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Conhecimento técnico e atitude no ensino de língua

portuguesa

Thomas Massao Fairchild


Universidade Federal do Pará

Resumo

Contra a ideia de que os conhecimentos técnicos do professor de


língua materna sirvam prioritariamente ao conteúdo de seu ensino
ou ao planejamento de suas aulas, neste artigo, discute-se o pre-
ceito de que tal conhecimento seja assumido também como base
para a elaboração de uma atitude a ser mantida nas interações
face a face da sala de aula. Essa atitude diz respeito à constante
necessidade de tomar decisões diante do inesperado e aponta para
a construção de um lugar discursivo específico do professor de lín-
gua – o de quem escuta a palavra do aluno e a enlaça à sua, de
maneira a garantir que a assunção de um lugar de sujeito passe
por uma reflexão sobre os meios linguísticos disponíveis para tan-
to. Toma-se como exemplo para esse debate a interpretação inusi-
tada que alguns alunos fazem da palavra “rataria”, presente num
texto de Monteiro Lobato. Discutem-se certas atitudes que pode-
riam ser tomadas em relação a esse erro de leitura e suas implica-
ções: requisitar a modificação da resposta, modificar o material
didático, explicitar o trabalho linguístico subjacente ao erro ou
utilizar o erro como pretexto para outras atividades. Os encaminha-
mentos discutidos fundamentam-se na premissa de que erros e
outras manifestações imprevistas não apenas revelam procedi-
mentos de construção do conhecimento, mas também oferecem
oportunidades importantes para que o professor se faça incluir na
palavra do aluno, sendo, portanto, um aspecto fundamental na
construção de uma relação em que o ensino se torne possível.

Palavras-chave

Ensino de língua portuguesa — Formação de professores — Leitura —


Sujeito contemporâneo.

Correspndência:
Thomas Massao Fairchild
Av. João Paulo II, 327, apto. 201
66095-490 – Belém – PA
e-mail: tmfairch@yahoo.com.br

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Technical knowledge and attitude in the teaching of
Portuguese language

Thomas Massao Fairchild


Universidade Federal do Pará

Abstract

Contrary to the idea that the technical knowledge of the teacher


of a native tongue serves primordially to the content of its
teaching or to the planning of classes, this article discusses the
precept that such knowledge should be seen as the basis for the
creation of an attitude to be maintained in face-to-face
interactions in the classroom. This attitude relates to the constant
need to make decisions before the unexpected, and points to the
construction of a specific discursive place for the language
teacher – that of someone who listens to the student’s words and
enlaces them to his or her own words, so as to make sure that
the assumption of the position of subject follows a reflection
about the linguistic means available to such end. As an example
to fuel this debate, the text describes the case of the unusual
interpretation made by some students of the word “rataria”
present in one of Monteiro Lobato’s works. Some of the possible
attitudes before this reading mistake are discussed, as well as their
implications: to request a change in the answer, to modify the
didactic material, to make explicit the linguistic work underlying the
mistake, or to use the mistake as a pretext to other activities. The
procedures discussed are based on the premise that mistakes and
other unforeseen manifestations not only reveal procedures of
construction of knowledge, but also offer important opportunities
for the teacher to include him/herself into the student’s word,
being, therefore, a fundamental aspect in the construction of a
relationship in which teaching becomes possible.

Keywords

Teaching of Portuguese language – Teacher education – Reading –


Contemporary subject.

Contact:
Thomas Massao Fairchild
Av. João Paulo II, 327, apto. 201
66095-490 – Belém – PA
e-mail: tmfairch@yahoo.com.br

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Tenho a convicção de que, se o conhecimen- Didática, ou se pensa que a simples excelência
to técnico de um campo é fundamental na no primeiro campo bastaria para garantir o
maior parte das especialidades, talvez o mes- sucesso no segundo. Em um ou outro caso, os
mo não valha para o professor de língua ma- problemas do ensino de língua tendem a se
terna. Mais que o saber técnico, um conjunto perder num vão entre a Pedagogia e as Letras,
de atitudes derivadas dele talvez resulte em e as disciplinas que tratam especificamente
benefícios maiores [...]. (Possenti, 2004, p. 32) desse assunto (Estágio Supervisionado, Prática
ou Metodologia do Ensino de Língua Portugue-
Não devo estar sozinho quando afirmo sa etc.) permanecem sem uma definição clara do
que muitas concepções de caráter tecnicista são seu papel. Um sintoma disso é que, não raro,
hoje largamente aceitas na formação do profes- acabam dominadas por questões de cunho prá-
sor. Essa perspectiva manifesta na ideia de que tico e imediato – agendamento dos estágios,
o preparo para a docência deve anteceder a encorajamento emocional dos estudantes, preen-
própria docência e dar-se num espaço separa- chimento de fichas e por aí afora.
do para que, apenas em seguida, o professor Pensar no problema das atitudes em sala
seja autorizado a arriscar-se em sala de aula. de aula nos faz supor que as disciplinas ligadas
Costuma-se pensar que existe um cam- ao ensino de língua possuem uma especificidade
po da teoria que precede a prática e se man- epistemológica, porque a natureza da linguagem
tém suspenso ao seu lado como uma nuvem, como objeto de ensino é um ponto de partida
pairando ao sabor de suas próprias moções importante para a elaboração das maneiras de se
internas. Essa premissa leva a alguns receios ensinar. O tipo de atitude que nos interessa dis-
bastante comuns, como o de enviar à escola um cutir, dessa forma, não é uma postura qualquer –
professor “despreparado” e causar um desastre questão missionária ou de boa vontade –, mas as
que poderia ser evitado pelo prolongamento de formas de agir em sala de aula, que se enraízam
seu preparo técnico anterior. nos conhecimentos da área de especialização do
Concordo que há razões para esse tipo professor e no compromisso político que se ini-
de preocupação, mas penso que essa perspec- cia com a própria decisão de tornar-se professor.
tiva pode se tornar prejudicial se passar a legi- A atitude pode ser pensada, de certa for-
timar o adiamento da prática docente ou sua ma, como o avesso da técnica. De uma parte, ela
excessiva amenização durante os estágios. se refere ao que encontraríamos se observásse-
Gostaria de contrapor a esse ponto de vista um mos um professor sem pressa ou compromisso de
problema que também considero importante: o atribuir-lhe adjetivos abrangentes (tradicional ou
da atitude que compõe, tanto quanto seu co- inovador, autoritário ou libertário etc.), mas à
nhecimento técnico, o perfil do professor de medida que o significado desses adjetivos vai se
língua portuguesa. reconstruindo com o tempo. Não se trata, contu-
Parece-me que, quando se toma a pro- do, de pensar na forma pessoal como o profes-
fissão docente como um exercício estritamen- sor recebe cada nova circunstância de ensino –
te ligado à técnica, há duas coisas que se con- o amor ou desdém com que abraça seu ofício, a
sideram importantes em sua formação: a) a meticulosidade que mostra em seu trabalho ou
transmissão de um repertório de saberes que ainda a forma como se coloca perante os alunos:
consistem na herança científica da área; e b) a se fala alto ou baixo, se marca distância por meio
preparação para a sala de aula. Duas articula- de um vocabulário precioso ou busca comunicar-
ções entre esses campos são frequentes: ou se se coloquialmente, se é rigoroso ou leniente, si-
pensa que a preparação para a sala de aula sudo ou amigável etc.
requer suas próprias técnicas, à parte do ba- A atitude terminaria se desenhando,
charelado, condensadas em disciplinas como a como que por si só, como uma espécie de perfil

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ou, se quisermos, uma forma de “fazer com” de responder a uma questão que não se repe-
nos termos de Michel de Certeau (1994). É a tirá. Se a técnica é uma aposta na possibilida-
maneira como se aproveitam os aspectos téc- de de prever, a atitude é então a maneira de
nicos do ensino, como as estruturas teóricas e lidar com o inesperado, o imprevisto.
regimentais comparecem nas decisões que o Falar na atitude do professor importa
professor toma em seu cotidiano – por isso porque ela recobre os intervalos que toda téc-
mesmo, uma forma de inventar esse cotidiano. nica forçosamente deixa a descoberto: ela é o
Isso não significa pensar o professor necessa- único artifício de que dispomos para lidar com
riamente como um fraco que só pode atuar sob o inabarcável do cotidiano, com os desafios da
a dominação de um aparelho que o constringe, prática. Vale a pena assumir o risco de afirmar
mas significa pensar que todo aspecto técnico que é por meio de atitudes, e não de técnicas,
do ensino, como terreno de antecipações estra- que um conhecimento tem qualquer possibilida-
tégicas, está sujeito a um aproveitamento de de de transmitir-se, de passar adiante ao se es-
cunho tático, que pode ser coerente e solidá- crever na relação entre o professor e o aluno.
rio aos princípios de sua organização estraté- Falar em atitudes é, portanto, falar da maneira
gica ou pode estabelecer, em relação a eles, como se resolvem esses episódios esporádicos
uma forma de subversão. Isso sugere, a respeito que pontuam o cotidiano da sala de aula, nos
do modelo polemológico de Certeau, que estra- quais as demandas dos sujeitos ganham expres-
tégias e táticas nem sempre representam um são na forma de perguntas deslocadas, erros
conflito entre posições antagônicas: toda estra- surpreendentes, esquecimentos, repetições etc. É
tégia, mesmo dotada de seus agentes convic- especificamente desse tipo de questão que gos-
tos, depende de um “fazer com” para tornar-se taria de tratar neste texto.
vigente. O trabalho dos poderosos ou dos Falar na atitude do professor importa, ain-
empoderados não poderia contar, mais do que da, porque não cessam de encontrar sustentação
o dos fracos, com uma transparência que os os discursos que apostam numa determinada
tornasse reais, para si mesmos, tão logo fossem técnica, método ou material didático como eixo
concretizados em suas arquiteturas e seus de- articulador de viradas qualitativas no ensino, en-
cretos: um poder só é poder porque pode con- quanto pouco ou nada se fala sobre o professor
tar com algo mais do que um lugar próprio. para além de suas adesões ou rejeições em re-
O problema da atitude, dessa forma, é o lação a essas técnicas, métodos ou materiais.
de considerar em que medida a experiência da Essa questão aparece de forma muito sensível,
sala de aula se caracteriza como uma forma de por exemplo, em terrenos como a alfabetização,
evasão ou de implementação. Isso, em todo historicamente marcada pelas querelas entre
caso, não interessa para a finalidade de denun- propositores de diferentes métodos de ensino
ciar o problema dos “discursos que não condi- (Mortatti, 2000; Belintane, 2006), em políticas
zem com as práticas”, porque o percurso que de formação continuada calcadas numa noção
nos interessa não é o que levaria o professor a geral de capacitação ou atualização teórica e
desviar-se de uma postura declarada, mas o numa certa leitura normativizante dos PCN, se-
que o levaria a estar de acordo com ela. não ao menos de alguns termos neles presentes
De outra parte, a atitude se revela em (como o conceito de gêneros discursivos).
acontecimentos miúdos, nos episódios inusita- Enfim, importa pensar na atitude porque
dos, nas surpresas do dia a dia. É um saber é preciso responder a uma pergunta que sem-
anedótico, muitas vezes sem sistematização. pre nos confronta — o que estamos propondo
Bastaria observar o professor em um momento para a escola ao criticar certas formas do cha-
de improviso: o que nos interessa é a resposta mado ensino tradicional? Parto do princípio de
encontrada na única oportunidade que se tem que o professor de Língua Portuguesa tem à

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sua disposição um repertório teórico que não tar. Em todo caso, durante essa aula acontece
serve apenas para o planejamento estratégico um episódio relevante, que não poderia passar
de seu ensino, mas também lhe dá respaldo despercebido pelo professor, porque exige a
quando se trata de lidar taticamente com o tomada de uma decisão instantânea. Há um
imprevisto. Parece-me razoável afirmar que, para trecho do texto que diz o seguinte:
além do conhecimento de certo cabedal teóri-
co, o professor de língua precisa elaborar cer- Um gato de nome Faro-Fino deu de fazer
to tipo de prontidão amparada no seu conhe- tal destroço na rataria duma casa velha que
cimento sobre a linguagem. Passarei a discutir os sobreviventes, sem ânimo de sair das
isso por meio de uma situação vivenciada du- tocas, estavam a ponto de morrer de fome.
rante a supervisão de estágios em um curso de (extraído de “Assembleia dos ratos”, de
graduação em Letras. Esse exemplo ilustra uma Monteiro Lobato).
ocorrência imprevisível, mas bastante mundana,
e mostra a necessidade de uma atitude como Um pouco mais adiante, entre as per-
solução para certos impasses do ensino. Como guntas sobre o texto, consta a que reproduzo
veremos, tomar uma atitude requer a incursão a seguir, respondida por um bom número de
no domínio de um conhecimento técnico, de alunos desta maneira:
modo que não há forma de subtrair um termo
do outro. As medidas discutidas abaixo, de Em que ambiente viviam os ratos?
certa forma, apresentam-se numa progressão e R.: Na rataria duma casa velha
vão ilustrando, de maneira genérica, diferentes
posturas didáticas. Antes de tudo, eis o caso. O exercício que proponho é o de consi-
derar algumas ações que poderíamos tomar a
Em algum lugar numa casa partir dessa ocorrência, levando em considera-
velha... ção os postulados teóricos que estaríamos pres-
supondo em cada caso e suas consequências
Um estagiário leva aos alunos um texto em termos de ensino.
de Monteiro Lobato e propõe um conjunto de Um primeiro problema a se considerar,
questões de interpretação. Do ponto de vista do logo de partida, como vemos, é a própria pos-
planejamento técnico, trata-se, sem dúvida, de sibilidade de a ocorrência não ser percebida,
uma aula que poderíamos contestar. O texto e seja porque não acompanhamos o trabalho dos
as perguntas provêm de um livro didático – o alunos com atenção o suficiente, seja porque
que indica que a escolha da leitura provavel- estamos interessados apenas nas respostas que
mente não se pauta num levantamento sobre o consideramos corretas. O simples recorte dessa
interesse dos alunos e talvez nem mesmo numa ocorrência como dado relevante, portanto, já
proposta particular do estagiário, mas apenas decorre de uma atitude em sala de aula: se nos
no critério da disponibilidade de material pron- limitamos a corrigir exercícios em voz alta e não
to. Poderíamos iniciar uma discussão sobre as damos ouvidos aos erros dos alunos, uma ques-
maneiras de repensar essa aula do ponto de tão suscitada pela leitura do texto pode passar
vista da escolha do material, da forma de tra- despercebida e, para os alunos, permanecerá
balho com a leitura, das concepções de texto em aberto.
aí implícitas etc. Ainda assim, isso levaria ao Isso mostra a importância de saber discernir
equívoco de supor que uma aula poderia estar a que um professor de língua deve estar atento
pronta em algum momento que não no da sua durante a aula e onde pode procurar indícios que
própria realização, atravessada por impasses revelem um trabalho pertinente à sua disciplina –
que não podemos evitar, senão apenas confron- nesse caso, um trabalho com a língua. Apresentar

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uma ocorrência dessa natureza a estudantes de leitor contemporâneo em relação a certos usos da
estágio pode ter a vantagem de exemplificar o tipo língua adotados pelo autor. Essa dificuldade está
de dado que eles devem estar prontos para cole- prevista no próprio material didático, mas de for-
tar e discutir em sua prática docente. ma insuficiente — o exercício inclui um pequeno
Mais do que perceber esse impasse na glossário com sinônimos para palavras considera-
leitura do texto como um fato importante, em das difíceis como “destroço”, mas não faz qual-
todo caso, seria importante encontrar algumas quer comentário sobre “rataria”. Se considerarmos
saídas imediatas para aquilo que a resposta dos o erro dos alunos como um indicativo disso, pelo
alunos coloca em questão, evitando retomar o menos duas perspectivas de trabalho com a lei-
assunto tardiamente, depois que as próprias tura surgirão em nosso horizonte: as questões
motivações dos alunos, e talvez a relevância de referentes ao estilo e à mudança linguística, que
se discutir o tema, já tenham se perdido. Eis poderiam ser amarradas a um estudo do texto
agora algumas possibilidades. literário ou da obra de Monteiro Lobato, confor-
me sejam os objetivos.
Considerar a resposta errada e Essa forma de consideração do erro suge-
requisitar sua modificação re também que respostas erradas são tão impor-
tantes quanto respostas certas, mesmo que não
Essa decisão coloca em jogo alguns pres- lhes reservemos um tratamento igual, porque
supostos sobre a natureza da leitura e, talvez, revelam como o texto foi lido e como atua de-
sobre os limites da participação do leitor na atri- terminado leitor. Sugere ainda que o trabalho do
buição de sentido ao texto. Um primeiro ponto professor não cessa com a constatação dos er-
importante é certificar-se que a resposta dos alu- ros dos alunos, e que corrigi-los pode não ser
nos não poderia ser considerada correta sob um tratamento suficiente para as questões que
nenhuma perspectiva. Isto é: não há como supor eles levantam. No presente caso, basta notar
que a palavra “rataria”, na fábula de Monteiro que, se apenas retificássemos as respostas de
Lobato, refira-se a uma parte da casa. Essa in- uma turma, o mesmo problema provavelmente se
terpretação não se justifica nem em relação ao repetira em outras ocasiões sem que os alunos
gênero (não há nenhum ganho interpretativo tirassem qualquer proveito da provocação con-
em se supor que o autor faça um jogo de pa- tida no termo “rataria” – vale dizer, sem que o
lavras aí) nem em relação ao restante do texto impasse com essa palavra os levasse a qualquer
(não há retomadas desse elemento que confir- novo conhecimento sobre as causas linguísticas
mem a interpretação)1. Dessa forma, se formos do impasse (o processo de formação da palavra,
levar a sério o exercício proposto, seria inevi- as circunstâncias do seu uso, seu valor especí-
tável rejeitar a resposta dos alunos e pedir que fico dentro desse texto etc.). Seria viável, portan-
a reformulem. to, supor que a atitude do professor diz respei-
O fato de a leitura dos alunos não se sus- to a uma forma de produzir a partir dos percal-
tentar como interpretação possível desse texto, no ços que surgem no decurso da aula.
entanto, não significa que não seja uma leitura.
Mesmo que tenhamos de rejeitá-la dentro do Modificar o material didático
contexto específico do exercício que foi propos- utilizado na aula
to, podemos considerar o que ela mostra a res-
peito do próprio exercício. Veremos assim que o Se não quisermos nos limitar a constatar
erro dos alunos aponta para uma característica do o erro dos alunos, a medida mais simples tal-
texto escolhido: o fato de que há uma dificuldade
de leitura no primeiro parágrafo, motivada por 1. Sírio Possenti (1999) assina um artigo sobre a questão da leitura er-
uma peculiaridade estilística ou pela distância do rada ao qual o exemplo que estamos discutindo poderia se somar.

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vez seja modificar o material usado na aula. Uma Disso podemos concluir que a prontidão do
forma de fazer isso seria incluindo a palavra professor depende da sua segurança para con-
“rataria” no glossário ao fim do texto. A apre- testar a autoridade de materiais publicados
sentação de listas desse tipo parece partir do quando uma situação prática os surpreende.
pressuposto de que uma leitura boa é aquela Outra forma de modificar o material, ain-
que acontece de forma mais rápida e direta, de da com a mesma finalidade, consistiria em re-
modo que palavras desconhecidas e equívocos escrever o primeiro parágrafo do texto, evitando
seriam um obstáculo no processo de ler e não a palavra “rataria” (e, se for o caso, também
uma parte constitutiva da leitura. Se concordar- “destroço”). Essa talvez não seja a melhor so-
mos com isso, ao modificar o glossário, estare- lução nesse caso, mas poderia ser em outros.
mos evitando que o mesmo tipo de embaraço Chegaríamos a algo como:
ocorra desnecessariamente no futuro.
Essa solução tem vantagens e desvanta- Um gato de nome Faro-Fino deu de fazer
gens. Uma das vantagens é o fato de que o tal estrago entre os ratos duma casa velha
professor estaria assumindo certa postura auto- que os sobreviventes, sem ânimo de sair das
ral em relação ao material que utiliza, mesmo tocas, estavam a ponto de morrer de fome.
que este tenha sido originalmente copiado de
um livro ou apostila (como é o caso). Trata-se Embora exista hoje certa noção de que o
de uma forma incipiente de produção que pode trabalho com excertos ou adaptações seja uma
ser o ponto de partida para investidas de mai- forma de depauperar a integridade do texto
or fôlego (como a seleção de textos ou a ela- original, essa solução não parece trazer grandes
boração de atividades para dar sequência ao prejuízos, levando-se em consideração o que o
exercício etc.). Seria preciso considerar, então, exercício pede ao aluno — situar no texto uma
que o fato de o professor escrever material para informação sobre o espaço da narrativa. Sob essa
sua disciplina não se contrapõe ao uso de luz, de fato, ela não é menos justificável do que
materiais comerciais, mas de fato talvez seja a incluir ao fim do texto um pequeno glossário.
única condição em que esse uso pode se tor- Evidentemente a questão seria outra se o que
nar legítimo, na medida em que não resulte da estivesse em estudo fosse a obra de Monteiro
falta de alternativas. Lobato, seu tratamento estilístico da linguagem
Outro aspecto relevante é o fato de que ou a comparação entre textos para crianças
acrescentar “rataria” ao glossário implica, ao escritos na primeira metade do século passado
menos por um instante, atribuir à palavra do e os livros infantis contemporâneos.
aluno uma importância maior do que ao mate- Essa solução é particularmente relevan-
rial didático. Significa, portanto, dar-lhe ouvi- te como exercício para o professor em forma-
dos mesmo quando o que ele diz não é o que ção, já que, em último caso, é melhor saber
esperávamos que dissesse e deixar-nos surpre- como adaptar textos aos alunos ou aos propó-
ender pelo que a sua leitura, ainda que errada, sitos específicos de uma determinada aula do
acrescenta à nossa própria leitura (nesse caso, que depender da existência de adaptações
mostrando que há uma questão de leitura a ser prontas. Realizar esse tipo de intervenção, sa-
tratada no primeiro parágrafo da fábula que bendo pesar suas consequências, pode ampli-
nem o professor nem o autor do livro didático ar bastante um leque de escolhas, evitando que
previram). Esse é um ponto bastante sensível, um bom texto seja descartado por conta de
porque muitas vezes a postura em sala de aula miudezas. Ademais, não há razão para recear que
é tal que nem sequer esse tipo de ajuste é re- o professor esteja menos pronto para adaptar
alizado, e o mesmo problema acaba se repetin- textos a alunos do que qualquer outro profissio-
do diversas vezes sem levar a lugar algum. nal e, se ainda assim o receio for em relação ao

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próprio uso de textos adaptados, seria preciso medida, essa perspectiva nos faria negar o pró-
lembrar que, no limite, seria impossível conside- prio exercício a partir do qual vimos refletindo,
rar qualquer texto como uma aparição absolu- já que questões de interpretação dessa natureza
tamente original, sem considerar a espessura buscam antes de tudo esquematizar a leitura e
parafrástica que compõe todo enunciado. Evi- livrá-la das ambiguidades. Por ora, no entanto,
dentemente, adaptar textos não é uma ação pensemos apenas em como poderíamos nos
indiferente nem suplanta a função da leitura do engajar com a palavra do aluno uma vez que as
texto original. No entanto, seria possível estabe- coisas tenham se passado tal como se passaram.
lecer alguns parâmetros para o trabalho de adap-
tação em relação à função do texto no ensino e Explicitar, do ponto de vista
ao seu gênero: modificar a diagramação ou linguístico, o processo que
suporte, por exemplo, é uma forma de adapta- origina o erro
ção amplamente aceita e pouco percebida como
tal. Outros recursos seriam suprimir trechos para Essa postura tem como ganho o fato de
abreviar o tempo de leitura ou o espaço ocupa- descartar a noção de erro como deficit, já que
do pelo texto, substituir termos técnicos ou de nos faz pensar não no que o aluno deixou de
jargões específicos por termos mais gerais, acres- fazer, mas no que teve de fazer para errar exa-
centar comentários (nisso se incluindo os glos- tamente como errou. Fazer isso pode não ser
sários, mas também as ilustrações e, quem sabe, muito cômodo, já que exige abandonar o ter-
o próprio ato de justapor a um texto outro que reno dos exemplos previamente elaborados e
se considera afim, por forma ou conteúdo) etc. posicionar-se sobre um material que é sempre
Em contrapartida, é preciso lembrar que inédito – a produção dos alunos. É verdade,
essas soluções têm um problema em comum – então, que frequentemente encontraremos
o fato de retirarem do texto justamente um ocorrências que nos intrigam, sobre cujos pro-
ponto em que ele instiga a reflexão linguística cessos de produção pouco saberíamos dizer, ao
do aluno. Ao realizar essas modificações, seja menos em um primeiro momento — teríamos aí
ampliando o glossário ou tornando-o desneces- um largo campo de estudos em torno de ques-
sário pela modificação do texto, resta implíci- tões como a aquisição da escrita (Abaurre;
to o preceito de que uma boa leitura seria uma Fiad; Mayrink-Sabinson, 1997), a singularida-
leitura sem surpresas, na qual as interpretações de e a constituição do sujeito ou o problema
programadas pelo professor ou previstas pelo do estilo e da autoria (Possenti, 1988). Este,
material acabam prevalecendo sobre as do alu- contudo, não é o caso da palavra “rataria” nem
no – tanto que buscamos interromper toda de muitos outros erros similares, porque o que
divergência antes mesmo que surja. O maior está em jogo, pelo menos à primeira vista, não
embaraço talvez não seja o caráter monológico é um dado único nem um lapso, mas uma
dessa premissa, mas o fato de se tratar de um peculiaridade da língua.
esforço vão, já que as leituras alheias, mesmo Comecemos percebendo que os alunos
que delicadamente cerceadas, dificilmente ces- respondem à questão de maneira incorreta não
sarão de nos surpreender. apenas porque desconhecem a palavra “rataria”,
Uma linha de trabalho diferente nos le- mas sobretudo porque, ao se depararem com
varia a manter o texto tal como está, não exa- uma palavra desconhecida, dispõem de uma série
tamente em nome de sua integridade ou por de estratégias para inferir seu significado. Nes-
receio de intervir em um cânon, mas por assu- se caso, parece que a estratégia central consis-
mir que o equívoco faz parte da leitura e que, te na análise morfossintática da palavra “rataria”,
portanto, mais do que evitá-lo, cabe encontrar mas ao realizá-la, alguns alunos acabam sendo
formas de trabalhar a partir dele. Em certa conduzidos a um engano, que resulta da com-

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binação de dois fatores: a) o fato de essa pala- cussão sobre radicais e afixos e os aspectos
vra ser formada por um processo não muito combinatórios implicados na formação de palavras.
produtivo na língua portuguesa (a formação de Em todo caso, seria relevante levar adiante o exer-
substantivos coletivos com o sufixo -aria ou -ia); cício, pedindo que os alunos tentassem agrupar as
e b) o fato de o produto desse processo poder palavras formadas com -aria, conforme os diferen-
ambiguizar-se com o de outro processo mais tes sentidos que o sufixo pode assumir. Chegaría-
produtivo (a formação de substantivos que de- mos a um resultando semelhante a este:
signam continentes a partir de conteúdos, espe-
cialmente no caso específico de nomes de esta-
belecimentos comerciais, com o sufixo -aria).
Podemos supor, portanto, que a interpre-
tação da palavra “rataria” como termo que
designa um espaço da casa decorre da associ-
ação dessa palavra a um conjunto de outros
termos de estrutura semelhante, que poderiam No grupo 1, estão palavras com o signi-
ocorrer na mesma posição dentro da estrutura ficado geral de “um grupo de x”. No grupo 2,
sintagmática da oração — pizzaria, malharia, estão palavras com o sentido de “lugar em que
confeitaria etc. A partir da comparação entre os se vendem/armazenam/encontram x”. Num ter-
vocábulos desse paradigma, os alunos parecem ceiro grupo, palavras com uma terminação se-
inferir, até aqui corretamente, a possibilidade de melhante que significam “muitas pessoas fazen-
segmentá-los em dois elementos menores, sen- do x simultânea e desordenadamente”.
do um deles o radical e outro, o sufixo -aria: Se quiséssemos refinar o exercício, pode-
ríamos observar que, aparentemente, as palavras
Rat -aria do grupo 1 são de composição diferente das do
Pizz -aria grupo 2: enquanto ali o sufixo parece ser -aria,
Malh -aria aqui é difícil dizer se há uma alternância entre
Confeit -aria duas formas, -eria e -aria, ou se se trata de um
único sufixo -ria que se agrega ao radical sem
Podemos supor que os alunos atribuem causar a síncope da vogal temática. Dentro do
ao sufixo -aria um significado comum, que grupo 2, há ainda um subconjunto de palavras
deve ser mais ou menos o de “estabelecimen- cuja formação ocorre com uma forma -eteria, pos-
to (ou cômodo) onde se encontram muitos x”, sivelmente em paralelo com o termo “sorveteria”
sendo x correspondente ao significado do ele- e a partir de uma reinter-pretação do radical sorv-
mento radical. Sem saber o que possa ser uma (em analogia com o verbo sorver).
“rataria”, eles reconhecem a palavra “rato” na
raiz do novo vocábulo e chegam à hipótese de
que deve se tratar de um “lugar onde há mui-
tos ratos” ou talvez um “lugar onde se armaze-
nam ratos”.
Uma maneira de tornar isso explícito aos
alunos seria requisitando-lhes que levantassem o
maior número possível de palavras semelhantes a
“rataria”. É provável que obtivéssemos tanto termos Enfim, também poderíamos chamar a
da ordem de padaria, sorveteria, cavalaria, gritaria atenção para o fato de que os radicais das pa-
etc. quanto da ordem de ratazana, ratoeira, ratinho, lavras dos grupos 1 e 2 são substantivos, ao
ratão etc. Isso bastaria para dar ensejo a uma dis- passo que o grupo 3 é formado com bases ver-

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bais. Isso colocaria em jogo diversas possibilidades Utilizar o erro como pretexto
de decompor morfologicamente aqueles termos: para outras atividades

Se até agora nos concentramos sobre a


dimensão formal do erro cometido por alguns
alunos, talvez seja oportuno atentar para sua
dimensão interacional: o fato de que na res-
Essa provavelmente não será a maneira posta errada não há somente uma análise mor-
como encontraremos o assunto tratado em ma- fossintática implícita, mas também uma aposta
nuais de gramática, e nada impede que as hi- na possibilidade de tapear o professor, isto é,
póteses levantadas pelos alunos sejam coteja- uma tentativa de acertar o exercício mesmo sem
das com outras formas de análise morfológica. se saber a resposta certa.
A guisa de exemplo, a gramática de Cunha e Numa hipótese otimista, suporemos que o
Cintra (1985, p. 94) menciona apenas dois su- aluno age assim de má fé – ele não leu o texto
fixos, -aria e -ia. Cita como exemplos de -aria, e sabe que não o leu ou não está disposto a levar
dentre outros, carpintaria (“atividade, ramo de o exercício a sério e, portanto, lança mão de um
negócio”), gritaria (“noção coletiva”) e pirata- estratagema bem conhecido: copiar um fragmen-
ria (“ação própria de certos indivíduos”). Como to onde parece estar embutida a resposta que o
exemplos do sufixo -ia, levanta, dentre outros, liberará da tarefa o mais rápido possível. Sabemos
advocacia (“profissão, titulatura”), delegacia que isso muitas vezes é, em parte, um problema
(“lugar onde se exerce uma atividade”) e cava- na formulação da própria pergunta. Em todo
laria (“noção coletiva”). caso, o que há de otimista nisso é que, nesse
Do ponto de vista desse tipo de traba- caso, ainda podemos imaginar o aluno como
lho, é menos importante chegar a uma análi- alguém que agencia uma estratégia de escrita em
se definitiva do que passar por alguns proces- prol de um objetivo interacional específico – o de
sos de análise válidos para chegar a algumas burlar o professor. Numa perspectiva pessimista,
conclusões possíveis, ainda que provisórias, por outro lado, teríamos de supor que o aluno tal-
sobre uma questão linguística que em dado vez responda à pergunta dessa maneira porque
momento se tornou relevante. É uma questão não concebe outra forma de ler um texto ou re-
de atitude assumir que o conhecimento sobre solver um exercício escolar – não leu o texto ou
a língua (inclusive o nosso) está incompleto, o leu de maneira precária, mas não tem uma
dar prevalência à descrição da língua sobre a medida suficiente da precariedade de sua leitura.
normatização do seu uso e levar em conside- Penso em pelo menos duas formas como
ração a palavra do aluno mesmo quando o poderíamos desdobrar esse erro em atividades
que ele diz não é o que o esperávamos. No derivadas que fizessem o aluno retornar ao
entanto, trata-se de uma atitude que não processo de produção do erro com novos olha-
poderia tomar forma concreta se não estivés- res. Uma delas seria aproveitar-se dessa ocor-
semos minimamente amparados para fazer rência para instigar um trabalho que canalizasse
uma análise do material apresentado pelo alu- a criatividade intuitiva da análise aí implícita
no. A partir daqui, poderíamos chegar a uma para algum propósito mais específico de escri-
conclusão importante: certas atitudes do pro- ta. Poderíamos começar apresentando-lhes o
fessor dependem de sua segurança para che- caso (como se tratou de um erro coletivo, não
gar a conclusões sobre dados a respeito dos haveria razão para o receio de expor os alunos)
quais não há uma análise consolidada. e levantando questões que revolvessem o pro-
Entretanto, uma última linha de ação cesso pragmático do erro e não sua faceta
ainda nos levaria em um caminho diferente. formal — o que é uma “rataria”, de que mate-

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rial é feita, qual seria sua função dentro de uma H. Lopes professor de hipismo
casa, se há diferenças entre as ratarias de ca- Décio Machado guarda florestal
sas velhas e novas etc. Atividades bastante sim- P. Lúcia fabricante de brinquedos
ples e produtivas poderiam se desenrolar daí Inácio Filho obstetra
por diante como propor aos alunos que descre- Olavo Pires balconista de bar
vam uma “rataria” ou redijam um verbete enci-
clopédico (fantástico) definindo-a; que contem Veremos que nesses dois casos a com-
ou escrevam outras histórias passadas numa preensão das piadas depende de um procedi-
“rataria”; que elenquem outros compartimentos mento de leitura comparável ao que ocorre
fabulosos similares e os descrevam e/ou ilus- acidentalmente na fábula de Monteiro Lobato
trem (gatarias, cachorrarias, passarinharias, e, o que é mais importante, uma compreensão
pessoarias ou personarias etc.). Esses seriam razoavelmente explícita da ambiguidade. Assim,
exercícios nos moldes do “binômio fantástico” para que as piadas funcionem, é preciso apre-
proposto por Rodari (1982) que, além de fazer ender a homofonia entre o nome Clodovil e
com que o aluno se detenha sobre um processo uma oração possível em que o segmento final
construtivo da linguagem, acabariam propondo seria o verbo viu ou entre o nome Silva e uma
novas questões de textualidade — por exemplo, forma flexional do verbo silvar e assim por
as formas de se explicar ou evidenciar o sentido diante. A leitura do trocadilho é, pois, uma lei-
de uma palavra desconhecida para o leitor, as tura que lida com segmentações e interpretações
formas de causar surpresa ou riso pela atribuição morfossintáticas paralelas, mas diferentemente
de um sentido inesperado a uma palavra etc. do que ocorre no erro de leitura, a sobreposição
Outro rumo seria utilizar o deslize contido de dois enunciados em um só não é apenas
na palavra “rataria” como ponto de partida para parte constitutiva do texto, mas o elemento por
um trabalho que chame a atenção para proces- meio do qual este realiza seu propósito genéri-
sos similares que ocorrem em outros gêneros co e pragmático — o de causar o riso.
discursivos e seus efeitos interacionais. Seria o Há muitas possibilidades de trabalho com
caso, por exemplo, de pesquisar a constituição das piadas em sala de aula — poderíamos pedir aos
piadas baseadas em trocadilhos e dos chistes2. Há alunos que coletem piadas em programas de
fontes abundantes para esse tipo de texto — a televisão, que aprendam piadas com parentes e
própria vida escolar é cenário de uma ampla cir- amigos para contá-las e analisá-las em sala de
culação de piadas orais e o e-mail, um grande aula, que observem ao longo de um período de
veículo de propagação de textos humorísticos tempo ocorrências de chistes e “tiradas” seme-
escritos. Em todo caso, seria preciso atentar para lhantes em conversações na rua, na escola, em
o fato de que nem toda piada se baseia em pro- casa etc. Seria possível analisar o desempenho de
cedimentos semelhantes ao da leitura de “rataria”. humoristas e contadores de piadas para realizar
À guisa de exemplo, dois tipos de piadas que ser- experiências semelhantes na escola ou contrapor
viriam ao nosso propósito: o chiste e o trocadilho a outras formas de hu-
mor (o escárnio ou degradação mútua dos
1. Charadas com nomes de celebridades interlocutores; o uso de termos chulos e seus
P.: Você já viu esta roupa aqui? substitutos metafóricos; os bordões de certas
R.: O Clodovil. personagens de humor, que lidam com a cons-
P.: O seu cachorro late muito? tante ressignificação de uma mesma frase em
R.: O do Fausto Silva. situações diferentes; a imitação; o susto etc.).

2. Piadas com nomes e profissões 2.Vale a pena remeter ao trabalho de Possenti (1998) e, é claro, ao de
Passos Dias Aguiar taxista Freud (1905).

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Seja como for que o trabalho se desen- leituras como a da “rataria” de Monteiro Lobato
volva daí pela frente, um efeito importante talvez prestem testemunho de um sintoma que
dessas atividades é o de dar consequência ao vem se instaurando de maneira preocupante no
discurso do aluno, inclusive quando ele erra, ensino — a evitação da palavra do outro, seja na
mas não apenas por essa razão. Trata-se de forma do aluno que evita o texto e encontra
confrontá-lo com o fato de a sua resposta não maneiras de, lendo-o, não o ler; seja na forma do
ser a que o professor esperava — o que é o professor que evita a discursivi-dade do aluno,
mínimo necessário —, mas também com o fato ancorando-se na segurança de um normativismo
de haver alguém à escuta, pronto para reco- dogmático, hierárquico, nos moldes da gramáti-
nhecer seus movimentos na linguagem. Nesse ca que se tem criticado nas últimas décadas. Se
sentido, aliás, pouco importa se esses movimen- hoje, no entanto, situamo-nos sob os efeitos de
tos são bem ou mal-intencionados porque, ao uma herança socio-interacionista, não é demais se
fim e ao cabo, a intervenção do professor não lembrar daquilo que constitui o discurso do pro-
se situa na dicotomia entre louvar ou repreen- fessor — o fato de que, como discurso, ele não é
der. Recusar-se a cair no embuste da “rataria” palavra solitária, mas necessita de uma outra
sem, no entanto, ressentir-se de uma suposta palavra para realizar-se, ela mesma, como um
traição, é uma forma de construir um lugar discurso. Em suma: todo discurso porta em seu
específico como interlocutor do aluno, que interior a falta do discurso do outro. Para aque-
talvez possamos considerar como sendo o papel les que ousam se pôr à frente de uma sala de aula
que caberia mais propriamente ao professor de em tempos que vêm sendo implacáveis com a es-
língua — o de responder ao aluno, sempre, desde cola, talvez o maior desafio, então, seja o de abrir-
essa posição em que ele não se permite vivenciar se, como sujeitos, para aquilo que precisarão
os prazeres e as agruras da palavra alheia senão encontrar em si mesmos, mas que só poderá vir
como ponto de partida para lançar o aluno a por meio de uma outra subjetividade — esta enig-
uma constante reflexão sobre a linguagem e mática alma do aluno contemporâneo.
elaboração de sua posição como sujeito falan- Está posto um grande problema para a
te, titular de uma palavra na qual, cada vez mais, formação do professor de língua: mais do que
se espera ver o retrato de uma singularidade. nunca, as circunstâncias de sua profissão o
Com isso, o professor não está apenas pre- impedem de nutrir, por longo tempo, uma re-
servando a seriedade de sua imagem, como tam- lação pacífica com seu conhecimento. Entrar
bém lançando o discurso do aluno para um cam- em sala pede, a todo instante, uma definitiva
po de realidade, isto é, para o território de vigên- tomada de atitude.
cia de um recalque3 no qual a relação entre dois
sujeitos precisa ser pontuada por alguns cortes
3. Falar em “recalque” é remeter a questão da linguagem ao terreno da
que não permitam aos dois se evitarem indefini- Psicanálise. A esse respeito, ver, por exemplo, a oposição de Lacan (1998)
damente num jogo de evasivas. Nesse sentido, entre “fala vazia” e “fala plena”.

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Recebido em 30.10.08
Aprovado em 07.07.09

Thomas Massao Fairchild, graduado em Letras-Português, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, é
professor do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará e pesquisador do Grupo de Estudos e
Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise (GEPPEP).

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