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Quando pequeno, o pátio parecia maior.

Uma floresta de árvores, animais e


cantos secretos. Minha diversão favorita era caminhar e descobrir coisas novas ali.
Todos os dias em busca de uma jornada diferente, costumava fantasiar que vivia em
uma ilha. Rabo de lagartixa mexendo, casulo de borboleta, ovos de lesma e filhotes
de cão. Eram conquistas em minhas aventuras, descobertas na ilha. E eu, equipado,
todo preparado para a grande missão – ainda que não imaginasse qual.

Quando pequeno, nos anos 90, a gente podia tirar fotos dos objetos e das
pessoas e das situações com uma máquina de filme, aí a gente revelava e depois
fazia um álbum ou colocava em porta-retratos na parede da sala ou dos museus. Mas
conforme eu crescia, as coisas foram mudando, de repente tinha um computador
quadrado, que a gente podia ligar na internet depois da meia-noite ou no fim de
semana. Depois podia usar a internet a qualquer hora. Depois ganhei uma câmera
que ligava no computador que ligava na internet. Eu andava com essa câmera pra
cima e pra baixo e depois salvava todas as fotos em pastinhas. Depois veio a tela
plana por toda parte e um celular que era câmera e televisão e computador e salvava
tudo nas nuvens. Agora a gente é tudo meio misturado, meio inter-relacionado, meio
tudo ao mesmo tempo e em qualquer lugar.

E aí eu passei no vestibular e comecei a estudar arte : (dois pontos) Porto Alegre,


2007, 18 anos. Coexistência de temporalidades. A casa de infância e suas memórias.
Tudo aquilo que vem antes de nós. Onde começamos. Uma paisagem, uma locação,
um plano de fundo. Contexto. Herança. Pedaço do mundo.

Com aquela vontade fazer arte, inspirado pelas fotografias que vi nas aulas,
quase todas em preto e branco, comecei a olhar pro meu mundo com a tela iluminada
da minha câmera digital. Então, convido vocês a me acompanharem em um passeio
pelo pátio de minha casa de infância, em busca de restos e vestígios do passado,
mas principalmente, de possibilidades de encontrar arte. É interessante lembrar que
todas as fotografias que eu fazia durante esses passeios eu já postava na internet,
para mostrar pros meus amigos reais e virtuais, para meus colegas da faculdade e
para quem quisesse conhecer. O tempo passou e eu fui ampliando esse processo de
arquivamento-exposição virtual, utilizando outros sites, como flickr, blogspot, orkut,
facebook, etc. Aqui, por exemplo, no Flickr, encontrei uma foto que fiz em 2012, que
mostra o galpãozinho no qual eu fiz essa pintura maluca quando criança, marcando
com minha mão os tijolos. A marca ainda está lá e gosto de imaginar que ela é um
portal de comunicação entre tempos. Ontem tirei essa foto e da mão e postei nos
storys do instagram, só pra provar que ela ainda está lá. Mas depois pensei que há
certa semelhança entre as fotos e as mãos marcadas na parede, no sentido de
criarem possibilidades de encontros entre tempos, entre lugares, entre sujeitos.

Aqui vemos minha mãe, minha tia, meu avô e minha vó e meus bisavôs no mesmo
pátio. Esse pátio foi meu avô quem fez, meu avô era professor de matemática e
trambiqueiro. Ele comprou dois terrenos, tirou o muro e fez um só. Minha mãe cresceu
nesse lugar e eu também. Como podemos ver nas fotografias que temos guardadas
de qualquer jeito em uma caixa de sapato. O legal é que além de ver o envelhecimento
meu, da minha mãe, do meu vô e de todo mundo, podemos ver o evelhecimento do
pátio, as transformações, os diferentes estados de conservação. Também acho
interessante a mania que a gente tem de acoplar aos espaços essas imagens que
mostram o tempo passando, tipo esse porta-retrato que minha mãe montou com 3x4
da minha irmã e que fica em cima da lareira da sala.

Minha mãe sempre teve uma coisa com fotografia. Nos anos 80 ela fotografou as
araras que meus avôs tinham no viveiro da frente. Na parede da sala da casa da vó
teve um momento que ficava uma dessas fotos que minha mãe fez, era uma foto
ampliada e fixada num pôster, uma moda de uma época.
Mas queria falar sobre os viveiros. Existem 3 no pátio da minha casa. Todos
idealizados por meu avô inspirado pelo zoológico da Redenção. Ele queria morar
numa casa meio parque da Redenção. Ele amava prender passarinhos em gaiolas,
já minha mãe sempre preferiu aquários, ela até trabalhou com isso quando era mais
jovem. Mas voltando aos viveiros, tem o da frente, onde ficavam as araras antes de
minha vó ter medo de ser presa e as doar pro Zoológico de Sapucaia. Nos fundos,
perto da casa onde eu moro, tem dois viveiros menos sofisticados que minha mãe
criava galinhas antes delas fugirem e o cachorro matar todas. E olha que interessante
e bonito, teve uma vez que cresceu uma árvore la dentro.

Além do viveiro e das duas casas e do galpãozinho com a minha mão marcada,
temos o galpão dos fundos. Espaço que era pra ser um salão de festas mas acabou
o dinheiro do vô e aí virou apenas um depósito de tudo que não servia mais mas a
gente não tinha coragem de jogar fora, pois podia precisar um dia. Quando eu era
criança eu tinha medo do galpão, não tinha luz, tinha aranha, rato, fantasma, era
horrível. Mas depois que eu virei artista eu entrei lá, protegido com a minha câmera
digital. Então, lá no começo, em 2007, uma das primeiras coisas que fiz nesses
passeios fotográficos pelo pátio foi entrar lá corajosamente e começar a fotografar o
lugar. Eu pensei que aquilo ali tinha alguma coisa de arte, parecia um instalação, uma
coisa que foi construida pela minha família ao longo de mais de 40 anos. Os objetos
guardados, as fotos nos álbuns, as mãos nas paredes. É uma vontade de marcar o
mundo, né? Uma vontade de ficar pra sempre. Mesmo que aos pedaços, mesmo que
só uns restos. Dentro do galpão tinha quase uma casa, ou duas, sei lá, mas tudo
espalhado, sujo, solto. Achei também um jornal que meu avô era gerente nos anos
30. Olha que engraçado! Meu avô era mesmo maluco. Mostrei o jornal pra vó e ela
me deu essas fotos, que meu vô tirou quando era jovem na época do jornal: ele foi
até curitiba para registrar uma “marca do morto” que apareceu numa tumba num
cemitério. Olha ali, gente, tem a marca mesmo!

Mas voltando pro galpão dos fundos. Tinha muita gaiola lá dentro, o que sobrou
da época do vô, mas a namorada da minha tia, que já tinha sido namorada da minha
mãe, vendeu quase todas. De qualquer forma quando fui tirar a foto ainda tinha muita
gaiola. E os aquários da minha mãe. Eu queria fazer alguma coisa com aquilo. Queria
fazer arte com eses objetos, era tudo tão ready made, eu queria tirar eles do limbo
que estavam e fazer circular, não voltando pra dentro de casa, mas talvez indo pruma
galeria, sei lá.

Entre 2009 e 2011 eu fiz diversas experimentações, no meio disso apareceu um


balão que tava lá no meu quarto-ateliê por acaso. Mas balão também é enfeite, que
nem aquário e gaiola, balão também contém, guarda, prende alguma coisa lá dentro.
Achei que dialogavam. Além do mais, o balão se tornou a coisa, o objeto, o sujeito lá
dentro da gaiola dentro do aquário. A gaiola dentro do aquário é uma anulação da
possibilidade de vida: nem peixe, nem pássaro. Também é como se fosse colocar um
espaço dentro do espaço, olhar pro espaço. Além dessas experimentações, fiz outras
coisas a partir do galpão. Alguns textos, vídeos e livros e proposições. Em 2013 fiz
uma escultura efêmera e improvisada no pátio de casa e filmei a ação. Tirei todos os
objetos lá de dentro do galpão, botei pra fora e depois foi tudo fora (mas isso a imagem
não mostra). Também editei um vídeo chamado Fundos, no qual coloquei legendas
sobre cada objeto, dizendo seu nome. Esse vídeo já esteve aqui no Ibere numa
exposição de vídeos, e também num depósito de um hotel no Ceará, no qual participei
de uma residência do Rumos Itaú em 2014.

Mas fazendo essa apresentação lembrei que em 2008 o artista brasileiro


Hudinilson Jr, que participu do coletivo 3nós3 nos anos 70, veio para Porto Alegre
fazer uma expo na Vera Chaves Barcellos e fez uma fala no Instituto de Artes. Ele
mostrou as intervenções que fizeram nos anos 70, uma das delas era passar fita na
entrada de galerias comerciais de arte, lacrando a entrada, e deixando cartezes com
a frase “o que está dentro fica, o que está fora se expande”. Acho que eu fui um pouco
contaminado com essa energia anos 70 do Hudinilson e de muitos outros artistas que
eu amo. Esse aquário, essa gaiola, essa balão morrendo falam um pouco sobre isso
também. São objetos que ao mesmo tempo servem para contemplação e para criar
vidas, vidas que se desenvolvem sobre os olhos e o controle daqueles que estão de
fora. Há algo de perverso nessa vontade de possuir coisas belas limitando suas vidas
a determinados espaços e formatos controlados, né? Então pensei num novo
trabalho, em 2011, chamado Caverna, como o mito de Platão. Era um aquário feito
com vidro jateado e dentro dele coloquei uma escada de uma gaiola de hamster que
tinha guardada no galpão. A primeira vez que mostrei esse objeto foi na Biblioteca da
Educação da UFRGS, depois botei no meio da Av. Borges de Medeiros e a última vez
que mostrei foi numa exposição numa galeria em São Paulo (depois disso ele quebrou
e se perdeu por aí). A escada está ali, o aquário vazio, não sabemos se algo está
para entrar ou se já saiu dali. No mito do Platão as pessoas vivem presas em cavernas
e só podem ver sombras de uma realidade externa, daí uma hora alguém sai de la e
descobre que oq achavam que era real na verdade eram só projeções. É a mesma
narrativa do Matrix, do Show de Truman entre outras. Esse despertar para uma
realidade maior e além do nosso meio. Mas daí no meu aquário eu coloquei vidro
jateado, que dá uma efeito de desfoque, quanto mais perto mais a gente vê, quanto
mais longe mais as coisas desaparecem. De longe a gente não vê a escada, por
exemplo, só quando se aproxima. E se a gente estivesse lá dentro do aquário a gente
não ia ver nada do que tem fora. Mas aí tem a escada. Uma possibilidade de trânsito,
circulação, movimento, ir e vir, descobrir, conhecer.

Pensando nisso eu volto pra 2008 de novo. Eu estava fazendo aquelas filmagens
clichês de paisagem em movimento através da janela do carro da minha mãe, quando
passei por um cachorro solto pelas ruas. “Cão sem rumo” foi o primeiro vídeo que
editei. Nesse momento eu comecei a pensar sobre a imagem em loop de
acontecimentos sem início ou fim. O que vemos é um cachorro que corre e não para,
saindo e entrando no enquadramento da tela. Essa figura, para mim, fala do desejo,
da potência e da angústia de estar em movimento pelo próprio movimento, sem
necessariamente chegar em algum lugar. Em uma sociedade marcada pela lógica da
domesticação e da padronização de percursos, o livro e persistente caminhar do cão
representa resistência. Como começa a trajetória de um gesto de arte, de um objeto
de arte ou de um artista? Por quais caminhos circulam e até onde podem ir?

É legal que um vídeo pode virar uma foto, né? Basta a gente separar os frames e
mandar imprimir. Cada pedacinho mostra um momento diferente do movimento
repetido do cão. Como cada foto 3x4 da minha irmã. Ou se pensar desde a foto da
minha mãe pequena no pátio de casa até a mão marcada que postei no Instagram,
também tem um movimento aí. Um único lugar, o mesmo lugar, mas muitas histórias,
muitas temporalidades, muitas possiblidades de pensamento e expansão. Depois eu
acabei me mudando dessa casa de infância, eu casei com um cara, morei seis anos
com ele, fiz um vídeo sobre isso também, colisão de partículas é o nome, é sobre a
gente estar tudo solto por aí, sem rumo, se debatendo, se arrastando, e de repente
um impacto, um encontro, uma deformação do percurso, uma transformação, tudo
diferente e os movimentos se somam e seguem. Depois fui morar no Rio de Janeiro,
fiquei dois anos lá, o mais longe que já fui do pátio, por enquanto, espero. Nesse
processo de distância, de estar sozinho, sem raizes ou vínculos fortes, percebi que o
pátio mesmo é meu corpo, que onde eu tô eu posso fazer casa, posso cultivar, habitar,
e fazer alguma coisa pra chamar de arte. Onde eu tô eu sou artista residente. Agora
depende de quem vai me reconhecer assim, é claro. Inventei um crachá pra isso, pra
ver se funciona, né, pra ver se alguém acredita em mim. Mas no fim de tudo isso, o
que percebi mesmo é que tudo é mais complexo do que parecia lá no começo: ilhas,
pátios, aquários, gaiolas, galpões, arquivos, sites na internet. É tudo entrecruzado, a
gente nunca sai ou entra de verdade, é tudo meio provisório, a identidade é uma
construção permanente, assim como o corpo, os lugares e mesmo a arte.

Olhando pro Eduardo menino do pátio aqui agora, nesse ponto que tô eu vejo que ele
percebe que a ilha é sempre maior e mais cheia. “Habitar e descobrir”, inventei que
seria minha grande missão.

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