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Sumário
aproveitou para ver algumas fotos expostas no cartaz, horas da noite e as ruas já ficavam vazias. Pelas
onde estava escrito em letras garrafais: A saga dos calçadas, apenas os corajosos caminhavam. Apenas
guerreiros shaolins. os guerreiros. Apenas os guerreiros shaolins!
A noite estava estrelada e na frente da bilheteria, Após lutar contra alguns postes pelo caminho,
uma fila havia começado a se formar. Ali havia jovens, abriu a porta de casa e deparou-se com dois grandes
senhores e até casais (os quais já praticavam ali uma mestres, os quais estavam a esperá-lo. Ao ser
prévia do que iria acontecer entre eles lá dentro). perguntado sobre o filme, ele se sentou e relatou aos
Valério geralmente ia sozinho ao cinema, não mestres as incríveis façanhas que ele testemunhou no
porque gostasse da solidão, mas porque os amigos de cinema. Depois da calorosa recepção, foi ao quarto
sua idade não tinham condições de pagar o ingresso. para guardar sua blusa, digo, o manto sagrado que o
Quanto a ele, dinheiro não lhe era problema, pois, encobria.
desde oito anos trabalhava como sorveteiro e sua Ocorreu que, ao abrir a porta do quarto, percebeu
caixa de isopor era uma companheira diária. Durante atrás dela, uma vareta de bambu e não teve dúvidas,
a semana, economizava ferrenhamente para atingir pegou o cajado e praticou os novos golpes que havia
seu principal objetivo, isto é, assistir ao filme de kung aprendido naquela noite. Entretanto, ao praticar certo
fu que passava todo sábado no Cine Avenida. movimento, sentiu alguma resistência e forçou seu
Eram oito horas da noite quando o filme acabou. cajado por um segundo, até que caiu em si.
Valério esperou que todos saíssem e levantou-se por Ao analisar aquele cajado, percebeu que aquela
último. Ao passar pela porta, sentiu no rosto uma era de fato uma vara de pescar e que sua ponta esta
rajada de vento e parou para escutar os barulhos que sendo presa por uma linha. Ao acompanhar a trajetória
havia ao redor. Precisava certificar-se de que estava da linha, constatou que um anzol havia fisgado a
seguro, afinal estava em plena dinastia Chan e era um lateral de seu joelho e como ele havia forçado, a ponta
dos maiores lutadores shaolins de toda a China. estava bem cravada na sua musculatura.
Pacientemente esperou os carros passarem Qualquer pessoa se desesperaria, gritaria,
e atravessou a avenida Siqueira Campos como se clamaria por socorro... Mas ele não! O controle da dor
flutuasse sobre ela. Perguntou as horas ao frentista era o primeiro ensinamento dos grandes mestres e
do Auto Posto Rhima, só para poder encará-lo conforme a “senda óctupla”, ele deveria buscar agora
desafiadoramente. Depois de ouvida a resposta, a “atitude correta”. Então, lembrou-se de seu princípio
assentiu com a cabeça e murmurou com sons quase máximo: a cura pelo contrário.
inaudíveis: – Pelas bênçãos de Buda! Conforme este princípio, adquirido em seus dez
Naqueles tempos antigos, mal passava das oito anos de vida e muita reflexão, quando se come demais,
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água, etc... Brincava com o animal e até conversava chegado e estaria na sala distribuindo presentes.
com ele. –– Mas como tia? Ele nem desceu aqui? –
Dois dias antes da data marcada vieram buscar o perguntou intrigado.
bode. José não estava em casa e quando chegou teve –– É que ele desceu pela porta da frente –
a maior decepção. Havia prometido ao bode que não respondeu ela.
deixaria ninguém levá-lo. José nem comia direito. Se Quando José entrou na sala e viu aquele velhinho
via carne no prato, achava logo que era o bode. de roupa e touca vermelha correu para abraçá-lo. Papai
Na noite de natal ele foi com a família até a casa Noel então lhe disse:
de sua avó materna onde tradicionalmente se dava a –– José. Tenho um presente para você.
ceia, mas nem brincou muito com seus primos. Então Dizendo isso, o bom velhinho entregou-lhe uma
uma tia lhe disse: caixa. Na caixa havia um pequeno chaveiro com um
–– José fica no quintal olhando pro céu que Papai bode de plástico pendurado.
Noel virá com seu trenó e descerá lá para deixar os Nem assim José ficou contente e, sentado no
presentes. sofá, ficou assistindo Papai Noel chamar os nomes e
Ao chegar no quintal, ele viu dentro de um tanque entregar os presentes.
alguns caranguejos vivos. Imaginou um daqueles –– Paulo... Lúcio... Ângela... Suzana... André...
caranguejos enormes apertando a ponta de seu nariz José...
e ficou com medo. Depois achou até engraçado, mas Ops! Papai Noel havia chamado seu nome outra
decidiu manter distância do perigoso tanque. vez. Daí ele olhou na mão do velhinho e viu apenas
E assim José ficou um bom tempo um pequeno embrulho, o qual foi-lhe entregue.
olhando as estrelas, lá longe, no infinito... Rasgou o embrulho e encontrou dentro dele um
Queria ser o primeiro a ver Papai Noel e perguntar único botão de camisa. Então, sem entender nada,
pra ele, porque é que ele deixou que levassem o seu olhou para o Papai Noel, que foi logo lhe dizendo:
bode. –– Abra a porta José, seu presente está detrás
Vez em quando algum tio ou tia trazia-lhe algo dela.
para comer, mas ele não tinha fome. Alguns tios saiam Devagar ele abriu a porta da sala e foi como se um
na porta da cozinha só para vê-lo sentado esperando raio de luz iluminasse seu rosto, pois, ali na calçada,
Papai Noel e até se emocionavam com aquela criatura estava o seu amigo bode, vivo e salvo como ele já nem
sensível e inocente. Todos já sabiam da história do bode. esperava.
De repente houve um alvoroço entre as crianças do José ficou tão feliz que até parecia ser outro.
quintal. Uma tia veio avisá-lo de que Papai Noel havia Pegou logo seu bode pela corda e conduziu-o até o
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Era um senhor baixo, magro, com uns olhos vívidos voltar para o Brasil.
e misteriosos. –– Compreendo...
–– Bom dia. É o Sr. Lúcio Oliveira? Despediram-se e o sujeito partiu deixando-o a
–– Sim, sou eu mesmo, pois não? – respondeu. sós com suas recordações e aquele envelope.
–– Há quinze anos tenho um envelope para lhe Lembrou-se que naqueles anos idos, mal
entregar. Meu nome é Pedro Morgado e sou sobrinho chegava da escola, já ia direto para a casa de Seu
de Hélio Fontes. O senhor se lembra dele? Hélio emprestar quatro a cinco livros e devorar suas
O nome Hélio Fontes caiu-lhe como uma bomba histórias deliciosas.
e o levou a lembrar-se dos tempos remotos da infância, Por um momento lembrou-se de que quando
onde os bairros tinham outros nomes como buraco da sua mãe saia para trabalhar, dizia: Não abra a porta
onça, caminho do gado, morro do cruzeiro, morro dos para ninguém e cuidado com o “esquadrão da morte”.
macacos, etc... Lembrara-se de que começou a gostar Então ele se trancava e ali ficava a ler uma história
de ler na casa de Seu Hélio, seu vizinho, onde havia atrás da outra, conhecendo castelos, bruxas, fadas e os
centenas de livros. mais estranhos personagens.
–– Claro que me lembro! Grande amigo Certa feita, Seu Hélio pediu-lhe que escrevesse
de minha família. Por onde anda ele? uma história, dizia que iria ilustrá-la. Foi quando
– Faleceu há quinze anos, mas deixou este envelope ele escreveu seu primeiro livro. Um dia, por aquela
para ser entregue ao senhor. Por estes dias, ao abrir o época, acordou e se deparou com a mobília de Seu
jornal eu vi um artigo com o seu nome e pude enfim Hélio sendo posta num caminhão. Ele estava de
localizá-lo. Não seio o que este envelope contém, mas mudança e um irmão cuidava de transportar tudo.
parece que é um livro. Enfim, só vim cumprir a última Antes de partir, a pedido de Seu Hélio, foram-
vontade de meu falecido tio. lhe entregues alguns livros, entre eles, Flaubert,
–– Lamento saber disso, há mais de vinte anos Balzac, Bocage... Uma literatura adulta demais para
ele partiu desta cidade e ninguém nunca me disse o o universo fantasioso de uma criança. Foram dias
que aconteceu. Eu era garoto ainda. Seu Helio era um difíceis, Seu Hélio era-lhe como um segundo pai...
homem muito estimado e que me influenciou muito. Entre saudoso e comovido, rasgou a borda do envelope
–– Quando ele morou aqui, há vinte anos, era e tirou dele um livro. Quase não acreditou quando
procurado pela ditadura. Assim que foi descoberto, viu seu nome escrito na capa. Ao folheá-lo riu com
teve de viver exilado. Não houve tempo para se a história que já nem se lembrava mais de ter escrito.
despedir. Depois viveu ainda cinco anos na Argentina. Nela, Seu Hélio era um Mago e tinha um imenso livro
Morreu sem poder realizar seu sonho que era o de de magia em sua biblioteca. Quando os vilões do
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fiquei de passar na casa dela depois do expediente. ouvi uma voz de criança vindo do jardim; perguntei à
Naquele mesmo dia, eu me vi diante de um portão professora, mas ela, meio vacilante, afirmou que não
enorme e bati durante muito tempo até que vi uma havia ninguém. Quando a aula cessou, pude ouvir
sombra saindo dentre as ramagens do jardim. Era a respiração de pessoas na sala ao lado. Pareciam
uma senhora franzina, usando um par de óculos ofegantes e receosos. A primeira aula foi breve e, antes
grande e com uma lente tão forte que aumentava de sair, D. Lina me deu um chapéu vermelho e pediu-
assustadoramente seus olhos. me que eu o usasse toda vez que viesse ter aula, assim,
Perguntei-lhe sobre as aulas e ela me disse que de longe ela me reconheceria.
não lecionava. Falei-lhe da indicação de seu amigo, Quando saí da residência, espiei pela lateral e vi
o Sr Zilcher. Ela ficou um tempo em silêncio; depois um grande galpão de madeira, fechado por correntes e
sorriu discretamente e pediu-me que voltasse no dia muitos cadeados. Como se tivesse contendo algo muito
seguinte, no mesmo horário. Eram quatro e quinze da precioso. Para não parecer curioso, não fiz perguntas,
tarde. mas sabia que aquela casa estava cheia de mistérios.
Na tarde seguinte eu estava ansioso para que o
expediente acabasse, e quanto mais ansiava, mais ele
parecia interminável.
Ao chegar ao local, não demorou muito para
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que D. Lina aparecesse e me abrisse o portão. Logo Minha mãe sempre dizia: “Nunca faça nada
ela foi me conduzindo pelos jardins e à medida que pela metade meu filho, acredite no seu instinto e
entrávamos na residência, os sons dos automóveis iam não economize na sua inteligência”. – Por isso, quis
ficando distantes e desaparecendo. Ao abrir a porta estudar música com seriedade e fui pedir permissão
da sala, senti um enorme cheiro de madeira antiga e ao Padre Juca para estudar no órgão da igreja.
vi, num canto da sala quase vazia, um piano e uma Padre Juca me recebeu muito bem e me
banqueta. permitiu acesso ao órgão, onde eu estudei quase
Ela o abriu e tocou uma peça para que eu todos os dias daquela semana, após o expediente.
escutasse, era “Le Lac de Come”. Neste momento, eu Quando o dia de minha aula chegou, eu estava
olhei para o busto de Beethoven sobre o piano, para preparado. E lá fui eu para a velha mansão alaranjada,
as teclas de marfim amareladas pelo tempo e percebi não sem antes me colocar o exótico chapéu. Ao
ali as peças que faltavam no imenso quebra cabeça em me aproximar da mansão vi D. Lina se despedindo
que minha vida havia se tornado. de um Senhor na calçada e cheguei a tempo de ser
A primeira aula seguia tranquila quando súbito apresentado.
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–– Este é o compositor Villa Lobos – me disse de Ary Barroso, (dizem que ele compôs Aquarela
sorrindo. do Brasil em sua homenagem). Certo dia naquela
–– Muito Prazer, eu sou Mário. semana, eu a vi passeando com seu cachorrinho e a
–– Bem vindo à nossa Sociedade – disse chamei para conversar. Ela, como noiva do famoso
o compositor colocando o chapéu vermelho Ary barroso, conhecia bem o meio musical da cidade
sobre a cabeça. Por fim despediu-se e partiu. e estava sempre muito bem informada. Por isso eu lhe
Enquanto entrávamos na residência espiei pela lateral perguntei sobre D. Lina no que ela foi logo me dizendo:
e constatei novamente o misterioso galpão. Ao chegar - D. Lina chegou a São José dos Campos logo depois da
à sala de música havia dois jovens e uma criança nos revolução de 1917. Trouxe entre os seus pertences um
esperando. piano e um órgão Hammond, o qual chamou a atenção
–– Estes são meus sobrinhos; Modest, Layla e de toda a cidade, Aqui ela começou a ensinar a todos
Zayra. Eles estão fugidos da União Soviética, mas os músicos da região. Ela era casada, mas achava que
você não deve revelar a ninguém a presença deles o marido havia morrido na revolução.
aqui, para que não chegue ao conhecimento da polícia –– E porque ela parou de lecionar? – perguntei
secreta russa. curioso.
–– Muito prazer. Podem contar comigo. – –– Dizem que ela, alguns anos depois, apaixonou-
respondi. Naquele momento eu estava começando a se perdidamente por um organista joseense a quem
compreender o mundo de D. Lina. também lecionava. Ambos viveram muito felizes até
Ao cumprimentá-los, não pude deixar de reparar que o marido russo de D. Lina resolveu aparecer e
em Layla; ela era baixa, gordinha e tinha um olhar como punição não deixou mais que ela lecionasse.
penetrante. Falava com delicadeza e sua voz feminina –– E o amante, não a procurou mais? – perguntei.
soava dócil como uma flauta. Encantei-me tanto –– O amante de D. Lina marcou de fugir com
que pensei comigo, “um dia esta Layla será minha ela na estação, mas ela não compareceu e ele partiu
esposa”. sozinho.
Eu tinha poucos e grandes amigos e Agradeci as informações e a Srta Nivalda
definitivamente meu maior amigo era Katsumi, continuou sua trajetória. Quando compareci à aula na
que quase sempre me vencia nos jogos de dama. terceira semana, vi pessoas estranhas no quarteirão.
Quando lhe falei de Layla, ele e Celina, sua Havia uma agitação incomum no bairro e ao entrar na
noiva, prometeram me ajudar a conquistá-la. rua da mansão notei que vários homens caminhavam
Toda manhã, passava pelo Café Porão, a mulata mais em minha direção, alguns deles estavam armados.
famosa de São José dos Campos, a Srta Nivalda, noiva Aquilo tudo era um prenúncio, logo eu saberia o que
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era de fato a Sociedade do Chapéu Vermelho. soviéticas, mas ela conseguiu escapar escondendo-se
entre as bagagens do trem.
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Imediatamente fui à banca e comprei um exemplar da na residência até que por fim, desapareceu entre as
“Folha da Manhã”, para saber mais sobre o assunto. ramagens do jardim.
Qual não foi a minha surpresa ao ver num canto da Acesas, as lamparinas cintilavam feito vaga-
primeira página um texto onde se lia: “A pianista Lina lumes sobre o azulôr das ruas ao cair da noite.
Perolovsky deixa a Sociedade do Chapéu Vermelho, Layla não saia de minha cabeça.As pequenas gotas
que passa a se chamar Luz Vermelha Internacional”. de chuva deram lugar a uma grande tempestade.
Katsumi e eu conversávamos sobre o assunto Da janela de meu quarto eu podia ver as águas
no Café Porão quando, Celina apareceu para nos sulcando os morros e precipitando-se sobre os
apresentar sua nova amiga. Era Layla. Layla falava despenhadeiros do banhado formando cachoeiras.
razoável o português (estudou a língua na Rússia), A tarde havia sido perfeita e eu só lamentava por D.
mas nossos olhos pareciam se entender perfeitamente Lina, mas, logo aconteceria algo que iria mudar toda a
e, quanto mais eu a via, nos seus risos e gestos, sua vida e de certa forma, a minha também.
mais aquela visão ia me tornando uma necessidade.
Notei que ela trazia um broche onde se lia “Estou
feliz”. Ao comentá-lo fiquei sabendo que ela própria
havia pintado a inscrição e que a mudava a cada
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semana. O mês de Natal é para mim a época mais
A tarde já começava a se despedir quando, súbito, especial do ano. Não só pela data, como também pela
um som troou pelas redondezas e meio que assustada, felicidade que se espalha entre as pessoas nas ruas.
Layla segurou no meu braço. Instintivamente pequei Por essa época, o povo parece tornar-se uma grande
a sua mão e a confortei. Em outros tempos isto seria família e então nós nos damos conta de que aquelas
como pedi-la em casamento. pessoas que a gente encontra todo dia no ponto de
Era hora de nos despedirmos, pois, algumas ônibus, na padaria, na escola, ou seja onde for, são
gotas de chuva anunciavam que a tempestade estava companheiros que nos tornam a vida mais prazerosa e
próxima. Celina e Katsumi ficaram no Café Porão e eu que, independente de raça, credo ou idade, são irmãos
levei Layla até sua casa. que constituem nossa família na arte de viver.
Ao chegarmos lá eu segurei sua mão e disse que Dezembro mal começou e já havia muitas
ela me havia tornado o dia inesquecível. Ela sorriu novidades no ar. A Rádio da cidade acabava de
envergonhada, me agradeceu e apertou minha mão anunciar a apresentação do organista joseense
como dizendo que se sentia da mesma maneira. A Augusto Barroso, um dos maiores organistas do
chuva ameaçava aumentar e ela apressou-se a entrar mundo, o qual viria direto dos Estados Unidos
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para uma única apresentação em São José. concluímos que não havia nada que pudéssemos
Nesse dia, eu estava atendendo um cliente quando fazer. Economicamente eu não teria condições de
Layla entrou e me entregou um bilhete. Seus olhos sustentá-la. Por fim, entendemos o nosso amor como
estavam lacrimosos. Durante nosso namoro assimilei um tesouro que carregaríamos conosco pelo resto de
sua peculiaridade de escrever em seu broche a síntese nossas vidas.
do que se passava em seu mais íntimo recanto. Era Enfim o dia do Concerto chegou. Era sábado e
como um atalho para compreendê-la e, naquele eu me ofereci para ajudar D. Lina nos preparativos.
momento em seu broche estava escrito “o destino é Quando cheguei à sua casa, o galpão estava aberto e
injusto”. Perguntei o que estava havendo, mas ela algumas pessoas estavam removendo de lá um enorme
disse apenas que era complicado demais para falar ali, órgão Hammond, o qual seria usado no concerto. Ela
mas que depois me explicaria. Dizendo isso partiu. estava radiante e disse que, depois que Augusto partiu,
Quando abri o bilhete vi que era um recado de ninguém mais havia tocado naquele instrumento, nem
D. Lina: “Mário, preciso falar-te ainda hoje”. Naquele ela própria.
mesmo instante, pedi licença ao patrão e saí. Algo À tarde, na sala de espera da mansão, conheci
estava acontecendo e eu precisava saber o que era. Augusto. Era um sujeito vívido, esclarecido e
Quando cheguei à casa de D. Lina ela foi logo me determinado. Conversamos por um momento, até
dizendo que nas últimas semanas trocara cartas com que D. Lina entrou. Ela havia se produzido, tirado os
Augusto. Disse que, ao saber de sua saída da Sociedade óculos e estava linda. Quase nem a reconheci.
do Chapéu Vermelho, Augusto lhe escrevera propondo À noite, o salão da prefeitura estava lotado e a
casamento. Disse também que, depois de ponderar apresentação foi um sucesso. Layla sentou-se ao meu
sobre sua vida decidiu aceitar o pedido e combinaram lado. No seu broche ainda se lia “o destino é injusto”.
de partirem no dia da apresentação dele em São José. Disse-lhe que queria ser aquele broche, assim eu iria
Perguntei se Layla iria junto e ela respondeu com ela, onde quer que ela fosse. Não consegui ficar
afirmativamente. Era como se alguém tivesse me dado até o final da apresentação, pois era uma tortura estar
um soco. Apenas baixei a cabeça e nem perguntei ao lado da mulher amada e fingir-me conformado com
porque. Não tinha nada para oferecer que não meu sua partida. Reencontrei-a no dia seguinte, na estação
amor. Por um momento veio um sufoco. Uma sensação e despedimo-nos emocionados. Passariam-se décadas
de vazio e de solidão. D. Lina tentou me confortar, sem que eu as visse outra vez.
mas eu não conseguia atinar para suas palavras. Alguns anos depois eu conheci Mitiko, prima de
Layla se aproximou enquanto D. Lina se Katsumi. Disse-lhe que jamais esqueceria Layla, mas
afastava. Ficamos um longo tempo conversando e que se ela me quisesse eu estaria disposto a aprender
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a amá-la. Com ela me casei e tivemos três filhos. Neil Armstrong pisou pela primeira vez em solo lunar.
Trabalhei muito, comprei o Café Porão e o transformei Apesar de tantas mudanças, parodiando “As time goes
no melhor e maior restaurante da cidade. Tornei-me by”, não importa o quanto as coisas mudem, sempre
um grande empresário mesmo ainda perdendo nos haverá alguém amando águem, e sempre haverá
jogos de dama para Katsumi, que continua como contos, poesias ou músicas que falem de amor, porque
sempre sendo o meu melhor amigo. é ele que dá sentido à vida, que remove dificuldades e
Este ano eu vi na televisão uma homenagem que monta sociedades como montou um dia a Sociedade
fizeram à D. Lina em Nova York, pelos quarenta anos do Chapéu Vermelho.
de criação da Luz Vermelha Internacional. Augusto
havia falecido há uma semana num acidente na Quinta
Avenida e ela me pareceu ainda estar abalada. Pelo
programa ela deveria tocar o Concerto nº1 para Piano
e Orquestra de Tschaykowsky, mas, ela conversou
algo com o maestro, sentou-se ao piano e apenas
tocou “Le Lac de Come”. Tocou tão expressivamente
como nunca ninguém havia tocado antes. O auditório
inteiro se levantou para aplaudi-la e quando a
câmera filmou a platéia eu vi Layla entre a multidão.
Foi então que, para minha surpresa a câmera foi
se fechando e enquadrando o rosto de Layla, até
deixá-lo em close. Ela estava até mais linda do que
quando partiu. Olhava fixamente para a câmera
como se quisesse falar algo e, quando a câmera
desceu inesperadamente, focalizou seu broche,
onde se pôde ler a frase: “Mário, ainda te amo!” ·
Naquele momento, apenas abracei minha esposa
e ficamos em silêncio por um instante. Até que a
câmera se abriu para a multidão e Layla se perdeu em
algum lugar da tela. E essa foi a última vez que a vi.
O mundo de hoje é muito diferente. Há algum tempo
surgiu o Rock´n´roll, Woodstock, e há poucos dias
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Fato Novo
Quando desceu do ônibus próximo ao seu bairro, veículos que chegavam ao alto tinham de fazer
percebeu que aquela tempestade havia passado por ali o retorno e voltar, pois, não havia como passar.
e, quando cruzou a esquina da rua onde morava, logo Algumas pessoas foram jantar e outras lanchavam na
avistou um alvoroço perto de sua casa. Algo havia sacada de suas casas. Houve até quem viesse lanchar
acontecido. Toda a vizinhança estava na calçada. Ao na rua para não perder nada do que iria acontecer.
se aproximar não foi difícil detectar o motivo de tanta Já eram dez horas da noite e nenhuma providência
agitação, pois, caída sobre a rua estava uma imensa e havia sido tomada. Alguns vizinhos já estavam
velha árvore. revoltados. Ao se ouvir algum barulho de carro logo
Uns diziam que ela havia sido atingida por um todos corriam à rua para saber se era alguma autoridade
raio, outros diziam que a árvore havia simplesmente chegando. Muitas pessoas haviam ido dormir quando
caído, vencida pelo vento e pelo tempo. O fato é que, um carro do corpo de bombeiros apareceu isolando a
ao cair, a árvore havia rompido alguns cabos de energia área, inclusive Décio. Tudo o que soube depois lhe foi
elétrica e com isso não se podia assistir televisão, relatado por sua mãe, a qual permaneceu no cenário
coisa que todos faziam nesse horário. Eram dezenove do evento até as duas horas da manhã.
horas no horário de verão e, com o dia ainda claro e Segundo ela, após os bombeiros terem isolado a
abafado, não havia outra coisa a fazer a não ser ficar ali, área, apareceu um carro do Departamento de Trânsito
observando o desenrolar daquela situação inesperada. fechando a rua e, na sequência, um comboio com seis
Passou-se algum tempo e praticamente todos haviam carros, se aproximou. Um farol enorme em um dos
ligado para a empresa de energia, para os bombeiros, carros iluminou o local e a energia elétrica de toda
etc... Até a Defesa Civil foi avisada. As mães, cuidadosas a quadra foi cortada. Enquanto um grupo serrava a
de seus filhos, aconselhavam: árvore, outro cuidava da manutenção da rede elétrica.
–– Não brinquem perto da árvore crianças! Alguns caminhões iam e vinham transportando partes
Já alguns homens se aproximavam dela como da árvore, que não era pequena, mas que nessa noite
parecendo dizer: parecia enorme. Eram quase quinze trabalhadores
–– Nós somos adultos. Nós podemos! presentes. Entre eles havia autoridades, supervisores,
Risos e piadas se faziam ouvir por todos os operários, etc... Parecia uma operação de guerra.
lados da rua e, de um lado para outro, eram gritados As mulheres da vizinhança ficaram quase todas
comentários sobre a fatídica árvore. Enquanto isso, acordadas acompanhando o desfecho da situação.
a noite foi chegando e dentro das casas, velas eram Parece que as mulheres são mesmo mais curiosas
espalhadas pelos cômodos. que os homens. Algumas delas, entre as mais moças,
A rua era na verdade um morro e todos os até discutiam qual dos operários era o mais bonito.
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e jornal do dia também não tem graça. As primeiras na cabeça. Era o fim. Você ficava torcendo pro mês
perguntas relativas ao corte, acho que surgiram depois passar depressa. Evitava sair às ruas, conversar
da guerra pois, eu me lembro que quando criança, meu com os amigos, etc... Ir a festa então, nem pensar!
pai recomendava ao seu Zé barbeiro: Depois vieram as máquinas elétricas. Melhorou muito
–– Faça o corte americano! por um lado, mas acho que a atividade perdeu um
E quando terminava eu mais parecia um mascote pouco do “Glamour”. Hoje quando vou ao barbeiro ele
do tiro de guerra. Foi assim desde os cinco anos. me pergunta qual o número de máquina que eu uso,
Depois de Elvis, os barbeiros nunca foram os se é “x” do lado, se é “y” em cima, pergunta pra que
mesmos e a nova pergunta era: lado penteio meu cabelo, etc... Só falta ele se sentar na
–– Com topete ou sem topete? cadeira e me pedir para cortar o cabelo dele.
A parte mais gostosa do corte é quando o barbeiro Cortar cabelo com mulher é meio estranho,
pega a navalha e vai contornando cuidadosamente principalmente se ela é bonita. Primeiro, o perfume
o “pé” do cabelo, isto é, a borda. Que delícia! Dá dela te envolve de tal jeito que é impossível não saber
vontade até de dormir. Pra completar, no lugar onde que há uma fêmea por perto. Depois, o toque feminino
foi passado a navalha ele roça um pouco de perfume é muito diferente. Com suas mão leves e delicadas,
e o resultado é muito refrescante. Sem falar no talco tem-se a impressão de se estar no céu. Quase não
sufocante. há diálogos, a não ser entre as cabeleireiras. Esse é
Um grande mistério são os perfumes usados um problema meu, pois, eu não sei o que conversar
pelos barbeiros, a começar pela cor. O de seu Zé com uma mulher quando ela está cortando os meus
Barbeiro era vermelho e eu nunca vi um vermelho tão cabelos. Já para elas, não há problema algum porque
vermelho em toda a minha vida. Na prateleira havia elas não ficam sem conversar nunca.
também um perfume verde e (pasmem!) um azul, mas Há mais ou menos um ano consegui encontrar
acho que eram os mesmos. Seu Zé misturava anilina um daqueles barbeiros antigos numa cidadezinha aqui
para obter a cor exclusiva. perto, mas, a semana passada soube que ele dobrou o
Os aparelhos também eram diferentes. Naquele valor do serviço e agora só atende com hora marcada.
tempo se usavam as famosas “maquininhas”. Não Deu-me uma saudade do seu Zé Barbeiro.
era raro você ser surpreendido por uma tesoura
“cega” ou uma maquininha descuidada. Quando
isso acontecia você ia do paraíso ao inferno. O
pior acontecia quando, por descuido do barbeiro,
você saía da barbearia com um “caminho de rato”
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O grande paradoxo!
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Quero nunca me fartar
das coisas
de outras pessoas estarão fazendo a mesma coisa que que a vida está recheada de coisas maravilhosas e de
eu. Não é maravilhoso? E quando eu me emocionar que eu nunca, nunca irei me fartar delas.
com alguma cena, me revoltar com alguma notícia
ou vibrar com algo, um gol da seleção brasileira, por
exemplo, milhares de pessoas estarão se emocionando,
se revoltando ou vibrando exatamente como eu.
E os planos? Sim, os planos! Quem não tem
planos para o futuro? Quem não deseja conquistar
algo, vencer um desafia, melhorar de vida, melhorar
a saúde, o relacionamento, experienciar coisas
novas, fazer passeios, aprender um instrumento,
escrever, pintar, e adquirir tantas outras habilidades
e profissões?
Parece que somos todos iguais ainda que
diferentes e, se eu posso perceber igualdade entre
tantas diferenças, posso pensar que como eu, existem
bilhões de pessoas que torcem, anseiam e colaboram
para que este mundo seja sempre melhor. Até pessoas
que nunca tenham frequentado uma escola ou uma
igreja, e que são tão dóceis e amáveis como qualquer
outro. Pais dedicados, famílias que também vibram, se
emocionam e buscam melhorar o mundo. Não importa
como vivam, a crença no futuro e na fraternidade
humana já é suficiente para nos unir a todos.
Pensando assim é que quando eu me sento para
trabalhar ou quando estou simplesmente vendo o
movimento nas ruas, consigo ver entre as pessoas
tantas matizes de personalidades, quanto os diferentes
nuances de cores que aprendi a observar nas árvores.
Todas alimentadas pero mesmo tronco que é o ideal
de amar e ser feliz neste mundo. Aí bate a certeza de
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O ritual de retirada de
bolo
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o ponto fica ao lado de uma rodovia... o sofá no canteiro, bem no centro do cruzamento.
Passado algum tempo, surgiram quatro pessoas. Colocamos e ficamos sentados olhando o ir e vir dos
O sol estava causticante. Torrando mesmo. Uma das carros por uns dez minutos. Era um total nonsense.
pessoas perguntou: Algum tempo depois soube de alguém que fez a
–– Não tem como ligar esse troço? mesma coisa na Avenida Paulista em São Paulo. Teve
–– Já cacei uma tomada por aqui, mas não achei até churrasco!
nenhuma. – respondi. Nisso o ônibus apareceu e
estava lotado. Esperei que todos entrassem e por
último subi carregando meu ventilador pela cintura.
Perto da porta havia um rapaz com um rádio no colo.
Ao passar por ele, vendo que ele me olhava curioso,
não perdi a chance de comentar:
–– Rádio é coisa do passado. Com o aquecimento
global a moda agora é o “personal ventilator”.
Para minha surpresa o rapaz argumentou:
–– Essa é uma profissão de futuro. Acho que dá
pra cobrar uns cinco reais por meia hora de vento
artificial.
–– Puxa! Eu não tinha pensado nisso. – respondi.
E lá fui eu conduzindo meu ventilador quase
como quem conduz uma dama num salão de bailes.
Não é a primeira vez que eu faço algo assim. Certa
vez quando morava numa república de estudantes
ganhei de presente um enorme sofá e, como não
tinha dinheiro para pagar o transporte chamei alguns
amigos e decidi por fazer o transporte a pé pelos dois
quilômetros de distância do local até nossa moradia.
Isso até seria normal se não fosse por um
acontecimento. A nossa moradia ficava num
cruzamento da movimentada Rodovia de Paulínia e eu,
em mais uma das minhas maluquices, decidi colocar
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Eu odeio pipocas!
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o tal e-mail? Logo de início, lembrei-me de que havia não o tal e-mail? Ele poderia conter um vírus e destruir
ido à minha ex-universidade para fazer a inscrição todos os meus arquivos, programas, etc... Fiquei ainda
da Pós. Teria eu deixado algum inimigo por lá? Já se mais triste porque pensei: alguém tem nojo de mim e
passaram dez anos desde a minha formatura, será que está me enviando um vírus para me destruir.
alguém ficou remoendo alguma atitude errada minha Eu não o abri e deletei o documento. Passei uma
por todo esse tempo e o rancor se transformou em semana refletindo sobre a minha conduta de vida.
nojo? Aos pouco fui me recompondo e resgatando a minha
O fato era de que o e-mail estava lá, na minha dignidade.
caixa de entrada e no assunto se lia: “eu tenho NOJO Um dia desses, comentando com um colega sobre
de você”. A palavra “nojo” que estava escrita normal o e-mail indelicado, ele me confessou que recebeu a
agora parecia estar em maiúsculas, em negrito e mesma correspondência e simplesmente deletou.
sublinhado. Alguém, que eu não sei quem, neste –– Mas você não teve curiosidade de saber quem
Cosmos em incessante atividade, estava enojado te mandou? – perguntei.
de mim. Foi então que comecei a pensar nos meus –– Não! Se alguém tiver nojo de mim, esse alguém
credores. vai ter que me engolir! – respondeu.
Peguei meu controle de contas, pulei a parte de
contas do mês, pulei a parte de contas adiadas e parei
na parte de contas atrasadas. Só havia duas. Uma do
Cartão de Crédito, sendo que, somando tudo o que
eu já paguei ao Banco dava para cobrir três vezes o
valor utilizado. Mesmo assim, eu não sabia de onde
apareciam tantos juros e correções monetárias. Neste
caso, entretanto, não havia razão para o Banco me
enviar um e-mail com aquele teor. Quem deveria estar
enojado era eu.
Quanto à outra conta, era bem mais recente. Os
gastos com a inscrição da Pós não me permitiram saldá-
la. Às vezes acontece de você atrasar uma conta, mas
nem por isso as lojas saem por aí mandando e-mails
aos clientes dizendo que tem nojo deles.
Neste momento vivi um grande dilema: abrir ou
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Uma festa de São João
Meu amigo Luizinho, filho do Tião Sanfoneiro, pessoas aguardando para ter uma entrevista com ela.
ensaiou uma música escondido do pai só para lhe Na verdade minha tia não era nem nunca foi cigana,
fazer uma surpresa durante a festa. Ele era esforçado, mas, ela era uma pessoa divertida e mesmo suas
mas era tão magrinho e fraco que eu fiquei imaginando ideias mais malucas eram sempre geniais. Talvez por
como ele conseguiria segurar aquela sanfona enorme. causa dela nossa festa seria inesquecível para muitas
Luizinho era quase que um irmão para mim e eu não pessoas. Ela era como minha mãe e não me lembro de
me lembro de nenhum evento de minha infância em nenhuma pessoa que tivesse tão bom humor e tão alto
que ele não estivesse presente. Se alguém sabia ser astral como elas.
amigo de alguém, esse alguém era o Luizinho. Talvez A festa foi um sucesso e as pessoas já estavam se
por isso mesmo, muitas vezes eu quis ser como ele. despedindo. Dava para ver que elas estavam satisfeitas.
Lá pelas dezessete horas, algumas vizinhas Não pude conter o riso quando ouvi o Luizinho, aquele
apareceram para ajudar na cozinha e de lá vinha um garoto magrelo, dizer todo contente à sua mãe:
cheiro delicioso. –– Mãe, a cigana falou que eu vou ter quinze
Todo ano, meu pai, que trabalhava na fábrica filhos!
de fogos e artifícios, ganhava vários produtos e os Muito tempo se passou e eu não sei se consegui
distribuía para toda a vizinhança. Ele os deixava ser como queria. De tudo, o que sei é que hoje sou
guardados em seu guarda-roupa e o mantinha à chave. um ser entre seres. Um universo entre universos. Uma
Eu e meus irmãos vigiávamos o guarda-roupa como árvore se elevando tímida em algum lugar das muitas
quem vigia um tesouro. A entrega dos fogos era o florestas. Mas há quem precise do meu fruto, e há
ponto máximo da festa entre as crianças e meu irmão quem desfrute da minha sombra.
mais velho era o encarregado de dividir e entregar
os fogos. Tarefa que ele cumpria como se fosse um
administrador. Eu o ficava observando e, admirado de
suas atitudes, pensava comigo mesmo: um dia quero
ser como ele.
A festa já havia começado quando, para minha
surpresa, lá pelas tantas, minha tia Maria apareceu
vestida de cigana e pediu-me secretamente para
espalhar que ela lia as mãos. Ela pegou duas cadeiras,
colocou-as num cantinho da cozinha e ficou por
lá. Não demorou muito havia uma fila enorme de
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Transposições oníricas
-I-
surpreendente que o nome do destinatário fosse o As palavras ainda ecoavam na minha cabeça
mesmo que o meu, tanto mais pelo fato de que a carta quando decidi ligar o rádio para quebrar o silêncio
datava de cinquenta anos atrás. e quem sabe voltar à realidade, pois, para mim, tudo
Fiquei muito curioso e decidi abrir a carta. aquilo parecia um pesadelo. Foi então que escutei a
Rasguei o envelope e percebi que dentro, além de notícia de que o Cine Hipólito estava pegando fogo.
uma carta, havia também uma foto. Quando vi a foto, Só tive tempo de pegar meu terno e saí.
meu corpo tremeu e meus olhos esbugalharam-se de Para chegar mais rápido decidi tomar um táxi.
espanto. Não era possível o que eu estava vendo, mas, Enquanto o taxista ligava o carro, uma criança apareceu
a foto, amarelada pelo tempo, não deixava dúvidas. em minha janela e olhando-me profundamente,
Não era montagem, não era nada. Por causa daquela disse:
foto, minha vida estava prestes a mudar e dali por –– Abra a porta debaixo do palco. Você precisa
diante eu jamais seria o mesmo. arrombá-la!
Nesse momento o carro começou a rodar, olhei
- II - para trás para ver se avistava o moleque, mas, ele
havia desaparecido.
Imediatamente reconheci na foto a mulher que há “Que dia mais estranho” – pensei comigo. Mal
três semanas aparecia em quase todos os meus sonhos. sabia eu os incríveis acontecimentos que ainda teria
Vestida na mesma roupa da foto, ela sempre parecia pela frente.
querer me dizer algo, mas, eu sempre despertava antes - III -
que ela dissesse.
Na foto a mulher estava na sacada de um casarão Minha casa fica há três quarteirões do Cine
e eu logo reconheci, ele fica ao lado do Cine Hipólito, Hipólito, mas, do meio do caminho já era possível
o único cinema da cidade e que está fechado há mais avistar as labaredas. Quando cheguei, já havia uma
de quinze anos. multidão frente ao prédio.
Já no limite de minha curiosidade comecei a ler Enquanto observava a entrada principal pareceu-
a carta. Era um pedido. Nele estava escrito: “Mário, vá me ter visto uma figura emergindo da fumaça e
agora ao Cine Hipólito. Há alguém precisando de ti. sinalizando para que eu entrasse. Eu sabia que corria
Apressa-te!” perigo, mas as palavras da carta não saiam de minha
Fiquei meio confuso com aquelas palavras e, sem cabeça: “alguém precisa de ti”.
saber ao certo o que fazer, recoloquei a carta e a foto Retirei meu terno e entrei. No enorme salão,
no envelope e guardei-o dentro do bolso da camisa. entre as cadeiras e paredes em chamas avistei uma
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porta sob o palco e fui até ela. Estava travada. Com existido realmente.
o pouco de fôlego que ainda tinha, saltei sobre ela Antes mesmo de abrir a barbearia, que fica ao
arrombando-a e ali mesmo, no solo fumacento, havia lado da casa, ouvi a campainha tocar. Ao abrir a porta
uma criança. Retirei minha camisa e cobri-a. Enquanto tive uma surpresa. Eram os pais da criança que eu
saía, percebi que os bombeiros haviam chegado havia salvado.
e as chamas da entrada já haviam sido apagadas. Antes que eu falasse qualquer coisa, a mulher foi
Por um momento pensei que o garoto estivesse morto, logo dizendo:
mas quando chegamos à rua ouvi-o tossir. Entreguei-o –– Bom dia, desculpe-me por vir tão cedo, mas há
ao bombeiro e desmaiei. Enquanto desmaiava pude algo que eu preciso lhe mostrar.
ver o rosto da criança. Era o mesmo moleque que Disse isso enquanto abria a bolsa. Suas mãos
havia aparecido na janela do táxi. Acordei cinco estavam trêmulas e sua face parecia consternada.
minutos depois. Um casal veio me agradecer. Eram os
pais do garoto. Quando a mulher me viu, ficou meio - IV -
assustada, como se tivesse visto um fantasma. Julguei
que ela ainda estava chocada com os acontecimentos A mulher retirou uma foto da bolsa e me
e conversei com o marido dela. Falei exatamente o entregou. Era uma foto antiga e bastante amarelada.
que tinha acontecido, mas, não tive como mostrar a Nela estava a mulher que eu via em meus sonhos
carta, pois a mesma se perdeu em meio ao incêndio. e, ao seu lado, na foto, era eu quem a abraçava.
O homem, meio incrédulo, apenas agradeceu e disse Perguntei à mulher o que eu fazia na foto e ela disse:
que tudo foi um grande milagre. Ele perguntou onde –– Também não sei. Estes são meus avós Elisa e
eu morava e o que fazia. Disse-lhe que era barbeiro e Mário. Tudo que sei é que você se parece com meu
dei-lhe meu endereço. avô e, se não fosse impossível, eu diria que é você
Quando cheguei em casa, só tive tempo quem está na foto.
de tomar um banho e dormir. Antes, agradeci –– Seu avô?
muito a Deus por ter escapado ileso do incêndio. –– É! Esta é a única lembrança que tenho dele.
No dia seguinte, ao pegar o jornal, a manchete Ninguém desta cidade o conheceu, mas, minha vó
trouxe de volta os acontecimentos do dia anterior. sempre dizia que ele foi um sonho de pessoa. Olhei
Ali se lia: “Barbeiro salva criança de incêndio” para a foto novamente. As roupas do homem eram as
Enquanto lia a manchete, na minha cabeça veio uma mesmas que eu tinha no guarda-roupa. Como podia
pergunta: “Quem era a mulher da foto?”. Mas, naquele ser?
momento, eu já nem tinha certeza se a foto havia –– Minha mãe nunca entendeu porque seu pai
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Evocações de uma foto
–– É Sílvio seu Zé. Ele está bem. na sua entonação, o tom certo da saudade.
Foi aí que eu me dei conta de que ele não –– Foi na praça né? Ali, onde é o banco? –
estava realmente bem, pois, esquecera até o nome do Perguntou o sujeito.
sobrinho predileto. Bem, pelo menos lembrara de que –– Foi lá mesmo! – disse Seu Zé enquanto me
o sobrinho é meu aluno. ajustava o avental. – Tem outra ali no mesmo lugar! –
Seu Zé já se preparava para me colocar o avental completou, apontando para uma foto também antiga,
quando entrou um senhor na barbearia. Ele aparentava mas em preto e branco.
uns sessenta anos e já entrou vasculhando as paredes. O sujeito resvalou o olhar pela outra foto, mas nem
Seu Zé o cumprimentou: se interessou muito. Seu olhar logo voltou para aquela
–– Bom dia, Tônho! que tinha em mãos e novamente a exclamação:
–– Bom dia Seu Zé. Seu Zé... Eu soube que o –– Sim senhor... Cabo Matias!
senhor tem uma foto do Cabo Matias aqui. Eu queria Seu Zé parecia adorar tudo aquilo. Ele era senhor
dar uma olhada. absoluto de toda aquela história nas fotos da parede.
–– Pode olhar. Deve ser uma daquelas ali. –– O senhor se lembra do educandário? –
–– Há! Lá está ele... Deixa eu chegar mais perto... perguntou o sujeito.
Na parede haviam várias fotos antigas. Uma delas Foi quando o outro senhor que estava na cadeira
estava meia cor de abóbora de tão velha. ao lado pediu para ver a foto. Depois foi falando
–– Mas num é que é mesmo o Cabo Matias, Seu enquanto apontava para alguém no documento:
Zé? –– Esse aqui não é o Zé das Ventas, aquele inspetor
–– O qual delas? que batia nas crianças?
–– Naquela foto ali. – E apontou para a foto mais –– É ele mesmo!
velha sem deixar de fitá-la um instante sequer. –– Minhas orelhas ficavam vermelhas cada vez
Vendo que o homem estava encantado pela foto, que ele me pegava pra Cristo. Safado!
eu, que era a pessoa mais alta no local, me ofereci para –– É, ele tinha problema de pressão alta e ficava
tirá-la da parede. Era uma foto de 30x20, junto a outras nervoso por qualquer coisa. Há se fosse hoje em dia!
do mesmo tamanho, em molduras de cores diferentes. O sujeito viu a foto de um antigo time de futebol
A moldura da foto em questão era azul. Tirei a moldura da cidade. Posicionou-se frente a ela e foi apontando
do prego e entreguei nas mãos do sujeito. Então ele e nomeando cada integrante:
exclamou enquanto olhava para a foto: –– O Chico Totó... olha o Zé Rimijo... o Pedro
–– Cabo Matias, meu Pai! Dentadura...
Falou com um certo orgulho e, dava pra reconhecer Ao ouvir aquela lista de nomes engraçados tive
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ela também quem dialogava com o semideus, Enquanto as criaturas seguiam até Bausen, ele,
levando-lhe os pedidos de todos que a procuravam. informado do que estava preste a acontecer, apossou-
Era comum o povo dos bruxos viver por até mil anos se da flauta e ficou aguardando as feras na entrada da
enquanto que o povo das fadas vivia até quinhentos caverna. Assim que elas chegaram, Bausen tocou a
anos e os humanos dificilmente completavam uma flauta, conseguindo que elas adormecessem. Depois,
era. jogando sobre elas uma poção, ordenou-lhes que
Há mil anos, o ser mais idoso do mundo era a atacassem a rainha do povo das fadas. Assim que
grande bruxa. Alguns diziam que ela possuía quase restabelecidas, as feras rumaram para seu novo destino.
dois mil anos de idade. Só mesmo a rainha das fadas a Bausen sabia que Záfia não teria poder suficiente para
conhecia e tinha com ela uma grande amizade. Alguns derrotá-las e que, ser-lhes-ia presa fácil.
até duvidavam de sua existência. Sabedor do que havia se passado, Pan, solicitou a
Por essa época, o terrível Bausen, filho de Sara para que ela fizesse uma nova poção. Desta vez o
Exagon, tornou-se rei dos bruxos, porém, caiu em sortilégio seria revertido. O próprio Pan derramou sobre
desgraça ao apaixonar-se por uma humana.No início as feras a poção, transformando-as novamente em pedra.
eles eram felizes, mas, os anos passaram e sua esposa Agora os povos estavam declaradamente em conflito.
foi acometida de uma grande doença. Bausen recorreu Com cada vez maior poder, Bausen converteu-se em
ao semideus, através da sacerdotisa de Elíseos, Sara, senhor absoluto do povo dos bruxos e tinha muitos
mas, Pan negou-se a ajudá-lo. Irritado, Bausen roubou humanos como aliados. Boa parte dos humanos,
a flauta pan, tornando-se o mais poderoso de todos os entretanto, desconhecia a existência de tão diferentes
bruxos. povos, alguns até fundaram religiões e seitas. Já o
Sem sua flauta, Pan, não conseguiria derrotá-lo. povo das fadas, fiéis à Pan, decidiu recorrer ao deus
O semideus então recorreu a alguns sortilégios que Elíseos.
prenunciaram os piores anos que todos os povos já Atendendo suas súplicas, Elíseos enviou uma
viveram. Algo terrível estava para acontecer. punição tão grande que chocou até os próprios
Transtornado, Pan ordenou à sacerdotisa Sara deuses.
para que fizesse um preparado de determinadas Em resposta ao apelo do povo das fadas, o deus
ervas e jogasse aos pés das estátuas de Ferus e Elíseos enviou à Terra a peste negra, a qual dizimou
Atron, na entrada do templo de Elíseos. Sara assim milhares de bruxos e humanos. Tanta mortalidade
procedeu. Algum tempo depois as estátuas ganharam entristeceu até o povo das fadas.
vida. Pan então as ordenou que derrotassem Censurado por outros deuses, foi determinado
Bausen e trouxessem a flauta de volta ao templo. a Elíseos para que se afastasse dos problemas
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Passados alguns instantes, Sara disse: gelado soprasse, apagando a esfera de fogo...
–– Que todos se virem para o portal, Pan está E assim, com diversas mágicas e encantamentos,
presente, mas ninguém além de mim é autorizado a o combate prosseguiu. Ao final, um raio atingiu Záfia,
vê-lo. que caiu desfalecida. Subitamente seu corpo começou
Logo as paredes começaram a se mover e eles a petrificar e a crescer até tornar-se uma gigantesca
foram enviados a outra dimensão. Enquanto isso, montanha de pedra sabão.
próximo ao castelo de Záfia, mal raiou o dia, o Bausen não teve dúvidas, a rainha das fadas
céu começou a escurecer e uma imensa nuvem se estava morta. Através de suas mágicas descobriu que a
aproximou envolvendo o castelo em muitos raios e sucessora de Záfia havia atravessado o portal e que ele
trovões. Uma enorme luta seria travada. deveria fazer o mesmo se quisesse adquirir a pedra.
Záfia postou-se na entrada do castelo e mandou Estava fraco, e decidiu voltar e preparar o corpo de
que fechassem as portas. Ali, do lado de fora, aguardou sua esposa para levá-la consigo ao atravessar o portal,
a chegada de Bausen, mas, o primeiro a chegar foi pois, conhecia bem o ditado: “quem atravessa o portal
Gesualdo que, ao vê-la foi logo dizendo: do tempo, jamais retorna”.
–– Rainha das fadas, eu mesmo a destruirei. Sou Em sua caverna, Bausen colocou o corpo de sua
Gesualdo, um bruxo e vou mostrar porque somos esposa num sarcófago cheio de ervas e antes de fechá-
superiores a vo... lo disse:
Antes mesmo que terminasse a frase, houve um –– Querida, juro-te que encontrarei a pedra
enorme clarão e Gesualdo foi atingido por um raio, azul que ira ressuscitar-te. Juntos, seremos felizes
sendo transformado em pedra. Bausen, que assistia a novamente. Irei transportá-la comigo neste sarcófago
tudo, apareceu em frente à rainha. e apenas o abrirei quando estiver de posse da pedra.
–– O poder da petrificação só quem possui são os Querida, como sinto sua falta...
grandes bruxos. Então você é uma bruxa! Não importa, Dizendo isso, Bausen fechou o sarcófago e
hoje será o seu fim. preparou-se para a viagem. Passar-se-ia ainda dois
Dizendo isso, Bausen fez com que dezenas de dias antes que ele, recomposto, atravessasse o portal.
aranhas surgissem e envolvessem o corpo de Záfia em Enquanto isso, trezentos anos à frente, em Ouro Preto,
teias. no Brasil, Pan, Florilux, Sara, Rana eu uma senhora,
Em resposta, o corpo de Záfia tornou-se haviam acabado de atravessar o portal do tempo.
incandescente, queimando as teias e as aranhas. Pan logo sumiu entre as árvores, deixando
Depois, ela lançou uma bola de fogo sobre Bausen reunidas, mas, o portal os havia enfeitiçado e, ao se
que, por sua vez, fez com que chovesse e um vento olharem, elas tiveram uma grande surpresa.
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As mulheres logo constataram que a passagem bruxa e eu tive de viver escondida. O primogênito
pelo portal as havia envelhecido. Florilux agora era de uma fada é sempre uma mulher, mas, como Záfia
uma linda mulher. Rana percebeu que, a senhora herdou os poderes de Exagon, sendo uma bruxa, teve
que lhe aplicou o antídoto não havia envelhecido e um filho homem. Para que ninguém descobrisse,
questionou-a: meu neto foi entregue a Exagon para ser criado como
–– Porque a senhora não envelheceu como nós? filho.
–– Você está enganada, eu também envelheci. –– Então a senhora é minha avó e Bausen meu
–– Mas está com a mesma aparência de antes da irmão? – perguntou Florilux.
travessia!? – observou Rana. –– Isso mesmo, querida, infelizmente Bausen
–– É que este não é meu corpo de fato – disse isso se tornou um tirano. Ele nunca soube dessa história
enquanto sua face magicamente começava a mudar. e talvez, só por isso ainda estamos vivas. Ele está
Pouco depois, Rana e Florilux exclamaram determinado a nos destruir, mas, eu irei protegê-la.
surpresas: –– Eu sempre soube de tudo, Bertha. – disse Sara,
–– A grande bruxa!!! dirigindo-se à grande bruxa. – e continuou – O tempo
–– Tive medo de que não me deixassem do portal é diferente e Bausen demorará ao menos uma
acompanhá-las por isso assumi outra aparência. década para nos encontrar. Até esse dia, devemos estar
–– Você veio pra me proteger, não é? Foi minha atentas. Aqui devemos construir nossas casas e vivermos
mãe que pediu não é? – perguntou Florilux – Ela gosta misturadas aos humanos até que Bausen nos encontre.
muito da senhora! – completou. E ele nos encontrará, porque assim foi profetizado.
–– Florilux, agora que estamos longe do reino das Assim se deu que, elas construíram suas casas e
fadas está na hora de você saber a verdade sobre a sua se adaptaram à rotina dos humanos. Florilux, um
origem. ano depois, decidiu tomar aulas de pintura com
Todos se sentaram e a grande bruxa começou a um jovem escultor e pintor mineiro. Mais um ano
contar sua história: se passou e ela se sentiu atraída pelo professor.
–– Há quase mil anos eu era a rainha do povo das No ano seguinte, enfim, começaram a namorar.
fadas quando me apaixonei por Exagon, o rei do povo Antonio estava totalmente apaixonado por Florilux.
dos bruxos. Tivemos secretamente um caso e dele Até que um dia, ela resolveu contar-lhes sua
nasceu Záfia sua mãe. Como todos sabem a união entre história e quem de fato ela era. Também nesse dia,
povos diferentes era proibida e em represália, Elíseos preocupada com o rumo das coisas, Bertha, a grande
me condenou a viver até o falecimento do último ser bruxa, pediu a Sara para que consultasse Elíseos
da minha estirpe. Além disso, ele me transformou em sobre a possível união entre Florilux e Antonio.
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Elíseos, que ainda se culpava e lamentava por ter Construíram então um templo e ao lado um
enviado a peste negra à Terra, enviou através de Sara, pequeno restaurante. Chamaram-no Casa das Fadas.
uma resposta surpreendente. Tão surpreendente Logo ficaram conhecidas na região.
que mudaria o destino de todos os povos. Vinha doentes e pessoas até de outras cidades para
Sara Procurou Bertha. Trazia consigo um oráculo conhecerem as famosas “Fadas do Sul de Minas”.
de Elíseos. Nele, o deus determinava que nenhum Florilux casou-se com Antonio e viveram felizes
dos povos poderia viver mais de cento e vinte anos. por alguns anos até que, Sara foi visitá-los.
Também determinava que todos os povos poderiam –– Bausen está chegando! – informou Sara.
ser unir indiscriminadamente e que todas as punições –– Que devemos fazer? – perguntou Florilux.
dadas em razão da união entre povos diferentes seriam –– Aqui há muita gente, devemos partir para
canceladas e abolidas. travar a luta em outro lugar e evitar que esta gente
Ao ler o oráculo, Bertha suspirou aliviada e sofra.
entre prantos sussurrou: –– Para onde iremos?
–– Estou livre! –– Para o Vale do Paraíba. Lá temos uma missão
O oráculo também dizia que todos os que a cumprir.
atravessaram o portal deveriam seguir até o sul de E assim todos se reuniram e viajaram. No meio
minas, onde a flauta pan seria finalmente resgatada. da estrada, Sara parou e disse:
Antonio, ao conhecer a história de Florilux, passou –– Agora é chegada a hora!
a apoiá-la e se dispôs a seguí-la na jornada. E assim, Subitamente o céu começou a escurecer e
todos se reuniram e seguiram viagem. ouviram-se vários estrondos por toda parte. Parecia
Quando chegaram ao seu destino, rapidamente que o mundo estava acabando.
se estabeleceram. No vilarejo em que foram morar Florilux caminhava pela estrada quando, bem
havia muitos doentes e, Florilux, desejosa em ajudar, à sua frente, surgiu Bausen. Estava velho e parecia
se lembrou da pedra azul e sabendo que o povo do transtornado. Trazia nas mãos a flauta pan e ao seu
lugar era muito religioso pediu a Antonio que fizesse lado, sobre o chão havia, um sarcófago.
uma imagem de santa, que fosse oca e inserisse dentro –– Eu só quero a pedra! – disse Bausen.
a pedra azul. –– Se eu a entregar, você devolve a flauta pan? –
Antonio assim fez e, onde havia doentes, eles propôs Florilux.
levavam a imagem da santa e ao haver contato entre –– Dou-lhe minha palavra. – respondeu.
a imagem e o doente, a pessoa era inexplicavelmente Florilux pediu a Antonio para que lhe
curada. passasse a imagem e retirou de dentro a pedra azul,
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entregando-a a Bausen. Logo o bruxo deu-lhe a mas não adiantava, pois, seu poder curativo só
flauta pan e ela mais que depressa a entregou a Sara. funcionava com humanos. Então Bertha lhe disse:
Bausen, de posse da pedra azul, abriu o sarcófago –– Estou preste a morrer, mas felizmente você
e teve uma surpresa. A passagem pelo portal havia continuará a minha estirpe. Mesmo que sua prole seja
decomposto parcialmente o corpo de sua amada. de humanos, ame-os querida, ame-os muito!
Então, ele pegou a pedra e encostou-a no cadáver, mas Dizendo isso Bertha adormeceu. Florilux fez-
nada aconteceu, pois, a passagem pelo portal havia lhe uma maca e amarrou ao cavalo para transportá-
eliminado o poder ressuscitador da pedra. la. Depois de prantearem e lamentarem a morte de
Bausen ficou irritado e, imaginado que Rana Rana, todos seguiram juntos de volta ao vilarejo.
fosse a grande bruxa, lançou-lhe um raio Na entrada do vilarejo, um grupo de pessoas os
que a atravessou e feriu a perna de Antonio. aguardava. Acusados de bruxaria, foram impedidos
Depois, olhando para Florilux, lançou-lhe um de entrarem na vila. A santa foi confiscada e jogada
raio, mas, Bertha colocou-se à frente dela como num rio das proximidades.
um escudo e lançou um raio sobre Bausen. Florilux e Antonio decidiram voltar a Ouro
Bausen caiu abatido e começou a se transformar em Preto para cuidarem de Bertha, mas, no caminho
pedra. Antes, porém, abraçou o sarcófago e mergulhou ela faleceu transformando-se em uma enorme
no despenhadeiro. O que se viu em seguida foi um montanha de pedra sabão. Em sua homenagem,
gigantesco monte de pedra elevando-se próximo ao pé Antonio esculpiu as mais belas imagens, espalhando-
da serra. as por Ouro Preto e região. O casal teve muitos
Um camponês que havia testemunhado o filhos, todos humanos, e foram muito felizes juntos.
acontecimento fugiu assustado em direção ao Sara foi morar em Varginha onde ergueu um templo
vilarejo. em homenagem a Elíseos. Ali morou ainda por dois
Bertha estava ferida, Antonio agonizava e Rana séculos amparada por Pan, o semideus. No século
estava morta. Sara recolheu do chão a pedra azul passado Pan foi visto por alguns camponeses. Pensaram
deixada por Bausen. Depois, entregou-a para Florilux tratar-se de um extra terrestre e ele foi chamado de “o
e pediu-lhe que a usasse em Antonio. ET de Varginha”. Elíseos, entendendo que Pan havia
Assim que Antonio encostou sua mão na pedra, terminado sua missão na Terra, o enviou para a Galáxia
suas dores desapareceram, entretanto, o poder do raio de Andrômeda e, para que Sara não ficasse solitária
foi tão forte que o deixaria aleijado para o resto de na Terra, fez com que ela desse a luz a um garoto.
sua vida. Sara morreu há algum tempo e quanto ao seu filho,
Florilux tentou usar a pedra para salvar Bertha, bem, é mesmo que lhes contou esta história.
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que eu passasse uma semana de olhos vermelhos se houvesse aprontado alguma traquinagem.
e chorosos. Eu estava muito decepcionado com o Mas eu não me importei. Se eu tivesse feito isso
mundo dos adultos. quando criança, talvez eu tivesse salvado uma vida!
Por ironia do destino, agora era eu quem estava
ali, com aquele minúsculo ser nas mãos e uma única
recomendação:
–– Livre-se dele!
Uma vez, minha mãe me incumbiu de livrar-
me de um rato. Na época, coloquei as coisas nos
seguintes termos: era eu e minha família de um lado
e a peste bubônica implacável e dizimadora de outro.
Já, um gatinho, que mal poderia me fazer?
Enquanto eu decidia o que fazer, minha irmã
apareceu e foi logo perguntando:
–– O que você vai fazer com o gatinho?
–– O que você sugere que eu faça? – devolvi a
pergunta a ela, mas ela tornou a perguntar:
–– O que você acha?!!
Era uma pergunta em tom de resposta. Parecia
trazer uma mensagem sublinear que, bem interpretada,
poderia ser traduzida nas seguintes palavras: Mate-o!
Eu não sabia qual seria o destino do animal, mas,
eu sabia qual é a minha índole e eu jamais faria mal a
criaturazinha.
Quando olhei nos olhos do gatinho, eles
brilhavam, vi que ele possuía uma alma, uma família...
Talvez até tivesse sonhos, ideais...
Foi então que eu abri o portão e dirigi-me à
esquina mais próxima. Chegando lá, coloquei o
gatinho no chão e saí em disparada. Formou-se uma
cena hilária: um senhor obeso correndo pela rua, como
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Apresto de uma entrevista
reveladora!
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perfeição de uma carcaça, recolhi-a para guardar de próximo à pensão quando ouvi uma criança gritar:
lembrança. –– Eu peguei duas. E você?
Como não quis levá-la na mão, grudei-a na blusa, –– Eu peguei três. – respondeu uma outra.
como fosse um broche. Até que alguém perguntou: Logo percebi tratar-se de cigarras. Então eu me
–– O que você está fazendo com esta carcaça aproximei e perguntei:
grudada na blusa? –– Você conseguiu pegar uma cigarra?
–– É o que restou de uma pobre cigarra. – A criança abriu a mão e me mostrou uma enorme
respondi. cigarra.
Foi então que a pessoa me explicou que aquele –– Ela não morde? – perguntei.
era apenas uma espécie de invólucro do qual a cigarra –– Que nada! Elas são mansinhas!
havia se libertado ao passar para uma nova fase da sua Dizendo isso, a criança fechou novamente a mão
metamorfose. e colocou-a rente ao meu ouvido. Depois perguntou:
‘Liberdade. Então o que eu pensava ser sua –– O senhor está escutando ela cantar?
morte era na verdade seu renascimento’ – pensei. É, –– Estou! – Confirmei, ouvindo um som fraquinho,
parece que Deus não havia sido injusto com aqueles mas contínuo.
pequenos seres afinal. Muitos anos se passaram desde então e
Para sanar minha ignorância, resolvi pesquisar hoje eu sou muito diferente. Quando a vida se
mais sobre o inseto. Descobri que as larvas da torna tempestuosa e os problemas parecem não ter
cigarra, ainda minúsculas, infiltram-se na terra, fim, eu inexplicavelmente me encho de esperança e
alojando-se nas raízes das árvores e lá permanecem, consigo resolvê-los. É a vida me arremessando para
nutrindo-se de sua seiva, durante um ou dois anos. uma nova fase, como as cigarras, arremessando-se
Algumas espécies, como a canadense, permanecem para a liberdade!
nesse estágio por até dezessete anos. Depois, já no
formato de um besouro, elas sobem até uma altura
aproximada de um metro e fixam suas patas no caule
das árvores. Dessa forma rompem a sua carcaça,
liberando suas asas para o vôo. Vivem por pouco
tempo durante a estação na qual procriam e morrem.
Durante alguns anos esqueci-me das cigarras. Estudei
e terminei meu curso. Na última semana, preste a
me mudar e voltar para minha cidade, eu caminhava
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Como é mesmo o seu
nome?
final da lista, mas, se estivesse, não haveria mais nada e bom tom:
a fazer. Era obedecer e pronto! –– Ô coisinha, me empresta seu caderno?
Ter muitos filhos era prática comum no meu Essa foi a minha maior humilhação e o pior é que
bairro, por isso gastei boa parte de minha memória de o bobão emprestou! Mas pelo menos entendi que ela
nomes com os amigos da vizinhança. Uma vizinha não queria nada comigo.
nossa teve quinze filhos e os nomes foram tirados do Chato mesmo é quando alguém que você encontra
velho e do novo testamento. Na hora do almoço era todos os dias finge que não te conhece. Uma vez comecei
possível encontrar à mesa metade da santa ceia. um curso de administração. Era uma turma de quinze
Se eu morasse na Europa tudo seria mais fácil, pessoas apenas. No final do primeiro semestre tive uma
pois, lá eles se tratam pelo sobrenome. Essa, entretanto dúvida e levantei a mão para fazer a minha pergunta.
não é uma prática comum aqui. É coisa que se vê Ao me ver de mão levantada, o professor simplesmente
raramente. Certa vez eu fui a uma festa num clube perguntou:
grã-fino e uma senhora se aproximou cabisbaixa, –– Como é mesmo o seu nome?
olhando para os pés. Para os meus pés. Então ela foi Por um momento me senti um saco de batatas.
me inspecionando e eu aguardei pacientemente que Definitivamente, ninguém merece!
seu olhar me chegasse aos olhos, mas, na altura do
pescoço ela parou para me fazer uma pergunta:
–– De que família você é? – perguntou.
–– Gomes de Almeida. – respondi. Tive vontade
de dizer Gomes da Costa, nome de uma lata de sardinha
famosa aqui na região, mas me contive.
–– Ah! Não conheço! – exclamou meio
entediada.
Daí seus olhos fitaram os meus por uns breves
segundos e ela seguiu em sua caminhada pelo salão.
Eu gosto do meu nome e odeio apelidos. Foi
assim desde moleque. Certa feita, eu comecei a gostar
de uma colega de classe. Eu tinha uns oito ou nove
anos. Todos sabiam que eu gostava da garota, inclusive
a própria. Um dia após a aula, eu estava guardando o
material quando ela se dirigiu a mim e disse em alto
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Grupo dos Usuários
(de inseticida)
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e o apagão remeteram-me aos meus tempos de a vida revestiu-se de uma serenidade maravilhosa. A
criança quando, durante as quedas de energia nas todos, um bom dia!
tempestades, engendrava várias brincadeiras e depois
me deitava entre meus pais, ouvindo-os conversar
sobre seus planos na penumbra, enquanto a chuva
caia deliciosamente.
Com a luz da lanterna quase se apagando, decidi
caçar uma vela para acender, mas não encontrei
nenhuma. Ouviu-se um novo estrondo. Pareceu-
me escutar algum vizinho dizer que o poste estava
pegando fogo. Por um instante eu me dei conta de
quão velho era aquele poste. Eu era ainda criança
quando o usava para minhas brincadeiras de pique-
pique e esconde-esconde. Naquela ocasião ele já
tinha problema e costumava dar choque. Era um
choquezinho suave e sem muitas consequências.
Parece loucura, mas, lembro-me que juntávamos em
sete ou oito crianças. Daí, nós dávamos as mãos uns
aos outros enquanto que o primeiro encostava a mão no
poste. Logo todos nós sentíamos a corrente passando
sem atinar quão perigosa era aquela brincadeira.
De repente me dei conta de que as horas estavam
passando e eu precisava dormir para levantar cedo
e fazer as tantas coisas que tenho programado para
hoje.
O transformador foi consertado e quanto a mim,
hoje eu acordei transformado. Parece que resgatei um
pouco da felicidade daqueles dias de inocência. A
tão esperada chuva finalmente chegou. Lembrei-me
de que estamos na primavera e faltam pouco mais de
dois meses para o natal. O dia amanheceu tranquilo e
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A verdade em preto e
branco!
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ternura, enquanto ajeitava-lhe a gola da camisa. Passou uma semana e ela me disse:
Eu assistia a tudo e sentia orgulhe por meu irmão. –– Conversei com o Dr Lucio e ele pediu pra você
Por dentro pensava: ‘Eu também quero ser soldado!’ ir lá amanhã!
Dois de meus tios lutaram na guerra de Suez e Ela me entregou um bilhete e completou:
outro aposentou-se como cabo na Aeronáutica. –– Leve e entregue este bilhete a ele. Já está tudo
Passado pouco mais de um ano, meu outro combinado.
irmão mais velho (eu sou o terceiro) começou a servir. Novamente não tive coragem suficiente para
Novamente eu olhava para a tábua de passar, as vestes dizer-lhe a verdade. Não seria difícil eu ser dispensado,
sobre a cama, o brilho carinhoso nos olhos de minha pois, a sede do TG era muito pequena para o excesso
mãe e a felicidade com que ela passava cada peça e de pessoas que se alistavam todos os anos. Depois, eu
pensava: ‘um dia será a minha vez!’ tinha pé chato, informação que me possibilitaria ser
O tempo passou e eu fui crescendo. Como eu dispensado no ato. Com tanta gente, o que eles mais
gostava muito das músicas do grupo Queen, resolvi queriam eram dispensar boa parte e qualquer motivo
estudar piano. Desde o início, minha professora seria bem vindo. Mas havia um pequeno detalhe: eu
apresentou-me peças de Chopin e de Beethoven e não não queria ser dispensado!
demorou muito para que eu me tornasse um amante No carimbo do meu documento de reservista
da música clássica. Fazia uns seis meses que eu havia estava escrito que eu faria o exame dali a um mês.
iniciado a aprendizagem do instrumento quando, Naquela quarta-feira, entretanto, em consideração
finalmente chegou a minha vez de servir ao Tiro de à minha professora de piano, fui ao TG portando o
Guerra. maldito bilhete.
Minha professora tinha uns setenta e cinco O Tiro de Guerra era uma instituição séria, eu
anos, mas, tinha um vigor e uma alegria de viver que não podia chegar lá e dizer que compareci para ser
a deixava, aos meus olhos, quase da minha idade. dispensado. Esta informação poderia comprometer e
Estava feliz por ter me alistado e comentei com ela: prejudicar ao médico. Então, comecei a arquitetar um
–– Dona Cida, eu me alistei! plano para chegar até ele.
Não sei porque, mas, ela achou que eu não queria Quando cheguei à sede do TG, o Cabo da Guarda
servir e foi logo me dizendo. estava responsável pela portaria. Ele próprio veio me
–– Não se preocupe. Eu já fui enfermeira e trabalhei interrogar sobre o que eu queria. Disse-lhe que minha
com o Dr Lúcio. Vou pedir pra ele te dispensar! irmãzinha estava passando mal e que o médico dela
Fiquei com medo de magoá-la e não lhe revelei o era o Dr Lúcio e, eu precisava avisá-lo.
meu desejo enorme de servir ao Tiro. O Cabo deixou que eu entrasse e me escoltou
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até o a presença do médico deixando-me a sós irmã e à tarde ele irá vê-la.
com ele e um monte caras pelados (pois estava –– Que médico sem coração. A irmãzinha dele
fazendo exame). Entreguei-lhe o bilhete e ele pediu- passando mal e o médico num tá nem aí – comentou
me para que aguardasse na sala ao lado para ser com o outro soldado.
examinado. Saí depressa do local e quanto mais me afastava
Eu disse ao Cabo da Guarda que o médico pediu- mais aliviado ficava. Falei para minha professora que
me que eu o aguardasse e ele se retirou, retornando eu entreguei o bilhete mas que, a pedido dos meus
para a portaria. Cinco minutos depois apareceu o pais, decidi servir. Ela entendeu.
Comandante da Guarda querendo saber o que eu fazia Um ano depois, tábua de passar armada,
ali. fardamento sobre a cama, o brilho de felicidade nos
–– Você vai fazer o exame? – perguntou. olhos de minha mãe... Mas desta vez o soldado era eu.
–– Vou – respondi. Foram apenas seis meses, duas horas todos os dias.
–– Cadê seu crachá? Mas foi muito importante pra mim!
Foi então que eu reparei que todos os que iam
fazer exame portavam um crachá pendurado no
pescoço. Todos estavam devidamente identificados.
–– Que crachá? – perguntei fingindo não ter
entendido.
–– Pera aí! – disse isso e saiu do galpão.
Fiquei com medo. Sabia que alguma coisa iria
acontecer. Dali a instantes retornou acompanhado
pelo Cabo da Guarda, que foi logo perguntando:
–– Você está esperando o médico. Sua irmãzinha
está passando mal, não é? – imediatamente
confirmei.
Naquele momento só o que eu queria era sair
dali. Esperei que os dois se afastassem, aguardei mais
uns dois minutos e saí do galpão. Quando passei pela
portaria, o Cabo da Guarda me perguntou:
–– E aí, o que o doutor disse?
–– Ele me pediu para dar um remédio pra minha
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Beijar sim, mas chiclete
nunca mais!
o ônibus parasse só para eu me livrar da droga do Eu já estava saindo, todo molhado, quando um
chiclete. amigo meu, que é policial, parou uma viatura ao lado
Acontece que o ponto de ônibus ficava bem na do parque. Perguntei o que ele fazia ali e ele disse
frente da casa da garota e logo que eu me preparava que havia um sujeito “importunando” as criancinhas
para descer a mãe dela, que estava varrendo do parque. Felizmente naquele momento passou
a frente, me avistou e me chamou para entrar. um ônibus e eu entrei sem nem saber ao certo qual
Cumprimentei a mulher e até me esforcei para o itinerário dele. Ainda deu pra ver a menininha
sorrir o sorriso tímido que o espaçoso chiclete me conversando com o amiguinho dela e me apontando.
permitia. Estava me sentindo um retardado total. Beijar sim, mas, chiclete, nunca mais!
Ela me deixou na sala enquanto foi chamar a filha. Eu
fiquei a sós! Era o momento perfeito para eu me livrar
da goma. Imediatamente cacei uma lixeira pela sala,
mas não encontrei nenhuma. Havia ali, entretanto, um
pequeno vitrô, o qual ficava há uns sessenta centímetros
do chão e dava para um parquinho ao lado. Desesperado,
retirei todo o chiclete da boca e lancei-o através
da fresta, mas, para minha tristeza, a enorme goma
de mascar ficou grudada na parte de fora do vidro.
Aproveitando que a garota ainda não tinha vindo,
contornei a casa e fui ao parquinho desgrudar o
chiclete e colocá-lo numa lixeira apropriada. Porém,
quando cheguei lá já tinha uma menininha espalhando
o chiclete por todo o vidro como fosse um brinquedo.
Pedi licença e fui logo recolhendo o material do vitrô.
A menininha não entendeu nada e saiu chorando.
O parque estava lotado de crianças. Assim que
me livrei do chiclete fui lavar as mãos num tanquinho
cheio de torneiras que havia ali por perto. Eu não sei
se pus força demais ou se a torneira já era muito velha,
mas, o fato é que ela quebrou bem na minha mão e
agora espirrava água, que escorria por todo o parque.
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Poesianálise – Uma
instrospecção auto-poética
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Para concluir, eis aqui a poesia em questão: Do madeiro d’alma sobre a qual
Ressuscita-me! Me crucificaste
O beijo saciador
De amor dilacerado
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O poder curativo da
macarronada!
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Há alguns meses planejei um jantar para o dia furados e maliciosos, mas, pelo fato da data
do meu aniversário. Iria comemorar com a família na coincidir com a data do meu aniversário comecei a
Casa do Sol Poente e, decidi fazer um check-up antes. ver aquela informação com outros olhos e pensei:
Fiz os exames de sangue e levei para o médico avaliar. ‘Se o mundo acabar mesmo neste dia, o jantar na
Ao ler meus exames, o Dr. Arruda pediu para que eu Casa do Sol Poente será como uma última e merecida
escrevesse num papel os pratos que eu mais gostava. refeição’. Pensando assim, não cancelei meus planos
Mais que depressa escrevi: feijoada e costelada. e continuei minha rotina. Um amigo me informou que
Quando lhe retornei o papel, o médico pôs-se a para o dia do evento foi contratado um grupo de choro
desenhar sobre ele e eu fiquei curioso para ver que formado por profissionais liberais da cidade. Disse
magnífica obra resultaria daquela súbita inspiração. O também que o grupo era muito bom.
Dr. Arruda era de fato um artista. Soube disso desde a –– Maravilha! – exclamei.
primeira vez que o consultei e ele me prescreveu uma Um grupo de choro, apesar do nome, é muito
receita em forma de soneto. mais alegre que um quarteto de cordas. Se o mundo
Ao me mostrar o papel ele disse: fosse acabar de fato, eu não queria que os músicos
–– O seu colesterol está alto! fizessem como aqueles do filme O Titanic. No dia
Notei que sobre a palavra feijoada ele havia do meu aniversário, parei na estrada para abastecer
desenhado uma caveirinha, daquelas que a gente vê quando, vi por acaso, o Dr. Arruda. Rapidamente me
em bandeiras nos filmes de pirata. Sobre a palavra escondi atrás da bomba de gasolina e felizmente ele
costelada, algo ainda mais grave, o doutor havia não me viu.
desenhado uma lápide. No caminho para o restaurante ainda passei
Quando deixei o consultório, as figuras não em dois bairros para pegar uns parentes. Com mais
saiam da minha cabeça. Fiquei triste porque já havia três pessoas o carro completou sua lotação, pois, a
combinado com a “obesada” de comemorar meu obesidade dos passageiros não deixava espaço para
aniversário na Casa do Sol Poente. Foi então que um quinto elemento. Antes mesmo de entrar no
aconteceu algo inusitado. restaurante, já se ouvia o som animado do chorinho.
Ao abrir meus e-mails, havia ali uma mensagem O restaurante estava lotado, parecia que toda a cidade
sobre o fim do mundo. Nela dizia que o vácuo provocado havia recebido o e-mail sobre o fim do mundo. Pois
pela passagem de um cometa destruiria todos os seres não é que, já saboreando a minha deliciosa costelada,
vivos da terra. Ironicamente, a data do fenômeno decidi prestar a atenção nos músicos e descobri entre
coincidiria justamente com a data do meu aniversário. eles o Dr. Arruda. ‘O mundo não acabou, mas a casa
Sei que estes tipos de mensagem são completamente caiu!’ – pensei comigo. Eu não sabia que o Dr. Arruda
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Carlos saia de dentro das ramagens, dois policiais o caso teve grande repercussão. Todas as pistas foram
aguardavam para interrogá-lo. As câmeras do castelo checadas mas não foi possível descobrir o paradeiro
haviam-no flagrado caminhando desacompanhado da criança.
pelos jardins, o que era proibido. Pelo fato do condomínio ficar ao lado do castelo
Em alemão não tão fluente, José Carlos pediu dos Romaninsky, onde há sempre um grande fluxo de
que o levassem-no até a delegacia para falar com o turistas durante todo o dia, a hipótese mais provável
delegado, seu amigo Hans Winckel. era a de que algum turista tivesse sequestrado a
Winckel, assim que viu o amigo, logo se lembrou menina, entretanto, nada ficou provado.
do “caso da Burg Strasse” acontecido na cidade havia A única pista concreta de que a polícia dispunha
três anos. era um pente encontrado no local. O artefato foi
Para que se entenda o caso, irei relatá-lo checado mas não foram encontradas digitais e a
brevemente: investigação voltou à estaca zero.”
“Em 2003, o Dr. José Carlos ganhou uma bolsa de Curioso, o delegado Winckel perguntou:
estudo para um Pós-Doutorado em Genética Médica –– O que faz aqui, doutor?
na Universidade de Easterbach e, para lá se mudou –– Vim buscar minha filha! Sei onde ela está e
com sua esposa Elisa e sua única filha, Suzana, de preciso de sua ajuda!
apenas cinco anos. –– Como o senhor conseguiu descobrir?
Passados dezoito meses e faltando apenas –– Como sabe, sou cientista e também um pai
seis meses para a defesa de tese, por indicação de desesperado. À partir de alguns fios de cabelo que
seu orientador, acomodou-se no condomínio da estavam no pente encontrado no local eu obtive o
família Straten. Trata-se de um conjunto de doze código genético do sequestrador. Implantando o código
casas localizadas numa área ao lado do Castelo dos genético num óvulo, eu consegui por meios técnicos,
Romaninsky, o principal ponto turístico da cidade. Por obter êxito na reprodução in vitro. Assim que a
ser tranquila, ele pode dedicar-se com mais empenho criança foi concebida eu percebi um detalhe que me
ao trabalho, logrando uma defesa de tese brilhante e, levou direto à conclusão de quem é o sequestrador.
como resultado, obteve a merecida titulação de PhD –– O senhor já viu esse “detalhe” no
em Genética Médica. sequestrador?
Ocorre que, uma semana após o término do –– Uma vez, quando fui apresentado aos
curso, quando já se preparava para retornar ao moradores do condomínio, observei o detalhe em um
Brasil, sua filha Suzana foi sequestrada. Na época deles. Algo que passaria desapercebido a um olhar
o delegado responsável era o Sr. Hans Winckel e o comum, mas, jamais para um geneticista.
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–– Na época eu estava construindo uma represa Assim que desembarcaram na ilha logo avistaram
na Dinamarca e estava alojado na obra. ao lado do imenso farol, uma pequena residência. Na
–– Quando eu estive aqui, alguém que não o frente da casa, uma criança brincava. Era Suzana.
senhor me recebeu e apresentou-se usando seu nome. Acostumados a dar informações a pescadores, a
Disso eu me lembro. dona da casa nem estranhou a aproximação daquelas
–– Impossível. Enquanto eu estive fora a casa pessoas.
ficou fechada. Apenas pedi a minha irmã que abrisse Assim que viu Suzana, José Carlos quase não
a casa de vez em quando para deixar o ar circular. aguentou tanta emoção e, estando próximo, gritou o
Ainda confuso, o Sr. José Carlos pegou um nome da menina. Suzana mais que depressa largou
bloco de papel que trazia no bolso, fez um desenho e seus brinquedos e correu para José Carlos gritando:
entregou-o ao Sr. Baden. Em seguida disse: –– Papai... Papai...
–– A pessoa que me recebeu possuía este O casal foi preso por sequestro de incapaz, e várias
detalhe físico. O senhor conhece alguém com esta outras acusações. Em depoimento o sequestrador disse
característica? que sempre quis ter um filho e que sua esposa havia se
–– Sim, o mordomo de minha irmã, o Sr. Alfred. encantado com a menina. Disse também que, apesar
Há quase três anos ele e sua esposa, que é brasileira, de tratarem-na como uma filha, a menina estava triste
foram trabalhar no Farol da Ilha Freuden. por ficar longe dos pais verdadeiros e que eles já tinha
–– O Sr. sabe onde podemos encontrá-lo? – se arrependido de terem-na sequestrado.
perguntou o delegado. O crime de sequestro de incapaz é uma falta
–– Lá mesmo, na Ilha Freuden. O Sr Alfred é o gravíssima na Alemanha e o casal foi condenado a
responsável pela operação do Farol. Ele e a esposa são trinta anos de prisão.
os únicos moradores da ilha. Quando José Carlos voltou ao Brasil trazendo sua
–– Obrigado Sr. Baden. Não revele a ninguém esse filha, sua esposa os abraçou e voltou a sorrir depois de
nosso encontro. Passar bem. três anos de dor e sofrimento.
E assim todos se despediram. Como já escurecia, Ao chegar no consultório para trabalhar, havia
o delegado achou por bem continuar as investigações uma cliente esperando. Era a Sra. Dirce. Ela estava se
na manhã seguinte. mudando para os Estados Unidos e veio despedir-se
Logo que amanheceu, o delegado, José Carlos do médico. Disse que estava muito feliz e agradecida o
e quatro policiais, todos disfarçados de pescadores, Dr. José Carlos por ele ter-lhe dado seu maior tesouro:
alugaram um barco de pesca e rumaram para a Ilha o pequeno Hammad.
Freuden. O médico despediu-se e, num gesto carinhoso,
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O tráfico de fofocas na
Vila Veneza
quatro fofoqueiras independentes, mas, com o tempo Assim, como sempre ao retornar de minha missão
o bairro cresceu e elas se agruparam duas a duas, matinal, escuto minha mãe perguntar :
formando duas facções. –– E a Lucilê, passou?
Com muito esforço, não demorou muito Lucilê –– Hoje não. Deve estar organizando o repertório
se tornou a líder do tráfico de fofocas no bairro e seu para amanhã. – respondo.
trabalho começa logo pela manhã. Quase sempre após Entretanto, mal termino a frase e escuto a voz de
deixar minha irmã no ponto de ônibus encontro com Lucilê, vinda da rua. Do diálogo é possível identificar
Lucilê pelo caminho. Ela e sua cúmplice iniciam seu as palavras “carro” e “freio de mão”. Depois as vozes
dia com uma boa caminhada matinal. vão sumindo até se perderem. Dona Lucilena só estava
Moro num morro e, em dias conturbados, um pouco atrasada, eu e minha mãe concluímos.
já a uns cinquenta metros, é possível ouvir o –– Agora sim está tudo normal no bairro! –
“conversê” animado das duas senhoras. Ao nos exclamo em meio a um gostoso e sonolento bocejo.
cruzarmos trocamos um aceno e um leve sorriso,
mas, o diálogo entre as damas jamais é interrompido.
Quando o assunto envolve a minha família, há um
microsilêncio e um olhar meio desconfiado, mas, o
diálogo é logo retomado e elas seguem sua rotina.
Geralmente as senhoras caminham às segundas, terças
e quintas, mas, ultimamente o bairro tem tido muita
agitação e isso fez com que elas caminhassem todos os
dias da semana.
Hoje é segunda-feira e excepcionalmente Lucilê
não passou. Ontem, ao parar na frente de casa, meu
irmão não engatou bem o freio de mão e como
resultado, o carro parou uns cinquenta metros abaixo,
amparado por uma árvore. Felizmente ninguém se
feriu e os danos ao carro foram mínimos. Embora não
tenha havido caminhada, tenho certeza que Dona
Lucilena já tem os dados sobre o acontecimento e
que o assunto já deve ter sido escalado para integrar a
pauta de amanhã.
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Pingados Filosóficos
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–– Isso é verdade! anos que ela mora no Brasil, mas não deixa ninguém se
–– Eu comecei a perceber isso quando notei que esquecer dos dez anos que viveu na França. A maioria
a cada cinquenta metros tem um cabeleireiro e a dos textos dela é disso que trata, dá até preguiça de
cada cem metros há uma igreja evangélica ou umas ler. – respondi.
daquelas seitas que aparecem. –– Mas você não acha que ela tem seu valor?
–– É mesmo, também já notei isso! –– Sem dúvida. Uma vez li uma poesia dela e
–– É, mas, agora nossa cidade cresceu de verdade, achei lindíssima. Só aquela poesia bastou para que
basta olhar o tanto de loja de móveis usados que ela me cativasse. Às vezes eu escrevo poesias de amor
surgem a cada dia. Todo quarteirão tem duas ou três e até acho que exagero no tema, mas, em relação à
delas. saudade que ela sente dos tempos antigos, na França,
–– Por falar em móveis usados, você num tá dá até pena dela!
interessado em comprar um guarda-roupa?... –– O pior é que ela pode até voltar para a França,
mas, o tempo, este, só caminha para frente! – comentou
Seu Beto.
2 A conversa seguia animada quando meu patrão
se aproximou e eu encerrei o assunto, mas, fiquei por
Eram dezesseis horas quando Seu Décio e Seu perto lavando umas xícaras. Foi quando seu Zé da
Beto entraram na padaria para tomar o pingado Cida chegou e eu prontamente o servi.
cotidiano. Nem precisaram pedir, pois, como eu já sei –– Oi pessoal, vocês viram que moda mais
do gosto de cada um, eu fui logo me encarregando de maluca?
servi-los. –– Do que você esta falando? – questionou Seu
–– Ô Zeca, você escreve né? – me perguntou Seu Beto.
Décio. –– Daquele rapaz ali, com a cueca aparecendo; no
–– Umas bobeirinhas. – respondi. começo eu achei uma afronta, mas depois vi que era
–– Você conhece a TherÉse? moda e aí me contive.
–– Conheço, ela escreve no jornal “O Sapeca”. –– E como devemos chamar essa moda, a moda
–– Pois é, ela vai dar uma palestra no Clube da da cueca aparecendo ou a moda da calça na metade
Esquina hoje à noite, por que você não vai assistir? da bunda? – questionou seu Décio.
–– Olha Seu Décio, eu não sou muito chegado ao –– Isso aí é piração da juventude. Você se lembra
estilo dela. Ela só sabe falar de saudade e do tempo que daquelas calças “boca sino”, do cabelo “black
ainda morava na França, onde nasceu. Faz quarenta power”, dos sapatos com saltos que mais pareciam
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mais garrafas de vinho perto de Judas. Acho que ele só emprego pra todos indiscriminadamente. Há alguns
traiu Jesus porque estava bêbado. anos vi uma pesquisa na qual dizia que a cada mil
–– É mesmo, em bêbado não dá pra confiar! crianças que entram no ensino básico, apenas uma se
matricula no ensino superior. É muita gente ficando
de fora pra eu afirmar que houve discriminação, isto é,
3 eu teria de dizer que a cada mil crianças, novecentos e
noventa e nove são discriminadas.
Seu Beto e seu Mauro Pianista chegaram mais –– O sistema de cotas é bom, pois, pelo menos
cedo à padaria neste sábado, porém, aguardaram que dá pra reparar um pouco da dívida da escravidão para
seu Décio e seu Zé da Cida chegassem para pedir o com os negros. – afirmou seu Zé da Cida.
pingado deles. –– Mas aí eu não concordo – comentou seu
Ao chegar, seu Décio foi logo dizendo: Mauro e continuou – os romanos também escravizaram
–– Olá pessoal, quase que eu não venho hoje! os gregos por centenas de anos. Cinco anos antes de
–– Por que Décio? – questionou seu Beto. Cristo nascer, cinco mil deles foram crucificados na
–– Porque eu fui fazer a matrícula da minha neta via de acesso a Roma. Apesar dessa injustiça absurda
na faculdade. os gregos nunca foram indenizados. Recentemente,
–– O qual delas? na Alemanha de Hitler, houve discriminação racial
–– A Diana. contra os judeus, mas, que eu saiba, nenhum sistema
–– Aquela mais clarinha? de cotas para judeus foi implantado na Alemanha. O
–– Ela mesma! Ela puxou a família do pai dela. que precisamos é de oportunidade e melhor qualidade
Apesar de clarinha, ela se declarou negra e entrou de vida. Já ajudaria se o governo resolvesse os nossos
pelo sistema de cotas, o que não me agradou muito. problemas mais urgentes na saúde e no saneamento
–– Por que, Décio? básico.
–– É que ela é muito inteligente, mas, –– Seja como for, daqui a uma semana sua neta
fazendo assim ela nunca vai saber se entraria se estará tão adaptada à vida acadêmica que nem mais
dependesse só da capacidade dela. estará pensando nisso. – comentou seu Zé da Cida.
–– Ué, Décio? Você é negro e não é a favor do –– Só que eu acho que as aulas vão demorar
sistema de cotas? um pouco pra começar. É que os alunos invadiram
–– Ué digo eu. Então porque eu sou negro eu sou o prédio da reitoria e só Deus sabe quando as aulas
obrigado a ser a favor do sistema de cotas? Eu sou voltarão ao normal.
a favor de um ensino melhor nas escolas, de mais –– Isso é que eu acho errado. Ao invés dos alunos
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se preocuparem em estudar e lutar pela melhoria o funcionário te atende mal porque acha que está
do ensino deles de uma forma mais organizada e ganhando pouco e você, além de ser destratado, o
inteligente, eles ficam invadido prédios públicos e defende perante o dono da loja sugerindo que ele dê
depredando como fazem alguns grupos da sociedade. o pretenso aumento. Tem muito professor bom que
Eu li as propostas deles, são todas evasivas e algumas batalha e se qualifica profissionalmente, mas também
até impraticáveis. Entre as propostas deles, está a há os que não estão nem aí. Geralmente exercem
saída do reitor. Todos os que já passaram por uma outras atividades e lecionam mais por vaidade e
universidade sabe que elas possuem um conselho e que pelos benefícios que por vocação. Se os alunos se
necessitam fazer muitas reuniões e atas, discutirem e manifestarem pela melhoria da qualidade do ensino
documentarem para que alguma atitude seja tomada. isto fará com que os administradores busquem
A reitoria pode ser invadida quantas vezes for, mas, outras formas para que os melhores professores
se não usarem o caminho legal e formal do meio sejam devidamente recompensados além de oferecer
acadêmico, o reitor só sairá se quiser. Enquanto isso treinamento e ferramentas para os professores que
só quem perde é os alunos, que ficam sem aulas e com quiserem evoluir mas não dispuserem de meios.
matérias defasadas. –– Acho que está na hora do Brasil gerenciar a
–– Há sempre muita política por trás, ontem na educação como uma grande empresa, buscando uma
reportagem que assisti sobre isso na televisão, houve estruturação eficaz, qualidade e desenvolvimento. –
menção do nome de dois partidos políticos. Ouvi a comentou seu Zé da Cida.
repórter dizer que os alunos entrariam em greve. –– Por falar em educação, ta na hora da minha aula
Achei um absurdo alunos de escola pública entrarem de yoga! Tchau pessoal. – despediu-se seu Décio.
em greve.
–– Absurdo é aluno ficar do lado dos professores
na greve da categoria deles. Imaginem, o estado paga 4
alguém para ensinar uma pessoa e essa pessoa se
recusa a aprender porque acha que quem o ensina Nesta terça-feira seu Zé da Cida estava faminto
ganha mal. Ora, numa greve de professores, os e pediu logo dois pães com manteiga, um na chapa e
alunos deveriam é lutar para que as aulas a que tem outro “sem ser na chapa”. Disse que esteve em jejum
direito fossem normalizadas o mais rapidamente. Os de doze horas e que acabara de fazer um exame de
professores já possuem o sindicato deles, mas e os sangue.
alunos? Seu Beto perguntou se ele fizera só exame de
–– É como ir comprar uma roupa numa loja, daí sangue e ele revelou que fizera também o exame de
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urina e o de fezes. Daí, seu Beto relembrou a última –– Qualquer dia eu vou lá almoçar pra te ouvir,
vez que fez os referidos exames: só que eu vou levar um bife escondido porque sei
- Na época, o laboratório não estava aberto e eu que lá é vegetariano e eu me julgo descendente do
fiquei numa fila com umas oito pessoas. Todos estavam tiranossauro rex na escala evolutiva. Pelo menos no
em posse do material que haviam coletado e traziam que tange a ser carnívoro.
bem embrulhados um frasco e uma latinha. Logo –– Lá tem coroas bonitas? – perguntou seu Décio.
que cheguei, senti um cheiro forte no ar, parecia que –– Se tem! Até eu ando meio balançado
alguém havia defecado no local. Naquela hora, pensei ultimamente.
comigo, que alguém estaria com a latinha aberta, mas –– Como assim?
não disse nada para não magoar ninguém. Percebi –– Lá eu toco virado para a parede e só dá pra ver
que todo mundo estava meio nauseado, mas ninguém o rosto das pessoas quando elas saem e ainda assim,
falava nada, embora checassem a todo momento suas bem rapidinho. Por esses dias, quando eu olhei pra
latinhas. porta, uma coroa que eu nunca havia reparado estava
–– Fala logo o que aconteceu Beto que esta história saindo e me fitou bem nos olhos. Seu olhar parecia
já ta me dando nojo. – pediu seu Zé da Cida. dizer “eu quero você” e, por um momento eu desejei
–– Pois é, depois de quinze minutos nessa a mesma coisa. Foi estranho, mas acho que me
situação, a recepcionista chegou e pediu que cada um apaixonei. Ela é morena e tem os cabelos ondulados.
checasse a sola do sapato. Imagine que um cara havia Então reparei que ela geralmente chega no final do
pisado no que não devia e ainda disse que tava com horário do almoço. Aí, sempre que eu percebo que
vergonha porque pensou que o cheiro viesse de sua ela está presente, começo a tocar músicas românticas,
latinha. uma atrás da outra. Agora é assim, quando vejo pela
–– Que sonso! tampa do piano, alguém com os cabelos encaracolados,
–– Pois não é! vou logo tocando nosso tema.
Eu esperei que os dois terminassem o assunto para –– Opa! Tem até tema? Que música que é?
então servi-los. O pão na chapa ficou bem torradinho, –– É aquela do José Augusto, “Aguenta coração”.
mas graças a Deus não passou do ponto. Foi aí que seu –– Não dava pra você arranjar um tema mais
Décio e seu Mauro Pianista chegaram. atual?
–– Mauro, onde você está tocando agora? – –– Até dava, mas, eu gosto dessa música e, além
perguntou seu Beto. do mais, pelo adiantado da minha idade e da dela,
–– Lá no restaurante do Gustavo. To fazendo com tanta emoção, só peço a Deus pra não ter um
“Piano-bar” do meio dia às duas da tarde. enfarte no meio do caminho!
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cresce, fica bobo e casa”. Dá pra ver que essa morena meio quilo e que agora está vindo em embalagem de
já deixou você meio abobado. Sua solteirisse não dura quatrocentas gramas, só que o preço caiu apenas dez
nem mais um ano. centavos. Alguém deve estar pensando que a gente é
–– Talvez vocês tenham razão. Eu estou mesmo bobo.
meio aéreo. Ontem a gata me olhou novamente nos –– E os impostos então? Outro dia fui fazer um
olhos e, quando eu saí do restaurante demorei vinte cálculo, não me lembro se da conta de telefone ou de
minutos pra chegar em casa, só pensando nela. energia elétrica. Vi que a gente para vinte e cinco por
Geralmente eu não demoro nem dez minutos. cento só num imposto. O pior é que eu percebi que
–– Xí! Esta história está só começando! eles cobram imposto sobre imposto, discaradamente.
–– Ô Mauro, será que a demora pra chegar na sua –– E esse negócio de internet? – perguntou seu
casa não foi por causa do reumatismo? – ironizou seu Décio e continuou – Meu neto só usa em fins de semana
Beto. que é pra poder pagar menos, mas a linha vive caindo
e cada vez que cai é cobrado como nova ligação. Pra
mim aí tem truta.
6 –– Você tem razão Décio. O provedor da minha
filha é gratuito mas a conexão vive caindo. Que
Neste sábado, seu Zé da Cida assim que chegou vantagem Maria leva?
me instruiu: –– E o celular? Você compra créditos, não usa que
–– Zeca, separa oito pãezinhos para eu levar. É é pra economizar e quando vai usar, descobre que já
pro café de amanhã. perderam a validade. Se você já pagou, os créditos
–– Porque você não deixa pra comprar amanhã? são seus. Cancelar os créditos que você já pagou é
Pão fresquinho é mais gostoso! – exclamou seu Beto. o mesmo que confiscá-los, do contrario eles teriam
–– É que a padaria lá perto de casa está vendendo que devolver o seu dinheiro. Algo está errado. Quem
uns pães que mais parece uma casca. Parece que só tem usa os créditos rapidinho não paga menos por isso.
ar dentro. Duvido que algum deles tenha cinquenta Créditos de celular não deveriam ter validade!
gramas como deveria. Nem aqui, nem na China. –– Zeca, me vê mais um pingadinho. – pediu seu
–– Eles fazem o que quer e ninguém fiscaliza. – Mauro Pianista e continuou – Vocês tem razão, esses
comentou seu Décio. dias eu comprei uma fonte pro meu teclado. Aqui na
–– Estou cansado de comprar enlatado e na hora cidade só tem uma loja que vende. Um dia desses fui
de abrir constatar que está faltando um quinto do tocar num lugar e pluguei a fonte na tomada com a
conteúdo. Tem coisa que eu pagava dois reais por voltagem certa. Dois minutos depois a fonte estourou.
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Quando abri a fonte, vi que o capacitor estava soldada o da educação e o do trabalho. Aliás, eu acho que o
no próprio transformador e tinha um monte de fios ministério do trabalho deveria se chamar ministério
desencapados dentro. Em resumo, a fonte era uma do emprego, porque é isso que o povão quer e precisa
bomba e o balanço da viagem se encarregou de armá- mesmo.
la. No dia seguinte eu precisava dar aula e tive que –– Acho bom a gente parar por aqui senão, daqui a
comprar uma fonte da mesma na mesma e única loja pouco nós vamos estar reclamando até do pingadinho!
do ramo na cidade. – comentou seu Zé da Cida.
–– Essa fonte era Chinesa?
–– Que nada! Era nacional mesmo. Hoje em dia
os chineses estão fazendo produtos de qualidade. 7
Aliás é nisso que as nossas indústrias deveriam
investir. Algumas até investiram em maquinários Depois de dois dias em comparecer ao encontro
e conseguiram uma enorme redução nos custos só com os amigos, seu Mauro Pianista resolveu marcar
que não repassaram essas reduções para o preço do presença, barba feita, roupa elegante... Seu Mauro
produto. Enquanto não tinha concorrência você nem parecia outra pessoa. Logo que entrou já foi pedindo:
percebia, mas, agora que você encontra um similar –– Zeca, me vê um pingadinho e um pão “sem ser
chinês cinco vezes mais barato, você começa a se na chapa”.
questionar. –– É pra já. – respondi.
–– É que nem esse negócio de CD. Sou contra a –– E aí Mauro, toda essa elegância é por causa da
pirataria, mas também não posso ser conivente com o morena? – perguntou seu Beto.
preço absurdo que cobram por um CD. Sei que na Zona –– Claro! Agora tenho que andar nos trinks,.. Vai
Franca de Manaus a matéria prima para a confecção que eu a encontre por aí!
do CD deve sair ao custo de menos de dois reais para –– Afinal, você já se achegou na coroa?
o produtor. Se o CD custasse seis reais, o público iria –– Foi ontem no restaurante. Eu estava tocando
comprá-los de baciada e todo mundo lucraria muito quando um amigo pianista pediu para tocar uma
mais. música. O primeiro movimento da “Sonata ao Luar”
–– Esses dias eu tive conferindo a quantidade de de Beethoven. Então eu fui me sentar numa mesa
ministérios que há nos governo. Sabe, eu me pergunto enquanto ele tocava e fiquei escutando. Não é que,
pra quê tantos ministérios? Tirando os da Justiça e o justo nessa hora, a morena chegou e pediu para sentar
da Economia que eu reconheço como importantes pra na minha mesa. Daí, conversa vem e conversa vai eu
governar, os que acho fundamentais são os da saúde, fiquei sabendo que ela é viúva e tem dois filhos que
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–– A poesia também tem uma parte técnica e –– Não tanto quanto gostaria e deveria. Hoje mal
formal, não tem? – perguntou seu Mauro Pianista. sobra tempo pra escrever.
–– Tem! É em relação à estrutura que pode ser uma –– Dá pra viver de poesia?
Haikai, um Poetrix, um Soneto, etc... É como jogar –– Não e é por isso que eu estou atrás deste balcão.
cartas, as regras variam conforme o jogo que você está Mas também, para um poeta, não dá pra viver sem
jogando. Ser poeta está além da forma. Como todo poesia!
escritor, a gente tem que ser muito observador. –– Você esta escrevendo pra algum jornal?
–– Zeca, uma vez eu tive um professor poeta, ele –– Não. Ultimamente tenho escrito no site do
pedia pra cada aluno falar uma palavra e fazia um Recanto das Letras. É um site que eu gosto muito
verso à partir dela. e tenho feito muitos amigos por lá. Alguns outros
–– Isso é algo que eu não faço seu Beto. A poesia escritores até comentam o que você escreve e você
pra mim precisa ter uma mensagem. Algo que eu tem um feedback.
gostaria de dizer ou de ouvir. Algo sério ou engraçado, –– Você já recebeu algum comentário negativo
alegre ou triste, mas, seja o que for, algo que me toque por lá?
e toque o coração das pessoas. –– Já! Alguns deles motivados pelo
–– E a estética? Você se preocupa em fazer uma descompromisso ideológico de algumas de minhas
poesia que seja bonita? – perguntou seu Zé da Cida. poesias.
–– Que poeta não gostaria que alguém achasse –– Você também escreve comentários?
bonita sua poesia? Eu já rasguei centenas de poesias –– Claro! Procuro sempre ser positivo e sincero.
porque dias e até horas depois de tê-la escrito, achei Se eu não concordo com a posição ideológica de
que ela era feia, exagerada, infantil, surreal, etc... Hoje algum texto, eu incentivo a elaboração ou então, nem
eu estou mais tranquilo nessa parte. Afinal, sou um comento.
ser humano e, os sentimentos humanos são muito A entrevista seguia tranquila até quando meu
complexos. chefe se aproximou e disse:
–– Você se preocupa em fazer uma poesia do –– Zeca, preciso falar com você na minha sala.
“bem”? – perguntou seu Zé da Cida. AGORA!
–– Claro! Se uma poesia que escrevo consegue
passar coisas boas, já justificou sua existência. Jamais
incitaria qualquer ilicitude. Mas também não sou
dogmático e nem religioso.
–– Você lê muito?
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que vou mandar pôr silicone!’ ‘Oito meses de namoro e nada. O Vitor tem que tomar
Papai na ocasião pensou: ‘Essa gata não tem uma atitude. Parece que ele não tem projeto de futuro.
bunda, mas até que ela é jeitosinha. Acho que vou Será que eu sou só mais uma na vida dele? Desse
tentar ganhar ela.’ jeito eu vou acabar ficando pra titia!’ Papai, por sua
Por essa época meus pais já se conheciam, pois, vez, pensou: ‘Pô, é muita pressão! Nunca fiquei tanto
minha mãe pensou: ‘O Vitor já namorou a Elzinha e a tempo com uma gata e o pior é que eu tô amarradaço.
Jussara, se ele me escolheu, azar o delas. Vai ver ele é Acho que vou vender o carro e comprar um terreninho.
o príncipe que Deus me reservou.’ – Papai pensou: ‘Já Peço-a em noivado e consigo tempo pra construir uns
peguei as amigas dessa gata, se eu pegar mais ela, fico cômodos. Quando acabar a gente se casa. É isso que
sócio do clube e o lazer tá garantido.’ vou fazer!’
Papai tinha um ótimo repertório de galanteios, já Papai se casou com mamãe e um dia ele pensou:
mamãe, sempre se perdia nas palavras. Quando quis ‘A Vera está uma gataça. Bendita hora que essa mulher
puxar assunto com meu pai, ela perguntou: entrou na minha vida! Caramba como ela tá gostosa!
–– Você vem sempre aqui? Hoje o bicho vai pegar!’
Papai mais que depressa respondeu: Nesse dia mamãe pensou: ‘O Vitor tá me olhando
–– Venho, mas isso aqui só ficou interessante com aquele olhar. Já estou até com calor. Hoje o bicho
depois que eu te encontrei! vai pegar!’
Mamãe pensou: ‘E além de tudo é poeta!’ E assim, queridos leitores, encerro as minhas
Papai pensou: ‘Essa já ta no papo!’ memórias prévias, pois, foi exatamente nessa noite
No começo, papai era meio cafajeste, mas, aos que eu carimbei o passaporte da existência e, enquanto
poucos ele foi ficando balançado. Um dia ele pensou aguardo o desembarque, já vou logo avisando as gatas
consigo mesmo: ‘Pôxa, essa gata tá mexendo comigo. de plantão: me aguardem porque, depois que eu
Tenho que parar com meu repertório de frases feitas. nascer, o bicho vai pegar!
A garota até já me chamou de poeta. Já sei! Vou fazer
uma poesia!’
Papai fez a poesia e quando a leu para mamãe ela
pensou: ‘Definitivamente o Vitor não é poeta! Tadinho,
pra passar por esta humilhação ele deve estar gostando
muito de mim! É, acho que meu príncipe merece um
beijo!’
Um dia meus pais discutiram. Mamãe pensou:
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A sororoca da morte e os
milagres do Batata
falecido ao ser atropelado por um carro. o incomodava muito. Embora tentasse se controlar,
Dois meses depois, foi com sua mãe visitar uma à noite, quase sempre urinava na cama. Os anos
vizinha. Era um chá de bebê e a vizinha estava preste passaram, ele completou seis, sete... oito anos e ainda
a dar a luz. Enquanto sua mãe conversava, ele ficou urinava na cama. Por mais que ele se lavasse, sempre
entretido vendo os presentes que os convidados ficava com a impressão de que estava fedendo à urina.
haviam trazido. Em determinado momento, pareceu- Com isso, na escola, evitava ir à lousa. Queria mesmo
lhe escutar um ronco e, ao escutar mais atentamente, é nem ser notado.
percebeu que o ronco vinha da vizinha. Dona Elza, a Um dia alguém lhe disse que ele era muito
vizinha, sofria de diabetes e enfrentava uma gravidez inteligente e que até poderia ser famoso, mas, Luís
de alto risco. Três dias depois do chá de bebê, Dona logo pensava que se ficasse famoso iriam vasculhar
Elza teve uma complicação e faleceu durante uma sua vida e descobririam que ele, com nove anos, ainda
cirurgia. Infelizmente, nem o bebê foi salvo. urinava na cama. ‘Prefiro ser o Batata de sempre a ter
Em duas outras ocasiões naquele ano, nosso que passar por esta humilhação’ – pensava.
amigo escutou o ronco fúnebre. Em uma delas, ao Por essa época, ele andava de olho numa colega
visitar um parente agonizante no hospital, comentou de classe. Ela se sentava ao seu lado e ele não se
com sua mãe. A mãe disse-lhe que era a “sororoca da cansava de admirá-la. A menina chamava-se Irene,
morte” e que, quando as pessoas como aquela parenta era bonita, mas não tinha boa saúde. Há três anos o
estavam prestes a falecer, a respiração ficava daquele fígado da menina não funcionava bem e, às vezes, ela
jeito. Era como se elas tivessem dificuldade de até tinha que sair mais cedo da aula.
absolver e reter o ar de que precisavam. Batata ficou Certo dia, entretanto, Batata foi ao banheiro da
muito impressionado com a explicação da mãe, mas, escola e, ao voltar, deparou-se com sua colega no lado
não lhe contou que acontecera outras vezes. de fora da classe. Curioso, perguntou para a menina, o
Depois deste último episódio, a criança quase que havia acontecido e ela disse-lhe que estava sentindo
não saia de casa, a menos que a turma da rua o dores no fígado. Foi então que ele novamente ouviu a
convidasse. A brincadeira de que mais gostava era sororoca da morte. Desesperado, ele perguntou onde
quando imitavam a turma do Manda-chuva (um era o fígado. A menina pegou sua mão e colocou-a
desenho que passava na TV). Seu irmão Valtinho era sobre determinada parte de seu corpo, indicando-lhe
sempre o Manda-chuva e ele, por ser baixo e gordinho, o local. De repente, ele sentiu uma energia vigorosa
era o batatinha, apelido que lhe ficou para o resto da fluindo entre seus dedos e, de súbito, a sororoca da
vida. Seu nome verdadeiro era Luís Carlos. morte que só ele ouvia, inexplicavelmente cessou.
Apesar de ser uma criança feliz, havia algo que Abatido e fraco, voltou para a sala de aula
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enquanto que a menina continuou aguardando os pais. Luís havia ficado um pouco abatido, sugeriu-lhe vestir
Três dias depois ele soube através de sua professora uma blusa. Batata vestiu. O irmão logo adormeceu
que, sua colega de classe havia se curado da doença e e, dois dias depois, inexplicavelmente recuperou o
nem os médicos sabiam explicar como. movimento das pernas. Todos ficaram surpresos.
Relembrando o que acontecera três dias antes, Dez anos se passaram e Batata acompanhou o
Batata começou a desconfiar que talvez houvesse irmão em sua ida para a capital. Em São Paulo, Luís
mais coisas sobre si mesmo que ele ainda não sabia. E conseguiu emprego como atendente em um hospital.
havia! O destino logo iria provar que ele, novamente, Durante aquele ano, o índice de cura naquela
não havia se enganado. instituição foi o maior de todos os tempos e, centenas
Aos doze anos, Batata conseguiu finalmente não de pessoas haviam se curado sem que nem mesmo os
urinar na cama. Ele nem se continha de tanta felicidade. médicos soubessem explicar como. Luís era muito
Pela primeira vez, sentia que poderia até pousar fora atencioso, Fazia questão de cumprimentar a todos e
de casa se quisesse. Mas ele nunca quis. Havia se quase sempre era chamado para aplicar os curativos.
acostumado a ficar em seu quarto, organizando suas Ao final do dia, Luís terminava sempre totalmente
coisas, até que se cansava e dormia. desgastado.
Batata costumava levantar-se cedo. Adorava ver Um dia, recebeu uma carta de sua mãe. Ela estava
o dia nascendo e os sons da rua aumentando à medida internada e queria vê-lo “nem que fosse pela última
que o dia clareava. vez”, escreveu.
Um dia, seu irmão Valtinho sofreu um acidente e Batata partiu imediatamente. Ao abraçar sua mãe
o médico disse que ele nunca mais andaria. Batata, ao conseguiu fazer com que a sororoca da morte cessasse.
vê-lo deitado no sofá assistindo TV, pensou: ‘Será que Naquele mesmo dia sua mãe recebeu alta, pois estava,
eu conseguiria ajudá-lo se fizesse com minhas mãos, “inexplicavelmente curada”.
do jeito que fiz com Irene?’ Pensou até que decidiu À noite, entretanto, Batata acordou de repente em
tentar. Para que o irmão não percebesse, alegou que meio a um ronco estranho que ele mesmo havia dado,
estava ficando frio e, para que o irmão não sentisse pois, ele estava sozinho no quarto. Era a sororoca da
frio nas pernas, iria vestir-lhe uma meia. Valtinho o morte, mas ele nem percebeu. Bêbado de sono, não
autorizou e Luís Carlos buscou as meias para vestir. Em teve forças sequer para abrir totalmente os olhos. Logo
determinado momento, colocou suas mãos nas juntas voltou a dormir e foi então que nunca mais acordou.
dos joelhos do irmão e sentiu uma energia fluindo
pelos seus dedos. Tudo foi tão rápido que Valtinho
nem percebeu a manobra embora, percebendo que
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A carta da amante
Outro fato chamou-lhe a atenção. Quase todos a campainha, qual não foi a surpresa ao ser atendido
os dias, lá pelas dez horas da noite, costumava ir à por um grande amigo de infância.
casa da namorada para vê-la. Naquele dia, não seria O homem pegou sua caixa de ferramentas e
diferente, mas, na carta se lia: “vem agora à minha começou a mexer no fusca. Rapidamente consertou
casa”. o veículo e convidou o amigo que não via há tempos
Há três dias, André completou dois meses de para conhecer sua família e tomar um café. Para não
namoro. Milena já foi casada, mas, o marido era muito fazer desfeita André aceitou.
agressivo e ela se separou. Foi ali mesmo na padaria Depois do café, conversa vem, conversa vai e
que André a conheceu. Foi amor à primeira vista. Ela André comentou sobre a carta. Joselino, seu amigo,
estava separada há um ano e entrou para tomar um disse que conhecia o sujeito e que ele não merecia
pingado. Naquela semana eles se viram mais umas três confiança. Pediu para André tomar cuidado, mesmo
vezes e, na semana seguinte, já estavam namorando. porque, como domingo era o dia das mães, os presos
Quanto ao ex-marido de Milena, parece que estavam recebendo indulto. E ainda disse:
arrumou outra mulher, mas, depois de agredi-la foi –– Lembra do conto A Cartomante, de Machado
preso com base na lei “Maria da Penha”. André até de Assis, no fim o cara se estrepou! Cai fora dessa
o conhecia de vista, pois, uma vez um motoqueiro enquanto é tempo!
parou para conversar com Milena. Soube depois que André se despediu e agradeceu a acolhida do
era o ex. amigo. Enquanto ligava o carro, ainda ouvi-o dizer:
Um simples telefonema talvez esclarecesse tudo, –– Não esquece: o indulto!
mas, Milena não tinha telefone. Ele até pretendia dar- Apesar das recomendações do amigo, André
lhe um celular de presente no dia dos namorados. ficou preocupado com Milena. Ele jamais a deixaria
Apesar das dúvidas quanto ao seu futuro, se sozinha nessa.
havia algo que ele trazia como certo e incontestável, E assim, logo se viu frente à casa da amante.
era o seu grande amor por Milena. Como ele costumava Reparou que as luzes da sala estavam apagadas e fazia
dizer, ela era sua “alma gêmea”. E assim ele pegou um silêncio mórbido. Era estranho, pois, todas as
seu velho fusca e foi visitá-la. vezes que ele a visitava as luzes estavam acesas e a
Quando chegou ao bairro, duas ruas antes da televisão ligada. Por sorte, trazia no bolso uma cópia
casa da namorada, o carro teve um problema e ele não da chave da porta que Milena havia lhe dado.
conseguia dar a partida novamente. Informaram-lhe Ao entrar pela sala, todas as luzes repentinamente
que, por sorte, o carro havia quebrado bem na frente se acenderam e ele constatou aliviado que aquela era
da casa de um mecânico de automóveis. Ao apertar uma festa surpresa. Embora fosse seu aniversário, nem
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Johnny B Good: um dia
na vida de Roger Blues
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mas, ela teve de ir e, três anos era muito tempo para Rogers não saia da minha cabeça.
um jovem cheio de Rock’n’Roll na cabeça e muitas Nunca mais me envolvi com ninguém. O tempo
histórias por viver. passou e eu envelheci. Agora que eu já havia me
No ano seguinte a escola fechou e eu mudei de acostumado com a solidão eu a encontrei. Entretanto,
cidade. A gente nunca mais se encontrou. Sempre eu não queria retomar nossa história, mas, eu precisava
que eu voltava à cidade, passava pela antiga escola dizer-lhe o quanto ela fora importante pra mim.
que agora não mais existia. De certa forma eu também Foi aí que aconteceu algo surpreendente. Quando
havia me perdido. Aqueles tempos felizes, aquele fui buscar o documento, depois de adquiri-lo e preste
amor interrompido, havia ficado em algum lugar do a atravessar a mesma avenida, ao olhar para frente,
passado e levado uma parte de mim com ele. consegui divisá-la entre os transeuntes atravessando
Quarenta anos se passaram e eu nunca a esqueci. em minha direção, exatamente como na semana
Um dia desses eu fui a um cartório em São Paulo para anterior. Mas, desta vez eu a esperei. Ela ficou radiante
solicitar um documento. O rapaz do estabelecimento ao me ver. Disse-me que era casada, que tinha netos e
me informou que o documento ficaria pronto em que amava sua família. Eu, de minha parte, disse-lhe
uma semana. Ao sair do cartório, eu atravessava um que ela foi um ponto feliz na minha vida e que eu
cruzamento quando a vi. A gente se encontrou no jamais a esquecerei. Trocamos mais algumas palavras
meio da avenida. Ela me reconheceu e me perguntou: e depois, ela partiu e eu segui o meu caminho. Senti-
–– Foram bons aqueles tempos, não é? me como se tivesse resolvido algo que carreguei por
Eu fiquei sem responder. O sinal estava preste muitos anos.
a abrir e cada um seguiu sua direção. Do outro lado O sinal ficou verde novamente e, na minha vida,
fiquei observando-a. Caminhava devagar. Havia o destino finalmente me deu o sinal verde que eu
envelhecido. Andava com dificuldade, mas estava precisava.
segura.
Tive vontade de voltar e dizer o quanto ela foi
importante na minha vida. Eu queria que ela soubesse
que de tudo o que eu vivi nada se compara aos
momentos que passamos juntos.
Naquela noite meu coração ficou apertado. Achei
que jamais a veria novamente. A nossa história havia
sido novamente interrompida. Passei uma semana me
sentindo meio vazio. Por vezes a música do Kenny
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Meu encontro com Saci
Pererê
mal-assombrada. Meu tio não acreditava nisso até se –– Se esse Pererê existe, onde é que eu posso
dar conta de que, sempre que amanhecia, todos os encontrá-lo? – perguntou meu tio.
seus cigarros haviam misteriosamente sumido. –– Aqui mesmo! – respondeu o escritor.
À noite ventava muito e às vezes parecia que o Dizendo isso, Monteiro Lobato pediu para que
vento entrava dentro de casa. meu tio pusesse um cigarro na boca, como se fosse
Um dia meu tio pôs um cigarro na boca e, de fumar. Ele atendeu e, de repente, armou-se um
repente, armou-se um redemoinho. O cigarro foi redemoinho e seu cigarro foi parar no chiqueiro.
arrancado de sua boca e jogado longe. Nesse momento, seu Lobato levantou-se e jogou a
Quando isso aconteceu pela quarta vez, titio peneira vazia sobre o redemoinho. Depois, com muito
resolveu conhecer os vizinhos e conversar com eles cuidado, retirou debaixo dela um gorro vermelho,
sobre a casa. Titia ainda tossia muito e não quis recolheu a peneira e o redemoinho foi cessando até
acompanhar meu tio nas visitas, mas eu, muito que um senhor surgiu bem á nossa frente. Titio quase
travesso e curioso, decidi acompanhá-lo. não acreditou no que estava vendo e perguntou:
Foi assim que, numa daquelas tardes, visitei o –– Quem é o senhor?
Sítio do Pica-Pau Amarelo pela primeira vez. –– Eu sou o saci Pererê, muito prazer. O senhor é
Logo que chegamos, avistamos um senhor na o novo vizinho. O homem que gosta dum cigarrinho.
varanda. Ele estava escolhendo feijão numa peneira –– O senhor não é um saci! – protestou meu tio
e nos recebeu com muita educação. O homem tinha e continuou – O senhor tem duas pernas e eu nunca
umas sobrancelhas enormes e um bigodinho bem ouvi falar de saci com duas pernas!
pequeno. Parecia que o bigode tinha trocado de lugar –– O senhor também nunca ouviu falar de prótese?
com a sobrancelha. Seu nome era Monteiro Lobato e Pois é, meu tio Lobato mandou fazer uma pra mim.
ele era um escritor famoso. Titio falou-lhe da casa e ele Agora eu não preciso mais ficar pulando por aí.
escutou atentamente. Depois, deu um bocejo enorme –– Pererê conte a ele sobre o cigarro. – pediu seu
e disse: Lobato.
–– Isso é coisa do Pererê! –– Pouca gente sabe, mas, foi por causa do cigarro
–– Que Pererê? – perguntou titio. que eu perdi a minha perna. Antes mesmo de eu
–– O Saci Pererê! Você nunca ouviu falar dele? nascer, minha mãe fumava muito e não sabia que
Titio afirmou que sim, mas que não acreditava mulher grávida num pode fumar. Daí ela ficou doente
em sacis. Ele realmente achava que sacis não existem. e eu nasci sem uma perna. É por isso que eu não gosto
Uma vez minha mãe já havia me falado sobre sacis, de cigarro e se depender de mim, ninguém fuma por
mas, eu nunca tinha visto um. essas bandas!
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Cláudio Gomes de Almeida
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