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Universidade e Sociedade.

ção de aspirações que emergi- nham a sociedade brasileira antes


Revista publicada pelo Sindica- ram no decorrer dos anos 20, da revolução.
to Nacional dos Docentes das isto é, nos anos que antecederam Dos vários problemas discuti-
Instituições de Ensino Superi- e anunciaram a eclosão desse dos, principalmente durante os
movimento. Então, o tipo de anos 20, merecem destaque: a
or. Ano IV, n. 6 (fev. 1994).
educação que se instaurou após democratização do sistema políti-
Brasília, DF. (ISSN 1517-1779) co em geral, mas principalmente
30 foi expressão e manifestação
do novo padrão econômico que do processo eleitoral e do exercí-
deveria se fortalecer a partir des- cio efetivo dos poderes; o prote-
sa data. cionismo alfandegário e a defesa
Esse movimento – que depôs da indústria brasileira nascente; a
Raízes sócio Washington Luís e levou ao poder regulamentação dos principais
Getúlio Vargas – tem sido inter- fatores de produção; a formaliza-
históricas da pretado, por um lado, como mo- ção e regulamentação das ativi-
dades sindicais; a ampliação do
educação mento de significativo abalo das
estruturas do Estado oligárquico mercado interno e a consequente
abertura de perspectivas para o
pública no e, por outro lado, como momento
incipiente setor industrial, etc.
de criação das condições necessá-
Brasil rias ao desenvolvimento do Esta- Há que considerar ainda as
modificações sofridas pela estru-
do burguês, “como um sistema
que engloba instituições políticas tura social brasileira em decor-
e econômicas, bem como padrões rência da incipiente industrializa-
e valores sociais e culturais de ção e urbanização ocorridas no
Maria de Araújo Nepomuceno começo do século. A Primeira
tipo propriamente burguês. En-
quanto manifestação e agente Guerra propiciou surgimento de
das rupturas internas e externas, um parque industrial que, a partir
a revolução implicou a derrota dessa época, passou a ocupar um
O contexto histórico-social de
(não se trata propriamente de papel característico no conjunto
emergência dos ideais de cons-
liquidação) do estado oligárqui- da economia brasileira (SODRÉ,
trução de uma educação pública
co... Em poucas palavras, o con- 1978: 132). Os novos grupos soci-
no Brasil
junto das atividades estatais no ais que emergiram nesse contexto
período de 1930- 1945 assinala a histórico, e que não se vincula-
agonia do Estado oligárquico e o vam diretamente ao setor cafei-
Até 1930, as necessidades cultor, expressaram seu descon-
do país, delineadas pelo pa- desenvolvimento do Estado pro-
priamente burguês” (IANNI, 1986: tentamento em relação ao poder
drão econômico agrário- ex- constituído e à ineficácia das
25-26). A esse novo Estado coube
portador, comportaram um a adoção de medidas e de inova- práticas políticas empregadas no
tipo de educação voltado ex- ções institucionais que inaugura- encaminhamento dos problemas
clusivamente para o atendi- ram uma nova fase nas relações que a sociedade vinha engen-
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mento dos interesses oligár- do Estado com a sociedade. drando.
quicos, isto é, destinado à Segundo Ianni, as medidas e Ianni mostra ainda que, já na
inovações postas em prática sob década de 20, o sistema político-
reprodução dos quadros buro-
coordenação do governo Vargas econômico vigente estava marca-
cráticos e administrativos do do por problemas estruturais e
Estado oligárquico. Pensado não decorreram de um planeja-
mento previamente traçado. Não conjunturais típicos de uma eco-
nestes moldes, o processo nomia agrário-exportadora. Nessa
decorreram também de um estu-
educativo escolar que vigorou época, a cafeicultura vinha en-
do aprofundado das condições
na Primeira República não reais configuradas antes da insta- frentando sucessivas crises. O
alcançava amplos setores da lação desse governo. Tais medi- café representava, na década
população. das e inovações enquadram-se de 20, 80% de nossas exporta-
O Movimento Revolucioná- mais na categoria de respostas ou ções. Esse percentual (que não
rio de 1930, desestruturador de soluções propostas para um se modificou na década de 30),
das bases do Estado oligárqui- conjunto de problemas que vi- expressava bem a importância
co, abriu um novo espaço edu- nham sendo discutidos pelas do setor cafeicultor na deter-
cacional, permitindo a realiza- diferentes forças que compu- minação da capacidade bra-

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sileira de importar, evidenciando Esta era uma pré-condição destinada a produzir um novo
– mesmo nos períodos não para a reconstrução social, que homem e, consequentemente,
críticos – a vulnerabilidade do por sua vez exigia a erradica- uma nova sociedade, pela
setor exportador e, por conse- ção do analfabetismo: “instru- ação redentora da educação.3
guinte, dos outros setores da ção para todos” passou a ser a Esse modo ideológico de apre-
economia. Ressalta ainda esse palavra de ordem para alcan- ender os problemas econômi-
autor, a saída maciça e siste- çar o progresso, que garantiria cos, sociais, políticos e cultu-
mática do excedente econômi- para o Brasil um lugar no con- rais deslocava a gênese desses
co brasileiro através da comer- certo das “nações civilizadas”. problemas para um plano de-
cialização do café, controlada Nesse contexto histórico, rivado – o plano educacional - ,
pelos setores dominantes ex- portanto, a educação vigente deixando intocadas as bases
ternos, e através da importa- “aparecia” como um proble- estruturadoras e organizado-
ção de produtos industrializa- ma, na medida em que não ras da sociedade brasileira.
dos e de bens supérfluos dos mais correspondia às exigên- O clima decorrente desse
mercados estrangeiros. “Nessa cias dos grupos emergentes debate transformou os anos
época, pois, o governo atuava no que clamavam por mudanças. 20, bem como os anos 30 des-
sentido de promover e incentivar E a educação nova “aparecia” te século, numa época de e-
as atividades produtivas ligadas como solução, isto é, como um fervescente discussão ideoló-
ao setor externo, que era essen-
meio eficaz e disponível para a gica; favorecendo o aflora-
cial à sustentação do sistema
econômico então vigente” (IANNI,
solução do conjunto de pro- mento dos “nacionalismos”,
1986:28). blemas que a sociedade vinha dos “entusiasmos” e dos “oti-
Foi ainda na década de 20, produzindo. Em outras pala- mismos”. Além de propostas
e em meio à discussão dos vras: os quadros do pensa- específicas referentes à quali-
problemas decorrentes das mento, na época, apontaram o dade das mudanças reivindi-
modificações que a sociedade analfabetismo como a causa cadas, tais “ismos” apresenta-
brasileira vinha experimentan- principal de todas as crises; ram como base comum a
do e debatendo, que os dife- identificaram a educação po- crença, real ou meramente
rentes grupos que a compu- pular como a base da organi- proclamada, na construção de
nham discutiram a estrutura zação social, constituindo, uma nova sociedade através
de ensino em todos os seus portanto, o primeiro problema da educação escolar. Recupe-
níveis e atentaram, principal- nacional. Ao mesmo tempo, rou-se, então, no bojo da efer-
mente, para a natureza da elegeram e passaram a indicar vescente discussão dos pro-
educação que vinha se proces- a instrução do povo como blemas econômicos, políticos,
sando no interior da socieda- remédio adequado para a cura sociais e culturais que emergi-
de. Os setores críticos da épo- de todos os males. ram nos anos que antecede-
ca apontaram a formação ba- Neste ponto, cabe acrescen- ram o movimento revolucioná-
charelesca, que constituiu o tar que os princípios estrutu- rio de 30, o ideário escolano-
eixo do saber durante a Pri- radores da sociedade brasileira vista,4 já veiculado no fim do
meira República, como a res- capitalista geradora dos pro- século XIX e nos primeiros
ponsável pela criação de uma blemas em questão, não foram anos do século XX.
“mentalidade tradicional e debatidos. A crença na legiti- Na década de 20 surgiram
arcaica” emperradora do pro- midade da sociedade constitu- ainda as primeiras manifesta-
gresso social.2 Tratava-se, ída não sofreu abalos, e os ções do tenentismo, movimen-
pois, de substituir aquela for- “desvios” da evolução natural to que expressou os interes-
mação bacharelesca por outra e espontânea, atribuídos ao ses, ideais e ambições políticas
que, apoiando-se no saber fracasso da ação equalizadora de alguns grupos do exército
“racional” e “científico”, fosse da escola em vigor, deviam e (1922 e 1924). Realizou-se a
capaz de controlar, planejar e podiam ser corrigidos. Esta Semana de Arte Moderna
coordenar a marcha da socie- correção seria possível medi- (1922); fundou-se o Partido
dade em direção ao progresso. ante a adoção de uma escola Comunista do Brasil (1922);
pública, universal e gratuita, criou-se a Associação Brasileira

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de Educação (1924), etc. A Entre os inúmeros órgãos as, etc.); e) nos eventos educacio-
ABE, criada por Heitor Lira, reali- criados pelo governo, figura o nais promovidos pelo governo
zou várias Conferências Nacio- Ministério da Educação e saúde (conferências, congressos, semanas
nais de Educação. A primeira, Pública, criado em novembro de educativas, etc.); f) nos demais
1930. A Constituição de 1934, no documentos oficiais que circularam
ocorrida em Curitiba em 1927,
seu artigo 150, postulou a necessi- no período (relatórios, mensagens,
não foi a mais importante. As IV e
dade de elaboração de um Plano jornais, periódicos, etc.).
V Conferências marcaram a histó-
Nacional de Educação que coorde- Isto posto, pode-se afirmar
ria da entidade, pois dos debates
nasse e supervisionasse as ativida- que, na ótica dos idealizadores da
emergiram os motivos que deram
des de ensino em todos os níveis. política educacional dos anos que
origem ao famoso Manifesto de
Regulamentou também as formas se seguiram ao movimento revo-
32. Além das conferências que de financiamento da rede oficial de lucionário de 30, tal política foi
promoveu, a entidade produziu e ensino em cotas fixas para a Fede- percebida, por um lado, como um
divulgou no decorrer de 1935 ração, Estados e municípios. Asse- dos instrumentos asseguradores
uma série de comunicados que gurou o princípio da gratuidade e, das mudanças decorrentes do
discutiam linhas de atuação e principalmente, da obrigatoriedade referido movimento e, por outro,
apresentavam sugestões para a do ensino primário (leia-se: da como instrumento capaz de re-
solução do “problema educacio- educação). Enfim, os grupos políti- formar e construir uma nova
nal”. cos de então conscientizaram-se da sociedade, conforme pregavam
Nesse contexto histórico de importância estratégica de uma os defensores do escolanovismo.
discussões e de rupturas políticas, política educacional que consoli-
econômicas, sociais e culturais dasse as mudanças políticas, A política educacional como
internas, a Grande Depressão de econômicas, sociais e culturais processo de intervenção social
1929 desempenhou um importante desencadeadas pelo movimento
papel, por ter revelado, de um lado, revolucionário de 30. Tal conscien- A política educacional como
os limites da economia agrário- tização levou o Estado a organizar, processo de intervenção delibe-
exportadora e, de outro lado, por regulamentar e controlar o proces-
ter precipitado o fim do Estado
rada na realidade social é pró-
so educacional, submetendo-o a pria dos anos posteriores ao
oligárquico em vigor durante as três seu controle direito.
primeiras décadas do século (IANNI, movimento revolucionário de
Esse exercício de reflexão sobre
1984:193). a realidade brasileira possibilitou
30, uma vez que a Primeira
A pressão dos acontecimentos compreender a política educacional República se caracterizou pela
levou o conjunto das forças sociais que se esboçou principalmente no ausência de uma política nacio-
– incluindo aqui a burguesia cafeei- pós-30 como portadora de um nal em matéria de educação,
ra – a tomar consciência dos pro- domínio próprio, com território expressão da própria descentra-
blemas de seu tempo. A partir dos específico e um papel histórico lização que marcou essa etapa
anos 30, os grupos no poder viram- importante a cumprir no interior da da vida republicana. A Constitui-
se premidos a modificar, redimen- sociedade para a qual foi formula-
sionar e integrar órgãos governa-
ção de 1891 poucas referências
da. Assim, a política educacional se fez ao assunto, deixando aos
mentais já existentes, e a criar constituiu – enquanto processo
outros. De igual modo, e levados Estados federados, quase por
intencional de intervenção na
pela força dos acontecimentos realidade – num processo social
5 omissão, a responsabilidade de
históricos, viram-se pressionados a que se materializou: a) nos disposi- organizar suas estruturas de
fazer novas propostas. Neste tivos constitucionais que fornece- ensino. Em face disso, pode-se
sentido, o governo federal criou ram as diretrizes para a elaboração afirmar que durante a “Repúbli-
conselhos, departamentos, institu- de um projeto nacional de educa- ca dos coronéis” a educação, no
tos, companhias e fundações, ção; b) nas leis e decretos que seu sentido amplo, expressa o
formulou planos, promulgou leis e criaram os órgãos superiores de modo como o Brasil se vinculava
decretos, incentivou e promoveu ensino, até então inexistentes
discussões e debates sobre os
ao mercado internacional de
(Ministério, secretarias, conselhos, trabalho, isto é, como produ-
problemas econômicos, financeiros, departamentos); c) nas leis e
administrativos, tecnológicos e tor/fornecedor de matérias-
decretos que expandiram as dife-
outros. As medidas adotadas pelo rentes redes de ensino; d) nas leis e
primas e consumidor de produtos
Estado na época atingiram, prati- decretos que introduziram as industrializados. Então, nessa
camente, todas as dimensões da reformas educacionais (novos época, o “sistema educacional
vida social (IANNI, 1986: 22). currículos, programas, metodologi- fundado em bases alienígenas

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(cópia sobretudo do modelo fran- externas, visando consolidar um da incipiente industrialização e do
cês) se constituíra para atender às novo padrão de acumulação, processo de urbanização ocorridos
exigências de uma classe agrária quantitativa e qualitativamente após a Primeira Guerra (1914-
que tinha o poder em suas mãos e distinto do anterior, que depende- 1918). Tais setores vislumbraram,
que necessitava auto-reproduzir ria substancialmente de uma com o movimento revolucionário
seus quadros” (SILVA, 1980:17). realização interna crescente (OLI- de 30, a oportunidade de verem
Esta afirmação se confirma quando VEIRA, 1977: 101). A política educa- satisfeitas suas aspirações. Neste
se verifica que, ao aproximar-se o cional que se esboçou nesse perío- sentido, vinham reivindicando
fim da Primeira República, o país do guardou e expressou as inten- durante os anos 20, e, principal-
contava com 350 estabelecimentos ções desse novo Estado interven- mente, dos anos 30 em diante,
isolados de ensino secundário e 200 cionista. maior organização e participação,
de ensino superior: uma universi- transformando-se, pois, em sujeitos
dade no Rio de Janeiro, uma no O papel do Estado nas suas políticos legítimos, que não podiam
Paraná e outra em Minas Gerais. relações com a sociedade mais ser desconsiderados, pelo
O ensino primário público e o risco social real que representavam.
ensino técnico-profissional (desti- As forças sociais que conduziram Essa conciliação se revelou clara-
nados ao povo) foram pouco Vargas ao poder em 1930 não mente no papel de árbitro e medi-
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difundidos na época. Tanto foi foram homogêneas. Então, para ador que o Estado assumiu, visando
assim que os dados educacionais acomodar as tensões e conciliar os aparar as arestas que dificultavam
incluídos na Conferência Interesta- contrários liberados pela crise os acordos entre as forças conser-
dual do Ensino Primário (1921) econômica e política mundial e vadoras e as forças renovadoras
revelaram a situação humilhante da interna, de que eram porta-vozes (liberais) dominantes. Para além
educação popular no Brasil. O as forças sociais que o apoiaram, das divergências entre essas forças,
Distrito Federal tinha, nessa época, Vargas teve que fazer concessões a havia um ponto de convergência
41% de sua população infantil sem todas elas em troca de apoio à sua que as identificava: o temor da
escolas; Santa Catarina, 43%; Rio permanência no poder (FAUSTO, crise que atingia o mundo (amea-
Grande do Sul, 44% e São Paulo, 1989:1041) çado pela vitória da ideologia
56%. O quadro era mais grave em Um trecho do discurso de posse socialista na Rússia e pela vitória do
outras regiões do país: Alagoas do presidente mostra, de um lado, liberalismo em outros países) e o
tinha 94%, precedido pelo Piauí e consciência em relação à heteroge- próprio país, justificando, desse
Goiás com 95%. Este quadro de neidade do quadro que então se modo, a emergência durante os
descaso pela educação popular, configurou e, de outro, anuncia as anos que se sucederam a 1930, da
intensamente debatido no decorrer regras do novo pacto: “No fundo e ideologia nacionalista autoritária
dos anos 20 deste século, começou na forma, a Revolução escapou, por que ocuparia maior espaço após
a se modificar nos anos 30 com a isso mesmo, ao exclusivismo de 1937.
concretização de um novo padrão determinadas classes. Nem os Essa conciliação se revelou
de acumulação do capital de base elementos civis venceram as classes ainda, e principalmente, no papel
urbano-industrial – já em marcha armadas, nem estas impuseram de árbitro que o Estado assumiu,
no Brasil mesmo antes desse àqueles o fato consumado. Todas visando pôr “panos quentes” no
período -, padrão este que vai as categorias sociais, de alto a confronto que envolvia, de um
paulatinamente exigindo, além da baixo, sem diferença de idade ou lado, as forças sociais dominantes
reprodução dos quadros dirigentes sexo, comungaram um idêntico e, de outro, os setores populares
mencionados, a criação de “um fraterno e dominador: a construção emergentes.
exército de trabalho para o bem da de uma pátria nova, igualmente Fazia-se pois, necessário re-
nação” (leia-se: para o bem do acolhedora para grandes e peque- constituir a sociedade, corrigir os
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capital). nos, aberta à colaboração de todos “desvios” que bloqueavam sua
Então, com a centralização do os seus filhos” (VARGAS, 1948:69). evolução natural e espontânea,
poder decorrente do movimento de Em termos políticos, o que se
sem no entanto destruí-la. E o
30, o Estado passa a intervir siste- instaurou de fato na época foi um
maticamente nas diferentes esferas Estado de conciliação.
Estado que ideologicamente se
sociais. Por exemplo, interveio Esse Estado conciliador, pressio- legitimou como defensor eficaz
diretamente na esfera econômica, nado pelos acontecimentos históri- da paz social, como árbitro “neu-
regularizando e disciplinando o cos, foi obrigado a contemplar e tro” dos confrontos sociais,
mercado de fatores da produção incluir, também os setores popula- atribuiu à educação um duplo
(forças produtivas), bem como as res urbanos (camadas médias e papel: ela deveria corrigir as desi-
relações de produção internas e núcleos operários) que emergiram gualdades e injustiças sociais e,

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simultaneamente, construir uma divergências latentes. Em face dela, o plano nacional de educação; b)
sociedade mais justa e aberta a os componentes da ABE explicitaram outra, que admitia a participação da
todos os seus participantes ou, como suas posições e se dividiram: uma iniciativa particular, desde que subme-
desejava o presidente, contribuir parte formou o grupo dos liberais tida à fiscalização estatal, apresentan-
eficazmente para “a construção de (diferentes ainda entre si) e outra do como justificativa os parcos recur-
uma Pátria nova, igualmente aco- parte se uniu ao principal grupo sos existentes para que o Estado
lhedora para grandes e pequenos”. oponente da época, os católicos, arcasse sozinho com os custos da
Uma educação escolar pública que compostos pelos líderes intelectuais educação que, em tese, deveria se
reclassificasse os indivíduos de católicos e pelos membros da hie- destinar a toda a população; c) e uma
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diferentes origens sociais conforme rarquia católica. terceira, mais radical, que não admitia
suas habilidades e aptidões inatas As divergências que eclodiram no a participação da iniciativa particular,
daria conta desta tarefa “redentora”. interior da referida conferência delegando apenas ao Estado a res-
O Manifesto de 32 forneceu os impediram a elaboração imediata de ponsabilidade de educar.
elementos históricos e ideológicos uma proposta que atendesse à Cury chama a atenção para a segun-
dessa maneira de pensar a educação solicitação feita pelo governo provi- da vertente. Segundo ele, foi a que
escolar. Embora discordassem no sório. No entanto, pouco tempo predominou, pelo menos nos anos
que dizia respeito ao âmbito de depois e a partir de uma certa que se sucederam ao movimento
extensão desse poder, as forças composição, o grupo dos liberais revolucionário de 30 (CURY, 1978:92).
sociais em conflito aceitaram a ideia redigiu O Manifesto dos Pioneiros da Isto posto, cabe fixar que, para além
da educação (leia-se: perceberam a Educação Nova de 32. Na opinião de das divergências políticas e ideológicas
conveniência da educação) como vários dos autores que estudaram presentes no manifesto, interessa-nos
base do processo de reconstrução da esse período e interpretaram o particularmente resgatar o fio comum
sociedade. Enfim, tratava-se de Manifesto de 32, este documento de interpretação das novas funções
garantir a sociedade tal como estava buscou expressar, na perspectiva atribuídas à educação brasileira, bem
estruturada, já que as bases em que dos educadores que o assinaram, o como a consciência histórico-
se assentava não foram e nem sentido da renovação nacional via ideológica que nele se configurou que,
deveriam ser discutidas. Esse tipo de educação, amplamente debatido na por terem caráter histórico-estrutural,
exercício do poder e essa forma de década de 20, e com o qual estava marcaram a política educacional dos
compreender a educação se expressa- proclamadamente comprometido o governos pós-30. Nesse sentido,
ram na política educacional então governo provisório. O conteúdo do interessa-nos resgatar o conceito e os
proposta.
Manifesto de 32 refletiu (e reflete) a princípios educacionais que o Manifes-
heterogeneidade ideológica caracte- to postulou naquela época.
O papel da educação na rística do grupo de liberais que o Para os pioneiros: “A educação nova,
reconstrução do país assinou. Em outros termos, seu alargando a sua finalidade para além dos
Foi do clima fecundo de debates limites de classes, assume, com uma feição
conteúdo refletiu (e reflete) a ver-
ocorridos na década de 20, que emergiu mais humana, a sua verdadeira função
a Associação Brasileira de Educação, tente elitista de seu autor, isto é,
social, preparando-se para formar a
mais precisamente em 1924. A ABE já Fernando Azevedo, a vertente
hierarquia democrática pela hierarquia das
nasceu heterogênea, por congregar democrática de Anísio Teixeira, além
capacidades, recrutadas em todos os
os educadores liberais da época, da vertente mais radical de Paschoal grupos sociais, a que se abrem as mesmas
que, embora aceitassem e até Lemme. oportunidades de educação”.
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defendessem os ideias escolanovis- Alguns estudiosos dos anos 30 e Vale dizer, os indivíduos eram
tas, o fizeram a partir de posições início dos anos 40, analisando o desiguais em aptidões e capacidades,
políticas e ideológicas diferentes. Manifesto de 32, constataram que, resultando daí suas posições diferen-
Estas diferenças emergiram, anos embora houvesse uma identidade em tes na estrutura social. Porém, eram
depois, no bojo da IV Conferência de relação ao papel centralizador confe- igualmente aptos para o trabalho,
Educação, promovida pela entidade rido por seus signatários ao Estado na podendo, em virtude dessa suposta
em dezembro de 1931, quando o direção de um plano nacional de igualdade, igualarem-se democratica-
chefe do governo provisório, neces- educação, essa identidade não se mente pelos frutos do trabalho. Assim,
sitando de uma explicitação ideoló- refletiu no alcance e na extensão sendo, se os indivíduos se esforçassem
gica no setor da política educacional, desse papel frente à educação. Neste (e o Estado, como árbitro “neutro”,
solicitou aos educadores que com- sentido, podia-se (e pode-se) distin- deveria garantir a todos as mesmas
punham a ABE colaboração para a guir três distintas posturas no referido oportunidades através da educação),
articulação de uma política nacional manifesto: a) uma, mais flexível, que poderiam se igualar, de fato, pela ação
de educação. Esta solicitação foi a admitia a “liberdade de ensino”, equalizadora da educação nova.
“gota d’água” que fez emergirem as aceitando a participação da iniciativa
particular, desde que sintonizada com

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Além de definirem os fins da educa- dade [...] é mais necessária ainda na são os fatores fundamentais do acrés-
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ção nova, os pioneiros traçaram os sociedade moderna [...] cuja educação cimo de riqueza de uma sociedade”.
princípios que deveriam norteá-la, é frequentemente impedida ou muti- Estas palavras de abertura do
bem como definiram a “quem” cabia a lada pela ignorância dos pais ou Manifesto de 32 expressavam (e
responsabilidade de promovê-la. Um responsáveis e pelas contingências expressam) a preocupação dos
trecho, embora longo, esclarecerá os econômicas. A escola unificada não pioneiros com o desenvolvimento
princípios mencionados: permite ainda, entre alunos de um e
do saber científico e tecnológico
“do direito de cada indivíduo à sua outro sexo, outras separações que não
educação integral, decorre logicamen- sejam as que aconselham as suas
para o avanço das forças produti-
te para o Estado que o reconhece e o aptidões psicológicas e profissionais, vas. Em outras palavras, ao saber
proclama, o dever de considerar a estabelecendo em todas as instituições “livresco” e “academicista” se
educação, na variedade de seus graus ‘ a educação comum’ ou coeducação, opunha um saber “racional” e
e manifestações, como uma função que, pondo-as no mesmo pé de igual- “científico”, capaz de proporcionar
social eminentemente pública que ele dade e envolvendo todo o processo as condições necessárias ao pro-
é chamado a realizar, com a coopera- educacional, torna mais econômica a gresso que a sociedade vinha
ção de todas as instituições sociais. organização da obra escolar e mais desejando.
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Assentado o princípio do direito fácil a sua graduação”. É interessante observar nesse
biológico de cada indivíduo à sua Da leitura destes trechos do momento o caráter histórico-
educação integral, cabe evidentemen- Manifesto podem-se extrair os estrutural de que se revestiu o Mani-
te ao Estado a organização dos meios princípios norteadores da nova festo de 32 por sintetizar e fixar os
de o tornar efetivo, por um plano de educação escolar que se desejava ideais educacionais que já vinham se
educação, de estrutura orgânica, que concretizando no plano prático. A
implantar. Em outras palavras, a
torne a escola acessível, em todos os Reforma Francisco Campos, de 1931,
seus graus, aos cidadãos a quem a
nova escola deveria ser única,
pública, obrigatória e gratuita. A que organizou o ensino superior e o
estrutura social do país mantém em ensino secundário, considerada a mais
condições de inferioridade econômica defesa desses princípios passava
importante e significativa das refor-
para obter o máximo de desenvolvi- ainda pela defesa do princípio da mas educacionais realizadas no país
mento de acordo com suas aptidões laicidade e da coeducação argu- até então, constituiu uma evidencia
vitais. Chega-se, por esta forma, ao mentos prioritários na luta contra desse fato.
princípio da escola par todos ‘escola os “católicos”, que desejavam ver Foi também e naturalmente
comum ou única’ [...] ampliado o espaço ideológico que nesse contexto histórico que
A laicidade, gratuidade, obrigatori- já possuíam, 11 através das novas
edade e coeducação são outros tantos
ganharam impulso as campanhas
oportunidades abertas com o de erradicação do analfabetismo
princípios em que assenta a escola
unificada e que decorrem tanto da
movimento revolucionário de 30. (já discutido nos anos 20), como
subordinação à finalidade biológica da Cabe ainda registrar a preocupa- condição fundamental para a
educação [...] como de reconhecimen- ção dos pioneiros em relação aos promoção do desenvolvimento e a
to do direito que cada ser humano tem novos vínculos que deveriam se reconstrução nacional. Foi nesse
à educação. A laicidade, que coloca o estabelecer entre a nova educação contexto ainda que o Estado,
ambiente acima das crenças e disputas e a realidade nacional que se norteado pela ideia de progresso,
religiosas [...] subtrae o educando, queria construir. Afirmaram eles: proclamou-se comprometido com
respeitando-lhe a integridade da “Na hierarquia dos problemas nacio- a superação do atraso e a equipa-
personalidade em formação, à pressão nais, nenhum sobreleva em importân-
perturbadora da escola quando utili-
ração do Brasil aos países econo-
cia e gravidade ao da educação. Nem
zada como instrumento de propagan- micamente mais desenvolvidos.
mesmo os de caráter econômico lhe
da de seitas e doutrinas. A gratuidade podem disputar a primazia nos planos
Essa tarefa pressupunha o fim do
extensiva a todas as instituições de reconstrução nacional. Pois, se a analfabetismo e a criação de uma
oficiais de educação é um princípio evolução orgânica do sistema cultural “escola nova”, “ativa” que, viabili-
igualitário que torna a educação, em de um país depende de suas condições zando uma educação “prática”
qualquer de seus graus, acessível não econômicas, é impossível desenvolver (evidentemente “destinada” aos
a uma minoria, por um privilégio as forças econômicas ou de produção, trabalhadores), seria capaz de
econômico, mas a todos os cidadãos sem o preparo intensivo das forças superar o “atraso e a ignorância”.
que tenham vontade e estejam em culturais e o desenvolvimento das
condições de recebê-la. Aliás, o Estado aptidões à invenção e à iniciativa que
não pode tornar o ensino obrigatório
sem torná-lo gratuito. A obrigatorie-

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“Aquela que existia não estava conseguin-
do cumprir o papel de democratização da que viabilizaram o advento dessa socie- núcleo de reprodução cultural dos setores
sociedade por ser acadêmica em seus dade. privilegiados. Sobre uma visão mais completa e
conteúdos, passiva em seus métodos, 4
O ideário escolanovista resultou de um crítica da participação, concepção de mundo,
basicamente objetivista e assistencialista concepção de educação e conquistas do grupo
movimento que significou uma remode-
na sua proposta pedagógica” (MELLO et al, de “católicos” ver CURY, 1978: 27-63.
lação da escola, que deveria promover 9
1984:14). Cf. “O Manifesto dos Pioneiros da Educação
uma educação centrada na criança. Em Nova”. Revista Brasileira de Estudos Pedagógi-
Cabe retomar a ideia de que, se a decorrência disso sofreram modifica- cos. Brasília, 150, mai./ago, 1984, p.411.
ênfase posta na educação teve o ções: o papel do educador, que deveria 10
Cf. O Manifesto dos Pioneiros da Educação
mérito de chamar a atenção para a oferecer os meios para que a própria Nova, op. cit., p. 414.
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necessidade de universalizar a instru- criança se desenvolvesse; a natureza dos Segundo alguns pesquisadores, 75% das
ção elementar, cumpriu também uma programas que deveriam ser adaptados instituições de ensino secundário existente
ao desenvolvimento mental e psicológico na época eram particulares e católicos.
finalidade menos consciente, mas não 12
da criança; e os métodos e técnicas de Cf. “O Manifesto dos Pioneiros da Educação
menos verdadeira, que era a de Nova, op. cit. p .407.
ensinar e aprender. Enfim, sofreram
mascarar a realidade da exploração modificações todos os aspectos internos
econômica, deslocando do plano da da instituição escolar.
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produção para o plano educacional a “Por processo social (...) entendemos (...)
origem das questões mais relevantes que o sentido das relações sociais são media-
da sociedade brasileira. tizadas por condições históricas e que os
processos têm duas dimensões: a da consci-
ência subjetiva da situação e a do sentido e
Notas direção objetivos que assume. Então, entre os
sujeitos há uma realidade social objetiva e
1 construída, cujas significações podem ser
Referimo-nos aqui às classes bur-
compreendidas de diferentes modos. O
guesas nacionais ligadas às indústrias processo social da ...(Política educacional) ...é
nascentes; às classes trabalhadoras e uma interferência deliberada nas tendências
às classes médias, grupos sociais da vida social com a finalidade de modificá-las
típicos dos meios urbanos. Nesse conforme um tipo de interpretação da reali-
período, o incipiente setor industrial dade” (MARTINS, 1975:54-5).
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não tinha poder para competir com o O ensino técnico-profissional na primei-
setor agrário-exportador. Porém, ra República destinou-se aos “desfavore-
contava com significativos núcleos cidos da fortuna” (sic) e teve como obje-
operários, representados de um lado, tivo a “regeneração pelo trabalho” (sic).
por trabalhadores que abandonavam Apesar de existir com estas característi-
o campo e, de outro, por imigrantes cas já no Império, foi com o decreto
europeus portadores de uma consci- 7.566 de 23/09/1909, assinado pelo
ência social formada no velho mundo. presidente Nilo Peçanha, que esse tipo
Outro setor social que começou a se generalizou. O decreto “cria nas capi-
ganhar expressão foi a chamada tais dos Estados da República, Escolas de
“classe média”, proveniente dos Aprendizes e Artífices, para o ensino
quadros burocráticos, do comércio e profissional primário e gratuito”. Em
do exército (CAPELATO, 1989:142; 1910 dezenove Estados brasileiros con-
NAGLE, 19174:29). tavam com essas escolas mantidas pela
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Progresso social, no contexto que União (NAGLE apud FAUSTO, 1980:273-
antecedeu o Movimento revolucionário 4).
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de 30 e, principalmente após 30, equiva- A expressão entre aspas é do Ministro da
le a progresso material. Este foi interpre- Educação de Getúlio Vargas, Gustavo Capa-
tado nesta época “... como condição nema (apud FREITAG, 1977:45).
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primeira para superar-se o atraso e O grupo dos “católicos” obteve muitas
elevar o país a grande potencia mundial” conquistas no período; conquistas estas
(CAPELATO, 1989:29-72). incorporadas à Constituição de 1934. Sob
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Os ideais de uma educação pensada a pressão desse grupo, o Ministro da
com o fim de redimir a sociedade e Educação, Francisco Campos, reintroduz
construir um mundo novo e igual para nas escolas públicas e oficiais (obrigatori-
todos já não eram novos quando surgi- amente leigas desde a Constituição de
ram no Brasil. Suas raízes localizam-se no 1981) o ensino religioso facultativo (De-
bojo do pensamento liberal, resultante creto 19.941 de 30/04/1931). Os “católi-
das transformações que estruturaram a cos” defendiam o ensino academicista e
sociedade burguesa. Localizam-se, por- formalista que os pioneiros desejavam
tanto, no século XVIII, no contexto histó- superar. Foram ainda árduos defensores
rico das revoluções industrial e francesa, do ensino particular, considerado como

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