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QUARTO DE DESPEJO: UM DIÁRIO DE TRAJÉDIAS

Luciana Bessa

1. Contexto

Quando surgiu em 1960, Quarto de Despejo: Diário de uma favelada causou,


literalmente, um verdadeiro estrondo na Literatura Brasileira. O principal questionamento:
pode-se considerar o relato do cotidiano, em forma de diário, Literatura?
O texto de cunho confessional íntimo e subjetivo atrai o leitor por estar centrado no
eu, um eu que expõe a vida, estabelecendo, dessa forma, uma ponte entre o escritor e o leitor.
As narrativas de introspecção, que podem ou não mesclar ficção e realidade, são várias. Dentre
elas: romance autobiográfico, a narrativa epistolar, o diário íntimo e ficcional e mesmo a
autobiografia e a auto ficção.
O que torna Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus
relevante é o fato de que, ao longo dos séculos, a escrita de si e o diário têm contribuído para
que os estudiosos possam compreender como o escritor encena a sua própria realidade, além de
colocar o leitor diante dos fatos do cotidiano que permeiam o processo de escrita. Além disso,
o texto discute temas caros a Política, a Economia, de modo geral, a todos que lutam por uma
sociedade mais igualitária, livre do racismo e da misoginia e por uma Literatura acessível a
todos.
Ela deve ser vista como um direito básico do ser humano, já que se trata de um
instrumento de instrução e de educação, que expõe, propõe, apoia e combate nos possibilitando
vivenciarmos dialeticamente os problemas, como declara Antonio Cândido1.

2. Um diário de tragédias

Entende-se por trágico algo que tem “caráter funesto, sinistro, desventuroso”
(FERREIRA, 1989, p. 1697). É preciso esclarecer que tragédia é um gênero dramático da
literatura que floresceu, sobremaneira na Grécia, sobretudo em Atenas, cujas personagens
mostram uma ação elevada que suscita terror e piedade, culminando por algum acontecimento

1
Cf. CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários Escritos, 1985.
funesto. Ao conceituar o trágico na modernidade, Schopenhauer ressalta tratar-se de “uma dor
inexprimível, o lamento da humanidade, o triunfo do mal, o desdenhoso domínio do acaso, a
irrecuperável degradação do justo e do inocente” (APUD WILLIAMS, 2002, p. 60).

A morte é uma libertação do sofrimento. Nas palavras de Schopenhauer (1958, p. 14) “(...) na
terra cada um sofre a pena da sua existência, e cada um a seu modo”. No decorrer da obra
analisada, somos testemunhas do padecimento de Carolina de Jesus e de sua vontade de
suicidar-se em momentos de completa fome.
Aristóteles, em sua Poética, nos diz ser a tragédia (gênero literário que aborda o sentido
do trágico) a imitação de uma ação importante e completa [...] e que suscitando a compaixão e
o terror tem por efeito obter a purgação dessas emoções. A parte mais importante seria a
disposição das ações. “(...) a tragédia é imitação, não das pessoas, mas de uma ação, da vida,
da felicidade, da desventura (...)”. E acrescenta: “Segundo o caráter, as pessoas são tais ou tais,
mas é segundo as ações que são felizes ou o contrário” (ARISTÓTELES, 1997, p. 25). O
ambiente parco - a favela - de recursos foi o responsável pelo sofrimento da família de Carolina
de Jesus. A vida dessa mulher negra, semianalfabeta, mãe de três filhos é uma sucessão de
dores.
Em seu diário, que se inicia no dia 15 de julho de 1955 e termina no dia primeiro de
janeiro de 1960 há o registro direto e sensível dos fatos doridos de sua trajetória. O texto inicia
com sua tristeza por ser aniversário de sua filha Vera Eunice. Carolina pretendia dar-lhe um
para de sapatos a ela. “Mas o custo dos generos alimenticios nos impede a realização dos nossos
desejos. Somos escravos do custo de vida” (JESUS, 2014, p.11). Não bastasse, ela não “tinha
um tostão para comprar pão” (JESUS, 2014, p.11) e passou o dia indisposta, porque estava
resfriada. Ou seja, doente, com fome e sem poder proporcionar aos filhos um único par de
sapatos. E Vera “não gosta de andar descalça”. (JESUS, 2014, p.12). O sentimento é de
desespero por não ter condições econômicas para criar os filhos.
Outro sentimento bastante forte descrito por Carolina é o nervosismo que ela sente
diante da realidade vivida. “Eu estava nervosa interiormente, ia maldizendo a sorte (...)”
(JESUS, 2014, p.12). Interessante notar que é através da leitura que ela consegue se acalmar e,
consequentemente, escrever. Além de ser um ato prazeroso e relaxante, a leitura estimula o
desenvolvimento da memória e da nossa imaginação, eleva nossa autoestima, nos deixa distante
da solidão, nos empurra para a realização de nossos desejos. No decorrer do texto, observamos
que Carolina é uma exímia leitora. “Aproveitei minha calma interior para eu ler. Peguei uma
revista e sentei no capim, recebendo os raios solar para aquecer-me” (JESUS, 2014, p.12). Ler
tornou-se uma necessidade na vida dessa catadora de papel, que depois de seus afazeres tinha
na leitura uma fuga da miséria na qual estava submetida. “Quando cheguei em casa era 22,30.
Liguei o rádio. Tomei banho. Esquentei a comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto
de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem”. (JESUS, 2014, p.12). Jorge
Luís Borges (1899- 1986), o autor de o Livro de Areia declarava que de todos os instrumentos
produzidos pelo homem, o livro é o mais assombroso deles2. Enquanto lemos, perdemos a
noção do tempo e de nossos problemas. O livro sempre é enriquecido pelo leitor, porque cada
vez que ele o lê, um novo fato é descoberto, um mistério é desvendado. É como se as palavras
apresentassem novas conotações. A leitura e a interpretação nunca são as mesmas.
Carolina é uma mulher forte e consciente de tudo o que acontece consigo e ao seu
redor. Ela sabe, dentre outras coisas, que “o pobre não repousa. Não tem o previlegio de gosar
descanso” (JESUS, 2014, p.12). Que a favela é um lugar imundo não só no plano físico. “Oh!
Se eu pudesse mudar daqui para um nucleo mais decente” (JESUS, 2014, p.14). Chegar à favela,
era o mesmo que chegar “no inferno”. (JESUS, 2014, p.14) e “A única coisa que não existe na
favela é solidariedade” (JESUS, 2014, p.16). Ela odeia as mulheres da favela e todos os dias sai
para trabalhar apreensiva e agitada, porque “Elas costuma esperar eu sair para vir no meu
barracão e maltratar meus filhos” (JESUS, 2014, p.19). A desunião e a intriga são a tônica desse
ambiente.
Para vencer todo esse sofrimento, Carolina resolve escrever um livro. “Vou escrever
um livro referente a favela. Hei de citar tudo o que aqui se passa” (JESUS, 2014, p. 20). Assim
como ler, escrever é uma forma que encontramos para expurgar nossas dores e, assim, como
Bentinho “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência3”. É preciso
salientar que Carolina de Jesus não escreve com o objetivo de passar seu tempo. Ela tem o
desejo deixar registrado o sofrimento pelo qual ela e seus filhos são impingidos no ambiente no
qual estão inseridos. Ela quer retratar as brigas, os xingamentos, a falta de humanidade entre
os próprios moradores, a esperteza dos comerciantes, a fome, isto é, a situação miserável que é
ter que morar na favela. Eis, aqui, a contribuição do Diário de Carolina. Diante de tantas pedras
no caminho, todos temos um ideal. “O meu é gostar de ler” (JESUS, 2014, p.26). A leitura,
além de fonte de conhecimento, possibilita a inserção do indivíduo na sociedade.
Ela simplesmente escrevia. No dia 20 de julho, ela registra: “Deixei o leito as 4 horas
para escrever”. No dia seguinte, enquanto a roupa corava ela sentou na calçada para escrever.
Um senhor que ia passando, perguntou: “- O que escreve? Todas as lembranças que pratica os

2
Cf. BORGES, Jorge Luís. Borges, oral. In: Obras completas, 1999.
3
Cf. ASSIS, Machado. Dom Casmurro, p. 14.
favelados, estes projetos de gente humana. Ele disse: - Escreve e depois dá a um crítico para
fazer a revisão” (JESUS, 2014, p.23). Assim como George Orwell (1903-1950) que escrevia
para expor mentiras, chamar atenção e atingir um público, Carolina Maria de Jesus escreve para
denunciar o comportamento daqueles que foram excluídos da sociedade.
Diferentemente das outras mulheres da favela que ficam falando uma das outras,
Carolina gostava “de ficar sozinha lendo. Ou escrevendo” (JESUS, 2014, p.25). Residir na
favela, era para a autora desse diário, “o pior cortiço que existe” (JESUS, 2014, p.25). Sua
comparação remete-nos à obra O Cortiço (1890), de Aluísio de Azevedo. Outro ponto em
comum, guardando é claro as devidas limitações de Carolina de Jesus, diz respeito às descrições
minuciosas presente nos dois textos. Aluísio de Azevedo detalha situações e acontecimentos de
forma escatológicas, comparando, muitas vezes, os moradores do cortiço a vermes em meio de
dejetos. O cortiço, que nessa obra é a personagem principal, também é comparada a uma floresta
que transborda de movimento e de cor, quase como um ser vivo, que vive e respira.
A favela é, para Carolina, o inferno. “Tenho a impressão que estou no inferno”. (JESUS,
2014, p.26). A todo custa ela queria sair desse ambiente horroroso. A escrita era sua salvação.
Mãe de três filhos de pais diferentes, Carolina não queria mais se envolver com homem
nenhum. Quando um dos moradores, seu Gino, veio convidá-la para ir ao seu quarto, ela
respondeu: “É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro
comprar um terreno para eu sair da favela” (JESUS, 2014, p.27). Eis que surge outro objetivo
da escrita de Carolina: ganhar dinheiro.
Outro ponto interessante é o (pouco) valor que Carolina atribuía aos seus escritos.
“Há tempos que eu pretendia fazer o meu diário. Mas eu pensava que não tinha valor e achei
que era perder tempo” (JESUS, 2014, p.28). O escritor, muitas vezes, não tem a exata noção da
importância de seu texto. Por isso a importância do leitor. O que seria dos autores e de suas
obras, se não houvesse um público-leitor? Não há uma arte sem público. “(...) o autor só adquire
plena consciência da obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros”. Isto quer
dizer que o público é condição do autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é a
sua revelação” (CANDIDO, 1985, p. 76). Sem público, o autor fica sem referência.
Em outro momento ela fala da inspiração para escrever. “Eu estava inspirada e os
versos eram bonitos e eu esqueci de ir na delegacia” (JESUS, 2014, p.29). Escrever pode até
parecer uma atividade fácil, mas não é. Exige esforço, dedicação, conhecimento no assunto e
domínio da língua.
Nesse sentido, lembramos da escritora Clarice Lispector (1920-1977), que cedo entrou
em contato com a linguagem literária. Há um texto belíssimo “As três experiências 4” em que
ela confessa que “A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias
vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por quê,
foi esta que eu segui”. Carolina, apesar de todas as adversidades vivenciadas, assim como
Clarice, escreve e absorta nesse processo esquece de realizar suas atividades diárias e
importantes, como ir à delegacia, porque recebeu uma intimação para seu filho, José Carlos.
Voltemos aos dias sofridos de Carolina. No dia 11 de maio, dia das mães, ela registra o
azul e branco do céu. É a natureza a “homenagear as mães que atualmente se sentem infeliz por
não poder realizar os desejos dos seus filhos” (JESUS, 2014, p. 30). Muitos são as dores de
Carolina, mas duas a deixam nervosa e com pensamentos suicidas: não ter dinheiro para
proporcionar o conforto para seus filhos e a fome. Ela registra que 13 de maio é um dia
simpático. “É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos (...) E assim
no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!” (JESUS, 2014, p. 31-
32). Esse livro poderia inclusive ser o diário de uma mulher com fome.
Apesar dos avanços tecnológicos, sociais e políticos pelos quais o Brasil passou nas
últimas décadas, a fome persiste como um problema vergonhoso e recorrente. Trata-se de um
processo de (má) distribuição de renda que gera as desigualdades sociais. Fornecer cestas
básicas ou dar dinheiro, através de programas de governo, está longe de ser a solução. Carolina
quase sempre dorme ou acorda doente pensando na falta de comida para ela e seus três filhos.
“Eu amanhecei nervosa. Porque eu queria ficar em casa, mas eu não tinha nada para comer (...)
Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o
Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos” (JESUS, 2014, p. 33). Na
verdade, a fome é o retrato da miséria humana.
A questão da fome se estende por praticamente todas as páginas do diário de Carolina.
A ausência de alimentos a leva a pensar a pôr fim em sua existência. No dia 17 de maio, ela
registra “Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres estão mal colocados, para
que viver?”.
A favela, ambiente em que Carolina e sua família habitam, é retratada como um lugar
desumano, amargo e triste, como vimos anteriormente. No dia 30 de maio, ela descreve um
grupo de favelados que chegaram à favela, “um lugar sem atração. Um lugar que não se pode

4
Disponível em: /www.revistaprosaversoearte.com/as-tres-experiencias-uma-belissima-cronica-de-
clarice-lispector/
plantar uma flor para aspirar o seu perfume, para ouvir o zumbido das abelhas ou o colibri
acariciando-a com seu frágil biquinho. O único perfume que exala na favela é a lama podre, os
excrementos e a pinga” (JESUS, 2014, p. 47). Para ela, qualquer pessoa ou animal em qualquer
lugar é mais feliz do que nesse ambiente hostil. “As aves deve ser mais feliz que nós. Talvez
entre elas reina amizade e igualdade. (...) O mundo das aves deve ser melhor do que dos
favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer”. (JESUS, 2014, p. 35) A
convivência entre os indivíduos é uma arte extremamente difícil, porque a intolerância cresce a
cada dia. “Que realidade amarga!” (JESUS, 2014, p. 35). Não é para menos. Carolina é catadora
de lixo. E muitas vezes cata comida no lixo para comer. “Os lixeiros haviam jogado carne no
lixo. E ele escolhia uns pedaços. Disse-me: - Leva, Carolina. Dá para comer”. (JESUS, 2014,
p. 40) “... achei um cará no lixo, uma batata-doce e uma batata solsa” (JESUS, 2014, p. 41).
Não é só Carolina que pega comida na rua. Seus filhos também. “Assim que ferveu eu puis o
macarrão que os meninos cataram no lixo” (JESUS, 2014, p. 41). Dentre os filhos, Vera é aquela
que reclama e sempre pede mais comida. Em uma dada ocasião, ela diz: “- Mamãe, vende eu
para a Dona Julita, porque lá tem comida gostosa” (JESUS, 2014, p. 42). A inocência de Vera
remete-nos a uma fala de Jesus Cristo antes de ser crucificado por seus algozes: “Pai, perdoa-
lhes, pois não sabem o que estão fazendo”5. Não há situação mais dorida para uma mãe do que
ouvir de sua filha que quer ser vendida, pois deseja ir para um lugar que ela tenha o que comer.
Todo esse contexto no qual estão inseridos leva Carolina a dizer que os favelados estão no
“quarto de despejo” (JESUS, 2014, p. 43) “... A favela é o quarto das surpresas” (JESUS, 2014,
p. 51). Ao recolher alimentos das ruas “...Percebi que no Frigorífico jogam creolina no lixo,
para o favelado não catar a carne para comer. Não tomei café, ia andando meio tonta. A tontura
da fome é pior do que a do alcool” (JESUS, 2014, p. 44). A fome leva a morte milhares de
pessoas ao redor do mundo. Além de matar, ela destrói emocionalmente, aos poucos, um ser
humano.
Para o autor de Dores do Mundo (1958), a dor é a finalidade da existência humana. “Só
a dor é positiva” (SCHOPENHAUER, 1958, p. 7). Os momentos felizes existem, mas são
efêmeros. Eles servem apenas para apaziguar o sofrimento humano. O filósofo afirma não
entender os sistemas metafísicos que explicam o mal como algo negativo; “pelo contrário, é
positivo, visto que se faz sentir”. (SCHOPENHAUER, 1958, p. 8). Carolina sente na pele e no
estômago essa dor que aniquila dia após dia.

5
Cf. Lucas 23:24
Diante de tantas pedras no caminho, Carolina se pergunta “será que Deus vai ter pena
de mim?” “... O José Carlos chegou com uma sacola de biscoitos que catou no lixo. Quando
eu vejo ele comendo as coisas do lixo penso: e se tiver veneno? É que as crianças não suporta
a fome” (JESUS, 2014, p. 46). A forme gera desnutrição, tontura, sensação de desconforto,
dores, fraqueza, raquitismo, anemia, dentre outras doenças. Carolina conclui que “Só mesmo
Deus para ter dó de nós” (JESUS, 2014, p. 48).
Em sua concepção, seu maior “dilema é sempre comida” (JESUS, 2014, p. 51). Não
pensar na falta de alimentos e nos filhos é uma forma que ela encontrou para evitar o sofrimento.
“... Quando estou com pouco dinheiro procuro não pensar nos filhos que vão pedir pão, pão,
café. Desvio meu pensamento para o céu. Penso: será que lá em cima tem habitantes? (...) Será
que lá existe favela? E se lá existe favela será que quando eu morrer eu vou morar na favela?”
(JESUS, 2014, p. 50). Essas dúvidas são recorrentes no caminho percorrido por essa mulher
batalhadora, que luta cotidianamente para sobreviver junto com seus filhos, em um lugar onde
se revolve os problemas com “paus, facas, pedradas e violências” (JESUS, 2014, p. 51). Um
ambiente complemente inóspito.
Diante dessas situações, Carolina concluiu que “A fome também serve de juiz” (JESUS,
2014, p. 52). Afinal, “Só quem passa fome é que dá valor a comida” (JESUS, 2014, p. 53). Por
comida, alguns morrem; outros se matam. É preciso salientar que a fome de Carolina é,
sobremaneira, de qualidade de vida, de ser boa mãe, de ser vista pela sociedade. A comida é
para ela um “espetáculo deslumbrante”.
Diante de tanta miséria, há momentos de revolta. “Podia dar uma enchente e arrazar a
favela e matar estes pobres cacetes. Tem hora que eu revolto contra Deus por ter posto gente
pobre no mundo, que só serve para amolar os outros”. (JESUS, 2014, p. 56). Revoltar-se é uma
forma que Carolina encontrou para expurgar as dores e as provações pelas quais ela tem que
passar cotidianamente. E, ao pensar na vida atribulada, que levava Carolina lembrou-se das
palavras de Frei Luiz que “Diz que Deus dá valor aos que dá valor só aos que sofrem com
resignação. Se o Frei visse que os seus filhos comendo gêneros deteriorados, comidos pelos
corvos e ratos, havia de revoltar-se, porque revolta surge das agruras” (JESUS, 2014, p. 86).
Diante da opressão nos revoltamos contra tudo aquilo que nos oprime. Embora vivendo sob
condições sub-humanas, revoltada com a vida que leva, Carolina ainda consegue usar a
imaginação para espantar as dores e dissabores “As horas que sou feliz é quando estou residindo
nos castelos imaginários” (JESUS, 2014, p. 60). Em seu livro De Anima 6, Aristóteles, descreve

6
Cf. ARISTÓTELES. Sobre a alma. Obras Completas. Volume III. Tomo I, 2010.
o homem como um animal dotado de algumas faculdades especiais, dentre elas destaca a
imaginação e o intelecto. O pai da Poética defendia que a base de todo o conhecimento humano
provém da sensibilidade, já que o intelecto precisaria, portanto, desse elemento, para se
atualizar e se tornar inteligível. Ademais, o filósofo grego acreditava que a faculdade
imaginativa possibilitaria ao indivíduo produzir imagens a partir do contato direto com os
objetos concretos presentes em nossa realidade e tais imagens ficariam retidas em nossa
memória.
Até a chuva, benção para o Nordestino, é para Carolina um sofrimento, porque é um dia
que ela não pode catar papel. É, portanto, dia de fome. “O dia que chove eu sou mendiga. Já
ando trapuda e suja. Já uso o uniforme dos indigentes” (JESUS, 2014, p. 61). Essa “roupa”
tornava não só Carolina, mas os outros favelados como pessoas invisíveis ao seio da sociedade.
Essa invisibilidade, paradoxalmente, os ajuda a recolher comida do lixo e a não escutar certas
ofensas. “... Passei na fábrica (...) e catei uns tomates. O gerente quando vê repreende. Mas
quem é pobre tem que fingir que não ouve” (JESUS, 2014, p. 71). Ser pobre é ser invisibilizado
pela sociedade, é ter sua dignidade e direitos confiscados. É inclusive ser achincalhado por
outro pobre e não ter de seu semelhante empatia. “Porque será que o pobre não tem dó do outro
pobre?” (JESUS, 2014, p. 83).
Por esses e outros fatores, Carolina começa a achar sua “vida insípida e longa demais”.
E associa a cor da natureza à sua alma “O dia está triste igual a minha alma” (JESUS, 2014, p.
89). Embora guerreira, é nítido que essa mulher vive cansada, como ela mesma descreve, física
e mentalmente.
Carolina é uma mulher que exala o desejo de uma vida melhor e digna. No dia 15 de
julho, aniversário de sua filha Vera Eunice, ela quer fazer uma festinha, mas tem consciência
que “isto é o mesmo que querer agarrar o sol com as mãos” (JESUS, 2014, p. 93). É uma mulher
que entra em desespero, quando não tem papel na rua para catar. “Passei no Frigorífico. Havia
jogado muitas linguiças no lixo. Separei as que não estavam estragadas. (...) Eu não quero
enfraquecer e não posso comprar. E tenho um apetite de Leão. Então recorro ao lixo” (JESUS,
2014, p. 93). O lixo tornou-se a “salvação” de Carolina.
Uma de suas grandes tristezas é acordar pela “manhã e não ter nada para comer”. O
sentimento é de morte. “Pensei até em suicidar. Eu suicidando-me é por deficiência de
alimentação no estomago. E por infelicidade eu amanheci com fome” (JESUS, 2014, p. 99).
Essa angústia logo desaparece, quando ela consegue o que comer. Todo esse peso que Carolina
carrega fez desaparecer o sorriso de seu rosto “Fiquei olhando minha filha sorrir, porque eu já
não sei sorrir” (JESUS, 2014, p. 102). O sorriso é sinal de alegria, de contentamento, de vontade
de viver. É a alma em estado de êxtase. Mas a tristeza e o nervosismo são os sentimentos que
perseguem Carolina “Hoje eu não estou nervosa. Estou triste. Porque eu penso as coisas de um
jeito e corre de outro” (JESUS, 2014, p. 104). O outro jeito que os acontecimentos ocorrem na
vida de Carolina é sempre marcado pela tragédia, que parece não ter dia, nem hora para acabar.
A obra analisada é uma narrativa sensível sobre a realidade de uma mulher negra. O
individual e o coletivo em um mesmo texto nos faz compreender a vida de pessoas que foram
excluídas da sociedade e jogadas em um “Quarto de despejo”, onde impera a violência, a
desunião, as desavenças e a falta de solidariedade.
O tom trágico é a tônica do Diário de Maria Carolina de Jesus, sujeito e objeto de sua
própria narrativa. Nele vemos a dor, o sofrimento, violência, brigas, morte e muita fome, além
é claro, do destino, do infortúnio, da má sorte, das adversidades agindo sobre as indivíduo.
Carolina, catadora de lixo, mulher negra, cônscia de suas responsabilidades, ética em suas
atitudes, lutou bravamente por sua vida e de seus filhos.

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