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Universidade Estadual de Maringá – UEM

Maringá-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 – ANAIS - ISSN 2177-6350


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A POÉTICA DOS ORIXÁS NOS AFRO-SAMBAS DE BADEN E VINÍCIUS: POR


UMA PEDAGOGIA DA CANÇÃO POPULAR

André Rocha L. Haudenschild (PG-UFSC)

Introdução

A canção popular de um país pode ser pensada como um “idioma cultural” único
e plural de um povo. Deste modo, podemos afirmar que a nossa Música Popular
Brasileira traz em si uma memória coletiva enraizada em anos da mistura de muitos
povos que aqui se encontram desde o século XVI à nossa atual “Idade Mídia”. Mais do
que um mero reflexo da sociedade, a canção brasileira do século XX pode ser vista
como um projeto inacabado de país, uma nação à espera de novas escutas que percebam
os processos de educação sentimental, estética e ideológica contidos em nossa cultura
(NAPOLITANO, 2007). Ao fomentarmos uma pedagogia poética e musical no contexto
escolar, através da prática da canção popular como um instrumento literário para o
aprendizado de temas transdisciplinares - históricos, sociológicos e mitopoéticos –,
estaremos construindo uma eficiente e prazerosa prática lúdica de ensino.

1. O samba é uma forma de oração

Ao entoarmos os versos iniciais de Samba da benção, uma das diversas canções


compostas por Baden Powell e Vinícius de Moraes, ouviremos: É melhor ser alegre que ser
triste / Alegria é a melhor coisa que existe / É assim como a luz no coração... // Mas pra fazer
um samba com beleza / É preciso um bocado de tristeza / É preciso um bocado de tristeza /
Senão, não se faz um samba não... Deste modo, somos iniciados aos mistérios da criação
daquele que é um dos gêneros musicais mais representativos de nossa cultura popular, o samba.
Afinal, para se “fazer um samba com beleza, é preciso um bocado de tristeza”, um sentimento
dialético que compactua com a dor de toda uma civilização que apesar de ser escravizada por
mais de três séculos, foi capaz de resistir com suas fecundas raízes culturais e ainda parir uma
das mais frondosas ramagens de nossa cultura: as manifestações culturais afro-brasileiras.
E o Samba da benção ainda continua: Fazer samba não é contar piada / E quem faz
samba assim não é de nada / O bom samba é uma forma de oração... // Porque o samba é a
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tristeza que balança / E a tristeza tem sempre uma esperança / A tristeza tem sempre uma
esperança / De um dia não ser mais triste não... Se o samba é, e sempre foi, “uma forma de
oração”, é porque a canção popular está vinculada ao canto ritualístico, como também já
afirmava uma canção de Vadico e Noel Rosa, Feitio de oração (1932): (...) Com satisfação
e com harmonia / Esta triste melodia / Que é meu samba em feitio de oração...
Como sabemos, a poesia e palavra cantada soaram juntas desde os Vedas hindus, o
Taoísmo chinês, e as cosmogonias africanas e ameríndias. Nas culturas ancestrais, a
linguagem poética dos cantores era um valioso meio de expressão, desempenhando uma
função muito maior do que a mera aspiração artística ou literária, cuja poesia punha os
rituais em palavras. E a lírica do samba é a prova concreta disso: Ponha um pouco de amor
numa cadência / E vai ver que ninguém no mundo vence / A beleza que tem um samba,
não... // Porque o samba nasceu lá na Bahia / E se hoje ele é branco na poesia / Se hoje ele
é branco na poesia / Ele é negro demais no coração...
A valorização da cultura afro-brasileira, como uma potencialidade “negra demais no
coração” da intelectualidade nacional, foi bem notada por Jocélio Santos ao afirmar que
houve um intenso movimento cultural no Brasil, no início da década de 60, que foi a busca
por autênticos símbolos nacionais e o que se desejava eram os símbolos culturais afro-
brasileiros (SANTOS, 2002). Vale notar que o próprio poeta Vinícius de Moraes tinha
criado na década anterior, o espetáculo teatral Orfeu da Conceição (1956), realizando com
grande sucesso uma releitura original do herói-músico grego 1. Assim como, uma canção
sintomática desta “obsessão afro” do poeta, vinculada à Bahia como a terra-mãe de nossa
fundação original, está presente na lírica da canção Maria Moita (1963), composta para o
espetáculo Pobre menina rica, em parceria com Carlos Lyra: Nasci lá na Bahia / De
Mucama com feitor / Meu pai dormia em cama / Minha mãe no pisador...
Não por acaso, em 1965, os compositores cariocas Tom Jobim e Vinícius de Moraes
gravariam dois álbuns com Dorival Caymmi em total sintonia com o lirismo de suas
“canções praieiras”, respectivamente os LPs Caymmi visita Tom e Vinícus e Caymmi no
Zum-zum (ambos pelo selo Elenco, de Aloysio de Oliveira). Vale à pena conhecermos como
se deu esta certa fascinação mística na obra musical do poeta Vinícius de Moraes:

1
Orfeu da Conceição, “tragédia carioca” de Vinícius de Moraes, ambientada nos morros dos anos 50,
estreiou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 25 de setembro de 1956, com cenografia de Oscar
Niemeyer e música de Tom Jobim (a trilha sonora seria lançada no mesmo ano pela gravadora Odeon).
Em 1959, a peça foi adaptada ao cinema por Marcel Camus sob o nome Orfeu Negro, recebendo diversos
prêmios internacionais e projetando as primeiras parcerias de Tom e Vinícius em nível mundial.
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Diz a lenda que tudo começou na boate Arpége, no Leme, Zona Sul do
Rio. O poeta Vinícius de Moraes foi a esta conhecida casa noturna dos
tempos da saudosa boemia bem vestida das noites cariocas do tempo
da Bossa Nova prestigiar o velho amigo, Antônio Carlos Jobim,
quando descobriu, pálido de espanto, o talento jovem e ligeiramente
desconhecido de um exímio violonista de Varre-e-Sai, que atendia
pelo curioso nome de Baden Powell de Aquino, e que fazia algum
sucesso pela voz de Lúcio Alves, com o seu “Samba Triste”, em
parceria com Billy Blanco.
(...) Mas e os Afro-sambas? Pouco antes de travar conhecimento do
Baden, o “poetinha” ganhou um disco, intitulado Sambas de Roda e
Candomblés da Bahia. Em pouco tempo, aquele despretensioso
bolachão transformaria o criador da “Balada das Arquivistas” e do
“Orfeu da Conceição” no “branco mais preto do Brasil, na linha direta
de Xangô”. Aqueles temas baianos o impressionaram, ao mesmo
tempo em que o próprio Baden rumava à este mesmo caminho,
quando fora apresentado ao capoeirista Canjiquinha que conduziria
Badeco a terreiros, rodas de capoeira ao mesmo tempo em que lhe
apresenta os sagrados cânticos do candomblé. O poeta se assomara
pelo místico; Baden, pelas novas harmonias. (XAVIER, 2006, s.p.)

Se a arte do encontro entre Baden e Vinícius 2 foi pautada pelo samba de roda, pela
capoeira e pelo candomblé, é porque ambos estavam em busca de um “elogio da negritude”
através de autênticas fontes culturais baianas. Segundo José Castello, “Baden não apenas
africanizou Vinícius, ele o transportou para um mundo mais quente, mais contaminado por
tradições e sentimentos atávicos, mais – bem mais – incontrolável” (CASTELLO, 1991,
p.58). Ou seja, o “Poetinha” seria iniciado ao mundo mitopoético dos orixás através do
contato com o candomblé via Baden Powell, sendo capaz de “entrelaçar o cotidiano com o
cósmico, de lançar uma ponte inesperada entre a tradição negra e as interrogações
metafísicas da zona sul” (CASTELLO, Op. cit., idem), conforme ainda veremos.

2. Iemanjá

2
Em 1963, as primeiras parcerias musicais de Baden Powell e Vinícius de Moraes, as canções: O
astronauta, Berimbau, Só por amor, Deixa, Seja feliz, Mulher carioca, Samba em prelúdio, Labareda, É
hoje só, Deve ser amor, Além do amor e Samba da bênção, foram registradas no LP Vinícius & Odette
Lara, pelo selo Elenco. Em 1964, Baden gravaria o LP À vontade, e passaria seis meses na Bahia,
pesquisando música de candomblé e os cantos dos terreiros. Em 1965, voltaria a compor com Vinícius
uma série de músicas registradas novamente pelo selo Elenco, no LP De Vinícius e Baden especialmente
para Cyro Monteiro, contendo as parcerias Samba do café, Linda baiana, Formosa e Tempo feliz, entre
outras. Em 1966, gravaram os afro-sambas Canto de Ossanha, Canto de Xangô, Bocochê, Canto de
Iemanjá, Tempo de amor, Canto de Pedra Preta, Tristeza e solidão e Lamento de Exu; respectivamente
registrados no LP Os afro-sambas (selo Forma), com arranjos de Guerra Peixe e participação do conjunto
vocal feminino, Quarteto em Cy.
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Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é dona Janaína que vem
Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é muita tristeza que vem

Vem do luar no céu


Vem do luar
No mar coberto de flor, meu bem
De Iemanjá
De Iemanjá a cantar o amor
E a se mirar
Na lua triste no céu, meu bem
Triste no mar

Se você quiser amar


Se você quiser amor
Vem comigo a Salvador
Para ouvir Iemanjá

A cantar, na maré que vai


E na maré que vem

Do fim, mais do fim, do mar


Bem mais além
Bem mais além do que o fim do mar
Bem mais além

Cultuada como “a senhora do mar, dona das águas, mãe dos orixás”, Iemanjá é
talvez o orixá mais conhecido no Brasil, associada sincreticamente ao culto à Nossa
Senhora. Afinal, “é uma das mães primordiais e está presente em muitos dos mitos que
falam da criação do mundo” (PRANDI, 2001, p.22) ela é a representação da ancestralidade
feminina da humanidade, assim como as nereidas e as divindades greco-latinas Hera e
Vênus. A ambigüidade de seu valor é que ela é uma força de sedução perigosa, pois transita
entre a vitalidade de sua beleza sedutora e a tristeza destrutiva daqueles que ela seduz, como
afirmam os versos: (...) De Iemanjá a cantar o amor / E a se mirar / Na lua triste no céu,
meu bem / Triste no mar... Como se ela também sofresse com a sina de sua condição
predadora, pois “é muito tristeza que vem” na maré do mar.
Esta canção exemplifica bem o apego do poeta pela paisagem baiana como um
locus amoenus de encantamento místico, como nos versos: (...) Se você quiser amar / Se
você quiser amor / Vem comigo a Salvador / Pra ouvir Iemanjá... Ao levarmos o Canto
de Iemanjá para a sala de aula, devemos contextualizá-lo em sua criação poética e musical
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(como já o tentamos) e, principalmente, em sua cosmogonia iorubá. Sua lenda de origem é
bastante oportuna para entendermos melhor a canção:

Filha de Olokum, deusa do mar, Iemanjá era casada com Olofim


Oduduá com quem tinha dez filhos orixás. Por amamentá-los, ficou
com seios enormes. Impaciente e cansada de morar na cidade de Ifé,
ela saiu em rumo oeste, e conheceu o rei Okerê; logo se apaixonaram
e casaram-se. Envergonhada de seus seios, Iemanjá pediu ao esposo
que nunca a ridiculariza-se por isso. Ele concordou; porem, um dia,
embriagou-se e começou a gracejar sobre os enormes seios da esposa.
Entristecida, Iemanjá fugiu. Desde menina, trazia num pote uma
poção, que o pai lhe dera para casos de perigo. Durante a fuga,
Iemanjá caiu quebrando o pote, a poção transformou-a num rio cujo
leito seguia em direção ao mar. Ante o ocorrido, Okerê, que não
queria perder a esposa, transformou-se numa montanha para barrar o
curso das águas. Iemanjá pediu ajuda ao filho Xangô, e este, com um
raio, partiu a montanha no meio; o rio seguiu para o oceano e, dessa
forma, a orixá tornou-se a rainha do mar. (TEEG, 2010, s.p.)

Como notamos, o poder feminino que Iemanjá representa está associada ao mar
como uma força maternal, a fonte ancestral de alimento e de vida. Ao ouvirmos o Canto
de Iemanjá é notável como essa força está impregnada na melodia e no ritmo da canção.
O vocal feminino tece a melodia em um acentuado movimento ondulatório: Iemanjá,
Iemanjá, gerando uma explícita isomorfia entre significantes e significados. Afinal, a
canção inteira nos embala no balanço das ondas do mar, nos seduzindo de início ao fim,
e nos conduzindo “bem mais além do que o fim do mar”.

Canto de Xangô
Eu vim de bem longe
Eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim
Sou filho de Rei
Muito lutei pra ser o que eu sou

Eu sou negro de cor


Mas tudo é só o amor em mim
Tudo é só o amor para mim
Xangô Agodô
Hoje é tempo de amor
Hoje é tempo de dor, em mim
Xangô Agodô
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Salve, Xangô, meu Rei Senhor
Salve, meu Orixá
Tem sete cores sua cor
Sete dias para gente amar

Mas amar é sofrer


Mas amar é morrer de dor
Xangô meu Senhor, saravá!
Me faça sofrer
Ah, me faça morrer
Ah, me faça morrer de amar
Xangô, meu Senhor, saravá
Xangô Agodô

Já o Canto de Xangô, cantado com um sujeito em primeira pessoa, tem um ritmo


sincopado marcadamente africano com sua instrumentação repleta de percussões, como o
agogô (de metal) e os atabaques (com suas peles percutidas com hastes de bambu), que
criam uma sonoridade típica de um terreiro de candomblé bem apropriada para a lírica desta
canção. Vale atentarmos também para o seu arranjo, pois entram na introdução apenas o
agogô, os atabaques e o violão, seguidos da voz de Baden Powell, que contrastam com a
entrada apoteótica do coro feminino no refrão: Salve, Xangô, meu Rei Senhor / Salve, meu
Orixá / Tem sete cores sua cor / Sete dias para gente amar.
Xangô é o deus do raio e do fogo, um orixá temido e respeitado, pois além de viril e
violento, é também justiceiro. Seu símbolo principal é o machado de dois gumes e a
balança, símbolo da justiça. Assim como Iemanjá, tem um aspecto ambíguo, pois conforme
a situação pode reinar com autoritarismo e tirania, conforme entendemos em sua origem
iorubá:

Xangô era rei de Oyó, terra de seu pai; já sua mãe era da cidade de
Empê, no território de Tapa. Por isso, ele não era considerado filho
legítimo da cidade. A cada comentário maldoso Xangô cuspia fogo e
soltava faíscas pelo nariz. Andava pelas ruas da cidade com seu Oxé,
um machado de duas pontas, que o tornava cada vez mais forte e
astuto onde havia um roubo, o rei era chamado e, com seu olhar
certeiro, encontrava o ladrão onde quer que estivesse. Para continuar
reinando, Xangô defendia com bravura sua cidade; chegou até a
destronar o próprio irmão, Dadá, de uma cidade vizinha para ampliar
seu reino. Com o prestigio conquistado, Xangô ergueu um palácio
com cem colunas de bronze, no alto da cidade de Kossô, para viver
com suas três esposas: Iansã amiga e guerreira; Oxum, coquete e
faceira e Obá, amorosa e prestativa. Para prosseguir com suas
conquistas, Xangô pediu ao babalaô de Oyó uma fórmula para
aumentar seus poderes; este entregou-lhe uma caixinha de bronze,
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recomendando que só fosse aberta em caso de extrema necessidade de
defesa. Curioso, Xangô contou a Iansã o ocorrido e ambos, não se
contendo, abriram à caixa antes do tempo. Imediatamente começou a
relampejar e trovejar; os raios destruíram o palácio e a cidade,
matando toda a população. Não suportando tanta tristeza, Xangô
afundou terra adentro, retornando ao Orun. (TEEG, 2010, s.p.)

Outra fonte literária informa que a causa do incêndio da cidade de Xangô foi mais
complexa:
Xangô convocou os maiores feiticeiros de Oyó e lhes pediu que
inventassem fórmulas para aumentar seu poder, mas não satisfeito
com o trabalho dos feiticeiros, pediu ajuda a Exu. Exu aceitou a tarefa,
pediu uma cabra como sacrifício e ordenou que dentro de sete dias
Iansã fosse buscar o preparado. Quando chegou o dia combinado, lá
foi ela à casa de Exu. Lá chegando, saudou Exu e disse que o
sacrifício estava a caminho. O preparado estava embrulhado numa
folha. Ela pegou o pacote e partiu. No caminho, Iansã parou para
descansar. Não contendo a crescente curiosidade, desembrulhou o
pacote para ver o que tinha dentro. Não havia nada além de um pó
vermelho e ela pôs um pouquinho na boca para experimentar.
(...) Quando ela começou a falar, saiu fogo de sua boca. Xangô
entendeu que ela tinha provado o remédio. Ficou irado e tentou bater
em Iansã, mas ela fugiu de casa... (...) Mas ele ainda não sabia usar o
preparado. Quando anoiteceu, ele pegou o pacote de Exu e foi a um
lugar bem alto, de onde podia ver toda a cidade. Colocou um pouco do
pó vermelho na língua e, quando expirou o ar dos pulmões, uma
enorme labareda jorrou de sua boca, depois outra e mais outra, sem
parar. As chamas se estenderam por sobre toda a cidade... (PRANDI,
Op. cit. p.265-266)

Essa última versão talvez possa nos ajudar a entender o verso: Sete dias para gente
amar, pois esse foi o tempo necessário para que Exu preparasse a poção para Xangô, antes
de acontecer a tragédia do fogo. Uma alegoria da efemeridade do amor que foi também
representado liricamente por Camões como uma “chama que arde sem se ver”. Como um
ser vaidoso, sedutor e casado com três divindades femininas (Obá, Iansã e Oxum), Xangô
estaria situado no panteão dos orixás em plena simetria ao erotismo de Iemanjá. Só que
diferentemente da deusa marinha, que aparenta sofrer da sina de seu próprio fado, Xangô
aparenta “gostar de morrer de amar”, como anuncia eroticamente o final de seu canto: Mas
amar é sofrer / Mas amar é morrer de dor / Xangô meu Senhor, saravá! / Me faça sofrer /
Ah, me faça morrer / Ah, me faça morrer de amar...3

3
Há um outro afro-samba de Baden e Vinícius neste disco, Labareda, cuja letra é bem pertinente neste
sentido: Oh, labareda te encostou / Lá vai, lá vai, labareda // Oh, labareda te queimou / Lá vai, lá vai,
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Canto de Ossanha

O homem que diz “dou”, não dá


Porque quem dá mesmo não diz
O homem que diz “vou”, não vai
Porque quando foi, já não quis
O homem que diz “sou”, não é
Porque quem é mesmo é “não sou”
O homem que diz tô, não tá
Porque ninguém tá quando quer
Coitado do homem que cai
No canto de Ossanha traidor
Coitado do homem que vai
Atrás de mandinga de amor

Vai, vai, vai, não vou / Vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, não vou / Vai, vai, vai, não vou
Eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou

Não, eu só vou se for pra ver


Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor
Amigo senhor Saravá
Xangô me mandou lhe dizer
Se é canto de Ossanha, não vá
Que muito vai se arrepender
Pergunte pro seu orixá
Amor só é bom se doer

Vai, vai, vai, vai, amar / Vai, vai, vai, vai, sofrer
Vai, vai, vai, vai, chorar / Vai, vai, vai, vai, dizer

Que eu não sou ninguém de ir


Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou

Não, eu só vou se for pra ver


Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor

labareda (...) Labareda / Fogo que parece amor / Tua dança / É a chama de uma flor / Labareda / Quem
te vê assim dançar / Em teus braços / Logo quer queimar.
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Esta canção inaugura o álbum Os afro-sambas como que abrindo os caminhos das
demais faixas do disco. Afinal, Ossanha, também chamado Ossaim, é o orixá conhecedor
das ervas e o curandeiro do candomblé, onde sua presença é fundamental na celebração de
todas as cerimônias. Para entendermos o Canto de Ossanha, precisamos recorrer novamente
aos mitos de origem iorubá:

Um rei decidiu casar a sua filha mais velha. Dá-la-ia em casamento ao


pretendente que adivinhasse o nome de suas três filhas. Ossaim
aceitou o desafio. À tarde, Ossaim saiu sorrateiro por trás do palácio.
Subiu no pé de obi [nogueira] e se escondeu entre seus galhos.
Quando as três princesinhas saíram para brincar, foram surpreendidas
por um canto que vinha daquela árvore.
Era o canto de pássaro irresistível, de um passarinho das matas de
Ossaim. Mas o canto era de Ossaim, imitando o pássaro. O passarinho
brincou com as três princesas e conseguiu saber o nome delas: Aio
Delê, Omi Delê e Onã Iná, eram estes os nomes das filhas do rei. Sua
esperteza havia dado certo.
No dia seguinte Ossaim foi ao rei e declamou a ele o nome das
princesas. Ossaim, então, casou-se com a mais velha. Sua esperteza
havia dado certo. Ossaim desde então é identificado com o pássaro.
(PRANDI, Op. cit., p.156).

Como notamos, Ossanha está associado ao artifício, ao engano de uma artimanha


musical usada para seduzir o ouvido (e o coração) de suas possíveis amantes, como avisam
os versos: Se é canto de Ossanha não vá / Que muito vai se arrepender... Mas talvez
possamos visualizar nesta canção, além da conotação da traição eminente (Coitado do
homem que cai / No canto de Ossanha traidor / Coitado do homem que vai / Atrás de
mandinga de amor) e indecisa (Vai, vai, vai, não vou / Vai, vai, vai, não vou), uma crítica
implícita aos “homens de poder” em plena instauração da ditadura pós-golpe de 1964: a
ilusão das promessas demagógicas (O homem que diz dou, não dá / Porque quem dá mesmo
não diz).
Notável o teor dialético dos primeiros versos desta canção, um movimento pendular
entre o “dizer” e o “fazer” que é redimensionado pelo jogo musical entre o canto do solista
(o próprio Baden) e o coro (o vocal do Quarteto em Cy), gerando um diálogo entre os
gêneros masculino e feminino muito apropriado ao sentido da canção. Estes versos iniciais
dialogam diretamente com os versos de outro afro-samba, a canção Berimbau: Quem é
homem de bem, não trai /O amor que lhe quer seu bem // Quem diz muito que vai, não vai /
E assim como não vai, não vem...
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Já quase no final da canção, a estrofe nos avisa: Vai, vai, vai, amar / Vai, vai, vai, sofrer
/ Vai, vai, vai, chorar / Vai, vai, vai, dizer, como se para viver a vida por inteiro é preciso
“amar, sofre, chorar e dizer”, completando um ciclo sem fim: o ciclo inesgotável do amor.
Pois mesmo sem mandinga ou feitiço, a dor deliciosa da paixão será sempre inevitável. “-
Pergunte pro seu orixá...”

Capa: Goebel Weyne / Foto: Pedro de Moraes


Selo Forma, 1966
Referências

CASTELLO, José. Livro de letras. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.
NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música
popular brasileira. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
SANTOS, Jocélio Teles. Menininha do Gantois: a sacralização do poder. In: SILVA,
Vagner Gonçalves da. Caminhos da Alma: memória afro-brasileira, São Paulo: Summus,
2002.
TEEG. Conhecendo os orixás. São Paulo: Templo Espírita Estrela Guia, 2010.
XAVIER, Marcelo. Os afro-sambas. In: Revista Rabisco. n.84. 2006. Disponível em:
< http://www.rabisco.com.br/84/afro_sambas.htm> acesso em 20, abr., 2010.
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