultural e,
e Senegal. Indicada pelo movimento negro para a câ‐ por esse motivo, precisa de unidades educacionais em
mara de educação superior do Conselho Nacional de que todos se sintam incluídos. Onde haja garantia do
Educação (CNE), Petronilha integrou a comissão direito de aprender sem negar a si próprio, indepen‐
que elborou o parecer n.º 3/2004, sendo relatora. Tal dentemente do grupo étnico-racial a que pertença. Pa‐
parecer, regulamenta a lei 10639/2004. Seu voto, em ra isto, defende a professora, preconceitos precisam ser

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 7


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3
desconstruídos e um dos modos mais e ‐ do princípios para orientar as nossas
cientes é através da educação. Se faz ne‐ ações de luta. O primeiro desses princí‐
cessário conhecer a história e cultura dos pios, diz respeito ao enfrentamento e
afrodescendentes, dos africanos, centrais superação de racismos, discriminações e
na construção da nação. intolerâncias” argumenta Petronilha,
Há aqui uma defesa premente de após advertir quanto ao grave momento
Petronilha: um diálogo entre diferentes de crise que vive o país e o mundo. En‐
culturas deve ser colocado, para que se tretanto, ela nos lembra que para quem

A
vive numa permanente crise e pressão,

verdadeira “cabe dar o exemplo de resistência, a


partir de nós mesmos, da nossa história

libertação não está e das nossas lutas”. Quando se convive


e combate diariamente o racismo,
na lei. Ela está se iniciando compreende-se que os tempos sempre
foram de incertezas. E diante de cada
com as ações afirmativas, uma das incertezas vividas, certezas

com a produção de são lapidadas e se fazem vivas. É neces‐


sário a tomada de consciência, a a r‐

conhecimento a partir das mação e a construção de uma


solidariedade para possibilitar uma re‐
nossas experiências e a ação antirracista. A pesquisadora acre‐
dita que estudar o racismos é um
partir da nossa história” desa o por causa da “tensão entre a
supremacia que exibe a fragilidade
questione a invisibilidade com que ne‐ branca e a resistência e negra”.
gros têm sido tratados ao longo da his‐ Petronilha coloca como segundo
tória. A resistência às políticas princípio, o reconhecimento de diferen‐
curriculares e a não aceitação de profes‐ tes grupos étnicos-raciais, que constitu‐
sores às suas propostas, são fruto da em a nossa sociedade. E sustenta a
construção de uma sociedade que cor‐ importância do COPENE, que permite
robora com desigualdades, a m de fa‐ “o convívio com pessoas de diferentes
vorecer alguns, em detrimento de regiões, falas, sotaques e experiências em
outros. A discriminação das relações, áreas do conhecimento”. Não existe um
que desquali cam pessoas e grupos rea‐ único pensamento, não existe valores
rmando privilégios. superiores e sim saberes, comportamen‐
“O Movimento Negro, com suas tos e pensamentos distintos que preci‐
proposições e realizações, tem construí‐ sam ganhar diálogo. “Igual valorização

74 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


possibilita o diálogo”, a rma. e oprimida, serviu-se dos con itos, dissi‐
O processo de colonização se pautou dências, revoltas e insurreições. A histó‐
pela hegemonia europeia, tida como uni‐ ria do cotidiano nos traz muitos saberes,
versal e que acaba por inferiorizar as cul‐ vivências de resistência e re-existência. A
turas e histórias dos africanos. Este é música, a literatura, a poesia, a religião e
justamente o terceiro princípio: o rompi‐ a culinária, são algumas das produções
mento com o conhecimento preestabele‐ de conhecimento. Reconstruindo iden‐
cido. Por décadas, quando se estuda o tidades, trazendo indagações, ressigni ‐
negro, fala-se mais da escravidão e das cando e politizando conceitos sobre a
mazelas sofridas, que da África, seus po‐ realidade social.
vos e suas riquezas étnicas e culturais. A Em 2018, o Brasil tem como data co‐
pesquisadora intercede pelo rompimento memorativa os 130 anos da Lei Áurea,
do conhecimento que se tem consenso o cialmente Lei Imperial n.º 3.353, san‐
em favor de uma produção própria. cionada em 13 de maio de 1888, abolin‐
A população africana, escravizada nas do a escravidão no país. Mas como
Américas, embora explorada, subjugada lembra Petronilha, “a verdadeira liberta‐

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 75


ção não está na lei, ela está se iniciando e a nossa produção”, esclarece. E com‐
com as ações a rmativas, com a produ‐ plementa rea rmando que “somos livres
ção de conhecimento a partir das nossas e a nossa história, nosso jeito de ser e a
experiências e a partir da nossa história”. nossa cultura é tão importante quanto a
Petronilha rati ca dizendo que a lei de‐ europeia”.
terminou o m do regime escravista mas, O objetivo então, é assimilar o que de
o povo negro será livre com a “deseuro‐ melhor as instituições de ensino podem
peização” do pensamento e da produção. oferecer, sem abandonar os conhecimen‐
A docente explica que o sentido de tos e sabedoria próprios. E assim, produ‐
pensar e apresentar, em pé de igualdade, zir novo sentidos para a educação o cial,
as produções cientí cas negras, não tem contribuindo com conhecimentos e valo‐
a intencionalidade de importar maior res das raízes histórico-culturais de seus
relevância, a nal, não se deve repetir, povos. A professora acredita que “en‐
justamente, o que se critica. “A nossa re‐ quanto cientistas enraizados na experiên‐
ferência é valiosa e nos ajuda a explicar as cia, devemos esforçar para que, com a
nossas experiências, nossos pensamentos nossa produção, possamos acabar com a

76 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


dominação europeia e os genocídios físi‐ ensão histórica para lutar para que a
cos e simbólicos dos povos negros”. produção cientí ca negra acabe com as
Petronilha explica que não é uma li‐ justi cativas para tratamentos desiguais
bertação para se tornar dominador. Pelo que vem desde a escravidão.
contrário, é importante pensar as lutas

E
antirracistas enquanto momento de li‐
bertação mas também de reconstrução, studar o racismo é
repensar a história em todas as suas di‐
mensões. “Na construção dos povos, na um desafio por causa
construção política, no jeito de pensar a
vida e a sociedade. Somos livres e a nos‐ da “tensão entre a
sa história, nosso jeito de ser e a nossa
cultura é tão importante quanto a euro‐
supremacia que exibe a
peia”. Conhecer para dialogar e para cri‐ fragilidade branca e a
ticar, não para se submeter.
O diálogo com outras produções e resistência e negra”
referências de igual pra igual, só é possí‐
vel enquanto comunidade, enquanto Referências:
grupo. Não como pessoas isoladas. “Nós BRASIL. CNE/CP. Parecer nº 3, de
negros, se a cada dia zermos nosso mai‐ 10 de Março de 2004a. Dispõe sobre as
or esforço, nesse momento seremos, Diretrizes Curriculares Nacionais para a
mais do que nunca, cientistas em movi‐ Educação das Relações Étnico-raciais e
mento” e rea rma a importância do para o Ensino de História e Cultura
COPENE, precisando que este é “um Afro-Brasileira e Africana.
território negro, um lugar de fortaleci‐ BRASIL. CNE/CP. Resolução nº 1,
mento”, onde centenas de estudantes, de 17 de Março de 2004b. Institui as Di‐
professores e pesquisadores debatem e retrizes Curriculares Nacionais para a
trocam saberes. Educação das Relações Étnico-raciais e
E sobretudo, produzem ciência a para o Ensino de História e Cultura
partir das particularidades, das experiên‐ Afro-Brasileira e Africana.
cias africanas e de descendentes de afri‐ SILVA, Petronilha B. G. Diálogos so‐
canos, dialogando com outras bre a Lei nº 10.639/2003. In: Ministério
referências, como as europeias. Há de se da Cultura. Fundação Cultural Palmares.
ressaltar o esforço destes cientistas enrai‐ Ciclo de Palestras sobre Cultura Afro-Bra‐
zados no conhecimento, nas histórias sileira: nosso patrimônio. Brasília, 2012.
das matrizes africanas, mas acima de tu‐ SILVA, Petronilha B. G. Lei nº
do com bagagem, sabedoria e compre‐ 10.639/2003 – 10 anos. 2013.

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 77


Fotos: Genivan Júnior

S EVERINO ELIAS NGOENHA NASCEU EM MAPUTO, NO ANO DE


1962. POSSUI GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA E DOUTORADO EM FI‐
LOSOFIA PELA UNIVERSIDADE GREGORIANA EM ROMA. NO ANO
DE 2010, INTEGROU-SE AO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA UNI‐
VERSIDADE PEDAGÓGICA DE MOÇAMBIQUE. É PROFESSOR ASSOCI‐
ADO DO DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E SOCIOLOGIA DA
UNIVERSIDADE DE LAUSANNE, SUÍÇA. SUAS PESQUISAS SITUAM-SE
NA ÁREA DE ANTROPOLOGIA, PENSAMENTO AFRICANO, FILOSO‐
FIA DA EDUCAÇÃO E INTERCULTURALIDADE.

78 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


A busca da liberdade
na construção das
africanidades
por Clarice Bertoni

Em conferência de encerramento, professor analisa o paradigma


que caracteriza o pensar africano

Nos últimos anos, o moçambicano a construção das africanidades. Severi‐


tem estado muito presente no Brasil. no acentua que “nós, africanos, fomos
Em Salvador, na Bahia, em São Paulo, tirados da África como escravos e sub‐
capital. E a questão que ele coloca é metidos, dentro do nosso continente”
“O que nós temos em comum? Africa‐ e por esse motivo, existe um paradig‐
nos, brasileiros, norte americanos, ca‐ ma, uma re exão de fundo, um axio‐
nadenses, jamaicanos e haitianos. ma, um postulado, que caracteriza o
Qual o paradigma que faz de nós uma pensar africano. Esse pensar africano,
comunidade epistêmica?”. E responde essencialmente, é a busca da liberda‐
frisando que depois de muita leitura, de. O pesquisador ressalta que não
muita investigação e muita re exão, diz liberdade, mas a busca da liberda‐
parece-lhe que o que temos em co‐ de negra. Na América, na África e na
mum, o que caracteriza a loso a afri‐ própria Europa.
cana e o pensamento africano é a O professor questiona sobre como
busca da liberdade. se inicia e como se desenvolve estas lu‐
Essa busca da liberdade parte en‐ tas libertárias dos povos negros. Ele
tão, de um pressuposto fundamental: ressaltando que costuma dividir a afri‐

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 79


canidade em quatro tipos de busca. O primeiro ti‐
po relatado por ele é a liberdade como emancipa‐

E
ção da escravatura. Severino esclarece que o

ntão, a luta processo que os africanos levaram a cabo para


emancipar-se começa nos Estados Unidos em

deixou de ser, 1865 e no Brasil em 1888 e que esta busca libertá‐


ria contra a escravatura tem muito em comum em
pelo reconhecimento de todos os países da diáspora.
Há uma pluralidade no “sofrimento do próprio
um direito prescrito na continente negro. Tem muito em comum com o

lei e passou a ser pelo que a professora Petronilha chamou de eurocentris‐


mo ocidental”. Severino explicita que a busca da li‐
reconhecimento de uma berdade contra a escravatura é um processo que
começa em 1492, quando os primeiros negros fo‐
ordem social ram transportados e chegaram a Boston. E que este
processo não parou por quatro longos séculos. Em
1865 o processo de escravatura começa a declinar
mas, quando acaba, começa um segundo processo.

80 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


O segundo processo, salienta o professor, seria a tras zonas, como na Jamaica e continuou nas amé‐
luta pela integração social. Os negros, apesar de se‐ ricas. Este processo se inicia no continente
rem juridicamente livres, apesar de serem libertos africano na segunda metade do século XX e só se
nas diásporas, continuaram a não se bene ciar da completa com a independência do Zimbábue e o
totalidade dos direitos civis. “Então, a luta deixou m do apartheid na África do Sul.
de ser, pelo reconhecimento de um direito prescrito A última busca é o que Severino chama de li‐
na lei e passou a ser pelo reconhecimento de uma berdade como desenvolvimento econômico, polí‐
ordem social” a rma Severino. Ele observa que este tico e social. “Nós, negros da África, somos o
processo de integração, ainda hoje carece de realiza‐ continente mais pobre, com as maiores di culda‐
ção. E admite que o negro no Brasil, conhece me‐ des”. Por esse motivo, o moçambicano reforça o
lhor do que ele os processos de discriminação. fato de que, na atualidade, o que deve ser confron‐
“Apesar de termos um século de história, o re‐ tado é uma forma de tirar o continente da situação
conhecimento dos direitos à integração social não de pobreza e miséria que se encontra, evidencian‐
se fez, não se realizou completamente” a rma o do a necessidade de se debater o futuro das socie‐
pesquisador, acrescentando que o terceiro nível de dades africanas, num contexto em que os próprios
liberdade é a liberdade como autodeterminação negros são chamados a ser mestres dos seus desti‐
política. O processo que começa no Haiti, levando nos e responsáveis pela construção de um futuro
os negros a independência, foi prolongado em ou‐ diferente.

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 81


Fotos: Marcos Reis
A NNY OCORÓ LOANGO POSSUI DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS PELA FACUL‐
DADE LATINO-AMERICANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - ARGENTINA (2014) E ATUA CO‐
MO PROFESSORA DA UNIVERSIDAD DEL SALVADOR (USAL). A DOCENTE TEM EXPERIÊN‐
CIA EM SOCIOLOGIA DA CULTURA E POLÍTICAS PÚBLICAS E ATUA COMO INVESTIGA‐
DORA DE PROJETOS EDUCATIVOS E POLÍTICAS SOCIAIS E DESENHO E IMPLEMENTAÇÃO
DE PROPOSTAS PEDAGÓGICAS. TRABALHA EM TEMÁTICAS AFRODESCENDENTES E
EDUCAÇÃO, RECONHECIMENTO, DIVERSIDADE CULTURAL E POLÍTICAS EDUCATIVAS
PARA A IGUALDADE RACIAL. ATUAMENTE FAZ PARTE DA EQUIPE DE PESQUISA DO PRO‐
GRAMA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR DE POVOS INDÍGENAS E AFRODESCENDENTES DA
AMÉRICA LATINA DA UNIVERSIDAD NACIONAL DE TRES DE FEBRERO (UNTREF) E É
BOLSISTA DE PÓS-DOUTORADO PELO CONSEJO NACIONAL DE INVESTIGACIONES CIEN‐
TÍFICAS Y TÉCNICAS (CONICET).

Cartografias de la etnoeducación. Un análisis crítico de los proyectos curriculares


en la escola media en América Latina y el Carib
Conferencista: Profa. Dra. Anny Ocoró Loango (CONICET/UNTREF, AINALC)
Coordenação: Prof. Dr. Benjamin Xavier de Paula (UFVJM/UFU)
Data: 15 de outubro

82 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


As novas
problemáticas da
produção do
conhecimento na
América Latina
por Marcos Vinícius Reis

A pesquisadora Anny Ocoró Loango traça panorama crítico sobre a


inclusão da história e dos saberes de povos negros e indígenas em
currículos escolares pela Etnoeducação

“Na América Latina, há populações a serem


combatidas, a não serem incorporadas dentro de seus
projetos nacionais”. É com essa fala que a Profa. Dra.
Anny Ocoró Loango, presidente da Associação de
Investigadores Negros da América Latina e do
Caribe (AINALC) e conferencista do X Congresso
Brasileiro de Pesquisadores Negros (X COPENE),
inicia sua exposição sobre as continuidades e
descontinuidades da etnoeducação latino-americana.
Durante a conferência, a pesquisadora traça uma
pertinente cartogra a social em torno das dinâmicas
de incorporação ou negação da história e do
pensamento dos povos negros e indígenas nos
currículos escolares da região. E, ao mesmo tempo,
aponta re exões e caminhos para a questão.

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 83


O ideal civilizatório historicamente empreendido
na América Latina, assentado em bases coloniais e
parâmetros eurocêntricos, produziu hierarquizações
e desigualdades sociais, políticas, econômicas e
culturais negadoras da diversidade. De um lado, os
povos brancos, considerados civilizados; e, de outro,
os povos negros e indígenas, ditos incivilizados ou
selvagens. “Há uma vinculação das populações
negras a uma escala mais inferior. E isso se traduz
também em falta de acesso a direitos e
oportunidades”, diz Loango. O processo de
invisibilização dessas identidades também se
estabeleceu no âmbito da escola, de nida pela
pesquisadora como um aparato de construção de
cidadania e reprodução ideológica. Ela destaca,
entretanto, que o tema não tem recebido a devida
atenção: “Não está problematizada de maneira
su ciente a forma como a escola sustenta práticas
racistas. E um desses instrumentos ou dispositivos
através dos quais ela tem consolidado ou sustentado
esse imaginário sobre as populações
afrodescendentes é o currículo.”
A educação e o currículo escolar desvelam
relações de poder não apenas entre professores e

84 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


alunos, mas também no que se refere ao recorte e à
inclusão de conteúdos. “Há uma grande
continuidade nesses currículos que tem a ver com
manter a subalternidade da história e dos aportes dos
povos afrodescendentes na construção dos projetos
nacionais na América Latina”, explica Loango. Ela
denuncia a invisibilização do pensamento e da
intelectualidade dessas populações, frequentemente
vinculadas apenas ao processo de escravidão. “Há
uma negação dos povos africanos e uma
naturalização disso. Negro não produz
conhecimento. Negro não tem epistemologia. Negro
é um sujeito desumanizado.” A conferencista aponta
que essa é uma estratégia de silenciamento
historicamente presente nos currículos latino-
americanos, os quais sempre trouxeram
representações parciais e incompletas da história
negra. No entanto, transformações (ou
descontinuidades) têm ocorrido nas últimas décadas.
Discussões e pressões por parte de movimentos

H
sociais e pedagógicos em prol de mudanças nos
currículos escolares (um processo que, segundo
Loango, vinculou-se ao multiculturalismo e ao á uma negação
interculturalismo) se desenrolaram e se consolidaram
nos anos de 1990, fazendo emergir novas dos povos
problemáticas, novos sujeitos e novas discussões na
escola e na pedagogia. “É um posicionamento sobre a
africanos e uma
diversidade e a inclusão, de pensar que a democracia
implica a incorporação de outros”, explica. Os
naturalização disso.
saberes e a história dos povos negros e indígenas Negro não produz
começaram a ser contemplados no interior dos
currículos, uma transformação que se deu em conhecimento. Negro
diversos países da América Latina, desde Costa Rica
e Panamá (onde se destacaram saberes
não tem epistemologia.
afrodiaspóricos), passando por Brasil, Colômbia, Negro é um sujeito
Equador, Venezuela, Bolívia e Argentina, até
Guatemala, Honduras e Nicarágua (onde a questão desumanizado.
Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 85
indígena adquiriu maior relevo). Nesse contexto,
segundo a pesquisadora, as narrativas hegemônicas
de identidade nacional mestiça, vinculadas a um
discurso de pretensa democracia racial que
contribuiu para a dissolução das identidades negras e
indígenas, começaram a retroceder.
Ao tratar mais especi camente da realidade de
cada país, Loango destaca a Colômbia, onde a noção
de etnoeducação foi proposta “para dar conta da

N
necessidade de reconhecer e valorizar os saberes, os
aportes e as epistemologias negras” e onde se
ão está consolidou, em 1998, uma cátedra de estudos afro-
colombianos. A Venezuela, por outro lado,
problematizada estabeleceu em 2006 uma cátedra de estudos
africanos que, à semelhança do que acontece no
de maneira suficiente a Brasil, expressa um diálogo direto e aberto com a

forma como a escola África. No Equador, saberes afrodiaspóricos


também foram incorporados ao currículo escolar e as
sustenta práticas mudanças se deram em nível constitucional. A
conferencista ressalta que, “se alguns (dos países
racistas. E um desses latino-americanos) não têm currículos ou leis
especí cas para incluir o currículo como um dos
instrumentos ou programas especí cos, todos têm a indicação de um

dispositivos através dos dia nacional para os afrodescendentes”. É o caso, por


exemplo, da Argentina (8 de novembro), do Brasil
quais ela tem (20 de novembro) e da Colômbia (28 de maio).
Ao trazer o olhar para as questões do mundo
consolidado ou globalizado do século XXI, a pesquisadora a rma
que o contexto latino-americano passa por
sustentado esse transformações importantes. Os avanços da

imaginário sobre as etnoeducação ocorridos nas últimas décadas


aconteceram na esteira de governos progressistas da
populações região. Agora, diante do crescimento de pautas
conservadoras e neoliberais, o tema é confrontado
afrodescendentes é o por novas discussões e embates. “O currículo é um

currículo. espaço de lutas e tensões porque distintos atores


querem ter participação nele”, diz Loango. “A

86 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


Foto: Gerson de Sousa

escola é um espaço onde se constroem negra na América Latina, a m de amparar a criação


subjetividades, onde se fabricam formas de ver o de ações a rmativas: “Fundamentar, por meio de
mundo e interpretá-lo. Nesse giro, apareceram uma história sobre o não acesso e a negação (do
discursos neoliberais que proclamam a liberdade de ambiente escolar e acadêmico), a necessidade de se
mercado e o recorte de conteúdos”. É o que tem abrir espaço para estudantes negros”. Deve-se, ainda,
acontecido, por exemplo, no Brasil e na Argentina, pensar em uma cartogra a intelectual do
países onde, segundo a pesquisadora, existem pensamento negro com perspectiva de gênero. Ao
propostas de reforma de conteúdos. “O currículo encerrar, Loango discorre sobre as preocupações que
não é neutro, não é a-histórico. Ele sempre está em se avolumam no horizonte latino-americano. “É
discussão com o que acontece na realidade (em que necessário voltar a pensar um currículo que eduque
está inserido)”, arremata. para a formação de uma cultura comum. Esse lugar
Nesse contexto, novos desa os se impõem à comum foi, durante a colônia e a época republicana,
etnoeducação e devem ser considerados. Loango diz eurocêntrico, monocultural e patriarcal. Agora,
que é necessário pensar em conteúdos que precisa ser edi cado a partir de outras perspectivas.
incorporem o pensamento e a tradição dos povos E, ademais, com a defesa fundamental dos valores
africanos do ponto de vista deles. É preciso, também, democráticos. A América Latina necessita hoje, mais
reconstruir e problematizar a história da educação que nunca, da defesa da democracia”, naliza.

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 87


H ÉDIO SILVA JÚNIOR, É DOUTOR EM
DIREITO PELA PONTÍFICA UNIVER‐
SIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (2003) E
MESTRE PELA MESMA INSTITUIÇÃO DES‐
DE (2000). ATUA COMO ADVOGADO DOS
CONSULADOS DE ANGOLA EM SÃO PAULO
E NO RIO DE JANEIRO E ASSESSOR CIENTÍ‐
FICO FAPESP. SUA ÁREA DE ATUAÇÃO
ABRANGE PRINCIPALMENTE TEMAS CO‐
MO: LIBERDADE DE CRENÇA, DIREITO IN‐
TERNACIONAL, AÇÕES AFIRMATIVAS,
RACISMO, EDUCAÇÃO IGUALITÁRIA, EN‐
TRE OUTROS. AUTOR DE TRÊS LIVROS, E
COM PARTICIPAÇÃO EM VÁRIOS OUTROS,
HÉDIO JÁ ATUOU PARA O GOVERNO DO
ESTADO DE SÃO PAULO COMO SECRETÁ‐
RIO DE JUSTIÇA E DEFESA DA CIDADANIA
ENTRE OS ANOS DE 2005 E 2006.

Apropriação de espaços públicos por


grupos religiosos e agravamento da
intolerância contra as religiões afro-
brasileiras
Conferencista: Prof. Dr. Hédio Silva
Junior - CEERT/FZ
Moderador: Profa. Dra. Isis Aparecida
Conceição – UNILAB
Fotos: Karla Natário Data: 15 de outubro

88
88 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018
Hédio Silva defende
a criação de uma
agenda propositiva
de Política de Estado
para negros
por Karla Natário
Um dia todos nós seremos livres, porque os brancos ainda estão
presos em seus preconceitos

Na Faculdade Zumbi dos Palmares, FAZP, entre os dia 15 de outubro, Hédio ministrou conferência e de‐
anos de 2006 a 2011, exerceu vários cargos, como o de bateu sobre o tema ao falar sobre a “Apropriação de
Coordenador do curso de Direito, Diretor Acadêmi‐ espaços públicos por grupos religiosos e agravamento
co, Coordenador do programa de pós-graduação e mi‐ da intolerância contra as religiões afro-brasileiras”, no
nistrou diversas disciplinas como: Direito Penal; X COPENE, em Uberlândia, Minas Gerais.
Direito Internacional; Introdução Jurídica; Institui‐ O X COPENE aconteceu dias antes do segundo
ções de Direito. Na Ordem dos Advogados do Brasil, turno presidencial. Diante deste contexto político a ex‐
OAB- SP, em 2005, trabalhou como Coordenador da posição de Hédio demonstrava extrema preocupação
Comissão de Direitos Humanos. Em 2006, pela Uni‐ quanto ao agravamento da intolerância racial negra no
versidade Metodista de São Paulo, UMESP, atuou co‐ Brasil, se Jair Bolsonaro fosse con rmado para a presi‐
mo professor acadêmico dência. Situação essa, hoje, con rmada. A preocupação
Há 130 anos da abolição da escravatura, e os negros do conferencista gira em torno de alguns fatos vivenci‐
ainda precisam lutar pela sua liberdade – de se expres‐ ados pela comunidade negra, através do preconceito
sar, de ser, de estar e de conquistar. O Brasil é comple‐ demonstrado pelos neopetencostais, sendo que a banca
xo, segundo o palestrante e conferencista Hédio Silva, evangélica é expressiva no Congresso brasileiro e apoia‐
um dos maiores ativistas da causa negra no Brasil. No da pelo já eleito, presidente, Jair Bolsonaro.

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 8


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E a preocupação não para na esfera religiosa. palestrante naliza a sua abordagem a respeito, a r‐
O Ministro Marco Aurélio que foi um dos pri‐ mando que: “o Estado tem a pretensão de dizer a ver‐
meiros ministros a adotar cota para negro no edital dade religiosa, mas isso é apropriação indevida nos
do Supremo Tribunal Federal, em 2001, disse que: espaços públicos. Por isso, sou contra, a princípio, do
“o Bolsonaro não quis ofender quilombolas com ensino religioso nas escolas públicas. Porque é da res‐
àquelas declarações.” A fala, do até então, deputado, ponsabilidade da família a educação religiosa. Educa‐
Jair Bolsonaro são lembradas pelo palestrante: “o ção religiosa é individual. Mas, eu acho que todas as
Bolsonaro falou que o povo do quilombo pesa por minorias religiosas têm direito de falar sobre a sua re‐
arrouba, que não serve nem para procriação.” ligião nas escolas.”
Os Ministros do Supremo Tribunal Federal Para demostrar o quanto isso é grave, Hédio, cita
(STF), recentemente, “rasgaram a Constituição e tra‐ como exemplo o caso de uma garota negra, que não é
tados internacionais ao liberar o Ensino Religioso da religião afro, que ao levar balas da festa de seu ani‐
Confessional.” Hédio se justi ca, lembrando que a versário para a escola. A menina foi surpreendida pe‐
Constituição Federal fala em Escola Confessional, e la professora quando as estava oferendo para seus
o artigo 206 da referida Constituição esclarece que, é colegas de sala. A professora não permitiu que a me‐
papel da educação a formação para o trabalho, o de‐ nina agradasse seus colegas com as guloseimas, mas
senvolvimento integral da pessoa e o preparo para a também não explicou o motivo. No entanto, nem foi
cidadania. Não é o preparo para a con ssão religiosa. preciso, pois o constrangimento causado foi demasi‐
Então, não é compatível a ideia de ensino confessio‐ ado grande para a pequena, que se viu alvo do pre‐
nal com escola pública. De acordo com a Constitui‐ conceito e intolerância religiosa. A menina relatou o
ção, “o Estado Civil é oposição ao Estado religioso”, caso para a família, através de uma carta, que nos di‐
rati ca o expositor. zeres dela, temia que os pais evangélicos julgassem
O advogado salienta ainda que a escola pública re‐ que as balas fossem da festa de São Cosme e Damião,
cebe alunos de todas as religiões: ateus, mulçumanos, festa tradicional das religiões afro. Mas, na verdade,
judeus e por aí vai. Portanto, Hédio a rma que “não eram do aniversário da menina que aconteceu na
se pode subordinar as pessoas as suas religiões.” O noite anterior.

E
Casos assim, não parecem graves aos olhos dos
brancos que nunca vivenciaram esse tipo de situação
u não sei e que podem até dizer: “ah, foi um equívoco da pro‐

aquilatar qual fessora. Um julgamento infeliz.” Sim! Foi um julga‐


mento infeliz, mas que representa as pequenas
será o preço que o Brasil al netadas que todos os dias a comunidade negra le‐
va e que demonstra o total desconhecimento do que
vai pagar pelo nível de vem a ser uma religião afro, não conseguindo separar
o cidadão da sua escolha religiosa.
enraizamento por esse Ao aprofundar a temática sobre o impacto de

discurso de ódio preferências religiosas pelo Estado, Hédio, comenta

90 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


sobre a sua preocupação com um possível projeto de pisasse no corredor iria passar o gilete na cara dela.”
poder, pois já existem vários servidores públicos que O palestrante a rma a sua extrema preocupação
são neopentecostais e estão atuando, com seus julga‐ com um projeto de poder em curso, justi cando
mentos religiosos, tendenciando ações judiciais, ne‐ que a tendência é que o negro, de religião afro, seja
gando-se a atendimento médico, dentre outras prejudicado. Hédio cita o Princípio Público de Im‐
situações reprováveis.O advogado apresenta Dois pessoalidade, dizendo que “as crenças e valores não
exemplos para exempli car essas situações. podem interferir na execução da atividade. Pois isto,
Há algum tempo aconteceu um fato com um su‐ contamina a Administração Pública,” dando a se‐
jeito, paramédico, que foi atender uma pessoa que es‐ guinte informação: “a função de conselheiro tute‐
tava agonizando na rua. Quando ele chegou para lar, na cidade de São Paulo, é exercida por dois
fazer o atendimento vê a escari cação - que são pe‐ terços de neopetencostais.”
quenas incisões no plano da epiderme que a pessoa Esclarece que, como 10% tda população brasilei‐
faz quando é iniciada em um segmento do candom‐ ra são de convicção losó ca ateia ou agnóstica. E a
blé. O paramédico disse que, por ser da “macumba” Constituição assegura a eles o direito de cultivarem
não iria atender o moribundo. os seus valores, ao mesmo tempo que, os 90% dos
No interior de São Paulo, uma Iyalorixá – também brasileiros que possuem uma crença, ou seja, reli‐
conhecida como mãe de santo, é sacerdotisa e chefe de gião, de também poderem se expressar através dela.
terreiro de candomblé - está sendo acusada de maus O palestrante a rma: “o sentimento religioso é algo
tratos a uma criança. O Ogan – sacerdote escolhido muito valioso para o indivíduo.”
pelo Orixá (que é deus africano com referência a natu‐
reza) para car lúcido nas reuniões - da casa separou da
mulher e pediu para a Iyalorixá cuidar da criança. Em
um determinado dia houve um problema com essa
criança e a Iyalorixá assume que a agrediu. A menina
vai para a escola com a marca da agressão.
A criança é diabética, e a Iyalorixá compra em
uma farmácia um aparelho para medir o nível de gli‐
cemia da menina, mas que faz a pulsão, ou seja, mar‐
ca a pele. No processo, o laudo laboratorial con rma
o diagnóstico de diabetes da garota. A professora da
menina, que é neopetencostal, vê os hematomas e
aciona o conselheiro tutelar, neopetencostal, que le‐
va o caso para a polícia, e quem assume o caso, o de‐
legado que também é neopetencostal. Resultado,
Iyalorixá está com 8 anos de prisão. E, até o momen‐
to, ela precisa car dentro da sela, pois a líder da gale‐
ria é neopetencostal e disse a ela que “no dia que ela

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 91


A Carta sobre Tolerância de Locke foi citada pelo E as pessoas vão repetindo aquilo, as pessoas vão re‐
advogado para lembrar que “não pode uma con ssão produzindo aquilo. Todos os males da humanidade
religiosa qualquer dizer que a outra é que é verdadei‐ se devem a macumba: O sujeito é impotente, é o en‐
ra.” Apesar de ser da própria natureza da narrativa costo. Trincou a dentadura da pessoa, é o encosto. O
religiosa a rmar a sua verdade. “Mas, você não preci‐ aquecimento global, é o encosto. A mulher é frígida,
sa para a rmar a sua própria verdade, desquali car, é o encosto.” Assim, ele levanta a seguinte questão:
constranger, dispensar o tratamento ultrajante, hu‐ “Qual o espaço que nós vamos ocupar a partir do
milhante, constrangedor a quem professa outra reli‐ próximo ano?”
gião, lembra o conferencista. O conceito de E de forma muito lúcida, Hédio diz sobre os
tolerância sob a égide do Direito Internacional Pú‐ equívocos da militância negra de entregar a agenda
blico foi comentando pelo palestrante: ”Tolerância é negra para o branco: “com o desmonte do PT, o ne‐
coexistência de maneira harmoniosa. Respeito, eu gro vai pagar um preço muito alto.” Portanto, nós
posso evitar o contato.” “precisamos criar uma agenda propositiva de Política
Hédio fala sobre o direito de resposta que as tra‐ de Estado, de Política Pública, que não seja entregue
dições de matriz afro têm direito de fazer pelo canal para o governo, para nenhum branco bacana – uma
de televisão Record. Há 15 anos se arrastava uma agenda perene”, esclarece o expositor.
questão judicial entre a Rede Record de Televisão e Contudo, o mercado está atento ao segmento ne‐
representantes da umbanda, do candomblé e de ou‐ gro e para as questões raciais. O palestrante cita al‐
tras tradições de matriz africana. O que motivou a guns exemplos de produtos para comprovar o
ação judicial foram as “as ofensas exibidas nos pro‐ aquecimento do mercado afro brasileiro. No merca‐
gramas da Record, a mais frequente é chamar sacer‐ do encontramos vela de 7 dias com imagem de Iema‐
dotes da umbanda e do candomblé de pais e mães de já – Orixá feminino - que normalmente é com a
encosto e tratar os orixás como demônios. A senten‐ imagem da Nossa Senhora da Aparecida; na farmácia
ça prevê, entre outras sanções, a exibição na grade das já tem um setor exclusivo para negros; a Band vai ter
emissoras de 16 horas de programação de conteúdo um programa para negro com o Netinho. Trata-se de
positivo e a rmativo sobre cultura e religiões de ma‐ um mercado lucrativo, portanto, o expositor chama a
triz africana.” atenção: “é preciso repensar, com gravidade e serieda‐
E lembra que, em 2017, a revista de negócios e de, o que a comunidade negra tem proposto.” E o
economia estadunidense, a Forbes divulgou que al‐ advogado ainda a rma que “quem dividiu o Brasil
guns dirigentes religiosos do Brasil guram entre os entre preto e branco foi o racismo, e não foi o PT co‐
mais ricos do mundo. E que nenhuma religião tem o mo estão dizendo”.
direito de utilizar um meio de comunicação social, Hédio está pessimista e otimista com relação ao
que é um serviço público, para propagar o ódio. O próximo período. Pessimista, porque ele acredita que
advogado desabafa: “Eu não sei aquilatar qual será o as “coisas” vão piorar. Mas otimista, porque a “ma‐
preço que o Brasil vai pagar pelo nível de enraiza‐ cumba” está vendo que não adianta car esperando,
mento por esse discurso de ódio. E ele está presente porque “a intolerância religiosa existe e uma hora vai
em todos os lugares. E ele está presente todos os dias. bater na sua porta.” As pessoas das religiões afro co‐

92 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


meçam a se reunir para fazer política, para falar de re‐ culdade ele sente em assumir a sua religião, então vai
sistência, para falar de ativismo, porque agora vai ga‐ para a neopetencostal.
nhar vulto todo sentimento racista que estava oculto Hédio demonstra possuir conhecimento, senti‐
sob a epiderme social. E, novamente, o advogado ra‐ mento e abertura para mostrar a verdade sobre a reli‐
ti ca: “Há a sinalização de Brasília que liberou geral. gião afro. Tanto que sempre ao se referir à sua
E é como nosso povo, preto, pobre, com o macum‐ religião brinca chamando-a de macumba. Esta es‐
beiro que sai com a sua roupa para rua.” pontaneidade com relação a palavra macumba cou
Hédio lembra que participou da análise de uma evidente quando, no nal do seu momento de fala,
pesquisa em que foi feita a análise do per l do indiví‐ ele comenta sobre a urgente necessidade de “desde‐
duo que busca a religião afro, estrati cada por cor, monização do termo macumba”.
renda e escolaridade. Os dados colhidos foram da re‐ Macumba é um instrumento musical, e macum‐
gião Sudeste entre os anos de 2000 a 2010. Os resul‐ beiro quem tocava este instrumento. Esta foi a pri‐
tados mais relevantes da pesquisa supra citada são os meira associação para o nome macumba.
seguintes: mais de 42% dos religiosos são de matrizes Atualmente, este nome é associado erroneamente a
afro; 60% são brancos; e 30% possuem renda superi‐ rituais satânicos ou de magia negra. Essa modi cação
or a 3 salários, com educação superior completa ou de sentido teve início na década de 20, do século XX,
incompleta. quando as igrejas cristãs do país começaram a falar
Outro dado importante revelado pela pesquisa é negativamente sobre os ritos e crenças da macumba,
que o negro vai para a macumba, ou seja, assume a divulgando-as como profanas à leis Deus.
sua religiosidade, quando tem mais escolaridade e
mais renda nanceira. Isto é o mesmo que dizer que, Fonte internet:
com o empoderamento, o negro sente-se seguro para EDUCALINGO. 2018. Iemanjá. https://educalingo.‐
assumir a sua religiosidade espontaneamente. Quan‐ com/pt/dic-pt/iemanja > Acesso em 20/11/2018.
to mais vulnerável, socialmente, é o negro, mais di ‐ EDUCALINGO. 2018. Ogan. https://educalingo.‐

P
com/pt/dic-pt/ogan > Acesso em 20/11/2018.
EDUCALINGO. 2018. Orixa. https://educalingo.‐
recisamos criar com/pt/dic-pt/orixa > Acesso em 20/11/2018.

uma agenda FABIO. 2010. Macumba. Disponível em:< https://


www.dicionarioinformal.com.br/macumba/> Acesso em

propositiva de Política 20/11/2018.


GELEDES. 2014. O que é macumba. Disponível
de Estado, de Política em:<https://www.geledes.org.br/o-que-e-macumba / >
Acesso em 20/11/2018.
Pública, que não seja THOTH3126. 2017. Os pastores mais ricos do Brasil,

entregue para o pela Forbes. Disponível em:<https://thoth3126.com.br/


os-pastores-mais-ricos-do-brasil-pela-forbes/ > Acesso em

governo 20/11/2018.

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 93


Fotos: Felipe Viana

J OEL ZITO ARAÚJO NASCEU, EM 1954, NO MUNICÍPIO DE LAGE‐


DÃO NANUQUE, MG. É CINEASTA, ROTEIRISTA, PRODUTOR,
ESCRITOR E PESQUISADOR. DOUTOR EM CIÊNCIAS DA COMUNI‐
CAÇÃO PELA ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES DA UNIVERSI‐
DADE DE SÃO PAULO - ECA/USP, CONCLUIU O PÓS-DOUTORADO
E ATUOU COMO PROFESSOR CONVIDADO NO DEPARTAMENTO
DE RÁDIO, TV E CINEMA DA UNIVERSIDADE DO TEXAS EM AUS‐
TIN, NOS ESTADOS UNIDOS. DIRIGIU 29 CURTAS E MÉDIAS DOCU‐
MENTAIS E FICCIONAIS TEMATIZANDO O NEGRO NA SOCIEDADE
BRASILEIRA.

O cinema brasileiro e a insurgência negra


Conferencista: Prof. Dr. Joel Zito de Araújo
Coordenação: Prof. Dr. Pedro Barbosa - UFG/PPGAS
Data: 16 de outubro

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A explosão do
cinema negro
no Brasil
por Clarice Bertoni

Joel Zito de Araújo analisa a insurgência e os obstáculos aos


cineastas negros em um país que recusa assumir a existência
social do racismo

Em 1999, nalizou seu primeiro longa para te‐ mentário “Cinderelas, Lobos e um Príncipe En‐
levisão, o documentário "O Efêmero estado União cantado”, que em sua semana de lançamento no
de Jeová". Dois anos depois, lançou “A Negação canal GNT, obteve 1,5 milhão de espectadores.
do Brasil”, sobre a trajetória do personagem negro Dirigiu o programa “Espelho” no Canal Brasil,
nas novelas brasileiras, com impressionante traba‐ apresentado por Lázaro Ramos. Em 2013 lançou
lho de pesquisa que deu origem a um livro homô‐ o documentário “Raça”, co-dirigido pela vencedo‐
nimo. Foi escolhido melhor lme brasileiro do ra do Oscar Megan Mylan. Interessado no estreita‐
Festival Internacional de Documentários É Tudo mento cultural entre o Brasil e a África, tem
Verdade daquele ano, sendo selecionado para festi‐ desenvolvido projetos de cinema para serem roda‐
vais no Brasil e no exterior. dos nos dois lados do Atlântico. Criou e coorde‐
Joel Zito nalizou seu primeiro longa de cção nou com o cineasta cabo-verdiano Leão Lopes o
em 2004, “As Filhas do Vento”, que arrebatou oito curso de Pós-Graduação Lato Sensu de cinema de
prêmios no Festival de Gramado, entre eles os de Cabo Verde para estudantes africanos, brasileiros
melhor lme segundo a crítica, diretor, ator e e portugueses.
atriz. Na Mostra de Cinema de Tiradentes, foi es‐ Joel Zito de Araújo tem um lugar privilegiado
colhido melhor lme pelo público e participou de para acompanhar a insurgência do cinema negro
festivais fora do país. Em 2009, lançou o docu‐ no Brasil. Não só pela sua história e militância,

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 95


mas também pelos anos de experiência um diretor começa a se repetir, a não
como curador do “Encontro de Cine‐ ter mais nada novo pra dizer, sente
ma Negro Zózimo Bulbul” e pelo fato que o tempo passou e que quem traz a
de estar no júri de muitos festivais de novidade são os outros.
cinema. Observador interessado por Joel Zito é enfático ao considerar
esse surgimento de jovens intelectuais que, felizmente, do ponto de vista
da cultura negra, acredita ser portador narrativo não envelheceu. Em 2019
de uma “boa nova e de quão profundo vai lançar o lme “Meu amigo Fela”,
e forte é essa insurgência”, explicita. que conta a história do músico nigeri‐
O cineasta diz que o medo de todo ano Fela Kuti e sua relação com o bió‐
artista, quando passa os anos, é o en‐ grafo e escritor cubano Carlos Moore.
velhecimento de ideias e da criativida‐ O diretor teve que negociar 112 direi‐
de. Porque ator tem mais medo do tos autorais e está há um ano e meio
envelhecimento físico do que os dire‐ nessa empreitada, pois existem ima‐
tores. “Os diretores não têm medo do gens de arquivo de outros países, o
branqueamento dos cabelos, da barri‐ que torna a negociação morosa. O l‐
ga que começa a crescer. O complica‐ me está pronto, mas precisa ser re‐
do é o envelhecimento estético, o montado a partir dos direitos que
envelhecimento narrativo e o envelhe‐ foram aprovados.
cimento das ideias”. Versa que quando É importante registrar que o cinema

E
negro não alcançou o grande público e
ssa insurgência que o lme brasileiro que chega nas sa‐
las de cinema, no canal nobre a cabo,
urbana, da mulher na Net ix, não trouxe a insurgência ne‐
gra que desponta, especialmente nos
negra, da bicha preta, da últimos dois anos. “Essa insurgência

diversidade sexual negra. urbana, da mulher negra, da bicha pre‐


ta, da diversidade sexual negra. Meu so‐
Meu sonho é que isso possa nho é que isso possa ser traduzido em
histórias com um tipo de narrativa que
ser traduzido em histórias atinja o público, que atraia o público”,
revela o cineasta que exibiu quatro de
com um tipo de narrativa seus lmes no cinema.

que atinja o público, que Foram nos encontros de cinema ne‐


gro, criado por Bulbul há 11 anos, que
atraia o público Joel Zito pode observar que a caracte‐
rística predominante das produções

96 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018


era de um painel feito para a África. há muitos obstáculos para que essas
“Haviam poucos lmes brasileiros. produções cheguem às telas.
Não porque o Zózimo não queria, A participação dos negros nos gran‐
mas porque se produzia pouco. A des festivais de cinema é recente, se ini‐
maioria dos lmes eram estrangeiros” ciou há cinco anos, em Recife, com o
explica. Ele ressalta que com o passar lme da diretora Sabrina Rosa “Vamos
dos anos o per l foi se transformando fazer um brinde”. De lá para cá, a pre‐
e há três edições se equilibrou o núme‐ sença cresceu e Joel Zito atribui essa in‐
ro de lmes brasileiros e estrangeiros. surgência ao Festival de Brasília de
O curador esclarece que na edição 2017. “Não só pela qualidade e quanti‐
de 2017, mais de 70 lmes brasileiros dade de lmes que participou, mas pela
se inscreveram. E que este ano o nú‐ presença de jovens negros como plateia,
mero de inscritos mais que dobrou, participando dos debates. Foi essa pre‐
182 no total. Esse aumento de produ‐ sença, entre eles um crítico do cinema
ção do cinema negro re ete a política negro, o Juliano Gomes, que fez uma
de cotas. Não só nos cursos de cinema diferença enorme”, esclarece.
e audiovisual, mas de sociologia tam‐ A polêmica do festival girou em
bém, propiciando o que o pesquisador torno do lme da diretora Daniela
chama de uma explosão do cinema ne‐ Thomas, “Vazante”. O lme se passa
gro. Entretanto, ele acredita que ainda por volta de 1840, na região do Serro,

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 97


contado dessa forma. O questionamento se pela
discrepância de um lme com 80% de negros, não
ter um equilíbrio narrativo entre negros e brancos.
E pelo uso de uma perspectiva negra de submissão
e subserviência, exempli cada por Joel Zito pelo
líder africano. Único negro que se rebela e sai em
fuga, ao encontrar o senhor desmaiado, coloca este
nas costas e leva-o de volta. “É muito equivocada a
leitura da rebelião negra. É um lme que coincide
com a história o cial como é contada”, declara.
A história da abolição foi muito tempo contada
como um produto da consciência de uma parcela
dos brancos e Joel Zito atribui isso ao arquétipo da
princesa Isabel. “A imagem construída de que a
abolição foi uma ação da princesa bondosa se repete
interior de Minas Gerais. Entre os atores, 80 % do não só nas histórias do período escravocrata”. A jo‐
elenco é composto por escravos negros e o restante vem branca e bondosa é a premissa de muitas histó‐
pelos moradores da casa grande. A história é con‐ ria. Está presente em Sinhá Moça e até mesmo nas
tada a partir de uma sinhazinha que tem uma re‐ histórias recentes. Regina Duarte fez vários papéis
volta feminista diante da opressão patriarcal, ao nesse sentido, em um deles seu lho negro era víti‐
ser obrigada a se casar com o senhor de escravos da ma de racismo e quem brigava contra o racismo era
região. No decorrer do lme, as relações da senzala ela, porque o lho minimizava o problema.
com a casa grande são apresentadas. José Zito acredita que esse é “o erro de Vazante
Joel Zito argumenta que a diretora, pela sua ex‐ e foi essa compreensão que os jovens negros que
periência e qualidade técnica, criou a expectativa estavam lá tiveram do lme, provocando a polêmi‐
de que estava sendo duplamente revolucionária: ca”. No debate, Daniela recebeu a crítica de forma
“primeiro por estar contando uma história femi‐ desarmada e falou que se zesse o lme atualmen‐
nista e; segundo porque o lme questiona a ideia te, que faria de forma diferente. Porém, poucos di‐
da miscigenação Gilberto Freiriana, baseada no as após o festival, a Revista Piauí cedeu um espaço
bom senso, na sensualidade, no coito gostoso en‐ para que ela escrevesse suas impressões e o que ela
tre o senhor da casa grande e a escrava”. Porém, “o dispôs só piorou a situação. “Porque ela revelou a
nal é uma tragédia e o lme faz um questiona‐ sua concordância com essa aristocracia intelectual
mento sobre a ideia de que a miscigenação do Bra‐ brasileira branca, que percebe o mundo de forma
sil nasceu desse intercurso sexual entre o senhor e muito diferente”, rati cou o cineasta.
as negras da senzala”, conclui. O diretor coloca que os seus pares brancos, a
O diretor acredita que esse tipo de história so‐ classe cinematográ ca, reagiram mal a questão. E
bre a população negra é ridículo e não deve ser argumenta que “quando você despreza você reco‐

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nhece a existência, mas quando você inviabiliza, é um cineasta negro, porque os critérios não são por
ainda mais duro”. A atitude dos meios de comuni‐ mérito, mas por relações de classe, network. Po‐
cação no caso do lme é exatamente a mesma da rém, o diretor ressalta que o patrocínio privado e
época das cotas raciais. A grande mídia não quis com base nas leis de incentivo está cada vez mais
ouvir o pensamento dos cineastas negros, assim escasso e que os lmes que têm sido feito, são rea‐
como não chamou aqueles que escreveram o pro‐ lizados com o dinheiro do fundo da Agência, que
jeto de cotas pro debate e assim “os brancos fazem nalmente passou a ter negros em suas comissões.
de conta que a aprovação foi uma abordagem deles Muitos realizadores negros foram aprovados esse
e não uma conquista do movimento negro”, com‐ ano e consequência disso será um aumento do nú‐
plementa o pesquisador. mero de lmes nas salas de cinema. Pessimista com
O lme foi um fracasso de público nos cine‐ relação ao futuro, o cineasta a rma ser portador de
mas. Mas esse insucesso não se deu porque o pú‐ uma notícia boa e uma ruim: “a boa é que hoje nós
blico concorda com a insurgência negra, mas podemos falar que existe um movimento de cinema
porque quem assiste lmes no nosso país não está negro, cada vez mais premiado e reconhecido. A má
interessado no cinema negro. Então, se um branco é que eu já não sei qual vai ser a realidade ano que
fala da questão racial e é polemizado, ele também vem. Daqui a um ano, esse papo de insurgência vai
não quer ver. O público que vai a sala de cinema ser uma saudade do passado” e naliza se denomi‐
procura um escapismo dos lmes leves. “Podem nando um memorialista do seu tempo.

P
até ver um lme sobre racismo que se passa nos
Estados Unidos, mas ele não vai ver um lme so‐
bre racismo que se passa no Brasil. Porque na ca‐ odem até ver um
beça dele lá pode até ter racismo, mas aqui não
existe”, ressalta Joel Zito. filme sobre
A importância da presença dos jovens negros
nos debate do Festival de Brasília, se deram pelas racismo que se passa nos
mudanças de paradigmas causados na Agência Na‐
cional do Cinema (Ancine), que se viu obrigada a
Estados Unidos, mas ele
movimentar e reconhecer as pesquisas históricas não vai ver um filme
que o próprio Joel Zito tinha feito anteriormente,
atestando que a representação da população negra sobre racismo que se
no cinema é proporcionalmente absurda. O nú‐
mero de atores negros é baixo e que quando se me‐ passa no Brasil. Porque
de os realizadores é ainda menor.
A Ancine constatou que em 2016, houve ape‐
na cabeça dele lá pode
nas 2 % de realizadores negros nas telas de cinema. até ter racismo, mas
Ainda mais cruel é o fato de que nenhuma mulher
negra dirigiu um lme naquele ano. É difícil ser aqui não existe
Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 99
A MINHA VIDA TODA EU TRABALHEI PARA OS OUTROS. ENTÃO ACABEI PERCEBEN‐
DO QUE EU PODERIA ME SUSTENTAR FAZENDO O MEU, DO MEU JEITO, COM A MI‐
NHA CARA E COLOCANDO O MEU POVO NAS IMAGENS”. A FRASE É DE CRISTIANE
ALVES AO NARRAR O INÍCIO DE SUA CARREIRA COMO AUTÔNOMA. EM 2006, CRISTIA‐
NE ERA PROMOTORA DE VENDAS E WAGNER, SEU COMPANHEIRO E SÓCIO ATÉ HOJE,
TRABALHAVA COMO FUNCIONÁRIO PÚBLICO. OS DOIS DEIXARAM SEUS RESPECTIVOS
EMPREGOS, E COMEÇARAM A FABRICAR AS PRÓPRIAS PEÇAS DE ROUPAS. A ARTE E OS
DESENHOS NAS ROUPAS ERAM PRODUZIDOS POR WAGNER.
Fotos: Sara Camelo

Feira de empreendedorismo
Data: 12 a 17 de outubro

1100
00 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018
Memórias de jornadas
autônomas em prol
da representatividade
negra
por Sara Camelo

A feira de empreendedorismo do Copene reuniu histórias de luta


pela independência financeira

Cristiane sofreu di culdades no caminho como vidade de seu trabalho para os jovens, e acredita que é
empreendedora. Ela conta que a primeira oposição espelho para outros novos empreendedores. Cristiane
encontrada no mercado é por você ser negra: “se vo‐ ensina e aprende com cada um, pois a cada lugar que
cê vai fazer um empréstimo você sofre discrimina‐ visita, ela é impactada com novas pessoas, culturas e
ção”, relata. Para ela todos os benefícios que um ensinamentos distintos. “Acredito que essa é a verda‐
empreendedor branco tem você não tem, ou se tem, deira riqueza do que faço.”
é menor. História semelhante é a de Ana Cristina, que te‐
Djungo é um dialeto axante que signi ca respei‐ ve a necessidade de construir uma carreira autôno‐
to mútuo. “Quando eu falo você fala e rainha, e vo‐ ma e por conta disso abriu uma pequena loja de
cê diz você diz que eu sou sua rainha.” ressalta a roupas. Para ela, o povo negro é educado para gerar
empreendedora. Esse é o nome da grife de Cristiane a economia do outro, e não a própria. “Queria
que já tem 12 anos. “A união da irmandade negra mostrar para as pessoas que o povo negro pode ser
deve prevalecer, e tento repassar essa mensagem de independente e que temos talento. Sabemos produ‐
respeito começando pelo nome da minha marca.” zir tanto quanto qualquer um. Queria independên‐
Ao ser questionada sobre a realização pro ssional a cia nanceira e pessoal”, explica a empreendedora.
empreendedora argumenta: “Meu trabalho me pro‐ Ana não tem mais horário para ir ao banheiro ou
porciona em leque de conhecimento e experiências.” para comer, hoje em dia ela faz seu próprio horário
Ela se alegra quando fala sobre o papel da representati‐ e é muito feliz por isso.

Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018 101


101
Assim como Cristiane, Ana Cristina encontrou
vários obstáculos pelo caminho. “Se para os grandes
empresários já é difícil, para nós é mais difícil ainda”,
questiona. Há alguns anos ela entrou para um coleti‐
vo de mulheres que tem por objetivo contribuir para
a união de empreendedoras negras. “Se alguma ca
sabendo de um evento em um lugar, é passado para o
restante do grupo e as meninas se organizam. Uma
ca responsável pela estadia, outra pelas passagens. Se
uma não pode uma outra leva o produto de uma pa‐
ra comercializar”, explica.
Ana acredita que a busca pela identidade é resistên‐
cia. Ela quer mostrar que as mulheres negras produ‐
zem moda para outras mulheres negras, e se sustentam
por meio de seu próprio trabalho. “Nossas estampas e
o nosso estilo é para mulheres gordas, mulheres ne‐
gras, mulheres normais, mulheres reais", relata.
Cida Mayer foi diagnosticada com depressão há
dois anos, e como forma de terapia começou a de‐
corar potes de sorvetes que tinha em casa. A arte
ajudou dona Cida a controlar sua doença, e apre‐
sentou a ela uma produção cultural que ela não sa‐
bia que existia.

T er uma mulher
negra comprando
um tecido africano, de
uma pessoa negra, faz o
dinheiro circular onde
normalmente ele não
circula
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Hoje, Cida faz doações de seu trabalho para
OGNs todos os nais de ano, e se sustenta com gran‐
de parte do dinheiro que recebe com seu artesanato.
“Eu acho meu trabalho importante para as pessoas
negras reconhecerem que tem uma cultura linda e se
inspirarem a partir dela”, a rma a artista.
Luiz Augusto cresceu em uma família que sempre
trabalhou com artesanato. Sendo assim, desde pe‐
queno ele está inserido nesse universo de produção
manual. Aos 15 anos Sr. Luiz e o irmão começaram
a pintar camisetas como Hobby. Hoje Luiz tem 50
anos e ainda sobrevive da arte que aprendeu com o
irmão 35 anos atrás.
“Uma das di culdades no trabalho autônomo é
que você acaba assumindo todos os tipos de riscos.
Mas eu posso te dizer que é mais felicidade do que
tristeza”, conta o pintor. Ele se sente realizado, pois
sua arte o leva para o mundo. Ele não se vê limitado a
um só lugar.
Assim como o irmão de Sr. Luiz, Dona Nilsa ins‐
tigou a irmã a entrar para o mundo do artesanato.
“Eu sempre chamava ela pra fazer, mas ela nunca ia.
Ai teve um dia que eu chamei ela e disse: “senta aqui,
vamos aprender.” Desde então ela nunca mais pa‐
rou.” Juntas elas produzem colares maravilhosos que
fazem parte da renda mensal da família.
Quando os negros vieram escravizados para o Bra‐
sil, a única coisa que eles tinham era a roupa do corpo.
Como cada lugar de África produz um tipo de tecido
e estampa, eles se reconheciam por conta da roupa que
trajavam, pois seus dentes eram arrancados, e seus ca‐
belos cortados. Senso assim, a única forma de identi ‐
cação era por meio dos tecidos que usavam.
O tecido africano aqui no Brasil se tornou um im‐
portante elemento de identi cação das populações ne‐
gras. E o que fez muita dessas nações não morrerem e a
perduração das religiões de matrizes africanas.

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A mulher negra ela
não se enxerga na
história. Sendo assim, a
valorização da estética é
algo importante porque a
estética da mulher negra
também nos foi negada
Esse processo de identi cação e reviver da ances‐
tralidade é ponto central para Vitória de Paula, que
trabalha há 3 anos na confecção de acessórios. “A
mulher negra ela não se enxerga na história. Senso as‐
sim, valorização da estética também é algo muito im‐
portante, porque a estética da mulher negra também
nos foi negada.”, explica.
A maioria dos acessórios que Vitória produz são
de material reciclável. Então ela oferece cursos para a
geração de renda de outras mulheres que desejam en‐
trar na área. Vitória entende que ter uma mulher ne‐
gra comprando um tecido africano, de uma pessoa
negra, faz o dinheiro circular onde normalmente ele
não circula.
Os acessórios que Vitória produz são peças exclu‐
sivas. Ela defende que ninguém é igual ao outro, e
que não temos a necessidade de usar algo só porque
todo mundo usa. Segundo ela, cada um pode usar o
que quer de acordo com o que se identi ca. “A partir
do momento que uma coisa é produzida pensando
em você, você sabe que um pouquinho de você está
naquele objeto, isso é o que eu acho mais interessan‐
te.”, diz a empreendedora.

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A bibliotecária Vânia Moreira concorda com Vi‐ a marca da amiga Mônica Anjos na feira de empreen‐
tória; ela diz que o acesso a informação faz com que dedorismo do Copene. Rosangela explica que a mar‐
as pessoas, principalmente as negras, conheçam a ca não foi criada para um determinado grupo de
própria história e cultura. “Eu até brinco falando pessoas, mas sim para pessoas que têm identidade.
que eu sou recém negra, porque de uns anos pra cá “Se você coloca a roupa e se identi ca, está linda!”.
que comecei a me empoderar e a lutar por represen‐ Para Rosangela a di culdade é predominante em
tatividade.”, relata Vânia. todas as áreas por conta da intolerância que ainda
Para a advogada Rosangela Oliveira, a exaltação existe. Entretanto, é necessário resistência. "A di cul‐
da irmandade negra é algo de extrema importância. dade tem a sua importância por que aprendemos
Por conta disso, ela veio de Salvador (BA) representar com o erro para prosseguirmos adiante”, questiona.

Q ueria mostrar para as pessoas que o povo


negro pode ser independente e que temos
talento. Sabemos produzir tanto quanto
qualquer um

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A sensibilidade das
Intervenções
Artísticas na
produção de
autocritica
por Genivan Júnior

O baiano Milsoul Santos materializa a arte como método


para acessar a consciência das pessoas para o repensar
sobre ser negro

M ILSOUL SANTOS NASCEU NA BAHIA E


ATUALMENTE MORA NA CAPITAL FLU‐
MINENSE. ATOR, ESCRITOR E MÚSICO, É
TAMBÉM AUTOR DO LIVRO “PÁSSARO PRE‐
TO”, LANÇADO EM 2016. O LIVRO É RESUL‐
TADO DE VIVÊNCIAS E INSPIRAÇÕES QUE
VÃO DE 1995 ATÉ 2016. OS TEXTOS, EM SUA
MAIORIA, FALAM DO COTIDIANO DA POPU‐
LAÇÃO NEGRA E TRAZEM PROVOCAÇÕES E
REFLEXÕES.

106 Fotos: Genivan Junior


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Na abertura da exposição “Abdias Nascimen‐
to: a Arte de um Guerreiro” que ocorreu no Hall
da Reitoria da Universidade Federal de Uberlân‐

A
dia, dia 13 de novembro, durante o X Congresso
Brasileiro de Pesquisadores Negros, o artista fez
uma das suas intervenções durante o Congresso. arte arrumou
Os dados da Organização das Nações Unidas
revelam que a população negra é a mais afetada
uma forma de
pela violência e desigualdade no Brasil e indicam acessar a consciência das
que o racismo institucional se apresenta de dife‐
rentes maneiras. Há anos a academia vem cum‐ pessoas para que
prindo um papel importante no enfrentamento
ao racismo, porém existem várias outras metodo‐ despertem sobre temas
logias que podem ser aplicadas, sendo uma delas
a arte. O enfrentamento à discriminação por
como o racismo, e as
meio da arte é amplo. toquem no campo da
Ao utilizar sua habilidade enquanto artista, e
sentir o ambiente, Santos usou de textos que dialo‐ sensibilidade para fazer
gassem com o momento político e cultural em que
estamos vivendo. A intervenção tem a proposta de com que elas repensem
marcar a importância para o aspecto da autocrítica,
fazendo um recorte social ao protagonismo do ho‐
sua postura”
mem e da mulher negra como agentes políticos
transformadores sociais de pensamento.
A história de um menino que passa por todos os
con itos que um homem negro da periferia enfren‐
ta, momentos marcados por racismo e falta de
oportunidades, mas que ao nal consegue ascender
socialmente e se torna um professor universitário.
Esta é a sinopse de outro texto trabalhado pelo ar‐ tural e miscigenação, apesar disso o Brasil branco
tista. A força da narrativa se edi ca nesta perspecti‐ dá as costas ao Brasil negro, ainda que os negros
va em que o público é confrontado com uma sejam mais de 50% da população. Segundo o ar‐
história de vida de sonhos e luta diária, cujo enredo tista, seja no cinema, seja na literatura, a repre‐
na defesa de que o negro tenha acesso àquilo que sentatividade do negro é sempre construída por
lhes seriam seu por direito. meio de lutas para a sua existência na realidade.
Santos é enfático ao explicitar a nossa condi‐ Esse é o elemento essencial para que se efetive a
ção. Somos um país com grande diversidade cul‐ tomada de consciência.

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X COPENE 2018
Intervenções Artísticas
12 a 17 de outubro

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08 Revista X COPENE - 2018 - Uberlândia - MG - dezembro de 2018
No encerramento da conferência, o artista fez
uma homenagem às mulheres pretas. O sentido
produzido por Santos se conceitua ao entender que a
África é o berço da civilização, e a primeira mulher
que colocou o lho no mundo é africana. Santos
explica que: “Se concebe que o DNA de todo mundo
tem África. Então nada melhor que homenagear as
mulheres pretas. Homenageando as mulheres pretas
eu entendo que todo mundo foi homenageado.”

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O Copeninho foi um espaço extensivo do X CO‐
PENE realizado em Uberlândia na U.F.U. ( Univer‐
sidade Federal de Uberlândia). O objetivo do mesmo
era atender a demanda de lhos de congressistas de
outras cidades que estivessem envolvidos na ativida‐
de do Congresso e pudessem ter um lugar no evento
para deixar seus lhos em um ambiente de interação.
O Copeninho foi pensado por um espaço lúdico-
educativo na perspectiva de seguir a temática do
evento com o cinas étnico- raciais. Neste sentindo, o
intuito era a formação da identidade no combate das
diversas formas de racismo e segregação da popula‐
ção negra. A estrutura foi para atender crianças na
faixa etária de 3,5 anos até 13 anos.

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ORGANIZAÇÃO: APOIO:

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