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SILVIO AUGUSTO MERHY


O acorde de dominante e o trítono na obra de Alexander Scriabin, em particular nos três Estudos, op. 65 para piano E
DEBATES | UNIRIO, n. 16, p.142-162, jun.2016.

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O acorde de dominante e o trítono na obra de Alexander
Scriabin, em particular nos três Estudos, op. 65 para piano A
_______________________________________________ T
Silvio Augusto Merhy E
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
S
Resumo: O acorde de dominante e o trítono foram recursos intensamente
utilizados nas peças do pianista e compositor russo Alexander Nikolaievich Scriabin
(1871-1915). Ao examinar a escrita do compositor verifica-se que o papel atribuído
a esses recursos sofreu uma espécie de transmutação ao longo de sua produção 16
musical. Os três Estudos, op. 65 (1911-12) para piano, produção da sua última
fase, têm como harmonia exclusiva o acorde de dominante ou a sua redução ao
intervalo característico do trítono. A presença constante dessa harmonia pode ser
verificada também em peças de opus anteriores, de modo que a análise de seu uso
no op. 65 deve estar sincronizada com obras criadas em períodos relativamente
distantes no tempo. Examinada à luz da temporalidade, foram as tendências
estéticas em diferentes épocas que diluíram e fizeram sofrer desgaste a tensão
atribuída às sonoridades da dominante e do trítono. Scriabin, porém pleiteou para
suas obras uma função esotérica que colocou em segundo plano razões puramente
estéticas ou técnicas. Entretanto, a revalorização recente de suas obras tem
focalizado mais os aspectos estéticos do que os esotéricos.

Palavras-chave: Scriabin; música para piano; acorde de dominante; trítono.


_______________________________________________

The dominant chord and the tritone in the work of Alexander


Scriabin, particularly in the three studies, op. 65 for piano

Abstract: The dominant chord and the tritone resources were heavily used by the
pianist and composer Alexander Nicolaievich Scriabin (1871-1915) in his
compositions. By examining the composer's writing it appears that the role assigned
to them suffered a kind of transmutation throughout his musical production. The
three studies, op. 65 (1911-12) for piano, production of his final phase, used
exclusively the harmony of the dominant chord or his reduction to its characteristic
range, the tritone. This harmony also shows up in works created before, so that the
analysis of its use in op. 65 must be synchronized with works composed in relatively
distant periods in time. The tension attributed to the sounds of the dominant and
the tritone diluted and eroded at certain times, in a phenomenon become evident
when examining the op. 65 in the light of temporality. Esoteric function pled by
Scriabin for his works put in the background purely aesthetic or technical reasons.
However, the recent appreciation of his music has focused more on the aesthetic
aspects than on the esoteric.

Keywords: Scriabin; piano music; dominant chord; tritone.

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SILVIO AUGUSTO MERHY
O acorde de dominante e o trítono na obra de Alexander Scriabin, em particular nos três Estudos, op. 65 para piano
DEBATES | UNIRIO, n. 16, p.142-162, jun.2016.

função dominante deixa literalmente


Os três Estudos, op. 65 para piano de existir na obra de Scriabin.
de Scriabin e o acorde de Relaciona-se também com a criação
Prometeu mais ou menos contemporânea de
outros compositores, o que admite
Os três Estudos, op. 65 para pensar em uma temporalidade não
piano de Scriabin foram compostos linear, dissociada da noção de
nos seus últimos anos de vida, com progresso contínuo e evolutivo. A
técnicas bastante consolidadas no uso crítica à noção de progresso contínuo,
do acorde de dominante, estrutura linear e evolutivo é muito comum em
harmônica formada por 7ª menor e 3ª áreas correlatas, às quais a explicação
maior, a qual corresponde o intervalo musicológica muitas vezes pede
de trítono composto de 3 tons inteiros, auxílio.
formado por 4ª aumentada ou 5ª A Musicologia inventou retórica
diminuta. ao nomear Scriabin criador do “acorde
Para uma análise em que a místico”, expressão cunhada pelo
apreciação recai quase que crítico musical inglês A. Eaglefield Hull
exclusivamente sobre as estruturas na biografia Scriabin A Great Russian
harmônicas e deixa de lado outros Tone Poet, publicada pela primeira vez
aspectos relevantes, a atenção se em 1918. O “acorde místico”,
volta para a característica particular designação de Hull para o acorde de
do op. 65 que é a exclusividade do Prometeu, é sempre mencionado como
uso, em toda a duração das peças, do associado à sua obra orquestral
acorde de dominante e do trítono Prometeu - O Poema do Fogo, op. 60.
como sua única harmonia, atribuída Ele pode, contudo, ser identificado em
sobretudo à mão esquerda, no outras obras, muitas vezes em versão
tradicional estilo homofônico de incompleta. Hull explicou o acorde
melodia acompanhada. As formas dos como uma invenção baseada na série
acordes mais usadas nos Estudos harmônica (harmônicos 2, 11, 7, 5,
podem ser verificadas mais adiante 13, 9), estruturada nos três tipos de
nas ilustrações dos exemplos 3 e 4, intervalos de 4ª – justa, aumentada
apresentados para o op. 65 nº1, no e diminuta. (1970, p.106). É relevante
exemplo 6 para o op. 65 nº2 e no a presença de 2 trítonos no acorde
exemplo 8 para o op.65 nº3. (ver Exemplo 1): Lá – Ré # e Sol – Dó
A harmonia exclusiva usada nos #. Ouvido isoladamente, o acorde
Estudos relaciona-se com outras obras evoca a sonoridade do acorde de
do compositor e está em sincronia dominante, percebido através dos
com a estrutura harmônica criada por intervalos Lá – Sol – Dó #,
ele, denominada diversamente como considerando-se a nota Lá como a
acorde do “pleroma” 1 , acorde de fundamental.
Prometeu, acorde “místico” e acorde
“sintético”. O acorde de Prometeu
sintetiza de forma autoral um novo
uso para as situações anteriores da
sonoridade da dominante e com ele a

1
O termo liga Scriabin aos ensinamentos
gnósticos que chegaram à Rússia na segunda
metade do século XIX.
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mythical time in Scriabin, de 1994, ao


citar Kelkel, menciona a polarização do
acorde sintético, com suas inversões e
encadeamentos. (p.4)
Exemplo 1. O acorde com a notação Kelkel traça uma linha do tempo
extraída do primeiro compasso do para a mudança de sentido no modo
obra Prometeu. como Scriabin utilizou o acorde,
atribuindo à dominante o papel
Manfred Kelkel, na sua tese principal antes representado pela
Alexandre Scriabine publicada em tônica, isto é, não mais
1984, prefere designá-lo como “acorde obrigatoriamente associada à
sintético”, (p.16, livro III) superpondo resolução na tônica. De acordo com o
a partir da nota fundamental itinerário traçado por Kelkel o “acorde
intervalos de 4ª aumentada, 7ª sintético” mudou de sentido e foi
menor, 3ª maior, 6ª maior e 2ª maior. ganhando complexidade, descolando-
Ele atribui ao musicólogo russo Leonid se gradualmente da função de
Sabaneiev a primeira menção à dominante e perdendo a densidade.
expressão “sonoridade mística”. (p.28, (1984:28, livro III)
livro III). É na verdade um “sistema Contudo, estruturas diferentes
artificial”, responsável pela elaboração do acorde de Prometeu podem ser
harmônica de um grande número de encontradas em outras obras. Para a
obras do compositor, e não uma Sonata nº 6, op. 62 foi criada a série
doutrina harmônica baseada motívica Lá-Sib-Dó#-Ré#-Fá#, como
unicamente nas ressonâncias da série tema único responsável pela
harmônica. A esse sistema construção formal, desenvolvido com
corresponde a escala ilustrada no variantes de andamento e de
exemplo 2, a seguir: dinâmica. O Poema-Noturno op. 61,
entre outras peças, o aproxima muito
do atonalismo. São modelos de
composição em que o intervalo de
trítono e a estrutura de dominante não
formam os principais elementos
Exemplo 2. Escala derivada do acorde temáticos.
de Prometeu. A criação musical
frequentemente extrapola os limites
A escala do exemplo 2 tem da pesquisa da estruturação musical e
analogia com a estrutura de da gramática específica e aponta para
dominante porque contém a 3ª maior a necessidade de dar à atividade
Lá-Dó # e a 7ª menor Lá-Sol, que criativa uma função comprometida
identificam aquela sonoridade. Contém com outras práticas sociais. Os dados
ainda a alteração de 4ª aumentada e a biográficos de Scriabin mostram o seu
omissão da 5ª justa. O intervalo de 4ª engajamento com a Teosofia, a
aumentada Lá-Ré # funciona como um Filosofia e os movimentos sociais, em
segundo trítono, considerando-se o um esforço reconhecidamente
primeiro Dó #-Sol, e possibilita holístico, simbolizado pela designação
multiplicar posições sem mudar o do “acorde místico”.
colorido do acorde. A pesquisadora e Com a perda de força da visão
pianista Lia Tomás, no artigo The holística, houve em outras épocas e
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lugares distantes da Rússia do início procura resolver o problema de como


do século XX uma mudança na reforçar a melodia por meio de outros
valorização das obras do compositor, intervalos que não o da habitual
com o retorno à análise das técnicas oitava.” 3 (1984:128, livro III). Ele se
de invenção harmônica e com a refere à concepção dos Estudos em
relativização dos comprometimentos que as notas da melodia são dobradas
com a Teosofia e a Filosofia. de modo não habitual,
respectivamente por intervalos de 9ª
Os três Estudos, op. 65 e a maior, 7ª maior e 5ª justa.
transmutação do sentido do A sonoridade de dominante nas
acorde de dominante obras de Scriabin surge muitas vezes
incompleta mas deixando evidente
Os Estudos, op. 65 são obras seus intervalos mais significativos, a
que fazem parte do último período 3ª maior e a 7ª menor em relação à
criativo de Scriabin. Em carta a voz do baixo. Esses intervalos,
Sabaneiev de 1912, mencionada por formadores do trítono, aparecem
Kelkel, Scriabin informa, através de notados de forma supostamente
comentários sarcásticos, a composição aleatória, como 4ª aumentada ou 5ª
dos estudos de 5as (“que horror!”), de diminuta, sem conexão gráfica com a
9as (“como é degenerado!”) e de 7as tradicional noção de notas atrativas
maiores (“a desolação da associadas à resolução do trítono. A
abominação!”). 2 (1984:80, livro I). opção da escrita musical dos
Neles, como em um grande número de intervalos pela 4ª aumentada ou 5ª
obras do compositor, percebem-se as diminuta não respeitam o sistema
tendências estéticas de flutuação funcional e comprova que a prioridade
permanente das frases, de volatilidade é manter o colorido, não importando
das ideias musicais e de suspensão do se há vinculação ou não com a função
movimento. As ideias de flutuação, original da dominante ou com o seu
volatilidade e suspensão do papel no interior da progressão
movimento são maneiras de sentir e harmônica. Significa que a estrutura
perceber sistemas musicais como o harmônica contendo intervalos de 7a
que deriva do acorde de Prometeu, no menor e 3a maior, este último às
qual foram abandonadas as sintaxes vezes escrito na forma enarmonizada
de tensão e repouso antes em parte de 4a diminuta, divorciou-se do seu
associadas ao intervalo de trítono. papel de promover a tensão que exige
Música criada em um novo resolução em harmonia estável.
sistema, quando muito diferente do No sistema tonal funcional, cuja
praticado antes de sua invenção, exige sintaxe se baseia nas harmonias de
também novos meios técnicos de tônica, subdominante e dominante, o
realização das performances. recurso da cromatização tem por
Entretanto, Kelkel comenta que os objetivo criar tensão através da
problemas técnicos do op. 65 ficam alteração ascendente ou descendente
em “segundo plano”, pois “trata-se de notas da diatônica. A escrita que
sobretudo de uma experiência que despreza o cuidado com a lógica

3
Tradução de: “Il s´agit surtout d´une
2
As expressões de sarcasmo em francês são: expérience cherchant à résoudre le problème
“quelle horreur”, “comme c´est dégénéré!” e du renforcement mélodique par d´autres
“l´abomination de la désolation”. intervalles que l´octave habituelle.”
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funcional da cromatização deixa de venha reforçada por uma configuração


atender à estética de tensão e rítmica, principalmente nos nos 1 e 3.
resolução, base do sistema tonal. O Estudo nº1, de 9as maiores, é
Numa espécie de transmutação do o mais longo. Nele a dificuldade de
sentido, tais estruturas de trítonos execução é tão específica que só os
repetem-se indefinidamente e tornam pianistas podem dimensioná-la com
rarefeita a tensão pela qual a função exatidão, transparecendo pouco para
de dominante era antes reconhecida. os ouvintes. Enquanto que na técnica
Por isso, soma-se aos requisitos mais de 8as há simetria na posição das
importantes para que se identifique mãos em relação às teclas pretas e
uma estética da flutuação, de brancas do teclado, na execução de
volatilidade e de suspensão do uma escala de 9as maiores a simetria
movimento, sendo que a não é possível, o que acarreta para o
transmutação do sentido do acorde de instrumentista uma dificuldade a mais.
dominante é apenas um componente Suas escalas cromáticas ascendentes
dessa estética, que depende ainda da de 9as (compasso 1 do Exemplo 3) em
diluição do centro de gravidade e do andamento rápido e volátil produzem
desmoronamento intencional da efeito bem diferente das de 8as, tão
métrica. exploradas no repertório pianístico da
É essencial chamar a atenção era romântica. As 9as maiores, na
para o fato de que a sonoridade do qualidade de intervalos compostos de
trítono, associada à estrutura do 2as, afastam qualquer possibilidade de
acorde de dominante e usada de modo familiaridade com o jogo tonal de
obstinado pelo compositor, é, a partir tensão e repouso, estabelecido pelas
do op.60, derivada do acorde de estruturas funcionais de superposição
Prometeu e aparece nos op. 65 de 3as. Uma das principais qualidades
principalmente na mão esquerda. A do estudo é o fato de que as 9as
técnica é análoga à que maiores estão presentes nos dois
tradicionalmente predominou no estilo motivos criados para a peça – um
homofônico em que as funções rápido e um lento contrastante, sendo
harmônicas eram tratadas de diversas que o contraste entre eles resulta
formas em apoio à melodia principal. sobretudo da mudança de andamento,
Nos op. 65 o acorde de Prometeu é a da mudança de direção melódica e da
sonoridade exclusiva, a qual aparece ênfase maior ou menor nas figuras
em forma de arpejos e mantêm uma rítmicas. As escalas que compõem o
típica relação melodia-harmonia com primeiro material temático voam em
os intervalos harmônicos de 9ª maior, movimento ascendente (ver compasso
7ª maior e 5ª justa da mão direita. O 1 do Exemplo 3) e deixam evidente a
formato é muito semelhante aos métrica do compasso composto. O
usados por F. Chopin nos estudos para acorde de Prometeu aparece
piano de 3as, 6as e 8as. O estilo claramente na mão esquerda no
homofônico, característico da música compasso 1 e os dois trítonos estão
romântica do séc. XIX, continuou presentes no terceiro acorde Lá #-Mi-
fortemente presente na prática Ré-Sol # e no que vem a seguir
composicional de Scriabin. Nos op. 65, fragmentado em Si-Fá-Si e Sol-Dó #.
contudo, a intensidade expressiva não Note-se ainda que não há entre eles
está vinculada à expressão romântica, nenhuma relação de resolução do
mesmo que a exposição temática trítono.
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Exemplo 3. op. 65 nº 1 (compassos 1 a 4)

No material temático do da introdução de quiálteras de 4


segundo tema – Meno vivo – a colcheias que quebram a métrica do
melodia é construída com intervalos compasso composto.
mais amplos em que também O acorde de Prometeu aparece
predomina o trítono (ver mão direita claramente no último tempo da mão
do compasso 23 do Exemplo 4). A esquerda Lá-Mi b-Ré b-Sol (ver
configuração rítmica mais marcada do compasso 22 do Exemplo 4).
tema anterior é nele suavizada através

Exemplo 4. op. 65 nº 1 (compassos 22 a 24): segundo tema contrastante.

O principal responsável pelo compassos 25 e 26 do Exemplo 5). É


efeito de suspensão do movimento é o um procedimento que caracteriza a
elemento rítmico que contém notas estética de Scriabin e que se multiplica
repetidas em forma de retardo em em outras obras para piano. Sua
direção aos tempos fortes (ver a nota presença no segundo tema do estudo
repetida Ré # na mão esquerda nos de 9as lhe dá consistência e caráter.
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Exemplo 5. op. 65 nº 1 (compassos 25 a 28): a suspensão do movimento está


indicada pela seta.

O Estudo nº2 de 7as maiores, de acentuados pela não resolução do


concepção expressionista, oferece ao intervalo tenso de 7ª maior. É
pianista um amplo grau de semelhante à característica
flexibilidade de ritmo e de sensível mencionada em relação aos retardos
perda dos acentos métricos atribuídos do estudo anterior. O material tratado
aos tempos fortes. O uso de notas na mão esquerda se baseia também
longas no intervalo harmônico de 7ª no acorde de Prometeu que pode ser
maior (ver a mão direita do compasso verificado na fragmentação do arpejo
6 do Exemplo 6) resulta descendente Ré-Lá b-Si b, seguido do
simultaneamente em um efeito de acorde Si b-Mi-Lá b. Eles contêm os
expectativa, de suspensão do dois trítonos característicos.
movimento e de flutuação rítmica,

Exemplo 6. op. 65 nº 2 (compassos 5 a 9): os intervalos de 3ª maior e 7ª


menor são constantes nos arpejos da mão esquerda.

Após o caráter estático da flutuação inicial. A mudança brusca


exposição do tema, um certo sentido propiciada pelo molto accel. no
rítmico vai emergindo aos poucos a compasso 15 produz uma forte
partir do compasso 12 (ver Exemplo sensação de volatilidade do sentido
7), mas se perde logo a seguir com o musical e contrasta intensamente com
molto accel. e com o presto volando, a instabilidade suspensiva provocada
seguidos de um rit. que faz a música pelas notas longas da exposição
retornar no compasso 19 ao clima de inicial.

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Exemplo 7. op. 65 nº 2 (compassos 10 a 19): mudança brusca de andamento


e volatilidade a partir do compasso 15. A peça é curta o que acentua o caráter
efêmero da sua concepção.

Ao contrário dos outros dois, o das 7as menores, invertendo-os em


estudo de 5as é o de maior bravura e várias posições combinadas com
oferece ao pianista a possibilidade de mudanças de direção ascendente e
uma execução de efeito brilhante. Há descendente. Os dois trítonos do
nele uma expressão que pode ser acorde de Prometeu são constantes
associada com a do Estudo, op. 8 nº nos arpejos da mão esquerda. No
12, “Patético”, composto em outra era. compasso 4 nota-se na mão esquerda
Não há mudanças bruscas de o intervalo Sol-Dó # enarmonizado a
andamento e o tempo é bem marcado seguir para Sol-Ré b. A combinação
desde os primeiros compassos. Na dos dois arpejos expõe os dois
primeira parte Molto Vivace os arpejos trítonos. No compasso 5, a seguir, o
da mão esquerda alternam a direção e procedimento se repete.
a grafia enarmonizada dos trítonos e

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Exemplo 8. op. 65 nº 3 (compassos 4 a 6): no compasso 5 a 4ª aumentada foi


invertida e aparece como 5ª diminuta Lá-Ré # e a 3ª maior foi substituída pela 4ª
diminuta Mi #-Lá.

Na segunda parte – Impérieux, intervalo de 4ª diminuta Dó #-Fá, que


a mesma sonoridade persiste em soa como a 3ª maior Dó #-Mi#.
forma de acordes. Chama a atenção o

Exemplo 9. op. 65 nº 3 (compassos 20 a 23): A sonoridade de dominante persiste


nas grafias enarmonizadas.

O op. 65 nº3 é o último dos elementos em comum, identificados


estudos do compositor e pode ser nos op.11, op. 13, op. 42, op. 53 e op.
interpretado como um final brilhante 62, entre outros.
para toda a série que se iniciou no
op.2 nº1. A relação sincrônica entre No Estudo, op. 42 nº 6, datado
várias composições de Scriabin torna- de 1903, há predominância do acorde
se verossímil no longo processo em de dominante na harmonização da
que ocorreu a diluição do centro tonal. mão direita em combinação com a
O itinerário descontínuo dessas esquerda (ver compasso 1 do Exemplo
transformações pode ser traçado por 10).
uma linha de composição com alguns

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Exemplo 10. Estudo, op. 42 nº 6 (compassos 1 e 2): a apresentação do


material temático dispensa a presença da tônica, que aparece apenas na cadência
final do último compasso da peça.

O mesmo ocorre na 5ª Sonata, op. 53:

Exemplo 11. 5ª Sonata (compassos 96 a 101): A tônica não aparece após a


harmonia de dominante.

Há ainda outras técnicas de Outras técnicas dizem respeito à


diluição do centro de gravidade, métrica escolhida. Diversas peças para
elaboradas em outras fases do piano são metricamente estruturadas,
compositor e diversas da focalizada características observável desde os
através do acorde de Prometeu. primeiros opus. Os Estudos op. 8 no 12
Nos 24 Prelúdios op. 11, e op. 42 nos 3, 5 e 6, por exemplo,
escritos para as 24 tonalidades entre apresentam temas com clara
1888 e 1896, os de nos 21 e 22 expressão rítmica, a qual sustenta as
apresentam um centro tonal velado, peças do princípio ao fim e permite
no primeiro compasso do nº 21 com associá-la ainda a uma forte expressão
apojatura da 3ª ou no nº 22 romântica. No entanto, no Prelúdio,
postergado para o segundo compasso op. 13 nº 1 a situação das funções
com retardo da sensível, evitando tonais não correspondem à métrica
explicitamente o estabelecimento da ternária. O II grau está colocado no
tônica. primeiro tempo e o I grau no terceiro,
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o que produz uma quebra na op. 62 nº 6, por exemplo, um


estabilidade das funções e na momento de paroxismo e de caos na
coerência harmônica da métrica organização dos valores. Trata-se de
escolhida. uma polirritmia de compassos com a
A flutuação rítmica que superposição da fração 2/8 sobre 3/8,
caracteriza o segundo tema do op. 65 em que a mão esquerda toca em 3/8
nº 1 e a maior parte do op. 65 nº 2 enquanto a direita mantém a fração
leva em alguns casos ao anterior 2/8. O que se percebe não é o
aniquilamento completo das fórmulas resultado sonoro da polirritmia e sim a
rítmicas convencionais. Um principio perda completa da unidade de tempo.
semelhante fez produzir na Sonata,

Exemplo 12. Coda da Sonata nº 6, op. 62 (compassos 360 a 366): a seta


indica a superposição de compassos 2/8 sobre 3/8.

A transmutação do sentido do necessariamente evolução de um


acorde de sétima da dominante estágio inferior de conhecimento para
um superior. Surge na História da
A temporalidade age sobre a Música e na Musicologia o que Paul
criação musical com a mesma Ricoeur detectou como “confrontação
intensidade com que age sobre as entre uma aporética da temporalidade
práticas sociais e culturais. e uma poética da narratividade”.
Refletir sobre a temporalidade (1985:11)4 A tarefa da análise musical
pode ter por consequência interrogar se depara constantemente com os
as linhas evolutivas, as continuidades equívocos provocados pela ideia de
progressivas e as conexões racionais continuidade progressiva do
de causa e efeito, as mesmas conhecimento musical envolvendo a
questionadas nas práticas sociais. As sucessão de estilos e gêneros. A
transformações, objeto dos estudos produção de sentido e a inteligibilidade
históricos, supõem um nexo que pode da criação musical escapa quando
ser descontínuo, sincrônico, sem
4
sucessão imediata de causa e efeito. Tradução de: confrontation entre une
Transformações não significam aporétique de la temporalité et une poétique
de la narrativité.
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explicada através de um sistema No caso específico da música, a


totalizante de conceitos dentro de um questão envolve a existência
plano de evolução constante com presumida de linhas evolutivas nas
itinerário pré-determinado, obras dos compositores, como por
teoricamente coerente e esteticamente exemplo nas de Scriabin, para as
coeso. quais foram definidas três fases, a
A alternância de estilos e última delas refletindo a expectativa
gêneros, a obsolescência dos de ruptura epistemológica condizente
procedimentos formais e a renovação com as transformações da virada do
teórica resvalam de linhas século XIX para o XX. Faz parte da
presumidamente evolutivas e tradição musicológica a organização de
demandam explicações de tal catálogos de obras em fases,
complexidade que fazem abandonar a organizadas a partir de recortes
possibilidade de existir uma coerência temporais questionáveis, mas que
intrínseca capaz de prover as práticas podem ser tão convincentes a ponto
musicais de um sentido completo, de adquirirem caráter biográfico.
totalizado em sucessão lógica, mesmo A criação por Scriabin do acorde
havendo um nexo de regras do “pleroma” ou “acorde de Prometeu”
amplamente aceitas pelos praticantes. não deve ser interpretada como uma
Acrescente-se a essas evolução exclusiva do seu processo
dificuldades o fato de que as teorias subjetivo de criação, embora fruto de
explicativas para as artes precisam necessidades de mudanças na sua
frequentemente recorrer a matrizes expressão musical. A estrutura de 7ª
teóricas instituídas em outras áreas e da dominante alterada que o
por isso alheias de certo modo às caracteriza representa o
obras que têm por objetivo explicar. desaparecimento da função dominante
Durante a migração entre as diversas e a convergência de sentidos e
áreas de conhecimento, a eficácia de procedimentos longamente
noções teóricas das Ciências Sociais incorporados, transportados para o
ou da Estética, por exemplo, pode século XX, tornados rarefeitos e
sofrer modificações e passar por transmudados por novos usos.
processos de naturalização e Na transmutação do sentido do
universalização que acabam por acorde subsiste um plano de
desvirtuar a natureza dos conceitos e temporalidade que reforça a
dissimular as determinações sociais de contestação às noções de evolução, de
que eles próprios são o produto. progresso e de causa e efeito.

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Sobre Scriabin

Figura 1. Professor Zveref e sua classe de piano: Scriabin é o primeiro sentado à


esquerda. Moscou, 1882.

Muitas pessoas têm se ‘Duodecuple’.


perguntado para onde (HULL:,1970:vi)5
estaria nos levando o
desenvolvimento puramente
físico da música nas linhas
adotadas por Debussy e
outros; Scriabin nos mostra
todas as possibilidades – e
limitações. Ele nos dá um
novo sistema completo de
harmonia; ele abole os
modos maior e menor; ele 5
No original: Many people have wondered
aniquila a modulação e as where the purely physical development of
inflexões cromáticas; ele music on the lines adopted by Debussy and
abandona todas as others was leading us; Scriabin shows us its
armaduras de claves; e full possibilities – and its limitations. He gives
us a completely new system of harmony; he
finalmente ele aplica suas abolishes the major and minor modes; he
ideias à escala mais annihilates modulation and chromatic
moderna conseguida até o inflection; he abandons all key-signatures; and
momento, isto é, o finally applies his ideas to the most modern
scale we have reached so far, i.e. the
“Duodecuple.”

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A análise acima foi extraída do Taneiev e Arensky, “Os contornos se


livro de Hull e permite detectar o tornaram vagos, o conteúdo passou a
sincronismo das contribuições dos ser críptico. Scriabin chamava seus
compositores em diferentes trabalhos de États d´âme.”, escreveu
coordenadas de espaço e tempo. O o jornalista e crítico americano Harold
sincronismo estimula o levantamento Schonberg no livro A vida dos grandes
de indícios que podem revelar compositores. (2010:594) O estado de
conexões possíveis entre fenômenos permanente flutuação, o caráter volátil
de ordem social ou cultural afastados. das ideias musicais e a suspensão do
Scriabin é tradicionalmente movimento ocorrem no interior das
descrito por suas obras iniciais como estruturas e não têm semelhança com
fortemente identificado com a lírica as pontuações cadenciais que
chopiniana. Contudo, decidiu demarcam o final das ideias musicais
desenvolver uma escritura baseada ou os limites das frases e períodos por
em sistema musical dissonante, meio de funções tonais bem definidas.
perceptível em muitas das peças para As questões técnicas
piano e para orquestra, abandonando envolvendo a provável criação por
a formação eclética que teve no Scriabin de um sistema harmônico
Conservatório de Moscou onde próprio parecem ter se tornado para
estudou na classe de piano com N. ele, a certa altura, um objetivo
Zverev, junto com S. Rachmaninoff secundário na sua biografia. Seu
com quem mais tarde dividiria um fascínio pela filosofia e pela teologia já
concerto, e nas classes de S. Taneiev estavam brotando por volta de 1900
e A. Arensky. A Sonata, op. 53 nº 5 quando se tornou membro da
em Fá # maior, escrita em 1908 em Sociedade Filosófica de Moscou, onde
Lausanne, Suíça, ilustra bem o assumiu a posição idealista-subjetiva,
ambiente dissonante que suas peças inimaginável na era do realismo
para piano alcançaram. Os primeiros socialista. O ocultismo também o
doze compassos podem figurar como seduziu e o atraiu para a Teosofia de
uma sonoridade típica da estética madame Blavatsky. Entretanto, nutriu
pianística do início do século XX. É um sentimento de simpatia por G. V.
importante mencionar que nessa Plekanov, mestre do marxismo russo.
Sonata, como em outras peças, a Segundo Kelkel o sentimento foi
função tônica foi abandonada. mútuo e Scriabin “por mais de uma
Tal procedimento confere às vez teria clamado que seu coração
suas obras o estado de permanente estava com os revolucionários”. 7
flutuação capaz de suprimir alguns dos 1984:50, livro I)
requisitos essenciais ao Seu provável prestígio como
estabelecimento da forma musical pianista e compositor não sobreviveu à
como foi fixada no início do século revolução de 1917, depois da qual foi
XIX. A construção da forma dependeu sendo gradativamente colocado à
durante muito tempo do margem do prestigiado movimento
estabelecimento de um centro de musical que ainda hoje confere à
gravidade representado pela tônica e o Rússia posição de destaque mundial.
afastamento dele representado pelos Até recentemente suas obras eram
cromatismos. Apesar de seu
incontestável domínio da forma e das
7
técnicas aprendidas nas classe de Tradução de “Plus d´une fois il aurait clamé
que son coeur était avec les révolucionaires.”
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consideradas “marasmáticas” por uma de jazz brasileiro Genil Castro. 11 O


parte de alguns musicistas do presente transformou o modo como
Conservatório de Moscou e em vários apreciamos a obra de Scriabin e como
meios musicais as críticas negativas se avaliamos o impacto de seu sistema
repetem há décadas. A que foi feita harmônico, impacto que sobrevive
pelo crítico musical Ivan Lipaev (1865- hoje principalmente como uma data,
1942) à 2ª Sinfonia apresentada em como um documento historiográfico.
1901 está documentada por Kelkel e
fala da monotonia de sua obra. 8 Scriabin em uma rede de criadores
(1984:31, livro I) A musicologia produziu crença
Em movimento contrário a no desgaste das funções tonais ao
essas críticas, foi organizado em 1922 associar a música de Richard Wagner
o Museu Scriabin localizado no último ao cromatismo seguido de
endereço em que viveu em Moscou.9 afastamento permanente do centro
Suas obras chegaram ao tonal sem retorno ao ponto de
presente associadas a expressões de gravitação da tônica. Mais tarde, na
cunho impressionista e a modelos de música atonal o abandono do centro
harmonização apreciados pelos de gravidade foi absoluto.
jazzistas, em uma forma inesperada Scriabin teve seu nome por
de sincronismo. O acorde de Prometeu vezes associado ao de Wagner. Kelkel
perdeu sua força esotérica e é fala de uma “influência primordial no
considerado como acorde alterado, Poema Divino” (título da 3ª Sinfonia,
semelhante aos usados no sistema de op. 43) manifestada sobretudo pelo
escalas de acordes do jazz. “cromatismo exacerbado e pela
Incorporado à linguagem do jazz e da importância dada ao intervalo de
música popular instrumental, o acorde trítono.”12 (1984:13, livro III)
de Prometeu transmudou-se pelo uso As funções de instabilidade
e perdeu sua potência como harmonia como produtoras de tensão nos pontos
de ruptura. Peças musicais culminantes das frases musicais tem
consideradas em outra época como longa história. Em alguns momentos
contendo rupturas de linguagem e nota-se a busca pela intensificação da
harmonias destituídas de coerência instabilidade como, por exemplo, no
são hoje absorvidas com facilidade e primeiro movimento da Sinfonia, op.
percebidas como impressionistas ou 55 nº 3 em Mi b Maior de L.
líricas. É o que se percebe das Beethoven em que o pedal figurado de
performances improvisadas do dominante se prolonga por dezesseis
Prelude, op.11 nº 2 pelo pianista Chick compassos para preparar a coda no
Corea10 e do Feuillet d´album, Op. 45 tom principal. Na sua Sonata, op. 109
No. 1 em Mi b maior pelo guitarrista em Mi maior para piano a dominante
se prolonga do compasso 35 ao 47,
excedendo talvez em muito o número
de compassos necessários para a
8
“... l´oeuvre de Scriabine est un peu reapresentação do primeiro material
monotone.”
9
A informação foi colhida no sítio
11
classic.chubrik.ru. ouvida em 30/03/2015 no site
10
Concerto em Vancouver em 27/06/2010. Cf. https://www.youtube.com/watch?v=_0Zq2jYIL
no site 8U
12
https://www.youtube.com/watch?v=jsUtjJk0IZ A afirmação é: “L´influence de Richard
c Wagner est primordiale dans le Poème Divin.”
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temático. Na Sonata, op. 53 A dimensão das grandes formas


“Waldstein”, também de Beethoven, a sofreu, na segunda metade do século
preparação da reexposição no primeiro XIX, um impacto negativo, o qual
movimento é construída por um pedal atingiu também Scriabin que se
de dominante que se prolonga por dedicou a criar peças curtas para
dezesseis compassos. piano, muitas delas de um lirismo que
A teoria musical em geral situa ainda seduz pianistas e público.
no trítono da harmonia de dominante Aponta-se como modelo bem sucedido
a mais forte instabilidade da estrutura o Prelúdio, op. 11 nº 21. Os Estudos,
fraseológica, de modo que as op. 42 nº 2 e 3 e o op. 65 nº 2 são
estruturas longamente sustentadas também bons modelos de formas com
por dominantes reforçariam a tensão poucos minutos de duração.
em direção à tônica ou às harmonias O compositor russo
de resolução. O intenso uso desse experimentou também maneiras mais
recurso supostamente desgastou o sintéticas de tratar as formas
sentido de tensão que ele tradicionais das sonatas e dos poemas
representava e provocou a sua sinfônicos. Dois exemplos ilustrativos
diluição nas peças musicais produzidas de técnicas sintéticas são as Sonatas,
na Europa no final do século XIX e op. 64 nº 7 e op. 68 nº 9. Na Sonata,
início do XX. op. 64 nº 7 ocorre logo no segundo
No que diz respeito à compasso da exposição temática um
temporalidade, foi um fenômeno de afastamento precipitado do ambiente
longa duração na cultura musical e é harmônico inicial, semelhante às
de amplo conhecimento que a sua inclinações que na música romântica
obsolescência teve impacto evidente geralmente ocorriam após o
sobre a construção das formas, estabelecimento inequívoco da tônica.
modificando as mais convencionais e
inspirando a criação de novas.

Exemplo 13. Sonata, op. 64 nº 7 (compassos 1 a 4): afastamento precipitado


do ambiente harmônico no segundo compasso.

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Na Sonata, op. 68 nº 9 a segundo tema surgindo logo no sétimo


exposição do primeiro e do segundo compasso, imediatamente depois do
tema é feita de forma concisa, com o primeiro tema.

Exemplo 14. Sonata, op. 68 nº 9 (compassos 5 a 10): forma concisa de


exposição dos temas.

Quanto à função do acorde de apenas o colorido de uma função cujo


dominante, a perda do papel de sentido se perdeu. No compasso 62 e
tensão pode ser encontrada na seguintes a série de acordes
produção de outros compositores descendentes em escala de tons
como Claude Debussy. O paralelismo inteiros subtrai a eles a qualidade de
geral ascendente ou descendente que instabilidade que antes os
caracteriza o prelúdio Cathédrale caracterizava. Apesar de propósitos
Engloutie, o nº 10 do Primeiro composicionais tão distantes entre os
Caderno publicado em 1910, faz soar dois compositores o fenômeno é sem
acordes de diferentes qualidades, dúvida o mesmo.
inclusive de dominante, mantendo

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Exemplo 15. Cathédrale Engloutie de Debussy (compassos 60 a 68): A sucessão de


dominantes, a partir do compasso 63 até o 68, não conduz à resolução.

Lia Tomás menciona a indícios são muitos e a produção


estranheza manifestada pelo musical da época os evidencia.
compositor Igor Stravinsky quando ele Em qualquer tempo é possível
se pergunta a que tradição a música detectar que o empenho de criadores
de Scriabin pode ser associada: por uma marca individual pode
“Where did he come from? Who are resultar tanto do temor da crítica
his predecessors?”. (1994:1) A autora quanto do desprezo pelo gosto
descreve o compositor como polêmico compartilhado. A ruptura
e “intriguing” e deixa em aberto a epistemológica é intencional apenas
discussão. As interrogações de quando precisa distinguir o artista do
Stravinsky levam a pensar que se senso comum e da exaustão dos
trata de uma produção sui generis clichês.
cuja gênese apagou-se e que fortes Há relatos e indícios de várias
individualidades conseguem escapar origens que comprovam que não se
do juízo dos pares ou propor ruptura pode considerar Scriabin como um
epistemológica intencional capaz de gênio “in-criado”. As notícias sobre
transportar a música para territórios sua formação musical e acadêmica
distantes protegidos de padrões revelam que conviveu intensamente
familiares de audição. com a tradição russa de composição e
A criação de um estilo com a música russa tradicional. Estão
particular, pessoal, traz a marca do presentes nas suas composições as
desejo de destaque, de originalidade e técnicas aprendidas com Sergei
de aprovação pelos pares. Porém a Taneev e Anton Arensky no
Musicologia mostra que não há como Conservatório de Moscou. O seu
duvidar da conexão de Scriabin com pianismo é da família de Sergei
seu tempo e com o passado próximo, Rachmaninoff.
no qual pontificaram Liszt e Wagner Tomás observa que “como
com criações que entusiasmaram Wagner, Scriabin não podia considerar
muitos dos compositores
contemporâneos e posteriores. Os

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a música como música puramente”. 13 ocupados com as questões


A decisão de dar uma função à música interpretativas e técnicas.
transportou-o para o terreno das Schonberg cita frase de Scriabin
sensações e para além do prazer em carta a amigos: “Não sei como
proporcionado pelas formas musicais escrever apenas `música´ agora”.
autônomas. O que na verdade é sui (2010:597) A composição teria
generis evidencia-se no fato de que a perdido para ele o sentido de atividade
função de que ele encarregou sua artística autônoma, de “música
música não foi orgânica ou comunal, puramente”, ou teria a estética
mas esotérica. musical deixado de ser objeto de
desejo?
Outros polos para além do campo Ainda assim, na apreciação da
da música “ars gratia artis” na obra de Scriabin
Encarregar as práticas musicais continuam prevalecendo a forma sobre
de funções religiosas corresponde a a função e o prazer desinteressado, a
uma antiga tradição. No entanto a sua função religiosa se perdeu. A
capacidade da música de concerto de música orgânica e funcional segue
estimular pensamentos elevados ou sendo aquela ligada às tradições
celestes nem sempre é associada à populares.
magia que envolve boa parte das
práticas religiosas. Scriabin acreditou A temporalidade
no poder mágico da música, sobretudo A uniformidade do tempo que
de uma “música perfeita” capaz de corre, submetida ao calendário, é o
transmutar a realidade através do conceito de fundo da ordem
impacto de sonoridades inventadas cronológica segundo a qual a pesquisa
com esse propósito. histórica se expõe. É a ordem
Tomás se refere às estranhas cronológica que organiza a
indicações encontradas nas partituras, constituição das séries e do corpus de
todas em francês e inusitadas em dados. O historiador Michel de Certeau
termos de edição musical. De fato, explica que essa ordem foi flexibilizada
além de “contemplatif” e “voluptueux“, com a instauração de quadros
citadas no seu artigo, (1994:3) temos sincrônicos que permitem que
outras bastante peculiares como momentos diferentes interajam.
“impérieux”, “charmes”, “avec une (2002:96) É por meio dessa noção que
chaleur contenue”, “souffle são feitas conexões entre fenômenos
mistérieux”, “onde carressante”, afastados no tempo e no espaço e
“l´épouvante surgit”, e assim por reveladas semelhanças por meio de
diante. Não são evidentemente teorias geradas nas próprias áreas e
indicações de dinâmica ou de em áreas correlatas ou próximas.
execução, mas de crença no poder É também primordial que a
mágico da música de nos transportar interação de momentos em situação
para outras dimensões. Tais indicações de distância não seja interpretada
representam certamente um dentro de uma lógica evolucionista. A
sobressalto para os pianistas, diluição da tonalidade por meio da
transmutação do acorde de dominante
e do uso intensivo do trítono não
13
significam necessariamente uma
No original: “Like Wagner, Scriabin could not
evolução da técnica e do
consider music as pure music.”
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conhecimento musical nos processos “ditadura” da qual a História Nova


criativos de Scriabin. reivindica a libertação.
As tendências estéticas de Sob a noção de linha uniforme
flutuação permanente, de volatilidade do tempo o historiador da arte
das ideias musicais e de suspensão do Heinrich Wölfflin cunhou uma frase
movimento surgem como pontos de que, apesar de contestável, diz bem
contato detectados em um sobre a lógica tradicional com que os
empreendimento semelhante ao de estilos são pensados: “... assim como
Scriabin embora relativamente a flor não pode viver eternamente, a
distante . É o caso da novela- necessidade de mudar não lhe vem de
monólogo de 1924 Fräulein Else do fora, mas de dentro”. (1989:88) O
escritor austro-húngaro Arthur filósofo Paul Ricoeur explica que “não
Schnitzler. Obra da moderna literatura é preciso fazer nada para que as
vienense, o texto desenvolve uma coisas se tornem ruínas; nós
linguagem adequada à feição volátil e atribuímos então com prazer a
fragmentada do fluxo psíquico e destruição ao próprio tempo.” 14
descreve uma ampla variedade de (1985:34, vol.3) São materialidades
nuances que lembram os États d´âme supostamente dotadas de forças
mencionados por Schonberg. As autônomas.
semelhanças entre a obra de Mais exatamente, em uma
Schnitzler e a música de Scriabin são dimensão estética as leis que definem
muitas e revelam um sincronismo os estilos são as mesmas que definem
entre música e literatura que não pode o gosto e sua aprovação pela
ser considerado surpreendente. sociedade. Portanto, se omitidas as
Entretanto, sincronismos devem determinações sociais, as regras da
ser explicados como decorrentes de arte podem constituir apenas uma
determinações sociais e não de abstração “desencarnada”, isto é, uma
coincidências holísticas. Semelhanças mudança exclusivamente internalista
e diferenças podem ser traçadas, com operada nos estilos, como afirmou
as devidas precauções, entre Wölfflin, ou uma materialidade
determinações sociais operando em operada pela natureza, como
épocas afastadas. diagnosticou Ricoeur.
Os estilos musicais têm muitas A ação do tempo sobre as
vezes a aparência de sucederem em práticas artísticas é evidente, mas
transcursos uniformes do tempo, deixa muitas dúvidas se há de fato
contínuos, evolutivos e progressivos. E conexão natural entre a ação do
sobre os transcursos incide o jogo das tempo e os conceitos de evolução ou
influências entre praticantes. Foi de progresso da linguagem, entre a ação
acordo com o transcurso uniforme do do tempo e uma desejada coerência
tempo que foram construídas as que governaria a sucessão contínua
noções de fases estilísticas, como as das obras nos séculos, entre a ação do
que subdividem a obra de Scriabin. tempo e o jogo das influências. Sob
Kelkel estrutura o texto de seu livro I esse ponto de vista, a classificação das
em três capítulos que correspondem obras dos compositores em fases
às três fases composicionais. É
possivelmente herança da divisão da 14
No original: “il suffit de ne rien faire pour
História em séculos, uma espécie de que les choses tombent en ruine; nous
attribuons alors volontiers la destruction au
temps lui-même.”
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sucessivas deve ser questionada Referências


quanto à própria coerência temporal
das subdivisões propostas. CERTEAU, Michel. A Escrita da
Mesmo levando em conta a História. 2. ed. Rio de Janeiro:
possibilidade sincrônica de estilos Forense, 2002.
descontínuos e o equívoco da noção
de evolução da música, o material HULL, A.E. Scriabin A Great Russian
musical está submetido a certa ordem Tone Poet. New York: AMS Press,
cronológica como a que vincula a 1970.
fragilização do sistema tonal à
pulverização da suas funções e vincula KELKEL, Manfred. Alexandre Scriabine.
também a fragmentação da forma às Paris: Honoré Champion, 1984.
mudanças nas noções de tensão e
resolução. RICOEUR, Paul. Temps et Récit. Paris:
Na pesquisa musicológica a Seuil, 1985. 3v.
ordem cronológica e a temporalidade
devem estar sempre associadas à SCHONBERG, Harold. A vida dos
dinâmica da interação social, que é o grandes compositores. São Paulo:
Novo Século, 2010.
âmbito no qual se produzem efeitos
como os de transformar em arte pura
TOMÁS, Lia. The mythical time in
e desinteressada objetos de uso
Scriabin. Fifth Congress of the
cotidiano a exemplo do saleiro de
International Association for Semiotic
Benvenuto Cellini de 1543, e obras
Studies, Berkeley, 1994
musicais de função litúrgica, com
exemplos que vão desde a Messe de WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e
Nostre Dame encomendada a Barroco. São Paulo: Perspectiva, 1989.
Guillaume de Machaut em 1365 até as
Cantatas encomendadas a Johann Sítios na web
Sebastian Bach no século XVIII.
Em todos os casos a atenção http://classic.chubrik.ru/Scriabin/
deve focar a produção de sentido, que (visitado em março de 2015)
é o substrato de todos os estudos e http://www.oxfordmusiconline.com
que muda de direção e se transforma https://www.youtube.com/watch?v=js
quando a prática musical do presente UtjJk0IZc
é sincronizada com a do passado.
Na perspectiva do presente, os
dados biográficos de Scriabin tem sido
remodelados por narrativas
musicológicas que dão nova dimensão
aos interesses filosóficos, estéticos,
religiosos e sociais. Contrariamente ao
que ele em algum momento parece ter
desejado, sua obra tem sido
revalorizada não pela função esotérica
de conjurar forças místicas para
transmutar o mundo real, mas pela
singularidade estética e pelo uso
peculiar da harmonia.
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