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Escola de Frankfurt, crítica e clínica

Teoria tradicional e teoria crítica


A chamada Escola de Frankfurt foi um coletivo de intelectuais de inspiração
marxista surgido nos anos 20 com o propósito de teorizar criticamente um contexto
histórico então muito turbulento. O cenário em que se articularam Max Horkheimer
(1895-1972), Herbert Marcuse (1898-1979), Theodor Adorno (1902-1969)1, entre outros,
incluiu, num curto período, a eclosão da Primeira Guerra, a Revolução Russa, a ditadura
bolchevique e o surgimento do fascismo, a quebra das Bolsas e a Segunda Guerra. Diante
de um mundo que se destroçava e empilhava milhões de mortos, a pergunta que Adorno e
Horkheimer colocaram logo nas primeiras páginas de Dialética do Esclarecimento (1944)
foi: “Por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano,
está se afundando em uma nova espécie de barbárie?”
O sonho de entrar num “estado verdadeiramente humano”, relatado pelos autores,
ressoa como um vestígio do ideal iluminista, qual seja, a promessa da Razão histórica de
emancipação e liberdade. Promessa esta, como então era impossível não ver, apenas
parcialmente cumprida, ou então, cumprida de maneira contraditória ou desequilibrada:
se o Esclarecimento, como “pensamento em progresso”, provara-se indispensável para a
edificação de uma sociedade menos injusta, além de mais desenvolvida materialmente, o
que dizer então de seus momentos destrutivos, seus elementos regressivos e aniquiladores
do decantado “progresso” que volta e meia retornam, repetindo-se de tempos em tempos
a barbárie que esse conhecimento científico e esse sujeito do conhecimento tendem
esquecer?
A razão (científica, cartesiana, tradicional...) em seu progresso inexorável
seguramente nos conduziu a um mundo crescentemente administrado – como encarnado
em suas figuras máximas, o Estado e o Mercado (leia-se burocracia, serviço público,
escolas, empresas...), mas este progresso já parecia convergir muito mais para a
massificação do que para a emancipação, mais para a sujeição e alienação dos
trabalhadores do que para o crescimento espiritual dos seres humanos. Preocupados em
denunciar a realidade mais profunda desse mundo crescentemente administrado, os
autores teórico-críticos buscaram um “novo paradigma” para o conhecimento, uma
“teoria crítica” que já levaria esse nome exatamente por pretender se contrapor à teoria e
ao modo de fazer ciência no sentido tradicional. Em jargão acadêmico, tratava-se desde
então de opor uma racionalidade ampliada contra uma racionalidade atrofiada, uma razão
dialógica contra uma razão monológica, uma verdadeira crítica ou análise (integral ou
“em profundidade”) para desmascarar a razão parcial de um mundo regulado e dominado.
É o que se pode chamar de dialética do Iluminismo, uma operação da razão voltada
contra a razão, como se a razão pudesse superar a razão (ou como se o conceito pudesse
superar o conceito), ou ainda, como se o pensamento identificante inerente à razão
pudesse alcançar o não-idêntico...
Assim, Horkheimer empreendeu a crítica da teoria tradicional considerando-a
“cartesiana, como a que se encontra em vigor em todas as ciências especializadas”. O que
significa isto? Que a ciência ou teoria tradicional se fundamenta no ideal de ciência como
sistema dedutivo, um corpo de conhecimentos estruturado de modo que todas as
proposições referentes a determinado campo apareçam de tal modo ligadas que a maior
parte delas possa ser derivada de algumas poucas. Como na Geometria ou na Física, estas

1
Walter Benjamin, outro expoente, iria ligar-se aos frankfurteanos um pouco mais tarde
2

proposições formam assim os princípios gerais capazes de tornar mais completa a teoria
quanto menor seu número. A exigência fundamental dos sistemas teóricos tradicionais é a
de que todos os elementos sejam ligados de modo direto e não contraditório,
transformando-se em puro sistema matemático de signos. Embora um tal projeto possa
parecer demasiado exigente, o fato é que os sistemas assim construídos provaram-se
extremamente aptos à utilização operativa, isto é, sua aplicabilidade prática revelou-se
muito vasta.
Horkheimer admitiu a legitimidade e a validez de tal concepção de teoria ou
ciência, reconhecendo o quanto ela contribuiu para o controle técnico-instrumental da
natureza enquanto “força produtiva imediata” (Marx). Mas o reverso da moeda é
negativo. Para Horkheimer, o trabalho do especialista, dentro dos moldes da teoria
tradicional, realiza-se desvinculado dos demais, permanecendo alheio à conexão global
dos setores da produção. Nasce assim a aparência ideológica de uma autonomia dos
processos de trabalho, cuja direção deve ser deduzida da natureza interna de seu objeto. O
pensamento cientificista contenta-se com a organização da experiência, a qual se dá sobre
a base de determinadas atuações sociais, mas o que estas significam para o todo social
não entra nas categorias da “teoria tradicional”. Em outros termos, a teoria tradicional não
se ocupa da gênese social dos problemas, das situações reais nas quais a ciência é usada e
dos escopos para os quais é usada. Chega-se, assim, ao paradoxo de que a ciência
tradicional, exatamente porque pretende o maior rigor para que seus resultados alcancem
a maior aplicabilidade prática, acaba por se tornar mais abstrata e estranha à realidade
enquanto conexão mediatizada da práxis global de uma época. 2
Como expressão mais acabada da teoria tradicional, Horkheimer enfrentou-se com
o positivismo, por ele caracterizado como um tipo de razão subjetiva, formal e
instrumental, cujo único critério de verdade é seu valor operativo, ou seja, seu papel na
dominação do homem e da natureza. A razão positivista é aquela que realiza
completamente a tendência imanente de reduzir a diversidade do real a suas próprias
categorias, subsumindo todo não-idêntico à unidade do idêntico, como tal, operando
como pensamento identificante. Em todos os domínios a razão permite a comparação do
que é heterogêneo reduzindo-o a quantidades abstratas, substituindo a multiplicação
espontânea das coisas por sistemas de signos arbitrários que dão a conhecer essas coisas
somente na medida em que podem ser replicadas, fabricadas em modelo. Neste âmbito,
as palavras não são jamais usadas para expressar as qualidades das coisas e sim para
servir radicalmente na organização de um material do saber para aqueles que podem
dispor habitualmente dele. Por desenvolver-se apenas no campo da experiência possível,
ordenando os fenômenos conforme os meios construtivos, preferindo o estudo de
segmentos isolados e atomizados do real e recusando toda apreensão integradora que
inclua a vivência pessoal, “na via que os reconduz em direção à ciência moderna, os
homens renunciam ao sentido”.3
A consequência da razão que se submete aos fatos para melhor se apoderar dos
existentes (conforme a máxima de F. Bacon: “a natureza não se vence, se não quando se
lhe obedece”) é a coisificação e a automatização do próprio pensar, que tende a se fechar
naquilo que é efetuável à maneira maquinal: o cálculo.

2
Como no dito famoso de Heidegger, “A ciência não pensa” (in O que significa pensar), quer dizer, ela
conta, calcula, manipula, objetifica, sem que a dimensão ontológica, existencial, se abra para ela. Na
verdade, o desenvolvimento de nosso modelo técnico e industrial é conseqüência precisamente do
“esquecimento do ser” na trajetória da cultura ocidental.
3
M. Horkheimer e T. Adorno, O conceito de Aufklärung, p. 23
3

“Em vez de refletir em si mesma os diversos domínios do conhecimento, dos quais ela
é o fundamento produtor, a razão se torna estranha à sua própria significação,
confundindo-se com procedimentos formais que se limitam a organizar a ação prática
sobre o mundo”. 4
Dentro dessas coordenadas, a razão se desembaraça da reflexão sobre os fins e
torna-se incapaz de dizer que um sistema político ou econômico é irracional. Por cruel e
despótico que ele possa ser, contanto que funcione, a razão positivista o aceita e não deixa
ao homem outra escolha a não ser a resignação. Pois mesmo quando possui um interesse
universalista, desejando a emancipação social, o cientista tradicional é um especialista
que vê, como tal, esse interesse como algo exterior à sua atividade. Profissionalmente ele
se limita a tentar descortinar “o que é” (seja o que for: um efeito físico, um vírus, uma
oscilação econômica...) relegando seus desejos quanto ao que “deve ser” (valores,
princípios morais, éticos ou políticos...) a uma outra esfera da existência, aquela em que é
um cidadão qualquer e não um cientista.
Ora, contrariamente a este descolamento do contexto sócio-histórico característico
do pesquisador que coloca o mundo entre parênteses para se dedicar ao estudo molecular,
parte-extra-partes, de algum segmento da realidade isolada experimentalmente, a teoria
crítica, escreve Horkheimer, “nasce da consideração dos homens de tempos em tempos,
vivendo sob condições determinadas e que conservam sua própria vida com a ajuda dos
instrumentos de trabalho”. Repetindo W. Dilthey, Horkheimer reafirmou a diferença entre
a natureza não criada pelo homem e o mundo histórico humanamente criado. Se através
do estudo de segmentos isolados e atomizados a matéria morta da natureza permite uma
explicação do exterior, o mundo humano, vivo e inesgotável, requer uma compreensão
interna, uma apreensão integradora das formas de vivência.
A tomada em consideração de que a existência social age como determinante da
consciência não é uma noção nova, mas o propósito de Horkheimer com a teoria crítica
era o de fazer um diagnóstico de uma situação histórica incluindo-se o compromisso com
sua superação, isto é, a teoria crítica haveria que compor com a vivência na geração de
novas formas históricas de vida.5 Dito de outra maneira, ao opor a teoria crítica à razão
instrumental e subjetiva dos positivistas, Horkheimer não evidenciava somente uma
divergência de ordem teórica; para ele, como para os frankfurteanos em geral, o valor de
uma teoria dependia de sua relação com a práxis, o que significa que, para ser relevante,
uma teoria social tem que estar relacionada às questões nas quais, num dado momento
histórico, as forças sociais progressistas se engajam. A teoria crítica é, por assim dizer,
fundada epistemologicamente na necessidade de superar o dualismo tradicional entre o
cientista individual (produtor autônomo de conhecimento) e a totalidade da atividade
social que o rodeia: “A razão não pode ser transparente para consigo mesma enquanto os
homens agirem como membros de um organismo irracional”.6
No mesmo ensejo em se opõe à segmentação do saber, a teoria crítica, por
definição, haveria que ser também coletiva, um programa eminentemente interdisciplinar.
Contra a prática científica tradicional que consiste em recortar a totalidade em objetos
parciais e decompor os fenômenos complexos em meros aspectos a serem testados e
contados, ou seja, contra a especialização que segue esta parcialização, Horkheimer e
seus colegas colocaram como tarefa organizar investigações que unificassem filósofos,
sociólogos, economistas, historiadores e psicólogos em uma comunidade de trabalho

4
A. Lacroix, A razão, p. 107
5
Cf. M. Horkheimer, Filosofia e Teoria Crítica, p. 163
6
Horkheimer, Teoria Tradicional e Teoria Crítica, p. 208
4

permanente, para investigar questões filosóficas substantivas sobre o todo social com o
auxílio de métodos científicos.
Como primeiro objeto de investigação, Horkheimer propôs a questão sobre o nexo
entre a vida econômica da sociedade, a evolução psíquica dos indivíduos e as
transformações nos diversos âmbitos da cultura (os quais incluem não só os conteúdos da
ciência, da arte e da religião, mas também o direito, os costumes, as modas, a opinião
pública, práticas esportivas, modos de divertimento, estilos de vida e muitos outros).
Posteriormente esse questionamento econômico-psíquico-cultural foi melhor precisado
em um longo e exaustivo trabalho coletivo intitulado Estudos sobre Autoridade e família
(1936), escrito em Paris, onde fazem um diagnóstico da estabilidade social e cultural das
sociedades da época pondo em questão a capacidade das classes trabalhadoras em levar a
cabo as transformações sociais.
Embora nesse programa e nesse primeiro estudo sistemático a economia política
de extração marxista tivesse sempre um papel fundamental – para Horkheimer o
materialismo se definia por ser uma teoria econômica da sociedade – dada a urgência de
entender os mecanismos de sujeição psíquica às formas novas e totalitárias de autoridade,
a psicologia e a psicanálise ganharam também uma função de máxima importância. Na
visão de Horkheimer, a vida econômica e a vida psíquica condicionam-se reciprocamente
no âmbito da cultura (e enquanto linguagem), de modo que só tendo-se em conta essa
relação seria possível penetrar mecanismos de repressão e entrever potenciais de
emancipação.
A associação entre o vocabulário freudiano e as temáticas marxistas permitiu aos
frankfurteanos colocar questões inovadoras, incorporando fatores subjetivos (o desejo, o
sexo, o sonho, as pulsões...) à teorização mais geral acerca do desenvolvimento histórico
humano (como desenvolvimento humano na História: estruturas sociais, sistemas
produtivos, classes...). Essa aproximação da psicanálise renovou a tradição marxista: ao
invés de abordar a sociedade contemporânea colocando unicamente a atividade
econômica no centro da análise (abordagem infraestrutural), tornava-se preciso levar em
conta, principalmente, as estruturas de dominação ideológicas e culturais
(superestruturais).7

Razão, recalque e heteronomia


Uma vez pondo-se o foco sobre os mecanismos de repressão (política e sexual), os
autores teórico-críticos visaram em particular a racionalidade humana que se realiza
como maquinaria aplicada à massificação, enquanto indústria cultural, como meios de
propaganda, ou seja, visaram as técnicas de administração e de manipulação científicas
na maneira como influenciam, regulam ou determinam as escolhas e os desejos dos
agentes. Aos frankfurteanos interessava especialmente esse “fator subjetivo da história”, a
saber, o modo como a comunicação de massa, sistematicamente deformada e distorcida,
presta-se à manipulação da opinião pública, à criação de situações inautênticas que
determinam a sujeição dos indivíduos fazendo com que ajam contrariamente seus
próprios interesses - a chamada “servidão voluntária”.
A pergunta que orientou a pesquisa crítica (à época da Grande Depressão e do
avultamento dos totalitarismos - stalinismo, hitlerismo...) - “Como é possível que a classe
operária pense e aja contra os seus próprios interesses?” -, modificada, continuou a ser
válida mesmo após a guerra, nos tempos de pleno emprego e abundância da guerra fria:
7
No dizer de B. Freitag, a Escola de Frankfurt sustentou uma “profunda preocupação em integrar o nível
macroteórico (produção capitalista) com o nível micro (indivíduo sexualmente reprimido), mediatizados
pela estrutura familiar autoritária” - A Teoria Crítica: Ontem e Hoje. São Paulo: Brasiliense, 198, p. 14.
5

“Como é possível que a maioria da população pense e aja num sentido favorável ao
sistema que a oprime?”.8
Como ciência paradigmática da comunicação deformada, como doutrina do
funcionamento psíquico da ação irracional, a psicanálise haveria de servir ao estudo
dessa patologia – a servidão voluntária, o estado de minoridade psicológica
autoconsentida – ajudando a entender como a ideologia, preconizada por Marx, legitima
a exploração através da modelagem do aparelho psíquico individual. Perguntava-se:
através de quais mecanismos de interiorização (de identificação, de negação, etc) torna-se
possível que a maioria oprimida aceite docilmente sua opressão pela minoria?
As afinidades primiciais entre a psicanálise e o marxismo podem ser vislumbradas
numa frase famosa do “Dezoito Brumário”, um dos primeiros livros de Marx: “Os
homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo sua livre vontade; não a
fazem sob circunstâncias de sua escolha, mas sob aquelas com que defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. A perspectiva que liga Freud a Marx é
a da determinação heteronômica do comportamento do homem moderno, não apenas no
sentido dos “determinantes fisiológicos” mas num sentido essencialmente trágico.
Trágico no sentido em que a criatura volta-se contra o criador, ou seja, as formações
sociais (representações, instituições...), que são objetivações significativas da existência
(antropomorfismos, criações humanas), destacam-se da vida humana, e como que
ganhando vida própria, autonomizam-se, passam a impor-se aos humanos.
Em outras palavras, as forças que aniquilam o sujeito têm sua origem nele mesmo;
as formas que constituem a cultura e a sociedade (de que esse sujeito é originariamente
autor e portador), como formas acabadas (reificadas), reapresentam-se fechadas à
existência a que deveriam servir. Sendo assim, Estado e economia, como âmbitos da
existência social fortemente racionalizados, são percebidos enquanto regidos pela
dinâmica de automatismos que crescem sem parada, funcionando sempre mais segundo
uma lógica própria – um “princípio de calculabilidade” (Weber) - que prescinde da
coordenação comunicativa das ações. Tanto a administração pública quanto a empresa
capitalista seguem regras “de mercado” que parecem pairar acima da cabeça dos mortais.
O princípio da calculabilidade - “princípio por excelência da sociedade reificada”
(Lukács) -, como a expressão de uma racionalidade onipresente, funciona
independentemente dos atores envolvidos, sendo percebida por eles como algo externo e
coercitivo, uma realidade objetiva como uma ‘segunda natureza’ contra a qual se sentem
impotentes.9
Com essa constatação, os teóricos críticos observaram nas multidões a fabricação
de desejos e necessidades induzidos pelas lógicas de mercado, a imposição de formas
através de aparelhos ideológicos (escola, família, meios de comunicação...) que
determinam as escolhas, e entenderam que, para um trabalho de emancipação, seria
preciso atravessar uma fase de auto-consciência crítica, realizar um retorno a si como
“experiência do pensamento”, empreender uma atividade de auto-esclarecimento dos
próprios preconceitos para desfazer bloqueios, romper com os idola que constrangem a
vida. Este propósito terapêutico os frankfurteanos incorporaram de Marx e também,
evidentemente, da teoria freudiana, supondo-se em qualquer caso a possibilidade de
emancipação do desejo (no caso psicanalítico, a tomada de consciência em análise, no
caso do marxismo, a tomada de consciência como práxis revolucionária).
Uma vez tendo adotado a visada freudo-marxista os frankfurteanos não deixaram
de observar o peso e a força das representações sociais com que interpretamos nossos
8
S.P.Rouanet,Teoria Crítica e Psicanálise, p. 70
9
J. Souza (org.), A atualidade de Max Weber, Ed. UnB, 2000, p. 58.
6

desejos e necessidades, ou seja, as configurações do pensamento cujo vetor é a linguagem


que age sobre indivíduo e as relações sociais, podendo assim reprimir ou libertar,
dominar ou emancipar. Por suposto, as pulsões humanas não existem independentes da
expressão cultural, quer dizer, as necessidades humanas são sempre interpretadas, e como
nenhuma cultura pode aceitar todas as interpretações, só são aceitas aquelas que sejam
compatíveis com a normatividade estabelecida. Certas interpretações lingüísticas são,
portanto excluídas do espaço da linguagem pública, tornando inofensivos os motivos de
ação vinculados a essas interpretações.
Por suposto, os símbolos ou interpretações que são removidos da discussão
pública, como conteúdos que nos são censurados, continuam ativos, assimilados ao
dinamismo inconsciente sob formas a-linguísticas, ou seja, como paleossímbolos, como
linguagem desgramaticalizada - deformada, condensada, transformada no contrário, etc.
Esse material recalcado, se não existe, certamente insiste, tenta persistentemente aceder à
esfera pública – como ocorre nos sonhos, nos pesadelos, nos atos falhos... A linguagem
pública aparece parasitada pela linguagem inconsciente, apresentando-se como um texto
de compromisso (o que não pode ser dito ligando-se subliminarmente ao que é dito),
numa comunicação marcada por sintomas (ou fenômenos analisadores) que reclamam
intervenção e interpretação. Em suma: os motivos banidos da interação normal
transformam-se em motivos inconscientes e continuam determinando a ação, mesmo sem
poder mostrar-se nas interpretações correspondentes. “São mascaradas... É essa violência
que transforma (a estrutura dos desejos publicamente articuláveis) em natureza
demoníaca”.10
No ponto em que o pensamento crítico como dos teóricos críticos mais se
aproxima do pensamento clínico como avançado pela psicanálise freudiana, vale assinalar
o propósito em comum de que há um desmascaramento a executar, uma auto-reflexão
que empreender para conduzir a si mesmo e/ou as pessoas para fora de situações
específicas de não-verdade em que se encontram enredadas. Como um pensamento
voltado “contra si mesmo”, o pensamento crítico é entendido como preparatório da ação
social transformadora, e enquanto crítico das representações sociais (“imagens”
distorcidas que incorporamos...), encontra-se com a psicanálise e o marxismo no plano de
uma “hermenêutica das profundezas”, como proposta de um trabalho de interpretação dos
“determinantes” (inconscientes, supra-estruturais) da ação. O dizer de Freud que
sumariza a função terapêutica - “Onde havia Id, haverá Ego” – poderia ser replicado em
linguagem marxista: “Onde havia alienação, haverá consciência de classe”. Ambos
propósitos não escondem certo “ar de família” com o conceito/propósito iluminista da
maioridade, enquanto processo de autonomização ou de emancipação (em alemão:
Mündigkeit). Ou seja, compartilham um telos para a vida individual e coletiva, um ideal
de transformação progressiva ou revolucionária que ser empreendido através da palavra
num trabalho de condução.
Romper com certas formas arcaicas para liberar a vida, quebrar amarras do
passado para destravar o desenvolvimento pleno, fazer reverter as energias que se
consome num conflito interno de modo a reconduzir o(s) sujeito(s) à altura de si
próprio(s) e de seus reais interesses...todo um repertório de figurações de caráter
autonomizante, crítico ou clínico (do indivíduo e da sociedade), repetido por terapeutas,
educadores, reformadores sociais, artivistas ou guias revolucionários, encontram melhor
expressão nas chamadas “ciências críticas” (como a psicanálise e o marxismo). Essa
incorporação (da clínica à crítica, de Freud no marxismo) apareceu claramente sugerida
por Adorno e Horkheimer (in Dialética do Iluminismo) ao terem colocado, como tarefa

10
Habermas cit. S.P.Rouanet, Teoria Crítica e Psicanálise, p 328
7

do pensamento crítico, “fazer ouvir a voz da contradição que vive nas coisas” e que, sem
a ação do pensamento, “triunfa muda”. Benjamin (in Passagens), por sua vez, se
empenhou em “despertar o potencial revolucionário adormecido nos farrapos e resíduos
do cotidiano”, “as energias revolucionárias que transparecem no antiquado”, seguro de
que “existe um saber ainda-não-consciente do ocorrido, cuja promoção tem a estrutura do
despertar”...

O conceito de racionalidade
Juntando Marx com Freud, os frankfurteanos se armaram dos meios teóricos com
que tematizar a totalidade sócio-histórica, como um preâmbulo para a proposição de uma
alternativa total à sociedade existente. Em conseqüência, escreveram sobre quase tudo:
sobre ética, estética, cinema, música, autoritarismo, capitalismo... além, claro, de
psicanálise e dos efeitos da repressão sexual. Junto às observações criticas e negativas (de
influência heideggeriana) feitas às “promessas não cumpridas da modernidade”, os
frankfurteanos se destacaram também pela grave desconfiança que manifestaram quanto
à racionalidade em geral.
A concepção de razão e de racionalidade em questão foi retomada de Max Weber,
no sentido em que este autor situava, como o fundamento do Ocidente moderno, como
aquilo que determina sua lógica específica no cenário do mundo, um processo de
racionalização tendente a impor-se, como “modo racional em finalidade”, sobre outros
modos racionais de vida - ético, estético, religioso, erótico ou qualquer outro... Racional,
para Weber, equivalia a toda ação baseada no cálculo, na adequação meios-fins, em que
se procura obter com um mínimo de dispêndio um máximo de efeitos desejados,
evitando-se ou minimizando–se os efeitos colaterais indesejados. Trata-se de uma
racionalidade formal no sentido em que não importam os conteúdos das idéias e dos
princípios que possam ser considerados racionais, mas a forma como essas idéias e
princípios serão utilizados para a obtenção de um fim qualquer. Assim como o trabalho e
a técnica utilizada são ferramentas para a transformação da Natureza, a razão desponta
como ferramenta para obtenção de um fim, estando implicada como tal no modo humano
de dominar a natureza, os homens, os próprios instintos e desejos humanos.
Esta racionalidade-ferramenta, relacionada em profundidade com o trabalho
humano e os processos produtivos, foi percebida por Weber como estando
institucionalizada na vida cotidiana, traduzindo-se, no plano econômico, na ação
calculada dos agentes econômicos (empresários, investidores...) e no plano do controle
político, como atuação competente da administração estatal (burocracia, serviço
público...). No dizer de Habermas (apud Weber)...
“Racionalização quer dizer, antes de mais nada, a ampliação dos setores sociais
submetidos a padrões de decisão racional. A isso corresponde a industrialização do
trabalho social, com a conseqüência de que os padrões da ação instrumental penetram
também outros domínios da vida (urbanização dos modos de viver, tecnicização dos
transportes e da comunicação). (...) A racionalização progressiva da sociedade está
ligada à industrialização do progresso científico e técnico. Na medida em que técnica e
ciência penetram os setores institucionais da sociedade, transformando por esse meio
as próprias instituições, as antigas legitimações se desmoronam. Secularização e
desencanto das imagens do mundo que orientam o agir, e de toda tradição cultural, são
a contrapartida de uma racionalidade crescente do agir social.”11

11
M. Weber, cit. J. Habermas, Técnica e ciência como ideologia, Col Os Pensadores, p. 313
8

Na leitura de Horkheimer, o processo de ocidentalização (ou modernização),


equivale ao movimento em que a razão como conhecimento do verdadeiro foi se
parcializando, de uma parte atrofiando, de outra hipertrofiando, quer dizer,
enfraquecendo-se enquanto razão objetiva (isto é, como razão que está no mundo, como
inteligibilidade implícita à realidade conhecida e modificada pelo individuo que é dela
uma parte), e se empoderando unicamente como razão subjetiva (quer dizer, referente ao
interesse subjetivo de autoconservação e às capacidades subjetivas de conhecer as coisas
e de modificá-las conforme um cálculo de eficácia dos meios, pouco importando os fins).
A esta razão subjetiva, que se expande desmesuradamente, Horkheimer chamou
razão instrumental, como um tipo de racionalidade que nasce quando o sujeito do
conhecimento, encarna a cartesiana decisão de que conhecer é se tornar “senhor e
possuidor da Natureza” (incluindo-se, claro, outros seres humanos). No dizer de
Horkheimer,
“Tendo cedido em sua autonomia, a razão tornou-se um instrumento. No aspecto
formalista da razão subjetiva, sublinhada pelo positivismo, enfatiza-se a sua não-
referência a um conteúdo objetivo; em seu aspecto instrumental, sublinhado pelo
pragmatismo, enfatiza-se a sua submissão a conteúdos heterônomos. A razão tornou-se
algo inteiramente aproveitado no processo social. Seu valor operacional, seu papel de
domínio dos homens e da natureza tornou-se o único critério para avaliá-la.”.12
A razão como instrumento ou ferramenta é esta que se materializa nas esferas do
agir profano, como na pesquisa científica, na administração política e econômica,
configurando mundos regidos por lógicas homogêneas, marcadas pela impessoalidade e
pela exigência da previsibilidade, pela objetividade e pela coisificação. Com Weber
concluiu-se que a razão instrumental não é senão a própria razão capitalista, i. é, a
racionalidade do lucro e a exploração da mais-valia. Trata-se do uso pragmático da razão
tecno-científica pelo sistema, equivalente ao que Habermas vai chamar de colonização do
mundo da vida, quer dizer, uma expansão da racionalidade instrumental que se
desenvolve como ciência, como lógica capitalista, como dominação política, repercutindo
sobre todas as esferas da vida prática, incluindo-se as esferas a-racionais (ou para-
racionais) como a erótica e a estética.
Em Weber, como para Horkheimer e Adorno, esta leitura do processo de
racionalização ocidental (e logo mundial) se concluiu entendendo a razão iluminista
como essencialmente um processo técnico de controle social, ou seja, uma lógica da
razão que se revela lógica de dominação. Para estes autores (como para muitos outros) o
diagnóstico do presente é negativo, haja visto que toda crítica do sistema, todas as
tentativas de negá-lo criando uma diferença, são reassumíveis no indiferenciado do
próprio sistema, acabam se tornando funcionais à vida do próprio sistema. Como notou
Adorno (in Tres estudos sobre Hegel), criticar o sistema não chega a ser uma decisão
metodológica, pois, equivalente a uma “lei do objeto”, isto é um “acontecer” interior à
coisa. Em termos filosóficos, a crítica da razão é uma crítica aporética, pois utiliza as
armas da razão para denunciar a própria razão. “A crítica inteiramente bem-sucedida é
uma crítica totalmente impotente. A crítica total da razão equivale à anulação total da
crítica.”13 Adorno assumiu este paradoxo, encarando a aporia da razão que critica a razão
conscientemente, “sem abdicar da razão nem abdicar diante dela.”
Fim da teoria crítica?

12
Max Horkheimer, Eclipse da Razão, Ed. Centauro, p. 29
13
S.P. Rouanet, As razões do Iluminismo, p. 335
9

Ainda não. Depois dos frankfurtianos “de primeira geração”, aparecerá Jürgen
Habermas, como o último dos iluministas, para atualizar e continuar a teorização crítica,
para retomar o conceito de razão crítica e reafirmar sua possibilidade tanto no plano
teórico quanto no plano ético, sem descurar o plano político.

Racionalidade instrumental e racionalidade comunicativa


A concepção da razão técnica como dominação é fácil de figurar, pois é
fartamente explorada e afirmada desde as obras de ficção, como se apresenta, p.ex., nas
figurações do mundo de Metrópolis de Fritz Lang, do Admirável Mundo Novo, de G.
Orwell, da Sociedade Tectrônica de Z. Brzezinski, do mundo de Matrix de A. e L.
Machowski...Em todos os casos, projeta-se um cenário trágico de uma racionalidade que
virou controle total, um imenso maquinário de regulação e administração dos corpos e
mentes, no dizer de Erich Fromm, “uma sociedade totalmente mecanizada, voltada para a
produção e consumo e controlada por computadores”...14
Esse fantasma da racionalização da vida social transformada em dominação
política, vislumbrado pelos frankfurtianos uma primeira vez à época da ascensão nazista,
se reapresentou outra vez, na época do libertarismo da década de 60 (Guerra Fria,
Vietnam...), desta feita na palavra de um pensador da escola de Frankfurt migrado para os
Estados Unidos (e que não retornou à Alemanha): Herbert Marcuse, autor de Eros e
Civilização e O Homem Unidimensional (em português publicado como Ideologia da
Sociedade Industrial). Com Marcuse, uma geração inteira de jovens inconformistas
reverberou a concepção de que havia no mundo uma repressiva tendência das sociedades
modernas à administração total, à tecnocracia burra e totalitária, à planificação de todos
os setores da vida. Para Marcuse (como muitos gurus intelectuais da época - e alguns até
hoje), esta seria a razão principal da infelicidade humana moderna, uma quantificação
exacerbada, um utilitarismo calculista, manifestando-se nas relações interpessoais,
prosperando em todas as direções da vida, irreversivelmente...
Na leitura de Marcuse, a racionalização progressiva do mundo seria uma forma
(inconfessada) de dominação política posto que, ao escolher estratégias, empregar
tecnologias e organizar sistemas, tal racionalização está sempre subtraindo à reflexão a
contextura dos interesses globais da sociedade. Enquanto ciência aplicada à
administração, enquanto burocracia estatal, cada vez mais apoiado em dispositivos
técnicos, o Estado passa a agir como se suas decisões, racionalmente calculadas,
dispensassem questionamentos ou justificações, fazendo assim atrofiar o sentido da
participação política e esvaziar o espaço público, se afastando da sociedade civil. Doutro
lado, a nível de mercado, são fabricadas necessidades em massa, com produção de
público consumidor como o único respeitável, como se toda liberdade possível se
resumisse na liberdade de consumo. Adotando uma tese característica, para Marcuse as
democracias ocidentais mascaram atrás da aparente permissividade e com o atrativo de
um relativo bem-estar econômico, um sistema mais inatacável de repressão e
instrumentalização das consciências.
Embora o diagnóstico de uma progressiva racionalização que invade todos os
âmbitos da vida social, gerando novos âmbitos (esferas, linhas de ação...) não seja
equívoco, o erro de Marcuse com relação ao conceito de racionalidade foi o mesmo de
muitos outros autores que aderem conceitos direcionais – como o de organização,
informação, entropia, etc - e se esquecem que, quando um desses conceitos é introduzido
num esquema analítico, “uma vez instalado ele se expande inexoravelmente, e leva de

14
E. Fromm, A revolução da esperança
10

roldão todos os obstáculos empíricos e teóricos, e pode comprometer também as próprias


premissas metateóricas”.15
Para refrear um tal deslizamento, Habermas (in Técnica e Ciência como
Ideologia) retomou o conceito de racionalização de Weber procurando fornecer uma
nova formulação, introduzindo uma distinção tal que essa racionalização pudesse ser
reconhecida não só como opressora mas também como emancipatória. Com seus
predecessores, Habermas concordou que com o avanço da racionalidade instrumental as
escolhas prático-morais das pessoas vão sendo transformadas em escolhas técnicas (que
são tomadas) independentemente dos agentes, ou seja, os fins da ação humana em geral já
vão sendo desde sempre escolhidos – é sempre mais a eficácia, a eficiência, o lucro... -,
de um modo que a única escolha possível acaba se reduzindo àquela dos meios para
melhor atingir fins que ninguém escolhe (a acumulação infinita). Se esta racionalidade
tem se tornado hegemônica, prosseguindo sua lógica de dominação rumo à
autodestruição, haveriam outros tipos de racionalidade intervenientes nas atividades
humanas, haveriam outras formas e outras orientações, não-instrumentais, para a ação,
que, exploradas, poderiam revelar insuspeitados potenciais emancipatórios.
Consentindo-se com esta divisão, a racionalização do trabalho, como o progresso
técnico em geral (ciência, indústria, etc), não teria que nos levar à uma tecnocracia
totalitária, como alardeava Marcuse, tampouco as forças produtivas liberadas por esse
progresso e essa organização do trabalho coletivo por si sós seriam garantia de
emancipação humana, como acreditavam os marxistas. No dizer de Habermas, “assim
como é inaceitável a hipótese otimista de uma convergência entre técnica e democracia,
também não se pode aceitar a afirmação pessimista de que a técnica exclui a
democracia”.16 Quer dizer: entre o desenvolvimento técnico (forças produtivas) e a
liberdade democrática (interação social) a relação não é nem convergente nem
excludente; é, propriamente, crítica.
Com Habermas, a idéia de “duas forças opostas e complementares”, característica
da razão dialética assumiu diversas representações, sendo o par “racionalidade
instrumental” e “racionalidade comunicativa” o mais conhecido deles. Este par deriva de
uma divisão primeiro hegeliana, com que já se tentava compreender a evolução social
referindo a mesma Razão ora em termos de forças produtivas, ora em termos de
integração social. Quando a razão é pensada em termos de forças produtivas
(desenvolvimento técnico-científico, etc), o que se anuncia é o mundo racionalizado
segundo padrões formais, o mundo do sistema orientado pelas relações meios-fins. Mas
longe de ser o único – eis a diferença que Habermas vai acentuar – existe o mundo
cotidiano (a Lebenswelt – o “mundo da vida”) como mundo das formas de integração
social (família, clã...), enquanto tal, mundo normativo, prático-moral, de formação das
identidades e dos valores humanos, que possui, como tal, uma racionalidade própria
irredutível à lógica instrumental.
Embora sendo evidente o desequilíbrio entre a racionalidade instrumental
superdesenvolvida frente a racionalidade comunicativa das formas da integração social,
Habermas manteve o otimismo, acreditando que tanto a técnica quanto a consciência
prático-moral estariam vinculadas a processos de aprendizagem que, como tais, poderiam
reduzir o descompasso entre uma e outra (desde que estes processos de aprendizagem não
ficassem restritos ao aspecto técnico-instrumental nem às formas tradicionais de
moralidade particularistas de fundo metafísico ou religioso). Para isso tomou a
linguagem como terceiro determinante do processo de “formação da identidade do Eu”
15
G. Cohn, Crítica e resignação: Max Weber e a teoria social, p. 139
16
J. Habermas, cit. L.B.L. Araújo, Religião e modernidade em Habermas, p. 39
11

(ao lado do trabalho e da interação, como pensada por Hegel), para contrapor, ao modelo
dominante de razão monológica baseada na relação sujeito-objeto, um outro modelo de
razão, uma concepção de razão ampliada, baseada na intersubjetividade como relação
entre sujeitos (a razão comunicativa).
Para Habermas, a esfera da razão comunicativa é uma dimensão com potenciais
normativos reprimidos ou reservados que jamais se reduzem ao domínio instrumental,
podendo como tais ser liberados para reverter (ou compensar) a tendência à colonização
instrumental-cognitiva do mundo e da vida. Se a racionalidade instrumental radicada na
esfera sistêmica avança sobre as outras esferas da vida social, tendendo anexar segmentos
cada vez mais extensos do mundo vivido, unificando-os sob o peso dos imperativos
funcionais, paradoxalmente, essa racionalidade tem como condição mesma de
propagação, a heterogeneidade das dimensões do mundo vivido.
Em outras palavras, Habermas tomou em consideração o conceito de
racionalização para novamente bifurcá-lo, identificando duas racionalidades irredutíveis e
mutuamente dependentes, confiando que uma (a racionalidade do agir comunicativo)
possa ser operada de modo a limitar ou reequilibrar a preeminência da outra (a
racionalidade instrumental). Com isso, se desfez da noção de Razão como um valor
absoluto universal (a razão totalitária) para introduzir uma concepção dialógica (ou
comunicativa) da razão, admitindo o caráter processual da verdade.
O recurso à distinção trabalho-interação, como empregada por Habermas, visou
assegurar a importância do aprendizado desta dimensão comunicativa e normativa de par
com o desenvolvimento das forças produtivas que tendem a engolfá-la. Ou seja, a análise
habermasiana procura evitar a absorção do processo de racionalização das estruturas
normativas pelo processo de racionalização das forças produtivas realçando os poderes da
língua, valorizando o esforço comum da comunicação, destacando o “logos da língua”
como a força vinculante das pretensões que exigem justificação e que são reivindicadas
reciprocamente por ouvintes e falantes.
A concepção do agir comunicativo de Habermas presume a concepção também
hegeliana segundo a qual a experiência da consciência-de-si decorre da interação entre
sujeitos, isto é, “a identidade do Eu só é possível graças à identidade do outro que me
reconhece, identidade que, por seu turno, depende de meu próprio reconhecimento”. A
individuação só pode ser compreendida como um processo (dialógico, dialético...) de
socialização, como um processo em que desempenha papel fundamental a “luta pelo
reconhecimento recíproco”. Ou seja, presume a implicação, na comunicação lingüística,
de “um telos de entendimento recíproco”, uma pretensão de validade que se serve da
“força sem coação da fala argumentativa” e que pode ajudar a realizar o entendimento e
suscitar o consenso.
Para Habermas, portanto, além da razão instrumental, além dos imperativos da
economia e da administração, ainda existe razão – as razões do agir comunicativo como
uma vasta gama de atividades governadas pelo interesse e pelo acordo recíproco que
promovem a interação pelo gosto mesmo da interação (e não segundo um cálculo de
perdas e ganhos). Delas não se poderia dizer que se trata de atividades provadas de
regras, pois ao contrário, nelas operam princípios não-aparentes – valores, cotidianidades,
afetos, relações de estima...
“A esperança de Habermas, no plano político, situa-se em certas qualidades
intrinsecamente reversivas da esfera pública como âmbito do agir comunicativo. Aqui
nascem lutas locais em defesa de vários setores do mundo da vida e tendentes a
enriquecê-los e torná-los autônomos da colonização posta em ação pelo sistema. (...)
De maneira diversa dos francofurtenses, para Habermas o âmbito da cultura, dos
12

confrontos e desencontros de opiniões não é apenas o território onde a classe


dominante organiza e promove o consenso, mas também a sede de ‘experiências
explosivas’, de movimentos de renovação e de crítica”.17
Como último dos iluministas, Habermas não se despediu da modernidade (como
os autores ditos pós-modernos), nem se perdeu de seu propósito crítico, ao contrário,
continua confiando nos potenciais emancipatórios da comunicação livre compartilhada
que sustém, no horizonte, a unidade da razão, os potenciais unificantes da conversa que
se elabora como fundamento ético e cognitivo possível, como sentido possível para a
ação. Tais potenciais haveriam que ser percebidos “na multiplicidade de vozes”, com a
pluralidade dos jogos de linguagem encontrando sua unidade formal nas pretensões de
validade que se tenta comprovar pela argumentação. A crítica habermasiana, portanto, é
acompanhada da reconquista de uma razão que se descobre no vínculo instaurado entre
nós pela comunicação cotidiana, ao nível da esfera pública, esta que pode ser entendida
como todos os âmbitos em que são debatidas questões de interesse geral e em que os
divergentes se confrontam com base na argumentação racional e do gosto recíproco pela
interação (e não com base na autoridade ou na tradição): as ruas, os cafés, as revistas,
jornais...(tudo isso, enfim, que se reveste hoje de um intenso interesse de pesquisa).
Esta esfera pública seria o domínio da vida social onde a opinião pública pode
formar-se, por exemplo, quando pessoas privadas se juntam livremente para formar um
público, desenvolvendo conversas face-a-face acerca de assuntos do interesse comum ou
através de algum medium (jornal, revista, internet, etc). A esfera pública é a da sociedade
civil, como um vasto feixe de situações em que se eleva a conversação a um nível que
transcende a tagarelice, elaborando-se opiniões e pontos de vista sobre questões
significativas para a vida social, forjando-se representações populares, e em seu conjunto,
uma representação de povo, capaz de refletir ou retratar os anseios públicos. Se para os
primeiros frankfurteanos esta esfera pública seria principalmente o lugar da
“manipulação” do consenso, para Habermas, ao contrário, esta seria principalmente a
sede das potencialidades de libertação, de reconstrução dos fundamentos normativos da
vida social, de criação de uma nova forma de solidariedade pós-tradicional.18
“Tese conclusiva de Habermas é que a modernidade pode ser salva, mas
ultrapassando a filosofia do sujeito para a filosofia da intersubjetividade. ‘o paradigma do
conhecimento de objetos deve ser substituído pelo paradigma do acordo comunicativo
entre sujeitos capazes de falar e de agir’.”19

Crítica da crítica: mas existe ainda opinião/esfera públicas?


Em Mudança Estrutural da Esfera Pública, um denso estudo publicado em 1962,
Habermas fez notar que desde John Locke é observada a importância em se participar da
opinião pública como uma espécie de controle social sobre o Estado (que tende a invadir
a vida das pessoas). Lembrou também que Emanuel Kant reforçou esta importância ao
afirmar que “nosso século é o da crítica”, entendendo com isso que a relação entre o
Estado e seus súditos não poderia ser simplesmente de ordem e obediência, mas devendo
incluir essencialmente a participação crítico-política. Mais: desde a circulação dos
primeiros jornais, o aparecimento dos primeiros cafés, os “clubs” e os salões, os teatros,
as exposições e os concertos, todos abertos ao “grande público”, tornaram-se objeto de
crítica não só as artes e os modos de vida como também a política econômica e as

17
Franca D’Agostini, Analíticos e continentais, p. 496 e p. 501
18
Cf. F. D’Agostini, Analíticos e continentais, p. 479 e segs.
19
F. D’Agostini, Analíticos e continentais, p. 504
13

medidas governamentais. Assim também o ensino gratuito e o sufrágio universal foram


criados visando-se a expansão da crítica e do público crítico.
Porém, se participar da esfera pública – a chamada vox populi - foi certamente um
ideal cívico dos “países livres” - mais exatamente, um ideal da burguesia européia dos
séculos 18-19 que entendia que o conjunto dos negócios públicos lhe dizia respeito, e
arrogava-se o direito de formar opinião sobre eles e de exprimi-la - a pergunta a se fazer
é: mas essa participação na esfera pública continua sendo um ideal conseqüente nos dias
de hoje? No passo em que a racionalização tecnocrática vai substituíndo a esfera pública
pela figura do “relações públicas”, vai trocado o confronto de opiniões democrático pelas
“sondagens de opinião” estatísticas, etc, não teria ela já neutralizado o papel crítico e
emancipador do espaço público?
O ponto de vista do próprio Habermas a respeito é negativo, como resumido por
G. Lebrun, que escreveu:
“A esse respeito, proliferam as respostas pessimistas. As democracias burguesas,
dizem-nos, não conservam mais que uma aparência de opinião pública. Até mesmo
nos países ditos ‘desenvolvidos’ esta tende a identificar-se, derrisoriamente, com uma
massa apolítica, consumidora de ‘subcultura’, condicionada pela TV e manipulada
pelos meios de comunicação. O ‘público’, hoje em dia, está ocupado demais em julgar
os astros do esporte e da música popular para continuar se empolgando em constituir
uma opinião arrazoada sobre os objetivos e os atos do Príncipe. Estamos de volta aos
tempos da plebe romana ou bizantina...”20
Se é assim, Lebrun estranha que a apresentação habermasiana da opinião pública
de estilo burguês – pautada no diálogo, no entendimento racional – seja feita como se
fosse um valor eterno, “ou, pelo menos, um valor que conviria colocar em circulação”.
Para Lebrun haveria em Habermas uma “nostalgia da esfera pública perdida”, pois
mesmo que observe que a participação na cultura em muitos casos se transformou em
mero consumo de bens culturais (ou seja, mesmo tendo notado que muitos dos antigos
súditos da sociedade civil que se importavam em ser “animais racionais” já se
transformaram há tempos em meros “animais consumidores”), o filósofo Habermas
insiste em tentar determinar a essência da opinião pública nos moldes da burguesia
existente em apenas 2 ou 3 países europeus do século XIX.
A pergunta que faz Lebrun à guisa de crítica à convicção habermasiana é: ao
postular uma opinião pública eminentemente argumentativa (discursivo-racional, crítico-
consensual, logológica, em que se confrontam livremente opiniões, etc), o conceito de
“opinião pública” de Habermas não seria muito tacanho? Afinal, quem poderia afirmar
que a leitura de jornais e livros, como desejado por Habermas, é um exercício
culturalmente superior à recepção audiovisual? Ou que a participação de torcedores numa
partida de futebol ou de foliões numa festa carnavalesca seriam meras expressões
“subculturais”? Afinal, um baile de jovens negros num clube da periferia já não constitui
em si mesmo um fenômeno de opinião pública? Em defesa de um sentido mais alargado
de opinião pública, capaz de abranger as manifestações críticas que Habermas deixou de
fora, Lebrun observa:
“Sem dúvida, seria irrisório satisfazer-nos com uma esfera pública tão anódina. Mas
seria ainda mais indesculpável nós a desprezarmos. É que a opinião pública cada vez
menos pode ser reduzida a uma ‘vox rationis’: ela tem outros registros além da
conversação policiada e da troca de argumentos. É a espontaneidade que vem
caracterizá-la muito mais que a racionalidade. Os fenômenos de opinião pública por

20
G. Lebrun, Morte ou metamorfose da opinião pública, in Passeios ao Léu, pp. 245-246
14

excelência são os que transbordam os estados-maiores políticos, os que colhem de


surpresa todos os stablishments. Uma contestação estudantil, uma greve imposta pela
base, um ‘quebra-quebra’ numa estação de subúrbio, estes são, seguramente,
fenômenos de opinião pública. Pois praticamente não há cóleras ou violências que não
sejam mais instrutivas, hoje, que a maior parte dos discursos. (...) Por que a percepção
crítica de uma sociedade passaria necessariamente pela reflexão em comum, pela
esperança de seus membros de atingirem juntos a verdade? Há uma infinidade de
maneiras, ainda incoativas ou inéditas, de constituir-se uma ‘esfera pública’. Ignorá-la
é cair no misoneísmo. E isso, por obstinar-se em venerar a ‘razão’”.21

21
G. Lebrun, Morte ou metamorfose da opinião pública, in Passeios ao Léu, pp. 253-254

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