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Liberalismo versus democracia social

Alfredo Bosi

E HÁ UM objetivo que Losurdo perse- viam nenhuma contradição entre pro-


S gue de modo coerente ao longo desta clamar os dogmas da Economia Política
Contra-história do liberalismo é o de pre- clássica e defender a peculiar institution,
ferir o exame das políticas liberais “em como chamavam o cativeiro negro.
sua concretização” ao engessamento em O que inquieta nosso autor é consta-
definições genéricas pelas quais o termo tar o prestígio neoliberal dos textos de
“liberalismo” se toma como uniforme e Calhoun reeditados em 1992 em uma
abstrata doutrina. A sua regra de ouro coleção norte-americana que se intitula
é historicizar sempre, isto é, analisar os “Clássicos da Liberdade”.
papéis efetivos que os diversos grupos A relação entre doutrina liberal e es-
políticos exerceram em nome de idéias cravidão, que, teoricamente, pareceria
e ideais liberais. uma disjuntiva radical, revela-se na “veri-
O método é fecundo, daí a riqueza tà effettuale della cosa” (não por acaso,
dos resultados. Limito-me a pontuar al- expressão de Maquiavel) uma conjunção
guns momentos fortes em que vemos, reiterável nos mais diversos contextos.
em ato, propostas e decisões tomadas Começando por John Locke: solicitado
por políticos assumidamente liberais. pelos proprietários da Carolina a colabo-
John Calhoun, vice-presidente dos rar na redação das Constituições daquela
Estados Unidos entre l829 e 1832, líder colônia, o filósofo subscreveu um artigo
do Partido Democrático, escreveu tex- (de n.110) pelo qual “todo homem li-
tos apaixonados em defesa da liberda- vre da Carolina deve ter absoluto poder
de individual e das minorias, contra os e autoridade sobre seus escravos negros,
abusos do Estado e a favor das garantias seja qual for sua opinião e religião”.
constitucionais. Sua fonte teórica é o pai Locke, entusiasta da Revolução Glo-
do liberalismo político inglês, John Lo- riosa e acionista da Royal African Com-
cke. Ao mesmo tempo e com igual con- pany, escrevia no século XVII. John Stu-
vicção, Calhoun defende a escravidão art Mill, em pleno século XIX, retomaria
dos negros como um “bem positivo”, galhardamente os ideais de liberdade in-
recusando-se a considerá-la como “mal dividual na mais pura tradição britânica,
necessário”, fórmula concessiva de seus mas não deixaria de afirmar que “o des-
companheiros de partido e fé liberal. potismo é uma forma legítima de gover-
Os abolicionistas, os philanthropists no quando se lida com bárbaros, desde
religiosos, eram, para Calhoun, “cegos que a finalidade seja o seu progresso e os
fanáticos” que se propunham a destruir meios sejam justificados pela sua real ob-
“a escravidão, uma forma de proprieda- tenção”. Mais adiante, exige “obediên-
de garantida pela Constituição”. cia absoluta dos bárbaros”, cuja escravi-
Losurdo poderia, a partir desse pri- zação seria “uma fase necessária, válida
meiro exemplo, ter ido um pouco além para as raças não civilizadas”.
e verificar que estudiosos e expositores São exemplos de atitudes que não se
de Adam Smith nos estados do Sul não esgotam, porém, na hipótese, só em par-

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te verdadeira, de que foi a situação co- tre ideologia liberal-capitalista e trabalho
lonial a responsável pela combinação de compulsório. Lembrando que o número
liberalismo com a escravidão. Calhoun de escravos trazidos da África aumentou
era vice-presidente de uma nação que já de modo extraordinário na primeira me-
desfrutava, havia mais de meio século, tade do século XIX, precisamente quan-
de altiva independência política. Losur- do o liberalismo se convertia em ideal
do lembra incisivamente: hegemônico além e aquém do Atlântico,
Em 32 – dos primeiros 36 anos dos o autor vai rastrear uma das razões en-
Estados Unidos – os que ocupam o tão alegadas para justificar o cativeiro dos
cargo de Presidente são proprietários negros: a inferioridade racial. Os liberais,
de escravos provenientes da Virgínia. para manter a cara limpa em face da vio-
George Washington, grande prota- lência que os seus interesses os levavam
gonista militar e político da revolta a perpetrar, lançam mão do preconceito
anti-inglesa, John Madison e Thomas
que a ciência do século já estava trans-
Jefferson (autores respectivamente
formando em dogma. A discriminação
da Declaração da Independência e da
Constituição Federal em 1787), fo- permaneceria ainda mais viva depois da
ram proprietários de escravos. abolição, e aqui a observação de Tocque-
ville é de citação obrigatória: “Em quase
Quanto à hegemonia da liberal Ingla- todos os estados [dos Estados Unidos],
terra no que se refere ao tráfico ao lon- nos quais a escravidão foi abolida, são
go do século XVIII, sabe-se que a Royal concedidos aos negros direitos eleitorais,
African Company arrancou da decaden- mas, se eles se apresentam para votar,
te Espanha o monopólio do comércio de
correm risco de vida. Oprimido, pode
carne humana.
até lamentar-se e dirigir-se à magistratu-
No caso da Holanda, pátria da tole- ra, mas encontra só branco entre os seus
rância religiosa nos séculos XVII e XVIII, juízes”. O que se conhece da discrimi-
a conivência assumida com o tráfico é de nação racial ao longo dos séculos XIX e
molde a abalar os corações eurocêntricos XX (linchamentos, apartheid...) só viria
mais convictos. confirmar a reprodução dos limites inter-
O primeiro país a entrar no caminho nos da burguesia liberal que, chegando
do liberalismo é o país que revela um ao poder, sabe quem e como excluir.
apego particularmente ferrenho ao
No capítulo central da obra, Losur-
instituto da escravidão. Em 1791, os
do volta-se para a história exemplar do
Estados Gerais declaram formalmente
que o comércio dos negros era essen- liberalismo francês entre as revoluções
cial para o desenvolvimento da prospe- de 1789 e 1848. A admiração anglófila
ridade e do comércio nas colônias. E dos philosophes é conhecida. A Inglaterra
deve-se lembrar que a Holanda abolirá é o modelo perfeito das liberdades para
a escravidão nas suas colônias só em Voltaire e Diderot, como o fora para
1863, quando a Confederação seces- Montesquieu. O alvo, atingido na ilha,
sionista e escravista do Sul dos Estados é o absolutismo combinado com os abu-
Unidos caminha para a derrota. sos da nobreza e do clero. Mas, passa-
Losurdo tenta, a certa altura, percor- do o Terror, todo o esforço das novas
rer outro caminho para enfrentar a rela- gerações liberais será, desde o Diretório,
ção que se estabeleceu no Ocidente en- “terminar a revolução”.

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É curioso verificar que a questão do
trabalho compulsório é aleatoriamente
levantada por alguns liberais, que hoje
situaríamos na conjunção de centro e
esquerda, como Raynal, Condorcet e
Brissot. Os três confiam na “revolução
americana”, modelo que substituiria,
nos seus escritos, a anglofilia dos enci-
clopedistas.
Onde o liberalismo excludente en-
contra a mais firme resistência é no pen-
samento abolicionista radical. A voz
enérgica do abbé Grégoire se faz ouvir na
Convenção exigindo a supressão imedia-
ta e total do trabalho escravo nas colônias
LOSURDO, D. Contra-história do libera- e enaltecendo a figura de Toussant Lou-
lismo. Trad. Giovanni Semeraro. Aparecida: verture e a revolução do Haiti. “Uma
Idéias & Letras, 2006. 400p. república negra no meio do Atlântico”
– diz Grégoire – “é um farol elevado para
o qual dirigem o olhar os opressores en-
A escravidão nas Antilhas é abolida
rubescendo e os oprimidos suspirando.
pela Convenção, mas será restaurada por
Olhando-a, a esperança sorri para os 5
Napoleão em 1802, em nome dos sagra-
milhões de escravos espalhados nas An-
dos direitos de propriedade dos colonos.
Direitos que serão mantidos pela política tilhas e no continente americano”. (De
de centro-direita da Restauração (1814- passagem, falta traduzir para o português
1830) e continuariam intactos sob a a obra pioneira desse bispo republicano
monarquia liberal de Luís Felipe (1830- que tão bravamente denunciou a escravi-
1848). Direitos, enfim, plenamente con- dão e o preconceito de cor: De la noblesse
firmados pelos decretos da abolição que de la peau, ou du préjugé des blancs contre
obrigavam o novo Estado republicano la couleur des Africains et celle de leurs
francês a indenizar os proprietários dos descendants noirs e sang-mêlés.)
250.000 escravos libertados. Quem retomaria a bandeira de Gré-
As observações do autor rimam com goire seria outro republicano radical,
o excelente (embora não citado) Le mo- este agnóstico, Victor Schoelcher, que
ment Guizot de Pierre Rosanvallon, que conduziu a luta final pela abolição em
reconstituiu a história dos mecanismos plena revolução de 1848.
antidemocráticos acionados pelos gran- Nessa altura de sua exposição, Losur-
des mentores do liberalismo francês, Gui- do pode traçar a linha principal de cliva-
zot, Thiers, Benjamin Constant. Entre gem. De um lado, o liberalismo clássico,
esses mecanismos, o mais eficiente foi o proprietista e excludente e, quando lhe
voto censitário que entronizou a figura do é proveitoso, racista e escravista. De ou-
cidadão-proprietário em todas as nações tro, o radicalismo democrático, que tem
do Ocidente que emergiam da crise do como horizonte precisamente superar as
Antigo Regime. barreiras de classe e de raça que os libe-

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rais conservadores ergueram para defen- em que Mariátegui desvendou a estreita
der os seus privilégios. relação entre a política liberal-oligárqui-
O autor detém-se longamente nas ca, que regia o Peru após a Independên-
oscilações do mais fino e arguto dentre cia, e a brutal exploração do índio nos
os liberais franceses, Alexis de Tocquevil- latifúndios da região serrana.
le. Não cabe nesta resenha enumerá-las. Os argumentos dos liberais conser-
Verá o leitor que, após 48, Tocqueville vadores brasileiros não eram nada origi-
retrai-se em face dos movimentos demo- nais: misturavam críticas anódinas à ins-
cráticos da Itália de Mazzini e da Hun- tituição com firmes recusas de enfrentar
gria de Kossuth, perdendo o equilíbrio o problema de fundo, alegando sempre
que marcara A democracia na América os interesses de nossa economia de ex-
e chegando a augurar um projeto mili- portação sustentada pelo braço negro.
tar que reverta o processo revolucionário No plano político-jurídico, a Constitui-
desencadeado em quase toda a Europa. ção de 1824, incorporando dispositivos
Quanto à recente conquista da Argélia, da Carta da Restauração e o duro pro-
Tocqueville não usa de meios-termos: é prietismo do Código Napoleônico, omi-
preciso domar completamente as popula- tia pudicamente o termo “escravidão”,
ções árabes e forçá-las a viver sob a civili- exatamente como fizeram os autores da
zação branca, francesa. Involução ou coe- Constituição norte-americana e as cartas
rência do capitalismo liberal europeu que liberais das monarquias européias. Cá e
está reiniciando, nesse momento, o ciclo lá..., o cimento ideológico aplicado pe-
da conquista colonial prestes a atingir los donos do poder valeu-se largamente
todo o continente africano? A discutir. do rótulo prestigioso do liberalismo.
Na esfera do radicalismo, Losurdo si- O cerne da questão desnuda-se e ga-
tua certas declarações de Simón Bolívar nha atualidade quando o autor passa da
(hoje tão oportunas), que, louvando a relação senhor-escravo, ainda vigente
revolução do Haiti, sonha para a Amé- nos meados do século XIX, para o par
rica andina uma democracia de brancos moderno patrão-operário. Vem então à
e índios, negros e mestiços. Resta per- luz a oposição estrutural entre capital e
guntar: o que fizeram os políticos libe- trabalho e, em termos ideológicos, entre
rais que assumiram o poder na maioria o liberalismo e os vários socialismos que
das novas nações americanas? O que sa- se foram gestando na prática das lutas
bemos ao certo é que houve uma repro- operárias e na cabeça de pensadores re-
dução local da conivência de liberalismo volucionários ou reformistas.
burguês e escravidão (caso do Brasil, das Em toda parte aonde chega a Revo-
Antilhas e do sul dos Estados Unidos); lução Industrial, a regra é a superexplo-
e uma fusão do mesmo liberalismo for- ração do trabalhador e a degradação de
mal com a semi-servidão do indígena na sua qualidade de vida, como agudamen-
Colômbia, no Equador, no Peru e na te a descreveu Engels na Manchester de
Bolívia. Caso Losurdo houvesse tratado 1844.
mais detidamente das formações sociais A tensão que se estabelece entre le-
latino-americanas, muito lhe teria apro- gisladores liberais e os sindicatos é recor-
veitado a leitura dos Sete ensaios de inter- rente e não podemos dizer que tenha de-
pretação da realidade peruana (1928), saparecido. O neoliberalismo é o grande

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adversário das garantias trabalhistas que mente falando, inaplicável, porque
pretende, à Thatcher e à Reagan, su- não comporta nenhum dos elementos
primir ou precarizar. Um dos apóstolos necessários para fundar uma ordem
do fundamentalismo liberal-capitalista, social. Mas poderia destruir a ordem
Hayek, considera “dever moral do Esta- social que lhe preexiste.
do” (sic!) impedir que os sindicatos in-
terfiram no jogo livre do mercado.
É no mínimo estranho que ainda se
diga, de boa ou de má-fé, que o libera-
lismo foi ou é sinônimo de democracia
econômica e social. Ou então que só no
Brasil a burguesia imperial e seus por-
ta-vozes no Parlamento encenaram uma
comédia ideológica ao protelarem a abo-
lição do cativeiro. Se farsa houve, ela foi
representada em diversos contextos e em
todo o Ocidente desde que se criou o
termo liberalismo. O ensaio de Losurdo
contribui para desfazer qualquer equí-
voco eurocêntrico ao demonstrar que
o poder liberal, onde quer que estivesse
instalado, não se propôs jamais compar-
tilhar com “os de baixo” as suas sólidas
vantagens. Não se tratava de comédia,
mas do drama composto, em nível mun-
dial, pela estrutura contraditória do ca-
pitalismo em expansão.
A oposição entre liberalismo e efeti-
va democracia social oferece exemplos
em toda parte, desde os mais grosseiros
e violentos até os mais refinados. Um
dos mais eminentes economistas liberais
italianos, Einaudi, chamava, em 1909,
o imposto progressivo de “banditismo
organizado para roubar o dinheiro dos Alfredo Bosi é professor de Literatura
outros mediante o Estado”. Brasileira na Universidade de São Paulo
e autor, entre outras obras, de História
Losurdo poderia fechar o seu belo
concisa da literatura brasileira, O ser e
ensaio citando uma tese de Karl Polanyi o tempo da poesia, Dialética da coloniza-
reexposta brilhantemente em As meta- ção, Machado de Assis: o enigma do olhar,
morfoses da questão social de Robert Cas- Literatura e resistência e Brás Cubas em
tel: três versões. É editor da revista ESTUDOS
AVANÇADOS e membro da Academia Bra-
O mercado auto-regulado, forma pura
do desenvolvimento da lógica econô- sileira de Letras.
mica entregue a si mesma, é, estrita- @ – abosi@usp.br

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