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A Comunicação Ambiental e as Apropriações de

Rádio na Amazônia

Cristiane Dias Andriotti (UNICAMP)


Socióloga, Pesquisadora e Professora da Universidade do Estado do Amazonas
candriotti@uea.edu.br

Lúcia da Costa Ferreira (UNICAMP)


Socióloga, Pesquisadora e Professora da UNICAMP
(orientadora)
luciacf@unicamp.br

Resumo
As rádios livres e comunitárias têm se transformado em instrumentos de ação ambiental.
A relação entre estas experiências, que historicamente reivindicam autonomia e
Organizações Ambientalistas tem gerado expectativas de reforço às ações participativas
de sustentabilidade. Por outro lado, na complexidade da região amazônica, as relações
entre estas rádios e as instituições promovem ganhos e perdas na autonomia dessas
experiências que interferem diretamente na participação e por conseguinte, nas ações de
sustentabilidade. Este trabalho lança um olhar inicial sobre essa questão, abrindo
caminhos para a compreensão de que a equação: meios de comunicação democráticos,
autônomos e ambientalistas não se dá de forma automática, pela simples disposição dos
atores ou instituições envolvidas.

Palavras-chave
Rádios livres e comunitárias, comunicação dialógica, conflitos
Introdução

Este trabalho é o primeiro resultado parcial da pesquisa que pretende observar e analisar
as apropriações de rádio em dois campos distintos na região amazônica:
Transamazônica e Médio Solimões. É importante ressaltar que nem todas as
apropriações de rádio nestas regiões são objeto do estudo, somente aquelas que
apresentam características democráticas e democratizantes, seguindo a proposta teórica
de Marisa Meliani Nunes (1994) que conceitua o acesso aos meios de comunicação para
além da mera recepção, sendo também o deslocamento do lugar do receptor para o
lugar de emissor de informações. Assim, as rádios comerciais e estatais, por seu modelo
de apropriação privada e estrutura hierárquica, não entram na análise, salvo os casos
excepcionais de emissoras que promovem a abertura de espaços na programação
relevantes às questões levantadas por este estudo.

O objetivo inicial deste trabalho é observar e analisar as apropriações de rádio à luz da


comunicação ambiental. Não foi possível, entretanto, delimitar o objeto sobre as
experiências de rádios livres ou comunitárias voltadas exclusivamente para o
desenvolvimento da comunicação ambiental. Apesar de muitas rádios comunitárias
desenvolverem primordialmente atividades comunicativas ambientais, os dois campos de
pesquisa apresentam outras experiências que estão fora deste recorte específico de
análise. Assim, a questão ambiental em alguns casos aparece como prioridade das
ações comunicativas, em outros é a problemática burocrática e jurídica que se torna o
foco das ações das emissoras.

A rodovia Transamazônica foi pesquisada em virtude de um trabalho de reconhecimento


de campo e consultoria realizado para duas Organizações Não Governamentais (ONG's)
e uma Fundação1, nos períodos de setembro a outubro de 2004 e março a outubro de
2005.

No campo de pesquisa Médio Solimões foi feita uma primeira imersão em caráter de
reconhecimento e levantamento de dados iniciais no período de fevereiro a março de
2008. Assim, os resultados deste trabalho são ainda inconclusivos. A proposta é
apresentar aqui alguns apontamentos fundamentados na pesquisa documental realizada
no Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e que nortearão o
desenvolvimento futuro deste estudo.

1
Respectivamente: Greenpeace e Rede-Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) e Fundação Friedrich Ebert.
A problemática jurídica e burocrática das Rádios Livres e Comunitárias no
Brasil

Por uma questão de espaço, não será possível desenvolver aqui a trajetória das rádios
livres e comunitárias até a promulgação da lei 9.612/98, que regulamenta o serviço de
radiodifusão comunitária. Aqui nos interessa saber que a forma final da lei impôs às
rádios uma série de requisitos técnicos e organizacionais que acabam por torná-las na
prática, inoperantes. Além dos dispositivos que pretendem minimizar o campo de atuação
das emissoras comunitárias (NETO, 2002), o processo burocrático exigido transforma os
pedidos de legalização num verdadeiro calvário de extensivas remessas de documentos,
longas esperas e nenhum resultado (LIMA & LOPES, 2007).

Paralelamente ao calvário burocrático e às limitações contidas na lei, a grande mídia


inicia uma campanha de desmoralização das rádios de baixa potência que emitem seus
sinais sem concessão, alegando de forma indiscriminada que as “rádios piratas”
interferem nas comunicações de ambulâncias e aeroportos, podendo até derrubar aviões
e conclamando a população a reagir, disponibilizando um número de telefone para a
coleta de denúncias. (ANDRIOTTI, 2004)2 e justificando assim as ações de repressão da
Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), cujo grau de autonomia tem sido
diversas vezes questionado (NETO, 2002) (SILVEIRA, 2000)3.

Estes aspectos gerais da problemática jurídica e burocrática são, na visão de LIMA &
LOPES (2007) o problema central para a existência do “coronelismo eletrônico de novo
tipo”, ou seja, apropriações de rádio vinculadas a figuras políticas que são favorecidas
por parlamentares correligionários para a formação de “currais eleitorais”. Para os
integrantes do movimento, os limites impostos pela lei na potência dos transmissores
(máximo de 25 Watts), no raio de alcance (1 quilômetro), na imprecisão de conceitos
como “apoio cultural”, formação de redes e a não proteção das RadCom contra
interferências causadas por outras emissoras sobre seus sinais, são motivo de contínuo
debate e reivindicações para a reformulação da lei.

2
A rigor, qualquer emissão de sinal de radiodifusão pode interferir em outro sinal de radiodifusão, bastando
para isso que haja proximidade entre transmissores, ou entre frequências e desregulagem nos equipamentos.
Também, quanto maior a potência do transmissor, maior a possibilidade de interferência no sinal de outros
transmissores. Para resolver o problema, basta uma manutenção e regulagem do equipamento ou, em casos mais
graves, a substituição por um equipamento adequadamente regulado. (XX apud ANDRIOTTI, 2004)
3
Até hoje a ANATEL não explicou publicamente de onde retira recursos financeiros para mobilização de
agentes da Polícia Federal em suas inúmeras ações de fechamento. Há relatos de rádios que foram abordadas por
agentes que desceram de helicóptero na região. De qualquer maneira, qualquer ação envolve o custo de transportes
aéreos e urbanos, hospedagem e alimentação para mais de duas pessoas. De onde vem os recursos? Suspeita-se de
que venham do FISTEL, o que seria bastante irônico.
De modo geral, essa problemática demonstra a estratégia do Governo para manter as
emissoras de rádio ligadas a um sistema protecionista em favor das apropriações
políticas, tradicionalmente instituídas no Brasil (MOTTER, 1994) e em detrimento da
construção, de fato, do modelo público de comunicação no rádio.

Rádios Comunitárias do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá

Fundada em 1993 primeiramente como Estação Ecológica, a experiência do Instituto de


Desenvolvimento Sustentável Mamirauá é pioneira em diversos sentidos. Primeiramente
são as atividades da Estação Ecológica que desenvolvem o modelo de Reserva de
Desenvolvimento Sustentável no Brasil, introduzindo no conceito de reserva, que até
então excluía a possibilidade do desenvolvimento de atividades econômicas, a idéia de
“desenvolvimento sustentável”. Isso foi particularmente importante como precedente
histórico e jurídico para áreas de reserva – existentes e projetadas – que possuem
agrupamentos humanos tradicionais.4 Outra iniciativa importante do IDSM foi a
preocupação de construir suas ações em acordo com a vida econômica das
comunidades, o que levou à realização de pesquisas sócio-econômicas intensas –
especialmente no período entre 1993 – 1995 -, e à construção de “arenas” de discussão e
negociação participativas. Os dados levantados pelas pesquisas sócio-econômicas eram
revertidos em ações de educação ambiental, comunicação e considerados no
planejamento da Reserva, que levou à diferenciação das áreas de proteção, áreas de
manutenção e áreas de exploração, feita em conjunto com os diferentes segmentos
sociais que se utilizavam direta ou indiretamente dos recursos naturais da região
demarcada. 5

Desde pelo menos 1993, quando o IDSM ainda levava a denominação de Estação
Ecológica Mamirauá, há referências da preocupação social do Instituto, traduzida em
ações comunicativas. Especificamente o IDSM desde o princípio procurou trabalhar com
os conceitos de “esclarecimento” e “conscientização” das pessoas mais diretamente
afetadas pela criação da Reserva. Para tanto, foram elaboradas apostilas elucidativas,
boletins informativos, cartazes, camisetas, apostilas escolares - acompanhadas de
treinamento de educadores, reuniões e assembléias, onde as principais questões
colocadas pelos moradores da reserva e do entorno eram respondidas “exaustivamente”
pelos pesquisadores da Estação Ecológica. (REIS, 2005) Cedo foi percebida a
4
Lembrando que o conceito “tradicional” aqui tem mais relação com o tempo de permanência desses agrupamentos do
que com o conceito antropológico ligado à modos de vida e etnias.
5
São estes dados e relatórios que compõem as fontes investigadas por esta pesquisa, além de uma breve visita à
Reserva.
necessidade de se utilizar o rádio como instrumento de comunicação e informação nesta
construção de diálogo entre especialistas e não especialistas (cientistas X moradores)
envolvidos na criação da Reserva.

No relatório de 1993 encontramos as primeiras referências à veiculação via rádio das


datas dos encontros, o que rapidamente evolui, ainda no mesmo ano, para o projeto de
criação de um programa semanal da Estação Ecológica. A princípio a idéia recebe o
apoio da Rádio Nacional de Tefé, município do entorno da reserva e principal referencial
regional. Em 1994 o projeto ganha forma e força e são realizados os primeiros
treinamentos da equipe responsável pela comunicação social da Estação para a
apropriação desta nova ferramenta. O programa vai ao ar no segundo semestre de 1994
e desde a sua origem recebe o nome de “Ligado no Mamirauá”.

A idéia de esclarecimento e conscientização é a linha mestra na estrutura do programa,


que recebe enxertos de entretenimento, como o atendimento a pedidos musicais dos
ouvintes e de utilidade pública, como a leitura de recados e mensagens enviadas ao
programa por cartas ou telefonemas.

O programa “Ligado no Mamirauá” nasce da necessidade pelo estabelecimento de


vínculos comunicativos com as comunidades do interior e entorno da reserva. Segundo
Thiago Figueiredo, coordenador do Núcleo de Comunicação do IDSM (NUCO), a fonte de
inspiração para a criação do programa foi o extinto programa do MEB, realizado através
da rede da Rádio Rural, que tem uma retransmissora na cidade de Tefé.

Ainda segundo Thiago Figueiredo, em uma pesquisa de audiência recentemente


realizada pelo IDSM (FIGUEIREDO, et. al. 2005), o programa “Ligado no Mamirauá” tem
cerca de 60% de audiência na região da Reserva e nas cidades que tangenciam o seu
perímetro. Além da pesquisa, é interessante observar que o rádio ocupa o papel central
de veículo de comunicação entre o IDSM e as comunidades da reserva por atingir e cobrir
as longas distâncias entre a sede do Instituto e as comunidades da várzea. Apesar do
intenso trabalho de acompanhamento das atividades desenvolvidas pelos comunitários, o
IDSM não pode estar em todas as comunidades ao mesmo tempo e, neste sentido, é o
programa de rádio que exerce a função de manter a onipresença do Instituto e das
diretrizes estabelecidas entre ele e as comunidades.

O programa “Ligado no Mamirauá” exerce primordialmente o papel de esclarecer e


informar a população sobre as ações do IDSM. Em virtude destas ações estarem todas
vinculadas à questão ambiental da manutenção da Reserva, é possível afirmar que o
programa exerce primordialmente a comunicação ambiental. Não foi possível nesta
pesquisa identificar indicadores que estabeleçam a relação e benefícios para o projeto da
Reserva, trazidos pela utilização do rádio como veículo de comunicação ambiental. Dados
como a melhoria das instalações sanitárias nas residências, a queda nos índices de
mortalidade infantil, a queda na pressão sobre os recursos naturais, entre outros, não
podem ser relacionados exclusivamente ao papel desempenhado pelo programa de
rádio.6 Infelizmente o IDSM também não desenvolveu para os anos 90 nenhuma pesquisa
que tivesse por objetivo observar em que medida o programa “Ligado no Mamirauá”
contribuiu para com os índices de desenvolvimento, a exemplo do que fez Mônica Mazzer
Barroso (2006) com relação à rádio de Gurupá – PA. Este trabalho tentou desenvolver
um método semelhante, mas só encontrou até o momento, dados sobre desenvolvimento
humano referentes apenas à década de 90.7

A ausência de uma pesquisa específica que relacione o programa de rádio e os avanços


(e/ou retrocessos) na pressão exercida sobre os recursos naturais entre outros temas de
importância vital para o sucesso da proposta é indicativo de que para o IDSM até a virada
do século XXI, a concepção predominante sobre o meio rádio se assentava mais sobre o
aspecto instrumental de apoio às atividades, que no aspecto interventivo, que coloca o
rádio como centro mesmo das atividades.

Isso é particularmente interessante sob o ponto de vista da importância que o rádio tem,
desde o início, nas ações do IDSM. A questão da intervenção de uma organização
ambiental sobre os modos de vida tradicionais está bem posta pelo trabalho de Marise
Reis (2005). Segundo essa autora, a intervenção do IDSM foi em princípio vista como
“estrangeira” e recebida com desconfiança pelos ribeirinhos de Mamirauá. A diretriz do
projeto tinha por objetivo não apenas estabelecer a confiança entre a organização e a
população ribeirinha, como também de inseri-los, participativamente, nos processos
políticos, sociais e econômicos de criação da reserva – algo que historicamente tem sido
negligenciado pela maioria dos projetos de desenvolvimento da Amazônia, que
desconsideraram sistematicamente a participação popular nas decisões mais
importantes. (SCHIMINK & WOOD, 1994)

As dificuldades apontadas por Reis e Lima (id. Ibidem) na implantação do projeto estão
todas relacionadas com a tradição de ações autoritárias, na Amazônia, especialmente

6
Apesar do programa vir desenvolvendo campanhas de conscientização sobre estes e outros temas.
7
Segundo Ana Claudeíse Nilsonette, pesquisadora do IDSM, dados mais recentes sobre desenvolvimento humano estão
prestes a serem publicados na forma de um relatório.
aquelas que foram abandonadas antes da conclusão de suas metas.8 Assim, a
desconfiança gerada no início das atividades do IDSM não é causa de espanto. A visão
local sobre o projeto, ainda segundo as autoras, tendia a vê-lo como mais uma promessa,
que afetaria substancialmente os moldes de vida e não concluiria suas expectativas. Além
disso, os processo sociais e políticos locais também representaram um obstáculo. O
modelo clientelista das relações políticas, sociais e econômicas estabelecido
historicamente em boa parte da região amazônica – Tefé não é exceção – gerou medos e
desconfianças também entre membros da classe dominante regional.

As reuniões com os ribeirinhos para o estabelecimento de regras de funcionamento da


reserva e esclarecimento das funções que seriam desempenhadas pela idéia de
manutenção ecológica, por mais que tenham sido importantes para a construção da
relação de confiança entre os “macaqueiros” do projeto e os ribeirinhos, não teriam sido
bem sucedidas num curto espaço de tempo sem o apoio representado pelo programa de
rádio. Reis demonstra como as relações inter-pessoais, baseadas no clientelismo,
produziam as contra-informações e sabotagens ao projeto. Isso somado à vastidão do
território de intervenção teriam inviabilizado a concretização do modelo participativo, visto
que a forma de resistência mais comum à proposta da criação da reserva, eram as
ausências nas reuniões. O rádio entra aqui como fator que muda o fiel da balança, pois
uma vez que as ausências nas reuniões são uma forma de resistir à implantação do
projeto, o rádio por outro lado é o veículo por onde toda a população se informa sobre os
avanços da criação da reserva. Assim, mesmo para os ausentes, o que é discutido e
decidido nas reuniões, bem como os avanços conquistados por uns, acaba tornando-se
de conhecimento de todos.

Prova da importância do programa “Ligado no Mamirauá” no estabelecimento da Reserva


é não apenas a sua continuidade ao longo do tempo, como também a contínua
preocupação com a qualidade do programa, representada pelos investimentos do IDSM
em especializar os agentes envolvidos na sua confecção.9 Com o passar dos anos essa
qualidade aumenta, bem como a relação de confiança entre os ribeirinhos e o IDSM, por
outro lado, a pesquisa de campo sugeriu uma queda na audiência do programa “Ligado
no Mamirauá”.

8
Reis fala de projetos de desenvolvimento iniciados em Tefé, que mobilizaram expectativas populares e se converteram e
grandes decepções por não terem sido concluídos.
9
Como os workshops do qual os integrantes do programa participaram em Belém e Santarém, das oficinas de
comunicação popular em Manaus (na qual eu atuei como palestrante), no workshop organizado pela UNICEF em
Brasília, entre outras participações em cursos com o intuito de melhorar o desempenho dos programadores do
Mamirauá.
Ainda não foi possível comprovar a ocorrência dessa queda de audiência com dados
quantitativos, uma vez que, como já foi dito, o IDSM não tinha realizado até recentemente
nenhuma pesquisa de audiência, assim, a única pesquisa existente não pode ser
contrastada com nenhuma outra anterior. O indício de que isso venha ocorrendo partiu de
uma liderança durante minha primeira visita ao campo da pesquisa, por ocasião da
reunião preparatória da Assembléia Anual de 2008, realizada na comunidade de Maguari
entre os dias 7 e 10 de março. Nesta ocasião, minha presença no local foi anunciada na
forma de “visita”, sem que houvesse qualquer esclarecimento dos meus objetivos
enquanto pesquisadora, assim, o comentário da liderança sobre o uso do rádio na
divulgação da Assembléia foi feito sem que ele soubesse que o rádio era o foco da minha
“visita” às comunidades da reserva. Quando foi levantada a questão da divulgação da
Assembléia pelo rádio, essa liderança questionou se ela seria eficaz, completando: “Afinal
quem escuta rádio hoje em dia?”. A resposta do coordenador de educação ambiental foi
de que o rádio ainda era ouvido e a pesquisa de Thiago Figueiredo foi citada para
comprovar essa afirmação.

Apesar de ter sido um comentário único, essa ocorrência não deixou de suscitar a
seguinte questão: Será o rádio um meio de comunicação que ainda ocupa uma posição
privilegiada na região amazônica?

As próprias ações do IDSM contribuíram para a difusão do acesso aos aparelhos de TV,
embora esse seja um dado indireto, apenas sugerido pelas fontes. Novamente a
ausência de pesquisas específicas sobre os meios de comunicação nas comunidades da
Reserva referentes à década de 90, é um problema que só pode ser mais ou menos
contornado pela interpretação de outros dados, como por exemplo, o acesso à energia
elétrica.

Durante os anos 90 a necessidade de manter a constante comunicação com as


comunidades da Reserva, levou o IDSM a desenvolver um projeto de expansão da rede
de radiofonia (radioamador), utilizada para a fiscalização comunitária das atividades de
pesca e extração e para o contato entre a sede e os pesquisadores em campo. Para a
expansão do sistema, o principal obstáculo era a falta de acesso à energia elétrica,
assim, o IDSM se ligou a projetos governamentais (Luz para Todos) e projetos
experimentais de fontes alternativas de energia, conseguindo com isso ampliar o número
de geradores elétricos e introduzir alguns sistemas de armazenamento de energia solar
(os kits de baterias e painéis solares que hoje são a fonte de energia das RadCom da
Reserva). Isso sugere um aumento do número de aparelhos de TV nas residências. Essa
hipótese também é reforçada pela observação de campo, onde os aparelhos televisores
encontrados na maioria das residências visitadas são de uma geração tecnológica
recente (televisores de tela plana que não existiam no período anterior a 1995).

Segundo autores como Renato Ortiz (2001) e Gisela Ortriwano (1985) a ascensão da TV
no Brasil e sua popularização a partir do final da década de 60 do século XX, levou a uma
queda brusca na audiência do rádio, que chegou a ser visto como um meio em extinção.
A solução para a sobrevivência do rádio foi sua especialização e adaptação. Se
considerarmos que a introdução da TV, por onde ela já foi feita, leva inicialmente a uma
espécie de “euforia” televisiva e, por conseguinte a uma queda na audiência do rádio, a
hipótese de que a região da Reserva esteja passando por uma fase de recrudescimento
do rádio em favor da expansão da TV, pode explicar a origem do comentário da liderança
supracitada.

Essa hipótese parece também fazer sentido quando observamos a mudança na


concepção que o próprio IDSM tem da utilização do rádio. Nos relatórios e registros da
virada do século, encontrei as primeiras referências sobre a forma RadCom no IDSM.

Não foi possível distinguir a origem da proposta de criação de RadCom na Reserva. O


mais provável é que essa idéia tenha sido fruto dos constantes investimentos da equipe
em especializar seus programadores através de workshops e da freqüência em oficinas
de rádio oferecidas por outras instituições. A promulgação da lei 9.612/98 certamente não
escapou à atenção do Instituto, uma vez que já nos anos de 2000 e 2001 encontramos
referências a oficinas de RadCom realizadas entre a equipe de comunicação e os
ribeirinhos. Por volta destes anos, o IDSM já dispõe de equipamentos básicos de um
estúdio de rádio, exceto o transmissor. As oficinas realizadas sugerem que a idéia de
criação de RadCom não só é anterior, como também já se encontra amadurecida na
forma destas oficinas para a formação de programadores e comunicadores populares.

Embora as atividades para a formação de comunicadores e programadores de RadCom


apareçam no início deste século nos relatórios do IDSM, a criação, de fato, de emissoras
só aparecem a partir de 2004 e sob a iniciativa pessoal de um ribeirinho, Antônio
Francisco, da comunidade de Boa Esperança, em Amanã, que havia freqüentado as
oficinas ministradas em 2000 e 2001.10

O papel de Antônio Francisco na disseminação do modelo de RadCom no IDSM foi


fundamental. Aqui entra um dado curioso: quando perguntei a Marco Lopes, atual
10
Amanã é um lago subsidiário da reserva que foi incluído posteriormente como reserva de Desenvolvimento
Sustentável no escopo da proposta do IDSM
programador do “Ligado no Mamirauá” e um dos articuladores das RadCom da Reserva,
de onde havia partido a idéia de se criar rádios comunitárias, ele respondeu que isso
havia partido da experiência da “rádio poste” (rádio de circuito fechado) de Antônio
Francisco. O curioso é que o próprio Antônio Francisco teve a idéia de fundar uma
emissora a partir das oficinas de RadCom realizadas pelo IDSM. Essa confusão sobre as
origens desse processo pode ser explicada pela substituição da equipe que trabalhou
inicialmente no projeto, pela nova equipe em atuação. Essa troca parece ter ocorrido
entre os anos de 2003 e 2004, no entanto, não foi possível obter mais informações a
respeito dos motivos que geraram a saída da equipe anterior.

O importante desse dado é que aparentemente a equipe anterior não transmitiu para a
nova equipe o histórico completo das atividades relacionadas as RadCom, assim, do
projeto anterior encontramos um traço de continuidade com o projeto atual a partir da
assimilação da proposta e apropriação do meio, executada por Antônio Francisco.
Infelizmente esta primeira incursão ao campo não me permitiu ir até a comunidade de
Boa Esperança para ver de perto a experiência de Antônio Francisco. O que foi possível
descobrir através dos contatos no IDSM é que a emissora de rádio poste, por ser a mais
antiga da reserva, por estar mais bem organizada e pelas afinidades entre a liderança
deste ribeirinho e o NUCO, foi escolhida para ser agraciada pelo prêmio “'OI' de
Comunicação Popular” em 2006 que possibilitou, em 2007, a compra do transmissor e da
antena.

Só é possível especular, com base em indícios, quais teriam sido as razões que levaram
o Instituto a se aprofundar no conceito de comunicação via rádio, saindo da visão do rádio
como instrumento de apoio, para a visão do rádio mobilizador, agente interventivo direto
na constituição de canais dialógicos de comunicação.

Um primeiro indício está na própria proposta participativa do IDSM. A partir do fato de que
o programa “Ligado no Mamirauá” responde apenas a uma camada mais superficial da
proposta dialógica, sendo, portanto, um veículo de comunicação generalizado e
generalizante, os aspectos locais e principalmente a resposta do agente de recepção se
perde em meio a essa comunicação impessoal, institucional. Por mais que o programa se
esforce em atender pedidos musicais e a transmitir mensagens e recados, a localização
da Rádio Rural de Tefé, o tempo restrito de transmissão (2 horas semanais), o valor do
horário (cerca de 500 reais), impedem uma resposta direta, sem mediações da recepção,
não configurando um canal dialógico de comunicação, como é a preocupação e a diretriz
geral da proposta do Instituto.
Outro fator que certamente é determinante é a ausência de meios de comunicação nas
comunidades ribeirinhas, o que impede ao IDSM o cumprimento do papel de suporte à
fiscalização comunitária dos lagos de preservação, na medida em que as denúncias
levam muito tempo para chegar às sedes do IDSM e IBAMA. O rádio em Freqüência
Modulada (FM) não poderia cumprir essa função muito mais por causa dos impedimentos
jurídicos da regulamentação da lei, do que por um fator estritamente tecnológico. Assim,
se projetarmos uma abertura da lei para a ampliação do raio de alcance das RadCom da
região amazônica, essas emissoras na reserva poderão cumprir esse papel. De qualquer
maneira, por enquanto, elas servem mais ao propósito da educação ambiental, que
trabalha sobre uma dinâmica invertida: o processo de tomada da consciência parece
acontecer primordialmente nas reuniões de pauta e na produção dos programas do que
na veiculação e recepção da mensagem, como geralmente acontece aos veículos de
comunicação de massa que conscientizam (ou banalizam) a audiência, sobre
determinados assuntos, na medida em que a submetem basicamente à repetição da
mensagem durante a programação11. Aqui o produto final importa, mas importa menos do
que seu processo de produção.

Outro fator pode estar relacionado ao contexto nos anos 90, de mobilização em torno da
legalização das RadCom. Sobre isso, ainda há uma lacuna: faltam dados sobre a história
do movimento de rádios livres e comunitárias no estado do Amazonas. Esta pesquisa
espera encontrar informações mais específicas a esse respeito, especialmente ao
período anterior a 1998.12 De qualquer maneira, tendo encontrado os primeiros indícios
relativos aos primeiros anos do novo século, embora eles sugiram que a idéia seja um
pouco anterior a essa data, a inserção das RadCom na proposta do IDSM e portanto, a
evolução do conceito de comunicação via rádio dessa organização, coincide com um
processo mais amplo de expansão das RadCom associadas a organizações
ambientalistas por toda a região Amazônica13.

Outra possibilidade reside no recrudescimento do rádio em favor da Tv. A expansão de


rádios comunitárias na Reserva seria uma solução encontrada pelo IDSM para reverter a
diminuição da importância desse meio no cotidiano dos ribeirinhos e responderia também
ao processo conceituado por Ortriwano (1985) de “especialização do rádio”, como forma
11
Grosso modo a repetição da mensagem não leva necessariamente à conscientização, há outras técnicas envolvidas
numa mensagem de politização, mas aqui é o produto final que tende a ser o fio condutor da conscientização, ali é o
processo de produção da mensagem, numa dinâmica participativa que se pretende conscientizador.
12
Os dados que disponho sobre a organização de Rádios Comunitárias no Amazonas são escassos e todos referentes
aos anos posteriores a 2000.
13
Os trabalhos que desenvolvi junto ao Greenpeace, a Rede GTA e à Fundação Friedrich Ebert exemplificam esse
crescente interesse, que também pode ser observado na atuação de outras ONG´s como a WWF, a Fundação Saúde
e Alegria em Santarém, entre outras.
de sobreviver à Tv. As RadCom dentro dessa hipótese seriam a forma encontrada que
permitiria a sobrevivência do meio rádio frente à euforia televisiva.

Traçadas as hipóteses explicativas para a mudança na diretriz do IDSM concernente ao


uso do meio rádio para as apropriações de fato, o que emerge como ponto fundamental é
a idéia da comunicação participativa via rádio e a idéia da construção da Rede Ribeirinha
de comunicação.

A Rede Ribeirinha

Como já foi citado, para a nova equipe do NUCO, a idéia de constituir emissoras de
RadCom nas comunidades da reserva surge a partir da experiência de Antônio Francisco,
que por sua vez insere-se nesta iniciativa a partir das atividades desenvolvidas pela
equipe anterior de comunicação do IDSM.

A esta altura os trabalhos de comunicação popular já estão bem desenvolvidos, o IDSM


já realizou experiências de confecção de boletins comunitários, oficinas de jornalismo e
programas de rádio. A nova equipe se aprofunda nestas experiências, cria o jornal “O
Comunicador”, “inteiramente confeccionado pelos ribeirinhos” e apóia a iniciativa de
Antônio Francisco, planejando ampliar a rádio poste para uma emissora de circuito aberto
e espalhar pequenas emissoras de RadCom pela Reserva.

Basicamente a Rede Ribeirinha ao invés de constituir-se como uma rede dentro dos
padrões clássicos de radiodifusão, ou seja, contendo uma emissora central irradiadora de
informações apoiada por emissoras retransmissoras, a idéia desenvolvida permite que
cada qual aja autonomamente em sua localidade. Da totalidade dos programas
desenvolvidos pelas emissoras de Porto Braga, Boca do Mamirauá e Boa Esperança, um
tema é escolhido para a confecção de um bloco a ser gravado e enviado para Tefé, onde
é veiculado semanalmente pela Rádio Rural no horário do programa “Ligado no
Mamirauá”. Assim, a proposta apóia-se na base das emissoras, divulgando seus
conteúdos pela Rádio Rural de Tefé, invertendo o modelo clássico de rede. O jornal “O
Comunicador” também continua a ser utilizado como aglutinador de informações que
serão depois traduzidas para a linguagem radiofônica para serem transmitidas tanto pelas
rádios comunitárias da Reserva, quanto pelo bloco que dispõem no programa “Ligado no
Mamirauá”.

Problemas

A experiência do IDSM abre importantes precedentes históricos do uso de RadCom como


instrumentos fortalecedores de iniciativas voltadas para a sustentabilidade ambiental. Há,
porém, algumas questões que merecem ser analisadas e que problematizam essas
experiências.

Aqui se faz necessária a seguinte distinção entre os problemas conjunturais, ou seja,


aqueles relativos a todas as RadCom brasileiras e os problemas específicos, aqueles
relativos à experiência do IDSM propriamente dita. Como problemas conjunturais cito as
questões burocráticas e jurídicas concernentes às RadCom, já brevemente descritas
neste trabalho e que merecem um espaço próprio de análise.14

Embora esta pesquisa ainda não esteja acabada, os indícios levantados permitem
problematizar algumas questões. A mais importante diz respeito à autonomia das
experiências de RadCom. Segundo Marise Reis, as relações entre os habitantes da
reserva Mamirauá-Amanã e do entorno, podem ser inseridas no conceito do “clientelismo”
político. Um dos grandes desafios do IDSM ao longo dos anos de construção da Reserva
foi – e em boa medida ainda é – afastar-se da lógica clientelista, baseada na troca de
favores, na pessoalidade dos benefícios e prejuízos em contraposição ao conceito de
coisa pública e que acaba por reverter os esforços pela criação de um sistema impessoal,
baseado na instituição democrática, que por extensão afeta a proposta de
estabelecimento de regras em comum acordo a serem observadas pelos ribeirinhos,
favorecendo o surgimento de conflitos. (2005) Assim, a fiscalização ou vigilância
comunitária, a obediência aos planos de manejo da pesca ou da floresta, acabam muitas
vezes comprometidos pelas relações de favorecimento pessoal baseadas na tradição do
clientelismo político. Por mais que o IDSM se esforce com sua equipe para afastar-se
desta lógica, é ela que impera no meio popular, onde os ribeirinhos re-configuram as
noções trazidas pelo Instituto de acordo com suas próprias práticas ainda muito
fortemente calcadas nesta tradição. Não há nada que estabeleça a priori que as RadCom
estão fora desta lógica.

Se o coronelismo e o clientelismo são práticas que apresentam em comum a


pessoalidade das relações políticas, como essas características, presentes nas relações
sociais da região da Reserva poderão vir a comprometer as experiências de RadCom, a
exemplo do que é sugerido pelo trabalho de Lima & Lopes (op. Citi), com relação ao
“coronelismo de novo tipo” e que tem se constituído no Brasil como um verdadeiro padrão
de apropriação de rádio comunitária?

14
Infelizmente estes problemas ocupariam aqui a totalidade do espaço permitido. Limitamo-nos a sugerir a leitura dos
trabalhos já citados de Neto (2001), Silveira (2001), Luz (2002) e Andriotti (2004), que lançam luzes sobre as questões
burocrático-jurídicas das RadCom.
Essa questão torna-se ainda mais importante se observarmos o próprio processo de
criação das rádios no Mamirauá. Com exceção da RadCom de Boa Esperança, cuja
iniciativa de Antônio Francisco foi essencialmente espontânea, as outras emissoras já
atuantes, bem como as que têm sido planejadas são essencialmente iniciativas do
NUCO. Segundo Ana Claudeíse, coordenadora de pesquisas sócio-ambientais do IDSM,
os equipamentos que puderam ser comprados com o valor do prêmio “’Oi’ de
Comunicação Popular” foram distribuídos seguindo os seguintes critérios:

- Estágio organizacional das comunidades, critério cujo elemento principal era a


constituição pelos comunitários de uma sede específica para a rádio.
- Capacidade de manutenção autônoma da emissora
- Participação nas oficinas de comunicação popular, realizadas ao longo das
atividades do IDSM

Estes critérios evidenciam a preocupação do IDSM em beneficiar as comunidades que


apresentaram maior capacidade de organização autônoma, ainda assim, para Ana
Claudeíse permanece a dúvida: “Se eles vão ou não dar continuidade ao projeto quando
um equipamento quebrar, ou quando a bateria solar do kit de energia precisar ser trocada
daqui há dois anos, isso é o que veremos”.

Neste momento ainda não é possível definir a estabilidade das experiências de RadCom
na Reserva. A legitimidade da proposta se assenta num contexto mais geral – que local -
de demandas por meios de comunicação democráticos e democratizantes para a
comunicação e conscientização ambiental. A preocupação do Instituto em buscar critérios
de autonomia no beneficiamento de comunidades com emissoras de rádio, sugere que a
forma “tutelar” sobre essas emissoras não está nos objetivos do projeto, mas sim nas
relações tradicionalmente baseadas na lógica clientelista.

Em Porto Braga, por exemplo, minha breve visita à rádio foi surpreendida pelo relato de
um problema interno concernente às atividades da rádio: segundo uma moradora houve
um princípio de conflito entre alguns moradores que achavam mais necessário a
utilização do kit de energia solar empregado em outras atividades da comunidade, do que
exclusivamente para a emissora de rádio poste. Foi preciso a intervenção dos diretores
da emissora, falando em nome do IDSM, para garantir a continuidade da experiência de
Rádio. Ainda segundo essa moradora, os diretores da rádio insistiram sobre o fato de que
o kit tinha sido doado exclusivamente para o funcionamento da emissora, o que deixou
subentendido a possibilidade dele ser retirado da comunidade, caso fosse utilizado para
outros fins. Esse incidente nos remete à questão exposta acima: o benefício da emissora
na comunidade de Porto Braga não parece ter sido ainda percebido em sua totalidade,
pois trata-se de uma rádio de circuito fechado e que, portanto, não pode ser captada fora
do raio de alcance de seus auto-falantes. Em contrapartida, o benefício de um kit de
energia elétrica é imediatamente compreendido e validado para fins mais imediatos. Se
utilizado para esses outros fins, a experiência de comunicação da comunidade de Porto
Braga teria sido reduzida tão somente na aquisição do kit de energia solar, aliás, essa
parece ter sido a visão de alguns de seus moradores.

A questão da autonomia das experiências de RadCom na Reserva Mamirauá-Amanã não


parece portanto, estar relacionada exclusivamente à forma com a qual o IDSM inseriu
essas experiências, mas sim, como foi dito, à lógica geral do tipo clientelista que vê nas
relações entre as comunidades e as instituições um meio de aquisição de benefícios
materiais em detrimento dos benefícios simbólicos.

Transamazônica

Em contraste com as experiências de Mamirauá a pesquisa realizada em 17 rádios


comunitárias da Transamazônica sugere, uma outra gama de problemas, desta vez
oriundos da própria autonomia das rádios. A autonomia que seria desejosa para o caso
da Reserva, aqui suscita problemas.

Em resumo, - pois a questão é bastante complexa e exige um estudo mais aprofundado


do que o espaço permitido por este trabalho -, as RadCom da Transamazônica estão
mais próximas ao padrão de apropriação do “coronelismo eletrônico de novo tipo”, porque
combinam o modelo privado-comercial, o proselitismo político e o modelo comunitário-
participativo numa forma híbrida. Abaixo segue um resumo dos dados levantados pela
pesquisa realizada em 2004:

• Apropriações de RadCom com elevado grau de autonomia financeira e


organizacional. Baixa participação comunitária na composição da programação e
do conteúdo informativo. Proselitismo político durante o período eleitoral. Ausência
de comunicação ambiental e projetos de educação ambiental. Ausência de
diploma legal (concessão). Presença de repressão política local, ações de
fechamento ilegais (sem ordem judicial e sem autorização federal) e de
sabotagem (roubo de equipamentos ou interferência proposital no sinal de
transmissão). Desconhecimento detalhado do processo jurídico e burocrático de
aquisição de licenças. Publicidade como meio de aquisição de recursos
financeiros.
Esses dados em resumo sugerem que as rádios da Transamazônica não são
comunitárias, entretanto esta seria uma conclusão precipitada. Observar a
Transamazônica requer uma abordagem diferenciada daquela utilizada no Médio
Solimões. Aqui a distinção de classes e os embates e conflitos entre elas são mais
facilmente identificáveis do que nas comunidades da reserva. A superestrutura do Estado
e suas instituições exercem um papel determinante e histórico na criação da rodovia e
nos problemas sociais que a caracterizam. O trabalho de Schimink & Wood (1992) traz
uma boa idéia a respeito dos problemas históricos da rodovia, que desembocam nos
grandes conflitos fundiários dos anos 80 e que nos noventa, evoluem em paralelo aos
conflitos ambientais.

O Estado como formulador do plano de construção da rodovia dentro do projeto


desenvolvimentista para a Amazônia, vai ao longo do tempo se tornando ausente e/ou
insuficiente – especialmente as instituições que asseguram a proteção dos direitos civis e
políticos – como mediador de conflitos. Neste sentido, as RadCom constituídas ao longo
da rodovia, por não dependerem de nenhuma instituição que tenha peso político ou
financeiro - e que portanto, faça as vias de mediadora de possíveis conflitos -, encontram-
se sozinhas para enfrentar as disputas entre a informação e a contra-informação
produzidas pelas classes em oposição.

Constituídas autonomamente, essas emissoras encontram-se fragilizadas, num contexto


onde o domínio da informação tem crescido como campo de disputas. Esse é o caso
específico da questão ambiental, que se apresenta como principal argumento crítico ao
modelo de desenvolvimento que ali foi implantado. Não é de admirar, portanto, que seja
uma questão delicada, colocada de forma bastante parcial na programação de poucas
emissoras e evitada pela maioria delas.

A pesquisa sugere que as informações e denúncias que sejam críticas ao modelo de


desenvolvimento implantado e aos seus principais beneficiados ao longo da história da
rodovia são evitadas por causa das disputas em torno da hegemonia política local,
somadas à ausência ou insuficiência das instituições públicas na proteção dos direitos
constitucionais e às dificuldades burocráticas na aquisição de licenças. A eficiência do
rádio, que pode ser utilizada na construção de um modelo de desenvolvimento
sustentável, ao mesmo tempo expõe seus atores às disputas e represálias políticas.

Aqui a questão da autonomia das rádios aparece de forma invertida àquela observada na
região do Médio Solimões.
A fragilidade das RadCom diante dos conflitos locais não explica por completo a ausência
quase total de programas voltados para a comunicação ambiental. Tão arriscado quanto
falar da questão ambiental é falar em favor da classe trabalhadora e defender a
regulamentação fundiária dos colonos pequenos proprietários. A maioria das RadCom
visitadas estão ligadas aos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR) e desenvolvem
programas neste sentido.

Não seria de espantar, que a questão ambiental se mantivesse de fora das RadCom se
estas, em sua fundação, não contassem com o apoio de organizações ambientalistas ao
lado do STR, como é o caso das rádios de Pacajá, Altamira, Anapu e Brasil Novo,
apoiadas pela Fundação Viver, Produzir e Preservar e pela Rede GTA. O fato de não
terem, em 2004, programas direcionados para a comunicação e conscientização
ambiental, mas desenvolverem programas que abordam os temas relativos aos direitos
fundamentais dos trabalhadores, sugere que não haja concordância sobre a questão
ambiental também entre esta classe. Assim, qual o papel desempenhado pelas
instituições ambientalistas na fundação destas rádios?

A associação das classes trabalhadoras com a questão ambiental não é direta, mesmo
assim, encontramos representações da classe trabalhadora, cujas reivindicações são
também ambientalistas, como é o caso, por exemplo, do Movimento Contra as Barragens
do Xingu. Assim, uma explicação para o papel desempenhado pelas instituições
ambientalistas na fundação de RadCom seria o de garantir que estes movimentos
tenham seu espaço nas emissoras.

Outra explicação recai novamente para os problemas burocráticos e jurídicos relativos às


RadCom, que aqui são agravantes na fragilidade das experiências. Além da ausência de
instituições que protejam os direitos civis e políticos, as RadCom são também excluídas
da legalidade, tornando-se alvo ainda mais fácil para os abusos de poder e atos de
violência perpetrados pelos seus opositores. Para se protegerem, elas aproximam-se das
instituições ambientalistas e também de lideranças político-partidárias, na esperança de
terem seus problemas legais resolvidos e, talvez, aumentarem sua proteção. Em
contrapartida essas emissoras oferecem aos políticos e partidos - com apelo à base
trabalhista, tradicional oposição aos partidos representantes das elites locais – a
oportunidade do uso do rádio como instrumento do “coronelismo eletrônico”, o que na
Transamazônica era tradicionalmente restrito à elite política.15

15
As rádios de Altamira, Vitória do Xingu, Pacajá, Brasil Novo, Rurópolis e Itaituba tinham recorrido a lideranças políticas
partidárias numa tentativa de terem seus problemas jurídicos resolvidos. A contrapartida disso foi a intensa propaganda
política realizada pelas RadCom às vésperas das eleições municipais de 2004 e observadas durante a pesquisa.
As RadCom da Transamazônica visam equilibrar localmente as disputas pela penetração
e manipulação ideológica das massas. Entretanto, o uso do rádio dentro dessa lógica,
está longe de ser uma atividade amplamente democrática, sendo muito mais um meio de
instrumentalizar as posições políticas polarizadas.

A participação comunitária nas RadCom fica subordinada então às oposições que são
formadas entre as classes e intra-classes, entre aqueles que defendem o modelo
econômico vigente, e os que o atacam, entre aqueles que defendem a regularização
fundiária e os que sobrevivem da exploração de terras com títulos duvidosos, entre as
pressões externas e internas sobre a utilização dos recursos naturais, etc; assim, a
postura das emissoras determina de que lado elas se encontram nas disputas polarizadas
e dependendo de sua posição, os que atuam através delas, arriscam-se.

Finalmente, o proselitismo político, a finalidade lucrativa escondida sob a fachada do


“apoio cultural”, a unilateralidade das opiniões e a criação de mecanismos excludentes,
observados nas experiências da Transamazônica, levantam questões relativas a um
aprofundamento da discussão sobre a ética das RadCom. Se aqui esses problemas
encontram uma justificativa no contexto da rodovia, que é determinante, esse não é o
caso de outras experiências de rádios comunitárias no Brasil e que apresentam o mesmo
desvio de conduta ética, por assim dizer.

Conclusão Parcial

Há muito mais para ser dito e pesquisado a respeito das rádios comunitárias no Brasil e
em especial sobre as experiências na Amazônia. Por hora este trabalho se contenta em
lançar um olhar a respeito da delicada relação que estas rádios estabelecem com a
questão da autonomia, “menina dos olhos” de todos os radioamantes ativistas do
movimento de rádios livres e comunitárias. O resultado parcial aponta que essa questão é
relativa ao contexto de constituição das experiências. Vimos um caso em que a
autonomia aparece como um fator positivo, a ser perseguido e construído; num outro
caso, a mesma autonomia aparece como problema que impede o amplo desenvolvimento
das ações comunicativas, especialmente as de cunho ambiental. Em ambos os casos a
questão geral burocrática e jurídica é determinante, na medida em que força as
experiências a buscarem alternativas nem sempre sustentáveis e nem sempre éticas,
seja através da continuidade da ilegalidade, seja através de ligações políticas, partidárias
ou institucionais, que estabelecem graus variados de vínculos de dependência e afastam
a experiência prática, do conceito que a sustenta.
Essa questão conjuntural e que afeta indiscriminadamente as rádios comunitárias de todo
o país, no caso amazônico tem agravantes relativos às tradicionais relações políticas que
persistem. Isso não significa que as RadCom não possam vir a se constituir como
núcleos de ações comunicativas dialógicas e concretizar as expectativas de benefícios
ambientais, ou de benefícios políticos, através das dinâmicas das arenas coletivas de
discussão e decisão (OSTROM, 1990). Ao contrário, a persistência dessas experiências
guarda um potencial transformador, desde que sejam criadas condições mínimas para
que elas possam se desenvolver.

A estrutura das RadCom da Reserva Mamirauá-Amanã, como foi brevemente exposto


acima, propõe a constituição de um espaço de comunicação dialógica voltado para a
comunicação ambiental, por outro lado, a iniciativa tendo partido do IDSM e não dos
próprios comunitários contém o risco de sucumbir à falta de interesse, ou legitimidade, ou
ainda à incapacidade de se manter financeiramente com autonomia, o que poria em risco
as emissoras diante da tradição clientelista e do padrão de apropriação voltado para
interesses políticos eleitorais denominado por Lima & Lopes (2007) como “coronelismo
eletrônico de novo tipo”.

Por outro lado o IDSM parece estar mais bem preparado para oferecer as condições
necessárias para a estabilidade das experiências. A “tutela” inicial, por assim dizer, sobre
as RadCom assegura o estabelecimento de uma ética democrática e democratizante, que
abre possibilidades de vir a ser internalizada, com o tempo, até mesmo pelas
comunidades que se mostraram mais apáticas com relação à criação de emissoras de
rádio comunitária. Já no caso da Transamazônica, a autonomia financeira das rádios não
reflete automaticamente num ganho positivo para a comunicação dialógica. As condições
mínimas para o estabelecimento da comunicação dialógica, gerida coletivamente, estão
relacionadas mais a problemas contextuais e que não podem ser resolvidos pela mera
“tutela” de uma instituição como o IDSM. Aqui é o Estado quem devia assegurar essas
condições, resolvendo os problemas sociais históricos que têm sido negligenciados e
protegendo as arenas publicas de discussão para que elas estejam menos pautadas pelo
perigo que o conflito representa e mais pautadas na negociação de regras de gestão
desse conflito. Na ausência do Estado desempenhando o papel de protetor dos direitos
civis, a continuidade das experiências na forma que foi observada, gera a perspectiva de
que as RadCom se afastarão cada vez mais do modelo proposto historicamente pelo
movimento e conseqüentemente, da discussão ética que deveria nortear o futuro destas
ações.
Podemos questionar até que ponto o ideal libertário e autônomo do movimento de rádios
livres e comunitárias no Brasil se fragmenta nesta relação com as instituições. De
qualquer maneira, o papel que as instituições exercem sobre as rádios, seja direta ou
indiretamente, parece influenciar na qualidade da comunicação que é estabelecida,
levando à conclusão de que a questão da autonomia reivindicada para as emissoras
necessita ser avaliada sob o ângulo do contexto das experiências, da qualidade da
comunicação e da ética democrática e democratizante que cada contexto pode oferecer.

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