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Cláudio Gomes de Almeida

Sumário

Pelas Bênçãos de Buda! 7


O Natal de Zé do Bode 11
O Guarda-Chuva 15
A Sociedade do Chapéu Vermelho 19
Fato Novo 33
Homem não chora 37
Os barbeiros de antigamente 39
O grande paradoxo! 43
Mania 45
Quero nunca me fartar das coisas 47
O ritual de retirada de bolo 51
Uma profissão de futuro 53
Eu odeio pipocas! 57
O desarme da ratoeira 59
Eu queria ter um papamóvel! 61
A garrafa térmica e outros mistérios 63
Um e-mail indelicado 65
Copyright © Cláudio Gomes de Almeida Uma festa de São João 69
Transposições oníricas 73
Edição Thiago da Cruz Schoba Evocações de uma foto 81
Capa Agência Schoba As fadas do sul de Minas e o roubo da flauta pan 85
Revisão Thais Cristina Índole 101
Apresto de uma entrevista reveladora! 105
Editora Schoba Ltda ME Eu e as cigarras 109
Rua Floriano Peixoto, 1569 - Vila Nova Como é mesmo o seu nome? 113
Salto - São Paulo - 13322-020 Grupo dos Usuários (de inseticida) 117
Fone:(11) 4029.0396 | E-mail: atendimento@editoraschoba.com.br Eu adoro uma perua! 119
www.editoraschoba.com.br O transformador 121
A verdade em preto e branco! 125
As aparências enganam! 127
O desejo de servir (ao TG) 129
Beijar sim, mas chiclete nunca mais! 135
Poesianálise – Uma instrospecção auto-poética 139
O poder curativo da macarronada! 145
Fading in, fading out e déficits de beleza 147
Um osso duro de roer! 149
A Casa do Sol Poente, o médico artista e
o e-mail sobre o fim do mundo 151
Pelas Bênçãos de Buda!
Duas luas no céu! 155
O olhar por trás da fresta 157
Nem tudo é importante na vida! 165
Nota de falecimento de um computador 167
A sacola na pocheti do mala da bolsa
de valores (microconto conciso) 169
O tráfico de fofocas na Vila Veneza 171
Pingados Filosóficos 175 –– Pelas bênçãos de Buda! – disse o personagem
Memória prévias de Asdrúbas 199
A sororoca da morte e os milagres do Batata 203
do thriller.
A carta da amante 209 Era um monge que, em sua caminhada, deparou-
O beijo impossível de Nariguda 213 se com um riacho. Então, parado às suas margens, o
Johnny B Good: um dia na vida de Roger Blues 217 monge pegou uma pequena folha de capim e lançou-a
Sinal verde do destino 219
Meu encontro com Saci Pererê 223
sobre o rio, em direção à margem oposta. Depois,
Galos, cantos e nada mais 227 numa atitude surpreendente, saltou para sobre aquela
A monga among us 229 pequena folha e, em profundo estado de meditação,
Os Pinguins Imperadores e os Pelicanos 231 quase que levitando, deixou-se conduzir por ela até a
outra margem.
Sim, o thriller não deixava dúvidas, o filme seria
sensacional e assim, aquela semana demorou a passar.
A todo instante, Valério se lembrava da cena e, quando
seus colegas de classe o perturbavam, ele se continha,
respirava fundo e apenas sussurrava dizendo consigo
mesmo: – Pelas bênçãos de Buda!
Finalmente chegou o Sábado. A sessão começaria
às 18:30 horas e, como ele chegou um pouco adiantado,
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aproveitou para ver algumas fotos expostas no cartaz, horas da noite e as ruas já ficavam vazias. Pelas
onde estava escrito em letras garrafais: A saga dos calçadas, apenas os corajosos caminhavam. Apenas
guerreiros shaolins. os guerreiros. Apenas os guerreiros shaolins!
A noite estava estrelada e na frente da bilheteria, Após lutar contra alguns postes pelo caminho,
uma fila havia começado a se formar. Ali havia jovens, abriu a porta de casa e deparou-se com dois grandes
senhores e até casais (os quais já praticavam ali uma mestres, os quais estavam a esperá-lo. Ao ser
prévia do que iria acontecer entre eles lá dentro). perguntado sobre o filme, ele se sentou e relatou aos
Valério geralmente ia sozinho ao cinema, não mestres as incríveis façanhas que ele testemunhou no
porque gostasse da solidão, mas porque os amigos de cinema. Depois da calorosa recepção, foi ao quarto
sua idade não tinham condições de pagar o ingresso. para guardar sua blusa, digo, o manto sagrado que o
Quanto a ele, dinheiro não lhe era problema, pois, encobria.
desde oito anos trabalhava como sorveteiro e sua Ocorreu que, ao abrir a porta do quarto, percebeu
caixa de isopor era uma companheira diária. Durante atrás dela, uma vareta de bambu e não teve dúvidas,
a semana, economizava ferrenhamente para atingir pegou o cajado e praticou os novos golpes que havia
seu principal objetivo, isto é, assistir ao filme de kung aprendido naquela noite. Entretanto, ao praticar certo
fu que passava todo sábado no Cine Avenida. movimento, sentiu alguma resistência e forçou seu
Eram oito horas da noite quando o filme acabou. cajado por um segundo, até que caiu em si.
Valério esperou que todos saíssem e levantou-se por Ao analisar aquele cajado, percebeu que aquela
último. Ao passar pela porta, sentiu no rosto uma era de fato uma vara de pescar e que sua ponta esta
rajada de vento e parou para escutar os barulhos que sendo presa por uma linha. Ao acompanhar a trajetória
havia ao redor. Precisava certificar-se de que estava da linha, constatou que um anzol havia fisgado a
seguro, afinal estava em plena dinastia Chan e era um lateral de seu joelho e como ele havia forçado, a ponta
dos maiores lutadores shaolins de toda a China. estava bem cravada na sua musculatura.
Pacientemente esperou os carros passarem Qualquer pessoa se desesperaria, gritaria,
e atravessou a avenida Siqueira Campos como se clamaria por socorro... Mas ele não! O controle da dor
flutuasse sobre ela. Perguntou as horas ao frentista era o primeiro ensinamento dos grandes mestres e
do Auto Posto Rhima, só para poder encará-lo conforme a “senda óctupla”, ele deveria buscar agora
desafiadoramente. Depois de ouvida a resposta, a “atitude correta”. Então, lembrou-se de seu princípio
assentiu com a cabeça e murmurou com sons quase máximo: a cura pelo contrário.
inaudíveis: – Pelas bênçãos de Buda! Conforme este princípio, adquirido em seus dez
Naqueles tempos antigos, mal passava das oito anos de vida e muita reflexão, quando se come demais,

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a cura é não comer. Quando se gasta demais, a cura é


não gastar. E, se um anzol entra na sua musculatura, a
cura é retirá-lo pelo mesmo lugar onde entrou.
Valério não sabia nada sobre anzóis. Seu pai
pretendia ensiná-lo a pescar no dia seguinte e
guardou ali a vara que havia comprado na feira do
rolo, especialmente para o filho. O Natal de Zé do Bode
Sentado numa cadeira, Valério foi retirando
devagar o anzol, até que ele saiu totalmente de seu
joelho. No lugar escorreu apenas umas breves gotas
de sangue, que ele limpou com mertiolate, para
novamente testar sua resistência à dor.
Por um instante percebeu que o acidente poderia
Ter sido muito pior. Deveria tomar mais cuidado e ser Existem coisas na vida que importam mais a
mais atento, concluiu. uns que a outros e definitivamente, o natal era o mais
Após tomar seu banho, vestiu um pijama e de importante na vida de Zé do Bode. Ganhou esse apelido
seu quarto gritou: não por acaso, mas, quando criança, em faltando duas
–– Benção pai... Benção mãe... semanas para o natal, um parente de sua mãe enviou
Quase não ouviu as respostas dos mestres e, à sua família um bode para a ceia natalina.
antes de cair no sono profundo, só teve tempo de José tinha apenas seis anos e ficou encantado
sussurrar: com aquele animal. Levantava-se cedo e lá ia ele,
–– Pelas bênçãos de Buda! puxando o bode por uma corda até o terreno ao lado
de sua casa, para que o animal pudesse se alimentar.
Tratava-o como um rei e tanto já se apegara ao bode
que apenas de olhá-lo já sabia se estava alegre ou
triste.
Sua mãe, vendo que o pequeno estava se
apegando ao animal, explicou-lhe que seu novo
amigo seria sacrificado para a ceia de Natal.
José ficou muito triste. Sempre que chegava em casa,
corria ver se seu amigo estava bem alimentado, se tinha

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água, etc... Brincava com o animal e até conversava chegado e estaria na sala distribuindo presentes.
com ele. –– Mas como tia? Ele nem desceu aqui? –
Dois dias antes da data marcada vieram buscar o perguntou intrigado.
bode. José não estava em casa e quando chegou teve –– É que ele desceu pela porta da frente –
a maior decepção. Havia prometido ao bode que não respondeu ela.
deixaria ninguém levá-lo. José nem comia direito. Se Quando José entrou na sala e viu aquele velhinho
via carne no prato, achava logo que era o bode. de roupa e touca vermelha correu para abraçá-lo. Papai
Na noite de natal ele foi com a família até a casa Noel então lhe disse:
de sua avó materna onde tradicionalmente se dava a –– José. Tenho um presente para você.
ceia, mas nem brincou muito com seus primos. Então Dizendo isso, o bom velhinho entregou-lhe uma
uma tia lhe disse: caixa. Na caixa havia um pequeno chaveiro com um
–– José fica no quintal olhando pro céu que Papai bode de plástico pendurado.
Noel virá com seu trenó e descerá lá para deixar os Nem assim José ficou contente e, sentado no
presentes. sofá, ficou assistindo Papai Noel chamar os nomes e
Ao chegar no quintal, ele viu dentro de um tanque entregar os presentes.
alguns caranguejos vivos. Imaginou um daqueles –– Paulo... Lúcio... Ângela... Suzana... André...
caranguejos enormes apertando a ponta de seu nariz José...
e ficou com medo. Depois achou até engraçado, mas Ops! Papai Noel havia chamado seu nome outra
decidiu manter distância do perigoso tanque. vez. Daí ele olhou na mão do velhinho e viu apenas
E assim José ficou um bom tempo um pequeno embrulho, o qual foi-lhe entregue.
olhando as estrelas, lá longe, no infinito... Rasgou o embrulho e encontrou dentro dele um
Queria ser o primeiro a ver Papai Noel e perguntar único botão de camisa. Então, sem entender nada,
pra ele, porque é que ele deixou que levassem o seu olhou para o Papai Noel, que foi logo lhe dizendo:
bode. –– Abra a porta José, seu presente está detrás
Vez em quando algum tio ou tia trazia-lhe algo dela.
para comer, mas ele não tinha fome. Alguns tios saiam Devagar ele abriu a porta da sala e foi como se um
na porta da cozinha só para vê-lo sentado esperando raio de luz iluminasse seu rosto, pois, ali na calçada,
Papai Noel e até se emocionavam com aquela criatura estava o seu amigo bode, vivo e salvo como ele já nem
sensível e inocente. Todos já sabiam da história do bode. esperava.
De repente houve um alvoroço entre as crianças do José ficou tão feliz que até parecia ser outro.
quintal. Uma tia veio avisá-lo de que Papai Noel havia Pegou logo seu bode pela corda e conduziu-o até o

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quintal, prendendo-o em lugar seguro e afastado dos


terríveis caranguejos.
A noite mágica seguiu tranquila e ele brincou a
valer.
A partir daí, José trataria do bode até a morte do
animal três anos depois. Na vizinhança todos tinham
cachorro, mas na casa dele cachorro não entrava. O Guarda-Chuva
Apenas o bode tinha vez, razão pela qual ficou
conhecido como Zé do Bode.
A propósito, no dia seguinte à ceia de natal, José
viu em seu prato uns bolinhos de carne diferentes e
perguntou:
–– Que é isso mamãe?
–– São bolinhos de caranguejos. – respondeu ela. Era-lhe comum perder guarda-chuvas. Tantos
E José comeu tanto que deu até gosto! já haviam sido perdidos que daria para montar uma
loja com os mais variados tipos, desde o tipo bengala
(do qual mais gostava) até os tipos femininos, que
eventualmente emprestava de sua mãe ou de suas
irmãs nas horas de necessidade. O último foi perdido
na reunião noturna do sindicato.
Quando questionou o porteiro, este lhe revelou
que, conforme o livro de ocorrências, foi encontrado
um guarda-chuva na mesma data e com as mesmas
características dadas, mas que ele deveria voltar
durante o dia se quisesse reavê-lo.
Naquela manhã Lúcio acordou contente – Vou
resgatar meu guarda-chuva – pensou. Já tinha em mente
todo o itinerário. Primeiro passaria pela redação do
Jornal para deixar o artigo que escrevia semanalmente,
depois, iria à sede do sindicato e assim fez.
Ao chegar ao Jornal, havia alguém esperando.

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Era um senhor baixo, magro, com uns olhos vívidos voltar para o Brasil.
e misteriosos. –– Compreendo...
–– Bom dia. É o Sr. Lúcio Oliveira? Despediram-se e o sujeito partiu deixando-o a
–– Sim, sou eu mesmo, pois não? – respondeu. sós com suas recordações e aquele envelope.
–– Há quinze anos tenho um envelope para lhe Lembrou-se que naqueles anos idos, mal
entregar. Meu nome é Pedro Morgado e sou sobrinho chegava da escola, já ia direto para a casa de Seu
de Hélio Fontes. O senhor se lembra dele? Hélio emprestar quatro a cinco livros e devorar suas
O nome Hélio Fontes caiu-lhe como uma bomba histórias deliciosas.
e o levou a lembrar-se dos tempos remotos da infância, Por um momento lembrou-se de que quando
onde os bairros tinham outros nomes como buraco da sua mãe saia para trabalhar, dizia: Não abra a porta
onça, caminho do gado, morro do cruzeiro, morro dos para ninguém e cuidado com o “esquadrão da morte”.
macacos, etc... Lembrara-se de que começou a gostar Então ele se trancava e ali ficava a ler uma história
de ler na casa de Seu Hélio, seu vizinho, onde havia atrás da outra, conhecendo castelos, bruxas, fadas e os
centenas de livros. mais estranhos personagens.
–– Claro que me lembro! Grande amigo Certa feita, Seu Hélio pediu-lhe que escrevesse
de minha família. Por onde anda ele? uma história, dizia que iria ilustrá-la. Foi quando
– Faleceu há quinze anos, mas deixou este envelope ele escreveu seu primeiro livro. Um dia, por aquela
para ser entregue ao senhor. Por estes dias, ao abrir o época, acordou e se deparou com a mobília de Seu
jornal eu vi um artigo com o seu nome e pude enfim Hélio sendo posta num caminhão. Ele estava de
localizá-lo. Não seio o que este envelope contém, mas mudança e um irmão cuidava de transportar tudo.
parece que é um livro. Enfim, só vim cumprir a última Antes de partir, a pedido de Seu Hélio, foram-
vontade de meu falecido tio. lhe entregues alguns livros, entre eles, Flaubert,
–– Lamento saber disso, há mais de vinte anos Balzac, Bocage... Uma literatura adulta demais para
ele partiu desta cidade e ninguém nunca me disse o o universo fantasioso de uma criança. Foram dias
que aconteceu. Eu era garoto ainda. Seu Helio era um difíceis, Seu Hélio era-lhe como um segundo pai...
homem muito estimado e que me influenciou muito. Entre saudoso e comovido, rasgou a borda do envelope
–– Quando ele morou aqui, há vinte anos, era e tirou dele um livro. Quase não acreditou quando
procurado pela ditadura. Assim que foi descoberto, viu seu nome escrito na capa. Ao folheá-lo riu com
teve de viver exilado. Não houve tempo para se a história que já nem se lembrava mais de ter escrito.
despedir. Depois viveu ainda cinco anos na Argentina. Nela, Seu Hélio era um Mago e tinha um imenso livro
Morreu sem poder realizar seu sonho que era o de de magia em sua biblioteca. Quando os vilões do

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esquadrão da morte chegavam, era ali que o menino


Lúcio se escondia. De tanto se esconder dentro do
livro, havia aprendido tantas mágicas que pode ele
mesmo derrotar o terrível esquadrão. Tudo fartamente
ilustrado.
Naquele momento foi até o banheiro e trancou-
se no compartimento. Ali, se chorasse, ninguém A Sociedade do Chapéu
perceberia. Olhou novamente o livro e viu na
contracapa um recado manuscrito em letras pequenas Vermelho
e tímidas:
“Lúcio, esta é a sua vocação real, nunca abandone
seus sonhos. As letras podem não significar nada
para muitos, mas esta é a chave que lhe abrirá portas.
Felicidades. Seu amigo, Hélio”.
Entre lágrimas fechou o livro e recolocou-o no
envelope. Deixou seu artigo com a recepcionista e foi Foi há muito tempo e talvez muitos dos que lêem
ao sindicato. Estava meio perdido, como se flutuasse este conto ainda não tivessem nascido. Há quarenta
entre duas dimensões diferentes. Naquele momento anos, ao lado do terreno onde hoje é o Parque Santos
ele gostaria de encontrar-se com Seu Hélio, agradecer- Dumont, havia uma mansão alaranjada, com um
lhe e contar tudo o que tem feito; o emprego no jornal, enorme jardim na frente. Era a cada de Lina Perolovsky,
o seu quinto livro prestes a ser editado, e tudo o uma famosa pianista russa que escolheu São José dos
que fizera como escritor desde que ele, Seu Hélio, o Campos para morar.
instigara a escrever. Naquele tempo eu trabalhava como mensageiro
Chegou ao sindicato e perguntou pelo guarda- no “Café Porão” e sempre era requisitado a
chuva. Alguém ligou para alguém, que mandou ligar comprar jornal para um antigo cliente, o Sr Zilcher.
para alguém, que disse que não foi encontrado guarda- No dia em que o Sr Zilcher partiu de volta para a
chuva nenhum. Mas naquele dia isso era o que menos Europa, passou pelo Café Porão para se despedir.
importava, pois, apesar de não ter reencontrado seu Notei na sua mala o desenho de um piano (ele era
guarda chuva, Lúcio reencontrou-se a si mesmo. afinador e comentei com ele o meu interesse em
aprender o instrumento. Foi então que ele me falou
da professora sua amiga. Eu anotei o endereço e

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fiquei de passar na casa dela depois do expediente. ouvi uma voz de criança vindo do jardim; perguntei à
Naquele mesmo dia, eu me vi diante de um portão professora, mas ela, meio vacilante, afirmou que não
enorme e bati durante muito tempo até que vi uma havia ninguém. Quando a aula cessou, pude ouvir
sombra saindo dentre as ramagens do jardim. Era a respiração de pessoas na sala ao lado. Pareciam
uma senhora franzina, usando um par de óculos ofegantes e receosos. A primeira aula foi breve e, antes
grande e com uma lente tão forte que aumentava de sair, D. Lina me deu um chapéu vermelho e pediu-
assustadoramente seus olhos. me que eu o usasse toda vez que viesse ter aula, assim,
Perguntei-lhe sobre as aulas e ela me disse que de longe ela me reconheceria.
não lecionava. Falei-lhe da indicação de seu amigo, Quando saí da residência, espiei pela lateral e vi
o Sr Zilcher. Ela ficou um tempo em silêncio; depois um grande galpão de madeira, fechado por correntes e
sorriu discretamente e pediu-me que voltasse no dia muitos cadeados. Como se tivesse contendo algo muito
seguinte, no mesmo horário. Eram quatro e quinze da precioso. Para não parecer curioso, não fiz perguntas,
tarde. mas sabia que aquela casa estava cheia de mistérios.
Na tarde seguinte eu estava ansioso para que o
expediente acabasse, e quanto mais ansiava, mais ele
parecia interminável.
Ao chegar ao local, não demorou muito para
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que D. Lina aparecesse e me abrisse o portão. Logo Minha mãe sempre dizia: “Nunca faça nada
ela foi me conduzindo pelos jardins e à medida que pela metade meu filho, acredite no seu instinto e
entrávamos na residência, os sons dos automóveis iam não economize na sua inteligência”. – Por isso, quis
ficando distantes e desaparecendo. Ao abrir a porta estudar música com seriedade e fui pedir permissão
da sala, senti um enorme cheiro de madeira antiga e ao Padre Juca para estudar no órgão da igreja.
vi, num canto da sala quase vazia, um piano e uma Padre Juca me recebeu muito bem e me
banqueta. permitiu acesso ao órgão, onde eu estudei quase
Ela o abriu e tocou uma peça para que eu todos os dias daquela semana, após o expediente.
escutasse, era “Le Lac de Come”. Neste momento, eu Quando o dia de minha aula chegou, eu estava
olhei para o busto de Beethoven sobre o piano, para preparado. E lá fui eu para a velha mansão alaranjada,
as teclas de marfim amareladas pelo tempo e percebi não sem antes me colocar o exótico chapéu. Ao
ali as peças que faltavam no imenso quebra cabeça em me aproximar da mansão vi D. Lina se despedindo
que minha vida havia se tornado. de um Senhor na calçada e cheguei a tempo de ser
A primeira aula seguia tranquila quando súbito apresentado.

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–– Este é o compositor Villa Lobos – me disse de Ary Barroso, (dizem que ele compôs Aquarela
sorrindo. do Brasil em sua homenagem). Certo dia naquela
–– Muito Prazer, eu sou Mário. semana, eu a vi passeando com seu cachorrinho e a
–– Bem vindo à nossa Sociedade – disse chamei para conversar. Ela, como noiva do famoso
o compositor colocando o chapéu vermelho Ary barroso, conhecia bem o meio musical da cidade
sobre a cabeça. Por fim despediu-se e partiu. e estava sempre muito bem informada. Por isso eu lhe
Enquanto entrávamos na residência espiei pela lateral perguntei sobre D. Lina no que ela foi logo me dizendo:
e constatei novamente o misterioso galpão. Ao chegar - D. Lina chegou a São José dos Campos logo depois da
à sala de música havia dois jovens e uma criança nos revolução de 1917. Trouxe entre os seus pertences um
esperando. piano e um órgão Hammond, o qual chamou a atenção
–– Estes são meus sobrinhos; Modest, Layla e de toda a cidade, Aqui ela começou a ensinar a todos
Zayra. Eles estão fugidos da União Soviética, mas os músicos da região. Ela era casada, mas achava que
você não deve revelar a ninguém a presença deles o marido havia morrido na revolução.
aqui, para que não chegue ao conhecimento da polícia –– E porque ela parou de lecionar? – perguntei
secreta russa. curioso.
–– Muito prazer. Podem contar comigo. – –– Dizem que ela, alguns anos depois, apaixonou-
respondi. Naquele momento eu estava começando a se perdidamente por um organista joseense a quem
compreender o mundo de D. Lina. também lecionava. Ambos viveram muito felizes até
Ao cumprimentá-los, não pude deixar de reparar que o marido russo de D. Lina resolveu aparecer e
em Layla; ela era baixa, gordinha e tinha um olhar como punição não deixou mais que ela lecionasse.
penetrante. Falava com delicadeza e sua voz feminina –– E o amante, não a procurou mais? – perguntei.
soava dócil como uma flauta. Encantei-me tanto –– O amante de D. Lina marcou de fugir com
que pensei comigo, “um dia esta Layla será minha ela na estação, mas ela não compareceu e ele partiu
esposa”. sozinho.
Eu tinha poucos e grandes amigos e Agradeci as informações e a Srta Nivalda
definitivamente meu maior amigo era Katsumi, continuou sua trajetória. Quando compareci à aula na
que quase sempre me vencia nos jogos de dama. terceira semana, vi pessoas estranhas no quarteirão.
Quando lhe falei de Layla, ele e Celina, sua Havia uma agitação incomum no bairro e ao entrar na
noiva, prometeram me ajudar a conquistá-la. rua da mansão notei que vários homens caminhavam
Toda manhã, passava pelo Café Porão, a mulata mais em minha direção, alguns deles estavam armados.
famosa de São José dos Campos, a Srta Nivalda, noiva Aquilo tudo era um prenúncio, logo eu saberia o que

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era de fato a Sociedade do Chapéu Vermelho. soviéticas, mas ela conseguiu escapar escondendo-se
entre as bagagens do trem.

21 Como não teve mais notícias de Igor, julgou


que ele estivesse morto e quando recebeu a notícia
da morte de seus pais, decidiu, num gesto de amor
Em 1929 o mundo andava muito conturbado. e solidariedade, fundar a Sociedade do Chapéu
A Europa vivia às voltas com frequentes revoluções Vermelho. Quando esteve em Paris, D. Lina conheceu
e no Brasil os preços do café despencaram. Por toda Villa Lobos e interessou-se em morar no Brasil. Como
parte era grande a insatisfação política. Naquela Villa Lobos era apaixonado por São José dos Campos
tarde de grande agitação, depois de cautelosamente onde lecionava, indicou-lhe a cidade para montar
revistado pelos seguranças, vi um homem baixo residência. Uma vez aqui ela deu continuidade
vestido com roupas tipicamente gaúchas saindo da à Sociedade do Chapéu vermelho. Em São José
mansão de D. Lina. Logo fomos apresentados, embora conheceu vários músicos, mas um em especial,
eu já o conhecesse (Getúlio Vargas era um político Augusto, desde o primeiro encontro lhe roubou o
famoso. Um ano após este encontro, ele lideraria uma coração. Depois, sob o pretexto de ter aulas, Augusto
revolta armada e instalaria um governo provisório). se aproximou e manteve com ela um grande romance
Após a partida de Getúlio perguntei a D. Lina o que tornando-se assim, o verdadeiro amor de sua vida.
havia se passado e ela me disse que Getúlio Vargas Quando parecia que tudo ia ficar bem, Igor apareceu
veio comunicar seu desligamento da Sociedade do e completamente modificado ameaçou Augusto, que
Chapéu Vermelho. a convidou para fugir. Ela só não fugiu por causa
Perguntei então que sociedade era aquela. da Sociedade, pois, seu compromisso humanitário
D. Lina disse tratar-se de uma sociedade era e sempre foi maior que tudo. Algum tempo
beneficente, de caráter internacional, que levava depois, Igor, vendo que ela estava abatida e que
socorro médico às vítimas de guerras em todo o mundo não o amava, voltou definitivamente para a Rússia.
indiscriminadamente e que por esta sociedade teve de Quando terminou de me contar sua história D. Lina
abandonar até mesmo o homem que amava. estava muito emocionada e pediu-me para não lecionar
Perguntei-lhe se ela falava de seu marido. naquela tarde, no que eu compreendi perfeitamente.
D. Lina disse que seu pai casou-a com um amigo Enquanto saía, escutei os primeiros acordes de “Le
deles, Igor, apenas para que ela saísse da Rússia, Lac de Come” e entendi que aquela música era-lhe
pois, jovens solteiros estavam proibidos de cruzar as muito importante. Três dias depois o comentário
fronteiras. Entretanto, Igor foi capturado pelas tropas geral era a quebra da bolsa de valores de Nova York.

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Imediatamente fui à banca e comprei um exemplar da na residência até que por fim, desapareceu entre as
“Folha da Manhã”, para saber mais sobre o assunto. ramagens do jardim.
Qual não foi a minha surpresa ao ver num canto da Acesas, as lamparinas cintilavam feito vaga-
primeira página um texto onde se lia: “A pianista Lina lumes sobre o azulôr das ruas ao cair da noite.
Perolovsky deixa a Sociedade do Chapéu Vermelho, Layla não saia de minha cabeça.As pequenas gotas
que passa a se chamar Luz Vermelha Internacional”. de chuva deram lugar a uma grande tempestade.
Katsumi e eu conversávamos sobre o assunto Da janela de meu quarto eu podia ver as águas
no Café Porão quando, Celina apareceu para nos sulcando os morros e precipitando-se sobre os
apresentar sua nova amiga. Era Layla. Layla falava despenhadeiros do banhado formando cachoeiras.
razoável o português (estudou a língua na Rússia), A tarde havia sido perfeita e eu só lamentava por D.
mas nossos olhos pareciam se entender perfeitamente Lina, mas, logo aconteceria algo que iria mudar toda a
e, quanto mais eu a via, nos seus risos e gestos, sua vida e de certa forma, a minha também.
mais aquela visão ia me tornando uma necessidade.
Notei que ela trazia um broche onde se lia “Estou
feliz”. Ao comentá-lo fiquei sabendo que ela própria
havia pintado a inscrição e que a mudava a cada
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semana. O mês de Natal é para mim a época mais
A tarde já começava a se despedir quando, súbito, especial do ano. Não só pela data, como também pela
um som troou pelas redondezas e meio que assustada, felicidade que se espalha entre as pessoas nas ruas.
Layla segurou no meu braço. Instintivamente pequei Por essa época, o povo parece tornar-se uma grande
a sua mão e a confortei. Em outros tempos isto seria família e então nós nos damos conta de que aquelas
como pedi-la em casamento. pessoas que a gente encontra todo dia no ponto de
Era hora de nos despedirmos, pois, algumas ônibus, na padaria, na escola, ou seja onde for, são
gotas de chuva anunciavam que a tempestade estava companheiros que nos tornam a vida mais prazerosa e
próxima. Celina e Katsumi ficaram no Café Porão e eu que, independente de raça, credo ou idade, são irmãos
levei Layla até sua casa. que constituem nossa família na arte de viver.
Ao chegarmos lá eu segurei sua mão e disse que Dezembro mal começou e já havia muitas
ela me havia tornado o dia inesquecível. Ela sorriu novidades no ar. A Rádio da cidade acabava de
envergonhada, me agradeceu e apertou minha mão anunciar a apresentação do organista joseense
como dizendo que se sentia da mesma maneira. A Augusto Barroso, um dos maiores organistas do
chuva ameaçava aumentar e ela apressou-se a entrar mundo, o qual viria direto dos Estados Unidos

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para uma única apresentação em São José. concluímos que não havia nada que pudéssemos
Nesse dia, eu estava atendendo um cliente quando fazer. Economicamente eu não teria condições de
Layla entrou e me entregou um bilhete. Seus olhos sustentá-la. Por fim, entendemos o nosso amor como
estavam lacrimosos. Durante nosso namoro assimilei um tesouro que carregaríamos conosco pelo resto de
sua peculiaridade de escrever em seu broche a síntese nossas vidas.
do que se passava em seu mais íntimo recanto. Era Enfim o dia do Concerto chegou. Era sábado e
como um atalho para compreendê-la e, naquele eu me ofereci para ajudar D. Lina nos preparativos.
momento em seu broche estava escrito “o destino é Quando cheguei à sua casa, o galpão estava aberto e
injusto”. Perguntei o que estava havendo, mas ela algumas pessoas estavam removendo de lá um enorme
disse apenas que era complicado demais para falar ali, órgão Hammond, o qual seria usado no concerto. Ela
mas que depois me explicaria. Dizendo isso partiu. estava radiante e disse que, depois que Augusto partiu,
Quando abri o bilhete vi que era um recado de ninguém mais havia tocado naquele instrumento, nem
D. Lina: “Mário, preciso falar-te ainda hoje”. Naquele ela própria.
mesmo instante, pedi licença ao patrão e saí. Algo À tarde, na sala de espera da mansão, conheci
estava acontecendo e eu precisava saber o que era. Augusto. Era um sujeito vívido, esclarecido e
Quando cheguei à casa de D. Lina ela foi logo me determinado. Conversamos por um momento, até
dizendo que nas últimas semanas trocara cartas com que D. Lina entrou. Ela havia se produzido, tirado os
Augusto. Disse que, ao saber de sua saída da Sociedade óculos e estava linda. Quase nem a reconheci.
do Chapéu Vermelho, Augusto lhe escrevera propondo À noite, o salão da prefeitura estava lotado e a
casamento. Disse também que, depois de ponderar apresentação foi um sucesso. Layla sentou-se ao meu
sobre sua vida decidiu aceitar o pedido e combinaram lado. No seu broche ainda se lia “o destino é injusto”.
de partirem no dia da apresentação dele em São José. Disse-lhe que queria ser aquele broche, assim eu iria
Perguntei se Layla iria junto e ela respondeu com ela, onde quer que ela fosse. Não consegui ficar
afirmativamente. Era como se alguém tivesse me dado até o final da apresentação, pois era uma tortura estar
um soco. Apenas baixei a cabeça e nem perguntei ao lado da mulher amada e fingir-me conformado com
porque. Não tinha nada para oferecer que não meu sua partida. Reencontrei-a no dia seguinte, na estação
amor. Por um momento veio um sufoco. Uma sensação e despedimo-nos emocionados. Passariam-se décadas
de vazio e de solidão. D. Lina tentou me confortar, sem que eu as visse outra vez.
mas eu não conseguia atinar para suas palavras. Alguns anos depois eu conheci Mitiko, prima de
Layla se aproximou enquanto D. Lina se Katsumi. Disse-lhe que jamais esqueceria Layla, mas
afastava. Ficamos um longo tempo conversando e que se ela me quisesse eu estaria disposto a aprender

28 29
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

a amá-la. Com ela me casei e tivemos três filhos. Neil Armstrong pisou pela primeira vez em solo lunar.
Trabalhei muito, comprei o Café Porão e o transformei Apesar de tantas mudanças, parodiando “As time goes
no melhor e maior restaurante da cidade. Tornei-me by”, não importa o quanto as coisas mudem, sempre
um grande empresário mesmo ainda perdendo nos haverá alguém amando águem, e sempre haverá
jogos de dama para Katsumi, que continua como contos, poesias ou músicas que falem de amor, porque
sempre sendo o meu melhor amigo. é ele que dá sentido à vida, que remove dificuldades e
Este ano eu vi na televisão uma homenagem que monta sociedades como montou um dia a Sociedade
fizeram à D. Lina em Nova York, pelos quarenta anos do Chapéu Vermelho.
de criação da Luz Vermelha Internacional. Augusto
havia falecido há uma semana num acidente na Quinta
Avenida e ela me pareceu ainda estar abalada.  Pelo
programa ela deveria tocar o Concerto nº1 para Piano
e Orquestra de Tschaykowsky, mas, ela conversou
algo com o maestro, sentou-se ao piano e apenas
tocou “Le Lac de Come”. Tocou tão expressivamente
como nunca ninguém havia tocado antes. O auditório
inteiro se levantou para aplaudi-la e quando a
câmera filmou a platéia eu vi Layla entre a multidão.
Foi então que, para minha surpresa a câmera foi
se fechando e enquadrando o rosto de Layla, até
deixá-lo em close. Ela estava até mais linda do que
quando partiu. Olhava fixamente para a câmera
como se quisesse falar algo e, quando a câmera
desceu inesperadamente, focalizou seu broche,
onde se pôde ler a frase: “Mário, ainda te amo!” ·
Naquele momento, apenas abracei minha esposa
e ficamos em silêncio por um instante. Até que a
câmera se abriu para a multidão e Layla se perdeu em
algum lugar da tela. E essa foi a última vez que a vi.
O mundo de hoje é muito diferente. Há algum tempo
surgiu o Rock´n´roll, Woodstock, e há poucos dias

30 31
Fato Novo

A rotina segrega e confina. Quando mantida por


muito tempo, a rotina até deprime. Mas, quando um
fato inusitado intervém, a vida ganha novo ânimo e
sempre há um grupo de pessoas que saem dele mais
unidas.
Na rua onde Décio morava há tempos que nada
acontecia. Seu vizinho, há seis meses havia começado
a aprender flauta e a vizinhança até comentava seu
progresso, mas, desde o início das férias de fim de ano
que o rapaz nem pegava no instrumento.
Era janeiro e o calor causticante deixava a todos
mais cansados ao final do dia. Muitos iam dormir mais
cedo que de costume.
Décio estava em Santa Branca e retornava
para sua casa em Jacareí quando, na rodoviária,
testemunhou a queda de uma pancada de chuva que
durou aproximadamente quarenta minutos. Quarenta
minutos de raios constantes e, muita, muita água.
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

Quando desceu do ônibus próximo ao seu bairro, veículos que chegavam ao alto tinham de fazer
percebeu que aquela tempestade havia passado por ali o retorno e voltar, pois, não havia como passar.
e, quando cruzou a esquina da rua onde morava, logo Algumas pessoas foram jantar e outras lanchavam na
avistou um alvoroço perto de sua casa. Algo havia sacada de suas casas. Houve até quem viesse lanchar
acontecido. Toda a vizinhança estava na calçada. Ao na rua para não perder nada do que iria acontecer.
se aproximar não foi difícil detectar o motivo de tanta Já eram dez horas da noite e nenhuma providência
agitação, pois, caída sobre a rua estava uma imensa e havia sido tomada. Alguns vizinhos já estavam
velha árvore. revoltados. Ao se ouvir algum barulho de carro logo
Uns diziam que ela havia sido atingida por um todos corriam à rua para saber se era alguma autoridade
raio, outros diziam que a árvore havia simplesmente chegando. Muitas pessoas haviam ido dormir quando
caído, vencida pelo vento e pelo tempo. O fato é que, um carro do corpo de bombeiros apareceu isolando a
ao cair, a árvore havia rompido alguns cabos de energia área, inclusive Décio. Tudo o que soube depois lhe foi
elétrica e com isso não se podia assistir televisão, relatado por sua mãe, a qual permaneceu no cenário
coisa que todos faziam nesse horário. Eram dezenove do evento até as duas horas da manhã.
horas no horário de verão e, com o dia ainda claro e Segundo ela, após os bombeiros terem isolado a
abafado, não havia outra coisa a fazer a não ser ficar ali, área, apareceu um carro do Departamento de Trânsito
observando o desenrolar daquela situação inesperada. fechando a rua e, na sequência, um comboio com seis
Passou-se algum tempo e praticamente todos haviam carros, se aproximou. Um farol enorme em um dos
ligado para a empresa de energia, para os bombeiros, carros iluminou o local e a energia elétrica de toda
etc... Até a Defesa Civil foi avisada. As mães, cuidadosas a quadra foi cortada. Enquanto um grupo serrava a
de seus filhos, aconselhavam: árvore, outro cuidava da manutenção da rede elétrica.
–– Não brinquem perto da árvore crianças! Alguns caminhões iam e vinham transportando partes
Já alguns homens se aproximavam dela como da árvore, que não era pequena, mas que nessa noite
parecendo dizer: parecia enorme. Eram quase quinze trabalhadores
–– Nós somos adultos. Nós podemos! presentes. Entre eles havia autoridades, supervisores,
Risos e piadas se faziam ouvir por todos os operários, etc... Parecia uma operação de guerra.
lados da rua e, de um lado para outro, eram gritados As mulheres da vizinhança ficaram quase todas
comentários sobre a fatídica árvore. Enquanto isso, acordadas acompanhando o desfecho da situação.
a noite foi chegando e dentro das casas, velas eram Parece que as mulheres são mesmo mais curiosas
espalhadas pelos cômodos. que os homens. Algumas delas, entre as mais moças,
A rua era na verdade um morro e todos os até discutiam qual dos operários era o mais bonito.

34 35
Cláudio Gomes de Almeida

Entre os homens presentes estava seu João, que nunca


perde nada do que acontece na redondeza e que,
no desespero de ver os trabalhos, não encontrando
seu chinelo, pegou o primeiro que lhe veio à mão.
E lá estava ele, calçado no chinelo cor-rosa da filha,
palpitando e conversando com as autoridades.
Eram quase duas horas da madrugada quando Homem não chora
os serviços se encerraram. Na manhã seguinte a mãe
de Décio relatou-lhe tudo o que havia acontecido e
definiu a situação como “emocionante pra bedel”.
Todos pareciam mais contentes e até o flautista
seu vizinho voltou a tocar naquela manhã.

Juca era um homem de fibra, um lutador. Estava


desempregado há seis meses e naquele dia finalmente
conseguiu quem lhe desse emprego.
Razão suficiente para se estar feliz e ele estava,
mas sua face trazia o mesmo semblante sério e
compenetrado de sempre. Vinha vindo tranquilo pela
rua e na verdade não tinha preocupação nenhuma.
Estava tudo acertado, começaria no emprego no dia
seguinte. Até a chuva forte que caíra naquela tarde
havia cessado e o sol ressurgiu inesperadamente,
como se de repente a natureza quisesse participar
daquele momento de serenidade.
Foi então que ao passar sob uma árvore, caiu-lhe
na face, entre o óculos e o rosto, uma grande gota de
água. Caiu-lhe bem na quina do olho, de forma a dar
o contorno exato de uma enorme e caldosa lágrima.
Juca estava tão tranquilo que resolveu deixar que a
gota lhe escorresse pela face até que sumisse de vez.

36
Cláudio Gomes de Almeida

Há dois dias o ano novo havia começado e ele fez


a passagem de ano sem planos. Enquanto outros
brindavam, ele dormia o sono de todos os dias,
interrompido apenas pela queima de fogos e logo
retomado. Foi um ano difícil concluiu enquanto sentia
a gota deslizando lentamente em sua face.
Estava em seu bairro e notou que as pessoas Os barbeiros de
começavam a reparar em seu rosto.
–– Será que pensam que estou chorando? – se antigamente
perguntou.
–– Que bobagem. Homem não chora! –
completou.
Foi aí que ele se deu conta de que não se lembrava
de alguma vez ter chorado. Nem mesmo quando perdeu
seu pai. Naquela ocasião até quis chorar, mas as lágrimas
não vieram. Por dentro ele sofria enquanto se convencia Hoje já não existem barbeiros como antigamente. É
de que “homem não chora”, e assim as coisas eram. dura a constatação, mas ainda há pouco me flagrei
Como a gota demorava a escorrer, Juca roçou o braço com saudades do velho seu Zé Barbeiro.
à face para limpá-la, mas, algo havia acontecido: a Antigamente você sentava na cadeira do barbeiro
gota já não era a mesma gota fria de antes e parecia e ele nem perguntava nada, pois, na maioria das vezes,
não mais cessar. ele já havia cortado o cabelo de seu pai e até mesmo do
Estando próximo a uma igreja, ele entrou e se pai de seu pai. Quem vê um álbum de família logo se dá
sentou em um de seus bancos. Depois, sem pensar em conta dessa peculiaridade passada de geração a geração.
nada e com a mente vazia, não sei se por tristeza ou A barbearia de antigamente era, ao meu ver, um
por alegria, contrariou o ditado que há tempos trazia avançado posto de imprensa uma vez que lá você
e, num banco de igreja, Juca chorou naquele dia. sempre ficava sabendo das últimas notícias e, se
alguma história nova aparecia na redondeza, sempre
havia algum vizinho ou parente dos protagonistas
dispostos a revelar os mais sórdidos detalhes enquanto
o barbeiro deslizava-lhe cautelosamente  a navalha
pela fronte. Até hoje, barbearia que não tem revistas

38
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

e jornal do dia também não tem graça. As primeiras na cabeça. Era o fim. Você ficava torcendo pro mês
perguntas relativas ao corte, acho que surgiram depois passar depressa. Evitava sair às ruas, conversar
da guerra pois, eu me lembro que quando criança, meu com os amigos, etc... Ir a festa então, nem pensar!
pai recomendava ao seu Zé barbeiro: Depois vieram as máquinas elétricas. Melhorou muito
–– Faça o corte americano! por um lado, mas acho que a atividade perdeu um
E quando terminava eu mais parecia um mascote pouco do “Glamour”. Hoje quando vou ao barbeiro ele
do tiro de guerra. Foi assim desde os cinco anos. me pergunta qual o número de máquina que eu uso,
Depois de Elvis, os barbeiros nunca foram os se é “x” do lado, se é “y” em cima, pergunta pra que
mesmos e a nova pergunta era: lado penteio meu cabelo, etc... Só falta ele se sentar na
–– Com topete ou sem topete? cadeira e me pedir para cortar o cabelo dele.
A parte mais gostosa do corte é quando o barbeiro Cortar cabelo com mulher é meio estranho,
pega a navalha e vai contornando cuidadosamente principalmente se ela é bonita. Primeiro, o perfume
o “pé” do cabelo, isto é, a borda. Que delícia! Dá dela te envolve de tal jeito que é impossível não saber
vontade até de dormir. Pra completar, no lugar onde que há uma fêmea por perto. Depois, o toque feminino
foi passado a navalha ele roça um pouco de perfume é muito diferente. Com suas mão leves e delicadas,
e o resultado é muito refrescante. Sem falar no talco tem-se a impressão de se estar no céu. Quase não
sufocante. há diálogos, a não ser entre as cabeleireiras. Esse é
Um  grande mistério são os perfumes usados um problema meu, pois, eu não sei o que conversar
pelos barbeiros, a começar pela cor. O de seu Zé com uma mulher quando ela está cortando os meus
Barbeiro era vermelho e eu nunca vi um vermelho tão cabelos. Já para elas, não há problema algum porque
vermelho em toda a minha vida. Na prateleira havia elas não ficam sem conversar nunca.
também um perfume verde e (pasmem!) um azul, mas Há mais ou menos um ano consegui encontrar
acho que eram os mesmos. Seu Zé misturava anilina um daqueles barbeiros antigos numa cidadezinha aqui
para obter a cor exclusiva. perto, mas, a semana passada soube que ele dobrou o
Os aparelhos também eram diferentes. Naquele valor do serviço e agora só atende com hora marcada.
tempo se usavam as famosas “maquininhas”. Não Deu-me uma saudade do seu Zé Barbeiro.
era raro você ser surpreendido por uma tesoura
“cega” ou uma maquininha descuidada. Quando
isso acontecia você ia do paraíso ao inferno. O
pior acontecia quando, por descuido do barbeiro,
você saía da barbearia com um “caminho de rato”

40 41
O grande paradoxo!

Para nós que trabalhamos com a escrita, as


palavras formam um delicioso cardápio. Há algumas
inclusive que guardamos em sigilo, à espreita apenas
de um momento apropriado para usá-la. É assim
comigo em relação à palavra “paradoxo”.
Ontem, na reunião da Academia, discutíamos a
realização de nossa festa de confraternização quando
surgiu a dúvida de quantas pessoas participariam do
evento.
Um dos acadêmicos presentes propôs que se
cotasse o valor de acordo com o número de acadêmicos,
sem levar em conta se haveriam ou não acompanhantes.
Segundo sua proposta, seria solicitado ao organizador
para que fizesse um número maior de lanches. Assim,
os parentes e convidados arcariam com os custos de
sua participação logo que o evento fosse encerrado.
Foi nesse momento que um dos escritores
presentes exclamou em alto e bom tom:
Cláudio Gomes de Almeida

–– Mas isto é um paradoxo!


Pronunciou claramente a palavra “paradoxo”,
movimentando até com certo exagero os músculos
de sua face. Fez isso propositalmente como quem
pronuncia a palavra Check Mate! Como resultado, por
um momento, o silêncio se fez geral.
O significado da palavra não era estranho a Mania
nenhum de nós. Entretanto, por se tratar de uma
construção tão interessante e pronúncia deliciosa fazia
me pensar se seria o caso de usá-la numa discussão
tão corriqueira. É preciso reconhecer, nosso amigo
acadêmico, inteligente e perspicaz soube o momento
exato de recorrer a esta preciosidade de nossa língua.
Então, resolveu-se que cada um deveria dizer Eu tenho uma mania: acreditar!
se iria ou não com um “paradoxo” à festa. E assim Acreditar que posso conseguir qualquer coisa.
a palavra paradoxo foi passando de boca em boca. Acreditar quando acordo, que o dia será maravilhoso,
Alguns acadêmicos aproveitaram para desfilar o seu mesmo apesar dos problemas e das vicissitudes. Por
vernáculo e dispararam palavras que até me fizeram isso tenho projetos. Muitos projetos.
duvidar se estávamos falando realmente a língua Quando termino cada um deles, me sinto contente
portuguesa. Apesar do preciosismo, foi um momento e realizado, mesmo que não tenha sido bem sucedido.
agradável e descontraído. Fico contente porque apesar de tudo, eu realizei e
De minha parte revelei que não possuía “paradoxo” mais do que isso: eu acreditei! Mesmo quando todos à
algum. Apesar de não ser um mal sujeito, ultimamente minha volta já haviam se desanimado dele.
tenho ido e saído de festas desacompanhado o que me Talvez por isso, quando olho para traz, sempre
parece ser de fato, um grande paradoxo. vejo alguém me seguindo, medindo meus passos, me
observando e querendo saber porque sou diferente.
Por que caminho, quando muitos outros já pararam?
Mas eu não tenho respostas. Não me considero
diferente, apenas tenho projetos e acredito neles.

44
Quero nunca me fartar
das coisas

Alguém já reparou quantos verdes diferentes a


luz provoca nas folhas d’uma mesma árvore? Pois é,
eu nunca havia reparado profundamente, até que um
dia me interessei pelas cores. Nunca havia reparado
nos formatos tão diferentes de troncos que a natureza
proporciona. E que dirá os frutos, de cores tão diversas.
E que sabores!?
Alguém já reparou a calmaria suave e o vento
tranquilo que sopra pelas ruas ao alvorecer? E quando
começa o dia, a arrumação da casa, as lojas se abrindo,
as pessoas pelas ruas, trabalhando, passeando,
procurando... Não importa, é a vida nos dando mais
uma oportunidade para sermos felizes.
Hoje tem jogo? Aquele programa de humor?...
Quando eu me sentar na frente da TV para assistir este
ou aquele jornal, esta ou aquela novela, etc..., milhares
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

de outras pessoas estarão fazendo a mesma coisa que que a vida está recheada de coisas maravilhosas e de
eu. Não é maravilhoso? E quando eu me emocionar que eu nunca, nunca irei me fartar delas.
com alguma cena, me revoltar com alguma notícia
ou vibrar com algo, um gol da seleção brasileira, por
exemplo, milhares de pessoas estarão se emocionando,
se revoltando ou vibrando exatamente como eu.
E os planos? Sim, os planos! Quem não tem
planos para o futuro? Quem não deseja conquistar
algo, vencer um desafia, melhorar de vida, melhorar
a saúde, o relacionamento, experienciar coisas
novas, fazer passeios, aprender um instrumento,
escrever, pintar, e adquirir tantas outras habilidades
e profissões?
Parece que somos todos iguais ainda que
diferentes e, se eu posso perceber igualdade entre
tantas diferenças, posso pensar que como eu, existem
bilhões de pessoas que torcem, anseiam e colaboram
para que este mundo seja sempre melhor. Até pessoas
que nunca tenham frequentado uma escola ou uma
igreja, e que são tão dóceis e amáveis como qualquer
outro. Pais dedicados, famílias que também vibram, se
emocionam e buscam melhorar o mundo. Não importa
como vivam, a crença no futuro e na fraternidade
humana já é suficiente para nos unir a todos.
Pensando assim é que quando eu me sento para
trabalhar ou quando estou simplesmente vendo o
movimento nas ruas, consigo ver entre as pessoas
tantas matizes de personalidades, quanto os diferentes
nuances de cores que aprendi a observar nas árvores.
Todas alimentadas pero mesmo tronco que é o ideal
de amar e ser feliz neste mundo. Aí bate a certeza de

48 49
O ritual de retirada de
bolo

Verdade seja dita, o ritual do bolo começa já na


ideia de concebê-lo.
Você apenas anuncia sua intenção e logo percebe
uma mudança radical no ambiente. Se houverem
crianças por perto, seu triunfo será ainda maior.
Não há nada mais indicado que o mesmo, para acordar
nossa alma numa manhã sonolenta ou para romper o
descolorido d’uma tarde monótona. A feitura do bolo
em si é um trabalho braçal. Exige, além disso, um
conhecimento refinado sobre heterogenia alimentar
e suas combinações químicas. Nessas horas você é o
alquimista que, através do seu forno-laboratório irá
propiciar a mágica da transformação e do crescimento.
Com a mágica concretizada, aí sim, vem o ritual
de retirada de bolo propriamente dito. Primeiro
você abre a tampa do forno deixando escapar o
Cláudio Gomes de Almeida

aroma até que ele se espalhe como um delicioso


incenso. Depois, sob o olhar devorador da platéia
(é importante que haja testemunhas), você se
apodera de uma faca e começa a esquartejar o bolo.
Terminada esta etapa, você escolhe uma vítima e
entrega ao conivente um pedaço para ser provado.
Ao menor gesto de aprovação você convida os outros Uma profissão de futuro
membros e dá por encerrado o referido ritual.
O ritual do bolo só é superado pelo da torta de
atum. Mas esta é uma outra história!

Ontem ganhei um ventilador de minha irmã. É


um daqueles ventiladores que possui três velocidades
e uma pequena lâmpada de abajur. Como trabalho no
interior e não disponho de ninguém que possa levá-
lo resolvi transportá-lo de ônibus. Ainda era cedo
e já estava muito quente quando saí de casa com o
aparelho. Eu nem o embrulhei e o levei já montado de
forma que, se quisesse, era só plugá-lo à tomada para
ele começar a funcionar.
Pelo caminho, muitos me olhavam com
curiosidade. O sol abrasador até o tornava pertinente,
mas convenhamos, não é como transportar um guarda-
chuva, afinal aquele aparelho era enorme.
No ponto de ônibus não havia ninguém além
de mim. Então, de um jeito espaçoso, coloquei o
ventilador ao lado e pus os meus pés sobre o banco,
como fosse um divã. Para fazer figura, abri um jornal
e fiquei tranquilo esperando o ônibus. O detalhe é que

52
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

o ponto fica ao lado de uma rodovia... o sofá no canteiro, bem no centro do cruzamento.
Passado algum tempo, surgiram quatro pessoas. Colocamos e ficamos sentados olhando o ir e vir dos
O sol estava causticante. Torrando mesmo. Uma das carros por uns dez minutos. Era um total nonsense.
pessoas perguntou: Algum tempo depois soube de alguém que fez a
–– Não tem como ligar esse troço? mesma coisa na Avenida Paulista em São Paulo. Teve
–– Já cacei uma tomada por aqui, mas não achei até churrasco!
nenhuma. – respondi. Nisso o ônibus apareceu e
estava lotado. Esperei que todos entrassem e por
último subi carregando meu ventilador pela cintura.
Perto da porta havia um rapaz com um rádio no colo.
Ao passar por ele, vendo que ele me olhava curioso,
não perdi a chance de comentar:
–– Rádio é coisa do passado. Com o aquecimento
global a moda agora é o “personal ventilator”.
Para minha surpresa o rapaz argumentou:
–– Essa é uma profissão de futuro. Acho que dá
pra cobrar uns cinco reais por meia hora de vento
artificial.
–– Puxa! Eu não tinha pensado nisso. – respondi.
E lá fui eu conduzindo meu ventilador quase
como quem conduz uma dama num salão de bailes.
Não é a primeira vez que eu faço algo assim. Certa
vez quando morava numa república de estudantes
ganhei de presente um enorme sofá e, como não
tinha dinheiro para pagar o transporte chamei alguns
amigos e decidi por fazer o transporte a pé pelos dois
quilômetros de distância do local até nossa moradia.
Isso até seria normal se não fosse por um
acontecimento. A nossa moradia ficava num
cruzamento da movimentada Rodovia de Paulínia e eu,
em mais uma das minhas maluquices, decidi colocar

54 55
Eu odeio pipocas!

Eu era criança, ainda de colo e minha mãe fazia


pipocas quando o óleo fervente estourou na panela
e me deixou uma queimadura. A mesma que carrego
até hoje.
Certa vez eu tive um cachorro chamado Pipoca.
Ele foi o único dos que tive, que contraiu raiva e teve
de ser sacrificado.
Uma vez antes da missa decidi comprar pipocas.
Como o pipoqueiro não tinha trocados pediu-me para
buscar o troco depois. Quando voltei, ele não estava
mais lá...
Na Copa de oitenta e dois todos saímos
para comemorar um gol do Brasil. Ao voltarmos
encontramos nosso bisavô morto na sala. Aos noventa
e sete anos ele havia se engasgado com uma pipoca.
Nos tempos de faculdade fiquei sem grana e tive
de passar um mês inteiro comendo pipocas!
No carnaval de 2005 eu saí no Bloco dos Pipocas.
Cláudio Gomes de Almeida

Fui operado e levei trinta pontos ao ser atropelado por


um trio elétrico.
Em 2006 eu ia pedir uma garota em noivado. Ela
havia comido pipocas e veio beijar-me. No ato cheguei
a ver os restos de pipoca entre seus dentes. Ainda
assim beijei e eles vieram parar na minha garganta.
Tive um acesso de tosse e comecei a vomitar. Este foi O desarme da ratoeira
o fim do nosso namoro.
Definitivamente, eu odeio pipocas!

Sou acordado no meio da noite por um barulho e


uma sucessão de latidos. Gostaria de não saber do que
se trata, mas eu sei. O barulho tem os exatos decibéis
do desarme da ratoeira.
Antes de dormir eu mesmo a armei. Enquanto
a armava pensava: ‘sua lateral recortada em forma
pontiaguda lembra os caninos de um animal feroz
e a pressão exercida pela mola dá a ideia de que o
roedor será abocanhado pela mesma’. Tive o cuidado
de proteger o dedo enquanto a armava.
Horas depois veio o barulho. Com certeza o rato
estaria lá, se debatendo e sangrando. Um ser, morto
enquanto praticava o gesto mais primitivo e básico de
toda a natureza, o gesto de alimentar-se.
‘Sou mesmo um canalha’ pensava enquanto
armava a maldita ratoeira. ‘Estou às vésperas de
cometer um crime. Logo suprimirei um ser do convívio
de sua família, de seu lar, abortarei seus sonhos (se é

58
Cláudio Gomes de Almeida

que o animal os tem) e serei o carrasco que porá fim a


toda sua história de vida.’
‘E se o rato for um bom sujeito? E se for uma
ratazana tentando angariar comida para seus filhotes?
E se for um filhotinho, um minúsculo e indefeso
rato?’ Todas estas perguntas começaram a orbitar em
meu pensamento, já completamente tomado por um Eu queria ter um
sentimento de angústia e de culpa.
Eu também tenho uma família e a mim coube a papamóvel!
missão de armar a ratoeira – justificava-me. Além do
mais, se há um paraíso para os humanos, há de haver
um paraíso para eles também.
Incomodado pelo latido resolvi finalmente ver o
que a ratoeira havia pego. Fiquei surpreso (e aliviado!)
ao constatar que a ratoeira havia se desarmado sem
que o animal ficasse preso. Não conheço marcas ou modelos de carros.
É, agora posso voltar a dormir tranquilo e com Nunca me interessei em aprender a dirigir. Só o que
direito à redenção divina. A vida segue seu curso e eu dirigi até hoje foi uma carroça. Mas fui seduzido pelo
não usarei mais a ratoeira contra os pobres ratos. papamóvel.
Amanhã mesmo vou comprar veneno para os Talvez, o que me atraiu foi a sua conformação
coitadinhos. mítica, pois sua redoma de vidro o faz parecer
um andor e o papa, por extensão, um santo.
Gostaria de possuir um carro igual. Pensado bem,
se me vissem chegar num carro desses, que loja me
recusaria um crediário, ou ainda, que banco me
recusaria um empréstimo?
O papamóvel é um carro realmente poderoso,
mais famoso que ele eu só conheço o batmóvel, que é
todo equipado.
Já o meu seria simples. Nas horas vagas eu
o transformaria num aquário para o transporte de

60
Cláudio Gomes de Almeida

peixes ornamentais ou num palco performático.


Talvez até o tunasse acrescentando-lhe néon azul.
O vidro certamente seria trocado, pois o vidro fumê
seria muito mais apropriado ao clima causticante do
nosso país. Mas talvez não desse mesmo certo, pois
com o estado atual de algumas estradas seria muito
arriscado viajar com ele pelo Brasil. A garrafa térmica e outros
Além do mais, para usá-lo é preciso estar com o
intestino em dia, pois, ali a menor flatulência, poderia mistérios
comprometer toda a viagem.

A vida é mesmo surpreendente. O mundo é uma


imensa caixa de surpresa, onde às vezes observamos
gestos que são eternos enigmas. Um deles está
relacionado à garrafa térmica.
Quando morei numa república em Campinas,
havia uma cuja tampa era de rosquear. Como todos
sabem a finalidade existencial da garrafa térmica
é prolongar a manutenção da temperatura de seu
conteúdo, seja ele quente ou frio. Para isso, é
fundamental que se feche bem a garrafa a cada vez
que se retirar parte de seu líquido.
Por várias vezes naquela ocasião, ao recorrer à
garrafa, encontrei sua tampa desrosqueada. Já havia
apontado o fato, reclamado, esperneado, etc... Mas
nada adiantou.
Certa vez, comprei uma garra flip-top, mas

62
Cláudio Gomes de Almeida

agora me lembro, quase sempre achava o pininho


levantado.
Outro grande mistério que rondou a minha vida
naquela época é o do escorredor de pratos. Ele se
encontrava pendurado no vitrô, trinta centímetros
acima da pia. Sempre que lavava a louça, eu o utilizava
e como resultado, algum tempo depois a louça ficava Um e-mail indelicado
toda seca e em condições de guardar.
Poderia nem usá-lo se tivesse mais tempo para
enxugar e guardar imediatamente. Seria normal se
fosse sempre assim, mas, na ocasião, constatei outro
mistério: muitas vezes encontrava a louça emborcada
sobre a pia totalmente encharcada, enquanto que o
escorredor a observava pendurado trinta centímetros Há algum tempo eu não usava a internet. Só
acima. consultava meu e-mail nos fins de semana. Há dois
Devido a isso, quando acordava pela manhã eu meses fui a Campinas me inscrever para a pós-
tinha que usar o pano de prato para enxugar uma graduação na mesma universidade onde estudei. Hoje
louça que deveria estar enxuta se tivessem usado o posso dizer que não passei na seleção, mas na época eu
escorredor. estava animado. Iria rever muitos amigos, pensava. Na
O ano passado fui receber os juros do PASEP, sexta-feira fiz a inscrição e no domingo, ao consultar
estava desempregado e contava com aquela grana. Ao minha caixa de entrada encontrei um e-mail em cujo
chegar no caixa, foi-me pago um valor equivalente assunto se lia: “eu tenho nojo de você”.
à metade do que eu havia recebido no ano anterior. Confesso que fiquei abalado com a revelação
Questionei a todos, até ao gerente, mas ninguém chocante daquela frase. Sou músico, tenho muitos
soube explicar o que havia ocorrido. Foi então que, amigos, mas também tenho muitos inimigos. Gente
lembrando-me da garrafa térmica e do escorredor que eu nem conheço. Por isso mesmo acharia até
de pratos, me veio à mente uma antiga citação de normal que alguém me escrevesse “eu não gosto de
Shakespeare: ”Há mais mistérios entre o céu e a terra você”. Só que, de “não gostar” à “sentir nojo” há uma
do que supõe a nossa vã filosofia”. enorme distância. Eu me senti uma lesma, um verme
pútrido e não sei mais o quê.
Então comecei a pensar: Quem teria me mandado

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

o tal e-mail? Logo de início, lembrei-me de que havia não o tal e-mail? Ele poderia conter um vírus e destruir
ido à minha ex-universidade para fazer a inscrição todos os meus arquivos, programas, etc... Fiquei ainda
da Pós. Teria eu deixado algum inimigo por lá? Já se mais triste porque pensei: alguém tem nojo de mim e
passaram dez anos desde a minha formatura, será que está me enviando um vírus para me destruir.
alguém ficou remoendo alguma atitude errada minha Eu não o abri e deletei o documento. Passei uma
por todo esse tempo e o rancor se transformou em semana refletindo sobre a minha conduta de vida.
nojo? Aos pouco fui me recompondo e resgatando a minha
O fato era de que o e-mail estava lá, na minha dignidade.
caixa de entrada e no assunto se lia: “eu tenho NOJO Um dia desses, comentando com um colega sobre
de você”. A palavra “nojo” que estava escrita normal o e-mail indelicado, ele me confessou que recebeu a
agora parecia estar em maiúsculas, em negrito e mesma correspondência e simplesmente deletou.
sublinhado. Alguém, que eu não sei quem, neste –– Mas você não teve curiosidade de saber quem
Cosmos em incessante atividade, estava enojado te mandou? – perguntei.
de mim. Foi então que comecei a pensar nos meus –– Não! Se alguém tiver nojo de mim, esse alguém
credores. vai ter que me engolir! – respondeu.
Peguei meu controle de contas, pulei a parte de
contas do mês, pulei a parte de contas adiadas e parei
na parte de contas atrasadas. Só havia duas. Uma do
Cartão de Crédito, sendo que, somando tudo o que
eu já paguei ao Banco dava para cobrir três vezes o
valor utilizado. Mesmo assim, eu não sabia de onde
apareciam tantos juros e correções monetárias. Neste
caso, entretanto, não havia razão para o Banco me
enviar um e-mail com aquele teor. Quem deveria estar
enojado era eu.
Quanto à outra conta, era bem mais recente. Os
gastos com a inscrição da Pós não me permitiram saldá-
la. Às vezes acontece de você atrasar uma conta, mas
nem por isso as lojas saem por aí mandando e-mails
aos clientes dizendo que tem nojo deles.
Neste momento vivi um grande dilema: abrir ou

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Uma festa de São João

Era chegado o dia de São João. A rua estava toda


enfeitada com bandeirinhas multicores espalhadas
pelas residências. Confesso que estava meio cansado,
pois, pela manhã havia andado pelo pasto catando
gravetos para as fogueiras que se fariam à noite. Meu
pai, como sempre, era meu melhor amigo e eu queria
ser como ele.
Dona Raquel trouxe uma pequena moringa de
barro, cheia de balas e pediu-me que subisse na árvore
para pendurar o objeto. Numa das brincadeiras, as
pessoas tentariam quebrar a moringa, tendo os olhos
vedados por uma faixa de pano. Em outra brincadeira,
ainda com os olhos vedados, as pessoas deveriam
comer uma maça, que também foi pendurada em
um dos galhos da árvore. Dona Raquel era assim,
no momento preciso ela surgia trazendo sempre um
monte de ideias legais. Ela era muito sagaz e eu queria
ser como ela.
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

Meu amigo Luizinho, filho do Tião Sanfoneiro, pessoas aguardando para ter uma entrevista com ela.
ensaiou uma música escondido do pai só para lhe Na verdade minha tia não era nem nunca foi cigana,
fazer uma surpresa durante a festa. Ele era esforçado, mas, ela era uma pessoa divertida e mesmo suas
mas era tão magrinho e fraco que eu fiquei imaginando ideias mais malucas eram sempre geniais. Talvez por
como ele conseguiria segurar aquela sanfona enorme. causa dela nossa festa seria inesquecível para muitas
Luizinho era quase que um irmão para mim e eu não pessoas. Ela era como minha mãe e não me lembro de
me lembro de nenhum evento de minha infância em nenhuma pessoa que tivesse tão bom humor e tão alto
que ele não estivesse presente. Se alguém sabia ser astral como elas.
amigo de alguém, esse alguém era o Luizinho. Talvez A festa foi um sucesso e as pessoas já estavam se
por isso mesmo, muitas vezes eu quis ser como ele. despedindo. Dava para ver que elas estavam satisfeitas.
Lá pelas dezessete horas, algumas vizinhas Não pude conter o riso quando ouvi o Luizinho, aquele
apareceram para ajudar na cozinha e de lá vinha um garoto magrelo, dizer todo contente à sua mãe:
cheiro delicioso. –– Mãe, a cigana falou que eu vou ter quinze
Todo ano, meu pai, que trabalhava na fábrica filhos!
de fogos e artifícios, ganhava vários produtos e os Muito tempo se passou e eu não sei se consegui
distribuía para toda a vizinhança. Ele os deixava ser como queria. De tudo, o que sei é que hoje sou
guardados em seu guarda-roupa e o mantinha à chave. um ser entre seres. Um universo entre universos. Uma
Eu e meus irmãos vigiávamos o guarda-roupa como árvore se elevando tímida em algum lugar das muitas
quem vigia um tesouro. A entrega dos fogos era o florestas. Mas há quem precise do meu fruto, e há
ponto máximo da festa entre as crianças e meu irmão quem desfrute da minha sombra.
mais velho era o encarregado de dividir e entregar
os fogos. Tarefa que ele cumpria como se fosse um
administrador. Eu o ficava observando e, admirado de
suas atitudes, pensava comigo mesmo: um dia quero
ser como ele.
A festa já havia começado quando, para minha
surpresa, lá pelas tantas, minha tia Maria apareceu
vestida de cigana e pediu-me secretamente para
espalhar que ela lia as mãos. Ela pegou duas cadeiras,
colocou-as num cantinho da cozinha e ficou por
lá. Não demorou muito havia uma fila enorme de

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Transposições oníricas

-I-

Tudo começou quando fui a um antigo sebo na


Rua Barão de Jacareí e vi um estojo com uma seleção
de discos da Reader’s Digest. No interior dele haviam
vários discos cujo material era um antecessor do vinil,
carvão, acredito. As músicas elencadas no estojo eram
daquelas que se encontram em qualquer seleção de
música clássica, entretanto, a lista indicava haver
ali a gravação da Pavane para uma Criança Morta,
de Maurice Ravel e, apenas por causa daquele disco
decidi levar a caixa toda (O preço estava realmente
barato!).
Passaram-se alguns dias até que eu decidisse
ouvir o tal disco. Mas, nesse dia, ao retirá-lo da capa,
percebi algo diferente dentro dela. Olhei com mais
cuidado e constatei, era um envelope. Por fora havia
apenas as palavras “para Mário” e uma data. Achei
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

surpreendente que o nome do destinatário fosse o As palavras ainda ecoavam na minha cabeça
mesmo que o meu, tanto mais pelo fato de que a carta quando decidi ligar o rádio para quebrar o silêncio
datava de cinquenta anos atrás. e quem sabe voltar à realidade, pois, para mim, tudo
Fiquei muito curioso e decidi abrir a carta. aquilo parecia um pesadelo. Foi então que escutei a
Rasguei o envelope e percebi que dentro, além de notícia de que o Cine Hipólito estava pegando fogo.
uma carta, havia também uma foto. Quando vi a foto, Só tive tempo de pegar meu terno e saí.
meu corpo tremeu e meus olhos esbugalharam-se de Para chegar mais rápido decidi tomar um táxi.
espanto. Não era possível o que eu estava vendo, mas, Enquanto o taxista ligava o carro, uma criança apareceu
a foto, amarelada pelo tempo, não deixava dúvidas. em minha janela e olhando-me profundamente,
Não era montagem, não era nada. Por causa daquela disse:
foto, minha vida estava prestes a mudar e dali por –– Abra a porta debaixo do palco. Você precisa
diante eu jamais seria o mesmo. arrombá-la!
Nesse momento o carro começou a rodar, olhei
- II - para trás para ver se avistava o moleque, mas, ele
havia desaparecido.
Imediatamente reconheci na foto a mulher que há “Que dia mais estranho” – pensei comigo. Mal
três semanas aparecia em quase todos os meus sonhos. sabia eu os incríveis acontecimentos que ainda teria
Vestida na mesma roupa da foto, ela sempre parecia pela frente.
querer me dizer algo, mas, eu sempre despertava antes - III -
que ela dissesse.
Na foto a mulher estava na sacada de um casarão Minha casa fica há três quarteirões do Cine
e eu logo reconheci, ele fica ao lado do Cine Hipólito, Hipólito, mas, do meio do caminho já era possível
o único cinema da cidade e que está fechado há mais avistar as labaredas. Quando cheguei, já havia uma
de quinze anos. multidão frente ao prédio.
Já no limite de minha curiosidade comecei a ler Enquanto observava a entrada principal pareceu-
a carta. Era um pedido. Nele estava escrito: “Mário, vá me ter visto uma figura emergindo da fumaça e
agora ao Cine Hipólito. Há alguém precisando de ti. sinalizando para que eu entrasse. Eu sabia que corria
Apressa-te!” perigo, mas as palavras da carta não saiam de minha
Fiquei meio confuso com aquelas palavras e, sem cabeça: “alguém precisa de ti”.
saber ao certo o que fazer, recoloquei a carta e a foto Retirei meu terno e entrei. No enorme salão,
no envelope e guardei-o dentro do bolso da camisa. entre as cadeiras e paredes em chamas avistei uma

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

porta sob o palco e fui até ela. Estava travada. Com existido realmente.
o pouco de fôlego que ainda tinha, saltei sobre ela Antes mesmo de abrir a barbearia, que fica ao
arrombando-a e ali mesmo, no solo fumacento, havia lado da casa, ouvi a campainha tocar. Ao abrir a porta
uma criança. Retirei minha camisa e cobri-a. Enquanto tive uma surpresa. Eram os pais da criança que eu
saía, percebi que os bombeiros haviam chegado havia salvado.
e as chamas da entrada já haviam sido apagadas. Antes que eu falasse qualquer coisa, a mulher foi
Por um momento pensei que o garoto estivesse morto, logo dizendo:
mas quando chegamos à rua ouvi-o tossir. Entreguei-o –– Bom dia, desculpe-me por vir tão cedo, mas há
ao bombeiro e desmaiei. Enquanto desmaiava pude algo que eu preciso lhe mostrar.
ver o rosto da criança. Era o mesmo moleque que Disse isso enquanto abria a bolsa. Suas mãos
havia aparecido na janela do táxi. Acordei cinco estavam trêmulas e sua face parecia consternada.
minutos depois. Um casal veio me agradecer. Eram os
pais do garoto. Quando a mulher me viu, ficou meio - IV -
assustada, como se tivesse visto um fantasma. Julguei
que ela ainda estava chocada com os acontecimentos A mulher retirou uma foto da bolsa e me
e conversei com o marido dela. Falei exatamente o entregou. Era uma foto antiga e bastante amarelada.
que tinha acontecido, mas, não tive como mostrar a Nela estava a mulher que eu via em meus sonhos
carta, pois a mesma se perdeu em meio ao incêndio. e, ao seu lado, na foto, era eu quem a abraçava.
O homem, meio incrédulo, apenas agradeceu e disse Perguntei à mulher o que eu fazia na foto e ela disse:
que tudo foi um grande milagre. Ele perguntou onde –– Também não sei. Estes são meus avós Elisa e
eu morava e o que fazia. Disse-lhe que era barbeiro e Mário. Tudo que sei é que você se parece com meu
dei-lhe meu endereço. avô e, se não fosse impossível, eu diria que é você
Quando cheguei em casa, só tive tempo quem está na foto.
de tomar um banho e dormir. Antes, agradeci –– Seu avô?
muito a Deus por ter escapado ileso do incêndio. –– É! Esta é a única lembrança que tenho dele.
No dia seguinte, ao pegar o jornal, a manchete Ninguém desta cidade o conheceu, mas, minha vó
trouxe de volta os acontecimentos do dia anterior. sempre dizia que ele foi um sonho de pessoa. Olhei
Ali se lia: “Barbeiro salva criança de incêndio” para a foto novamente. As roupas do homem eram as
Enquanto lia a manchete, na minha cabeça veio uma mesmas que eu tinha no guarda-roupa. Como podia
pergunta: “Quem era a mulher da foto?”. Mas, naquele ser?
momento, eu já nem tinha certeza se a foto havia –– Minha mãe nunca entendeu porque seu pai

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

a   abandonou. Ontem, quando o vi no incêndio, me lhe.


lembrei da foto e de minha mãe. Por isto estou tão O fotografo lambe-lambe entrou pelo portão e
emocionada. – justificou. tirou duas fotos. Em uma delas, posei abraçando-a. Vi
–– Eu não sei o que lhe dizer, tudo é estranho que ela estava feliz.
pra mim... bem... vamos esquecer isso. Podemos ser Quando o fotografo se foi, perguntei:
amigos? –– Há quanto tempo você frequenta meus
–– Sem dúvida! – respondeu me estendendo o sonhos?
braço. –– Há mais tempo que tu imaginas. – respondeu.
–– Posso ficar com a foto? – perguntei. –– Agora deves partir. – completou.
–– Pode. O mistério sobre meu avô sempre rondou Beijamo-nos e eu fui me sentindo como se
nossa família. É hora de eu me livrar desse pesadelo. flutuasse para uma outra dimensão. Antes, porém tive
A mulher parecia mais calma. Silenciosamente tempo de ouvi-la dizer:
me entregou a foto, vestiu seu casaco e acompanhada –– Mário, estou grávida de ti!
do marido, partiu. Foi então que eu despertei. O sonho se desfez.
De repente comecei a ficar tonto e com uma Confuso, me esforcei para dormir novamente. Queria
enorme sonolência. Olhei a foto e confirmei. Era revê-la mais uma vez embora no fundo soubesse que
ela, a mulher dos meus sonhos e, ao seu lado, era nunca mais a veria.
eu a abraçá-la. Foi então que tive uma ideia. Fui Depois de algumas tentativas finalmente adormeci
ao quarto e vesti as mesmas roupas usadas na foto e logo comecei a sonhar. Desta vez, entretanto, estava
depois, deixei-me cair sobre a cama e adormeci. em minha casa no sonho quando um senhor idoso
Logo comecei a sonhar e pareceu-me ter voltado abriu a porta e me disse:
cinquenta anos atrás. Estava no casarão ao lado –– É hora de dar um passeio!
do Cine Hipólito quando a ouvi dizer meu nome e –– Quem é você? – perguntei.
imediatamente, como num reflexo pronunciei: Elisa! –– Seu bisneto. – respondeu.
Por dentro sentia como se a conhecesse há muito –– Aonde vamos? – quis saber.
tempo. Não tinha dúvidas de que a amava. Ela se Foi então que as paredes começaram a tomar
aproximou e disse: formas diferentes e o velho, num tom profundo e
–– Agora que tu sabes, talvez nunca mais no solene, respondeu:
vejamos. Por isso chamei o fotografo para ter de ti - Para o futuro!
uma recordação.
–– Sim, eu sei e agora tudo faz sentido. – disse-

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Evocações de uma foto

Ontem resolvi cortar o cabelo numa cidadezinha


aqui perto. Seu Zé Barbeiro continua exercendo a
atividade na pequena barbearia onde trabalham ele e
um jovem assistente.
Quando cheguei, Seu Zé estava disponível,
enquanto que, um senhor idoso cortava o cabelo com
o assistente na poltrona ao lado. Eu logo me sentei na
cadeira e Seu Zé me perguntou:
–– Como vai querer o corte?
Para evitar muitas perguntas fui logo dizendo:
–– Gostaria que o senhor fizesse um corte
rebaixado, usando a dois do lado e a três em cima. E o
senhor, como está?
–– Não vou muito bem, ando esquecendo algumas
coisas.
–– Tem tomado o remédio direitinho?
–– Tenho sim. Os comprimidos até que tem me
ajudado. E o meu sobrinho, o... Célio?
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

–– É Sílvio seu Zé. Ele está bem. na sua entonação, o tom certo da saudade.
Foi aí que eu me dei conta de que ele não –– Foi na praça né? Ali, onde é o banco? –
estava realmente bem, pois, esquecera até o nome do Perguntou o sujeito.
sobrinho predileto. Bem, pelo menos lembrara de que –– Foi lá mesmo! – disse Seu Zé enquanto me
o sobrinho é meu aluno. ajustava o avental. – Tem outra ali no mesmo lugar! –
Seu Zé já se preparava para me colocar o avental completou, apontando para uma foto também antiga,
quando entrou um senhor na barbearia. Ele aparentava mas em preto e branco.
uns sessenta anos e já entrou vasculhando as paredes. O sujeito resvalou o olhar pela outra foto, mas nem
Seu Zé o cumprimentou: se interessou muito. Seu olhar logo voltou para aquela
–– Bom dia, Tônho! que tinha em mãos e novamente a exclamação:
–– Bom dia Seu Zé. Seu Zé... Eu soube que o –– Sim senhor... Cabo Matias!
senhor tem uma foto do Cabo Matias aqui. Eu queria Seu Zé parecia adorar tudo aquilo. Ele era senhor
dar uma olhada. absoluto de toda aquela história nas fotos da parede.
–– Pode olhar. Deve ser uma daquelas ali. –– O senhor se lembra do educandário? –
–– Há! Lá está ele... Deixa eu chegar mais perto... perguntou o sujeito.
Na parede haviam várias fotos antigas. Uma delas Foi quando o outro senhor que estava na cadeira
estava meia cor de abóbora de tão velha. ao lado pediu para ver a foto. Depois foi falando
–– Mas num é que é mesmo o Cabo Matias, Seu enquanto apontava para alguém no documento:
Zé? –– Esse aqui não é o Zé das Ventas, aquele inspetor
–– O qual delas? que batia nas crianças?
–– Naquela foto ali. – E apontou para a foto mais –– É ele mesmo!
velha sem deixar de fitá-la um instante sequer. –– Minhas orelhas ficavam vermelhas cada vez
Vendo que o homem estava encantado pela foto, que ele me pegava pra Cristo. Safado!
eu, que era a pessoa mais alta no local, me ofereci para –– É, ele tinha problema de pressão alta e ficava
tirá-la da parede. Era uma foto de 30x20, junto a outras nervoso por qualquer coisa. Há se fosse hoje em dia!
do mesmo tamanho, em molduras de cores diferentes. O sujeito viu a foto de um antigo time de futebol
A moldura da foto em questão era azul. Tirei a moldura da cidade. Posicionou-se frente a ela e foi apontando
do prego e entreguei nas mãos do sujeito. Então ele e nomeando cada integrante:
exclamou enquanto olhava para a foto: –– O Chico Totó... olha o Zé Rimijo... o Pedro
–– Cabo Matias, meu Pai! Dentadura...
Falou com um certo orgulho e, dava pra reconhecer Ao ouvir aquela lista de nomes engraçados tive

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Cláudio Gomes de Almeida

que me conter na cadeira para não rir. Seu Zé tinha


um comentário para cada um deles:
–– Esse morreu com noventa anos... esse foi
prefeito... esse a mulher fugiu com um forasteiro...
etc...
Passou um instante e o sujeito disse que não
conseguia ver muito bem. Disse que ia buscar uns As fadas do sul de Minas
óculos, mas que voltaria para ver melhor. Dizendo
isso, colocou a foto sobre a mesa como quem recoloca e o roubo da flauta pan
uma imagem num santuário e saiu.
Quando terminei de cortar meu cabelo fui ver a
foto mais de perto. Eu não conhecia ninguém e nem
sabia que local era aquele. Só o que vi foi uma antiga
praça e algumas pessoas. Na esquina estavam dois
policiais magérrimos olhando em direção à câmera.
O fardamento estava impecável. Os sapatos brilhando Há milhares de anos, em nosso planeta, viviam
de tão engraxados. Não havia um obeso sequer entre três diferentes povos: o povo dos humanos, o povo
as pessoas, tive a estranha sensação de não pertencer dos bruxos e o povo das fadas. Os humanos viviam à
àquele mundo. beira de rios, lagos e no litoral. Os bruxos viviam nas
De qualquer forma sabia que um daqueles montanhas rochosas e cavernas. Já o povo das fadas,
guardas era o Cabo Matias, alguém que deve ter sido habitava as extensas florestas.
um grande profissional, um grande homem e acima de Todos viviam em harmonia, graças à magia  que o
tudo, um grande e estimado pai. semideus Pan realizava através do toque de sua flauta
mágica. Ao executá-la Pan espalhava a fraternidade
entre os seres. Por esta mesma razão, sua flauta era
chamada a  “flauta pan”.
O semideus morava na floresta negra e todos
os seres eram proibidos de adentrar seus domínios.
Ao lado do portal da floresta havia o Templo
Elíseos onde uma profetisa era incumbida de zelar
pelo mais dadivoso dos objetos: a flauta pan. Era

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

ela também quem dialogava com o semideus, Enquanto as criaturas seguiam até Bausen, ele,
levando-lhe os pedidos de todos que a procuravam. informado do que estava preste a acontecer, apossou-
Era comum o povo dos bruxos viver por até mil anos se da flauta e ficou aguardando as feras na entrada da
enquanto que o povo das fadas vivia até quinhentos caverna. Assim que elas chegaram, Bausen tocou a
anos e os humanos dificilmente completavam uma flauta, conseguindo que elas adormecessem. Depois,
era. jogando sobre elas uma poção, ordenou-lhes que
Há mil anos, o ser mais idoso do mundo era a atacassem a rainha do povo das fadas. Assim que
grande bruxa. Alguns diziam que ela possuía quase restabelecidas, as feras rumaram para seu novo destino.
dois mil anos de idade. Só mesmo a rainha das fadas a Bausen sabia que Záfia não teria poder suficiente para
conhecia e tinha com ela uma grande amizade. Alguns derrotá-las e que, ser-lhes-ia presa fácil.
até duvidavam de sua existência. Sabedor do que  havia se passado, Pan, solicitou a
Por essa época, o terrível Bausen, filho de Sara  para que ela fizesse uma nova poção. Desta vez o
Exagon, tornou-se rei dos bruxos, porém, caiu em sortilégio seria revertido. O próprio Pan derramou sobre
desgraça ao apaixonar-se por uma humana.No início as feras a poção, transformando-as novamente em pedra.
eles eram felizes, mas, os anos passaram e sua esposa Agora os povos estavam declaradamente em conflito.
foi acometida de uma grande doença. Bausen recorreu Com cada vez maior poder, Bausen converteu-se em
ao semideus, através da sacerdotisa de Elíseos, Sara, senhor absoluto do povo dos bruxos e tinha muitos
mas, Pan negou-se a ajudá-lo. Irritado, Bausen roubou humanos como aliados. Boa parte dos humanos,
a flauta pan, tornando-se o mais poderoso de todos os entretanto, desconhecia a existência de tão diferentes
bruxos. povos, alguns até fundaram religiões e seitas. Já o
Sem sua flauta, Pan, não conseguiria derrotá-lo. povo das fadas, fiéis à Pan, decidiu recorrer ao deus
O semideus então recorreu a alguns sortilégios que Elíseos.
prenunciaram os piores anos que todos os povos já Atendendo suas súplicas, Elíseos enviou uma
viveram. Algo terrível estava para acontecer. punição tão grande que chocou até os próprios
Transtornado, Pan ordenou à sacerdotisa Sara deuses.
para que fizesse um preparado de determinadas Em resposta ao apelo do povo das fadas, o deus
ervas e jogasse aos pés das estátuas de Ferus e Elíseos enviou à Terra a peste negra, a qual dizimou
Atron, na entrada do templo de Elíseos. Sara assim milhares de bruxos e humanos. Tanta mortalidade
procedeu. Algum tempo depois as estátuas ganharam entristeceu até o povo das fadas.
vida. Pan então as ordenou que derrotassem Censurado por outros deuses, foi determinado
Bausen e trouxessem a flauta de volta ao templo. a Elíseos para que se afastasse dos problemas

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

terrestres. rainha das fadas.


A esposa de Bausen havia falecido, mas, ele Perguntado se sabia onde encontrá-la, Gesualdo
manteve o corpo conservado através de poções respondeu que sim, pois andava espionando-a para
mágicas enquanto buscava uma forma de ressuscitá-la. saber se a grande bruxa de fato existia.
A peste agiu por duzentos longos anos, –– E ela existe? – perguntou Bausen.
restando ao final apenas alguns poucos –– Desconfio que seja a mucama de sua filha.
bruxos que logo se misturaram aos humanos. Ela é a mais idosa do castelo e é a única que estava
Irritados por terem sido punidos por Elíseos, o povo desconfiada de mim.
dos bruxos voltaram-se contra Bausen, destituindo-o Bausen pediu a Gesualdo para que no dia
de sua liderança. Percebendo que os humanos estavam seguinte o levasse até Záfia. Disse estar determinado
tomados de profunda religiosidade, Bausen começou e que não voltaria sem a posse da pedra.
a arquitetar uma vingança contra seu próprio povo. Sabedor de tudo o que se passava, Pan, no templo
Infiltrou-se entre os humanos religiosos a convenceu- de Elíseos, ordenou a Sara para que avisasse Záfia e
os a criar o Tribunal da Inquisição. A partir deste resgatasse  sua filha e sucessora Florelux, trazendo-a
tribunal, todos os bruxos seriam cassados e eliminados. para a floresta negra.
Um dos bruxos, Gesualdo, descobrindo que Bausen Naquela mesma noite, Sara encontrou-
era o mentor dos tribunais da Inquisição, revelou se com Záfia e contou-lhe tudo o que estava se
que sabia como sua esposa poderia ser ressuscitada passando. Disse-lhe o que viera fazer a pedido de
e propôs-lhe revelar o segredo em troca de liberdade. Pan, mas, disse-lhe também que, como profetisa
Bausen aceitou e ouviu-o atentamente. sabia que Záfia não resistiria ao poder de Bausen
Gesualdo contou que, entre o povo das fadas e aquela seria a última noite de seu reinado.
havia uma pequena pedra azul, capaz de produzir os Záfia recolheu-se por uns instantes. Em seu quarto,
mais incríveis poderes, inclusive o da ressuscitação a rainha abriu uma porta secreta e entrou. A
de humanos. Entre o povo das fadas, acreditava-se passagem dava para uma caverna iluminada por velas
que seu possuidor era dotado de grande sabedoria. gigantescas. Lá, invocou a presença da grande bruxa.
Por isso mesmo, a pedra ficava inserida no próprio Por entre as sombras, ouviu-se alguém tossir.
corpo da rainha. Quando esta morria, seu corpo se –– Záfia, o que há? – perguntou uma voz saída
transformava num enorme monte de pedra sabão, da escuridão. Chegou a hora, minha mãe! Bausen
por isso, antes de sua morte, entregava a pedra à sua virá  com o raiar do dia e terei de enfrentá-lo para que
sucessora. Desta forma, ela era passada de geração a a profecia se cumpra.
geração e, no momento, quem a possuía era Záfia, a –– Oh minha querida! –   disse a grande bruxa,

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

aproximando-se e abraçando Záfia. atravessarei o portal.


–– Como posso enfrentá-lo? Como pode uma mãe Záfia despediu-se da mãe, a grande bruxa. Voltou
lutar contra seu próprio filho? para a sala do castelo e mandou chamar Florilux.
–– E você acha que eu não sofro com isso minha Não demorou muito, apareceu uma garotinha e
filha? Bausen, sem saber, esta revivendo a mesma então ela disse-lhe:
história de Exagon. Parece que há uma sina em nossa –– Florilux, chegou a hora de nos despedirmos.
família. Bausen virá e eu farei o que uma rainha deve fazer.
–– Diga-me o que fazer minha mãe. Preciso tanto Você seguirá com Sara e Rana até a floresta negra onde
de teus conselhos. atravessarão o portal.
A velha bruxa sentou-se e Záfia fez o mesmo, –– A senhora já me explicou uma vez, que
apoiando sua cabeça no ombro dela. isso aconteceria. Na época eu chorei muito até
–– Filha... – disse a grande bruxa – tudo pode entender nossa missão nesse mundo. Demorou,
acabar aqui, mas, se assim for, o povo das fadas correrá mas eu entendi e, para provar isso, também
grande risco. Agora é o momento de você pensar vou agir como uma rainha. – disse a menina
como uma rainha e proteger o seu povo. A profecia já abraçando sua genitora e com os olhos em prantos.
está escrita, Bausen atravessará o portal em busca da Nesse momento, surgiu a mucama da garota, Rana.
pedra e o povo das fadas ficará protegido, pois, quem Záfia pediu-lhe que acompanhasse Sara e Florilux.
atravessa o portal nunca retorna. Você deve lutar, E assim partiram. Ao chegarem próximos
enfraquecê-lo e retardar a ida dele ao portal. à entrada da floresta negra, Rana foi picada por
–– Mas e se eu revelar-lhe que sou sua mãe? uma víbora e caiu enferma. Uma senhora que por
–– Ele jamais deve saber disso, pois está cego por lá passava, vendo o acontecido com Rana, disse
uma paixão doentia e tem um apetite voraz pelo poder. conhecer o antídoto para salvá-la. Não demorou muito
Revelar-lhe tal fato apenas aguçaria sua vontade de o antídoto foi preparado e a mucama estava salva.
tornar o reino das fadas parte de seu império. Temendo uma recaída da mucama, Florilux pediu
–– Eu entendo e seguirei seus conselhos, mas à senhora que as acompanhasse e ela   prontamente
quero que parta com Florilux, Rana e Sara. Vigie-os e seguiu-as.
cuide deles por mim. Ao chegarem ao portal, Florilux perguntou:
–– Oh minha querida, como sofro por ti... Eu –– Como atravessaremos o portal?
preferia morrer em seu lugar, mas, por punição dos –– Só existem duas formas de atravessá-lo. Uma
deuses devo viver até ver morrer o último ser de minha é portando a flauta pan e a outra é estando o próprio
linhagem. Não se preocupe, eu irei com Florilux e Pan presente. Disse Rana.

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

Passados alguns instantes, Sara disse: gelado soprasse, apagando a esfera de fogo...
–– Que todos se virem para o portal, Pan está E assim, com diversas mágicas e encantamentos,
presente, mas ninguém além de mim é autorizado a o combate prosseguiu. Ao final, um raio atingiu Záfia,
vê-lo. que caiu desfalecida. Subitamente seu corpo começou
Logo as paredes começaram a se mover e eles a petrificar e a crescer até tornar-se uma gigantesca
foram enviados a outra dimensão. Enquanto isso, montanha de  pedra sabão.
próximo ao castelo de Záfia, mal raiou o dia, o Bausen não teve dúvidas, a rainha das fadas
céu começou a escurecer e uma imensa nuvem se estava morta. Através de suas mágicas descobriu que a
aproximou envolvendo o castelo em muitos raios e sucessora de Záfia havia atravessado o portal e que ele
trovões. Uma enorme luta seria travada. deveria fazer o mesmo se quisesse adquirir a pedra.
Záfia postou-se na entrada do castelo e mandou Estava fraco, e decidiu voltar e preparar o corpo de
que fechassem as portas. Ali, do lado de fora, aguardou sua esposa para levá-la consigo ao atravessar o portal,
a chegada de Bausen, mas, o primeiro a chegar foi pois, conhecia bem o ditado: “quem atravessa o portal
Gesualdo que, ao vê-la foi logo dizendo: do tempo, jamais retorna”.
–– Rainha das fadas, eu mesmo a destruirei. Sou Em sua caverna, Bausen colocou o corpo de sua
Gesualdo, um bruxo e vou mostrar porque somos esposa num sarcófago cheio de ervas e antes de fechá-
superiores a vo... lo disse:
Antes mesmo que terminasse a frase, houve um –– Querida, juro-te que encontrarei a pedra
enorme clarão e Gesualdo foi atingido por um raio, azul que ira ressuscitar-te. Juntos, seremos felizes
sendo transformado em pedra. Bausen, que assistia a novamente. Irei transportá-la comigo neste sarcófago
tudo, apareceu em frente à rainha. e apenas o abrirei quando estiver de posse da pedra.
–– O poder da petrificação só quem possui são os Querida, como sinto sua falta...
grandes bruxos. Então você é uma bruxa! Não importa, Dizendo isso, Bausen fechou o sarcófago e
hoje será o seu fim. preparou-se para a viagem. Passar-se-ia ainda dois
Dizendo isso, Bausen fez com que dezenas de dias antes que ele, recomposto, atravessasse o portal.
aranhas surgissem e envolvessem o corpo de Záfia em Enquanto isso, trezentos anos à frente, em Ouro Preto,
teias. no Brasil, Pan, Florilux, Sara, Rana eu uma senhora,
Em resposta, o corpo de Záfia tornou-se haviam acabado de atravessar o portal do tempo.
incandescente, queimando as teias e as aranhas. Pan logo sumiu entre as árvores, deixando
Depois, ela lançou uma bola de fogo sobre Bausen reunidas, mas, o portal os havia enfeitiçado e, ao se
que, por sua vez, fez com que chovesse e um vento olharem, elas tiveram uma grande surpresa.

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

As mulheres logo constataram que a passagem bruxa e eu tive de viver escondida.   O primogênito
pelo portal as havia envelhecido. Florilux agora era de uma fada é sempre uma mulher, mas, como Záfia
uma linda mulher. Rana percebeu que, a senhora herdou os poderes de Exagon, sendo uma bruxa, teve
que lhe aplicou o antídoto não havia envelhecido e um filho homem. Para que ninguém descobrisse,
questionou-a: meu neto foi entregue a Exagon para ser criado como
–– Porque a senhora não envelheceu como nós? filho.
–– Você está enganada, eu também envelheci. –– Então a senhora é minha avó e Bausen meu
–– Mas está com a mesma aparência de antes da irmão? – perguntou Florilux.
travessia!? – observou Rana. –– Isso mesmo, querida, infelizmente Bausen
–– É que este não é meu corpo de fato – disse isso se tornou um tirano. Ele nunca soube dessa história
enquanto sua face magicamente começava a mudar. e talvez, só por isso ainda estamos vivas. Ele está
Pouco depois, Rana e Florilux exclamaram determinado a nos destruir, mas, eu irei protegê-la.
surpresas: –– Eu sempre soube de tudo, Bertha. – disse Sara,
–– A grande bruxa!!! dirigindo-se à grande bruxa. – e continuou – O tempo
–– Tive medo de que não me deixassem do portal é diferente e Bausen demorará ao menos uma
acompanhá-las por isso assumi outra aparência. década para nos encontrar. Até esse dia, devemos estar
–– Você veio pra me proteger, não é? Foi minha atentas. Aqui devemos construir nossas casas e vivermos
mãe que pediu não é? – perguntou Florilux – Ela gosta misturadas aos humanos até que Bausen nos encontre.
muito da senhora! – completou. E ele nos encontrará, porque assim foi profetizado.
–– Florilux, agora que estamos longe do reino das Assim se deu que, elas construíram suas casas e
fadas está na hora de você saber a verdade sobre a sua se adaptaram à rotina dos humanos. Florilux, um
origem. ano depois, decidiu tomar aulas de pintura com
Todos se sentaram e a grande bruxa começou a um jovem escultor e pintor mineiro. Mais um ano
contar sua história: se passou e ela se sentiu atraída pelo professor.
–– Há quase mil anos eu era a rainha do povo das No ano seguinte, enfim, começaram a namorar.
fadas quando me apaixonei por Exagon, o rei do povo Antonio estava totalmente apaixonado por Florilux.
dos bruxos. Tivemos secretamente um caso e dele Até que um dia, ela resolveu contar-lhes sua
nasceu Záfia sua mãe. Como todos sabem a união entre história e quem de fato ela era. Também nesse dia,
povos diferentes era proibida e em represália, Elíseos preocupada com o rumo das coisas, Bertha, a grande
me condenou a viver até o falecimento do último ser bruxa, pediu a Sara para que consultasse Elíseos
da minha estirpe. Além disso, ele me transformou em sobre a possível união entre Florilux e Antonio.

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

Elíseos, que ainda se culpava e lamentava por ter Construíram então um templo e   ao lado um
enviado a peste negra à Terra, enviou através de Sara, pequeno restaurante. Chamaram-no Casa das Fadas.
uma resposta surpreendente. Tão surpreendente Logo ficaram conhecidas na região.
que mudaria o destino de todos os povos. Vinha doentes e pessoas até de outras cidades para
Sara Procurou Bertha. Trazia consigo   um oráculo conhecerem as famosas “Fadas do Sul de Minas”.
de Elíseos. Nele, o deus determinava que nenhum Florilux casou-se com Antonio e viveram felizes
dos povos poderia viver mais de cento e vinte anos. por alguns anos até que, Sara foi visitá-los.
Também determinava que todos os povos poderiam –– Bausen está chegando! – informou Sara.
ser unir indiscriminadamente e que todas as punições –– Que devemos fazer? – perguntou Florilux.
dadas em razão da união entre povos diferentes seriam –– Aqui há muita gente, devemos partir para
canceladas e abolidas. travar a luta em outro lugar e evitar que esta gente
Ao ler o oráculo, Bertha suspirou aliviada e sofra.
entre  prantos sussurrou: –– Para onde iremos?
–– Estou livre! –– Para o Vale do Paraíba. Lá temos uma missão
O oráculo também dizia que todos os que a cumprir.
atravessaram o portal deveriam seguir até o sul de E assim todos se reuniram e viajaram. No meio
minas, onde a flauta pan seria finalmente resgatada. da estrada, Sara parou e disse:
Antonio, ao conhecer a história de Florilux, passou –– Agora é chegada a hora!
a  apoiá-la e se dispôs a seguí-la na jornada. E assim, Subitamente o céu começou a escurecer e
todos se reuniram e seguiram viagem. ouviram-se vários estrondos por toda parte. Parecia
Quando chegaram ao seu destino, rapidamente que o mundo estava acabando.
se estabeleceram. No vilarejo em que foram morar Florilux caminhava pela estrada quando, bem
havia muitos doentes e, Florilux, desejosa em ajudar, à sua frente, surgiu Bausen. Estava velho e parecia
se lembrou da pedra azul e sabendo que o povo do transtornado.  Trazia nas mãos a flauta pan e ao seu
lugar era muito religioso pediu a Antonio que fizesse lado, sobre o chão havia, um sarcófago.
uma imagem de santa, que fosse oca e inserisse dentro –– Eu só quero a  pedra! – disse Bausen.
a pedra azul. –– Se eu a entregar, você devolve a flauta pan? –
Antonio assim fez e, onde havia doentes, eles propôs Florilux.
levavam  a imagem da santa e ao haver contato entre –– Dou-lhe minha palavra. – respondeu.
a imagem e o doente, a pessoa  era inexplicavelmente Florilux pediu a Antonio para que lhe
curada. passasse a imagem e retirou de dentro a pedra azul,

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

entregando-a   a Bausen. Logo o bruxo deu-lhe a mas não adiantava, pois, seu poder curativo só
flauta pan e ela mais que depressa a entregou a Sara. funcionava com humanos. Então Bertha lhe disse:
Bausen, de posse da pedra azul, abriu o sarcófago –– Estou preste a morrer, mas felizmente você
e teve uma surpresa. A passagem pelo portal havia continuará a minha estirpe. Mesmo que sua prole seja
decomposto parcialmente o corpo de sua amada. de humanos, ame-os querida, ame-os muito!
Então, ele pegou a pedra e encostou-a no cadáver, mas Dizendo isso Bertha adormeceu. Florilux fez-
nada aconteceu, pois, a passagem pelo portal havia lhe uma maca e amarrou ao cavalo para transportá-
eliminado o poder ressuscitador da pedra. la.   Depois de prantearem e lamentarem a morte de
Bausen ficou irritado e, imaginado que   Rana Rana, todos seguiram juntos de volta ao vilarejo.
fosse a grande bruxa, lançou-lhe   um raio Na entrada do vilarejo, um grupo de pessoas os
que a atravessou e feriu a perna de Antonio. aguardava. Acusados de bruxaria,   foram impedidos
Depois, olhando para Florilux, lançou-lhe um de entrarem na vila. A santa foi confiscada e jogada
raio, mas, Bertha colocou-se à frente dela como num rio das proximidades.
um escudo e lançou um raio sobre Bausen. Florilux e Antonio decidiram voltar a Ouro
Bausen caiu abatido e começou a se transformar em Preto para cuidarem de Bertha, mas, no caminho
pedra. Antes, porém, abraçou o sarcófago e mergulhou ela faleceu transformando-se em uma enorme
no despenhadeiro. O que se viu em seguida foi um montanha de pedra sabão. Em sua homenagem,
gigantesco monte de pedra elevando-se próximo ao pé Antonio esculpiu as mais belas imagens, espalhando-
da serra. as por Ouro Preto e região. O casal teve muitos
Um camponês que havia testemunhado o filhos, todos humanos, e foram muito felizes juntos.
acontecimento   fugiu assustado em direção ao Sara foi morar em Varginha onde ergueu um templo
vilarejo. em homenagem a Elíseos. Ali morou ainda por dois
Bertha estava ferida, Antonio agonizava e Rana séculos amparada por Pan, o semideus. No século
estava morta. Sara recolheu do chão a pedra azul passado Pan foi visto por alguns camponeses. Pensaram
deixada por Bausen. Depois, entregou-a para Florilux tratar-se de um extra terrestre e ele foi chamado de “o
e pediu-lhe que a usasse em Antonio. ET de Varginha”. Elíseos, entendendo que Pan havia
Assim que Antonio encostou sua mão na pedra, terminado sua missão na Terra, o enviou para a Galáxia
suas dores desapareceram, entretanto, o poder do raio de Andrômeda e, para que Sara não ficasse solitária
foi tão forte que o deixaria   aleijado para o resto de na Terra, fez com que ela desse a luz a um garoto.
sua vida. Sara morreu há algum tempo e quanto ao seu filho,
Florilux tentou usar a pedra para salvar Bertha, bem, é mesmo que lhes contou esta história.

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Cláudio Gomes de Almeida

Hoje, próximo a São Bento do Sapucaí, na


fronteira entre São Paulo e o sul de Minas Gerais, há
um monte de pedra chamado “Pedra Baú”. Muitos
acham que seu nome é devido ao seu formato, mas
agora, você leitor, sabe bem qual é a verdadeira origem
desse nome!
Índole

Eu já tinha adormecido quando fui resgatado do


estado alfa por um zum-zum-zum que se armou no
quarto ao lado. Fui ver o que estava acontecendo e
minha sobrinha me entregou um gatinho enquanto eu
ouvia a determinação explícita de minha irmã:
–– Livre-se dele!
O pobre animal havia caído do telhado e eu fui
escolhido para ser o seu carrasco. Há pelo menos três
dias minha irmã quase não dormia escutando o miado
do sujeito e, por diversas vezes já havia me pedido
para dar fim ao animal. Eu protelei o quanto pude,
disse que um dia o animal cresceria e iria embora, mas,
ele achou de cair do telhado direto nas mãos dela.
Ele é todo preto. Agora tenho certeza, gato
preto dá azar! Em meus tempos de criança eu estava
admirando um gatinho ao lado de casa quando, meu
vizinho, bêbado, sentou-lhe um tijolo na cabeça e o
jogou num terreno baldio. Foi motivo suficiente para

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

que eu passasse uma semana de olhos vermelhos se houvesse aprontado alguma traquinagem.
e chorosos. Eu estava muito decepcionado com o Mas eu não me importei. Se eu tivesse feito isso
mundo dos adultos. quando criança, talvez eu tivesse salvado uma vida!
Por ironia do destino, agora era eu quem estava
ali, com aquele minúsculo ser nas mãos e  uma única
recomendação:
–– Livre-se dele!
Uma vez, minha mãe me incumbiu de livrar-
me de um rato. Na época, coloquei as coisas nos
seguintes termos: era eu e minha família de um lado
e  a peste bubônica implacável e dizimadora de outro.
Já, um gatinho, que mal poderia me fazer?
Enquanto eu decidia o que fazer, minha irmã
apareceu e foi logo perguntando:
–– O que você vai fazer com o gatinho?
–– O que você sugere que eu faça? – devolvi a
pergunta a ela, mas ela tornou a perguntar:
–– O que você acha?!!
Era uma pergunta em tom de resposta. Parecia
trazer uma mensagem sublinear que, bem interpretada,
poderia ser traduzida nas seguintes palavras: Mate-o!
Eu não sabia qual seria o destino do animal, mas,
eu sabia qual é a minha índole e eu jamais faria mal a
criaturazinha.
Quando olhei nos olhos do gatinho, eles
brilhavam, vi que ele possuía uma alma, uma família...
Talvez até tivesse sonhos, ideais...
Foi então que eu abri o portão e dirigi-me à
esquina mais próxima. Chegando lá, coloquei o
gatinho no chão e saí em disparada. Formou-se uma
cena hilária: um senhor obeso correndo pela rua, como

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Apresto de uma entrevista
reveladora!

Certa vez eu trabalhava como jornalista na


redação do jornal “O Jacapauense”  quando o editor
chefe incumbiu-me de entrevistar o Dr. Neiva Passos,
do Instituto Pró-formigas em Jacapau. Imediatamente
localizei o pesquisador e combinei de buscá-lo em
sua residência. Fiquei de levá-lo até o seu laboratório
no Campus Universitário para então realizar a
entrevista.
Ao chegar no local combinado encontrei um
homem alto e magro curvado sobre um monte de terra,
olhando atentamente para algumas formigas.
–– Bom dia Doutor Neiva! – exclamei.
–– Bom dia! – respondeu sem sequer desviar a
atenção do formigueiro.
Passados alguns minutos, como ele não dizia
nada, resolvi propor:
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

–– Vamos ao laboratório? –– Sim!


–– Vamos! Um momento! –– E o que ela esta pesquisando?
Dizendo isso, retirou do bolso um tubinho de –– O “chilique piripaquetizante das formigas
vidro, recolheu algumas formigas e um pouquinho de estressadas” – respondeu.
terra. Depois, tampou o objeto e me acompanhou até –– É mesmo!! E ela já viu algum chilique entre as
o carro. formigas?
Já dentro do carro, a caminho da universidade, –– Não, mas, ela mesma já teve cinco desde que
exclamou: começou a estudá-las.
–– As formigas são maravilhosas, não acha? –– Curioso! – exclamei.
–– Se o senhor diz... Foi então que chegamos à sala do doutor. Ao
–– Elas são a oitava maravilha do mundo. Há abrir a porta logo avistei, no centro da sala, coberto
vinte anos que as observo. Até já pedi secretamente a por uma imensa redoma de vidro, um formigueiro
Deus para que na próxima encarnação eu possa nascer gigantesco.
formiga. –– Doutor, quem o introduziu nesta atividade de
‘Que exagero. Ele deve ser um profissional muito observação das formigas? – perguntei.
dedicado.’ – pensei comigo. Ao chegarmos  no prédio, –– Foram o Doutor Neto e o Doutor Pimentel.
o doutor disse à recepcionista: –– Eles ainda lecionam aqui nesta universidade?
–– Olá Elza, como anda a Rebeca? –– Não. Infelizmente eles faleceram há cinco anos,
A moça retirou da gaveta uma pequena garrafa de quando observavam formigas carnívoras da Amazônia.
vidro contendo um pouco de terra e algumas formigas. Vê aquelas plaquetas? – perguntou, apontando para
Colocou a garrafa sobre o balcão e disse: dentro do enorme formigueiro.
–– Ela anda se engraçando com alguns colegas. –– Sim, o que significam?
–– Desça o pau neles! – exclamou. –– É ali que eles foram enterrados. Foi uma grande
–– Que violência doutor! – comentei. homenagem que a universidade prestou a eles. – disse
–– Que nada! São cupins. Certamente farão a isso  demonstrando  um misto de orgulho e saudade.
festa! –– Um dia também serei enterrado aqui! –
Antes de chegarmos ao laboratório passamos por completou emocionado.
uma sala onde uma mulher olhava fixamente para um Para que  não perdêssemos mais tempo, sentamo-
formigueiro dentro de uma redoma de vidro. Nem nos no sofá e decidimos iniciar a entrevista. Vendo que
sequer piscava. o entrevistado estava   totalmente absorto por aquele
–– É uma pesquisadora? – perguntei. mundo formigando à nossa volta, resolvi fazer uma

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Cláudio Gomes de Almeida

pergunta que o deixasse numa sinuca e disparei:


–– Doutor, as formigas, são felizes?
O mestre, entretanto, pareceu não se abalar,
lentamente levantou-se, foi até o barzinho num canto
da sala e colocou cinco cubos de açúcar num copo.
Depois, retornou para o sofá e, olhando-me como se
confidenciasse um segredo, respondeu: Eu e as cigarras
–– Somos!

Uma vez mudei-me de cidade para estudar. No


primeiro dia, eu estava andando pelo campus quando
me deparei com um inseto enorme e assustador. Tinha
asas e era quase como fosse um enorme mosquito. Seu
canto, sob o sol causticante, era alto e estridente. Tive
medo! Muito medo! Oh Deus, ainda me lembro...
Logo aluguei uma pensão, reorganizei minha
vida e comecei meus estudos na universidade. Por
essa época, ao atravessar uma praça rumo à reitoria,
vi, próximo a uma árvore, uma carcaça de inseto. Era
do mesmo tamanho do inseto que eu havia visto e que
me disseram chamar-se cigarra. Daí, concluí:
‘Estas pobres cigarras, fixam-se nas árvores e
ficam cantando até morrerem e o sol ressecar-lhes a
pele.’ – E assim, sensibilizado pela existência fugaz
daquele ser, vi-me envolto numa grande melancolia,
enquanto a noite caia lenta e tristemente.
Uma semana depois, impressionado pela

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

perfeição de uma carcaça, recolhi-a para guardar de próximo à pensão quando ouvi uma criança gritar:
lembrança. –– Eu peguei duas. E você?
Como não quis levá-la na mão, grudei-a na blusa, –– Eu peguei três. – respondeu uma outra.
como fosse um broche. Até que alguém perguntou: Logo percebi tratar-se de cigarras. Então eu me
–– O que você está fazendo com esta carcaça aproximei e perguntei:
grudada na blusa? –– Você conseguiu pegar uma cigarra?
–– É o que restou de uma pobre cigarra. – A criança abriu a mão e me mostrou uma enorme
respondi. cigarra.
Foi então que a pessoa me explicou que aquele –– Ela não morde? – perguntei.
era apenas uma espécie de invólucro do qual a cigarra –– Que nada! Elas são mansinhas!
havia se libertado ao passar para uma nova fase da sua Dizendo isso, a criança fechou novamente a mão
metamorfose. e colocou-a rente ao meu ouvido. Depois perguntou:
‘Liberdade. Então o que eu pensava ser sua –– O senhor está escutando ela cantar?
morte  era na verdade seu renascimento’ – pensei. É, –– Estou! – Confirmei, ouvindo um som fraquinho,
parece que Deus não havia sido injusto com aqueles mas contínuo.
pequenos seres afinal. Muitos anos se passaram desde então e
Para sanar minha ignorância, resolvi pesquisar hoje eu sou muito diferente. Quando a vida se
mais sobre o inseto. Descobri que as larvas da torna   tempestuosa e os problemas parecem não ter
cigarra, ainda minúsculas, infiltram-se na terra, fim, eu inexplicavelmente me encho de esperança e
alojando-se nas raízes das árvores e lá permanecem, consigo resolvê-los. É a vida me arremessando para
nutrindo-se de sua seiva, durante um ou dois anos. uma nova fase, como as cigarras, arremessando-se
Algumas espécies, como a canadense, permanecem para a liberdade!
nesse estágio por até dezessete anos. Depois, já no
formato de um besouro, elas sobem até uma altura
aproximada de um metro e fixam suas patas no caule
das árvores. Dessa forma rompem a sua carcaça,
liberando suas asas para o vôo. Vivem por pouco
tempo durante a estação na qual procriam e morrem.
Durante alguns anos esqueci-me das cigarras. Estudei
e terminei meu curso. Na última semana, preste a
me mudar e voltar para minha cidade, eu caminhava

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Como é mesmo o seu
nome?

Estou convencido de que o nome é uma das


coisas mais importantes que possuímos. É a síntese
da nossa identidade. Por isso mesmo eu me esforço
para não esquecer o nome daqueles que me cercam,
mas, nem sempre isso é possível. Ainda ontem um
amigo veio fazer-me uma visita e eu havia esquecido
seu nome. Tive que me desdobrar em gentilezas para
que ele não percebesse a gafe.
Acho que nós temos uma memória específica
para guardar nomes e a minha já está quase toda gasta.
Também pudera, só de irmãos eu tenho sete. Quem
sofria era minha mãe, pois, quando ela queria dar uma
tarefa a um de nos, ela gritava uns cinco nomes, um
atrás do outro. Por fim, após um pequeno palavrão,
ela dava a um último nome a sentença final. Nessas
ocasiões eu ficava quieto, torcendo para não estar no
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

final da lista, mas, se estivesse, não haveria mais nada e bom tom:
a fazer. Era obedecer e pronto! –– Ô coisinha, me empresta seu caderno?
Ter muitos filhos era prática comum no meu Essa foi a minha maior humilhação e o pior é que
bairro, por isso gastei boa parte de minha memória  de o bobão emprestou! Mas pelo menos entendi que ela
nomes com os amigos da vizinhança. Uma vizinha não queria nada comigo.
nossa  teve quinze filhos e os nomes foram tirados do Chato mesmo é quando alguém que você encontra
velho e do novo testamento. Na hora do almoço era todos os dias finge que não te conhece. Uma vez comecei
possível encontrar à mesa metade da santa ceia. um curso de administração. Era uma turma de quinze
Se eu morasse na Europa tudo seria mais fácil, pessoas apenas. No final do primeiro semestre tive uma
pois, lá eles se tratam pelo sobrenome. Essa, entretanto dúvida e levantei a mão para fazer a minha pergunta.
não é uma prática comum aqui. É coisa que se vê Ao me ver de mão levantada, o professor simplesmente
raramente. Certa vez eu fui a uma festa num clube perguntou:
grã-fino e uma senhora se aproximou cabisbaixa, –– Como é mesmo o seu nome?
olhando para os pés. Para os meus pés. Então ela foi Por um momento me senti um saco de batatas.
me inspecionando e eu aguardei pacientemente que Definitivamente, ninguém merece!
seu olhar me chegasse aos olhos, mas, na altura do
pescoço ela parou para me fazer uma pergunta:
–– De que família você é? – perguntou.
–– Gomes de Almeida. – respondi. Tive vontade
de dizer Gomes da Costa, nome de uma lata de sardinha
famosa aqui na região, mas me contive.
–– Ah! Não conheço! – exclamou meio
entediada.
Daí seus olhos fitaram os meus por uns breves
segundos e ela seguiu em sua caminhada pelo salão.
Eu gosto do meu nome e odeio apelidos. Foi
assim desde moleque. Certa feita, eu comecei a gostar
de uma colega de classe. Eu tinha uns oito ou nove
anos. Todos sabiam que eu gostava da garota, inclusive
a própria. Um dia após a aula, eu estava guardando o
material quando ela se dirigiu a mim e disse em alto

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Grupo dos Usuários
(de inseticida)

É madrugada e, na calada, identifico um som


que me é absolutamente familiar. Mais que depressa
cubro a cabeça e me escondo sob as cobertas. O som
aumenta e parece ressoar na entrada do meu ouvido.
Sim, o predador está por perto e quer o meu sangue.
Logo uma pergunta me vem à tona:
–– Qual a finalidade existencial de um
pernilongo?
Tento achar respostas, mas, não encontro. No
máximo, o que sei é a finalidade existencial daquele
pernilongo ao meu lado e cabe a mim, deixar ou não
que ela se concretize.
Um dos elementos da “dinâmica” em música é a
intensidade. Por exemplo, se você canta bem baixinho
e suave e, de repente você passa a cantar mais alto
e forte, você mudou a intensidade do seu canto. O
Cláudio Gomes de Almeida

pernilongo  parece ser mestre nisso. Ele canta um som


e modula até, no máximo, um semitom, passando por
todos os comas possíveis. Seu timbre é único e pode ser
reconhecido a uma distancia razoável. Penso mesmo
que, os estudiosos da acústica deveriam pesquisá-lo
para entender  como um ser, minúsculo como ele é,
possui uma capacidade de ressonância tão perfeita. Eu adoro uma perua!
O som talvez nem incomodasse se não estivesse
associado  à sua picada. Só de ouvi-lo começo  a me
coçar como se ele já tivesse me picado. Não é profilaxia,
é trauma mesmo.
Com esses pensamentos sob a coberta, de repente,
percebo que são na verdade dois ou mais pernilongos.
Aí vem a fase da revolta. Um tapa simplesmente Eu estava no ponto de ônibus quando, às cinco
poria fim a esta tortura. Se ele estiver em pleno vôo, o horas da manhã, vi passar por mim uma perua.
encontro das mãos esmagando-o será como o último Trazia, agregado ao teto, alguns paus de barraca, o
aplauso em homenagem à sua performance sonora. que logo me fez supor  que pertencesse a um feirante.
Já esgotado e bêbado de sono, decido poupá- Alguns amigos meus, também feirantes, são igualmente
lo. Amanhã eu entrarei para o grupo dos usuários de proprietários de uma perua, o que me faz crer que,
inseticidas e já até me imagino repetindo o bordão de fato, não há veículo mais apropriado para esta
matinal: atividade.
–– Obrigado Senhor por mais uma noite sem Há feirantes que armam sua barraca atando-a ao
pernilongos! teto do veículo, dispensando assim parte das estruturas
usuais. Já outros, vendedores de produtos de limpeza,
pães, etc..., sequer possuem barraca e vendem seus
produtos diretamente no veículo.
Sempre que assisto na televisão, reportagens da
Índia, Arábia, África, México, Cuba, etc..., identifico
no plano de fundo, em algum lugar da tela, a presença
de uma perua. Seja estacionada, seja em movimento.
Perceba que são países de costumes e religiões

118
Cláudio Gomes de Almeida

diferentes. Isso me faz pensar: se as pessoas se


tratassem de forma tão indiscriminada e amiga como
tratam seus veículos, talvez o mundo fosse muito
melhor.
Outro veículo estimado é o fusca. Antes eu até o
desdenhava, mas, hoje, se eu tivesse um, trataria bem
dele. O transformador
O fusca não é tão modesto quanto a perua, pois, já
participou de muitas trilhas sonoras e até foi astro de
filme. Quem não se lembra do fuscão preto? Pois é, na
minha cidade há um cor-de-rosa. Dizem que pertence
a uma vereadora. Vai ver foi até por causa dele que ela
ganhou a eleição!
Ontem fui dormir automaticamente na hora
determinada, porém, uma hora a menos de fato, pois,
ontem começou o horário de verão. O clima estava seco,
resultado da estiagem que já durava quase três meses.
Sexta-feira foi o dia das crianças, mas eu passei por
ele desapercebido. Em outros anos sempre dei doces
e brindes aos meus aluninhos, mas, este ano estive
meio apático.
Foi mergulhado nessa apatia que adormeci ontem
à noite. Entretanto, logo após a meia-noite  ouvi um
forte estrondo na rua e   as luzes imediatamente se
apagaram.
Enquanto caminhava para a porta da sala,
as luzes se acenderam, mas, ouviu-se um novo
estrondo e novamente o apagão. Logo deduzi, o velho
transformador estava em curto.
Só então constatei que estava chovendo e
razoavelmente forte. O cheiro de terra molhada

120
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

e o apagão remeteram-me aos meus tempos de a vida revestiu-se de uma serenidade maravilhosa. A
criança quando, durante as quedas de energia nas todos, um bom dia!
tempestades, engendrava várias brincadeiras e depois
me deitava entre meus pais, ouvindo-os conversar
sobre seus planos na penumbra, enquanto a chuva
caia deliciosamente.
Com a luz da lanterna quase se apagando, decidi
caçar uma vela para acender, mas não encontrei
nenhuma. Ouviu-se um novo estrondo. Pareceu-
me escutar algum vizinho dizer que o poste estava
pegando fogo. Por um instante eu me dei conta de
quão velho era   aquele poste. Eu era ainda criança
quando o usava para minhas brincadeiras de pique-
pique e esconde-esconde. Naquela ocasião ele já
tinha problema e costumava dar choque. Era um
choquezinho suave e sem muitas consequências.
Parece loucura, mas, lembro-me que juntávamos em
sete ou oito crianças. Daí, nós dávamos as mãos uns
aos outros enquanto que o primeiro encostava a mão no
poste. Logo todos nós sentíamos a corrente passando
sem atinar quão perigosa era aquela brincadeira.
De repente me dei conta de que as horas estavam
passando e eu precisava dormir para levantar cedo
e fazer as tantas coisas que tenho programado para
hoje.
O transformador foi consertado e quanto a mim,
hoje eu acordei transformado. Parece que resgatei um
pouco da felicidade daqueles dias de inocência. A
tão esperada chuva finalmente chegou. Lembrei-me
de que estamos na primavera e faltam pouco mais de
dois meses para o natal. O dia amanheceu tranquilo e

122 123
A verdade em preto e
branco!

–– O preto é na verdade a ausência de cores e


o branco é a fusão de todas as cores. – enunciou o
professor.
‘Que estranho’ – pensei comigo.
–– Branco e preto na verdade não são cores. –
completou.
Esta última afirmação bastou para dar um nó na
minha cabeça. Olhei para a minha caixa de lápis de
cor e lá estavam eles: um lápis de cor preto e outro
branco entre tantos outros. Afinal, o quê o professor
pretendia com aquela informação?
Será que Da Vinci, Van Gogh e outros se ocuparam
desta questão? Até entendo que tenham combinado
cores em busca de novas matizes, mas, será que algum
deles conseguiu reproduzir o branco que o professor
afirma ser a combinação de todas as cores?
Cláudio Gomes de Almeida

Pra mim o preto sempre foi preto e o branco


sempre foi branco. Além disso, as duas sempre foram
minhas cores prediletas.
Não sei se o que o professor dizia era verdade,
mas, duvidei que aquela fosse a “verdade em preto e
branco”. Por isso decidi sair da sala.
Enquanto abria a porta, ouvi-o disparar: As aparências enganam!
–– O magenta é a cor primária e não o vermelho
como todo mundo pensa!
Saí, antes que enlouquecesse!

Já estava escurecendo quando meu irmão, Jairo


Peregrino, entrou pela porta da frente e se sentou no
sofá da sala. Estava sério e parecia cansado. Depois,
num jeito meio balbuciado, olhou para mim e disse:
–– Chame a Gabriela!
Nem precisei me levantar para chamá-la, pois
ela estava no quarto ao lado, se preparando para ir à
escola.
–– Ô Gabi! – gritei e ela logo apareceu.
–– Quê tio?
–– Seu tio Jairo quer falar com você.
Foi então que ela se virou e reparou em seu
tio Jairo. Logo percebeu seu semblante sério e
compenetrado.
–– Mandou me chamar tio? – perguntou.
–– Mandei!
Dizendo isso, Jairo colocou a mão no bolso e
retirou dele uma carteira. Depois, retirou de seu

126
Cláudio Gomes de Almeida

conteúdo uma cédula de cinco reais e vagarosamente


pronunciou:
–– Te dou cinco reais para você me fazer rir!
A menina ficou agitada. Cinco reais daria para
ir ao cinema ou, na pior das hipóteses, garantiria um
lanche mais sortido no recreio da escola. Mais que
depressa, ela se posicionou frente ao tio, colocou O desejo de servir
a língua pra fora e fez tantas caretas quanto pode.
Depois, entrou no quarto e de lá saiu com uma roupa (ao TG)
muito engraçada. De repente pôs-se a macaquear e a
imitar alguns personagens da televisão.
Já sem fôlego, de tanto rir, percebi que Jairo ainda
permanecia sério até que, para nossa surpresa, seus
olhos começaram a lacrimejar.
Chateada por não ter conseguido seu intento,
Gabriela se lamentou: A tábua de passar estava armada. Eu olhava
–– Desisto! Não consigo fazer o senhor rir! sobre a cama e a farda lá estava. A jaqueta e a calça,
Colocando a nota de cinco reais na mão da garota, delicadamente expostos. Logo aparecia minha mãe,
Jairo, num esforço absurdo, disse quase sussurrando: com  um brilho de felicidade nos olhos, colocava uma
–– O dinheiro é seu. Você é ótima! peça sobre a tábua e começava a passar. Eu ficava
Algumas horas mais tarde eu perguntei a ele olhando e pensando: ‘um dia será a minha vez’.
porque ele deu o dinheiro se ele não havia rido e ele Um dia, quando moleque, ela me confidenciou:
me explicou: –– Seu avô foi xerife!
–– Naquela hora, eu tinha acabado de chegar do Eu sabia que no Nordeste não existia este
dentista e estava com a boca toda anestesiada. Por cargo, mas entendia que essa era a maneira que ela
dentro, chorei de tanto rir! encontrou para me dizer que meu avô era uma espécie
de delegado na região do agreste onde eles moravam.
Quando ela terminava de passar, a roupa estava
impecável. Meu irmão vestia-a e se apresentava a ela
para se despedir.
–– Meu soldado! – pronunciava com extrema

128
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

ternura, enquanto ajeitava-lhe a gola da camisa. Passou uma semana e ela me disse:
Eu assistia a tudo e sentia orgulhe por meu irmão. –– Conversei com o Dr Lucio e ele pediu pra você
Por dentro pensava: ‘Eu também quero ser soldado!’ ir lá amanhã!
Dois de meus tios lutaram na guerra de Suez e Ela me entregou um bilhete e completou:
outro aposentou-se como cabo na Aeronáutica. –– Leve e entregue este bilhete a ele. Já está tudo
Passado pouco mais de um ano, meu outro combinado.
irmão mais velho (eu sou o terceiro) começou a servir. Novamente não tive coragem suficiente para
Novamente eu olhava para a tábua de passar, as vestes dizer-lhe a verdade. Não seria difícil eu ser dispensado,
sobre a cama, o brilho carinhoso nos olhos de minha pois, a sede do TG era muito pequena para o excesso
mãe e a felicidade com que ela passava cada peça e de pessoas que se alistavam todos os anos. Depois, eu
pensava: ‘um dia será a minha vez!’ tinha pé chato, informação que me possibilitaria ser
O tempo passou e eu fui crescendo. Como eu dispensado no ato. Com tanta gente, o que eles mais
gostava muito das músicas do grupo Queen, resolvi queriam eram dispensar boa parte e qualquer motivo
estudar piano. Desde o início, minha professora seria bem vindo. Mas havia um pequeno detalhe: eu
apresentou-me peças de Chopin e de Beethoven e  não não queria ser dispensado!
demorou muito para que eu me tornasse um amante No carimbo do meu documento de reservista
da música clássica. Fazia uns seis meses que eu havia estava escrito que eu faria o exame dali a um mês.
iniciado a aprendizagem do instrumento quando, Naquela quarta-feira, entretanto, em consideração
finalmente chegou a minha vez de servir ao Tiro de à minha professora de piano, fui ao TG portando o
Guerra. maldito bilhete.
Minha professora tinha uns setenta e cinco O Tiro de Guerra era uma instituição séria, eu
anos, mas, tinha um vigor e uma alegria de viver que não podia chegar lá e dizer que compareci para ser
a deixava, aos meus olhos, quase da minha idade. dispensado. Esta informação poderia comprometer e
Estava feliz por ter me alistado e comentei com ela: prejudicar ao médico. Então, comecei a arquitetar um
–– Dona Cida, eu me alistei! plano para chegar até ele.
Não sei porque, mas, ela achou que eu não queria Quando cheguei à sede do TG, o Cabo da Guarda
servir e foi logo me dizendo. estava responsável pela portaria. Ele próprio veio me
–– Não se preocupe. Eu já fui enfermeira e trabalhei interrogar sobre o que eu queria. Disse-lhe que minha
com o Dr Lúcio. Vou pedir pra ele te dispensar! irmãzinha estava passando mal e que o médico dela
Fiquei com medo de magoá-la e não lhe revelei o era o  Dr Lúcio e, eu precisava avisá-lo.
meu desejo enorme de servir ao Tiro. O Cabo deixou que eu entrasse e   me escoltou

130 131
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

até o a presença do médico deixando-me a sós irmã e à tarde ele irá vê-la.
com ele   e um monte caras pelados (pois estava –– Que médico sem coração. A irmãzinha dele
fazendo exame).  Entreguei-lhe o bilhete e ele pediu- passando mal e o médico num tá nem aí –  comentou
me para   que aguardasse na sala ao lado para ser com o outro soldado.
examinado. Saí depressa do local e quanto mais me afastava
Eu disse ao Cabo da Guarda que o médico pediu- mais aliviado ficava. Falei para minha professora que
me que eu o aguardasse e ele se retirou, retornando eu entreguei o bilhete mas que, a pedido dos meus
para a portaria. Cinco minutos depois apareceu o pais, decidi servir. Ela entendeu.
Comandante da Guarda querendo saber o que eu fazia Um ano depois, tábua de passar armada,
ali. fardamento sobre a cama, o brilho de felicidade nos
–– Você vai fazer o exame? – perguntou. olhos de minha mãe... Mas desta vez o soldado era eu.
–– Vou – respondi. Foram apenas seis meses, duas horas todos os dias.
–– Cadê seu crachá? Mas foi muito importante pra mim!
Foi então que eu reparei que todos os que iam
fazer exame portavam um crachá pendurado no
pescoço. Todos estavam devidamente identificados.
–– Que crachá? – perguntei fingindo não ter
entendido.
–– Pera aí! – disse isso e saiu do galpão.
Fiquei com medo. Sabia que alguma coisa iria
acontecer. Dali a instantes retornou acompanhado
pelo Cabo da Guarda, que foi logo perguntando:
–– Você está esperando o médico. Sua irmãzinha
está passando mal, não é? – imediatamente
confirmei.
Naquele momento só o que eu queria era sair
dali. Esperei que os dois se afastassem, aguardei mais
uns dois minutos e saí do galpão. Quando passei pela
portaria, o Cabo da Guarda me perguntou:
–– E aí, o que o doutor disse?
–– Ele me pediu para dar um remédio pra minha

132 133
Beijar sim, mas chiclete
nunca mais!

Essa é a história de um beijo que na verdade


não aconteceu. Eu havia conhecido uma garota. Já
estávamos juntos há uma semana e nada  de beijos. Ela
morava no subúrbio  e um dia resolvi ir até a casa dela
para buscá-la. Era a primeira vez que eu iria àquele
local. A mãe dela até já me conhecia.
Apesar de estar com o hálito em dia, decidi
comprar um chiclete para garantir que nada sairia
errado e até quem sabe, adocicar nosso beijo, que
dessa vez tinha que acontecer! Só que eu nunca
tive o costume de mascar chiclete e comprei logo
dois de uma vez. ‘São tão pequenos’- pensei.
E assim, quando entrei no ônibus eu estava com a
boca cheia deles. À medida que eu mascava, o chiclete
ia aumentando de tamanho e eu já estava ficando
visivelmente incomodado. Fiquei ansioso para que
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

o ônibus parasse só para eu me livrar da droga do Eu já estava saindo, todo molhado, quando um
chiclete. amigo meu, que é policial, parou uma viatura ao lado
Acontece que o ponto de ônibus ficava bem na do parque. Perguntei   o que ele fazia ali e ele disse
frente da casa da garota e logo que eu me preparava que havia um sujeito “importunando” as criancinhas
para descer a mãe dela, que estava varrendo do parque. Felizmente naquele momento passou
a frente, me avistou e me chamou para entrar. um ônibus e eu entrei sem nem saber ao certo qual
Cumprimentei a mulher e até me esforcei para o itinerário dele. Ainda deu pra ver a menininha
sorrir o sorriso tímido que o espaçoso chiclete me conversando com o amiguinho dela e me apontando.
permitia. Estava me sentindo um retardado total. Beijar sim, mas, chiclete, nunca mais!
Ela me deixou na sala enquanto foi chamar a filha. Eu
fiquei a sós! Era o momento perfeito para eu me livrar
da goma. Imediatamente cacei uma lixeira pela sala,
mas não encontrei nenhuma. Havia ali, entretanto, um
pequeno vitrô, o qual ficava há uns sessenta centímetros
do chão e dava para um parquinho ao lado.  Desesperado,
retirei todo o chiclete da boca e lancei-o através
da fresta, mas, para minha tristeza, a enorme goma
de mascar ficou grudada na parte de fora do vidro.
Aproveitando que a garota ainda não tinha vindo,
contornei a casa e fui ao parquinho desgrudar o
chiclete e colocá-lo numa lixeira apropriada. Porém,
quando cheguei lá já tinha uma menininha espalhando
o chiclete por todo o vidro como fosse um brinquedo.
Pedi licença e fui logo recolhendo o material do vitrô.
A menininha não entendeu nada e saiu chorando.
O parque estava lotado de crianças. Assim que
me livrei do chiclete fui lavar as mãos num tanquinho
cheio de torneiras que havia ali por perto. Eu não sei
se pus força demais ou se a torneira já era muito velha,
mas, o fato é que ela quebrou bem na minha mão e
agora espirrava água, que escorria por todo o parque.

136 137
Poesianálise – Uma
instrospecção auto-poética

Ontem um amigo, também poeta e escritor,


mostrou-me uma poesia a qual ele achou muito bonita.
Era uma poesia de Wladmir Maiakovsky, poeta russo
que viveu entre l893 e 1930. A poesia era de fato
lindíssima e trazia entre outras, a palavra “ressuscita-
me”. Essa obra, segundo o que  meu amigo explicou,
já foi inspiração para uma composição de Djavan
interpretada pela Gal Costa.
Por simples coincidência, recentemente escrevi
uma poesia chamada “ressuscita-me” e comentei
com ele. Ao tentar explicar a poesia (nunca faça
isto!) foi que eu me dei conta do quanto ela é surreal.
Ultimamente tenho vivido uma fase impressionista
e até concordo que o termo seja usado para a
compreensão de algumas de minhas poesias, mas
nunca tive interesse em escrever surrealísticamente,
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

se é que esta palavra existe. A vós, lado patente quero unir-me


Para evitar ser incompreendido vou explicar
exatamente como surgiu minha poesia. A vós, cravos preciosos, quero atar-me
Certo dia, eu estava lendo um livro de literatura
quando encantei-me com o seguinte soneto de Gregório Para ficar unido, atado e firme.
de Matos:
Trata-se de um soneto onde o autor reconhece
A vós correndo vou, braços sagrados suas culpas profanas, sugere o arrependimento e deixa
explícito sua fé. Tudo tendo como plano de fundo a
Nessa cruz sacrossanta descobertos figura de Cristo crucificado.
Decidi então compor uma poesia inspirado por
Que para receber-me estais abertos este mesmo plano de fundo, isto é, o crucifixo. Como
sou um poeta romântico por natureza, imaginei-
E por não castigar-me estais cravados me como que crucificado à própria alma da amada
e transformei em cravos tudo o que nela me atraia.
Em dado momento, lembrei-me que Cristo, já na cruz,
A vós, divinos olhos eclipsados clamou por um pouco de água. Então, na poesia decidi
clamar por um “beijo saciador” numa explícita alusão
De tanto sangue e lágrimas cobertos, à este episódio bíblico.
Também lembrei-me que Cristo crucificado foi
Pois para perdoar-me estais despertos trespassado por uma lança. A lança sugeriu-me setas
que, por sua vez, sugeriu-me cupido. Sei que misturei
E por não condenar-me estais fechados um elemento da mitologia grega ao cristianismo
mas isto é permitido pois, trata-se da  tão propalada
“licença poética”. Por fim conclui que, se esse amor
A vós, pregados pés por não deixar-me fosse correspondido seria a cura perfeita para a
situação, isto é, seria como se houvesse, analogamente,
A vós, sangue vertido para ungir-me uma ressurreição. Nessa altura, eu já ouvia na minha
cabeça a música interpretada pela Gal onde ela dizia
A vós cabeça baixa por chamar-me “ressuscita-me”.  Eu nem sei o resto da música mas,
nesse momento, tinha acabado de encontrar um título.

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

Para concluir, eis aqui a poesia em questão: Do madeiro d’alma sobre a qual

Ressuscita-me! Me crucificaste

Arranca dos meus pés Dá-me enfim seu amor

Os cravos que me puseste Único remédio divino

Para eu ficar ao teu lado Capaz de cessar-me a dor

Arranca dos meus braços Vem, abraça-me,

Os cravos com que moldaste o abraço Cativa-me, ama-me...

Que nunca correspondeste Ressuscita-me!

Mata da minha boca a sede

De beber em teus lábios

O beijo saciador

Tira de vez essa lança

Por cupido desferida

Sobre meu coração

De amor dilacerado

Desfaz ao menos a frieza

142 143
O poder curativo da
macarronada!

Ontem, um de meus aluninhos não parecia bem


de saúde. Dizia estar com dor de cabeça. Perguntei-
lhe se ele estava em condições de assistir à aula e ele
respondeu que sim. Entretanto, ouvi-o dizer à sua mãe
que não iria à aula de Judô naquele dia. Quando o pai
veio buscá-lo, ele ainda reclamava da dor de cabeça.
O pai disse-lhe que ao chegar em casa lhe daria uma
aspirina. Naquele momento, tive uma vontade enorme
de sugerir-lhe que desse ao garoto uma macarronada.
Vou explicar porque:
Quando eu era moleque, o prato que eu mais
gostava era macarronada. Na minha casa, como de
praxe, o dia da macarronada era o domingo. Era
sempre maravilhoso acordar no domingo sabendo que
iríamos saborear esta deliciosa iguaria.
Como toda criança, eu tinha uma vida agitada,
Cláudio Gomes de Almeida

quando não estudava e não brincava, perambulava


pelas ruas vendendo sorvetes em minha pequena
caixa de isopor. Assim, quando havia uma mudança
brusca de estação, meu corpo não resistia e era batata,
eu logo ficava doente! Nestas ocasiões, minha mãe já
sabia o que fazer, mas, antes sempre me consultava
para confirmar se ela deveria recorrer à arma secreta. Fading in, fading out e
Mais que depressa eu a autorizava e me colocava a
posto para receber o “tratamento”. déficits de beleza
Ela então se dirigia à cozinha, sua verdadeira
farmácia de manipulação e, meia hora depois, me
aparecia no quarto com uma deliciosa macarronada
e um bife acebolado. Não importava que hora fosse,
eu estava sempre pronto  para seguir a recomendação
médica. Comia tudo e os efeitos eram imediatos,
naquela noite eu dormia tranquilo e feliz da vida. Tão Certo dia eu estava passando por uma calçada no
satisfeito que qualquer dor de cabeça seria prontamente centro da cidade quando notei vindo em minha direção
ignorada. Minha alimentação diária era bastante uma mulher conduzindo um enorme cachorro. Não
saudável, mas, quando a saúde se via nos limites da conheço de raças, mas sei dizer que ele parecia um
resistência, a arma secreta era evocada. Por isso, ao enorme pastor alemão só que era totalmente branco.
ver meu aluninho naquela situação, cogitei comigo Para que ele não tivesse sua brancura denegrida por
se  deveria ou não indicar-lhe o santo remédio. Para alguma gota do meu sangue, decidi passar bem distante
evitar mal entendido, achei melhor não dizer nada. do animal, inclusive saindo à via, de fato. Embora
hipnotizado pelo porte assustador do cachorro, por um
segundo consegui reparar na mulher que o conduzia.
Notei que não era tão bela.
Este último fato sugeriu-me um paradoxo, pois,
se a mulher fosse uma miss, com os homens babando e
caindo aos seus pés, talvez até se justificasse a companhia
do cão de guarda, mas, não era isso o que se via.
Foi nesse instante que me lembrei dos conceitos de

146
Cláudio Gomes de Almeida

fading in e fading out. Fading in consiste em acrescentar


estímulos. Por exemplo, quando a mulher se maquila,
passa um batom, dá um tapa nos visual...Ela está
acrescentando estímulos à sua beleza para parecer
ainda mais bela. Todos nós temos os nossos déficits de
beleza e recorremos constantemente a este processo
para melhorar nossa aparência. Já o fading out consiste Um osso duro de roer!
em remover estímulos. Como por exemplo, aquela
música que nos final da gravação vai diminuindo de
volume até desaparecer completamente, ou, usando
o exemplo dado para fading in, quando a mulher
remove a maquiagem.
O cão, no caso da mulher, era um estímulo
acrescentado, mas, qual a sua finalidade? Não sendo Completei quarenta e cinco anos, mas não construí
tão bela, seria natural que a moça usasse um estímulo muita coisa na minha vida. Passo um momento difícil:
mais positivo: um sorriso, uma roupa mais atraente, a andropausa. Tenho a impressão que minha vida fez
um decote mais generoso... Entretanto, estando tudo uma curva descendente e só Deus sabe onde vai parar.
isso ausente, o que se via  era aquele cão de aparência Como não estivesse me sentindo bem, comentei com
assustadora. minha mãe que é a pessoa mais próxima de mim:
Ao comentar com um amigo, ele me disse que –– Parece que as pessoas estão se afastando, será
a moça foi na verdade muito inteligente, pois, com o que não sou uma boa companhia?
cachorro monopolizando todas as atenções, ela podia Ela fez um minuto de silêncio e perguntou:
passear tranquila que seus déficits de beleza nem –– Você se lembra da Lucinha?
seriam notados. Eu jamais na minha vida esquecerei a Lucinha.
Trabalhei com ela durante dois anos e ela foi um
modelo de profissional para mim. Ela era responsável
e conhecia seu ofício tão bem que eu a reputava como
sábia. Tinha até medo de decepcioná-la. Eu a achava
perfeita e quase a idolatrava.
–– Claro que sim! Por que? – respondi.
–– Pois é, ela me disse uma vez que você é um

148
Cláudio Gomes de Almeida

“osso duro de roer”.


Tonhonhonhonhóim! Foi como se eu tivesse
recebido uma pancada na cabeça. Minha mãe disse
isso e saiu da sala. Deixou-me sozinho com os meus
pensamentos. O pior que há alguns anos a Lucinha
mudou de cidade e não havia como esclarecer aquela
história. A Casa do Sol Poente, o
Um dia eu nasci para o mundo, cheio de
promessas, cheio de sonhos e quarenta e cinco anos médico artista e o e-mail
depois, descubro que só no que me tornei foi “um
osso duro de roer”. sobre o fim do mundo
É, estou ficando velho, talvez seja a hora de eu
começar a escrever as minhas memórias...

Existe em Jacareí uma casa chamada Casa do Sol


Poente. Quando o sol se põe é para lá que rumam as
pessoas que trazem um eterno conflito. O conflito da
balança e do colesterol alto. Não é à toa que a Casa
do Sol Poente fica a dois quarteirões do Cemitério,
pois, depois dela, ele é o próximo número. A linda
vegetação que separa um do outro, até consegue
esconder dos iniciantes esta relação.
Os que frequentam-na rezam para não cruzarem
com seus médicos pelo caminho e disfarçam o quanto
podem. À noite, todo gato é pardo, todo gordo é são e,
na Casa do Sol Poente, todo gordo é magro. Lá, há os
que gostam de feijoada pesada, mas, a maioria prefere
mesmo  costelada.

150
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

Há alguns meses planejei um jantar para o dia furados e maliciosos, mas, pelo fato da data
do meu aniversário. Iria comemorar com a família na coincidir com a data do meu aniversário comecei a
Casa do Sol Poente e, decidi fazer um check-up antes. ver aquela informação com outros olhos e pensei:
Fiz os exames de sangue e levei para o médico avaliar. ‘Se o mundo acabar mesmo neste dia, o jantar na
Ao ler meus exames, o Dr. Arruda pediu para que eu Casa do Sol Poente será como uma última e merecida
escrevesse num papel os pratos que eu mais gostava. refeição’. Pensando assim, não cancelei meus planos
Mais que depressa escrevi: feijoada e costelada. e continuei minha rotina. Um amigo me informou que
Quando lhe retornei o papel, o médico pôs-se a para o dia do evento foi contratado um grupo de choro
desenhar sobre ele e eu fiquei curioso para ver que formado por profissionais liberais da cidade. Disse
magnífica obra resultaria daquela súbita inspiração. O também que o grupo era muito bom.
Dr. Arruda era de fato um artista. Soube disso desde a –– Maravilha! – exclamei.
primeira vez que o consultei e ele me prescreveu uma Um grupo de choro, apesar do nome, é muito
receita em forma de soneto. mais alegre que um quarteto de cordas. Se o mundo
Ao me mostrar o papel ele disse: fosse acabar de fato, eu não queria que os músicos
–– O seu colesterol está alto! fizessem como aqueles do filme O Titanic. No dia
Notei que sobre a palavra feijoada ele havia do meu aniversário, parei na estrada para abastecer
desenhado uma caveirinha, daquelas que a gente vê quando, vi por acaso, o Dr. Arruda. Rapidamente me
em bandeiras nos filmes de pirata. Sobre a palavra escondi atrás da bomba de gasolina e felizmente ele
costelada, algo ainda mais grave, o doutor havia não me viu.
desenhado uma lápide. No caminho para o restaurante ainda passei
Quando deixei o consultório, as figuras não em dois bairros para pegar uns parentes. Com mais
saiam da minha cabeça. Fiquei triste porque já havia três pessoas o carro completou sua lotação, pois, a
combinado com a “obesada” de comemorar meu obesidade dos passageiros não deixava espaço para
aniversário na Casa do Sol Poente. Foi então que um quinto elemento. Antes mesmo de entrar no
aconteceu algo inusitado. restaurante, já se ouvia o som animado do chorinho.
Ao abrir meus e-mails, havia ali uma mensagem O restaurante estava lotado, parecia que toda a cidade
sobre o fim do mundo. Nela dizia que o vácuo provocado havia recebido o e-mail sobre o fim do mundo. Pois
pela passagem de um cometa destruiria todos os seres não é que, já saboreando a minha deliciosa costelada,
vivos da terra. Ironicamente, a data do fenômeno decidi prestar a atenção nos músicos e descobri entre
coincidiria justamente com a data do meu aniversário. eles o Dr. Arruda. ‘O mundo não acabou, mas a casa
Sei que estes tipos de mensagem são completamente caiu!’ – pensei comigo. Eu não sabia que o Dr. Arruda

152 153
Cláudio Gomes de Almeida

era um exímio flautista. Naquele momento ele estava


tocando “Doce de Côco” e assim que me viu, veio
tocando sua flauta até a minha mesa. Por um instante
tive vontade de esconder as travessas, mas, não deu
tempo. Fiquei tão nervoso que parecia que no lugar
da costela havia uma lápide e já tinha inclusive o meu
nome escrito nela. Quando o doutor chegou, me deu Duas luas no céu!
um tapa nas costas e, entre uma pausa e outra, falou:
–– Feliz Aniversário! – depois, voltou para junto
do grupo.
  Aquela noite foi um sucesso! O mundo não
acabou, mas, foi a última vez que frequentei a Casa do
Sol Poente. Hoje, de vez em quando assisto o Dr. Arruda
pela televisão, é que ele agora faz parte do elenco da Por esses dias, uma amiga me repassou um e-mail
novela das oito. O bom de tudo é que, inspirado pelo alertando-me que hoje, dia 27 de agosto de 2008, haverá
médico artista, estou aprendendo teclado e, de vez em “duas luas no céu”. Conforme o e-mail Marte estará
quando, ainda arrisco uma poesia! tão visível nesta noite que teremos praticamente “duas
luas no céu”. Dizia ainda que, um céu como o que
teremos esta noite, só será possível daqui a duzentos
e oitenta anos, ou seja, praticamente ninguém dos que
estão vivos terá uma nova oportunidade para observar
o fenômeno.
Tenho inspecionado o céu nesses últimos dias e
percebi que as estrelas estão mais cintilantes do que
nunca. É possível ver todas elas! Tenho divulgado o
fenômeno para todos os meus amigos.
Hoje de madrugada, quando levava minha irmã
ao ponto de ônibus, empolgado pela paisagem, cometi
o pecado de apontar para ela as Três Marias. Espero
que não nasça nenhuma verruga no meu dedo. O pior
é que ela estava atrasada e com o olhar fixo na rua,

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Cláudio Gomes de Almeida

para não perder o ônibus. Já eu, atrasava o passo,


encantado com a beleza do espaço. Completamente
tomado por um daqueles meus arroubos poéticos. No
ponto, comentei com os amigos de minha irmã sobre
o fenômeno e eles ficaram intrigados quando lhes falei
das “duas luas no céu”. Pensando bem, isso é algo que
confunde. A primeira imagem que me veio à cabeça O olhar por trás da fresta
quando recebi o e-mail, foram duas luas cheias, uma
próxima à outra, com o mesmo tamanho e volume.
Tão grande e brilhante quanto aquelas que aparecem
nas novelas. Neste ponto até que me senti frustrado,
pois, o que se vê no céu é um simples exemplar de
quarto minguante. Talvez seja por isso que dá para ver
as estrelas tão claramente. José Carlos chegou à Burg Strasse às quinze
Antes de retornar para a casa, um senhor me horas e logo misturou-se a um grupo de turistas que
perguntou: visitava o Castelo dos Romaninsky. Uma vez dentro
–– E os lobisomens? Será que eles não vão se do castelo, afastou-se do grupo e cortou os jardins
confundir? até a divisa do condomínio dos Stratens. Espionando
–– Acho que pode surgir algum com duas cabeças por sobre o muro e escondido entre as ramagens logo
por aí! – respondi. encontrou a casa que procurava.
Eu, como poeta, jamais teria cogitado esta Posicionado a uns vinte metros, imediatamente
pergunta. ‘Lobisomem?’ ‘Quem acredita nisso?’ – reparou na arquitetura misteriosa daquela casa, algo
pensei. Daí, eu voltei para a casa, acreditando que nesta que era até imperceptível para quem a olhasse de
noite estarei totalmente atento, para ver finalmente frente, mas, olhando daquele ângulo, a casa mais
“duas luas no céu”! parecia uma fortaleza. Rente ao solo, havia uma
vidraça e, por uma momento, José Carlos sentiu-se
observado. Por um segundo, um raio de sol atingiu a
vidraça, revelando o contorno exato de uma cabeça.
De repente seu coração encheu-se de esperança.
Ele sabia que algo devia ser feito e, o que quer que fosse,
não podia esperar nem mais um segundo Quando José

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

Carlos saia de dentro das ramagens, dois policiais o caso teve grande repercussão. Todas as pistas foram
aguardavam para interrogá-lo. As câmeras do castelo checadas mas não foi possível descobrir o paradeiro
haviam-no flagrado caminhando desacompanhado da criança.
pelos jardins, o que era proibido. Pelo fato do condomínio ficar ao lado do castelo
Em alemão não tão fluente, José Carlos pediu dos Romaninsky, onde há sempre um grande fluxo de
que o levassem-no até a delegacia para falar com o turistas durante todo o dia, a hipótese mais provável
delegado, seu amigo Hans Winckel. era a de que algum turista tivesse sequestrado a
Winckel, assim que viu o amigo, logo se lembrou menina, entretanto, nada ficou provado.
do “caso da Burg Strasse” acontecido na cidade havia A única pista concreta de que a polícia dispunha
três anos. era um pente encontrado no local. O artefato foi
Para que se entenda o caso, irei relatá-lo checado mas não foram encontradas digitais e a
brevemente: investigação voltou à estaca zero.”
“Em 2003, o Dr. José Carlos ganhou uma bolsa de Curioso, o delegado Winckel perguntou:
estudo para um Pós-Doutorado em Genética Médica –– O que faz aqui, doutor?
na Universidade de Easterbach e, para lá se mudou –– Vim buscar minha filha! Sei onde ela está e
com sua esposa Elisa e sua única filha, Suzana, de preciso de sua ajuda!
apenas cinco anos. –– Como o senhor conseguiu descobrir?
Passados dezoito meses e faltando apenas –– Como sabe, sou cientista e também um pai
seis meses para a defesa de tese, por indicação de desesperado. À partir de alguns fios de cabelo que
seu orientador, acomodou-se no condomínio da estavam no pente encontrado no local eu obtive o
família Straten. Trata-se de um conjunto de doze código genético do sequestrador. Implantando o código
casas localizadas numa área ao lado do Castelo dos genético num óvulo, eu consegui por meios técnicos,
Romaninsky, o principal ponto turístico da cidade. Por obter êxito na reprodução in vitro. Assim que a
ser tranquila, ele pode dedicar-se com mais empenho criança foi concebida eu percebi um detalhe que me
ao trabalho, logrando uma defesa de tese brilhante e, levou direto à conclusão de quem é o sequestrador.
como resultado, obteve a merecida titulação de PhD –– O senhor já viu esse “detalhe” no
em Genética Médica. sequestrador?
Ocorre que, uma semana após o término do –– Uma vez, quando fui apresentado aos
curso, quando já se preparava para retornar ao moradores do condomínio, observei o detalhe em um
Brasil, sua filha Suzana foi sequestrada. Na época deles. Algo que passaria desapercebido a um olhar
o delegado responsável era o Sr. Hans Winckel e o comum, mas, jamais para um geneticista.

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

–– E que “detalhe” é esse? –– É ele!


–– Algo que só vou revelar quando resgatarmos –– Como assim? – perguntou o delegado.
minha filha. –– É este o homem que eu vi espionando pelos
–– Doutor, eu presenciei todo o drama pelo qual o fundos da casa hoje à tarde. Eu o vi pelo circuito de
senhor passou. É por isso que vou confiar no senhor segurança e fui até o vitrô do porão para observá-lo. Vi
e tentar ajudá-lo mais uma vez, só que, para issso, quando os guardas o levaram.
preciso saber o nome do sequestrador. –– Qual é o seu nome
–– É o Sr. Baden! –– Hans Krauss. Sou o mordomo.
A revelação deixou surpreso o delegado. Não –– Muito prazer, eu sou o delegado Winckel e este
era para menos, pois, o Sr. Baden havia sido maior é o Dr. José Carlos. Estamos aqui para falar com o Sr.
construtor de prédios da cidade, era uma pessoa Baden, poderia nos anunciar por favor?
riquíssima e muito respeitada. –– Pois não.
–– Tem certeza, doutor? Passados alguns instantes, o mordomo retornou
–– Nesta hora não responderei como cientista, e os conduziu até a sala, onde o Sr. Baden os
mas, como pai, meu coração me diz que ainda hoje aguardava.
irei abraçar minha filha. –– Bom dia Sr. Baden.
Vendo a aflição do amigo, o delegado Winckel –– Bom dia delegado Winckel. Em que posso ser
decidiu averiguar. Lotou duas viaturas e rumou útil?
para a Burg Strasse. No caminho, teve a impressão –– Preciso de umas informações. Este é o Dr. José
de que algo não se encaixava naquela história e, Carlos, creio que vocês já se conhecem.
em seus pensamentos, ainda supreso pelas recentes –– Ainda não fomos apresentados mas eu conheço
revelações, começou a ver o Sr. Baden de outra forma, sua história. É o pai da menina que foi sequestrada aqui
até perceber que, na ocasião, quando o interrogou, ele no condomínio. O Sr. até já esteve me interrogando
estava meio agitado e falante. A suspeita parecia fazer quando investigava o caso. Lembra-se delegado?
sentido afinal. –– Claro que sim Sr. Baden.
Eram quatro e vinte da tarde quando as viaturas –– Muito prazer, eu sou Sebastian Baden. – disse
chegaram ao condomínio. enquanto estendia a mão.
Ao entrar no condomínio, o delegado foi direto José Carlos o observava atentamente.
para a residência do Sr. Baden. Lá chegando, apertou –– Muito prazer. Eu estive aqui há três anos e fui
a campainha. A pessoa que abriu a porta, ao ver José apresentado a um Sr. Baden, mas, com certeza não era
Carlos teve um susto e exclamou: o senhor.

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

–– Na época eu estava construindo uma represa Assim que desembarcaram na ilha logo avistaram
na Dinamarca e estava alojado na obra. ao lado do imenso farol, uma pequena residência. Na
–– Quando eu estive aqui, alguém que não o frente da casa, uma criança brincava. Era Suzana.
senhor me recebeu e apresentou-se usando seu nome. Acostumados a dar informações a pescadores, a
Disso eu me lembro. dona da casa nem estranhou a aproximação daquelas
–– Impossível. Enquanto eu estive fora a casa pessoas.
ficou fechada. Apenas pedi a minha irmã que abrisse Assim que viu Suzana, José Carlos quase não
a casa de vez em quando para deixar o ar circular. aguentou tanta emoção e, estando próximo, gritou o
Ainda confuso, o Sr. José Carlos pegou um nome da menina. Suzana mais que depressa largou
bloco de papel que trazia no bolso, fez um desenho e seus brinquedos e correu para José Carlos gritando:
entregou-o ao Sr. Baden. Em seguida disse: –– Papai... Papai...
–– A pessoa que me recebeu possuía este O casal foi preso por sequestro de incapaz, e várias
detalhe físico. O senhor conhece alguém com esta outras acusações. Em depoimento o sequestrador disse
característica? que sempre quis ter um filho e que sua esposa havia se
–– Sim, o mordomo de minha irmã, o Sr. Alfred. encantado com a menina. Disse também que, apesar
Há quase três anos ele e sua esposa, que é brasileira, de tratarem-na como uma filha, a menina estava triste
foram trabalhar no Farol da Ilha Freuden. por ficar longe dos pais verdadeiros e que eles já tinha
–– O Sr. sabe onde podemos encontrá-lo? – se arrependido de terem-na sequestrado.
perguntou o delegado. O crime de sequestro de incapaz é uma falta
–– Lá mesmo, na Ilha Freuden. O Sr Alfred é o gravíssima na Alemanha e o casal foi condenado a
responsável pela operação do Farol. Ele e a esposa são trinta anos de prisão.
os únicos moradores da ilha. Quando José Carlos voltou ao Brasil trazendo sua
–– Obrigado Sr. Baden. Não revele a ninguém esse filha, sua esposa os abraçou e voltou a sorrir depois de
nosso encontro. Passar bem. três anos de dor e sofrimento.
E assim todos se despediram. Como já escurecia, Ao chegar no consultório para trabalhar, havia
o delegado achou por bem continuar as investigações uma cliente esperando. Era a Sra. Dirce. Ela estava se
na manhã seguinte. mudando para os Estados Unidos e veio despedir-se
Logo que amanheceu, o delegado, José Carlos do médico. Disse que estava muito feliz e agradecida o
e quatro policiais, todos disfarçados de pescadores, Dr. José Carlos por ele ter-lhe dado seu maior tesouro:
alugaram um barco de pesca e rumaram para a Ilha o pequeno Hammad.
Freuden. O médico despediu-se e, num gesto carinhoso,

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Cláudio Gomes de Almeida

beijou as mãozinhas da criança. Depois ficou vendo-a


afastar-se enquanto o pequeno Hammad pareceu dar
um último aceno, movimentando com vivacidade
cada um dos seus seis dedinhos.

Nem tudo é importante


na vida!

Pode parecer estranha esta observação, mas,


aprendi que nem tudo é importante na vida e há
momentos em que ela deve ser simplesmente vivida.
A reflexão e o questionamento são ferramentas
fundamentais para quem deseja crescer aproveitando
ao máximo a vida e tudo o que ela nos proporciona,
mas, estas mesmas ferramentas, quando usadas com
exagero, fazem com que nosso desenvolvimento
pessoal emperre e nos submete a construtos teóricos
condicionadores.
Para alguns, um momento feliz é como fosse o
melhor momento de sua vida, mas, do mesmo modo,
o menor revés o faz sentir-se à beira de um abismo.
Na minha profissão, verifico isso em alguns
alunos. Como exemplo, farei uma analogia com a
palavra “bolo”. Há quem queira saber por quê o “b” foi

164
Cláudio Gomes de Almeida

somado ao “a” e às demais letras para formarem esta


palavra. E ainda,  por quê este vocábulo foi escolhido
para ser associado a esta deliciosa iguaria.
Pode parecer um exagero, mas, ao ensinar música,
às vezes me deparo com situações semelhantes e,
nessas horas, revestido de toda responsabilidade e
respeito intelectual que o título de professor confere Nota de falecimento de
sinto a necessidade de esclarecer: isto é redundante!
Nessas ocasiões o aluno desconfia do seu saber. E não um computador
é para menos, pois uma afirmação como esta pode ser
uma desculpa para sua ignorância do assunto, o que
não é totalmente errado, mas, o que ele não sabe é que
você ignora porque é redundante e não o inverso.
Seguindo o exemplo dado anteriormente, um
professor de culinária pode   ignorar completamente
a etimologia da palavra “bolo”, mas, seus alunos Acaba de falecer um computador. Estima-se
seguramente aprenderão a fazer bolos deliciosos. que possuía oito anos de existência. Fez diversos
Mesmo sem saber como fazer um bolo, minha salivação implantes de bateria e transplantes de teclado, monitor
ao escrever este texto dá testemunho do quanto sou e acessórios.
letrado no assunto, ou pelo menos naquilo que ele me Já se submeteu a diversos tratamentos para
interessa. retirada de vírus, porém, ultimamente tem sido
Em resumo, o que quero dizer com este texto é vítima de um vírus muito potente. No princípio não
que algumas vezes é importante questionar a vida mas reconhecia o teclado, pensou-se que fosse um fio solto
que nem tudo nela precisa ter uma explicação e que ou algo assim. Depois não reconheceu mais o mouse
se algo que você não domina, não estiver lhe fazendo e, na tarde de hoje seu estado se agravou passando
falta e não lhe for importante, talvez destrinchá-lo, a não reconhecer   sequer o monitor, o qual, embora
fosse simplesmente redundante! esteja com o led aceso, não dá nenhum outro sinal
de vida (como se estivesse em coma eletrônico).
Depois de decretada falência generalizada, optamos
pela eutanásia e o computador foi desligado a vinte
minutos atrás.

166
Cláudio Gomes de Almeida

Eu e os outros usuários estamos muito tristes,


mesmo porque não dispomos de condições imediatas
para substituí-lo. Foi uma perda lamentável. Desde já
agradecemos a atenção daqueles que sensibilizarem e
deixamos aqui nosso e-mail para receber as doações,
isto é, cumprimentos.
Amanhã o carro da casa de sucatas  virá buscá-lo. A sacola na pocheti do
A qualquer momento, voltaremos com novas notícias,
direto da máquina de datilografar, a qual esta nos mala da bolsa de valores
prestando todo apoio nesse momento difícil. Um
grande abraço a todos. (microconto conciso)

Eu vendia goiaba na frente da bolsa de valores


quando um mala retirou da pocheti uma sacola e
pediu-me que a enchesse. Eu enchi, mas, a sacola
rasgou-se e as goiabas foram pro saco.

168
O tráfico de fofocas na
Vila Veneza

Às cinco horas da manhã retorno para a casa ainda


sonolento. Acabei de levar minha irmã até o ponto de
ônibus. Ela trabalha numa multinacional e há mais de
vinte anos procede a mesma rotina. Ao passar pelo
quarto de minha mãe, ouço sua voz interrogativa:
–– E aí, tudo bem?
–– Tudo tranquilo! – respondo.
–– E a Lucilê,  passou?
Pode parecer estranho, mas, esta pergunta já
se tornou quase que uma senha entre nós e, para
compreendê-la, é preciso saber quem é Lucilê. Dona
Lucilena é daquelas pessoas que conversa com todo
mundo e vive à cata de informações. Não há nada
sobre os acontecimentos do bairro que ela não saiba
detalhadamente e, muitas vezes, em primeira mão.
No princípio, na praça onde mora, haviam
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

quatro  fofoqueiras independentes, mas, com o tempo Assim, como sempre ao retornar de minha missão
o bairro cresceu e elas se agruparam duas a duas, matinal, escuto minha mãe perguntar :
formando duas facções. –– E a Lucilê, passou?
Com muito esforço, não demorou muito Lucilê –– Hoje não. Deve estar organizando o repertório
se tornou a líder do tráfico de fofocas no bairro e seu para amanhã. – respondo.
trabalho começa logo pela manhã. Quase sempre após Entretanto, mal termino a frase e escuto a voz de
deixar minha irmã no ponto de ônibus encontro com Lucilê, vinda da rua. Do diálogo é possível identificar
Lucilê pelo caminho. Ela e sua cúmplice iniciam seu as palavras “carro” e “freio de mão”. Depois as vozes
dia com uma boa caminhada matinal. vão sumindo até se perderem. Dona Lucilena  só estava
Moro num morro e, em dias conturbados, um pouco atrasada, eu e minha mãe concluímos.
já a uns cinquenta metros,   é possível ouvir o –– Agora sim está tudo normal no bairro! –
“conversê” animado das duas senhoras. Ao nos exclamo em meio a um gostoso e sonolento bocejo.
cruzarmos trocamos um aceno e um leve sorriso,
mas, o diálogo entre as damas jamais é interrompido.
Quando o assunto envolve a minha família, há um
microsilêncio e um olhar meio desconfiado, mas, o
diálogo é logo retomado e elas seguem sua rotina.
Geralmente as senhoras caminham às segundas, terças
e quintas, mas, ultimamente o bairro tem tido muita
agitação e isso fez com que elas caminhassem todos os
dias da semana.
Hoje é segunda-feira e excepcionalmente Lucilê
não passou. Ontem, ao parar na frente de casa,  meu
irmão não engatou bem o freio de mão e como
resultado, o carro parou uns cinquenta metros abaixo,
amparado por uma árvore. Felizmente ninguém se
feriu e os danos ao carro foram mínimos. Embora não
tenha havido caminhada, tenho certeza que Dona
Lucilena já tem os dados sobre o acontecimento e
que o assunto já deve ter sido escalado para integrar a
pauta de amanhã.

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Pingados Filosóficos

Meu nome é José Carlos e sou conhecido como


o “Zeca da Padaria”. Trabalho como balconista na
Padaria Central, que fica a trinta metros de uma Lan
House. Aqui no serviço, o pingadinho custa cinquenta
centavos e a gente sempre capricha enchendo três
quartos do copo. O nosso pão com manteiga também
custa cinquenta centavos e é um pouco maior que o
pão francês comum, pois, é feito especialmente para
nossos lanches. O pessoal da Lan House costuma
frequentar a casa e, de todos, três me chamaram muito
a atenção pelo tanto de bobagens que falavam. Como,
além de balconista, quis o destino que eu também
fosse escritor, resolvi transcrever aqui alguns desses
diálogos absurdos.
Nesta tarde de sábado, o clima estava agradável
quando seu Décio adentrou nosso recinto. Sentou-se
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

à beira do balcão e pediu: –– Ué? E por que você ficou irritado?


–– Me vê um pingadinho e um pão com manteiga –– É que eu tava atrasado e o Zé desligava a
“sem ser na chapa”. maquininha toda vez que ia fazer um comentário.
Ele tinha que dizer “sem ser na chapa”, pois, –– Aí foi mal!
não há na nossa língua um vocábulo que expresse tal –– Mal mesmo foi o comentário do Zé. Imaginem
conteúdo. Talvez pudesse dizer “deschapado”, mas, que ele começou a insinuar que os EUA poderiam
além de não existir esta palavra em nosso vocabulário, invadir o Brasil. O Zé parou no tempo. Se o Bush
soaria meio pedante. viesse ao Brasil, ele e o Lula com certeza iriam tomar
Seu Beto chegou logo depois e pediu: uma caipirinha e rirem a beça do demagogismo um
–– Um pão na chapa e um pingado! do outro.
Apesar de econômico nas palavras ele não –– Se você for se estressar com o disparate dos
economiza na hora de gastar, haja visto que, o pingado outros, Décio, você logo vai ter um enfarte! – observou
custa oitenta centavos e é, portanto, um pouco mais Seu Beto.
caro. –– O que me irritou não foi o disparate do Zé
O terceiro a chegar foi o “Zé da Cida”. Isso mesmo, Barbeiro, mas sim o barulho da maquininha sendo
era assim que os outros dois clientes o chamaram. desligada toda vez que ele falava e eu quase perdendo
–– Ô Zé da Cida, pensei que  você não vinha hoje. a hora do compromisso.
Senta aí! –– Entendo. E eu, que dobrei a esquina da
Apesar de sexagenário, o seu Zé era o mais jovem rodoviária e vi um homem caído perto da lanchonete.
dos três e assim que se sentou, foi logo pedindo: Era um “pingaiada” e, quando eu cheguei mais perto
–– Um pingadinho e dois pães com manteiga, vi que era um antigo amigão meu. Ele tava dormindo
“sem ser na chapa”! na calçada. Num primeiro impulso eu até quis acordá-
–– É pra já! – respondi. lo, mas, depois pensei que se o bêbado fosse eu e um
Depois de servidos, um deles, o Seu Décio, grande ex-amigo me acordasse, eu me sentiria no
falou: mínimo envergonhado.
–– Hoje passei no Zé pra cortar cabelo e fiquei –– Seja realista! Se você fosse daqueles bem
nervoso à toa. pinguços mesmo, você iria é pedir dinheiro ao seu
–– Por quê? – perguntou Seu Zé. amigo para beber mais um trago.
–– É que o Zé Barbeiro leu no jornal que o –– Vocês repararam como a cidade está crescendo?
presidente Lula pediu num discurso para o Bush não – questionou Seu Décio.
atrapalhar  o crescimento da nossa economia. –– Tá mesmo!

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

–– Isso é verdade! anos que ela mora no Brasil, mas não deixa ninguém se
–– Eu comecei a perceber isso quando notei que esquecer dos dez anos que viveu na França. A maioria
a cada cinquenta metros tem um cabeleireiro e a dos textos dela é disso que trata, dá até preguiça de
cada cem metros  há uma igreja evangélica ou umas ler. – respondi.
daquelas seitas que aparecem. –– Mas você não acha que ela tem seu valor?
–– É mesmo, também já notei isso! –– Sem dúvida. Uma vez li uma poesia dela e
–– É, mas, agora nossa cidade cresceu de verdade, achei lindíssima. Só aquela poesia bastou para que
basta olhar o tanto de loja de móveis usados que ela me cativasse. Às vezes eu escrevo poesias de amor
surgem a cada dia. Todo quarteirão tem duas ou três e até acho que exagero no tema, mas, em relação à
delas. saudade que ela sente dos tempos antigos, na França,
–– Por falar em móveis usados, você num tá dá até pena dela!
interessado em comprar um guarda-roupa?... –– O pior é que ela pode até voltar para a França,
mas, o tempo, este, só caminha para frente! – comentou
Seu Beto.
2 A conversa seguia animada quando meu patrão
se aproximou e eu encerrei o assunto, mas, fiquei por
Eram dezesseis horas quando Seu Décio e Seu perto lavando umas xícaras. Foi quando seu Zé da
Beto entraram na padaria para tomar o pingado Cida chegou e eu prontamente o servi.
cotidiano. Nem precisaram pedir, pois, como eu já sei –– Oi pessoal, vocês viram que moda mais
do gosto de cada um, eu fui logo me encarregando de maluca?
servi-los. –– Do que você esta falando? – questionou Seu
–– Ô Zeca, você escreve né? – me perguntou Seu Beto.
Décio. –– Daquele rapaz ali, com a cueca aparecendo; no
–– Umas bobeirinhas. – respondi. começo eu achei uma afronta, mas depois vi que era
–– Você conhece a TherÉse? moda e aí me contive.
–– Conheço, ela escreve no jornal “O Sapeca”. –– E como devemos chamar essa moda, a moda
–– Pois é, ela vai dar uma palestra no Clube da da cueca aparecendo ou a moda da calça na metade
Esquina hoje à noite, por que você não vai assistir? da bunda? – questionou seu Décio.
–– Olha Seu Décio, eu não sou muito chegado ao –– Isso aí é piração da juventude. Você se lembra
estilo dela. Ela só sabe falar de saudade e do tempo que daquelas calças “boca sino”, do cabelo “black
ainda morava na França, onde nasceu. Faz quarenta power”, dos sapatos com saltos que mais pareciam

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tamancos...? Pois é, essa aí é mais uma maluquice. O a cara e aí, eu parei.


pior é que eles usam umas cuecas de cores chamativas –– A bebida é mesmo um problema por estas
e escandalosas. bandas. – comentou Seu Décio – Acho que é por causa
–– E se fosse a mulherada mostrando metade da do candomblé! – completou.
calcinha, ein? – perguntou seu Zé da Cida. –– Como assim? – Seu Mauro quis saber.
–– Minha libido anda tão fraca que eu não vou nem –– É que antigamente vinha gente de toda a região
pensar nisso pra não me decepcionar. – afirmou  Seu para se reunir ali no cruzeiro, as pessoas dançavam e
Décio. formavam muitas rodas no alto do morro. A cidade
–– Olha quem ta chegando! era cheia de terreiros e quase todo dias era possível
–– O Mauro Pianista! encontrar bebidas e velas pelas encruzilhadas. Como
–– Ele mesmo! Vou chamá-lo pra tomar um vocês sabem, bebida de graça faz a festa de qualquer
pingado com a gente. Ô Mauro! bêbado.
–– Olá minha gente! – cumprimentou o pianista. –– Isso mesmo! – concordou Seu Zé da Cida, e
–– O que você conta de novo? prosseguiu – E não é que ontem eu vinha vindo ali
–– Sem muitas novidades. Agora estou voltando por detrás da escola quando vi na encruzilhada, uma
a lecionar na cidade, mas, ainda estou ajeitando meu garrafa de Whisky, um copo e umas velas. O que me
estúdio. chamou a atenção foi a garrafa de Whisky, deu pra ver
–– Você continua compondo? – perguntou Seu Zé que era macumba de gente cheia da grana.
da Cida. –– Com certeza a garrafa não deve ter durado
–– Xií! Faz tempo que eu não componho. O meu muito.
“Álbum para a Juventude” ainda está na gaveta. –– Pois não é! Eu vi a garrafa quando saí para
Compositor erudito brasileiro é assim, você tem um o trabalho  e na volta para o almoço, ao passar pelo
trabalho enorme para fazer as peças, depois tem que lugar, vi que a garrafa estava totalmente vazia. Quem
pagar para editar, pagar para contratar os músicos que bebeu nem precisou se preocupar em arranjar um
irão executá-las e ainda tem que se submeter à critica copo, tava tudo lá.
de pessoas que nunca compuseram nada, mas que –– É besteira deixar copo. Esse pessoal gosta mesmo
gostam de fazer suas críticas olhando sob o escopo de é de beber no gargalo, e bebem sem cerimônia.
compositores como Mozart e Bach. –– Dizem que a bebida é para o santo, mas, qual
–– Você num tava trabalhando com um grupo de será o santo dos bêbados?
MPB? –– Eu já pensei nisso. – comentou seu Beto – Uma
–– Até trabalhei, mas, o guitarrista vivia enchendo vez, analisando o quadro da Santa Ceia, vi que havia

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

mais garrafas de vinho perto de Judas. Acho que ele só emprego pra todos indiscriminadamente. Há alguns
traiu Jesus porque estava bêbado. anos vi uma pesquisa na qual dizia que a cada mil
–– É mesmo, em bêbado não dá pra confiar! crianças que entram no ensino básico, apenas uma se
matricula no ensino superior. É muita gente ficando
de fora pra eu afirmar que houve discriminação, isto é,
3 eu teria de dizer que a cada mil crianças, novecentos e
noventa e nove são discriminadas.
Seu Beto e seu Mauro Pianista chegaram mais –– O sistema de cotas é bom, pois,   pelo menos
cedo à padaria neste sábado, porém, aguardaram que dá pra reparar um pouco da dívida da escravidão para
seu Décio e seu Zé da Cida chegassem para  pedir o com os negros. – afirmou seu Zé da Cida.
pingado deles. –– Mas aí eu não concordo – comentou seu
Ao chegar, seu Décio foi logo dizendo: Mauro  e continuou – os romanos também escravizaram
–– Olá pessoal, quase que eu não venho hoje! os gregos por centenas de anos. Cinco anos antes de
–– Por que Décio? – questionou seu Beto. Cristo nascer, cinco mil deles foram crucificados na
–– Porque eu fui fazer a matrícula da minha neta via de acesso a Roma. Apesar dessa injustiça absurda
na faculdade. os gregos nunca foram indenizados. Recentemente,
–– O qual delas? na Alemanha de Hitler, houve discriminação racial
–– A Diana. contra os  judeus, mas, que eu saiba, nenhum sistema
–– Aquela mais clarinha? de cotas para judeus foi implantado na Alemanha. O
–– Ela mesma! Ela puxou a família do pai dela. que precisamos é de oportunidade e melhor qualidade
Apesar de clarinha, ela se declarou negra e entrou de vida. Já ajudaria se o governo resolvesse os nossos
pelo sistema de cotas, o que não me agradou muito. problemas mais urgentes na saúde e no saneamento
–– Por que, Décio? básico.
–– É que ela é muito inteligente, mas, –– Seja como for, daqui a uma semana sua neta
fazendo   assim ela nunca vai saber se entraria se estará tão adaptada à vida acadêmica que nem mais
dependesse só da capacidade dela. estará pensando nisso. – comentou seu Zé da Cida.
–– Ué, Décio? Você é negro e não é a favor do –– Só que eu acho que as aulas vão demorar
sistema de cotas? um pouco pra começar. É que os alunos invadiram
–– Ué digo eu. Então porque eu sou negro eu sou o prédio da reitoria e só Deus sabe quando as aulas
obrigado a ser a favor do sistema de cotas?   Eu sou voltarão ao normal.
a favor de um ensino melhor nas escolas, de mais –– Isso  é que eu acho  errado. Ao invés dos alunos

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

se preocuparem em estudar e lutar pela melhoria o funcionário te atende mal porque acha que está
do ensino deles de uma forma mais organizada e ganhando pouco e você, além de ser destratado, o
inteligente, eles ficam invadido prédios públicos e defende perante o dono da loja sugerindo que ele dê
depredando como fazem alguns grupos da sociedade. o pretenso aumento. Tem muito professor bom que
Eu li as propostas deles, são todas evasivas e algumas batalha e se qualifica profissionalmente, mas também
até impraticáveis. Entre as propostas deles, está a há os que não estão nem aí. Geralmente exercem
saída do reitor. Todos os que já passaram por uma outras atividades e lecionam mais por vaidade e
universidade sabe que elas possuem um conselho e que pelos benefícios que por vocação. Se os alunos se
necessitam fazer muitas reuniões e atas, discutirem e manifestarem pela melhoria da qualidade do ensino
documentarem para  que alguma atitude seja tomada. isto fará com que os administradores busquem
A reitoria pode ser invadida quantas vezes for, mas, outras formas para que os melhores professores
se não usarem o caminho legal e formal do meio sejam devidamente recompensados além de oferecer
acadêmico, o reitor só sairá se quiser. Enquanto isso treinamento e ferramentas para os professores que
só quem perde é os alunos, que ficam sem aulas e com quiserem evoluir mas não dispuserem de meios.
matérias defasadas. –– Acho que está na hora do Brasil gerenciar a
–– Há sempre muita política por trás, ontem na educação como uma grande empresa, buscando uma
reportagem que assisti sobre isso na televisão, houve estruturação eficaz, qualidade e desenvolvimento. –
menção do nome de dois partidos políticos. Ouvi a comentou seu Zé da Cida.
repórter dizer que os alunos entrariam em greve. –– Por falar em educação, ta na hora da minha aula
Achei um absurdo alunos de escola pública entrarem de yoga! Tchau pessoal. – despediu-se seu Décio.
em greve.
–– Absurdo é aluno ficar do lado dos professores
na greve da categoria deles. Imaginem, o estado paga 4
alguém para ensinar   uma pessoa e essa pessoa se
recusa a aprender porque acha que quem o ensina Nesta terça-feira seu Zé da Cida estava faminto
ganha mal. Ora, numa greve de professores, os e pediu logo dois pães com manteiga, um na chapa e
alunos deveriam é lutar para que as aulas a que tem outro “sem ser na chapa”. Disse que esteve em jejum
direito fossem normalizadas o mais rapidamente. Os de doze horas e que acabara de fazer um exame de
professores   já possuem o sindicato deles, mas e os sangue.
alunos? Seu Beto perguntou se ele fizera só exame de
–– É como ir comprar uma roupa numa loja, daí sangue e ele revelou que fizera também o exame de

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urina e o de fezes. Daí, seu Beto  relembrou a última –– Qualquer dia eu vou lá almoçar pra te ouvir,
vez que fez os referidos exames: só que eu vou levar um bife escondido porque sei
- Na época, o laboratório não estava aberto e eu que lá é vegetariano e eu me julgo descendente do
fiquei numa fila com umas oito pessoas. Todos estavam tiranossauro rex na escala evolutiva. Pelo menos no
em posse do material que haviam coletado e traziam que tange a ser carnívoro.
bem embrulhados um frasco e uma latinha. Logo –– Lá tem coroas bonitas? – perguntou seu Décio.
que cheguei, senti um cheiro forte no ar, parecia que –– Se tem! Até eu ando meio balançado
alguém havia defecado no local. Naquela hora, pensei ultimamente.
comigo, que alguém estaria com a latinha aberta, mas –– Como assim?
não disse nada para não magoar ninguém. Percebi –– Lá eu toco virado para a parede e só dá pra ver
que todo mundo estava meio nauseado, mas ninguém o rosto das pessoas quando elas saem e ainda assim,
falava nada, embora checassem  a todo momento suas bem rapidinho. Por esses dias, quando eu olhei pra
latinhas. porta, uma coroa que eu nunca havia reparado estava
–– Fala logo o que aconteceu Beto que esta história saindo e me fitou bem nos olhos. Seu olhar parecia
já ta me dando nojo. – pediu seu Zé da Cida. dizer “eu quero você” e, por um momento eu desejei
–– Pois é, depois de quinze minutos nessa a mesma coisa. Foi estranho, mas acho que me
situação, a recepcionista chegou e pediu que cada um apaixonei. Ela é morena e tem os cabelos ondulados.
checasse a sola do sapato. Imagine que um cara havia Então reparei que ela geralmente chega no final do
pisado no que não devia e ainda disse  que tava com horário do almoço. Aí, sempre que eu   percebo que
vergonha porque pensou que o cheiro viesse de sua ela está presente, começo a tocar músicas românticas,
latinha. uma atrás da outra. Agora é assim, quando vejo pela
–– Que sonso! tampa do piano, alguém com os cabelos encaracolados,
–– Pois não é! vou logo tocando nosso tema.
Eu esperei que os dois terminassem o assunto para –– Opa! Tem até tema? Que música que é?
então servi-los. O pão na chapa ficou bem torradinho, –– É aquela do José Augusto, “Aguenta coração”.
mas graças a Deus não passou do ponto. Foi aí que seu –– Não dava pra você arranjar um tema mais
Décio e seu Mauro Pianista chegaram. atual?
–– Mauro, onde você está tocando agora? – –– Até dava, mas, eu gosto dessa música e, além
perguntou seu Beto. do mais, pelo adiantado da minha idade e da dela,
–– Lá no restaurante do Gustavo. To fazendo com tanta emoção, só peço a Deus pra não ter um
“Piano-bar” do meio dia às duas da tarde. enfarte no meio do caminho!

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5 –– Já eu quero ficar com minha família até o


fim.  Acho que isso é próprio dos humanos, na hora
Hoje seu Décio estava meio sorumbático. Pediu fatídica, a gente se junta para que o ciclo se feche. E
um pingado e foi logo informando: você Mauro?
–– O Pereira morreu. –– Eu era muito jovem quando optei pela
–– O Pereira  Sapateiro? – quis saber seu Beto. música. Percebi então que muitos dos mestres que
–– Ele mesmo. Fazia cinco anos que ele se tratava eu mais admirava, Mozart, Chopin, Mendelssohn, os
de um câncer e ontem de manhã Deus o escalou. românticos principalmente, haviam falecido antes
–– E a família? dos quarenta anos. E assim achei que não fosse durar
–– Estão conformados, pois, ele agora não está muito. Depois percebi que as coisas não eram tão
mais sofrendo. A família estava preparada, afinal, dramáticas como eu supunha, mas ainda assim, posso
foram cinco anos de expectativa. dizer que a quase cinquenta anos estou preparado
–– Sabe, quando eu era moleque, no feriado eu via para ir a hora que Deus me chamar.
todos os meus amigos viajando e ficava olhando essas –– Mesmo agora que seu coração foi flechado por
montanhas, imaginando que eu algum dia poderia ir uma morena? – perguntou seu Décio.
além delas. Até me sentia abandonado. Hoje, nessa –– Por falar na morena, eu não sei o que está
minha idade, tenho uma sensação  parecida, mas, acontecendo comigo. Evito olhar pra gata, parece
dessa vez sei que também irei viajar. Minha passagem que eu tenho medo de me envolver. Acho que estou
está comprada, só falta carimbar o dia. muito acostumado a viver sozinho. Sabe, quando
–– Mas essa viagem pode esperar. Você tem muito eu fico doente ou melancólico, eu não falo nem
que viver ainda. pra minha família, imagine agora eu ter que dividir
–– Não adianta, quem convoca é Deus. É ele quem minhas intimidades com a intimidade de alguém cuja
escala o voa e a tripulação, por isso, é besteira ficar existência eu desconhecia até recentemente.
pensando nisso. – comentou seu Zé da Cida. –– Mauro o amor é assim, você precisa dar uns
–– Eu só não quero dar trabalho. Queria ser como beijos e uns amassos para saber que isso faz bem pra
os elefantes, quando eles ficam velhos, eles se apartam saúde. Depois da primeira semana de beijos e amassos
da manada e caminham sozinhos pelas savanas você já fica viciado. Além disso, o que você chama de
esperando que a morte os alcance. Ou ser assim como intimidade só o é pra você, isso existe como prática
uma enorme geleira que depois de muitas estações, desde que a humanidade foi formada.
se desprende do continente, para ir esvaecendo-se –– É isso mesmo! – completou seu Zé da Cida
lentamente nas águas do oceano. – Existe aquele ditado: “E o pequeno homem nasce,

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cresce, fica bobo e casa”. Dá pra ver que essa morena meio quilo e que agora está vindo em embalagem de
já deixou você meio abobado. Sua solteirisse não dura quatrocentas gramas, só que o preço caiu apenas dez
nem mais um ano. centavos. Alguém deve estar pensando que a gente é
–– Talvez vocês tenham razão. Eu estou mesmo bobo.
meio aéreo. Ontem a gata me olhou novamente nos –– E os impostos então? Outro dia fui fazer um
olhos e, quando eu saí do restaurante demorei vinte cálculo, não me lembro se da conta de telefone ou de
minutos pra chegar em casa, só pensando nela. energia elétrica. Vi que a gente para vinte e cinco por
Geralmente eu não demoro nem dez minutos. cento só num imposto. O pior é que eu percebi que
–– Xí! Esta história está só começando! eles cobram imposto sobre imposto, discaradamente.
–– Ô Mauro, será que a demora pra chegar na sua –– E esse negócio de internet? – perguntou seu
casa não foi por causa do reumatismo? – ironizou seu Décio e continuou – Meu neto só usa em fins de semana
Beto. que é pra poder pagar menos, mas a linha vive caindo
e cada vez que cai é cobrado como nova ligação. Pra
mim aí tem truta.
6 –– Você tem razão Décio. O provedor da minha
filha é gratuito mas a conexão vive caindo. Que
Neste sábado, seu Zé da Cida assim que chegou vantagem Maria leva?
me instruiu: –– E o celular? Você compra créditos, não usa que
–– Zeca, separa oito pãezinhos para eu levar. É é pra economizar e quando vai usar, descobre que já
pro café de amanhã. perderam a validade. Se você já pagou, os créditos
–– Porque você não deixa pra comprar amanhã? são seus. Cancelar os créditos que você já pagou é
Pão fresquinho é mais gostoso! – exclamou seu Beto. o mesmo que confiscá-los, do contrario eles teriam
–– É que a padaria lá perto de casa está vendendo que devolver o seu dinheiro. Algo está errado. Quem
uns pães que mais parece uma casca. Parece que só tem usa os créditos rapidinho não paga menos por isso.
ar dentro. Duvido que algum deles tenha cinquenta Créditos de celular não deveriam ter validade!
gramas como deveria. Nem aqui, nem na China. –– Zeca, me vê mais um pingadinho. – pediu seu
–– Eles fazem o que quer e ninguém fiscaliza. – Mauro Pianista e continuou – Vocês tem razão, esses
comentou seu Décio. dias eu comprei uma fonte pro meu teclado. Aqui na
–– Estou cansado de comprar enlatado e na hora cidade só tem uma loja que vende. Um dia desses fui
de abrir constatar que está faltando um quinto do tocar num lugar e pluguei a fonte na tomada com a
conteúdo. Tem coisa que eu pagava dois reais por voltagem certa. Dois minutos depois a fonte estourou.

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Quando abri a fonte, vi que o capacitor estava soldada o da educação e o do trabalho. Aliás, eu acho que o
no próprio transformador e tinha um monte de fios ministério do trabalho deveria se chamar ministério
desencapados dentro. Em resumo, a fonte era uma do emprego, porque é isso que o povão quer e precisa
bomba e o balanço da viagem se encarregou de armá- mesmo.
la. No dia seguinte eu precisava dar aula e tive que –– Acho bom a gente parar por aqui senão, daqui a
comprar uma fonte da mesma na mesma e única loja pouco nós vamos estar reclamando até do pingadinho!
do ramo na cidade. – comentou seu Zé da Cida.
–– Essa fonte era Chinesa?
–– Que nada! Era nacional mesmo. Hoje em dia
os chineses estão fazendo produtos de qualidade. 7
Aliás é nisso que as nossas indústrias deveriam
investir. Algumas até investiram em maquinários Depois de dois dias em comparecer ao encontro
e conseguiram uma enorme redução nos custos só com os amigos, seu Mauro Pianista resolveu marcar
que não repassaram essas reduções para o preço do presença, barba feita, roupa elegante... Seu Mauro
produto. Enquanto não tinha concorrência você nem parecia outra pessoa. Logo que entrou já foi pedindo:
percebia, mas, agora que você encontra um similar –– Zeca, me vê um pingadinho e um pão “sem ser
chinês cinco vezes mais barato, você começa a se na chapa”.
questionar. –– É pra já. – respondi.
–– É que nem esse negócio de CD. Sou contra a –– E aí Mauro, toda essa elegância é por causa da
pirataria, mas também não posso ser conivente com o morena? – perguntou seu Beto.
preço absurdo que cobram por um CD. Sei que na Zona –– Claro! Agora tenho que andar nos trinks,.. Vai
Franca de Manaus a matéria prima para a confecção que eu a encontre por aí!
do CD deve sair ao custo de menos de dois reais para –– Afinal, você já se achegou na coroa?
o produtor. Se o CD custasse seis reais, o público iria –– Foi ontem no restaurante. Eu estava tocando
comprá-los de baciada e todo mundo lucraria muito quando um amigo pianista pediu para tocar uma
mais. música. O primeiro movimento da “Sonata ao Luar”
–– Esses dias eu tive conferindo a quantidade de de Beethoven. Então eu fui me sentar numa mesa
ministérios que há nos governo. Sabe, eu me pergunto enquanto ele tocava e fiquei escutando. Não é que,
pra quê tantos ministérios? Tirando os da Justiça e o justo nessa hora, a morena chegou e pediu para sentar
da Economia que eu reconheço como importantes pra na minha mesa. Daí, conversa vem e conversa vai eu
governar, os que acho fundamentais são os da saúde, fiquei sabendo que ela é viúva e tem dois filhos que

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

também já se casaram. Eu falei que gostei do jeito dela quanto antes.


e até marcamos um encontro. –– A minha técnica é diferente. – confessou seu
–– Você tirou a sorte grande Mauro – disse seu Décio. – Há algumas décadas atrás eu e minha esposa
Décio e continuou – na nossa idade é meio difícil sempre conversávamos antes de dormir e tínhamos
encontrar alguém em outro lugar que não seja o Baile relação quase sempre no mesmo horário. Nos dias
da Saudade ou alguma excursão de aposentados. em que ninguém tava afim a conversa se prolongava.
–– E para onde vocês acham que nós marcamos o Quando um passava do horário conversando, o outro
encontro? O baile de hoje à noite no clube da saudade já sabia que não era o dia. Há uns dez anos a gente
já está no papo! Quanto à excursão, to começando a conversava tanto que até faltava assunto. Hoje a gente
gostar da ideia. conversa durante o dia e a noite a gente só quer saber
–– Se você for levá-la em casa depois do baile não de dormir, mas, confesso que quando chega naquele
esqueça da camisinha. – preveniu seu Beto. horário, dá uma saudade!
–– Mais importante que levar camisinha é levar –– Calma gente, vocês estão colocando o carro na
uns viagras por precaução. Se o “boneco” não tiver frente dos bois. Se eu e ela conseguirmos dançar alguma
com disposição, não vai adiantar nada. – observou música inteira, sem se cansar já ta bão demais!
seu Décio. –– Zeca, o Ciro Poeta vai ser homenageado hoje à
–– Leva um pouco de água benta pro caso do noite na Câmara. Vai ser às oito horas.
viagra falhar. Sugeriu seu Zé da Cida. –– Obrigado pela dica seu Décio. Vou dar uma
–– É, só que faz muito tempo que eu não brinco passada por lá. – respondi
com o “boneco”. Se ela quiser ter relação, vou ter que –– Zeca, você que é poeta, diz pra gente o que é
marcar um dia só pra isso e começar a me preparar ser um poeta. – inquiriu seu Beto.
uma semana antes. –– Um poeta é antes de tudo um combinador de
–– Olha Mauro, você tem é que aprender a fazer palavras. Geralmente a gente começa brincando de
massagem. Elas adoram. Você começa pelo pezinho fazer rimas. Isso quando se começa criança, como
e vai subindo devagar. Nos dias que você ver que eu comecei. Aos poucos você vai aprendendo a dar
não vai rolar nada, você capricha na massagem. Com aos versos uma cadência e até, de certa forma, uma
sorte ela fica tão relaxada que dorme e nem percebe. melodia. Depois deste estágio a gente começa a se
Com o tempo o apetite sexual é que nem menstruação preocupar com o conteúdo. Os artistas em geral
na mulher, isto é, vem de mês em mês e às vezes até possuem muita empatia e isso não é muito bom
atrasa. Isso quando não some de vez. Pela sua idade porque, toda observação e o sentimento que ela nos
você deve se inscrever num curso de massagem o causa ganha um zoom de quinhentos por cento.

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

–– A poesia também tem uma parte técnica e –– Não tanto quanto gostaria e deveria. Hoje mal
formal, não tem? – perguntou seu Mauro Pianista. sobra tempo pra escrever.
–– Tem! É em relação à estrutura que pode ser uma –– Dá pra viver de poesia?
Haikai, um Poetrix, um Soneto, etc... É como jogar –– Não e é por isso que eu estou atrás deste balcão.
cartas, as regras variam conforme o jogo que você está Mas também, para um poeta, não dá pra viver sem
jogando. Ser poeta está além da forma. Como todo poesia!
escritor, a gente tem que ser muito observador. –– Você esta escrevendo pra algum jornal?
–– Zeca, uma vez eu tive um professor poeta, ele –– Não. Ultimamente tenho escrito no site do
pedia pra cada aluno falar uma palavra e fazia um Recanto das Letras. É um site que eu gosto muito
verso à partir dela. e tenho feito muitos amigos por lá. Alguns outros
–– Isso é algo que eu não faço seu Beto. A poesia escritores até comentam o que você escreve e você
pra mim precisa ter uma mensagem. Algo que eu tem um feedback.
gostaria de dizer ou de ouvir. Algo sério ou engraçado, –– Você já recebeu algum comentário negativo
alegre ou triste, mas, seja o que for, algo que me toque por lá?
e toque o coração das pessoas. –– Já! Alguns deles motivados pelo
–– E a estética? Você se preocupa em fazer uma descompromisso ideológico de algumas de minhas
poesia que seja bonita? – perguntou seu Zé da Cida. poesias.
–– Que poeta não gostaria que alguém achasse –– Você também escreve comentários?
bonita sua poesia? Eu já rasguei centenas de poesias –– Claro! Procuro sempre ser positivo e sincero.
porque dias e até horas depois de tê-la escrito, achei Se eu não concordo com a posição ideológica de
que ela era feia, exagerada, infantil, surreal, etc... Hoje algum texto, eu incentivo a elaboração ou então, nem
eu estou mais tranquilo nessa parte. Afinal, sou um comento.
ser humano e, os sentimentos humanos são muito A entrevista seguia tranquila até quando meu
complexos. chefe se aproximou e disse:
–– Você se preocupa em fazer uma poesia do –– Zeca, preciso falar com você na minha sala.
“bem”? – perguntou seu Zé da Cida. AGORA!
–– Claro! Se uma poesia que escrevo consegue
passar coisas boas, já justificou sua existência. Jamais
incitaria qualquer ilicitude. Mas também não sou
dogmático e nem religioso.
–– Você lê muito?

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Cláudio Gomes de Almeida

Pingado Filosófico – epílogo (Obra póstuma)


José Carlos Pereira (1962-2008)

Aos queridos amigos leitores que tem


acompanhado os episódios de “Pingado Filosófico”, Memória prévias de
escrito por José Carlos Pereira (o Zeca da Padaria):
Lamento informar que o mesmo faleceu a três semanas Asdrúbas
em virtude de um enfarte fulminante.
Em consideração ao nosso amigo, resolvemos
colocar aqui a nossa homenagem.
Quanto aos personagens do “Pingado Filosófico”
posso dizer que o Mauro Pianista está morando com
a Dirce, a morena de que ele falava. O Beto agora dá
aulas de Geografia e anda sem tempo até pra se reunir Embora o meu nome não tenha sido definido,
com os amigos. O Décio vive viajando com a esposa e podem me chamar de Asdrúbas. Estou aqui para narrar
eu continuo tomando meus pingadinhos, mas troquei minhas memórias prévias. Memórias prévias são as
de padaria, que é pra não ficar sempre relembrando o memórias que herdamos de nossos pais. Lembranças
meu saudoso e querido amigo Zeca. Além disso, agora daquilo que eles viveram ou pensaram.
vou sempre em companhia da minha querida esposa, Como ainda sou um feto, é obvio que não tenho
a quem amo de coração. argumentos para uma memória própria. Quem se
interessaria em saber das complicações que eu tive
Que Deus abençoe a todos! na minha primeira meiose? Quem compartilharia do
José Tenório de Freitas (o “Zé da Cida”) meu medo de que minha mãe opte pelo aborto?... Por
isso, escreverei aqui sobre minhas memórias prévias.
Quando o papai e a mamãe se conheceram,
foi amor à primeira vista. Suas recordações desse
momento demonstram que eles estavam na mesma
sintonia, pois, mamãe pensou: ‘Esse cara ta olhando
na minha bunda. Eu não tenho bunda. Droga! Acho

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que vou mandar pôr silicone!’ ‘Oito meses de namoro e nada. O Vitor tem que tomar
Papai na ocasião pensou: ‘Essa gata não tem uma atitude. Parece que ele não tem projeto de futuro.
bunda, mas até que ela é jeitosinha. Acho que vou Será que eu sou só mais uma na vida dele? Desse
tentar ganhar ela.’ jeito eu vou acabar ficando pra titia!’ Papai, por sua
Por essa época meus pais já se conheciam, pois, vez, pensou: ‘Pô, é muita pressão! Nunca fiquei tanto
minha mãe pensou: ‘O Vitor já namorou a Elzinha e a tempo com uma gata e o pior é que eu tô amarradaço.
Jussara, se ele me escolheu, azar o delas. Vai ver ele é Acho que vou vender o carro e comprar um terreninho.
o príncipe que Deus me reservou.’ – Papai pensou: ‘Já Peço-a em noivado e consigo tempo pra construir uns
peguei as amigas dessa gata, se eu pegar mais ela, fico cômodos. Quando acabar a gente se casa. É isso que
sócio do clube e o lazer tá garantido.’ vou fazer!’
Papai tinha um ótimo repertório de galanteios, já Papai se casou com mamãe e um dia ele pensou:
mamãe, sempre se perdia nas palavras. Quando quis ‘A Vera está uma gataça. Bendita hora que essa mulher
puxar assunto com meu pai, ela perguntou: entrou na minha vida! Caramba como ela tá gostosa!
–– Você vem sempre aqui? Hoje o bicho vai pegar!’
Papai mais que depressa respondeu: Nesse dia mamãe pensou: ‘O Vitor tá me olhando
–– Venho, mas isso aqui só ficou interessante com aquele olhar. Já estou até com calor. Hoje o bicho
depois que eu te encontrei! vai pegar!’
Mamãe pensou: ‘E além de tudo é poeta!’ E assim, queridos leitores, encerro as minhas
Papai pensou: ‘Essa já ta no papo!’ memórias prévias, pois, foi exatamente nessa noite
No começo, papai era meio cafajeste, mas, aos que eu carimbei o passaporte da existência e, enquanto
poucos ele foi ficando balançado. Um dia ele pensou aguardo o desembarque, já vou logo avisando as gatas
consigo mesmo: ‘Pôxa, essa gata tá mexendo comigo. de plantão: me aguardem porque, depois que eu
Tenho que parar com meu repertório de frases feitas. nascer, o bicho vai pegar!
A garota até já me chamou de poeta. Já sei! Vou fazer
uma poesia!’
Papai fez a poesia e quando a leu para mamãe ela
pensou: ‘Definitivamente o Vitor não é poeta! Tadinho,
pra passar por esta humilhação ele deve estar gostando
muito de mim! É, acho que meu príncipe merece um
beijo!’
Um dia meus pais discutiram. Mamãe pensou:

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A sororoca da morte e os
milagres do Batata

Quando o Batata era bebê, ele era muito risonho.


Sua mãe dizia sempre que ele foi o mais risonho de
seus dez filhos. Quem o visse por aquela época, talvez
imaginasse que a felicidade é uma marca que nasce
com a gente, pois, do contrário, como se explicaria
que um bebê fosse assim tão risonho?
E como sorria! Sorria para qualquer um que o
pegasse. Olhava-lhe nos olhos e, ao menor gesto ou
som, dava uma enorme gargalhada. Às vezes chegava
a fechar os olhos de tanto que seus lábios se abriam.
O Batata foi o sexto filho de uma mãe humilde
e amorosa. Um dia, ao despedir-se de Arlindo, seu
irmão mais velho, teve a impressão de ter escutado
um ronco, como se o irmão dormisse profundamente,
mas, ao ver o irmão tão bem disposto, ignorou. Ao fim
da tarde, alguém veio trazer a notícia: Arlindo havia
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falecido ao ser atropelado por um carro. o incomodava muito. Embora tentasse se controlar,
Dois meses depois, foi com sua mãe visitar uma à noite, quase sempre urinava na cama. Os anos
vizinha. Era um chá de bebê e a vizinha estava preste passaram, ele completou seis, sete... oito anos e ainda
a dar a luz. Enquanto sua mãe conversava, ele ficou urinava na cama. Por mais que ele se lavasse, sempre
entretido vendo os presentes que os convidados ficava com a impressão de que estava fedendo à urina.
haviam trazido. Em determinado momento, pareceu- Com isso, na escola, evitava ir à lousa. Queria mesmo
lhe escutar um ronco e, ao escutar mais atentamente, é nem ser notado.
percebeu que o ronco vinha da vizinha. Dona Elza, a Um dia alguém lhe disse que ele era muito
vizinha, sofria de diabetes e enfrentava uma gravidez inteligente e que até poderia ser famoso, mas, Luís
de alto risco. Três dias depois do chá de bebê, Dona logo pensava que se ficasse famoso iriam vasculhar
Elza teve uma complicação e faleceu durante uma sua vida e descobririam que ele, com nove anos, ainda
cirurgia. Infelizmente, nem o bebê foi salvo. urinava na cama. ‘Prefiro ser o Batata de sempre a ter
Em duas outras ocasiões naquele ano, nosso que passar por esta humilhação’ – pensava.
amigo escutou o ronco fúnebre. Em uma delas, ao Por essa época, ele andava de olho numa colega
visitar um parente agonizante no hospital, comentou de classe. Ela se sentava ao seu lado e ele não se
com sua mãe. A mãe disse-lhe que era a “sororoca da cansava de admirá-la. A menina chamava-se Irene,
morte” e que, quando as pessoas como aquela parenta era bonita, mas não tinha boa saúde. Há três anos o
estavam prestes a falecer, a respiração ficava daquele fígado da menina não funcionava bem e, às vezes, ela
jeito. Era como se elas tivessem dificuldade de até tinha que sair mais cedo da aula.
absolver e reter o ar de que precisavam. Batata ficou Certo dia, entretanto, Batata foi ao banheiro da
muito impressionado com a explicação da mãe, mas, escola e, ao voltar, deparou-se com sua colega no lado
não lhe contou que acontecera outras vezes. de fora da classe. Curioso, perguntou para a menina, o
Depois deste último episódio, a criança quase que havia acontecido e ela disse-lhe que estava sentindo
não saia de casa, a menos que a turma da rua o dores no fígado. Foi então que ele novamente ouviu a
convidasse. A brincadeira de que mais gostava era sororoca da morte. Desesperado, ele perguntou onde
quando imitavam a turma do Manda-chuva (um era o fígado. A menina pegou sua mão e colocou-a
desenho que passava na TV). Seu irmão Valtinho era sobre determinada parte de seu corpo, indicando-lhe
sempre o Manda-chuva e ele, por ser baixo e gordinho, o local. De repente, ele sentiu uma energia vigorosa
era o batatinha, apelido que lhe ficou para o resto da fluindo entre seus dedos e, de súbito, a sororoca da
vida. Seu nome verdadeiro era Luís Carlos. morte que só ele ouvia, inexplicavelmente cessou.
Apesar de ser uma criança feliz, havia algo que Abatido e fraco, voltou para a sala de aula

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enquanto que a menina continuou aguardando os pais. Luís havia ficado um pouco abatido, sugeriu-lhe vestir
Três dias depois ele soube através de sua professora uma blusa. Batata vestiu. O irmão logo adormeceu
que, sua colega de classe havia se curado da doença e e, dois dias depois, inexplicavelmente recuperou o
nem os médicos sabiam explicar como. movimento das pernas. Todos ficaram surpresos.
Relembrando o que acontecera três dias antes, Dez anos se passaram e Batata acompanhou o
Batata começou a desconfiar que talvez houvesse irmão em sua ida para a capital. Em São Paulo, Luís
mais coisas sobre si mesmo que ele ainda não sabia. E conseguiu emprego como atendente em um hospital.
havia! O destino logo iria provar que ele, novamente, Durante aquele ano, o índice de cura naquela
não havia se enganado. instituição foi o maior de todos os tempos e, centenas
Aos doze anos, Batata conseguiu finalmente não de pessoas haviam se curado sem que nem mesmo os
urinar na cama. Ele nem se continha de tanta felicidade. médicos soubessem explicar como. Luís era muito
Pela primeira vez, sentia que poderia até pousar fora atencioso, Fazia questão de cumprimentar a todos e
de casa se quisesse. Mas ele nunca quis. Havia se quase sempre era chamado para aplicar os curativos.
acostumado a ficar em seu quarto, organizando suas Ao final do dia, Luís terminava sempre totalmente
coisas, até que se cansava e dormia. desgastado.
Batata costumava levantar-se cedo. Adorava ver Um dia, recebeu uma carta de sua mãe. Ela estava
o dia nascendo e os sons da rua aumentando à medida internada e queria vê-lo “nem que fosse pela última
que o dia clareava. vez”, escreveu.
Um dia, seu irmão Valtinho sofreu um acidente e Batata partiu imediatamente. Ao abraçar sua mãe
o médico disse que ele nunca mais andaria. Batata, ao conseguiu fazer com que a sororoca da morte cessasse.
vê-lo deitado no sofá assistindo TV, pensou: ‘Será que Naquele mesmo dia sua mãe recebeu alta, pois estava,
eu conseguiria ajudá-lo se fizesse com minhas mãos, “inexplicavelmente curada”.
do jeito que fiz com Irene?’ Pensou até que decidiu À noite, entretanto, Batata acordou de repente em
tentar. Para que o irmão não percebesse, alegou que meio a um ronco estranho que ele mesmo havia dado,
estava ficando frio e, para que o irmão não sentisse pois, ele estava sozinho no quarto. Era a sororoca da
frio nas pernas, iria vestir-lhe uma meia. Valtinho o morte, mas ele nem percebeu. Bêbado de sono, não
autorizou e Luís Carlos buscou as meias para vestir. Em teve forças sequer para abrir totalmente os olhos. Logo
determinado momento, colocou suas mãos nas juntas voltou a dormir e foi então que nunca mais acordou.
dos joelhos do irmão e sentiu uma energia fluindo
pelos seus dedos. Tudo foi tão rápido que Valtinho
nem percebeu a manobra embora, percebendo que

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A carta da amante

Eram oito horas da noite quando André terminou


seu turno na padaria e já se preparava para ir embora
pra casa. Ao passar pelo caixa, dona Alice o chamou.
Disse que um motoqueiro havia acabado de deixar
uma carta endereçada a ele.
Ao ler o nome do remetente, viu que era uma
carta de Milena, sua namorada.
André estranhou, pois, nunca havia trocado
correspondências com Milena. Ao abrir a carta, logo
reparou no texto. Eram duas linhas escritas de forma
tão sintética que mais parecia um código. Nela se lia:
“André, preciso falar-lhe. Vem agora à minha
casa. Milena”.
Milena era professora primária e tinha uma letra
perfeita, reflexa do capricho com que exercia sua
profissão. Entretanto, aquela letra cheia de garranchos,
como se fora escrita às pressas, com certeza não era a
letra de sua namorada.
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

Outro fato chamou-lhe a atenção. Quase todos a campainha, qual não foi a surpresa ao ser atendido
os dias, lá pelas dez horas da noite, costumava ir à por um grande amigo de infância.
casa da namorada para vê-la. Naquele dia, não seria O homem pegou sua caixa de ferramentas e
diferente, mas, na carta se lia: “vem agora à minha começou a mexer no fusca. Rapidamente consertou
casa”. o veículo e convidou o amigo que não via há tempos
Há três dias, André completou dois meses de para conhecer sua família e tomar um café. Para não
namoro. Milena já foi casada, mas, o marido era muito fazer desfeita André aceitou.
agressivo e ela se separou. Foi ali mesmo na padaria Depois do café, conversa vem, conversa vai e
que André a conheceu. Foi amor à primeira vista. Ela André comentou sobre a carta. Joselino, seu amigo,
estava separada há um ano e entrou para tomar um disse que conhecia o sujeito e que ele não merecia
pingado. Naquela semana eles se viram mais umas três confiança. Pediu para André tomar cuidado, mesmo
vezes e, na semana seguinte, já estavam namorando. porque, como domingo era o dia das mães, os presos
Quanto ao ex-marido de Milena, parece que estavam recebendo indulto. E ainda disse:
arrumou outra mulher, mas, depois de agredi-la foi –– Lembra do conto A Cartomante, de Machado
preso com base na lei “Maria da Penha”. André até de Assis, no fim o cara se estrepou! Cai fora dessa
o conhecia de vista, pois, uma vez um motoqueiro enquanto é tempo!
parou para conversar com Milena. Soube depois que André se despediu e agradeceu a acolhida do
era o ex. amigo. Enquanto ligava o carro, ainda ouvi-o dizer:
Um simples telefonema talvez esclarecesse tudo, –– Não esquece: o indulto!
mas, Milena não tinha telefone. Ele até pretendia dar- Apesar das recomendações do amigo, André
lhe um celular de presente no dia dos namorados. ficou preocupado com Milena. Ele jamais a deixaria
Apesar das dúvidas quanto ao seu futuro, se sozinha nessa.
havia algo que ele trazia como certo e incontestável, E assim, logo se viu frente à casa da amante.
era o seu grande amor por Milena. Como ele costumava Reparou que as luzes da sala estavam apagadas e fazia
dizer, ela era sua “alma gêmea”. E assim ele pegou um silêncio mórbido. Era estranho, pois, todas as
seu velho fusca e foi visitá-la. vezes que ele a visitava as luzes estavam acesas e a
Quando chegou ao bairro, duas ruas antes da televisão ligada. Por sorte, trazia no bolso uma cópia
casa da namorada, o carro teve um problema e ele não da chave da porta que Milena havia lhe dado.
conseguia dar a partida novamente. Informaram-lhe Ao entrar pela sala, todas as luzes repentinamente
que, por sorte, o carro havia quebrado bem na frente se acenderam e ele constatou aliviado que aquela era
da casa de um mecânico de automóveis. Ao apertar uma festa surpresa. Embora fosse seu aniversário, nem

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Cláudio Gomes de Almeida

mesmo ele se lembrou da data. Antes de cumprimentar


aos presentes, alguém lhe perguntou:
–– Você conhece aquele cara lá fora?
Ao olhar pela porta, André viu que era o seu
amigo mecânico e fez-lhe um sinal de positivo.
Joselino sorriu e se despediu sem nem sair do carro.
André pode enfim relaxar, Milena apresentou-lhe sua O beijo impossível de
família e a festa foi um sucesso.
Nariguda

Nariguda sempre teve nariz grande. Quando


nasceu, a primeira coisa que os médicos viram foi
o nariz. Daí eles puxaram aquele nariz enorme até
perceberem que, no final dele havia uma minúscula e
linda criança. Naquele momento, ao invés de chorar,
ela espirrou: atchim! E foi assim que ela veio ao
mundo.
Para que não sofresse com apelidos, sua mãe
registrou-a com o nome de Nariguda. Apesar do
portentoso nariz, ela sempre foi muito amada e
festejada por todos os seus familiares e amigos.
Em seu bairro, Nariguda nem sempre conseguia
brincar com as outras crianças. Na brincadeira de
esconde-esconde, por exemplo, ela era sempre a
primeira a ser encontrada, mas também, era só olhar
em volta e procurar por um poste com nariz. Pobre

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

Nariguda! Assim que acordou, mesmo sem saber se o acontecido


A menina era de fato diferente e, embora seus fora verdade ou sonho, a menina devolveu Pinóquio a
pais fizessem de tudo para que ela não percebesse, era Gepeto, seu antigo dono.
impossível não perceber, pois, a diferença estava na Muitos dias depois, Pinóquio fez um pedido a
cara. Ela, por outro lado, já havia se acostumado com uma estrela e a Fada Azul apareceu para realizá-lo.
o fato e era feliz em tudo que fazia. Havia, entretanto, Nesse dia, Pinóquio comentou com a Fada Azul sobre
algo que a incomodava muito. É que, por ter o nariz Nariguda e, à principio ela pensou que era apenas
grande, Nariguda, não conseguia beijar seus pais e uma de suas mentiras, mas, como o nariz de Pinóquio
nem seus amigos. O que mais a entristecia era pensar não havia crescido, ela prometeu ajudar a garota de
que ela nunca iria beijar ninguém. quem Pinóquio era amigo.
Ela havia reparado que até os animais se beijam. Naquela mesma noite a Fada Azul a casa de
Percebeu que muitos deles, como o hipopótamo, Nariguda visitou e, enquanto ela dormia, palavras
o rinoceronte, o tucano, o jacaré e até o cavalo tem mágicas recitou.
nariz grande. Só que eles também tem a boca grande No dia seguinte ela quase não acreditou quando
e, olhando no espelho percebeu que sua boca era olhou no espelho e viu que seu nariz havia diminuído
minúscula quando comparada ao nariz. e se tornado tão pequeno e delicado como o nariz que
Foi por essa época que Gepeto, seu vizinho ela sempre quis ter. Nariguda mal cabia em si de tanta
carpinteiro, vendo a tristeza da garota, fez para ela alegria e, a primeira coisa que fez naquele momento
um boneco de madeira. O boneco era diferente e foi beijar seu pai e sua mãe. Seus pais ficaram tão
tinha também um nariz enorme. Nariguda chamou-o felizes quanto ela.
de Pinóquio. Ela adorava brincar com o boneco e Horas depois, ao soar a campainha, Nariguda
levava-o a todo lugar que ia. foi atender e ficou surpresa quando viu Pinóquio
Certa noite aconteceu algo muito estranho. Assim transformado num menino de verdade. Ele contou-
que se deitou, viu quando o boneco virou o rostinho lhe sobre a Fada Azul e ela deu-lhe um beijo de
para sua direção e disse-lhe: agradecimento.
–– Nariguda, se você conseguiu ter um nariz tão Depois daquele dia, as pessoas deixaram de
grande quanto o meu que sou boneco, então eu posso chame-la de Nariguda e, qualquer um que quisesse
ser tão gente quanto você que também tem nariz conhecê-la era só chegar no bairro e perguntar pela
grande! menina beijoqueira.
De tão assustada com o que acabara de ver,
Nariguda desmaiou e mergulhou em sono profundo.

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Johnny B Good: um dia
na vida de Roger Blues

Um dia você acorda sem pressa. O mundo já


não é aquele dragão irado e você, cidadão do mundo,
se reconhece como tal. Depois, toma seu café como
sempre tomou.
As ruas parecem uma extensão de sua casa e
você reconhece na vizinhança histórias em que você
participou. Algumas com começo, meio e fim. Outras
tantas que estão sendo escritas como a sua: O Zé
Barbeiro, o Chico da Padaria, a Lucinha Professora...
Enfim, eles estão tão presentes na sua vida quanto os
membros da sua família.
Pelas ruas você encontra alguns amigos, mas,
grande parte deles são filhos e netos dos amigos que
você teve na infância.
Recebe com carinho os olhares daqueles que você
nem conhece, mas que, ao passar por você sussurram
Cláudio Gomes de Almeida

uns aos outros:


–– É ele! É o Roger Blues!
Como sempre vem a saudade do tempo que você
tocava e cantava na lanchonete do seu Mauro. Foi lá
que você se tornou Roger Blues. Sua Blues Boogie
Band fez muito sucesso e ninguém tocava melhor
Johnny B Good, que você. Hoje o local é um posto de Sinal verde do destino
gasolina.
Ao receber sua aposentadoria, encontra na fila
do banco o Paulo, baixista da banda. Ele foi receber
acompanhado do neto, que parece não querer perder
nada da conversa do avô.
Depois passa pela Lan House onde deixa um
texto que escreveu para um site de escritores. O texto Esta é uma história que não foi escrita. Dessas
é uma poesia que você fez para Doracília, sua musa há histórias que deixam de acontecer porque se perdem
cinquenta e dois anos. É uma poesia especial para ser entre as tramas que o destino arma. E você se pergunta:
declamada em sua bodas de ouro. “Por quê não aconteceu?” Mas não há respostas.
O dia corre tranquilo, recheado de emoções como Tínhamos o momento perfeito, a música perfeita, tudo
tantos outros. Ao voltar para casa passa pela banca de parecia tão óbvio...
flores e compra um maço de rosas. Você até já perdeu Eu era jovem quando a conheci. Desde o primeiro
a conta das vezes que disse a Doracília que a ama. momento eu a amei. Quando a gente ama, a gente sabe
Conheceu-a nos tempos da banda. no olhar. Tudo fica mais leve e tudo faz sentido. Ao
Finalmente chega em casa. Com os olhos e seu lado o mundo parecia distante e, se eu estava com
coração apaixonado envolve a esposa em seu braços e ela, eu estava no paraíso.
estala um beijo na boca da amada. Na mente, o mesmo Um dia lhe dei de presente um disco do Kenny
e recorrente bordão: Johnny B Good Tonight. Rodgers e ela me convidou para escutá-lo em sua casa.
Eu fui. As coisas foram acontecendo e de repente a
gente estava junto. Eu nunca esqueci aquela noite.
Ela era pianista e eu professor de guitarra.
Trabalhávamos na mesma escola. Um dia ela ganhou
uma bolsa de estudos na Bulgária. Foi difícil pra nós,

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Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

mas, ela teve de ir e, três anos era muito tempo para Rogers não saia da minha cabeça.
um jovem cheio de Rock’n’Roll na cabeça e muitas Nunca mais me envolvi com ninguém. O tempo
histórias por viver. passou e eu envelheci. Agora que eu já havia me
No ano seguinte a escola fechou e eu mudei de acostumado com a solidão eu a encontrei. Entretanto,
cidade. A gente nunca mais se encontrou. Sempre eu não queria retomar nossa história, mas, eu precisava
que eu voltava à cidade, passava pela antiga escola dizer-lhe o quanto ela fora importante pra mim.
que agora não mais existia. De certa forma eu também Foi aí que aconteceu algo surpreendente. Quando
havia me perdido. Aqueles tempos felizes, aquele fui buscar o documento, depois de adquiri-lo e preste
amor interrompido, havia ficado em algum lugar do a atravessar a mesma avenida, ao olhar para frente,
passado e levado uma parte de mim com ele. consegui divisá-la entre os transeuntes atravessando
Quarenta anos se passaram e eu nunca a esqueci. em minha direção, exatamente como na semana
Um dia desses eu fui a um cartório em São Paulo para anterior. Mas, desta vez eu a esperei. Ela ficou radiante
solicitar um documento. O rapaz do estabelecimento ao me ver. Disse-me que era casada, que tinha netos e
me informou que o documento ficaria pronto em que amava sua família. Eu, de minha parte, disse-lhe
uma semana. Ao sair do cartório, eu atravessava um que ela foi um ponto feliz na minha vida e que eu
cruzamento quando a vi. A gente se encontrou no jamais a esquecerei. Trocamos mais algumas palavras
meio da avenida. Ela me reconheceu e me perguntou: e depois, ela partiu e eu segui o meu caminho. Senti-
–– Foram bons aqueles tempos, não é? me como se tivesse resolvido algo que carreguei por
Eu fiquei sem responder. O sinal estava preste muitos anos.
a abrir e cada um seguiu sua direção. Do outro lado O sinal ficou verde novamente e, na minha vida,
fiquei observando-a. Caminhava devagar. Havia o destino finalmente me deu o sinal verde que eu
envelhecido. Andava com dificuldade, mas estava precisava.
segura.
Tive vontade de voltar e dizer o quanto ela foi
importante na minha vida. Eu queria que ela soubesse
que de tudo o que eu vivi nada se compara aos
momentos que passamos juntos.
Naquela noite meu coração ficou apertado. Achei
que jamais a veria novamente. A nossa história havia
sido novamente interrompida. Passei uma semana me
sentindo meio vazio. Por vezes a música do Kenny

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Meu encontro com Saci
Pererê

Na semana passada eu levei minha neta ao Sítio


do Pica Pau Amarelo. Havia por lá, uma estátua do
saci Pererê, a qual havia sido inaugurada um dia antes.
Na estátua o saci usava um gorro vermelho e fumava
um cachimbo. Eu conheci o saci quando era garoto e
posso afirmar que ele não ia gostar nadinha da estátua
que fizeram dele. Eu só o encontrei uma vez, mas, eu
nunca me esqueci e vou contar como foi.
Minha tia estava muito doente e com uma tosse
muito forte. O médico pediu pra meu tio morar no
campo até que titia melhorasse. Foi assim que eles
compraram uma chácara bem ao lado do Sítio do
Pica-Pau Amarelo. Eu estava de férias naquela época
e assim que eles compraram a chácara eu fui passar
uma semana com eles.
A casa era muito antiga e diziam até que ela era
Cláudio Gomes de Almeida Contos, Crônicas e Redações para o Ensino Fundamental

mal-assombrada. Meu tio não acreditava nisso até se –– Se esse Pererê existe, onde é que eu posso
dar conta de que, sempre que amanhecia, todos os encontrá-lo? – perguntou meu tio.
seus cigarros haviam misteriosamente sumido. –– Aqui mesmo! – respondeu o escritor.
À noite ventava muito e às vezes parecia que o Dizendo isso, Monteiro Lobato pediu para que
vento entrava dentro de casa. meu tio pusesse um cigarro na boca, como se fosse
Um dia meu tio pôs um cigarro na boca e, de fumar. Ele atendeu e, de repente, armou-se um
repente, armou-se um redemoinho. O cigarro foi redemoinho e seu cigarro foi parar no chiqueiro.
arrancado de sua boca e jogado longe. Nesse momento, seu Lobato levantou-se e jogou a
Quando isso aconteceu pela quarta vez, titio peneira vazia sobre o redemoinho. Depois, com muito
resolveu conhecer os vizinhos e conversar com eles cuidado, retirou debaixo dela um gorro vermelho,
sobre a casa. Titia ainda tossia muito e não quis recolheu a peneira e o redemoinho foi cessando até
acompanhar meu tio nas visitas, mas eu, muito que um senhor surgiu bem á nossa frente. Titio quase
travesso e curioso, decidi acompanhá-lo. não acreditou no que estava vendo e perguntou:
Foi assim que, numa daquelas tardes, visitei o –– Quem é o senhor?
Sítio do Pica-Pau Amarelo pela primeira vez. –– Eu sou o saci Pererê, muito prazer. O senhor é
Logo que chegamos, avistamos um senhor na o novo vizinho. O homem que gosta dum cigarrinho.
varanda. Ele estava escolhendo feijão numa peneira –– O senhor não é um saci! – protestou meu tio
e nos recebeu com muita educação. O homem tinha e continuou – O senhor tem duas pernas e eu nunca
umas sobrancelhas enormes e um bigodinho bem ouvi falar de saci com duas pernas!
pequeno. Parecia que o bigode tinha trocado de lugar –– O senhor também nunca ouviu falar de prótese?
com a sobrancelha. Seu nome era Monteiro Lobato e Pois é, meu tio Lobato mandou fazer uma pra mim.
ele era um escritor famoso. Titio falou-lhe da casa e ele Agora eu não preciso mais ficar pulando por aí.
escutou atentamente. Depois, deu um bocejo enorme –– Pererê conte a ele sobre o cigarro. – pediu seu
e disse: Lobato.
–– Isso é coisa do Pererê! –– Pouca gente sabe, mas, foi por causa do cigarro
–– Que Pererê? – perguntou titio. que eu perdi a minha perna. Antes mesmo de eu
–– O Saci Pererê! Você nunca ouviu falar dele? nascer, minha mãe fumava muito e não sabia que
Titio afirmou que sim, mas que não acreditava mulher grávida num pode fumar. Daí ela ficou doente
em sacis. Ele realmente achava que sacis não existem. e eu nasci sem uma perna. É por isso que eu não gosto
Uma vez minha mãe já havia me falado sobre sacis, de cigarro e se depender de mim, ninguém fuma por
mas, eu nunca tinha visto um. essas bandas!

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Cláudio Gomes de Almeida

Meu tio logo compreendeu tudo o que o saci


disse e prometeu que nunca mais iria fumar.
Ao ouvir isso, Pererê ficou muito contente e em
retribuição entregou para meu tio algumas folhas de
plantas, dizendo:
–– Faça um chá com essas folhas e dê para a sua
esposa tomar. Ela logo vai ficar boa. Agora dá licença Galos, cantos e nada mais
que eu preciso ir, estou sentindo cheiro de cigarro em
algum lugar.
E assim, seu Lobato entregou-lhe o gorro e se
formou um enorme redemoinho que rapidamente
desapareceu na mata.
Meu tio agradeceu ao amigo escritor e voltou
para a casa dele, pois, estava ansioso para fazer o chá Todo dia, às quatro e meia da madrugada levo
para a titia. Titia, depois que tomou o chá, sarou-se minha irmã ao ponto de ônibus. Ela trabalha no
totalmente da tosse e meu tio vendeu a chácara porque primeiro turno de uma multinacional. No caminho há
ele não precisava mais morar no campo. Ele também uma casa de rações onde vendem-se também alguns
nunca mais fumou e cumpriu à risca a promessa que animais domésticos. Sempre que passamos por ela,
fez ao saci. uns dois ou três galos que lá estão põem-se a cantar.
Por isso, quando vi a estátua do saci com um Pelo timbre dá para notar que são galos jovens e
cachimbo na boa fiquei chocado, mas, logo aconteceu iniciantes na carreira de solistas matinais.
algo que me tranquilizou. Pouco antes de eu sair do O interessante é que eles não cantam o “côcórócó”
Sítio do Pica-Pau Amarelo com minha neta, formou- tradicional e, talvez levados pela inexperiência,
se um redemoinho e o cachimbo da estátua quebrou suprimiram o “ró” do famoso refrão galináceo. Como
indo parar no chiqueiro. Eu ainda ouvi quando uma resultado o que se ouve é “côcócó” cantado quase que
mulher reclamou e disse: simultâneamente por todos eles.
–– Puxa! Desde ontem, quando a estátua foi Eu não sei como funciona a minha mente, mas,
inaugurada, é a quinta vez que isso acontece. Acho sempre que os escuto cantar ouço nitidamente a palavra
que vou deixar a estátua do jeito que está! “socorro” cuja entonação é muito parecida. Até dá pra
‘Isso é coisa do saci! – pensei comigo. imaginar que a agitação das pessoas passando os tenha
motivado a fazer o inusitado pedido, o qual, no timbre

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Cláudio Gomes de Almeida

rouco dos galinhos soa bastante desesperado.


Acho que esta impressão tem a ver com a violência
recorrente em nossos dias. Se estivéssemos vivendo
tempos mais pacíficos, talvez o que se ouvisse fosse
“cácácácá”, da qual deduziríamos tratar-se apenas de
uma escandalosa gargalhada.
A monga among us

Outro dia, lendo um cartaz sobre uma viagem


ao Playcenter em São Paulo reparei nas atrações
ilustradas em seu conteúdo. Algumas delas como
a Montanha Russa, por exemplo, eu já descartei de
experimentar, pelo menos nesta encarnação.
Há quase trinta anos atrás eu quase morri quando
me atrevi a andar num “Chapéu Mexicano” de um
parquinho das imediações. Na época quando desci
do brinquedo, demorei uns vinte minutos para me
recuperar e me situar. Hoje sinto tontura só de me
imaginar em um deles. O que de fato me chamou a
atenção no cartaz foi que entre as quatro atrações ali
ilustradas havia uma que me causou um delicioso
saudosismo. Trata-se de “Monga” a mulher gorila.
A primeira vez que a vi foi num filme dos
estúdios da Vera Cruz. Depois, ainda moleque, eu a
vi pessoalmente no próprio Playcenter em São Paulo.
Foi pura adrenalina. Passado mais alguns anos, uma

228
Cláudio Gomes de Almeida

reportagem do “Fantástico” até revelou como o truque


é feito. Pois é, qual não foi a minha surpresa em ver
que, após tantas décadas e entre tantos brinquedos
sofisticados e interessantes, “Monga” a mulher gorila
continua causando o mesmo deslumbramento entre
as crianças.
Se eu tivesse um filho e o fosse levar para vê-la, Os Pinguins Imperadores
a princípio até pensaria em ficar na sala para fingir
enfrentar a fera, mas, na verdade eu sairia correndo e os Pelicanos
como todo mundo só para preservar a magia e o
encantamento sobre a inocência fantasiosa daquelas
crianças.

Os Pinguins Imperadores eram assim chamados


porque comandavam os céus e eram exímios
caçadores. Com os olhos precisos como o de uma
águia conseguiam localizar cardumes a quilômetros
de distância. Já os pobres Pelicanos eram, desde
aquela época, muito desengonçados. Com seu bico e
patas enormes não conseguiam voar tão alto e quase
sempre tropeçavam uns nos outros.
Os pinguins sempre se gabavam de seus atributos
e humilhavam os pelicanos, rindo de seus tropeços e
provocando-os.
O deus dos animais, descontente com as atitudes
dos pinguins, mandou chama-los para conversar. Ao
serem questionados pelo deus, eles responderam:
–– Que podemos fazer se somos melhores que
os pelicanos? Eles não voam tão alto quanto nós e

230
Cláudio Gomes de Almeida

são muito atrapalhados. Ao contrário, nosso vôo é


muito preciso. Nascemos para sermos reis e somos
imperadores até no nome.
Ouvindo aquilo, o deus dos animais respondeu:
–– Já que pensam assim, de agora em diante suas
asas serão tão pequenas que vocês não voarão mais
e eu vou enviá-los para uma região tão fria que não
haverá por lá outras aves para vocês gozarem!
Foi assim que os Pinguins Imperadores foram
parar no Pólo Norte. Hoje, com seu andar engraçado,
conseguem ser mais trapalhões do que até os
Pelicanos.

Moral da história: Gozar dos defeitos dos outros


é ainda pior que qualquer defeito!

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Sobre o Autor

Cláudio Gomes de Almeida é escritor, poeta e


compositor. É ex-membro da Academia Jacarehyense
de Letras (www.ajletras.com) e bacharel em Música pela
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.
Como músico compôs diversas obras, para várias
formações. Entre elas destacam-se a Abertura Nº 1
para Orquestra (executada pela Orquestra Sinfônica
da Unicamp, na regência de Benito Juarez), a obra
“Dois Noturnos” (executada pela Orquestra Sinfônica
de Campinas, na regência de Eduardo Navega) e a
obra pianística “Álbum para a Juventude” (dedicada
à pianista Fúlvia Escobar). Também como músico
realizou pesquisas sobre Música Modal e sobre Análise
Schenkeriana.
Atualmente é funcionário recém contratado da
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo onde
trabalha como Agente de Organização Escolar.
A fonte usada no miolo é Melior, corpo 11/15.
O papel do miolo é Pólen Soft 80g/m²
e o da capa é cartão 250g/m²

EDITORA SCHOBA
Rua Floriano Peixoto, 1569 - Vila Nova Salto - São Paulo
Fone/Fax: (11) 4029.0326
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atendimento@editoraschoba.com.br

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