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Reis e Pintos-monografiaREVISADA
Reis e Pintos-monografiaREVISADA
INSTITUTO DE ARTES
REIS E PINTO:
RIO DE JANEIRO
2017
LEONARDO DOS SANTOS ANTAN
REIS E PINTO:
AS LINGUAGENS MARGINAIS NOS DESFI-
LES DAS ESCOLAS DE SAMBA DOS ANOS
1980
RIO DE JANEIRO
2017
LEONARDO DOS SANTOS ANTAN
REIS E PINTO:
Banca Examinadora
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RIO DE JANEIRO
2017
Às foliãs da minha vida, à águia
e ao beija-flor.
AGRADECIMENTOS
É com aquele misto de alegria e tristeza do fim de um ciclo, que destaco todo
meu sentimento de gratidão aos que contribuíram nesse percurso turbulento.
De início, agradeço a meu orientador Felipe Ferreira, cujo nome já estava desti-
nado desde a primeira aula na faculdade. Obrigado, pela acolhida e os ensinamentos,
responsável pelo traço que meu enredo tomou ao longo da graduação, exemplo de
dedicação e comprometimento acadêmico.
Na próxima ala, em lugar de destaque, a paciência e sabedoria do professor
Marcelo Campos, que me acolheu com a pesquisa já em andamento, abraçando meu
carnaval com entusiasmo e carinho. O meu mais sincero muito obrigado.
Para os docentes do IART-UERJ que me fizeram mergulhar profundamente no
universo das artes, de maneira intensa e apaixonado. Em especial, destaco a delica-
deza de Leila Danziger e a intensidade de Marisa Flórido, essenciais na minha forma-
ção de historiador da arte.
As minhas parceiras de jornadas, amigas, confidentes, verdadeiros faróis em
meio a escuridão de períodos difíceis. As minhas dionisíacas, Alice, Ana Elisa, Juliana,
Pacini, Rose e Clara. Evoé!
Para os amigos que compartilham a folia. Ao grupo Experteleza e aos amigos
que embarcaram comigo no Carnavalize, buscando revelar a história da folia assim
como esse trabalho. E para Fábio Fabato e Bárbara Pereira, por dividirem a paixão e
preciosas informações sobre nosso gênio dos cabelos ouriçados.
A Luiz Fernando Reis pela generosidade e saudade de antigos carnavais, você
se tornou um mestre da minha folia.
Ao meu namorado, Carlos Henrique, por todos os áudios gigantes, o ouvido sem-
pre receptivo para minha empolgação e loucura. Você foi um incentivador fundamen-
tal, obrigado pelo carinho.
Por fim, obrigado à toda minha família pelo apoio e compreensão às horas gas-
tas em frente ao computador. Para Zezé, a responsável por despertar em mim o amor
pelo carnaval e pela nossa Portela, você é a minha águia. E para Terezinha, in me-
morian, por amor devotado, a minha torcedora da Beija-Flor preferida.
Terminar a graduação em meio a esses tempos difíceis é missão de fé e na
esperança de dias melhores. Obrigado, UERJ, pelos encontros e afetos que você pro-
moveu nesses mais de quatro anos. #uerjresiste
Abro a cortina deste palco de ilusão
Reino da magia e da imaginação
Canto, comigo todo povo canta
E uma festa se levanta
Deste enredo que encanta
É prego, é pano, é paetê
Tudo começa pela mão do artesão (No barracão)
Carpinteiro, serralheiro, escultor e vidraceiro
Trabalhando em mutirão
As costureiras, bordadeiras
Verdadeiras operárias da folia
Viverão lindas baianas, belas damas
Exibindo a fantasia
E já se tem a visão
Da total dimensão
Da futura alegria
Ver a escola passar
É se gratificar, é ser rei por um dia
E, do sonho a realidade
Quanta dificuldade
Para se superar
Mais força de vontade
É arma na verdade
Que faz o sonho se realizar
By articulating Carnival’s hybridisms and contacts with the institutionalized art, this
work intends to investigate the role of the carnival artist in the production of a samba
school parade. The samba schools, even though they articulate several different artis-
tic skills, are not inscribed in the canonical history of Brazilian art. Considered only
from the folk culture perspective, notions of authorship are not discussed in the analy-
sis of this Carnival production. Using the writings on authorship by Michel Foucault and
Giorgio Agamben, this paper disacuss the productions of two important carnival artists
of the 1980’s, Luiz Fernando Reis and Fernando Pinto, both marginalized in the history
of Carnival. They dialogued intimately with the social context of the time, giving differ-
ent answers to the same political demands. On one hand, Pinto updated the Tropicália
movement, rethinking the idea of some Brazilian nation through an allegorical and cel-
ebratory critique; on the other, Reis, by appropriating everyday objects and using the
written word, proposed conceptual, precarious, political and pamphleteering oeuvres
that sought to create critical awareness in the Brazilian population. Together, Pinto and
Reis broke with the traditional Carnival parades’ language of luxury and opulence,
making, through their marginality praxis, an articulation between the Carnival parades
and the artistic scenario from the 1960’s to the 1980’s in Brazil.
Keywords: Art. History of Brazilian Art. Samba schools. Carnival artist. Marginal cul-
ture. Tropicalism. Conceptualism.
ROTEIRO DE DESFILE
CONCENTRAÇÃO ................................................................................................... 8
CONCENTRAÇÃO
1Segundo Santos (2009), o carnavalesco é uma espécie de mediador sociocultural, tendo que conciliar
as linguagens artísticas já consolidadas com a linguagem da escola de samba.
12
2 Compreendemos que a relação entre os criadores de carnaval e o mundo da arte é parte do processo
que busca civilizar o carnaval brasileiro já na primeira metade do século XIX, como destaca Ferreira
(2004). Optamos, entretanto, nesse trabalho por enfocar a figura do carnavalesco a partir da atuação
de Fernando Pamplona no Salgueiro, pelo ponto de virada que ele representa na historiografia carna-
valesca.
13
3 Samba-enredo da GRES São Clemente para 2015 composto por Leozinho Nunes, W. Machado, Hugo
Bruno, Diego Estrela, Ronni Costa e Victor Alves sobre o enredo em homenagem a Fernando Pam-
plona.
4 A histografia consagra como o primeiro concurso realizado entre as escolas, o realizado pelo jornal
las e não de uma imposição autoritária do governo. A alternativa ia ao encontro dos ideais nacionalistas
do governo de Getúlio Vargas e ajudou a fixar a manifestação como uma dos expoentes da nação
(AUGRAS, 1998).
6 O grupo misturaria estudantes da EBA, como Maria Augusta, Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, com
profissionais do Theatro Municipal, como Arlindo Rodrigues e Joãosinho Trinta. Todos esses profissio-
nais se destacariam à sua maneira, com características e personalidades artísticas distintas.
14
figura marginal negra, então desconhecida do grande público. Junto a este aspecto
dramatúrgico, soma-se a mudança visual, pois o grupo também ajudou a construir
toda uma estética negra com estampas e elementos de inspiração africanas, com in-
fluências hollywoodianas e da arte moderna.7 Foi neste processo, então inaugurado,
que o carnavalesco passa a ser individualizado como o autor/criador da escola de
samba. Não um autor como um elemento de discurso, mas um exercício em relação
a ele, como sintetiza Foucault (2011, p.14): “O nome do autor não está localizado no
estado civil dos homens (...) mas na ruptura que instaura em certo grupo de discursos
e seu modo singular de ser.”
O diálogo entre o professor acadêmico e o componente de ala salgueirense
marca, simbolicamente, a atuação do intelectual de esquerda como o mediador entre
o mundo da “alta cultura” e o da cultura popular. Trata-se de uma visão desmitificada
por Néstor Garcia Canclini (1998), resumida como a “encenação do popular”, onde as
“tradições” são ritualizadas para servir à legitimação daqueles que as elaboraram ou
delas se apropriaram. Algo estritamente construído e não preexistente como o imagi-
nário comum perpetua. A tensão do diálogo marca a resistência das comunidades em
assumir um novo discurso, imposto por alguém visto como “de fora” da comunidade.
Na construção de boa parte dos estudos carnavalescos, a chegada de alguém
alheio à comunidade é vista como um ponto de virada. Porém Pamplona não foi o
primeiro nome de outras áreas a colaborar com as agremiações. Um profissional cha-
mado “técnico” já era comum na primeira metade do século XX na produção dos ran-
chos e grandes sociedades.8 Já na primeira década dos desfiles das escolas de
samba, a inovadora Vizinha Faladeira contratou a dupla de cenógrafos Irmãos Garrido
para cuidar da parte visual da apresentação.9 Entretanto, Pamplona seria o primeiro
intelectual a se colocar devidamente em diálogo com a comunidade, cumprindo não
só os interesses dela, mas o seus enquanto artista e pensador. Podendo ser enten-
dido na lógica proposta por Foucault em seus conceitos de autoria como um “instau-
rador da discursividade”. O artista estabelecendo um “ato de instauração, em afastar
os enunciados que não seriam pertinentes (...) e provenientes de outros tipos de dis-
cursividade.” (FOUCAULT, 2011, p.8)
Além do âmbito das comunidades, a década de 1960 é um momento de virada
para o entendimento da cultura popular, já que os intelectuais de esquerda deste pe-
ríodo assumem uma postura crítica em relação à arte popular e “engajada”, com tra-
ços populistas e nacionalistas (HOLLANDA, 2004, p. 22). O meio do carnaval ia exa-
tamente ao encontro desses ideais revolucionários. Pamplona era uma figura decla-
radamente de esquerda, frequentador do meio universitário onde ocorriam essas dis-
cussões, por ser professor da EBA e integrante da UNE, como ele mesmo declara em
sua biografia.
A valorização do negro nos enredos do Salgueiro “ensinaria” os salgueirenses a
terem orgulho de origem ancestral africana, como Pamplona assume em seu relato
pessoal (PAMPLONA, 2013, p. 59). Para a intelectualidade na década de 1960, a
negritude era um dos pontos de discussão. Um elemento para compreender esse pro-
cesso seria, por exemplo, o Teatro Experimental do Negro, que atuou de 1944 a 1961,
fundado e dirigido por Abdias Nascimento, no Rio de Janeiro, que propunha a repre-
sentatividade negra nas artes cênicas brasileiras, dando origem também ao jornal Qui-
lombo. Outro exemplo é o trabalho de Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do
Municipal, que colocaria em evidências as questões raciais em seus trabalhos e atu-
aria junto ao grupo de carnavalescos do Salgueiro, na coreografia de algumas alas,
como veremos mais à frente. Fora do meio artístico, a criação da Associação Cultural
do Negro é também encontro de reinvindicação social de vários intelectuais, atuando
de 1954 e 1964.
Para além do contexto nacional, no mesmo período, eclodiu um momento de
independência africana. Só em 1960, cerca de dezessete colônias conquistaram sua
autonomia. Refletindo esse um processo de valorização da cultura do continente (SI-
MAS e FABATO, 2015, p. 30), por aqui o grupo de artistas salgueirenses ecoava esse
processo.
Já no cenário carnavalesco, no final dos anos 50, as fantasias de estética afri-
cana faziam sucesso nos bailes do carnaval, inspiradas em filmes hollywoodianos do
período (KIFFER e FERREIRA, 2015, p.69). O próprio Pamplona realiza, em 1958,
uma decoração para o baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro intitulado “Carna-
16
val afro-brasileiro’, demonstrando apreço pelo tema, colocando a tese de uma “revo-
lução isolada” em xeque, mostrando este processo como produto de diálogo das mais
diferentes tensões e interesses, entre os intelectuais e os membros das escolas.
Figura 1: Isabel Valença interpreta sua emblemática Xica da Silva, em 1963. (Fonte O Globo)
10Trecho do samba-enredo do GRES Acadêmicos do Salgueiro para 1963 composto por Noel Rosa de
Oliveira e Anescarzinho.
17
Figura 2: A corte da Xica da Silva dançando seu minueto coreografado por Mercedes Baptista.
(Fonte: O Globo)
11Para entender a constituição do imaginário da Xica da Silva através da trajetória de Isabel Valença,
ver MELO, 2016.
18
12Denominação comum para os desfiles das escolas de samba conhecida mais comumente a partir do
imaginário de Joãosinho Trinta, bailarino e diretor teatral do Municipal, que entendia os desfiles como
uma “ópera popular”, mas que já era utilizada por Jota Efegê em suas crônicas sobre os ranchos car-
navalescos.
13
Trecho do samba-enredo do GRES Império Serrano de 1982, composto por Beto Sem Braço e Aluísio
Machado.
19
Seis anos depois, sob o mesmo sol escaldante da Candelária, outra imagem
criada por Arlindo se eternizaria no imaginário carnavalesco revelando mais um capí-
tulo desse processo de revolução estética que colocaria o carnavalesco no centro da
produção. Segundo a narrativa de historiadores do carnaval (COSTA, 2003; MELO,
2016; BRUNO, 2014), já passava das nove da manhã quando uma escultura de três
metros de altura representando a deusa Yemanjá passou na concentração do desfile
da Acadêmicos do Salgueiro (figura 3), fazendo os cansados componentes se levan-
tarem maravilhados. Toda decorada com espelhos cortados em círculos, a represen-
tação da divindade foi elaborada pelo próprio Arlindo, trazendo pela primeira vez um
dos recursos visuais mais utilizados nos seus futuros trabalhos. Junto a escultura de
papel machê estavam presos fios de náilon com mais espelhos cortados que forma-
vam cascatas de luz refletindo os raios de sol.14
O efeito teria sido tão deslumbrante que a tecnologia fotográfica da época não
deu conta do efeito da alegoria. As fotos realizadas por um repórter da revista Man-
chete saíram borradas pelos reflexos causados pelos espelhos.
O episódio coloca mais uma vez o carnavalesco ao encontro das questões de
autoria suscitadas por Agamben: “o gesto com o qual foram fixadas parece subtraí-
las (a expressão) para sempre de toda possível apresentação, como se elas compa-
recessem na linguagem.” (AGAMBEN, 2007. p.59)
É do gesto de Arlindo e sua requintada produção visual, influenciada pela ceno-
grafia teatral, que nascem obras como a alegoria da Yemanjá e a emblemática Xica
da Silva. A singularidade da ausência, como diz o teórico, é perceptível no papel fun-
damental que o artista estabeleceu frente ao grupo iniciado por Pamplona. Enquanto
um se assume como uma liderança disposta a dialogar, o outro é responsável pelo
traço da principal virada estética que as escolas de samba passaram no século XX.
Além deles, Arlindo é o responsável direto por levar outro parceiro de Teatro
Municipal, que o ajudará na construção de sua Yemanjá e integrará o grupo de artis-
tas. Um baixinho maranhense, que chega ao Rio com o sonho de ser bailarino e que
assume a assinatura dos carnavais da vermelho e branco com a saída dos percurso-
res: Joãosinho Trinta.
14MELO, Gustavo. A iemanjá que iluminou a manhã de sol no carnaval do Salgueiro de 1969. Dispo-
nível em http://extra.globo.com/noticias/carnaval/carnaval-historico/a-iemanja-que-iluminou-manha-de-
sol-no-carnaval-do-salgueiro-de-1969-7242054.html
20
“No ‘Festa para um rei negro’, foram os dois que fizeram o carnaval, o Joãosinho
e a Maria Augusta, eu e Arlindo só assinamos”, assume Pamplona em seminário rea-
lizado em 2012.16
O carnaval em questão é o de 1971, penúltimo capítulo da história escrita pela
equipe comandada pela dupla de artistas do Municipal. O ano é simbólico em muitos
sentidos. Juntam-se ao coletivo de criadores, as futuras carnavalescas Rosa Maga-
lhães e Lícia Lacerda, outras grandes artistas reveladas no grupo que traduziria os
novos ideais das Belas-Artes para as escolas de samba. O enredo sobre a inusitada
visita de um rei africano à corte de Mauricio Nassau, em Pernambuco, surgiu de pes-
quisas universitárias de Maria Augusta.17
A fala do líder do grupo antecipa a importância dos dois futuros carnavalescos.
Com a virada de década, a dupla constituída pelo bailarino do Municipal e pela estu-
dante da EBA-UFRJ vai marcar mais uma série de transformações na linguagem das
escolas de samba. Os dois atuariam juntos no Salgueiro ainda em 1972, no último
desfile antes da saída de Pamplona e Arlindo, em homenagem à Mangueira, marcado
por um mau resultado.18 Em 1973, João e Maria Augusta assinariam sozinhos pela
primeira vez o singelo enredo “Eneida: amor e fantasia.” Nestes desfiles, os dois se-
guiam fazendo inovações que se tornariam comuns ao carnaval posteriormente, como
a inserção do isopor como material para muitos adereços e fantasias.
No ano seguinte, apenas Joãosinho permanece no Salgueiro, tomando para si o
centro de uma série de transformações que dariam prosseguimento a “revolução” ini-
ciada na década passada. Nessa discussão sobre a formação do carnavalesco en-
quanto o principal autor de uma escola, João surge como nome seminal pelas diversas
15Trecho do samba-enredo do GRES Beija-Flor de Nilópolis para o carnaval de 2012, composto por J.
Veloso, Adilson China, Carlinhos do Detran, Silvio Romai, Hugo Leal, Gilberto Oliveira, Samir Trindade,
Serginho Aguiar, JR Beija-Flor, Ricardo Lucena, Thiago Alves e Rômulo Presidente
16Seminário Finep tira o chapéu em homenagem a Joãosinho Trinta, realizado na sede da Finep, no
Rio de Janeiro, em 7 de novembro de 2012. Disponível em https://www.you-
tube.com/watch?v=TzQw_uWbISA
17Pesquisa que a artista desenvolveu para concorrer ao Prêmio Medalha da Escola de Belas Artes, o
que hoje equivaleria ao mestrado. (SANTOS, 2009)
18Na ocasião, o Salgueiro amargaria um então inconcebível quinto lugar, ficando atrás da GRES Im-
peratriz Leopoldinense com um desfile sobre a obra Martin Cererê. Era a primeira vez que as chamadas
“quatro grandes” (Portela, Salgueiro, Mangueira e Salgueiro) não se revezariam nas quatro primeiras
posições, como acontecia desde 1960.
21
inovações que realizou, algumas podem e devem ser relativizadas, mas não deixam
de ser fundamentais para entender o processo que levará à centralidade do carnava-
lesco na década de 1980. Joãosinho se torna uma figura midiática, popular e consa-
grada.
19A escola de Nilópolis é conhecida por ser a primeira escola a se tornar campeã quebrando a barreira
do que era chamado de as “quatros grandes”, que se dividiam entre os primeiros lugares nas primeiras
décadas com raras exceções, de 1960 a 1975, exclusivamente. A partir da porta aberta pela Beija-Flor,
outras escolas seguiram inovando sobre o comando de carnavalescos consagrados como Arlindo Ro-
drigues e Fernando Pinto, como a Mocidade Independente de Padre Miguel e a Imperatriz Leopoldi-
nense.
22
alegorias, com adereços de proporções cada vez maiores, e um luxo aparente prove-
niente de materiais baratos, como pratinhos de plásticos e ráfias, além de alegorias
com movimentos. Nesse processo, ele ainda interferiria em outros segmentos da agre-
miação, tirando o carnavalesco do lugar de criador puramente visual e realizando uma
inversão de valores com compositores e diretores. Ainda em 1974, junto com Laíla,
diretor de carnaval e harmonia e figura fundamental para a festa, os dois alteram o
samba-enredo composto por Zé Di e Malandro, buscando uma coesão entre o que
era cantado na obra musical e o visto nas alas e alegorias, criando uma unidade que
pudesse ser entendida em sequência narrativa. No ano seguinte, a dupla novamente
ousou com a primeira fusão entre dois samba-enredo de compositores diferentes num
só. Afirmando esse processo da valorização do visual em detrimento do samba, o que
foi muito criticado pelos “puristas” e ainda hoje permanece em voga.
Acalentando a discussão sobre autoria, Joãosinho foi alvo de algumas polêmicas
e apagamentos. Sua figura transita como um verdadeiro curador20, no sentido em que
alinhava diferentes profissionais de diferentes áreas para servir a um conceito maior,
o seu enredo. Ressignificando e se apropriando de diversos processos, um dos casos
mais conhecidos da mitologia criada em torno do carnavalesco, é que ele assinava
desenhos feitos por outros figurinistas, assumindo a autoria do desfile como um todo,
em detrimento das particularidades de sua equipe. Um desses personagens é o figu-
rinista Viriato Ferreira, elemento a ser destacado no processo de construção da “es-
tética Joãosinho Trinta”, mas que teve sua importância ocultada.
Entretanto, para além dos critérios de originalidade e autoria, Joãosinho Trinta
se consagra exatamente pela figura central que assume, criando toda uma mitologia
em torno de si próprio. Nesse sentido, o termo mitologia individual pode ajudar a en-
tender sua figura, onde a autoria antecede a obra.21 Joãosinho é considerado por mui-
tos como o mais importante carnavalesco da história e o mais conhecido e reverenci-
ado fora do âmbito da folia, ganhando, em alguns sentidos, status de artista. Diferente
de alguns nomes contemporâneos a ele e com papel tão fundamental quanto.
20 Nas palavras de Ferreira (2012, p. 198), ”uma escola de samba não [é] uma obra de arte no sentindo
tradicional, mas uma reunião de obras comparável a uma exposição, agregando diversas criações sob
um conceito unificador. O trabalho do carnavalesco equivale a uma espécie de curadoria propositiva,
aquela que sugere temas, materiais ou significados a partir de um sentindo inicial imaginado para a
mostra.”
21 Bourriad analisa isso em Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si (2011).
23
Figura 5: Algumas cenas simples e lúdicas do carnaval "Domingo", da União da Ilha em 1977, assinado
por Maria Augusta. (Fonte: O Globo)
22Trecho do samba-enredo da União da Ilha para o carnaval de 1997, composto por Aurinho da Ilha,
Ademar Vinhais, Yone do Nascimento e Waldir da Vala
24
grande alegoria representando o sol e seguiu com surfistas, jogadores de futebol, ba-
nhistas, sambistas e religiosos. As fantasias eram simples e feitas de matérias leves,
sem buscar falsear requinte ou opulência. Chamava atenção o trabalho de cor e a
leveza com que os desfilantes flanaram pela avenida.
Num diálogo com o minimalismo e a arte povera, Augusta trazia para o sacrali-
zado desfile das escolas de samba, o mais banal e ordinário cotidiano, mas dotado de
singeleza. Não havia espetacularizações e teatralizações outras, além do próprio mo-
mento da apresentação, os objetos eram retratados em sua simplicidade e discursivi-
dade próprias. Pois contra o luxo de Joãosinho, a “arte povera” de Augusta era a “con-
vergência de vida e a arte rica, que prestava atenção em fatos e ações”23, desafiando
assim a ordem estabelecida das coisas e valorizando mais os processos cotidianos,
que buscava poesia nos próprios elementos discursivos 24, para Augusta, pranchas de
surfes, carrosséis e cartas do baralho.
O desfile seguinte, assinado pela artista na União da Ilha, confirmaria esse pro-
cesso. O místico “O amanhã” lidaria com a curiosidade humana em saber sobre o
futuro, mais uma vez apropriando-se de símbolos cotidianos num diálogo direto com
o público, sem o tom historicista que possuía a maioria dos enredos. Os sambas-
enredos da agremiação ajudariam o processo, se fixando no imaginário folião.
O embate Augusta e João marcaria os desejos de uma nova década para as
escolas. De um lado, a noção de espetáculo e o desejo de construir uma festa mais
ligada às artes “eruditas”, através do luxo e com a alcance de público amplo, tendo o
aspecto plástico como o principal. Do outro, uma visão ligada à simplicidade e ao pu-
rismo das escolas, como Augusta assume, ligada a espontaneidade e ao colorido das
artes “populares”, valorizando as qualidades musicais como fundamentais.
Juntos, esses dois pensamentos seriam pedras fundamentais a serem explora-
das pelos artistas da década seguinte, e consagrariam as escolas como evento da
grande massa e o carnavalesco como autor desse espetáculo. Deste cenário, desta-
caremos Fernando Pinto e Luiz Fernando Reis, já que cada um a seu modo, soube
cumprir as demandas sociais e políticas de seu tempo, respondendo à urgência da
criação artística e dialogando com processualidades já consagradas no âmbito da arte
institucionalizada.
quase vinte anos antes pelo momento tropicalista, articulando também questões-
chave em sua produção, tais como pensar o Brasil contemporâneo rearticulando os
signos tropicais através do uso alegórico do deboche e da ironia. De modo que, em
sua trajetória de dezesseis anos e quatorze desfiles assinados no grupo especial ca-
rioca, de 1971 a 1988, o artista pernambucano atualizaria questões tropicalistas que
foram repensadas e ressignificadas pelos intelectuais da década de 1970, no que se
convencionou chamar de “cultura marginal”.26
Além das escolas de samba, Fernando Pinto atuaria como diretor teatral, cenó-
grafo, figurinista e coreógrafo. Ao chegar de Pernambuco em 1969, instalar-se-ia no
icônico Solar da Fossa27 e durante os anos 1970, além do cenário teatral, seria res-
ponsável pela estética do grupo As Frenéticas, fazendo parte do coletivo Dzi Croquet-
tes e assinando a direção de shows e cenários de outros artistas como Elba Ramalho,
Simone, Chico Anysio e Ney Matogrosso. Fora do meio musical, ainda assinou as
decorações do baile de carnaval do Pão de Açúcar, entre 1979 e 1983.
Em entrevista, o artista assumiria sua herança artística:
De certa forma, sou filho estético da Tropicália, aquele movimento maldito
maravilhoso. Tropicália, para mim, é a curtição em cima de tudo e de todos.
Tropicália é o verdadeiro Brasil, o subterrâneo; o que todo mundo faz e nin-
guém mostra. (O GLOBO, 15/02/1980)
Em carnavais assinados em duas fases diferentes, a primeira delas no Império
Serrano e a segunda na Mocidade Independente de Padre Miguel, Pinto lidaria com
sintomas e processualidades levantadas pelo momento tropicalista e retrabalhados
pelos artistas das gerações seguintes, nos anos 1970 e 1980, das quais fez parte. No
presente trabalho serão discutidos três desses sintomas: as noções de brasilidade, os
signos tropicais e a linguagem alegórica.
26 Segundo Coelho (2010), no contexto posterior à eclosão do movimento tropicalista em 1967, confi-
gurar-se-ia uma geração de artistas que optariam pela “marginalidade” na luta contra um sistema con-
trolado pelo governo ditatorial. No entendimento proposto, haveria uma diferença conceitual entre a
Tropicália e o tropicalismo musical, de modo que o primeiro seria uma reunião de questões e modos
de pensar percebido em diferentes obras do período e o segundo um movimento de fato, organizado
no âmbito musical.
27 Solar da Fossa seria uma espécie de pensão localizada em Botafogo que abrigaria uma série de
artistas e intelectuais nos anos 60 e 70. Por lá passariam nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Paulinho da Viola, entre outros. O Globo, 18.02.1973.
27
diferentes trabalhos de uma mesma época e seguiram sendo como uma espécie de “conjunto de teo-
rias” constantemente atualizado sobre o Brasil. (COELHO, 2010)
30A trajetória de Fernando Pinto começaria em 1971 no Império Serrano com o enredo “Nordeste, seu
povo, sua glória, sua gente” seguindo interruptamente até 1976, num rápido retorno em 1978 com
carnaval considerado desastroso pela crítica. Seriam enredos sobre figuras da cultura de massa como
Carmen Miranda (72), Zaquia Jorge (75) e Oscarito (78), ou as questões de brasilidade, como Pindo-
rama (73), e folclóricas, como Dona Santa, Rainha do Maracatu (74) e divindades africanas (76).
29
Outra característica do desfile seria a forte crítica política. O setor sobre a fauna
brasileira intitulado de “Aves que aqui gorjeiam e as que não gorjeiam” faria uma clara
referência aos exilados políticos. Enquanto o último carro alegórico trazia composi-
ções femininas com as siglas de alguns partidos nacionais em meio a um enorme
letreiro onde se lia a palavra ANISTIA, com um fundo do Congresso Nacional tomado
por feijões e onças ferozes. No contexto da apresentação, vale lembrar a luta pela
anistia aprovada em 1979, na preparação do desfile.
Toda essa articulação, deixaria claro que “Tropicália Maravilha” marca, em mui-
tas camadas, a construção fantasmagórica de um Brasil que se apropria de uma dita
história oficial, mas mergulha em sua merda. É um processo muito parecido com a
encenação de “O Rei da Vela”, do Teatro Oficina em 1967, definida como “uma farsa
fantasmagórica que satirizava a pompa oficial, ridicularizava abertamente o ‘bom
gosto’ e se deleitava com o grotesco” (DUNN, 2009)
Esse jogo complexo entre o cafona, o kitsch e o grotesco é ainda mais tenso se
analisarmos o momento histórico dos desfiles das escolas de samba31 em que Fer-
nando Pinto atuou. Voltando ao primeiro capítulo, a chegada do grupo liderado por
Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona seria um processo semelhante ao da bossa
nova na música brasileira. Uma espécie de estetização e limpeza, onde uma estética
mais clássica se apropriaria de um discurso vindo do popular. A Tropicália traria de
volta o subterrâneo, como bem definiu Fernando Pinto. Um Brasil cafona e exagerado,
das chanchadas e das cantoras de rádio, que foi negado, na música, por João Gilberto
e Tom Jobim, e nos desfiles, pelos profissionais da Escola de Belas Artes. 32 Assim,
como Zé Celso e Caetano Veloso, Fernando Pinto trazia o exagero à tona nova-
mente.33 Era uma referência ao teatro de revista, estética que contribuiu para a for-
mação num primeiro momento, e a partir da chamada “revolução salgueirense” foi
colocada de escanteio.
Os comentários da crítica especializada para o desfile de 1980 tornariam essa
rejeição bem clara. Na mídia impressa, o jornal O Globo, de 20-02-80, no comentário
34Fernando Pinto morreria dia 29 de novembro de 1987, num acidente de carro na Avenida Brasil
voltando da quadra da Mocidade Independente de Padre Miguel.
35 Entrevista de Fernando Pinto para o Jornal do Brasil em 25-5-1987.
36Trecho do samba-enredo da Mocidade para 1988 composto por João das Rosas, Ferreira e J. Mui-
nho.
31
Federal. O desfile apresentaria uma série de problemas nos quesitos avaliados, per-
dendo muito do apuro estético que Fernando havia apresentado um ano antes. Entre-
tanto, ao contrário de desfiles que comentaremos mais adiante, no primeiro setor em
“Beijim, Beijim”, Fernando partiria para uma crítica mais direta37, trazendo uma série
de alas e carros com os problemas atuais do país como a saúde, educação, a miséria,
todas representadas de maneiras bem literais e nada alegóricas, como ele fazia ante-
riormente. O caráter otimista e festivo de Fernando Pinto ao encarar o Brasil apresen-
tar-se-ia na parte em que ele descrevia as divisões propostas, baseadas em hábitos
culturais e características geográficas. Além de uma atualização das questões tropi-
calistas, esse caráter ufanista e hedonista também ia ao encontro do caráter festivo
da geração 80, conhecida pelo retorno à pintura, geração da qual Fernando fazia
parte.38
A abertura do desfile traria uma imagem forte, surgida da apropriação e ressig-
nificação da cultura de massa: os grandes “negões” da comissão de frente se vesti-
riam de Xuxa. Outro signo plástico marcante desse desfile seriam as baianas, ala im-
portante nos carnavais desenvolvidos
por Fernando na Mocidade pela forma
irônica e transgressora de suas fanta-
sias. Em 1984, ele substituira o turbante
por óculos escuros e perucas black-po-
wers coloridas, em 1985 as transfor-
mara em insetos espaciais e em 1987
trabalharia com tecidos de oncinhas.
Eram inovações e quebras de tradição
bem aceitas pelas componentes da ala,
Figura 9: as icônicas baianas de Fernando Pinto. Da
esquerda para direita, as nacionalistas de 88, as on- mas mal vistas pela crítica carnavalesca
cinhas de 87, os isentos espaciais de 85 e as muam-
beiras de perucas black em 84. de então. Fernando Pamplona, por
exemplo, taxaria como um “crime” à “tradição” da ala.
37 Analisando o momento dos desfiles, a perda do caráter alegórico de Fernando pode ter se dado por
influência do trabalho de Luiz Fernando Reis, que se fixaria como o carnavalesco da crítica mais “crua”,
o que voltaremos a abordar no último capítulo.
38Segundo Canongia (2010, p. 38), isso muito tinha a ver com o tropicalismo, numa “deglutição e
mixagem” de múltiplas referências, cuja irreverência norteou a composição de um quadro cultural dis-
seminado.
32
39Trecho do samba-enredo da Mocidade Independente para 1984, composto por Edson Show e
Romildo.
40
Icônico interprete do carnaval identificado com a União da Ilha e que teria rápida passagem pela
Mocidade em 1984
33
tropicalistas: “Tupi libertados somos todos nós, principalmente os mestiços das esco-
las de samba. Somos todos índios; libertos em ternos, colonizados sem saber”.41
Ao tentar “impor uma imagem obviamente brasileira”, Hélio Oiticica lançaria mão
dos mais famosos clichês da identidade nacional forjados pelo modernismo, através
da arte institucionalizada, por meio da música, do teatro e do cinema; processo no
qual as escolas de samba teriam papel fundamental, elevadas ao patamar de símbo-
los da nacionalidade. No mesmo contexto das escolas, acompanhando o projeto na-
cionalista do Governo Vargas, na década de 1940, o teatro de revista de Walter Pinto
e as chanchadas da Atlântida trariam também um Brasil alegre, carnavalizado e tropi-
cal. Juntos, esses três elementos se relacionariam trocando referências e influências,
sendo reforçado nas pinturas modernistas e na massificação do rádio e seus cantores.
Nas décadas de 1950 e 1960, toda essa construção passaria a ser negada e esterili-
zada de diversas maneiras e, logo em seguida, retornaria recodificada. Primeiro na
música, com o surgimento e sucesso meteórico da Bossa Nova e posteriormente das
canções de protesto, depois, no cinema, pela estética americana questionada pelo
naturalismo do Cinema Novo; nas artes plásticas, pela a chegada no abstracionismo
reelaborada pelo neo-concretismo; no carnaval, pela “consciência” intelectualizada do
41 O Globo de 15-2-1980.
42Articulação poética das músicas “Geleia geral” e “Marginália II” de Gilberto Gil e Torquato Neto; “Tro-
picália”, de Caetano Veloso e “Yes, nós temos bananas”, de Braguinha, com imagens da trajetória de
Fernando Pinto.
35
43 Edição de 15-02-1973.
36
e não linear. A história de Zaquia, por exemplo, seria contada a partir de uma viagem
de trem da Central do Brasil até Madureira, onde ficava o teatro de revista da atriz. O
samba-enredo composto por Alvarese reforçaria essa visão: “Viagem, revista, aqua-
rela, o passado é presente e neste teatro-passarela, ela resplandece novamente.”
A análise de um dos principais teóricos da Tropicália, Celso Favaretto, destaca
essa “transformação do mau gosto em símbolo de contestação no domínio dos com-
portamentos, através do uso sistemático do deboche" (2007, p.122). Além de obras
tropicalistas já citadas, como a peça “O Rei da Vela”, o tema também apareceria em
artistas visuais como Rubens Gerchman e seu “Rei de Mau Gosto” e Nelson Leirner,
em “Altar de adoração a Roberto Carlos”, ambas de 1966, que articulavam o “mau
gosto”, o “popular” e o “brega” de maneira irônica. A articulação dissimulada desses
elementos, é para Scovino (2007), um capítulo da ironia na arte brasileira, sintetizado
por ele da seguinte forma:
Na década de 1960, podemos destacar na produção da arte brasileira, uma
série de artistas que usam a apropriação, quer de imagens extraídas dos
meios de comunicação de massa, quer de objetos retirados do cotidiano para
justapô-los ou inseri-los em outras situações por meio da colagem, fotocola-
gem e da assemblagem. (SCOVINO, 2007, p.112)
46Trecho do samba-enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel para o ano de 1983, composto
por Adil, Dico da Viola, Paulinho Mocidade e Tiãozinho da Mocidade
38
“Matazeza”, uma enorme ave dourada seria o signo escolhido para representar
a chegada portuguesa, articulado a uma série de ícones da sociedade de consumo
atuais. O limiar entre sedução e revolta não ficaria claro no último quadro, “Deu a louca
no Xingu”, onde, nas últimas alas, os índios se apropriavam dos itens urbanos e colo-
nizadores, numa deliciosa ambiguidade na parte final e apoteótica da trilogia.
Nos anos 70 e 80, além de Fernando Pinto, uma série de artistas refletiria sobre
o tema indígena. Seja de maneira alegórica, como Glauco Rodrigues, seja nas pintu-
ras hiper-realistas da série Xinguana, em 1975, do artista goiano Clóvis Iriguaray, que
também colocaria índios fora de seu lugar esperado ao representá-los vendo televi-
são, na biblioteca, bebendo Coca-Cola e até em roupas de astronauta. Um processo
que apareceria no tropicalismo também como uma maneira de "valorizar esse ‘primi-
tivo e nosso’ como elemento de subversão, inversão e transvalorização. A utopia an-
tropofágica reencontra no nosso passado primitivo todas as qualidades necessárias
ao presente." (BRENTES, 2007)
Sobretudo para o carnavalesco, a questão parece ser usar o índio como signo
popular de maneira subversiva. Estabelecendo uma crítica ao branco através do índio,
num jogo de relações que distancia o espectador do que está sendo falado. De modo
parecido ao que que Caetano Veloso termina a sua já citada canção “Um índio”:
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos. Surpreenderá a todos
não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando
terá sido o óbvio.
40
Esse caráter dúbio e crítico também apareceria no trabalho de Anna Bella Geiger
que, a partir de 1977, iniciaria a série “Brasil Nativo, Brasil Alienígena”, em que se
apropriaria de cartões indígenas que traziam a figura do nativo como símbolo de ex-
portação e ela mesma reproduziria as cenas marcando um contraste, entre “coloniza-
dor” e “colonizado”. Apesar dessa tendência alegórica, os índios de Fernando Pinto
não se distanciariam muito da fotografia de Claudia Andujar que, com a série Marca-
dos chamaria atenção para a dizimação da população indígena de maneira mais et-
nográfica. Documentos atuais da Comissão da Verdade revelam o massacre indígena
no período ditatorial, além do alerta pela demarcação das terras indígenas, em pauta
na época e até hoje. Ambos os assuntos eram previstos na obra do carnavalesco. Ao
levar para avenida o enredo Tupinicópolis, em 1987, como parte final da trilogia do
Tupi Power, o artista pernambucano deixaria claro tais questões com a alegoria da
construção de uma metrópole urbana fundada pelos índios. Onde, segundo as defini-
ções de seu próprio criador no texto da sinopse, “a cultura Tupiniquim falaria para o
mundo via Tupinicópolis”.
Definida como um carnaval de “ficção científica
tupiniquim”, o enredo surpreenderia com o seu último
carro alegórico, que apresentaria um “plot twister”
digno de roteiro hollywoodiano. O carro “O palácio do
lixo – Tupilurb” traria o lixo da cidade indígena com
os escombros do Cristo Redentor, do Elevador La-
cerda e do Monumento às Bandeiras, em São Paulo,
numa referência à cena clássica da versão original
de “Planeta dos Macacos” (1968) quando ao encon-
trarem os destroços da Estátua da Liberdade numa
praia, os protagonistas percebem que não estão em
Figura 14: O Cristo Redentor no Pa-
lácio do Lixo de Tupinicópolis, último outro planeta, como imaginavam, mas sim na própria
carro do desfile de 1987.
Terra do futuro. Os vestígios, o lixo e os mendigos
desse carro alegórico têm o mesmo sentido. Tupinicópolis não seria a possibilidade
de um Brasil, mas o seu futuro. Sua fundação marca a resposta de Fernando às ques-
tões levantadas pelos primeiros desfiles da trilogia. Dando como resposta final para o
problema colonial a expulsão do colonizador, após sua absorção antropofágica, como
41
sugerida por Oswald de Andrade e realizando um desejo proposto por Hélio Oiticica
em seus escritos:
Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, caraterística e forte, ex-
pressiva ao menos, essa herança maldita europeia e americana terá de ser
absorvida, antropofagicamente, pela negra e índia da nossa terra, que na ver-
dade são as únicas significativas, pois a maioria dos produtos da arte brasi-
leira é híbrida, intelectualizada ao extremo, vazia de significado próprio. (OI-
TICICA, 1986, p.108)
Tupinicópolis não confirmaria “a incompetência da América católica” cantada por
Caetano Veloso em “Podre Poderes”, mas fundaria uma resposta nova a ele e ao
Brasil de então. Afinal, “só a antropofagia nos une”.
Figura 15: Um dos carros alegóricos do desfile de celebrados de Fernando Pinto, tor-
1985.
nando-se uma espécie de consagra-
ção definitiva do artista, pois apesar do título conquistado pelo desfile sobre Carmen
42
Miranda, em 1972, para crítica até então o carnavalesco se equilibraria entre bons e
maus momentos em sua carreira.
Muito foram os fatores para o sucesso absoluto da apresentação, principal-
mente, a junção do samba composto por Gibi, Tiãozinho e Arsênio com o visual de
Fernando, uma sinergia fundamental para o desfile carnavalesco. O enredo que tinha
o nome original de “Requebros imediatos de terceiro grau” já estava guardado pelo
carnavalesco há pelo menos cinco anos49 e articulava uma série de referências do
mundo da ficção cientifica cinematográfica, que seriam, junto com o teatro, os dois
principais universos onde Fernando buscaria suas inspirações.
Segundo a definição do próprio artista, “nos anos 2000, cada planeta do sistema
solar vai incorporar o espírito da festa brasileira e estará organizado o carnaval cós-
mico”.50 Resumindo o enredo, os noves planetas se juntariam a nove festas populares
brasileiras: Corsos dos mares da Lua, Pirilampo de Mercúrio, Rancho da primavera
de Vênus, Caboclinhos Marcianos, Boi-robô Saturno, Frevo Uraniano, Afoxé dos Fi-
lhos de Plutão, Júpiter e os fandangos siderais, Reisados de Netuno.
As construções alegóricas de 1985 e 1987 são muito aproximadas em vários
sentidos, como por exemplo, a noção de um “carnaval nas estrelas” e uma “cidade de
índio” que trazem consigo uma aparente simplicidade, sendo compreendidas facil-
mente por qualquer espectador, mas dotadas de várias camadas de significações
mais densas, deixando no ar uma profundidade a ser revelada.
Esse efeito contraditório trata da ambiguidade sempre ressaltada pelo momento
tropicalista e já explicitada por Oswald de Andrade, em seu manifesto antropófago,
como a floresta e a escola, ou o arcaico e o moderno. A cidade urbana de indígenas
traria essa “justaposição entre o ‘universo tropical’ e o universo urbano-industrial”
(DUNN, 2007, p.118). Onde o procedimento consistiria em submeter os arcaísmos
culturais à luz branca do ultramoderno, apresentando o resultado como uma alegoria
do Brasil.51 Ao levar o carnaval para as estrelas e os índios para a cidade grande,
Fernando novamente articula uma rede de contradições que coloca em diálogo muitas
camadas de significação. Na qual,
52 Idem, p.126.
53 Idem, p.115.
54 Fernando Pinto assumiria um lugar de prestígio ao assinar uma coluna como convidado na edição
número 857 da revista Veja de 06-02-85, em que falaria do carnaval com um encontro único de diversas
formas de manifestações artísticas, reforçando seu desejo de se comunicar com a juventude.
44
55 Acoplado é quando vários chassis e carros diferentes são unidos formando um só.
56Trecho do samba-enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel para o ano de 1985, composto
por Arsênio, Gibi e Tiãozinho da Mocidade.
45
Na coluna em que assinou para a revista Veja em fevereiro de 1985, ele decla-
rou várias referências entre a literatura e o cinema como Arthur Clark, Isaac Asimov,
Stanley Kubrick, os filmes da série Star Wars, Barbarela e Contatos Imediatos de Ter-
ceiro Grau. As referências a esses filmes são muito perceptíveis, como o estilo sen-
sual de Barbarela, interpretada por Jane Fonda em filme de 1968, que pode ser notado
nos figurinos das composições e passistas e mulatas de “Ziriguidum” e, principal-
mente, na icônica fantasia da rainha de bateria Monique Evans, com botas altas, ele-
mentos transpassados, brilhantes e prateados, que são misturados antropofagica-
mente ao visual das “chacretes” e vedetes brasileiras. Outra referência direta é a co-
missão de frente deste ano, 1985, que
traz robôs fincando a bandeira brasileira
na lua, versões abrasileiradas do R2-D2
da saga Star Wars.
O uso da cor prata seria outro sin-
toma desse fascínio pelo futuro. Na cons-
Figura 17: A Comissão de Frente com robôzi- trução dos filmes de ficção científica, o
nhos de 1985.
prateado se estabeleceu em um senso co-
mum como a “cor do futuro”. Na produção de Pinto, desde 1973, ainda no Império
Serrano, as caudas prateadas das iaras chamaram atenção dos críticos. Em 1974, ele
seria atacado ao contar a história de “Dona Santa, rainha do maracatu” só com o uso
de branco e prata, deixando de lado o tradicional verde do Império Serrano. Dois anos
depois, em “A lenda das sereias, rainhas do mar”, as entidades ligadas à água nas
religiões afro-brasileiras também seriam representadas pelo predomínio dessa cor
que explodiria de fato em 1985, obviamente, onde ela reinaria soberana.
Na produção do tropicalismo musical, a ideia de um futuro no sentido prático e
imaginário seria presente sobretudo na obra de Gilberto Gil, em canções como a icô-
nica “Expresso 2222”, “Dois Mil e Um”, “Cultura e Civilização” e “Cérebro Eletrônico”,
que buscariam lidar com o futuro no contraste com o presente.
Em Tupinicópolis, além do carro alegórico da Tupilurb, que marcaria o tempo
futuro onde a narrativa se passa, outro carro traria esse imaginário da ficção científica,
57 Idem
46
58Trecho do samba-enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel para 1985 composto por Gibi,
Tiãozinho e Arsênio.
59 Edição de número 857, publicada em 6-2-1985.
47
elogiado pelo importante teórico Frederico Morais, que teve atuação fundamental no
circuito artístico dos anos 1970, em sua coluna no jornal O Globo:
Extraordinário, usou o verde ultra concentrado como convinha a seu enredo.
E para transmitir a ideia de florestas, da natureza bruta, virgem, Fernando
Pinto precisou exceder-se e deu certo. No fundo, porém, e ironicamente, a
mesma visão caótica da cidade grande.
da matéria seria simbólico: “Caretas não entrem; Arte de vanguarda no Pão de Açú-
car” e explicava que a iniciativa buscava uma aproximação de um público jovem, com
obras de site-specific e que propusessem obrigatoriamente uma participação com o
público. Artistas da geração que expuseram na lendária exposição “Como vai você,
geração 80?” e nomes já consagrados como Lygia Pape estavam na programação
que previa performances e ainda uma remontagem de “Tropicália”, de Hélio Oiticica.
Entre os artistas selecionados estavam Luciano Figueiredo, Denise Stoklos, XPTO,
Wally Salomão, Ricardo Basbaum, Alexandre Dacosta, João Saldanha, Valderedo Jr.,
Carlos Vergara e Fernando Pinto. Todos exibidos como artistas, sem hierarquias.
Tanto a participação nessa mostra quanto na exposição dos adereços de “Como
era verde meu Xingu” na galeria Cesar Arché, e os de “Ziriguidum”, no Estúdio Babi-
lônia, em Laranjeiras, marcariam a ampla circulação de Fernando Pinto entre o espaço
das escolas, entendidas pelo senso comum como meros produtos de uma “cultura
popular menor”, e o meio da arte institucionalizada. Outra exposição marcante de Fer-
nando, seria a escolha, após a sua morte, para suas peças inaugurarem a iniciativa
do “Museu do Samba”, na Praça da Apoteose nos primeiros anos do Sambódromo.60
Multifacetado, Fernando Pinto marcaria ainda o terreno na música. No ano em
que ficou afastado da produção do desfile da Mocidade Independente, entre 85 e 87,
gravaria um LP solo batizado “Estrelas”, com canções de MPB e samba, e participa-
ções das cantoras Joyce e Elba Ramalho. Isso sem citar sua atuação na cena teatral
e musical como diretor, coreógrafo, figurinista e cenógrafo, estabelecendo uma circu-
lação no metiê artístico “desbundado” e marginal dos anos 1980 e 1970.
Se a cultura marginal buscava ampliar seu alcance com o público, numa relação
direta e sem mediação, como resposta à tentativa de controle do governo militar, Fer-
nando Pinto encontraria sua atuação e seu veículo nas escolas de samba, dialogando
diretamente com as massas, configurando-se como um artista afinado a sua época.
Já para o carnaval, foi, paradoxalmente, o carnavalesco mais ligado ao seu tempo e
à sua geração de artistas visuais, e também mais à frente dele, contribuindo para a
espetacularização da festa, numa via outra além das “artes eruditas” do Municipal.
Fernando Pinto foi um dos carnavalescos com a maior circulação no sistema artístico,
não ligado às artes tradicionais e estabelecidas, mas ao cenário marginal que marcou
a formação cultural carioca, atualizando as questões lançadas pela Tropicália.
61 Alguns exemplos famosos são a relação entre Fernando Pamplona e o Salgueiro, Joãosinho Trinta
e a Beija-Flor, Maria Augusta e a União da Ilha e, mais recentemente, Paulo Barros e a Unidos da
Tijuca.
50
uma trajetória média de seis carnavais juntos, ambos se tornariam sombras na car-
reira um do outro, sendo acompanhados por sua marca e “estilo.” Ao sair da escola
azul-e-branca de Pilares, o carnavalesco procurou estabelecer sua identidade em ou-
tras agremiações, mas sem o mesmo sucesso. Por outro lado, a Caprichosos ficou
sublinhada com a característica de escola da “crítica e irreverência”. Tal rótulo seria
tão forte no imaginário carnavalesco que faria os dois serem cobrados pela perda de
sua característica em outros carnavais, fixando definitivamente um estilo “Capricho-
sos-Luiz Fernando”.
Nos seus seis desfiles na escola de samba azul e branca de Pilares, o carnava-
lesco, que tem formação em Matemática, “saudadeou” o que sumiu do dia a dia, mos-
trou Brasis e “Brazis”, exaltou nobres sem coroas e feirantes que maldiziam a inflação.
Num retrato de um país em processo de redemocratização, escrevendo crônicas so-
ciais e criticando a política nacional, focando sua produção em temáticas absoluta-
mente contemporâneas da arte brasileira, explorando o real, apropriando-se de obje-
tos e memórias cotidianas para causar a reflexão do público, abusando da linguagem
escrita e se preocupando com a mensagem e não com a forma. Tais características
aproximariam muito a produção do carnavalesco a questões trabalhadas na Arte Con-
ceitual, surgida nos anos 60, e que ganharam outros sentidos no contexto sócio-polí-
tico das ditaduras latino-americano analisadas por Ramirez (2007). A autora sintetiza
que o conceitualismo
não pode ser considerado um estilo ou movimento. É, antes, uma estratégia
de antidiscursos (...) além disso a ênfase não é colocada nos processos “ar-
tísticos” mas sim em processos “estruturais” ou “ideáticos” específicos que
ultrapassam meras considerações perceptuais e/ou formais. (RAMIREZ,
2007, p.185)
No caso brasileiro, o crítico Frederico Morais reuniu, no início dos anos 70, em
torno de si uma série de artistas que se destacaram por uma postura radical. Criando
uma série de discursos onde se configuraram uma noção de “contra-arte”, Morais62
nos ajuda a compreender o caminho que a arte conceitual tomou por aqui. Para Morais
(1975), o artista não seria mais autor de obras, mas “propositor de situações ou apro-
priador de objetos e eventos nos quais não pode exercer continuamente seu controle”
sendo uma espécie de artista guerrilheiro, que trataria a arte como uma forma de em-
62 MORAIS, Frederico. O corpo é o motor da obra. In: Artes plásticas: Crise da Hora Atual, 1975
51
boscada, onde o “artista cria um estado permanente de tensão, uma expectativa cons-
tante. Tudo pode transformar-se em arte, mesmo o mais banal evento cotidiano.” (MO-
RAIS, 1975, p. 26)63
Aproximando a obra de artistas que serviram de bases para a formulação de
Morais64, de “arte de guerrilha”, ou “contra-arte”, à produção de Luiz Fernando Reis
pode ser percebida uma série de contatos e similaridades dos processos desses tra-
balhos, como a apropriação de objetos cotidianos, o signo escrito e uma “estética do
precário”. Marca-se no carnavalesco, uma linguagem pouco usual nos desfiles cario-
cas, que buscava outras escolhas artísticas para além do belo e da linguagem hege-
mônica do luxo65. Reis sintetiza essa questão em entrevista dada para o autor:
Sempre fazem opção no bonito, no clássico. Eu sempre me foquei muito no
enredo. Eu sempre me foquei no enredo, como base, o início, fundamento
geral. A maioria dos carnavalescos acha que cada alegoria é uma obra de
arte. Eu acho que alegoria é complemento de um trabalho geral. Tem gente
que pensa que a alegoria não precisa dizer muita coisa, o importante é que a
alegoria esteja bonita66.
Esse conceito diferente de belo, aliado a uma mensagem clara a ser passada,
com um desejo de conscientização, dariam o tom dos desfiles assinados por Reis que
o fariam da principal voz política nas escolas de samba no período da redemocratiza-
ção, instaurando uma série de modificações nos discursos dos desfiles durante esse
período.
Ao usar a escola de samba como meio de ecoar seu discurso, o carnavalesco
pareceu perceber o potencial político desta manifestação artístico-popular. Ao longo
de sua história, as agremiações sempre assumiram papel de negociadoras, poucas
vezes abordaram temas de caráter contestatório.67 No início dos anos 80, a crítica
contra o regime militar vigente começou a aparecer, mas de forma velada nos sambas
e enredos cantados.68 Luiz Fernando Reis se torna um nome importante pois é um
63 MORAIS, Frederico. O corpo é o motor da obra. In: Artes plásticas: Crise da Hora Atual, 1975, p.26
64 Onde se destacam nomes como Cildo Meirelles, Artur Bairro, Antônio Manuel, entre outros.
65Neste trabalho a linguagem do luxo é entendida como uma estética da escola de Pamplona e uma
série de outros artistas que reatualizariam o estilo cênico, barroco e luxuoso fundado por Fernando
Pamplona e Arlindo Rodrigues.
66 Depoimento inédito coletado no dia 14-09-14 no Rio de Janeiro.
67Desde seu surgimento na década de 1930, as agremiações nunca se estabeleceram como questio-
nadoras, mas sim como articuladoras das regras do jogo, cedendo e se impondo às demandas políticas
para serem aceitas socialmente. (FERREIRA, 2012; SIMAS, 2015; AUGRAS, 1998)
68 No início da década de 1980, alguns sambas como “Sonho de um sonho” e “Macobeba, o que dá pra
rir, dá pra chorar” fariam críticas ao governo ditatorial de maneira velada nos sambas.
52
dos primeiros a tratar destes temas abertamente, levando o grito das “Diretas já” que
ecoava na sociedade para seus desfiles, colocando a dialética carnaval-política no
campo da contestação. Tomando consciência do corpo social e político que é uma
escola de samba, composta por cerca de três mil componentes que ecoam numa só
voz o samba que está sendo cantado.
O bonde, o amolador de facas, o leite sem água, a gasolina barata são algumas
das imagens propostas por Luiz Fernando Reis em seu desfile mais emblemático. “E
por falar em saudade...”, de 1985, abusava de uma linguagem visual simples e colo-
rida, buscando a beleza na simplicidade através de elementos presentes no imaginá-
rio coletivo até hoje, num momento de reflexão da memória, não só social, mas espa-
cial. No mesmo ano, a Beija-Flor de Nilópolis, assinada por Joãosinho Trinta, cantava
a longínqua “Lapa de Adão e Eva”, enquanto Reis lançava um olhar de cronista sobre
o seu cotidiano, marcando a diferença do carnavalesco de Pilares para seus pares.
Ao relembrar o passado como fuga do presente, o carnavalesco lança um olhar irônico
e falsamente nostálgico. A ironia de louvar o passado está presente “nas formas de
enunciação não necessariamente deliberada, como efeito de colisão entre a lingua-
gem e a realidade quando a indução metafórica parece incongruente.” (SCOVINO,
2007, p.34)
O desejo de “apreender o real” é a primeira caraterística que surge ao se anali-
sarem os desfiles assinados pelo carnavalesco. Nesse sentindo, Reis sempre faz
questão de declarar discursivamente que busca se inserir no estilo iniciado por Maria
Augusta, na União na Ilha, nos anos 1970, que cantou domingos e amanhãs de forma
53
alegre, leve e colorida. Ao se filiar a essa genealogia, Reis marca seu gesto de auto-
ria69 inserindo a crítica política na linha temática cotidiana. O gesto de Reis é procurar
elementos banais e transmutá-los para o lugar sagrado do carnaval. Como ele mesmo
declara, “eu busco elementos cotidianos reconhecíveis, optando pelo popular ao invés
do bonito, criando uma forte comunicação.”70
Este olhar sobre o cotidiano estaria presente na trajetória do professor de mate-
mática desde seu primeiro desfile solo em 1982, na Caprichosos de Pilares. Já um
ano antes, quando integrou a comissão de carnaval da Unidos de Cabuçu, sugeriu um
enredo sobre a Feira Livre, por achá-la leve e colorida, porém a ideia não foi bem
aceita pela agremiação. Na azul-e-branca de Pilares, um ano depois, ele voltaria a
propor o tema, que foi aceito e intitulado então de “Moça bonita não paga”, mostrando
a feira-livre através da personagem Lili. Apesar do caráter inicial mais cronista, o des-
file ganharia tempero político a inserir uma menção ao preço dos alimentos: “Quando
passa por ali (Lá vai Lili) / Vai seguindo seu caminho / Mas seu semblante se modifica
/ A flor se fere no espinho / Da inflação que se agita”, que seria o primeiro samba-
enredo a citar a inflação que começava a atormentar o brasileiro após a crise do pe-
tróleo da década de 1970.71
A sinopse assinada pelo artista propunha uma viagem pelo mundo da feira livre
dividido em quatro partes: a venda de flores, ambulantes que traziam suas barraqui-
nhas ao longo da escola, depois os comerciantes de verduras, a terceira parte com
vendedores de frutas e a quarta na venda de peixes72, com destaque para uma per-
sonagem, a mulata Lili, a freguesa e a própria moça bonita do título do enredo, que
percorreria as barracas pechinchando em busca do melhor preço 73, responsável por
uma ponte para inserir o público no desfile, despertando um reconhecimento imediato.
As fantasias, composições simples e quase ordinárias, foram assinadas pelo figuri-
nista Flávio Tavares, que se tornou um “braço-direito” de Reis, enquanto este cuidava
dos aspectos gerais, como enredo e fantasia, Flávio completaria a estética de Reis
com figurinos de desenhos simples e com poucos volumes.
Essa auto declaração dos estilos da linguagem de Luiz Fernando Reis aparece-
ria novamente no ano seguinte, trabalhando esses signos cotidianos de maneira dife-
rente no enredo “A visita da nobreza do riso a Chico Rei num palco nem sempre ilu-
minado.” Na sinopse que apresentava o tema, o carnavalesco expõe ainda suas ideias
para a construção do enredo:
o desfile trará (...) a mesma marca de originalidade, colorido e criatividade,
seguindo o tripé: popular, crítico e descontraído. Popular na medida em que
é de fácil assimilação por parte do grande público; crítico por permitir lem-
branças ao nosso momento social, político e econômico, bem à maneira do
56
pomposo título de “A visita da nobreza do riso a Chico Rei num palco nem sempre
iluminado” trazia duas referências: a primeira, uma brincadeira com o enredo do
GRES Imperatriz Leopoldinense, “O Rei da Costa do Marfim visita Xica da Silva em
Diamantina” do consagrado carnavalesco Arlindo Rodrigues; e a segunda lembrando
a falha de luz, ambas no ano anterior, também parafraseando outro enredo da mesma
escola, só que de 1981, quando seu samba dizia “neste palco iluminado”. Esse título
é um excelente exemplo para entender a própria articulação de Luiz Fernando Reis
em oposição ao estilo da escola estética de Fernando Pamplona, mesmo que fazendo
isso em tom irônico, já que a ironia pode funcionar também como uma estratégia de
oposição para problematizar a autoridade. (SCOVINO, 2007)
Objetivamente, a narrativa do enredo propunha uma homenagem ao humorista
Chico Anysio, transformado-o em Chico-Rei,
na qual ele receberia a corte dos humoristas
brasileiros transformados em nobres para
saudarem-no.77 Nobreza que tinha direito até
mesmo ao seu bobo da corte, batizado de Mi-
las Fulam — nome ao contrário de Salim Maluf
— representado por uma escultura que trazia
uma mão no Congresso Nacional e outra em
Figura 21: O carro que trazia o personagem Mi-
um saco de dinheiro à frente de um muro onde las Fulam e clamava pelas direitas já. (Fonte:
site sambariocarnaval.)
uma pichação clamava pelas eleições diretas.
Atrás do muro, caricaturas de Leonel Brizola, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves,
ironizando quem não se posicionava claramente em relação ao assunto (MELLO,
2015, p.203). A alegoria, apesar das pequenas dimensões, foi uma das principais cri-
ações de imagem da obra de Reis. O apelo político tão explícito e visualmente desta-
cado78sublinhava um contexto sócio-político conturbado, numa atitude política que ti-
rava as escolas de samba apenas do campo da assimilação.79
77O enredo brincava com personalidades do humor brasileiro os conferindo títulos de nobres, como
Baronesa Dercy, Dom Jô, Conde Otelo, dentre outros.
78Vale relembrar, como citado no capítulo 2, que Fernando Pinto teria um gesto parecido em 1980,
quando a última alegoria era tomada pela escrita de “Anistia”. As duas palavras de ordem que dialoga-
vam intimamente com seu contexto social ganhariam representações diversas de Reis e Pinto.
79 Vale lembrar que o desejo das escolas de samba pela negociação fez algumas agremiações levar
para a avenida enredos de caráter ufanista em apoio ao regime militar. A Beija-Flor de Nilópolis ganha-
ria a marca por estas apresentações, mas outras escolas como a Mangueira, Imperatriz, Jacarezinho
e a própria Caprichosos levariam enredos com esse viés (FABATO; SIMAS, 2015)
58
82Trecho do samba-enredo da Caprichosos de Pilares de 1987 composto por Evandro Boia, Naldo do
Cavaco e Toninho 70.
60
popular dos outros desfiles, mas deixou sua mensagem forte.83 No âmbito carnava-
lesco, o desfile seria criticado por aumentar a dose crítica, perdendo a delicadeza e
humor de antes.84
Mesmo com a decepcionante apresentação de Pilares, 1986 marca um ano de
auge dos enredos críticos, destacando a importância e influência de Luiz Fernando
para o carnaval como um todo. Com a ditadura definitivamente abolida, várias escolas
investiram no tema, até mesmo as tradicionais, com estilos mais clássicos, como a
Portela. O comentário de Macedo Mirando Filho na transmissão na Globo mostra uma
visão contemporânea ao fato:
Esse carnaval vai deixar grandes lições e uma delas é que as escolas vão ter
que se preparar pra curtir saborosamente esses novos tempos de liberdade.
Em termos de carnaval, ela existe mesmo.
Figura 22: Diferentes "estandartes alegóricos" de desfiles de 84, 85, 86 e 88. (Fonte: Youtube)
83Mensagem tão forte que conseguiu atingir o objetivo desejado, já que uma embaixadora americana
deixou a Avenida revoltada com a apresentação da escola, o que é considerado um “prêmio” para o
carnavalesco.
84Apesar da escola ser premiada com Estandarte de Ouro de melhor enredo e Luiz Fernando Reis de
personalidade masculina.
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O lugar pensando para Kwon é uma reflexão não só espacial, mas também so-
cial, aqui comporado quanto os desfiles se notabilizam por esses dois sentidos. En-
tendendo que as obras das escolas de samba são produzidas para um lugar especí-
fico, que tem não só seu contexto social amplo, mas político e institucional. Reis, en-
tão, articula-se nessas duas camadas, produzindo múltiplos significados através de
caráter comunicativo, tanto socialmente como linguisticamente.
A necessidade da escrita é, como afirma Reis85, uma necessidade didática, de
sublinhar e reforçar alguns desejos comunicativos. O carnavalesco se orgulha de sua
comunicação direta com o público, subscrevendo a ideia de que a “ilusão de que a
transformação da obra de arte numa intervenção linguística e textual faria necessari-
amente aumentar o número de leitores, a politização da prática cultural”. (RAMIREZ,
2007, p.188) O uso da palavra escrita, como na arte política e conceitual, impulsiona
reações e reforça seu desejo de comunicação. No sentindo dessas palavras como
verdadeiros chamados de ordem, o samba de 1987, sobre a história de “maracutaias”
da política nacional, intensificaria o desejo de uma conscientização popular: “Vamos,
meu povo! Democracia é participar. Vote, canta, grite! É tempo de mudar”.
da comunicação foram as verduras e frutas reais usadas para decorar os carros ale-
góricos que foram cedidas pelo sindicato dos feirantes e distribuídas ao público num
momento de interação desfilante-público. Já em 85, um problema técnico emudeceu
as caixas de som, fazendo o samba ser levado “na garganta” pelos seus componentes
e pelo espectadores, que evoluíam na arquibancada já vazia, indo de uma ponta a
outra. Os componentes também não demonstraram cansaço e desfilaram com anima-
ção, o que acabou escondendo os problemas que a escola teve durante o desfile,
quando três alegorias quebraram prejudicando a busca por um melhor resultado.
No caso de 1985, para o comentarista Haroldo Costa, na transmissão da Rede
Manchete, a sinergia público-espectador se dava exatamente pela junção dos escritos
no desfile com o samba da escola e o contexto do desfile, destacando muitas das
principais qualidades da dupla Caprichosos-Luiz Fernando:
o encontro da Caprichosos com o público não é somente através do refrão
do samba, é também por toda a conotação política que esse enredo propor-
cionou e que a escola está apresentando. Essa empatia com o público vem
exatamente dos carros, das legendas e palavras de ordem que a escola traz
ao longo do desfile. Esse grande encontro que com a escola e o público deve-
se sobretudo a isso.
Outro fato em comum nessas duas obras, foi o de que o samba causou transfor-
mações no desenvolvimento do enredo. Em 85, a parceria de Almir Araújo, Marqui-
nhos Lessa, Hércules Corrêa, Balinha e Carlinhos de Pilares criou o icônico refrão
“tem bumbum de fora para chuchu, qualquer dia é todo mundo nu” que fez sucesso
antes mesmo da apresentação da escola. A ideia não constava da concepção original
do enredo, nem da sinopse, sendo uma inserção dos compositores e que Luiz Fer-
nando Reis acatou e transformou em alegoria, assim como em 82, quando a cabrocha
Lili foi personagem que originalmente não passava de mera coadjuvante tornou-se
protagonista com a vitória do samba composto por Ratinho. Ambos os casos, fizeram
Reis reestruturar seu desfile por acreditar que, como ele mesmo explica, “quanto maior
a visualização do que está sendo cantando, melhor”, reforçando sua busca pelo diá-
logo imediato e reconhecível, mostrando-se como um artista aberto a contribuições
externas.
87Trecho do samba-enredo da Caprichosos de Pilares para 1986, composto por Almir de Araújo, Bali-
nha, Marquinho Lessa, Hércules Correa e Carlinhos de Pilares
65
Essas palavras de ordem presentes nos desfiles de Luiz Fernando seriam o sin-
toma de outra grande característica de sua obra que, mais uma vez, o colocaria em
diálogo com a produção conceitual da “arte de guerrilha” ou “contra-arte” de Frederico
Morais. A estética do precário e do esculhambado.
Ao contrário do luxo estabelecido, Luiz Fernando Reis se interessaria em cons-
truir uma linguagem na contramão. Essa falta de apuro estético pode ser entendida
como parte de uma proposta, na qual, o foco não é o alcance visual das formas e
volumes a serem percebidos pelos espectadores. Ao contrário, as palavras de ordem
acrescentadas nesse visual poluído e quase “sujo” reforçam seu caráter político e co-
municador. É, de certa forma, um trabalho que precisa “sumir” em função de seu ca-
ráter narrativo e participativo.
Tanto na arte institucionalizada, quanto no carnaval, há uma rejeição desse ca-
ráter banal, ao invés da aura sacralizada da obra de arte. O texto “A desmaterialização
da arte” daria conta dessas questões:
uma arte altamente conceitual, como uma arte extremamente rejeitiva [re-
jective, no original] ou uma arte aparentemente feita do acaso, perturba de-
tratores porque não há “o suficiente para olhar”, ou ainda não o suficiente
do que eles estão acostumados a procurar." (LIPPARD; CHANDLER, 2013,
p.153)
O caráter experimental tanto da obra de Barrio como dos desfiles de Reis trazia
embutido seu discurso político em crítica à precariedade do terceiro mundo e do Brasil
como país subdesenvolvido. Nesse sentido, eles operam “um valor negativo e opres-
sor nessas imagens, uma contrapartida grotesca ao mundo desenvolvido e high-tech,
a confirmação inabalável de um partido ideológico”. (FREITAS, 2013, p.121) No caso
do carnavalesco, isso fica mais evidente tendo em contrapartida o caráter alegórico e
celebrador de Joãosinho Trinta e Fernando Pinto. O “mau-gosto” de Reis marcava
uma reposta ao precário e uma “resposta incivilizada a um mundo violento e repulsivo”
(idem, p.121), não uma alusão ao “cafona”, como em Fernando Pinto. Assim, Luiz
Fernando estabelece não só diferenças
conceituais a seus pares, mais de lin-
guagem e estética, num gesto de des-
materialização do carnaval na tentativa
“de organizar uma espécie de guerrilha
cultural contra o estado atual das coi-
sas, sublinhar as contradições e criar si-
Mesmo com uma grande aceitação e repercussão popular e crítica de seus des-
files da Caprichosos, a trajetória da escola com Luiz Fernando Reis não seria marcada
exatamente pelos bons resultados.88 O sucesso popular e midiático da agremiação
faria crescer um desejo por melhores colocações, o que resultaria uma cobrança com
a produção de Luiz Fernando Reis, que era solicitado a fazer um desfile “sério”, já que
seu estilo era visto como algo menor e “engraçadinho”, segundo versão do próprio
carnavalesco, não uma proposição artística como a dos nomes consagrados da folia.
Essa tensão ficaria evidente após o carnaval de 1987, que marcaria o afasta-
mento do carnavalesco. Nas matérias publicadas nos jornais O Globo e Jornal do
Brasil a expressão “beija-florização”, presente nos títulos das reportagens, sintetizaria
essa busca por se adequar à linguagem estética hegemônica, simbolizada pela Beija-
Flor de Joãosinho Trinta. Na busca por melhores resultados, a escola preferiu apostar
na lógica dominante ao invés de firmar sua identidade recém-construída.
Na matéria do Globo, intitulada “Caprichosos se beija-floriza e perde carnava-
lesco”, Reis declarou: “É verdade que a comunidade começou a exigir o título, mas
para a diretoria isso só poderia ser feito revestindo a escola de luxo e decidiram por
uma ‘beija-florização’.” Com as eleições gerais para cargos legislativos em 1986, Luiz
Fernando se candidataria a deputado, o que o acabou fazendo-o se afastar do barra-
cão e da produção do carnaval. Somando-se a isso a pressão por melhores resultados
para escola, Wany Araújo, discípulo do Joãosinho, foi chamado para assinar junto
com Luiz Fernando o carnaval da escola. Os dois se desentenderam várias vezes
durante a preparação, já que Wany tinha uma visão divergente a de Reis, fazendo,
segundo este, um trabalho “mais Beija-Flor”, perdendo a leitura prezada por Reis.
A partir da saída do carnavalesco, sua produção seria estabelecida por uma série
de tensões e pontos de negociações. Tanto ele quanto a agremiação ficariam carim-
bados pelo selo de “críticos e irreverentes”, sendo criticados quando não seguiam
essa linha. Mesmo que o enredo não tivesse nada a ver com essa proposta, as maté-
rias dos jornais reforçariam essa identidade. Neste sentindo, é interessante analisar o
88A escola sempre se classificaria em posições intermediárias, tendo como um de seus melhores re-
sultados um sexto lugar, em 1984, e um quinto, em 1985.
68
89Desde seu surgimento na década de 1930, as escolas de samba já pregavam o discurso da tradici-
onalidade, afirmada pela sua ascentralidade negra e cultural. Reforçando-se, assim, os ideais moder-
nistas folclóricos.
90Campeã no início da década de 1980 com desfiles de Arlindo Rodrigues em estilo histórico e barroco,
a situação da agremiação estava complicada com a saída de seu patrono, que fez Reis ser contratado
para fazer um carnaval num estilo que o havia consagrado em Pilares.
91 A escola perdeu pontos preciosos em cronometragem, a fazendo entrar com um recurso na justiça
pela recuperação dos pontos. Aliado a isso, coube um processo de articulação do patrono da escola
para que a ação se cumprisse. No ano seguinte, a escola apresentou o emblemático “Liberdade! Liber-
dade! Abra as asas sobres nós” que narrou a epopeia da Proclamação da República no melhor estilo
histórico. O resultado foi um título disputado, mas que acabou por estigmatizar o desfile do ano anterior.
69
O ano de 19988 pode ter se tornado uma espécie de trauma para Luiz Fernando
Reis, pois a partir disso há um desejo nítido de obedecer às regras do jogo, clarifi-
cando uma busca por um “refinamento” de seu trabalho que se consolida no ano se-
guinte, quando assumiu o Salgueiro e, mais uma vez, a escola impôs suas caracterís-
ticas.
Famosa por seus temas africanos, a escola encomendou uma apresentação
neste universo temático. Em entrevista, o carnavalesco disse que foi avisado que ali
“não era a Caprichosos” e não cabia o colorido nem materiais baratos, mas o tradici-
onal vermelho e branco. Com esse carnaval, Luiz Fernando Reis assume uma outra
postura artística, já que ao invés de impor seu estilo, absorve o da escola. Num pro-
cesso oposto ao do desfile na Imperatriz.
Em 1989, no Salgueiro, o enredo “Templo negro em tempo de consciência negra”
fazia um passeio pelos enredos de temáticas negras que consagraram a escola. No
desenvolvimento, dividiu-se em dois quadros, o primeiro intitulado “Salgueiro – Tem-
plo Negro”, re-exaltando personagens históricos revelados pela agremiação na época
de Fernando Pamplona. Já o segundo, “Salgueiro em tempo de consciência negra”
exaltava a negritude e a abolição no contexto atual. O desfile contou com uma estética
mais ligada ao visual e dentro da linguagem hegemônica, mas mesmo assim acabou
abafado por desfiles antológicos.92
Mesmo com o bom desfile, Luiz Fernando Reis deixou a agremiação e assumiu
a Unidos da Tijuca, que lutava para se manter no grupo. O enredo foi mais uma vez
encomendando e fugia de uma pauta contestadora, Em entrevista ao Jornal do Brasil
de 25-2-90, Reis assumiria um desejo de dar uma pausa na linha: "Não há dúvidas
que prefiro temas críticos e satíricos, mas os enredos políticos entraram um pouco
num processo de desgaste."
“E Borel descobriu... navegar foi preciso”, enredo da Tijuca em 1990, reforçava
a busca por um estilo mais validado pelo julgamento, contando a história da coloniza-
ção portuguesa de maneira pacificada e didática. A escola apresentou-se com uma
plástica característica de Reis, com fantasias mais leves criadas por Flávio Tavares.
Apesar da tentativa, a agremiação terminando em 9º lugar.
92Junto à campeã Imperatriz havia ainda o imortal “Ratos e urubus larguem minha fantasia”, da Beija-
Flor, e o “Festa Profana” da União da Ilha, fazendo o Salgueiro amargar um quinto lugar, classificando-
se ainda atrás da Vila, campeã do ano anterior com “Kizomba”. A colocação gerou revolta na escola
que voltou no desfile das campeãs com a faixa, “Nem Melhor, nem pior. Apenas Roubado”.
70
alegoria foi alvo de censura, dessa vez um carro que falava dos surfistas de trem
populares na época. A Supervia (administradora do transporte) entrou com um recurso
e uma faixa sobre os riscos da prática teve que ser usada na alegoria. Mesmo com a
mídia espontânea gerada pelas alegorias, articulando ainda um incômodo ao trabalho
de Reis em articular elementos do cotidiano, mesmo os não “aprovados socialmente”,
a Caprichosos realizou um desfile inexpressivo e sem uma boa colocação.
O carnavalesco continuou em 1994, apresentando “Estou amando loucamente
uma senhora de quase noventa anos”, sobre a avenida Rio Branco. O título satirizava
uma série de comemorações promovidas pela prefeitura pelos noventa anos da via,
quando a marca só seria atingida anos depois. Com um caráter histórico, o enredo
passeava pelos momentos mais importante da antiga avenida Central e todos os seus
ícones, como o Theatro Municipal e extinto Palácio Monroe. Nos últimos setores,
houve uma tímida inserção política mos-
trando os protestos e manifestações ocorri-
dos na via, mas sem levantar bandeiras. A
escola fez um desfile sem surpresas, tanto
esteticamente como nos quesitos musicais.
O abre-alas trazia uma clara influência de
Renato Lage que se destacava pelo então
Figura 24: O abre-alas de 1994 marcava uma
influências dos títulos de Renato Lage. chamado estilo high-tech, mas as outras ale-
gorias passaram sem brilho. O resultado foi um décimo lugar.
Em suma, o segundo casamento entre a Caprichosos de Pilares e Luiz Fernando
Reis não teve o frescor de anos atrás. A revolução estética do luxo havia se consoli-
dado e já estava enraizada no imaginário carnavalesco. Além disso, o cenário sócio-
político, que o artista tanto gostava de destacar, não trazia grandes novidades com
uma democracia já estabelecida. Sendo assim, o carnavalesco se afasta mais uma
vez da agremiação azul-branca e no ano seguinte assina o que seria seu último car-
naval no grupo especial, agora na São Clemente, parceira da Caprichosos na aérea
crítica dos anos 80.93 O enredo “O que é, o que é, que não é mas será?” falava do
sonho de crescimento do país, em busca da estabilidade econômica. Como os tempos
haviam mudado, a crítica se transformou em apoio, a escola acabou rebaixada.
93Além da Caprichosos de Pilares, no contexto político dos anos 1980, a São Clemente seria outra
escola que se notabilizaria por enredos críticos, mas sem a repercussão e caráter comunicativo da
Caprichosos.
72
Assim como conclui Mari Carmen (2007), a força da arte conceitual acabou com
o que lhe deu pontapé inicial: a ditadura. O mesmo acontece com o trabalho de Luiz
Fernando, já que sem o cenário político fervilhante sua voz perdeu a potência e pairou
sem ecoar. Num cenário de início da década de 1990, que tinha Renato Lage cam-
peão pela Mocidade com desfiles tecnológicos, a contestação perdia o sentindo. O
trabalho do Reis se encontrava num meio do caminho problemático, pois já não tinha
a estética simples e comunicativa de antes nem se encontrava em pé de igualdade
das escolas que disputavam as primeiras posições. Ao procurar então se adaptar à
voz dominante, o carnavalesco se estagna em um entre-lugar problemático, acarre-
tando um fim de carreira problemático, no qual ele passeou pelos últimos lugares, fato
que contribuiu para seu esquecimento.
Entretanto, sua aproximação com os artistas conceituas o coloca como um dos
carnavalescos com maior personalidade artística e estética. Na trajetória de Reis,
nota-se o desejo de entender que “a arte conceitual foi um modo de ação guerrilheira
contra os poderes estabelecidos”. (WOOD, 2001, p.76)
Enquanto para o crítico Frederico Morais, o artista
passou a apropriar-se de objetos existentes, criando novamente "ready-ma-
des", transformando, retificando objetos que assim ganham novas funções e
são enriquecidos semanticamente com ideias e conceitos. E quanto mais a
arte confunde-se com a vida e com o cotidiano, mais precários são os mate-
riais e suportes, ruindo toda a ideia de arte." (MORAIS, 1975, p.24)
É nesse terreno da apropriação de objetos, do uso da linguagem escrita e da
estética do precário, que a produção de Reis se firmaria pela singularidade nos anos
de 1980 nas escolas de samba, aproximando-se da vida e ruindo com a ideia categó-
rica e sistematizada do carnaval capitalista. O fim pouco expressivo de sua carreira,
contrariando a explosão inicial, marca a dificuldade do carnaval de não absorver ou-
tras formas de estilos além dos luxuosos e barrocos. Se o julgamento funciona como
a legitimação de um trabalho, assim como os museus e galerias exercem esse papel
na arte institucionalizada, o júri não reforçou as qualidades artísticas das obras de
Reis, fazendo-o ser visto como uma produção menor e com menos qualidades do que
os desfiles que alcançaram as primeiras posições. Cobrado pelas agremiações em
busca de bons resultados, o carnavalesco não soube se adaptar às necessidades do
sistema sem perder suas principais qualidades, reforçando o caráter original de sua
produção nos anos 80, fixada através da marginalidade contestadora ao cânone car-
navalesco estabelecido.
73
94 Vale lembrar que Frederico Morais havia bancado uma espécie de revolta na classe artística ao
elogiar em 1983 o desfile como era verde meu Xingu, como citado no capítulo 2.
74
Figura 25: A última alegoria de ‘Tropicália Maravilha”, em 1980, de Fernando Pinto e a ale-
goria da Caprichosos de Pilares em 1984, de Luiz Fernando Reis.
95Patrulhas ideológicas foi um termo cunhado por Cacá Diegues no fim dos anos 1970, marcando a
pressão dos “engajados” pela cobrança de necessidade política nas obras. Em oposição ao termo,
Caetano Veloso lançaria “ patrulha odara”, marcada pela irreverência e o desbunde.
76
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