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Introdução
A canção popular de um país pode ser pensada como um “idioma cultural” único
e plural de um povo. Deste modo, podemos afirmar que a nossa Música Popular
Brasileira traz em si uma memória coletiva enraizada em anos da mistura de muitos
povos que aqui se encontram desde o século XVI à nossa atual “Idade Mídia”. Mais do
que um mero reflexo da sociedade, a canção brasileira do século XX pode ser vista
como um projeto inacabado de país, uma nação à espera de novas escutas que percebam
os processos de educação sentimental, estética e ideológica contidos em nossa cultura
(NAPOLITANO, 2007). Ao fomentarmos uma pedagogia poética e musical no contexto
escolar, através da prática da canção popular como um instrumento literário para o
aprendizado de temas transdisciplinares - históricos, sociológicos e mitopoéticos –,
estaremos construindo uma eficiente e prazerosa prática lúdica de ensino.
1
Orfeu da Conceição, “tragédia carioca” de Vinícius de Moraes, ambientada nos morros dos anos 50,
estreiou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 25 de setembro de 1956, com cenografia de Oscar
Niemeyer e música de Tom Jobim (a trilha sonora seria lançada no mesmo ano pela gravadora Odeon).
Em 1959, a peça foi adaptada ao cinema por Marcel Camus sob o nome Orfeu Negro, recebendo diversos
prêmios internacionais e projetando as primeiras parcerias de Tom e Vinícius em nível mundial.
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Diz a lenda que tudo começou na boate Arpége, no Leme, Zona Sul do
Rio. O poeta Vinícius de Moraes foi a esta conhecida casa noturna dos
tempos da saudosa boemia bem vestida das noites cariocas do tempo
da Bossa Nova prestigiar o velho amigo, Antônio Carlos Jobim,
quando descobriu, pálido de espanto, o talento jovem e ligeiramente
desconhecido de um exímio violonista de Varre-e-Sai, que atendia
pelo curioso nome de Baden Powell de Aquino, e que fazia algum
sucesso pela voz de Lúcio Alves, com o seu “Samba Triste”, em
parceria com Billy Blanco.
(...) Mas e os Afro-sambas? Pouco antes de travar conhecimento do
Baden, o “poetinha” ganhou um disco, intitulado Sambas de Roda e
Candomblés da Bahia. Em pouco tempo, aquele despretensioso
bolachão transformaria o criador da “Balada das Arquivistas” e do
“Orfeu da Conceição” no “branco mais preto do Brasil, na linha direta
de Xangô”. Aqueles temas baianos o impressionaram, ao mesmo
tempo em que o próprio Baden rumava à este mesmo caminho,
quando fora apresentado ao capoeirista Canjiquinha que conduziria
Badeco a terreiros, rodas de capoeira ao mesmo tempo em que lhe
apresenta os sagrados cânticos do candomblé. O poeta se assomara
pelo místico; Baden, pelas novas harmonias. (XAVIER, 2006, s.p.)
Se a arte do encontro entre Baden e Vinícius 2 foi pautada pelo samba de roda, pela
capoeira e pelo candomblé, é porque ambos estavam em busca de um “elogio da negritude”
através de autênticas fontes culturais baianas. Segundo José Castello, “Baden não apenas
africanizou Vinícius, ele o transportou para um mundo mais quente, mais contaminado por
tradições e sentimentos atávicos, mais – bem mais – incontrolável” (CASTELLO, 1991,
p.58). Ou seja, o “Poetinha” seria iniciado ao mundo mitopoético dos orixás através do
contato com o candomblé via Baden Powell, sendo capaz de “entrelaçar o cotidiano com o
cósmico, de lançar uma ponte inesperada entre a tradição negra e as interrogações
metafísicas da zona sul” (CASTELLO, Op. cit., idem), conforme ainda veremos.
2. Iemanjá
2
Em 1963, as primeiras parcerias musicais de Baden Powell e Vinícius de Moraes, as canções: O
astronauta, Berimbau, Só por amor, Deixa, Seja feliz, Mulher carioca, Samba em prelúdio, Labareda, É
hoje só, Deve ser amor, Além do amor e Samba da bênção, foram registradas no LP Vinícius & Odette
Lara, pelo selo Elenco. Em 1964, Baden gravaria o LP À vontade, e passaria seis meses na Bahia,
pesquisando música de candomblé e os cantos dos terreiros. Em 1965, voltaria a compor com Vinícius
uma série de músicas registradas novamente pelo selo Elenco, no LP De Vinícius e Baden especialmente
para Cyro Monteiro, contendo as parcerias Samba do café, Linda baiana, Formosa e Tempo feliz, entre
outras. Em 1966, gravaram os afro-sambas Canto de Ossanha, Canto de Xangô, Bocochê, Canto de
Iemanjá, Tempo de amor, Canto de Pedra Preta, Tristeza e solidão e Lamento de Exu; respectivamente
registrados no LP Os afro-sambas (selo Forma), com arranjos de Guerra Peixe e participação do conjunto
vocal feminino, Quarteto em Cy.
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Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é dona Janaína que vem
Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é muita tristeza que vem
Cultuada como “a senhora do mar, dona das águas, mãe dos orixás”, Iemanjá é
talvez o orixá mais conhecido no Brasil, associada sincreticamente ao culto à Nossa
Senhora. Afinal, “é uma das mães primordiais e está presente em muitos dos mitos que
falam da criação do mundo” (PRANDI, 2001, p.22) ela é a representação da ancestralidade
feminina da humanidade, assim como as nereidas e as divindades greco-latinas Hera e
Vênus. A ambigüidade de seu valor é que ela é uma força de sedução perigosa, pois transita
entre a vitalidade de sua beleza sedutora e a tristeza destrutiva daqueles que ela seduz, como
afirmam os versos: (...) De Iemanjá a cantar o amor / E a se mirar / Na lua triste no céu,
meu bem / Triste no mar... Como se ela também sofresse com a sina de sua condição
predadora, pois “é muito tristeza que vem” na maré do mar.
Esta canção exemplifica bem o apego do poeta pela paisagem baiana como um
locus amoenus de encantamento místico, como nos versos: (...) Se você quiser amar / Se
você quiser amor / Vem comigo a Salvador / Pra ouvir Iemanjá... Ao levarmos o Canto
de Iemanjá para a sala de aula, devemos contextualizá-lo em sua criação poética e musical
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(como já o tentamos) e, principalmente, em sua cosmogonia iorubá. Sua lenda de origem é
bastante oportuna para entendermos melhor a canção:
Como notamos, o poder feminino que Iemanjá representa está associada ao mar
como uma força maternal, a fonte ancestral de alimento e de vida. Ao ouvirmos o Canto
de Iemanjá é notável como essa força está impregnada na melodia e no ritmo da canção.
O vocal feminino tece a melodia em um acentuado movimento ondulatório: Iemanjá,
Iemanjá, gerando uma explícita isomorfia entre significantes e significados. Afinal, a
canção inteira nos embala no balanço das ondas do mar, nos seduzindo de início ao fim,
e nos conduzindo “bem mais além do que o fim do mar”.
Canto de Xangô
Eu vim de bem longe
Eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim
Sou filho de Rei
Muito lutei pra ser o que eu sou
Xangô era rei de Oyó, terra de seu pai; já sua mãe era da cidade de
Empê, no território de Tapa. Por isso, ele não era considerado filho
legítimo da cidade. A cada comentário maldoso Xangô cuspia fogo e
soltava faíscas pelo nariz. Andava pelas ruas da cidade com seu Oxé,
um machado de duas pontas, que o tornava cada vez mais forte e
astuto onde havia um roubo, o rei era chamado e, com seu olhar
certeiro, encontrava o ladrão onde quer que estivesse. Para continuar
reinando, Xangô defendia com bravura sua cidade; chegou até a
destronar o próprio irmão, Dadá, de uma cidade vizinha para ampliar
seu reino. Com o prestigio conquistado, Xangô ergueu um palácio
com cem colunas de bronze, no alto da cidade de Kossô, para viver
com suas três esposas: Iansã amiga e guerreira; Oxum, coquete e
faceira e Obá, amorosa e prestativa. Para prosseguir com suas
conquistas, Xangô pediu ao babalaô de Oyó uma fórmula para
aumentar seus poderes; este entregou-lhe uma caixinha de bronze,
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recomendando que só fosse aberta em caso de extrema necessidade de
defesa. Curioso, Xangô contou a Iansã o ocorrido e ambos, não se
contendo, abriram à caixa antes do tempo. Imediatamente começou a
relampejar e trovejar; os raios destruíram o palácio e a cidade,
matando toda a população. Não suportando tanta tristeza, Xangô
afundou terra adentro, retornando ao Orun. (TEEG, 2010, s.p.)
Outra fonte literária informa que a causa do incêndio da cidade de Xangô foi mais
complexa:
Xangô convocou os maiores feiticeiros de Oyó e lhes pediu que
inventassem fórmulas para aumentar seu poder, mas não satisfeito
com o trabalho dos feiticeiros, pediu ajuda a Exu. Exu aceitou a tarefa,
pediu uma cabra como sacrifício e ordenou que dentro de sete dias
Iansã fosse buscar o preparado. Quando chegou o dia combinado, lá
foi ela à casa de Exu. Lá chegando, saudou Exu e disse que o
sacrifício estava a caminho. O preparado estava embrulhado numa
folha. Ela pegou o pacote e partiu. No caminho, Iansã parou para
descansar. Não contendo a crescente curiosidade, desembrulhou o
pacote para ver o que tinha dentro. Não havia nada além de um pó
vermelho e ela pôs um pouquinho na boca para experimentar.
(...) Quando ela começou a falar, saiu fogo de sua boca. Xangô
entendeu que ela tinha provado o remédio. Ficou irado e tentou bater
em Iansã, mas ela fugiu de casa... (...) Mas ele ainda não sabia usar o
preparado. Quando anoiteceu, ele pegou o pacote de Exu e foi a um
lugar bem alto, de onde podia ver toda a cidade. Colocou um pouco do
pó vermelho na língua e, quando expirou o ar dos pulmões, uma
enorme labareda jorrou de sua boca, depois outra e mais outra, sem
parar. As chamas se estenderam por sobre toda a cidade... (PRANDI,
Op. cit. p.265-266)
Essa última versão talvez possa nos ajudar a entender o verso: Sete dias para gente
amar, pois esse foi o tempo necessário para que Exu preparasse a poção para Xangô, antes
de acontecer a tragédia do fogo. Uma alegoria da efemeridade do amor que foi também
representado liricamente por Camões como uma “chama que arde sem se ver”. Como um
ser vaidoso, sedutor e casado com três divindades femininas (Obá, Iansã e Oxum), Xangô
estaria situado no panteão dos orixás em plena simetria ao erotismo de Iemanjá. Só que
diferentemente da deusa marinha, que aparenta sofrer da sina de seu próprio fado, Xangô
aparenta “gostar de morrer de amar”, como anuncia eroticamente o final de seu canto: Mas
amar é sofrer / Mas amar é morrer de dor / Xangô meu Senhor, saravá! / Me faça sofrer /
Ah, me faça morrer / Ah, me faça morrer de amar...3
3
Há um outro afro-samba de Baden e Vinícius neste disco, Labareda, cuja letra é bem pertinente neste
sentido: Oh, labareda te encostou / Lá vai, lá vai, labareda // Oh, labareda te queimou / Lá vai, lá vai,
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Canto de Ossanha
Vai, vai, vai, não vou / Vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, não vou / Vai, vai, vai, não vou
Eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou
Vai, vai, vai, vai, amar / Vai, vai, vai, vai, sofrer
Vai, vai, vai, vai, chorar / Vai, vai, vai, vai, dizer
labareda (...) Labareda / Fogo que parece amor / Tua dança / É a chama de uma flor / Labareda / Quem
te vê assim dançar / Em teus braços / Logo quer queimar.
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Esta canção inaugura o álbum Os afro-sambas como que abrindo os caminhos das
demais faixas do disco. Afinal, Ossanha, também chamado Ossaim, é o orixá conhecedor
das ervas e o curandeiro do candomblé, onde sua presença é fundamental na celebração de
todas as cerimônias. Para entendermos o Canto de Ossanha, precisamos recorrer novamente
aos mitos de origem iorubá:
CASTELLO, José. Livro de letras. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.
NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música
popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
SANTOS, Jocélio Teles. Menininha do Gantois: a sacralização do poder. In: SILVA,
Vagner Gonçalves da. Caminhos da Alma: memória afro-brasileira, São Paulo: Summus,
2002.
TEEG. Conhecendo os orixás. São Paulo: Templo Espírita Estrela Guia, 2010.
XAVIER, Marcelo. Os afro-sambas. In: Revista Rabisco. n.84. 2006. Disponível em:
< http://www.rabisco.com.br/84/afro_sambas.htm> acesso em 20, abr., 2010.
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