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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
ORIENTADORA: Profª. Drª. Norma Musco Mendes

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CRISTÃ EM


ORÍGENES

Rio de Janeiro
2003
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II

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
ORIENTADORA: Profª. Drª. Norma Musco Mendes

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CRISTÃ EM


ORÍGENES

UIARA BARROS OTERO

Dissertação apresentada à Coordenação


do Programa de Pós-Graduação em
História Social da Universidade Federal
do Rio de Janeiro como requisito para a
obtenção do título de Mestre em História.

Rio de Janeiro

2003
III

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CRISTÃ EM ORÍGENES

Uiara Barros Otero

Dissertação submetida ao corpo docente do Instituto de Filosofia e


Ciências Sociais(IFCS) da Universidade federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em
História Social.

Examinadores:

Profª Drª _____________________________________


Orientadora

Profª Drª _____________________________________

Profº Drº_____________________________________________

Rio de Janeiro
2003
IV

Ficha Catalográfica

OTERO, Uiara Barros.


A construção da identidade cristã em Orígenes/ Uiara
Barros Otero. Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGHIS, 2003.
108 p.
Dissertação(Mestrado) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História Social, 2003.
1. Cristianismo 2. Orígenes
3. Identidade 4. Apologias
I. Título
V

Agradecimentos

Com grande prazer, chego à conclusão desta Dissertação de Mestrado, tendo


sido aluna matriculada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, cuja unidade se
circunscreve ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, no núcleo de Pós-Graduação
em História Social.
Certamente que o trabalho de um pesquisador seria inútil sem o criticismo e o
reconhecimento de seus pares. A pesquisa científica suscita uma reflexão de análise
bastante dinâmica, ainda mais quando se acredita nas distintas possibilidades de
construção do seu objeto, condição que só vem enriquecer o campo de conhecimento.
Neste percurso acadêmico, como historiadora, é com muito prazer que venho dar a
conhecer, aqueles que caminharam conosco e contribuíram para que esta pesquisa se
tornasse possível. Dentre eles, destaco a minha orientadora, Profª Norma Musco
Mendes, que tem me acompanhado desde a graduação e efetivamente me conduziu nas
fronteiras da pesquisa histórica. Realmente, agradeço imensamente a liberdade de
pensamento e de escrita, concedida pela minha orientadora nas construções do meu
objeto de pesquisa e por ter acreditado na sua realização. Além disso, agradeço a
compreensão e apoio recebido nas dificuldades enfrentadas, naquelas situações do
cotidiano onde a amizade se faz também indispensável.

Devo lembrar-me do Laboratório de História Antiga – LHIA, que através de


seus coordenadores, me introduziu nos eventos acadêmicos, exercitou-me nos debates
científicos, facilitou o contato com os mestres que tem dedicado sua história de vida,
inclusive, ao conhecimento do campo da História Antiga no Brasil e investindo num
contingente humano para que se tornem também pesquisadores. Agradeço ao profº
André Chevitarese, que participou das expectativas e apreensões do processo de exame
de seleção do mestrado, acreditando no projeto desenvolvido naquela ocasião.
Também devo mencionar a profª Neide Thelm, pela avaliação crítica desenvolvida em
relação ao projeto inicial através do curso ministrado na grade curricular. Sobretudo,
agradeço a profª Regina Bustamante, que me acompanhou na maioria das
VI

apresentações dos eventos acadêmicos de que participei e, fez junto com o profº Ciro
Cardoso(UFF-CEIA), as avaliações pertinentes à pesquisa quanto ao exame de
qualificação. Devo lembrar-me da profª Regina Cândido, a qual concedeu-me a
oportunidade de fazer um curso preparatório de Teoria e Método em História
Antiga(UERJ-NEA), visando os exames de seleção de Mestrado. Lembro-me também,
do auxílio prestado pelas professoras Lenice Gomes e Mônica Selvatici que
contribuíram nas traduções das línguas estrangeiras. A todos os amigos do LHIA,
minha gratidão pelo encorajamento prestado durante todo o curso.

Quero deixar registrado meu agradecimento à profª Marília Facó Soares, do


núcleo do PPGAS, Museu Nacional, pelas contribuições analíticas desenvolvidas
através da disciplina cursada sob sua orientação - Introdução à Análise do Discurso.
As discussões apresentadas na ocasião, foram fundamentais para o entendimento e
aplicação de seus arcabouços teóricos e metodológicos no objeto desta pesquisa. Sou
grata também às professoras Elsa Ponce e Graça Schalcher, ambas de formação
filosófica, que teceram alguns comentários bastante úteis à pesquisa.

Concedo mérito ao PPGHIS por vários motivos: por ter me concedido a


oportunidade de cursar o Mestrado em História Social neste núcleo, também em ter
dado crédito ao projeto inicial de pesquisa; pelo empenho na obtenção da Bolsa de
estudo(SR-1 e CNPq), pela qual sou imensamente grata, por tê-la recebido
integralmente durante os dois anos de curso. O apoio financeiro permitiu o
desenvolvimento da pesquisa e o investimento necessário para a participação em
eventos até em outros Estados; pela compreensão nas dificuldades enfrentadas e o
apoio concedido; e finalmente, por ter chegado até a conclusão deste trabalho sob a
orientação da minha orientadora profª Drª Norma Musco Mendes.
Em síntese, durante toda esta caminhada devo reconhecer a quem me deu força
maior: “bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das
misericórdias e o Deus de toda consolação” (II Cor. I, 3).
VII

RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo principal, analisar o processo de construção


da identidade cristã em Orígenes, através da obra “Contra Celso”(248 d.C.),
qualificada conforme o gênero literário das apologias. A pesquisa se limita aos círculos
da expansão cristã no Oriente Próximo, no qual se identifica uma característica bastante
profunda em relação à formação, ao debate e desenvolvimento das doutrinas da Igreja.
As análises também são desenvolvidas com interlocuções com outras obras apologéticas
de língua grega, produzidas no II século d.C.
Investigaremos como a identidade cristã de caráter monoteísta, pôde ser
construída e desenvolvida no interior das estruturas políticas, sociais e culturais do
Império Romano, em contraposição ao sistema de representação politeísta vigente.
Compreendemos o estudo em relação ao legado da cultura greco-romana e às
transformações operadas com a entrada de novos cultos provenientes de regiões
diversas e de releituras e apropriações dos sistemas filosóficos clássicos e helenísticos.
O debate doutrinário produzido entre as comunidades cristãs e o papel desempenhado
pela liderança cristã fomentam o controle e ordenação das doutrinas consideradas
ortodoxas e excluem outras formações que não atendem a essas características.
Investigaremos neste processo de construção da identidade, as condições sócio-
históricas de produção dos discursos e dos sujeitos responsáveis por sua elaboração.
Estratégias discursivas são estabelecidas sob categorias profundamente filosóficas e
transcendentais, para explicar quem são os cristãos, a quem adoram, suas formas de
culto.
VIII

ABSTRACT

The main purpose of this dissertation is to analyze the process of construction of


the Christian identity in Origen, through the work "Against Celsus" (248 A.D.),
identified with the literary gender of the apologies. The research is limited to the circles
of the Christian expansion in the Near East, in which a very distinctive characteristic is
observed in relation to the formation, to the debate and the development of the doctrines
of the Church. The analyses are also developed in dialogue with other Greek apologetic
works, written in the II century A.D.
We will investigate how the Christian identity based on a monotheist belief was
built and developed inside the political, social and cultural structures of the Roman
Empire, in opposition to the dominant polytheist system of representation. Our study
considers the legacy of the Greco-Roman culture and the transformations operated by
the coming of new cults of different areas and of new readings and appropriations of the
classical and hellenistic philosophical systems. The doctrinaire debate produced inside
the Christian communities and the role played by the Christian leadership foster the
control and ordering of the new orthodox doctrines and exclude other formations that do
not fit in those characteristics.
We will investigate, in the referred process of identity construction, the socio-
historical conditions of production of the speeches and of the subjects responsible for
their elaboration. Discursive strategies are established under deeply philosophical and
transcendental categories, to explain who the Christians are, whom they adore, their cult
forms.
IX

ÍNDICE

INTRODUÇÃO, 1

1. ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA E DELIMITAÇÃO DO OBJETO


DE ESTUDO, 15

2. DIVERSIDADE RELIGIOSA E FILOSÓFICA NO IMPÉRIO


ROMANO, 24
2.1. O Politeísmo e o Monoteísmo, 24
2.2. Escolas Filosóficas Regionais, 37

3. ORGANIZAÇÃO E AFIRMAÇÃO DO CRISTIANISMO, 45


3.1. O Debate Doutrinário, 45
3.2. Liderança Cristã e Literatura
Apologética, 54
3.3. Estratégia Discursiva na Apologia de
Orígenes, 64

4. A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CRISTÃ: SISTEMA DE


REPRESENTAÇÕES, 73

5. CONCLUSÃO, 95

6. BIBLIOGRAFIA, 101
1

INTRODUÇÃO

“Uma vez que, excelente Diogneto, vejo a tua


ardente aspiração por conhecer como os cristãos
cultuam a Deus, e as tuas perguntas muito claras e
cuidadosas a respeito deles: quem é esse Deus em
que depositam confiança; como se explica que todos
os seus adoradores desdenhem o próprio mundo e
desprezam a morte; por que não consideram deuses
aqueles que os gregos têm por tais; qual a razão de
não observarem a superstição dos judeus; que
significa a viva afeição que mutuamente se dedicam;
por que esse novo gênero ou estilo de vida só
começou a existir agora e não antes.”
(“Epístola a Diogneto”, 1)

Com essas palavras do autor anônimo da Epístola a Diogneto1 , introduzimos o


nosso texto, por acreditarmos que elas mostram as maiores inquietações entre
identidade e alteridade nas relações existentes entre politeísmo e monoteísmo na
antiguidade. Quem são esses cristãos 2 ? Como os cristãos responderam e construíram
parâmetros de identificação ? As respostas serão construídas e debatidas neste trabalho.
Como o autor da Carta acima descreveu: por que esse novo gênero ou estilo de vida só
começou a existir agora e não antes?3 Por que dá lugar aqui ou, por que se explicar ?
São questões que envolvem a análise do processo de construção da identidade cristã, o
qual envolveu a criação de sistemas classificatórios que davam sentido às práticas e às
relações sociais.

Problematizamos, assim, a construção da identidade cristã nos séculos II e III


d.C., quando percebemos um distanciamento entre cristianismo e judaísmo, e o
acirramento frente ao politeísmo, na busca do processo de definição sobre suas
práticas religiosas. Selecionamos um marco cronológico tão amplo como este, porque
pretendemos analisar o processo de construção da identidade a partir de diferentes

1
(s/a. In: Padres Apologistas, 1995: 19-30). Esta epístola é integrada ao gênero literário da apologética
cristã. Segundo H. I. Marrou, é provável que tenha sido escrita no final do séc. II por volta dos anos 190-
200 d.C., destinada a um pagão culto.
2
Segundo os registros neotestamentários(A.D.), os discípulos de Cristo foram chamados de
cristãos(Cristianou,j ) pela primeira vez, na cidade de Antioquia(Atos dos Apóstolos, 11: 26).
3

“kai. ti` dh` pote kainovn tou>to ge`noj h.`


e`pith`deuma ei`sh>lqen ei`s to,n bi`on nu>n
kai` ou` pro`teron”
2

contextos e situações de conflito que, no entanto, mantêm uma dinâmica própria e


indicam as estratégias e o sistema de representações criado diante da alteridade. Ao
partirmos do século II, temos em foco o contexto das perseguições aos cristãos
decretadas pelos imperadores romanos, que se estende até a primeira metade do III
século d.C. de forma assistemática, ou melhor, pouco contínuas, distanciadas por certos
intervalos de tempo e com uso de violência em diferentes formas. Segundo C. Lepelley,
estas perseguições assumiram uma característica local, resultado de uma intolerância
religiosa do governador de província conforme modalidades particulares(1969: 30-31).
Nesta situação, intercalavam-se períodos de uma relativa paz. Em autodefesa e na
tentativa de justificarem-se perante seus algozes os cristãos, em contraste com o
politeísmo greco-romano e em meio a este conflito, deixam transparecer em seus
discursos, atributos que pretendem marcar a diferença no contexto das relações sociais
vividas e práticas específicas assumidas. Uma série de narrativas são produzidas neste
contexto, as quais denominamos de apologias.

A nossa pesquisa está sendo norteada pelos seguintes questionamentos: Qual o


sistema de representações que definiu e determinou a identidade cristã, dando sentido à
diferença? Como os cristãos apontados nos debates intelectuais do período, se
posicionam no ambiente da cultura greco-romana? Na construção da identidade, quais
foram as condições sócio-políticas e religiosas de seu aparecimento 4 , reforço, e
ordenamento numa regularidade discursiva que se apresentava com poder de
afirmação? Todas as questões surgiram da leitura de nosso documento princ ipal
intitulado Contra Celso(248 d.C.), de Orígenes, considerado um dos pais da Igreja do
Oriente, e outras fontes apologéticas de língua grega empregadas como auxiliares, tais
como: Aristides de Atenas – Apologia; Teófilo de Antioquia – A Autólico; Atenágoras
de Atenas – Petição em favor dos cristãos; A carta a Diogneto), obras que precederam a
de Orígenes, datadas provavelmente no séc. II d.C. Essas obras despertaram a
necessidade de uma análise mais ampla para a investigação de um conjunto de
enunciados de produção simbólica e discursiva que se relacionam no processo de
construção da identidade cristã.

4
Ao fazermos menção às condições de aparecimento não es tamos nos referindo à origem, mas sim,
tomando por referência as proposições defendidas por Foucault quanto à análise do discurso, nas séries de
formações discursivas, quando efetivamente se constituem, nas margens de sua contingência, o “lugar” de
acontecimento. Conferir em A ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
3

Esses questionamentos direcionam o encaminhamento da nossa pesquisa,


tentando articular a construção da identidade cristã em contraste com outros grupos nos
quais se defronta. No nosso entender, o processo de construção da identidade ocorre
numa dinâmica relacional , quer dizer, de distinção entre “nós” e “eles” e em estreita
relação de poder. No caso específico da religião cristã daremos prioridade às
implicações sociais da conversão. Não analisaremos o ato da conversão em si, mas sim
as correlações que dela advêm: a nomeação e identificação como cristãos, e como sinal
de pertença a uma comunidade específica, quer dizer a conversão como ato
performativo: “tornar-se” cristão.

Se para “ser cristão” implicava a negação do “outro”, isto é, significava não


admitir quaisquer similaridades com o politeísmo 5 , imaginemos os conflitos operados
no interior de formações históricas específicas. Várias foram as acusações feitas pelos
pagãos aos cristãos, de desintegração de práticas aceitas e de princípios legitimadores da
autoridade do poder romano. Estaremos atentos para o fato de que os cristãos estavam
inseridos dentro de um sistema hierarquicamente organizado e fundamentado na
tradição. Para um melhor entendimento dessas características transcreveremos uma
leitura dessa especificidade romana:

“O Império Romano teve na cidade o foco essencial para difundir uma forma de vida
comum que integrasse a comunidade. A cidade foi a célula -base do sistema imperial romano,
tanto no plano político, econômico, social, cultural e religioso. (...) A religião oficial era um
componente importante da vida cívica pois o culto público sedimentava a solidariedade entre a
comunidade. Uma forma de expressão de fidelidade a Roma era a observância das práticas
religiosas, que faziam parte integrante da civilização romana. (BUSTAMANTE, R. 1999: 326).

A elite dirigente nas cidades considerava que a observância da tradição religiosa


deveria manter a concórdia entre os deuses e os homens, e conseqüentemente assegurar
a estabilidade romana. Paralelamente, a diversidade de expressões religiosas era aceita
desde que os princípios tradicionais fossem respeitados pelos seus praticantes, e
mantivessem os valores essenciais normativos do Estado. O ideal cívico e municipal

5
É assim que determinado grupo se enxerga, identificando-se e marcando a diferença para que exista;
pressupõe o não reconhecimento de nunhuma partilha de elementos identitários com o outro, oposto.
Utilizaremos neste trabalho, o termo politeísmo em relação às múltiplas divindades reverenciadas pelas
distintas manifestações religiosas presentes no Império Romano e, politeísta, aos adoradores dessas
múltiplas divindades. Esses termos serão empregados em substituição ao paganismo e pagão(paganus),
expressões utilizadas pejorativamente, segundo P. Brow, só a partir do IV século d.C. na litertura
cristã(1997: 41)
4

era um forte componente do politeísmo. Coexistiam o culto às divindades locais, o


culto ao gênio do imperador, os quais se expressavam pela participação nas festas
religiosas. Em contraponto a tais práticas boa parte dos cristãos esquivaram-se de
prestar juramento ao gênio do imperador e aos gênios locais, fazendo com que as elites
municipais resistissem ao cristianismo:
“Nesta mesma linha, Dupuis acredita que as diversas formas da religião tradicional
pareciam a muitos indispensáveis à vida cívica e à manutenção da concórdia frente ao
cristianismo, na medida em que havia muitas dissensões e intolerância no seio da Igreja Cristã e
que se constituíam numa religião exterior à cidade” (apud BUSTAMANTE, R. 1999: 329).

Dentro deste contexto do Império Romano do IIº ao IIIº século d.C, pretendemos
focalizar o conflito entre monoteístas e politeístas. Por outro lado, no seio deste
conflito pretendemos identificar pela análise dos discursos apologéticos aqueles que
passaram a ser chamados ou se auto denominaram de cristãos, construindo sistema de
representações de uma identidade diferenciada que se contrapunha àquela
institucionalizada e legitimadora do status quo6 .

Tendo em vista, estas prerrogativas, nossos objetivos se concentraram em:


delimitar o contexto histórico e social do Império Romano nos séculos II e III d.C., no
qual se inserem as relações entre “os cristãos” e “os outros” tendo em vista a
diversidade de práticas religiosas e filosóficas; identificar o confronto social das
condições de aparecimento e ordenamento da identidade cristã com base na literatura
apologética grega produzida entre o segundo e terceiro séculos, no esforço de
sistematização de um corpo doutrinário que caracterizou os embates intelectuais do
período; identificar e analisar as estratégias implementadas para a construção da
identidade cristã através de um sistema de representação que atribuía sentido às práticas
sociais, símbolos, valores e auto-imagens que permitiram manter unidos grupos de
pessoas que, se identificando culturalmente, se reconheciam como iguais e se
distinguiam dos “outros”.

Para alcance de tais objetivos, nosso objeto de pesquisa se sustenta no


contexto relacional do processo de construção de identidades, isto é, uma determinada
identidade(x) depende para existir de algo fora dela, que difere, de outra identidade(y).

6
Principalmente nos referimos as elites dominantes que afirmavam uma moral distanciadora entre os
“superiores” e seus “inferiores”.
5

Fazemos uso das construções teóricas na perspectiva dos estudos culturais acerca da
identidade e diferença, categorias consideradas interdependentes 7 . Kathryn Woodward
e Tomaz Tadeu da Silva(2000: 9; 74) defendem que a própria definição de identidade se
complementa na diferença, pois toda identidade se define pelo o que ela não é. Essa
diferença é sustentada pela exclusão, pressuposto que já inclui a análise das relações
sociais vividas num contexto cultural específico. No interior dessas relações as
identidades assumidas operam o processo de incluir/excluir, demarcando fronteiras
entre nós/eles e classificando, o que significa dividir e ordenar o mundo social em
grupos e hierarquizar, privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim
classificados(SILVA, T. 2000: 82). Identidade e diferença são resultado de um
processo de produção simbólica e discursiva, onde se operam relações de poder. Para
Stuart Hall essa operação se efetiva à medida em que “as identidades são construídas
dentro do discurso, produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no
interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas
específicas”(2000: 109).

Para simplificar, adotamos o modelo esboçado por Tomaz T. da Silva em que


define a identidade como sendo: construção, efeito, um processo de produção, uma
relação, um ato performativo(dando idéia de movimento, transformação), instável,
contraditória, fragmentada; ligada a sistemas de representação simbólica(uma forma de
atribuição de sentido). Em contrapartida a identidade não é: fixa, estável, coerente,
unificada, homogênea, definitiva, acabada(SILVA, T. 2000:89). Por esta razão esta
pesquisa diz respeito a identidade cristã compreendida na análise da literatura
apologética cuja autoria representa um segmento específico dentro do cristianismo, que
acompanha e participa das transformações operadas no Império Romano e da cultura
helenística, o que nos faz afirmar que as identidades também são contestadas e
disputadas8 . A identidade então, tem um significado cultural e socialmente atribuído.

A partir desse quadro, reconhecemos o processo de construção de identidade


cristã em co-relação com a alteridade, daqueles que são classificados como

7
Temos como base conceitual as análises teóricas desenvolvidas por três pesquisadores reunidos em uma
só obra: Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. SILVA, T. T.(org), HALL, S., e
WOODWARD, K. Petrópolis,RJ: Vozes, 2000.
8
Haja vista as discussões diferenciadas operadas por distintas tendências dogmáticas no cristianismo.
6

“não-cristãos”. Torna-se interessante nos discursos religiosos, este contexto relacional


de auto-percepção, uma vez que classificar-se como cristão implicava também, na
utilização de estratégias que atraíssem a adesão e o comprometimento do indivíduo
chamado a compartilhar de tal identificação. A capacidade de auto-atribuição nos
processos de inclusão e exclusão e critérios de classificação, não eliminam a
interdependência das interações entre os grupos sociais, pois a identidade social e
cultural não se definem em isolamento. Inclusive essas condições permitem a
capacidade de um indivíduo ou grupo fazer suas escolhas num processo de articulação,
implicando uma seleção de traços culturais, símbolos identitários que caracterizarão a
pertença ao grupo.

Outra consideração teórica a ser feita diz respeito ao papel da linguagem neste
processo de produção simbólica, uma vez que, interpretaremos a identidade e diferença
como resultados de atos de criação lingüística, como produtos do mundo cultural e
social; identidades têm que ser nomeadas, compreendidas dentro de sistemas de
significação nos quais adquirem sentido(SILVA, T. 2000: 76,77). Todo esse esforço se
traduz num trabalho discursivo que procura dar uma unidade, uma forma construída de
fechamento. A construção da identidade cristã em Orígenes, será analisada neste
processo de elaboração discursiva. Isto corresponde à elaboração de uma representação
social, que segundo Moscovici, se verifica através de dois processos: o da objetivação9 ,
em que se concede um contorno à determinadas idéias ou noções; o da ancoragem que
visa assegurar a vinculação social da representação entre os membros de um mesmo
grupo, operando a atribuição de um valor funcional a seu conteúdo específico, uma vez
que “as representações integram, com efeito, conhecimentos essenciais, do ponto de
vista instrumental e no nível do sentido comum, com a finalidade de que todos os
membros de um determinado grupo recorram a um mesmo capital
cognitivo”(MOSCOVICI, S. apud CARDOSO, C. 2000: 9, 10). Por conseguinte, as
representações sociais têm entre suas características a de facilitar a comunicação,
justamente por assegurar este capital cognitivo comum entre seus membros(Ibid.,
2000: 23). De fato identificamos nas narrativas de Orígenes em Contra Celso, a
vontade de esclarecer seu público, principalmente ao dirigir-se aos débeis na fé, para

9
Para o autor compreende três fases: da construção seletiva, da esquematização estruturante e da
naturalização(MOSCOVICI, S. apud CARDOSO, C. 2000: 9).
7

familiarizá- los com a doutrina cristã 10 , a fim de que os mesmos não se deixem levar por
falsos discursos, e ao mesmo tempo se identifiquem com todo o conteúdo simbólico
correspondente à fé cristã.

A investigação sobre a construção da identidade cristã baseou-se na análise da


documentação textual através da prática analítica denominada de análise de discurso.
Partimos da premissa que os sistemas de representação das identidades são construídas
dentro e não fora das formações discursivas e narrativas de uma sociedade, as quais
devem ser analisadas se entendidas como práticas culturais inseridas em contextos
históricos específicos. Optamos portanto, pela análise de discurso, cuja aplicação se
baseia principalmente nos seguintes pressupostos: os textos são entendidos como
produtos culturais, como formas empíricas de uso da linguagem verbal, oral ou escrita,
imagens ou outros sistemas semióticos, tais como, sons e gestos. Os textos são
analisados como discursos porque são considerados como práticas sociais inseridas em
determinados contextos históricos e condições culturais de produção, as quais envolvem
todo o processo de interação comunicacional: produção, circulação, consumo,
significados, sentidos.

É imprescindível a comparação com outros discursos que circulam na mesma


época de produção, quer dizer, a intertextualidade e a heterogeneidade dos textos,
objetivando-se enfocar os significados do autor e a recepção das mensagens. Esta forma
de operacionalização da documentação de natureza diversa permite que o investigador
identifique os “modos de mostrar”- (distintos usos da linguagem e de outros sistemas
semióticos pelos quais são construídas as formas de discursos existentes no processo
comunacional)-, através dos quais se constroem os “modos de interagir”- (uso da
linguage m e demais sistemas semióticos, os quais constroem as identidades e relações
sociais assumidas no processo comunicacional)- e os “modos de seduzir”, que de forma
positiva ou negativa apresentam os valores, empatias, aversões, associadas ao contexto
de produção dos discursos em estudo(PINTO, M. 1999:23). Esta prática analítica nos
leva à investigação dos processos de identificação, identidade, produção, consumo e
regulação ligados à produção dos discursos de natureza diversa que integram o nosso

10
“nosso empenho principal é familiarizar, no possível, a todos os homens com a totalidade das
doutrinas cristãs.” (Contra Celso, VIII, 52).
8

corpus documental. Objetivamos analisar a incidência dos discursos cristãos na vida


social, como estratégias de hierarquização e de diferenciação, e de disputa da
hegemonia de fala na sociedade11 .

Assim, pretendemos interpretar os discursos produzidos pelos cristãos no


interior das relações sociais do Império Romano, particularmente no que diz respeito ao
seu posicionamento em relação às cidades, “célula-base do sistema imperial romano,
tanto no plano político, econômico, social, cultural e religioso” (BUSTAMANTE, R.
1999: 326). Com base na releitura dos discursos sobre o cristianismo, elaborados entre
os II e III séculos d.C., pretendemos desenvolver a análise de que houve certas
particularidades e diferenças, respeitando contextos específicos, que apontam para
divergências nas concepções cristãs em torno da relação entre política e religião. Para
tanto nos deteremos nas transgressões às práticas sociais da época desenvolvidas pelos
cristãos e no estudo do próprio conflito entre cristãos e politeístas, na medida em que
foi no âmbito destes conflitos que se construiu a identidade cristã. Neste entendimento
podemos aplicar a interpretação de Stuart Hall, o qual defende que a identidade é um
processo em que nos interpela, nos convoca para assumirmos lugares como sujeitos
sociais de discursos particulares(2000:111,112).

Nosso recorte temático, incide sobre uma série de narrativas, dando ênfase ao
lugar das palavras, ou melhor, do discurso na história, produzindo efeitos de sentido.
Averil Cameron (1986) situa esta necessidade entre os pesquisadores do cristianismo e
paganismo, de irem além de um aspecto puramente religioso ainda cercado de
concepções gibbonianas que identificam o Império Romano cercado de superstição e
credulidade. A autora propõe uma exp lanação mais centrada deste fenômeno histórico
ressaltando que “as origens sociais do cristianismo primitivo teve um longo percurso; é
tempo de retornar à sua interpretação” (1986: 270). A. Cameron assim louva os
esforços contemporâneos em voltarem sua atenção para a linguagem, seja quanto à
textualidade, ou mesmo no sentido mais amplo de Foucault, o discurso. Este último é o
sentido por nós adotado nesta pesquisa. Foucault relaciona o discurso à noção de

11
Proposta de análise que se aproxima à escola de discurso francesa, cujos nomes mais influentes foram
Michel Foucault e Michel Pêcheux, em PINTO, M. J. Comunicação e discurso: introdução à análise de
discursos. São Paulo: Hacker Editores, 1999. Conferir nos próximos parágrafos uma maior aplicação
conceitual do discurso.
9

prática social, de acontecimento, ao “dar lugar à”; no âmbito da materialidade ele se


efetiva, que é efeito, e consiste na relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação,
seleção de elementos materiais. Para isto, reforça a característica de exterioridade, que
significa não passar do discurso para um núcleo interior e escondido, para o âmago de
um pensamento ou de uma significação que se manifestaria nele; mas, a partir do
próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade, passar as suas condições
externas de possibilidade, àquilo que dá lugar a série aleatória desses acontecimentos e
fixa suas fronteiras (FOUCAULT, M. 2001: 53 e 57).

Nesta perspectiva, torna-se fundamental a articulação entre linguagem e


ideologia, uma vez que, para a análise de discurso a língua é o lugar material no qual se
realizam os efeitos de sentido; é o lugar privilegiado onde os sujeitos se valem para
controlar, selecionar, incluir, excluir o que deve e pode ser dito, de um determinado
lugar social, de diferentes posições 12 . Logo, o discurso é um lugar de conflito, de luta
de vozes, com outros discursos, e também, embates entre discursos dominantes e
subordinados. Nele se realizam várias entradas subjetivas, produtoras de sentido.
Neste caso, a ideologia para a análise de discurso, a partir da linguagem, é um
mecanismo estruturante do processo de significação, é operatória. Cabe então a análise
de como se constituem os sentidos afetados pelas suas condições sócio-históricas de
produção. Isto significa remeter o dizer à uma formação discursiva específica,
transformando o texto em objeto de análise, identificando um conjunto de enunciados
marcados pelas mesmas regularidades, pelas mesmas regras de formação.

É interessante uma frase de Orígenes, que mostra este jogo de relações, de


posições, de domínios, de vozes, quando em certo momento ele diz: “Vou falar como
quem fala a gregos e principalmente a Celso, quer prudentemente ou não, cita idéias
de Platão”13 (Contra Celso, I, 32). Nosso recorte temático será analisado a partir de um

12
Para Pêcheux, significa se remeter a uma formação discursiva, à configurações específicas, dentro de
condições sócio-históricas dadas. (In: ORLANDI, E. 2001 ; BRANDÃO, H. 1996).
13

“Erw de. w>s pro`j "Ellhnaj kai. ma,lista K


elson, eite fronou/nta eite mh, plh.n par
atiqe,menonta. pla,twnoj”. Tece este comentário dentro de um
contexto de discussão na voz de um judeu, personagem idealizado por “Celso” , onde procura-se dar
respostas sobre o nascimento milagroso de Cristo.
10

lugar, veiculador de saber, onde os apologistas são interpelados, relacionando-o a um


domínio, a um campo de objetos que configuram a contrução dos vetores da identidade
cristã. Os apologistas cristãos discorrem geralmente por antíteses, traços por eles
considerados identitários de sua nova doutrina ou estilo de vida. A obra “Contra
Celso” de Orígenes por exemplo, já foi produzida como o próprio tema indica, em
função de um filósofo considerado adversário do cristianismo, na qual distintas posições
de sujeito são marcadas na disputa pela hegemonia dos seus discursos particulares.
“Contra Celso” apresenta as críticas e acusações feitas ao cristianismo por Celso,
filósofo pagão, com o qual Orígenes polemiza e responde tecendo argumentações em
defesa dos cristãos. É uma obra dupla que contém consideráveis fragmentos extraídos
pelo próprio Orígenes de uma literatura produzida por Celso intitulada “Doutrina
Verdadeira” (aléthés lógos?)?escrita provavelmente por volta do ano 178.d.C. Toda a
identificação de Celso vem a ser conhecida somente através da narrativa de Orígenes,
uma vez que ele é o único que faz menção, dentre os seus contemporâneos, a este
filósofo neoplatônico. Orígenes expõe os argumentos principais de Celso, o qual aponta
o cristianismo como uma doutrina falsa e, a partir daí, elabora a sua apologia.

Orígenes, ao escrever esta apologia, tinha em mente esclarecer aos seguintes


leitores: “(...)meu livro não está escrito para quem tem fé cabal, senão para quem não
tem gostado em absoluto da fé em Cristo ou para aqueles que o Apóstolo chamou –
fracos na fé ...” (Contra Celso, Prólogo, 6). Já no livro quinto, Orígenes nos dá uma
pista de possíveis leitores para quem de fato seus escritos teriam proveito: “(...)cremos,
no entanto, que este escrito venha parar também em mãos de quem seja capaz de
examinar as coisas mais a fundo, e isto nos move a aventurar-nos a expor algo mais
profundo(...)” (Contra Celso, V, 28). Portanto, analisando a documentação e o teor do
discurso de Orígenes, percebemos que esta produção literária destinava-se
fundamentalmente, a segmentos mais intelectualizados, cristãos ou até mesmo não-
cristãos . Sua leitura expõe um conhecimento da cultura grega, dos sistemas filosóficos
e dos poetas clássicos a ele contemporâneos, como o neoplatonismo, de métodos
especulativos e alegóricos, da história cristã narrada tanto no Antigo Testamento como
no Novo (Orígenes apresenta uma profunda capacidade exegética do hebraico), de uma
grande capacidade hermenêutica.
11

Em suma, tendo em vista os elementos expostos, acreditamos que as condições


citadas, representariam dificuldades de compreensão e interpretação para um leitor
comum ou recém-convertido à fé cristã. Trata-se de um debate travado entre
representantes da intelectualidade greco-romana cristã e não-cristã. Para Ruiz Bueno,
que tece seus comentários à versão espanhola de Contra Celso na introdução, os escritos
de Orígenes interessariam somente àqueles que fossem capazes de estimar a sua valia,
logo “foram sempre lidos e estudados com proveito por autores cristãos; os conheceu
Eusébio de Cesarea; os santos Basílio e Gregório de Nacianzo enxertaram largos
extratos em sua Philocalia” (1967: 29). A produção de Orígenes então, provavelmente,
teve difusão nos círculos cristãos. Contudo, estes dados em seu conjunto, não impedem
que relacionemos o trabalho discursivo de Orígenes com a intensa atividade de pregação
realizada em Cesaréia, atingindo um público mais diversificado, com seus
posicionamentos ideológicos.

Encontramo- nos assim, num ponto fundamental de investigação: quando, como,


porque se prefere a identidade cristã nos discursos religiosos? De que lugar social ela é
pensada e por que é construída? Qual o sentido do seu sistema de representação?
Responderemos a essas perguntas dentro dos nossos limites temporais do processo
inicial de sistematização da doutrina cristã. Nossas hipóteses estão centradas no eixo do
conflito entre o tradicionalismo intelectual da elite romana, e a prática de uma
religiosidade nova e difusa no espaço coletivo da cidade. Tendo em vista as
implicações sociais da “conversão”, reconhecimento inicial de pertença a este grupo
específico, seguido da rotulação, apontamos para as seguintes hipóteses:

1)Consideramos que a identidade, tal como a diferença é uma relação social


produzida em um momento histórico específico e que está sujeita às relações de poder.
Assim, diante da alteridade, marcada pela pluralidade de práticas sócio-religiosas e
filosóficas, politeístas e em confronto com indivíduos de diversas procedências,
“étnicas”, “nacionais”, culturais, tornou-se necessário aos “cristãos” a criação de vetores
de identificação, os quais, por um lado, demarcavam fronteiras de diferenciação e, por
outro lado, criava a consciência de pertença a um grupo. A identificação enquanto um
processo, envolve um trabalho de elaboração discursiva, o qual relacionamos com os
discursos apologéticos;
12

2)A partir das demarcações das diferenças representadas pelos “outros”, a


identidade é uma produção, uma relação, um ato performativo. Estas diferenças são
construídas pelas formações discursivas e narrativas produzidas pela liderança cristã
intelectualizada. Na luta pelo reconhecimento dos “cristãos” e pela sua hegemonia de
fala estes discursos se utilizam de argumentos filosóficos, como fonte de expressão e
demonstração, como estratégia lingüística, marcando as fronteiras de sua identidade.

3) O sistema de representações que corresponde à identidade cristã construído


pelos apologistas, inseridos no circuito da cultura helenística, apresenta respostas aos
questionamentos de seus contemporâneos: quem são, a quem se adora, como, e qual a
sua utilidade; regula a vida social ao redefinir o indivíduo e sua existência no mundo
com base nas noções de transcendência das esferas sensível, visível e corruptível, que se
sustentavam na materialidade.

O tema e as hipóteses de trabalho estão focalizados na interdependência das


fontes apologéticas de língua grega, produzidas no circuito das comunidades cristãs do
Oriente Próximo, ambiente rico de elementos da cultura helenística. Essa escolha se
justifica pelos seguintes motivos principais: a possibilidade de analisar a identidade
cristã através de práticas discursivas, da materialidade lingüística, pressupondo a
linguagem como produto do mundo cultural e social, onde se operam sistemas de
significação; boa parte dos apologistas interpelados a falar como sujeitos apresentam
formação grega, com significativo uso de terminologia filosófica, entendida como uma
estratégia lingüística para expressar o cristão, suas idéias religiosas e marcar a diferença
de forma comparativa com a alteridade, na construção da identidade. Mesmo que
alguns apologistas tenham se mostrado reticentes quanto à filosofia “dos gregos”, como
Taciano e Teófilo, não puderam escapar aos usos comuns da terminologia filosófica
entre os pensadores contemporâneos e da cultura que eles participavam; o Oriente
Próximo foi a região de formação, de expressiva difusão do cristianismo e suas
comunidades e, de preocupação notadamente doutrinária.

Por opção resolvemos inserir Orígenes dentro da produção apologética que o


antecedeu, por entender que ela possui um elo de ligação na construção da identidade, a
qual entendemos como processo. De outra parte, na perspectiva da análise de discurso
também interpretamos que nenhum autor/sujeito, é dono de seu discurso ou, produz uma
13

narrativa totalmente original. Um discurso é atravessado por distintas posições e


formações discursivas revelando sua heterogeneidade. Entretanto, receberá tratamento
metodológico específico e aprofundado apenas a fonte por nós considerada principal
“Contra Celso” de Orígenes, tendo em vista que a fonte reúne uma produção bastante
extensiva em torno de 600 páginas, organizada em oito livros, em que efetivamente
serão apresentados trechos selecionados de acordo com as hipóteses defendidas e sua
pertinência. Além disso Orígenes como filósofo, teólogo, pregador, mestre, exegeta, foi
autor de variadas obras e gêneros literários, de grande produção intelectual, tendo
inclusive formado uma biblioteca e apresentava intensa penetração nos meios
acadêmicos e eclesiásticos, o que permite estabelecer relações mais amplas e maiores
elementos de análise. Orígenes também participou de forma integral de um campo de
saber considerado pelos pesquisadores de grande expressão cultural, a chamada escola
dos alexandrinos que desde o século II d.C. vinha formando diferentes indivíduos nas
ciências divinas e “profanas”. Esse conjunto de fatores fazem os pesquisadores do
cristianismo defenderem que o trabalho apologético de Orígenes foi a culminação de
todo o movimento que o antecedeu entre os apologistas gregos e ter sido autor do
primeiro grande esforço de sistematização da doutrina cristã com sua obra Primeiros
Princípios(Peri Archôn).

Em suma, sabendo que o conceito de identidade passa da ordem de objeto para


a de processo, organizamos este trabalho inicialmente localizando as posições
historiográficas no sentido de delimitarmos o objeto de pesquisa levando-se em conta a
multiplicidade de fatores que devem ser analisados em nosso primeiro capítulo. A partir
de então, levamos em conta nas escolhas temáticas dos capítulos, questões que foram
problematizadas nas próprias apologias e as relações mantidas com suas condições
sócio-históricas de produção. Portanto, no segundo capítulo, será feita a
contextualização do Império Romano no que diz respeito às relações entre política e
religião e as filiações filosóficas estabelecidas. Serão também objeto de análise, os
marcos da política imperial quanto à tradição e será traçado um paralelo com os
conflitos surgidos entre politeísmo e monoteísmo, tendo em vista as leis que regiam o
Estado. No terceiro capítulo discutiremos as formações sociais específicas nas quais os
agentes se inserem, mas também as interações estabelecidas para construir, transformar,
negociar, impor uma organização social, classificações e hierarquizações. Abordaremos
a liderança cristã envolvida neste processo e a literatura apologética produzida,
14

identificando Orígenes e suas argumentações filosóficas utilizadas como estratégia


discursiva. No quarto capítulo demonstraremos, no interior dessas relações, a
elaboração do material simbólico desenvolvido por Orígenes que serviu como suporte
para manter a identidade que unia os membros do mesmo grupo.
15

1.ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA E DELIMITAÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO

Para uma delimitação mais precisa do nosso objeto de estudo discutiremos sobre
um campo de posições historiográficas firmadas nas décadas de 80 e 90 do século
passado, que na medida do possível têm tentado abarcar o cristianismo como processo
histórico, sob diferentes formas e tendências. Estabelecemos um diálogo entre as
abordagens históricas, sociólogicas e antropológicas, a fim de que nossas análises não
ficassem restritas à interpretação da religião cristã apenas como um sistema fechado de
crenças. As abordagens a seguir procuram observar a inserção histórica deste fenômeno
religioso no Império Romano, as interações sociais mantidas com diferentes
representações, e como os cristãos propõem agir sobre essa realidade. As antigas
representações que identificavam o indivíduo na ordem do social, foram contrapostas às
representações que tendiam a valorizar a pessoa com Deus. Esses pressupostos
colocaram novas significações simbólicas em debate. Frente a este conjunto de análise
nos aproximaremos de certos pressupostos conceituais, como também nos
distanciaremos à sua medida. Problematizamos estes enfoques, a partir do seguinte
enunciado:

“Há uma nova raça de homens nascida ontem, sem pátria, nem tradições,
unidos contra todas as religiões e instituições civis, perseguidos pela justiça,
universalmente notórios por sua infâmia, mas gozando de uma execração
comum: são os cristãos” 14

Resgatando as palavras do filósofo Celso neoplatônico e defensor do politeísmo,


reconstituídas através da obra de Orígenes, percebemos que um intenso debate foi
travado entre seus contemporâneos ao delimitarem fronteiras de identificação entre
“cristãos” e os “outros”. Neste caso, pontuamos o conflito nascido no bojo das
contradições entre politeísmo e monoteísmo, que marcaram tão profundamente a cultura

14
Para os pesquisadores, esses enunciados constituem o início do Prefácio da suposta obra de Celso, a
“Doutrina Verdadeira” (In: ROUGIER, L. 1999: 39).
16

greco-romana na antiguidade. Podemos identificar nas palavras de Celso preocupações


em relação aos cristãos, quanto à origem, à formação, às filiações institucionais e a
ausência de reconhecimento pelo poder público. Além disso apresenta uma profunda
crítica do exclusivismo cristão, que não se identifica com outras religiões ou instituições
já vigentes.

Segundo Marc Augé, “o debate sobre as fronteiras é, pois, marcado certamente


por uma perspectiva cristã ou, mais amplamente, monoteísta. (...) que não pode admitir
na matéria nenhum relativismo”(1994: 187). Esta interpretação nos coloca no interior
da discussão sobre a construção da identidade cristã, no sentido de analisá- la em meio
as relações sociais vividas, na dinâmica das relações de poder, à medida em que a
diferença é sustentada pela exclusão. Em que sentido essas representações foram
pensadas, construídas e articuladas? Retomando a historiografia, basicamente, nossa
problematização a esse respeito surgiu a princípio em decorrência de três estudos, que
analisam a temática na ordem do conflito sob vários aspectos, os quais indicam a
construção dessa identidade e a divulgação dos seus vetores, como demonstraremos nas
páginas seguintes. Sinteticamente, os debates que se seguem giram em torno de:
primeiro, elementos de caráter exterior e interior ao indivíduo, como a comunidade e a
conversão, respectivamente, exercendo um elo fundamental para a construção de uma
nova ordem social, proposta defendida por H. C. Kee15 . Segue a abordagem de P.
Beaude 16 , que praticamente insere as mesmas discussões, porém, incluindo outros
elementos com maior riqueza de conteúdo em suas considerações. Destaca os conflitos
internos e externos vividos pelos próprios cristãos, como a questão das heresias e as
perseguições suscitadas no Império respectivamente, aspectos que segundo o autor
contribuíram para a afirmação de uma nova identidade e alteridade. Logo em seguida
demonstramos as formulações de L. Duarte e E. Giumbelli 17 , que abordam a nossa
temática, não diretamente com o mesmo título, mas expõem uma categoria significativa
para o estudo da identidade cristã: a construção da noção de pessoa . Explicaram-na em
termos de hierarquia de valores, à medida que o espiritual submete o terreno, com

15
KEE, H. C. “Identidade social e pessoal em uma nova comunidade”. In: As origens cristãs em
perspectiva sociológica. São Paulo: Paulinas, 1983.
16
BEAUDE, P. “L’Identité Chrétiénne”. In: Premiers chrétiens, premiers martyrs. Paris: Gallimard,
1993.
17
DUARTE & GIUMBELLI. “As concepções cristã e moderna da pessoa: paradoxos de uma
continuidade”. In: Anuário Antropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.
17

paradoxos, com tensões. Os cristãos então subordinam sua vida no mundo a um ideal
supremo. Vejamos de forma mais pormenorizada cada uma delas.

H. C. Kee18 , analisando a “Identidade social e pessoal em a nova comunidade”,


aborda a questão sob uma perspectiva sociológica, centralizando-a no processo da
conversão, ponto de partida para uma experiência religiosa individual, e ao mesmo
tempo um compromisso ou adesão a uma nova comunidade. Destaca o impacto
psicológico inicial da experiência da conversão, bem como o novo ambiente de vida (de
uma comunidade de pescadores para o cotidiano das cidades) e a nova identidade social
que é estabelecida (não mais restrita ao círculo judaico, mas aberta a indivíduos de
quaisquer procedência). Esta identidade, se por um lado procura definir-se pela
ruptura das barreiras de família, origem étnica, status social e mesmo sexual, por outro
lado, estas mesmas categorias se tornam pontos de conflitos e tensões na adaptação do
convertido. H. C. Kee ainda ressalta o papel da comunidade, que neste sentido deve
apoiar e acolher o iniciado, uma vez que ele provém de contextos sócio-religiosos os
mais diversos. H. C. Kee então focaliza o aspecto principal das comunidades cristãs,
justamente na capacidade de reunir em seu conjunto, um centurião romano, um
carcereiro em Filipos, uma comerciante em Tiatira, etc., citando como referência os
Atos dos Apóstolos. Em outras palavras, percebemos elementos que deixam em
suspenso os marcos diferenciadores de identidade, segundo a ordem tradicional,
deslocando-se e reagrupando-se sob outros parâmetros.

P. Beaude 19 , expõe o tema a partir do movimento cristão que se desenvolveu ao


através da missão gentílica, destinada ao alcance de muitas nações. Na busca de sua
identidade, os novos crentes dotaram-se de seus próprios símbolos, como a cruz, e de
novos escritos, como o Novo Testamento. P. Beaude, aponta a relevância dos escritos
apostólicos, já em resposta ao conflito inicial que se estabelece com e entre os cristãos,
na questão da identidade e unidade. A produção das cartas apostólicas permitiram aos
cristãos espalhados pelo Império Romano, preservar a memória viva do cristianismo
original. A partir dessa referência, Beaude indica os elementos e categorias que na sua
visão correspondem, sincronicamente, a este processo de definição: os pais apostólicos,

18
KEE, H. C. op. cit.
19
BEUADE, P. M. op. cit.
18

no esforço de manter a tradição; o batismo, como símbolo de pertencimento à


comunidade ou igreja; a Eucaristia e as reuniões nas igrejas domésticas, no propósito de
manter também a unidade; sua organização eclesial, e por fim, o que o autor considera
mais significativo, ou seja, os conflitos internos entre os próprios cristãos, como a
questão das heresias, resultando na luta pela afirmação do pensamento ortodoxo,
conseqüentemente de uma identidade.

O cristianismo primitivo teve de defrontar-se com seitas distintas, tais como: o


docetismo, a de Montano, a de Márcion e a gnose, que reuniu- se, por exemplo,
em Carpócrate, Basílides, Valentim no Egito. Em oposição e em resposta a tais
desvios, os bispos locais promovem a autoridade da tradição apostólica. Mas é no
quarto capítulo entitulado “Les persécutiones”, que P. Beaude esclarece com mais
exatidão este fenômeno social e religioso do cristianismo. Ele afirma: “nem judeus,
nem pagãos, mas cristãos, uma terceira raça de homens” (1993: 89). Postula-se uma
outra identidade. Definir-se como cristão para Beaude, veio a se tornar um problema
político, não só pela novidade de uma expressão religiosa no Império, mas pela atitude
em esquivar-se de qualquer comprometimento com o politeísmo. Foi o tempo dos
mártires e confessores da fé, outra categoria enfatizada pelo autor. Os cristãos
suscitaram a reação popular e dos magistrados romanos. Beaude, aponta o contexto das
perseguições do II e III séculos impetradas pelos imperadores romanos, como um outro
elemento fundamental na construção da identidade cristã, pois em meio a tais
divergências os valores dessa comunidade religiosa se apresentaram como diferente. O
autor então apresenta o seu argumento, defendendo que os cristãos apontaram uma
alternativa: a relativização de valores postulados como tradicionais para a cultura greco-
romana. Seu trabalho nos demonstra grande capacidade de argumentação e de análise,
uma vez que identifica diferentes elementos que compuseram este processo de
construção histórica. Porém, preferimos substituir o termo relativização, pelo uso de
outros, tais como: deslocamento, redefinição, articulação, ordenação, visando a
construção identitária que delimita as fronteiras de diferenciação.

L. Duarte e E. Giumbelli no trabalho “As concepções cristã e moderna da


Pessoa: paradoxos de uma continuidade”(1993), dialogam com diversos autores como
Marcel Mauss, Foucault e Dumont, sobre a possibilidade de traçar as linhas de
continuidade da noção de Pessoa postulada pela religião cristã em seus primórdios, até
19

a sua definição no Ocidente moderno. A noção cristã de Pessoa é analisada por esses
antropólogos, como que desenvolvendo-se justamente por paradoxos. Três princípios
estruturantes são então expostos: verdade, interioridade e vontade. Segundo Duarte e
Giumbelli, a religião cristã fez dessa tríade estruturante um imperativo de
necessidade(1993: 70).

Analisando o cristianismo elaborado e vivenciado no período da Antigüidade


Tardia, L. Duarte e E. Giumbelli percebem a dinâmica instaurada pelos cristãos nas suas
relações sociais, reconsiderando a sua vida no mundo, imaginando uma comunidade
cuja vivência já nada devia às antigas identidades sociais de seus integrantes. A
subordinação do mundo a valores extra- mundanos 20 , implica num distanciamento em
face da vida no mundo, que para o politeísmo era inimaginável. Para esses autores o
cristianismo traz uma singularidade em relação às antigas representações coletivas na
civitas, ao afirmar “a noção de uma alma individual e universal associada a um
monoteísmo transcendente”(DUARTE, L. & GIUMBELLI, E. 1993: 85). Através da
própria vivência dos fiéis de uma religião perseguida, que coube- lhes traçar um código
característico de comportamento. Duarte e Giumbelli identificam este fato, a união
entre alma e corpo no indivíduo comprometido com Deus. A partir daí antigas regras de
sociabilidade e mesmo quanto à sexualidade passam a produzir no indivíduo um
constante conflito. Preservar uma nova identidade enraizada no corpo, recuperando
uma integridade original na qual todos os corpos e todas as almas estavam
harmoniosamente unidos, significava resgatar a pureza original do ser humano. Duarte
e Giumbelli, portanto, dão toda uma ênfase ao valor que a pessoa cristã concedeu ao
corpo, a partir de aspectos intrínsecos, alterando sua visão de mundo e como atuar nele:
“os cristãos podiam tornar o barro perigoso de seus corpos em um templo de Deus, sem
abdicar da materialidade que o compõe”(1993: 90). Pede-se a alma para que se corrija,
para poder conduzir o corpo segundo leis que lhes são intrínsecas. Estabelece-se uma
relação do indivíduo consigo mesmo.

Neste aspecto, L. Duarte e E. Giumbelli se aproximam das considerações de M.


Foucault, ao empregar o termo “o cuidado de si” em que o indivíduo

20
Esta categoria é analisada por Dumont no capítulo “Do Indivíduo-fora-do-mundo ao Indivíduo-no-
mundo”, in: O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeniro:
Rocco, 1985.
20

estabelece uma constante vigilância enquanto ser sexual.


Novamente os debates se cercam do imperativo de um novo comportamento sexual que
incide diretamente na atitude quanto ao corpo. Everil Cameron rediscutindo sobre a
historiografia que aborda o cristianismo, faz menção da importância dos historiadores
em revisitar M. Foucault, que justamente pontua a relação do cristianismo com a
reconstrução da moral quanto a sexualidade. M. Foucault construiu seu argumento
afirmando que o cristianismo havia estimulado e desenvolvido características já
existentes, institucionalizando-as. Porém, faz a ressalva de que Foucault teve mais
preocupações filosóficas do que propriamente ter seguido um método histórico. Neste
sentido, oculta distinções e esquiva-se de categorizações, estando mais interessado na
representação de si do que exatamente nas instâncias específicas de mudança histórica.
São as interpretações dadas pela autora, em relação ao trabalho de Foucault, em “Uso
dos Prazeres”. (FOUCAULT, M. apud CAMERON, A. In: “Redrawing the map: early
christian territory after Foucault”. 1986: 266-271).

Ampliando nossas leituras, queremos nos referir a um quarto estudo que suscita
um debate interessante sobre o tema, surgido na historiografia atual, de uma leitura
diferenciada que se apresenta num trabalho recentemente publicado por Richard
Sennett, em Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental(1997).
Percebendo a singularidade do fenômeno social e religioso que analisamos, Sennett
indica dois fundamentos sociais do cristianismo que envolvem a questão da construção
da identidade, a saber: a doutrina da igualdade entre os seres humanos (homem e
mulher) e a aliança com os corpos vulneráveis: os pobres, os desamparados e os
oprimidos. Com este olhar, foi capaz de identificar os elementos que formaram o
alicerce da religião cristã, principalmente quanto aos seus valores essenciais, estando
atento à sua especificidade. Tecendo comparações com a celebração da nudez, do corpo
pelos gregos e com as fórmulas olhar e acreditar, olhar e obedecer dos romanos, Sennett
defende que a cristandade abala esses pilares e desafia-os (pressupostos que se
aproximam das considerações de Duarte e Giumbelli de forma mais categórica) . A sua
forma de abordagem do problema é altamente significativa, já que expõe a quebra de
modelos então vigentes pelos praticantes da religião cristã, vivenciando uma nova
moral, sob novos valores, desafiando as regras do espaço urbano, a cidade, e
defendendo uma divisão entre política e religião. O autor indica a construção de uma
outra representação, da subjetividade vivida no social que se contrapunha à
21

identificação dos romanos aos símbolos do espaço físico, visíveis na forma de


planejamento urbano, da arquitetura, das esculturas, de monumentos projetados nas ruas
da cidade, nas termas, no anfiteatro, nos fóruns. Assim, verifica de forma distinta a
representação cristã, pois:
“As pessoas não nasciam, mas tornavam-se cristãs – uma metamorfose
que não decorre de ordens. Assumia-se a fé ao longo da vida, isto é, a
conversão não acontece de uma só vez; uma vez evocada, nunca deixa de se
revelar. Esse tempo espiritual expressava-se na linguagem teológica pela
afirmativa de que acreditar corresponde a uma experiência transformadora. O
convertido se distancia da dependência dos comandos de um poder dominante,
até chegar à ruptura” (SENNETT, R. 1997: 113).

Por esta razão introduzimos R. Sennett nesta questão, que diferentemente de


outros especialistas traça então as peculiaridades desse fenômeno religioso, apesar deste
estar inserido num sistema globalizante do Império Romano(1997: 113-131). Esta
interpretação percorre um sentido contrário às posições historiográficas tradic ionais que
ao problematizar a religião cristã ou a formação do cristianismo tendem a afirmar a sua
total imersão no modo de ser romano e suas hierarquias de poder constitucionalizado,
ou ainda, desenvolvendo um profundo “sincretismo”(interseção, diálogo) com as
práticas politeístas. Identificamos na historiografia uma forte demanda em reconhecer
na formação do cristianismo até a sua fase tardia(IV século), um processo unívoco de
total identificação entre Igreja e Estado e sua legitimação de poder. Faze mos a opção
nesta pesquisa de nos afastarmos deste posicionamento, uma vez que em nosso entender
ele inibe a análise de um processo mais amplo, pontuado de singularidades, de
estratégicas específicas e diferentes interpretações produzidas por distintos atores
sociais e contextos.

Percebe-se diante desses estudos e das argumentações aqui levantadas por


diferentes especialistas, que há uma profunda dialética entre a vida interior e exterior
do indivíduo, de um caráter pessoal e ao mesmo tempo coletivo, a partir da conversão
de um iniciado à religião cristã, ou até mesmo a elementos exteriores, como eventos que
surgiram da política romana em relação às perseguições contra os cristãos, as reações
que suscitaram, ou os conflitos internos nascidos dentro da própria comunidade
religiosa. De forma geral apresentam a dicotomia entre espírito e matéria, mas
sustentam que os cristãos privilegiaram a primeira ordem sobre a segunda. Os trabalhos
22

mencionados aqui, a nosso ver trazem uma grande contribuição para a aná lise do nosso
objeto, uma vez que:

“Para sociólogos e antropólogos o termo pessoa designa o aspecto socialmente


específico do ser humano, do indivíduo enquanto unidade social – é uma unidade formal,
construção fundada em valores solidários da organização social, não se reduz ao indivíduo
biológico de uma espécie. (...) Pessoa é a interdependência íntima que existe entre o individual
e o social, sendo o social aquilo que dá forma ao individual, e permite pensar as suas relações
recíprocas”(In: AUGÉ, M. 1974: 52,53; 59).

Ainda Marc Augé, ratifica que a distância entre cristianismo e politeísmo passa
na realidade, pelas diferentes representações da vida, do homem, e, mais precisamente,
do indivíduo, examinado dentro dos diversos aspectos da vida social21 . Portanto com
esta dissertação pretendemos identificar os cristãos na rede de relações, de interações
recíprocas entre o individual e o social, verificando a interdependência que mantiveram
com as comunidades, com as Igrejas, o lugar onde desenvolveram a “comunhão”, a
aceitação, a identificação, o reconhecimento da devoção que particularizava este
agrupamento religioso.

Ampliando as questões historiográficas, pretendemos analisar com mais


especificidade, como os discursos encontraram reforço através desses suportes
institucionais e o que significou ter representantes que os validassem no sentido de
construir, desconstruir, moldar, reordenar, reproduzir os seus sentidos. Por esta razão,
com esta pesquisa pretendemos inserir os apologistas22 no seu contexto situacional
imediato. Refiro- me à “vontade de saber”, à “vontade de verdade”, que caracterizou o
ambiente letrado da cultura greco-romana, que se preocupava em investigar e
demonstrar a separação entre o “discurso verdadeiro” e o “discurso falso”,
principalmente entre aqueles exercitados nas ciências gregas e seus métodos, na
retórica, na dialéctica, etc., que resultou na elaboração de novas representações.

Toda a fundamentação de nossa pesquisa concede relevância ao trabalho


discursivo produzido na literatura apologética, condição que particulariza o nosso

21
ENCICLOPÉDIA EUNAUDI, “Religião”, 1994: 208.
22
Nos referimos ao apologista Orígenes como representante de toda a culminância do movimento
apologético no IIIº d.C. , bem como outros por nós selecionados como referências neste gênero literário
que correspondem ao IIº século d.C.: Aristides de Atenas, Teófilo de Antioquia, Atenágoras, a “Carta a
Diogneto” e Hermias o filósofo.
23

objeto, no qual acreditamos trazer mais elementos de análise e de discussão sobre a


identidade cristã. Essa questão foi mais problematizada por estudos anteriores através
dos escritos apostólicos ou dos testemunhos dos mártires, sendo as análises dirigidas
para o aspecto de ritual das práticas cristãs como elemento identitário à sua comunidade
no que diz respeito ao batismo, a ceia, e ao próprio ato de sacrifício com o martírio.
Sentimos a necessidade de aprofundamento da questão à medida que a identidade será
entendida como produto da intersecção de diferentes componentes. Todo um processo
de elaboração de sistema de significação atravessa a linguagem atribuindo sentidos ao
ideal de pertença e às práticas, operando um mesmo suporte cognitivo e mantendo a
vinculação social-religiosa correspondente. Percebemos que a identidade cristã, além
de um conteúdo religioso que a identificasse, suscitou um verdadeiro trabalho analítico
e comparativo, de desconstrução, de reconstrução, de articulação, nas construções de
formações discursivas específicas, de acordo com suas condições sócio-históricas e
culturais de produção.
24

2.DIVERSIDADE RELIGIOSA E FILOSÓFICA NO IMPÉRIO


ROMANO

2.1. O politeísmo e O monoteísmo

“Com efeito, ó rei, para nós é evidente


que há três tipos de homens neste mundo: os
adoradores dos que entre vós são chamados
deuses, os judeus e os cristãos; por sua vez,
os que veneram a muitos deuses se dividem
também em três tipos: os caldeus, os gregos
e os egípcios, pois foram eles os guias e
mestres das outras nações no culto e
adoração dos deuses de muitos nomes.”
(Aristides, Apologia, 2)

Este pequeno texto nos introduz na complexidade das relações sociais frente à
diversidade dos sistemas religiosos no mundo romano colocando em relevo as questões
de identidade e conflitos surgidos entre politeísmo e monoteísmo, e suas distintas
representações. Uma vez que a identidade cultural é construída no social, ela participa
da complexidade, historicamente variável, das estruturas sociais. Faz-se necessário
contextualizar a entidade sócio-política que possibilitou a emergência deste contexto de
interações marcado pela diversidade.

O Império Romano se caracterizou pela grande diversidade cultural, a qual


também será expressada pela prática do politeísmo. O eixo central da pesquisa volta-se
para o ambiente que se circunscreve ao Oriente Próximo e identifica-se com a unidade
política que foi reproduzida em todas as províncias do Império, a cidade. Esta foi a
célula base do sistema imperial romano tanto no plano político como no econômico,
social, cultural e religioso. A cidade foi um instrumento por excelência de integração e
difusão de instituições e, práticas sociais e culturais, características do ideal do ser
25

romano, numa dinâmica de não exclusão das diversidades culturais locais, mas também,
criando espaços de ambigüidades.

No processo de romanização, a religião romana assumiu um caráter


fundamentalmente social, sendo um fator de identificação de distintas comunidades ao
Império Romano. A religião relacionava-se ao indivíduo enquanto membro de uma
comunidade; todo ato comunitário era acompanhado por um aspecto religioso e todo
ato religioso possuía um aspecto comunitário(SHEID, J. 1998: 20-28). O culto por
conseguinte, ou suas práticas rituais eram o que constituía o vínculo unificador dos
membros da comunidade. Havia uma multidão de divindades políades e cada cidade
tinha seus deuses que a habitavam, portanto também se tornavam participantes da
ordem social. A prática dos ritos anunciava que Roma era regida em comum pelos
magistrados e deuses 23 . A religião consistia em manter o relacionamento com os
deuses24 , um pacto celebrado por obrigações mútuas. Desde a invocação dos seus
deuses esperava-se a observância de práticas rituais, de sacrifícios para o alcance de sua
benevolência. As festas religiosas agiam de forma a unir a comunidade, ressaltar a
fidelidade aos deuses locais e à própria Roma, principalmente através da celebração do
culto imperial. Levar uma vida de cidadão é também mostrar-se nos templos e nas
festas e ao mesmo tempo, tomar parte nas assembléias deliberativas e nos
tribunais(SISSA,G. & DETIENNE, M. 1990: 205,206).

A “religião oficial” garantia a constituição de um culto público sob a tutela do


imperador, como representante do poder de Roma. Seus colégios sacerdotais
organizavam e zelavam pela prática de tais cultos, alimentando a concórdia que deveria
existir entre os deuses e os homens, entre os indivíduos e seus iguais, a garantia da

23
J. Sheid observa que para participar ativamente nas decisões públicas e para intervir nos destinos do
povo romano, uma divindade devia inicialmente ser apreendida formalmente pelos magistrados
(1998: 123-142). Imaginemos essa peculiaridade em relação à investida do imperador como Pontífex
Maximus, “o augusto” pleno de força sobrenatural que regia as prerrogativas cultuais. Nesse
entendimento tanto magistrados, como sacerdotes e imperadores estavam envolvidos nos ritos cultuais
públicos e demonstram acompanhar este modelo comunitário, uma vez que os deuses não se
manifestavam de forma pessoal.
24
“crer” nos deuses é traduzido de maneira prática, isto é, uma prática social e política enquanto costume
da cidade, onde os membros do grupo social lhes oferecem sacrifícios, freqüentam seus altares;
reconhecem sua presença por meio do conjunto do que lhe é devido: sacrifício, canto, danças, preces,
purificações, “ritos”; “crer” nos deuses é também uma forma de dizer que se têm relações com eles, que
se têm comércio com eles, que se procura a sua companhia(SISSA,G. e DETIENNE,M. 1990: 203-215).
26

ordem pública. Logo, religião e política estavam totalmente imbricados, o imperador


era para o indivíduo o mediador natural entre os deuses e os homens. O civismo se
ligava indissoluvelmente à tradição religiosa(BUSTAMANTE, R. 1999: 326-327).
Cabia à elite dirigente da cidade a conservação da tradição religiosa. Um fato
subjacente neste conjunto de códigos devidamente prescritos pela tradição deve-se a
ausência de escolhas no que tange à religião. Para o politeísmo greco-romano o cidadão
já nascia e se desenvolvia neste ambiente religioso e era iniciado na prática do culto
doméstico, da religião dos seus antepassados/Lares, logo “não há conversão à religião
romana, não se faz ato de fé, nasce-se ‘fiel’ ou se o torna recebendo a
cidadania”(PINTO, P. 1997: 348). O pai era o chefe supremo da religião doméstica,
dirigia todas as cerimônias do culto e cuidava de sua perpetuidade, vinculando o filho a
este espaço, sua iniciação. Portanto, o culto doméstico ou a família era o modelo
referencial daquilo que se reproduziria na cidade, na garantia de sua estabilidade e
coesão, numa série de ritos e gestos transmitidos de pais a filhos, nas práticas de
devoção. Assim, os deuses venerados pelos romanos eram entendidos como seres
ativos que compartilhavam do mesmo espaço físico dos homens, afetavam a todos os
aspectos do mundo natural e dizia respeito à vida privada e pública dos cidadãos.

Religio, não era um sistema objetivo de seres, de coisas, de crenças que foram
impostas aos homens segundo uma revelação. Definia uma atitude humana na
observância rigorosa a um conjunto de rituais e cultos, os quais ligavam os homens aos
deuses. Tal prática reforçava a coesão social e a preservação da memória do passado à
medida em que era transmitido pela família. Faz-se necessário perceber que religio não
designava o elo sentimental, direto e pessoal do indivíduo com uma divindade, mas um
conjunto de regras formais e objetivas, legadas pela tradição(SHEID, J. 1998: 22-28).
Nas apologias encontramos como uma das questões em debate a alusão feita pelos
defensores do politeísmo à memória reproduzida por séculos de história com relação à
antiguidade de seus mitos fundadores25 , à tradição religiosa como sinal de legitimidade
da prática politeísta e podemos até dizer de identificação, em contraposição ao
monoteísmo cristão. O filósofo neoplatônico Celso, por exemplo, inquietava-se com o
discurso cristão e teceu esforços no sentido de desacreditá- lo argumentando o

25
Esse aspecto ém bem discutido em Eustáquio Salor,Polémica entre cristianos y paganos, pp. 31-136.
27

aparecimento repentino do cristianismo, “nascido como que de golpe”, alegando ser este
uma espécie de plágio da doutrina judaica, senão “bárbara”26 .

Uma outra característica da religião romana diz respeito ao comportamento


romano em relação às divindades cultuadas pelas distintas comunidades integradas ao
império através da conquista. R. Bustamante nos esclarece que o ingresso de vários
deuses estrangeiros no panteão romano ocorria principalmente através da prática da
interpretatio, pela qual duas ou mais divindades com atributos iguais ou semelhantes
podiam ser unidas numa só e adoradas conjuntamente(1999: 326). Levando-se em
conta os princípios de unidade polític a com forte expressão religiosa, era imprescindível
zelar pela observância dos cultos, pela seqüência de ritos, a cargo dos colégios
sacerdotais. Sendo uma sociedade eminentemente politeísta, o ecletismo romano
permitia a entrada de novos elementos desde que salvaguardasse a sua própria
existência, enquanto se mantivesse a estrita lealdade ao Pontífex Máximus, à Roma.

Vamos intensificar a discussão entre fé e lei da instituição dos valores sagrados


ao imperador - o culto imperial. Os imperadores foram considerados por seus súditos
como mais do que humanos, “suas estátuas erigidas por todo o império, conferiam
proteção sobre o suplicante que a ela se mantinham agarrados. Seu poder beneficente
preservava a paz por todo o reino”(GOODMAN, M. 1997: 131). Os senadores
deveriam estar bem atentos à prática do culto imperial por todas as províncias. Os
imperadores projetavam-se logo após a sua morte como deuses, venerados como divinos
(divus) e a cerimônia da apotheosis era reveladora deste sentido(PINTO, P. 1997: 357).
Como M. Goodman observa, a inclusão de seu genius e de sua família no calendário
religioso ajudou a lembrar a todos que de fato o imperador era mais do que
humano(GOODMAN, M. 1997: 133). Essas evidências se tornaram singulares a partir
do Imperador Augusto (27 a.C. – 14 d.C.), ainda mais quando o mesmo reuniu em si as
qualidades que o senado ratificou: virtus, clementia, iustitia, pietas. A política religiosa
de Augusto assegurou- lhe o título de Pontífex Maximus, chefe da religião estatal,
podendo atuar sobre os sacerdotes, os cultos, os templos, e os valores morais. Augusto
legou aos seus herdeiros a sacralização do poder imperial.

26
Todo o livro primeiro de Contra Celso, por Orígenes é destinado a contra-argumentar este pensamento
de Celso.
28

Novamente assiste-se todas as prerrogativas rituais regidas pelo Estado, pois a


preeminência do imperador como força unificadora do Império era simbolizada pela
importância fixada pelas celebrações provinciais do culto imperial. De acordo com o
antropólogo M. Augé (1994: 20) um ritual contém um caráter performativo de
representação. Sua celebração e a partic ipação dos “outros” promove uma consciência
de união, sendo um fator de identificação para aqueles que não são associados
diretamente a ele. Logo, podemos afirmar que o culto imperial foi fundamental para a
identificação dos provinciais à identidade romana, consolidando a mística da cultura
imperial (WHITTAKER,C.R.1997:146ss.). Neste sentido parece-nos simplório
analisar o culto imperial apenas como um instrumento para legitimar o governo imperial
e de sua realização como prova da lealdade imperial.

Por outro lado, o seu cerimonial era um fator de integração social. Era um
momento para a exibição e afirmação da hierarquia social local, pois o colégio dos
Augustales, sacerdotes encarregados dos empreendimentos do culto socializou os
libertos e integrava os pobres. Além disto, o cerimonial do culto incluía a distribuição
de presentes , alimentos e vinho, algo que pode ser interpretado como uma tentativa de
se buscar a unanimidade de participação das diferentes classes sociais municipais.

No entanto, a existência da diversidade religiosa nos leva a concordar com Paulo


Pinto que vê no processo de expansão e construção do império, a própria identidade
romana, posta em causa, frente a um mundo em constante movimento e
transformação(1997: 359). Paulo Pinto ana lisa que esta “sociedade aberta” (DODDS
apud PINTO) que surgiu da desagregação dos laços que envolviam o indivíduo na
cidade-Estado antiga apresentou demandas que não foram supridas pela religião
imperial, mas por novas influências vindas das províncias e de fora do mundo
romano(1999: 358). Este processo foi caracterizado significativamente pela entrada de
cultos provenientes de distintas regiões e culturas, nos quais são comumente atribuídos
pela historiografia de “religiões orientais”27 que atingiram a sua medida, com diferentes
graus de aceitação, o mundo romano, tendo sofrido a helenização a bons tempos.

27
Este termo é bastante esteriotipado, convêm atentar para sua reinterpretação, na qual aponta estes cultos
provenientes de regiões e civilizações independentes e bastante disitintas entre si, como o Egito, Anatólia,
Pérsia e Síria. Portanto os diversos cultos não podem ser entendidos de forma homogênea.
29

Dominam a cena religiosa do século I ao III d.C., caminhando para alterações com a
crise política sofrida pelo império no século III d.C. Esta dive rsidade marca a
efervescência de cultos que se projetam e adaptam-se ao panteão romano ou mesmo
sobrepondo-se e modificando o sistema religioso tradicional.

Convêm atentarmos neste contexto do politeísmo romano para suas


especificidades. Desde o processo de interação entre gregos e romanos, a religião
romana sofreu mudanças as quais são detectadas pela introdução de novos deuses, como
Apolo; de novas formas de representação, como as estátuas; de novas formas de relação
com os deuses presentes na literatura, no teatro e na especulação filosófica(PINTO, P.
1997: 352). Sobre esses deuses os filósofos já tinham debatido longamente em diversos
aspectos: sobre a essência, o lugar, a espécie e a qualidade dos deuses, sobre se são
eternos, se constam de fogo, de números ou átomos(PINTO, P. 1997: 353). Já a
filosofia estóica fazia críticas a religião, afirmando que os deuses eram homens que
tinham se destacado no passado. Essas questões eram indicadoras do que viria a se
constituir, com intensidade nos séculos II e III séculos d.C. no império, ou seja, a
demanda por novas formas religiosas que advinham de novos contatos sociais, sejam
através dos escravos, dos comerciantes, dos mercadores e dos soldados, realizados num
amplo horizonte territorial. Assiste-se em maior proporção a atração de novos cultos
que diferiam da religião tradicional, expressadas por novas formas de devoção na
prática do politeísmo e pela prática do monoteísmo judaico-cristão. Essas inovações
são bastante significativas nos aspectos culturais e religiosos característicos do
Principado.

De forma geral, os novos cultos ofereciam a oportunidade de redenção


pessoal(por esta razão eram tidos também como religiões de salvação) através da
comunhão com os poderes divinos. Paulo Pinto corrobora que a grande transformação
que os novos cultos provocaram na mentalidade religiosa romana foi a passagem de
uma religião cívica para uma religião onde o culto praticado passa por uma escolha
pessoal(1997: 364). Cornell e Mattheus também destacam essa característica,
afirmando que apelava-se às convicções pessoais do indivíduo oferecendo a
possibilidade de conversão, que implicava em cerimônias de iniciação e de revelação
dos mistérios conhecidos apenas por um grupo escolhido e privilegiado (1996: 96).
Mas, acima de tudo poderiam oferecer aos iniciados uma igualdade de estatuto em
30

relação aos companheiros de crença que não tinha em consideração as barreiras sociais,
como por exemplo, a admissão de indivíduos provenientes de vários extratos da
sociedade, de meios populares, porém conservando certa hierarquização em seus
quadros litúrgicos.

Especificamente quanto ao politeísmo vários foram esses cultos, dentre eles: o


de Cibele e Átis/frígios, o de Ísis e Serapis/egípcio, o de Mitra/persa. Eram imbuídos da
doutrina da imortalidade ou ressurreição e implicava numa série de ritos e sacrifícios,
tendo o sofrimento como expiação e cerimônias de purificação. Esses elementos
indicam como fugiam do estrito formalismo da religião tradicional romana e
convidavam os fiéis a um envolvimento emocional em que sua teologia trazia respostas
à ordem cósmica. Sobretudo, estabeleciam um movimento de renovação no politeísmo
romano porém, mantinham certas características:
“não se constituíam religiões excludentes, pois os seus sistemas de crenças
funcionavam em associação com o paganismo greco-romano tradicional ou entre si”;
(...)esses cultos nunca criaram um sistema de crenças fechado, estando sempre ligados
ao panteão greco-romano, e a identidade coletiva que lhes proporcionavam estava longe
de ser universal ou livre das barreiras locais”(PINTO, P. 1997: 359,364).

A cultura helenística serviu como intermediário neste intercâmbio de cultos


novos e tradicionalismos, propiciando releituras em suas formas de devoção. Atesta-se
um conjunto de mudanças religiosas, espirituais, que envolveram diferentes métodos de
alcançar respostas às incertezas, às inquietudes humanas. Aprofundando esta análise
acreditamos que esta realidade se torna pujante, com a intensificação de maiores
contatos humanos, de uma ação dinâmica das relações sociais no interior de uma imensa
diversidade étnica-cultural que caracterizava o Império Romano. Esse fato está muito
presente nos discursos apologéticos cristãos quando situam a expansão do cristianismo
em diferentes regiões do império e etnias 28 , porém ao mesmo tempo atua como fator
fundamental para a delimitação das diferenças entre o cristianismo , o judaísmo e o
politeísmo.

É o que parece também ser a preocupação das lideranças intelectuais não-


cristãs, quando Celso resgatado por Orígenes, pressente este ambiente tão diverso,
cosmopolita, com novas aberturas e posicionamentos ideológicos, redimensionando os

28
Contra Celso, I, 26,27,59; V,62, etc. Refere-se a gregos, a bárbaros,etc.
31

estatutos, os graus de sociabilidade e fidelidade que uniam e diferenciavam uns mais


que outros na urbs romana. Todo o livro terceiro de Contra Celso apresenta essses
embates cuja ênfase temática gira em torno dos cristãos estarem “contaminando todos
os espaços da cidade, sejam nas praças, mercados, dirigindo-se a toda espécie de gente,
a qualquer ouvinte, como escravos, mulheres de rua, profissionais de categorias
inferiores, meninos jovens, como também o fato de adentrarem nas casas e alterarem as
relações senhor/escravo, pais/filhos,etc. Celso então conclui “nenhum homem prudente
crerá nesta doutrina, retraído pela multidão mesma dos que a abraçam” ( III, 73). A
discussão é construída justamente no posicionamento quanto aos diferentes status dos
indivíduos e o seu grau de pertencimento às bases da cidade. Para Orígenes, os
indivíduos pertencem a categoria de gênero
humano(a;nqrwpoj ge,noj), isto é, a humanidade toda, sem
distinção, deve abrir-se para o conhecimento das “verdades da fé cristã”29 .

Estas questões, do pluralismo religioso imediato correlacionam-se a concepção


também diversa do sagrado, do entendimento do público e do privado e, o envolvimento
do indivíduo e suas relações aí imbricadas. Dentre esses meios de devoção que se
tornavam efervescentes nos séculos II e III d.C., J. Bayet se pergunta se a pureza, a
continência, a ascese, a imitação divina, poderiam dar certa garantia de salvação e
sobrevivência ? O autor situa que já antes do Principado, os cidadãos já andavam
alheios às celebrações oficiais e buscavam colocar-se sob a proteção de um deus mais
íntimo(1984: 208-209). De forma heterogênea, várias foram as inscrições no alcance de
tal objetivo e a pax romana facilitou o deslocamento e fluxo dessas novas tendências.
Porém, a tolerância ou o descuido tiveram seus limites e os imperadores como
pontífices máximos seguiam suas próprias preferências e respondiam com aceitação ou
resistência a certos movimentos de opinião pública.

Nesta confrontação entre o humano e o divino, as especulações escatológicas, as


preocupações moralistas de doutrinas filosóficas, o esforço de unir conhecimento e fé, o
culto e a magia, mesclaram-se na construção ideológica de um poder sobrenatural que
marcou profundamente o ambiente religioso do Império Romano entre o final do século
II e metade do século III. Verifica-se também a tendência henoteísta, de concentrar as

29
Questão que será mais desenvolvida no quarto capítulo.
32

forças divinas sob a hegemonia de um deus sobre outros deuses ou a acumulação dos
símbolos e imagens dos deuses mais poderosos em um santuário privilegiado(BAYET,
J. 1984: 254). Tal foi o caso do imperador Heliogábalo (218-222 d.C.) com a adoração
ao deus Sol e que transferiu ao seu templo antigos protetores mágicos do poderio
romano(BAYET, J. 1984: 264). O culto público do Sol representou o símbolo de
divindade suprema, fonte de vida física e de iluminação intelectual. Essas expressões
religiosas marcaram as cidades greco-orientais, regiões originárias e impulsionadoras de
todas essas tendências. As condições de produção da identidade cristã atravessam este
contexto de mudanças e transformações, e acompanha a demanda de cultos que tinham
se estruturado em sistemas passíveis de adaptação fora da sua comunidade de origem.

Inserimos o cristianismo como um novo culto nascido neste contexto plural e de


transformações, no qual convoca os indivíduos a uma escolha. Vamos confrontar esta
realidade à religião cristã proveniente da Palestina, monoteísta, que se inseria no
Império, entrando em conflito com os parâmetros normativos das relações de poder.
Para J. Bayet, no caso do cristianismo, uma das religiões de salvação, o conflito não
podia ser mais trágico: ao recusar o sacrifício ao imperador, o cristão agravava sua
impiedade com um duplo delito, se auto-excluia da comunidade política e negava o
poder sobrehumano e atual do monarca(1984: 206). Nessa tensão característica dos
primeiros séculos do cristianismo, Orígenes e Celso nos põem a par de suas formações
ideológicas distintas. Celso, filósofo pagão, argumenta a favor do juramento ao
imperador, constítuido entre os homens, uma vez que toda a providência que existe
sobre a terra dele se recebe. Toda a questão surge em decorrência do juramento feito ao
genius do imperador. Para os politeístas o genius imperial significava simbolicamente
um desdobramento de sua própria natureza, humana e divina (BAYET, J. 1984: 197).
Esta idéia se intensifica ainda mais com a noção de numen, na qual se cria que o
imperador emanava uma potência criadora, de verdadeira essência divina, que se
transmitiria a seus descendentes, sendo portanto uma virtude imortalizadora(idéia
advinda dos reinos helenísticos). Essas disposições haveria de exercer uma forte
atração sobre os governantes e a sacralidade imperial mostrou a tendência de transferir-
se dos mortos aos vivos, criando-se a ideologia do soberano-deus terrestre que o Oriente
dos Partos sugeria aos imperadores romanos (BAYET, J. 1984: 204).
33

Em contrapartida, nas palavras do filósofo cristão Orígenes, o “gênio” ou


“fortuna” do imperador, significava um demônio malvado e perverso, por esta razão o
juramento constituía uma grande transgressão (Contra Celso, VIII, 65). Ao dar resposta
àquela argumentação de Celso, Orígenes afirma que não se tem dado ao imperador de
modo absoluto, tudo o que há sobre a terra nem tampouco tudo dele se recebe, mas
ressalta que a providência vem do único artífice do universo, Deus 30 (Contra Celso,
VIII, 67). Recuperando os enunciados de Celso, que Orígenes articula com perspicácia
dando a entender que se está travando um diálogo 31 , o filósofo não-cristão defende a
memória constitutiva de sua história fazendo referência a doutrina homérica da
instituição dos reis, da autoridade dos deuses e de seus antepassados. O não
reconhecimento a tal pressuposto, implicaria no abandono à unidade imperial e sua
providência.(Contra Celso, VIII, 68, 69). Nota-se a discussão que Orígenes dá lugar
centrando-se entre poder constituído entre os homens e além deles. O objetivo
aparentemente, é o de fazer avançar uma ou mais formações discursivas, em um
deslocamento de fronteiras.

De forma geral32 , os discursos cristãos promovem a exclusividade de um Deus


salvador na adoração e uma maior simplicidade nas formas de devoção: “piedade para
com o Deus supremo e orações ao mesmo” (Contra Celso, VIII, 60, 64, 66). Nesta
direção situam-se, excluindo outras práticas como do próprio monoteísmo judaico,
tronco originário de sua doutrina. Para tanto, os cristãos adotaram uma postura mais
aberta, universalizante que contrastava diretamente com o exclusivismo étnico,
identitário do pertencimento à comunidade judaica em particular. Além dessa
característica básica, vemos ainda na comunidade judaica a prática da circuncisão, a
obediência às leis mosaicas, que os cristãos chamaram de profundo legalismo; também
se identificavam uma casta sacerdotal e uma série de festas religiosas que obedeciam à
revelação divina na história, com estrita observância aos dias considerados santos, às
regras alimentares, etc. As práticas e dogmas do judaísmo suscitaram admiração no

30
As mesmas ideologias estão presentes em Atenágoras de Atenas, Petição em favor dos cristãos, 4;
Teófilo de Antioquia, A Autólico, 11.
31
É interessante este tipo de discurso porque projeta-se um autor fisicamente inexistente, porém é
interpelado ideologicamente, como se estivesse de viva voz ali presente, em função de construir posições
distintas, de remarcar essas diferenças e afirmar conhecimentos, reconhecer identidades e alteridade.
32
A particularidade cristã será enfaticamente analisada no último capítulo. No momento sua aferição será
de caráter introdutório.
34

mundo romano, mas, muitas vezes um profundo descrédito. Os judeus também


apresentaram tendências distintas, como os grupos dos fariseus, saduceus, essênios, etc.
No entanto, não admitiam nenhuma estátua no interior de seus templos, nenhum deus
em adição ao seu próprio. O cristianismo, apropriou-se dessa característica em
particular, desenvolvendo-a em sua composição doutrinária. Genericamente, embora o
cristianismo conservasse a autoridade das Escrituras Sagradas quanto ao Antigo
testamento, da revelação de Deus na história hebraica (incluindo seus patriarcas e
profetas), por outro lado, não reconhecia que esta revelação de Deus tivesse parado na
história e no tempo. Toda revelação divina encontrava sentido na culminância do
advento do Messias, ungido de Deus na terra. Portanto, toda referência cristã passava a
ser cristocêntrica.

Neste sentido convida-se ao indivíduo à conversão, a reorientar-se enquanto


pessoa, envolvendo uma completa insatisfação pelos antigos padrões de identidade,
implicando em ruptura com o passado que vai desde as tradições legalistas judaicas até
às tradições dos antepassados firmadas pelo politeísmo; constituindo assim, um ato
performativo ao tornar-se cristão. A conversão 33 demonstra um novo posicionamento
para com Deus e nova esperança no seu destino pessoal. Além disso envolve um caráter
radical de mudança, que em termos de identidade social, ultrapassa-se as barreiras de
família, origem étnica e status social. A identidade cristã estava intimamente ligada à
interpretação da pessoa de Cristo. Pessoa da qual as autoridades romanas demonstraram
pouco conhecimento, pelo que sabemos até então. Porém, os seguidores de Cristo,
identificados como cristãos, passaram a ser reconhecidos, mesmo que fossem apenas
pelo nome, conforme nos informam muitos apologistas e autoridades romanas. Dentre
estes, Plínio anteriormente citado e os imperadores subseqüentes. Fato que tomamos
conhecimento através das perseguições.

A história dos mártires dentro do cristianismo é sintomática para percebermos os


conflitos surgidos entre a lei dos homens e as leis divinas que se repercutiram nas

33
Segundo H. C. Kee, a conversão envolve todo um processo de transição das “trevas” para a “luz”, do
caos para o sentido. Nessa experiência, atesta-se um novo ambiente de vida e a nova identidade que por
meio dela se estabelece. Isto se dá pelas ações da comunidade, pelas quais essa apóia e acolhe o iniciado.
O autor discute toda esta questão no capítulo, “Identidade social e pessoal em a nova comunidade”,
conforme mencionamos na introdução, nos debates historiográficos.
35

perseguições imperiais e locais. Embora os mártires representem um segmento apenas,


dentre outros cristãos, expõem uma face bidimensional do processo de identificação
cristã quanto ao desconhecimento por parte das autoridades romanas sobre quem de fato
eram os cristãos e, por conseguinte, os cristãos buscam justificar-se delimitando suas
fronteiras, seus próprios símbolos . Como já vimos, considerando quão enraízada se
encontrava a religião politeísta nos valores culturais e morais que norteavam a
organização social , a religião cristã viria a ser mais uma a enfrentar antagonismos.
Várias foram as interpretações dadas aos cristãos: de uma perigosa superstição34
que voltava a desencadear-se em Roma (Tácito, Anais, XV) e de uma superstição
irracional e sem medida 35 (Plínio dirigindo-se a Trajano, Epístola 10, 96); em várias
ocasiões foram os cristãos acusados de criminosos. No reinado de Marco Aurélio(161-
180 d.C.), em diversas províncias se insurge a fúria da população das cidades contra
eles. Há interessantes cartas que as comunidades cristãs de Vienna e Lyon dirigiram a
seus irmãos de Ásia e Frígia sobre a intensidade das perseguições. Muitos foram
decapitados ou jogados às feras. Por volta de 177 d.C., os cristãos foram submetidos às
torturas, às ve xações populares, e muitos escravos pagãos se insurgiram contra seus
mestres cristãos, acusando-os de incesto e de canibalismo (BEAUDE, P. 1993: 98);
essas foram as interpretações dadas pelos politeístas aos cristãos, por se recusarem
participar das manifestações cívicas tradicionais. Tais recusas fizeram com que os
cristãos fossem acusados de viverem misteriosamente, de cometerem sacrilégios e de
ateísmo. Os politeístas classificaram esta nova manifestação religiosa como estranha,
conforme atestam os interrogatórios dos mártires.

Na análise desses acontecimentos percebe-se que no século II d.C. houve


incertezas na política imperial, ou seja, hesitações quanto à aplicação das leis jurídicas
contra os cristãos. Diante desses fatos, houve um certo embaraço da autoridade quanto
a efetuar um processo jurídico sistemático. Segundo C. Lepelley as perseguições

34
Na interpretação politeísta o termo superstitio poderia significar uma crença em que o adorador no ato
de culto apelava a todos os excessos, cujo comportamento destinava-se atrair a benevolência divina.
Plínio, o Jovem, assim interpretou, tendo em vista ter verificado entre os cristãos rituais como a prática
da Ceia, acompanhadas de preces e hinos(Carta a Trajano, X – sobre os cristãos de Bitínia). Com o
cristianismo a mesma palavra, designaria as religiões dos falsos deuses, considerados como demônios.
35
Plínio, Suetônio e Tácito, foram escritores contemporâneos que teceram suas críticas aos cristãos, pelos
quais se identifica o julgamento de aristocráticos que interpretavam o cristianismo como um dos
múltiplos degradados cultos estrangeiros. Associaram um número de características negativas ao nome
de cristão, e por associá-lo a uma nova superstição, o cristianismo perdia a sanção de antiguidade,
elemento este, tão arraigado na religião dos romanos (BENKO, S. 1985: 21).
36

assumem uma característica local, havendo uma intolerância religiosa do governador de


província conforme modalidades particulares. Portanto, os governantes estavam
sujeitos à opinião pública, às denúncias e acusações recebidas (1969: 30-31). Vale
ressaltar que os imperadores concediam autoridade e permissão para o cumprimento dos
processos gerados contra os cristãos, tendo em vista a lei de lesa majestade, inclusive a
execução deles, mas os magistrados em suas localidades aplicavam-nas com uma boa
margem de interpretação pessoal; eles recebiam as denúncias advindas dos politeístas
ou até mesmo de cristãos já divididos pelas heresias. Entretanto, durante este século II,
os cristãos não apareceram demasiadamente perigosos para que se decretasse um
extermínio sistemático, segundo a tradição religiosa, a preocupação era a de velar pela
ordem pública, de interesse comum entre os magistrados romanos (BEAUDE, P. 1993:
95).

A partir do III século d.C. registram-se novas perseguições no reinado de


Septímio Severo, tratando-se de um período de dominação militar. Constata-se um
maior número de conversões a nível local como nas cidades da Palestina, Alexandria e
Cartargo. O imperador decide proclamar(202 d.C.) a proibição da conversão ao
judaísmo e ao cristianismo(MATOS, H. 1987: 32). Tudo indica ter sido motivada por
interesses políticos devido a penetração de judeus e cristãos nas atividades financeiras
da cidade, demonstrando um ascensão social de ambos, principalmente em Alexandria.
Esta situação teria levado à confiscação de bens materiais das comunidades cristãs,
verificando-se uma alteração no seu alcance, ou seja, as perseguições também se
voltavam para os líderes das igrejas. Portanto as perseguições atingem com intensidade
a cidade de Alexandria, fazendo mártir Leônidas, pai de Orígenes (ocasião em que
Orígenes dá incremento a sua formação teológica e ao ensino); a escola de catecúmenos
foi fechada e alguns mestres são executados. Perpétua e Felicidade, ambas mulheres de
diferentes estatutos, também foram martirizadas em Cartago. Novamente as
perseguições recomeçam com o Imperador Maximino (235 d.C.) estabelecendo um
decreto contra os chefes da Igreja em Roma, Palestina e Ásia menor. Foram afastados
da corte alguns funcionários cristãos e exilados o Bispo de Roma, o papa Ponciano,
junto com seu adversário Hipólito (MATOS, H. 1987: 32). Só então veremos pela
primeira vez a instituição de uma perseguição sistemática com o imperador Décio em
250 d.C., que vinha por em risco a continuidade do trabalho exegético de Orígenes na
Palestina, que todavia, até então já registrava uma imensa produção literária.
37

O poder imperial tinha de inquietar-se com a doutrina cristã: os cristãos


apareceram como opostos ao gênero humano(odio generis humani convicti, de Tácito,
Anais, XV, 44) se negando a atuar nas celebrações do culto oficial, cujo ritmo ancestral
afirmava a romanidade do império; não participavam em muitos atos sociais da
comunidade, pois estes estavam relacionados com a realização de rituais religiosos.
J. Bayet acrescenta a estes fatos que o sentimento popular, por sua vez também
desconfiava desses ditos cristãos: “quem eram esses homens que não queriam realizar
os gestos de piedade mais elementares, quase puramente mecânicos com os que cada
qual se sentia solidário de um largo passado ?” (1984: 280). Ou mesmo, porque não se
dispersavam na heterogeneidade de cultos de mistério, da prática politeísta de seu
tempo? Essas perguntas são as mais elementares que percorrem esta pesquisa. Nas
próximas páginas verificaremos a mesma heterogeneidade no pensamento filosófico que
marcou a época imperial, o diálogo estabelecido do cristianismo com as escolas
regionais e a crescente participação nas criações ideológicas do patrimônio espiritual e
filosófico greco-romano.

2.2. Escolas Filosóficas Regionais

Ao mesmo tempo em que as diversas manifestações religiosas e suas


representações estavam se difundindo no Império Romano, sejam elas politeístas ou
monoteístas, verifica-se a pluralidade de escolas regionais e apropriações estabelecidas
com a cultura filosófica greco-romana que vinha sendo discutida nos primeiros séculos
da era cristã. Interessa-nos reconhecer temáticas transversais que abarcam o recorte
temporal do processo de identificação cristã pelos discursos produzidos entre seus
contemporâneos. Essas relações são estabelecidas porque compreendemos a identidade
cristã como um processo social e cultural que se constrói de diferentes componentes e
de interações mantidas entre os agentes envolvidos e seus lugares de fala.
38

Ao situarmos as emergências de códigos que recaem sobre uma visão, ética,


convêm resgatar os discursos moralistas pregados por diferentes escolas 36 , da qual o
cristianismo participa. Selecionaremos dentre a diversidade de especulações filosóficas
o estoicismo, o epicurismo, o neoplatonismo por considerá- los mais contemporâneos
aos debates filosóficos e escolas regionais marcantes no período imperial37 . Podemos
perceber neste contexto que devido a própria concepção e a prática do politeísmo em
seu caráter plural, não dispunha de uma ética, esta ficava a cargo da filosofia.
Daremos ênfase às reflexões e solicitações de cunho antropológico e metafísico, que
também atravessaram a cultura filosófica de não-cristãos e cristãos.

Localizamos em época imperial primeiramente duas escolas rivais: o epicurismo


e o estoicismo. Discutem a respeito da verdade e do bem. Jean Brun expõe que ambas
as escolas “irão propor ensinar ao homem os critérios da certeza, suscetíveis de lhe dar
regras de vida e ação capazes de reconciliar com a natureza”(1986: 32). Entretanto, os
epicuristas receberam fortes olhares críticos pelos seus rivais, tendo sido interpretados
como ateus38 por crerem unicamente na existência da matéria(composta de átomos),
negando a realidade espiritual sobre o mundo material. Daí subentende-se a crença de
um destino inevitável(de acontecimentos naturais) a todos os home ns, em obediência às
leis derivadas dos movimentos dos átomos. Portanto, entendiam que “nesta concepção
não havia espaço para os deuses, posto que não se lhes requeria para nada”(LOZANO,
A. 2000: 28). Podemos inferir, que entre os filósofos não-cristãos também houve
posicionamentos distintos sobre o politeísmo greco-romano, em relação à crença na
ingerência dos deuses 39 sobre os assuntos humanos. Nesse sentido, advogavam a
inutilidade da adoração aos deuses ou o que se seguia ao ato de culto em sacrifícios e
orações; nenhuma relação poderia haver com poderes transcendentais.

36
Os pesquisadores chamam atenção também para a produção dos escritos judaicos de séculos passados
que também focalizaram essa questão.

37
Para Emilio Mitre, a crise do Império Romano provocou distintas tendências: os estratos mais altos da
sociedade romana se orientaram até doutrinas eminentemente filosóficas como o estoicismo, o
pitagorismo, etc. (1980: 111)
38
Percebe-se que além dos cristãos, os epicuristas também receberam esta interpretação. Porém
diferentemente da interpretação epicurista, o cristão Orígenes argumentaria a favor da “lei da natureza”
princípio que remete a idéia de prederteminação de tudo que existe por Deus. Nada acontece sem essa
lei, que ordena o curso do mundo e dos homens. (Contra celso, V, 37,40)
39

Logo, para os epicuristas, de base profundamente materialista, o gozo supremo


da vida é a meditação filosófica alcançada por sábios40 que propõem uma vida retirada e
tranqüila, condições para conquistar a eudamonía perfeita, enquanto para o sábio
estóico importa considerar a relação com as coisas mundanas desde que não se submeta
às paixões. Os estóicos também conhecidos pelas doutrinas da Stoá, identificam a
Razão como princípio universal que rege tudo. A Razão guiava o mundo e era dever do
homem submeter-se à Providência e viver de acordo com um plano racional41 .
Interessante se torna a visão formulada a respeito do campo da natureza, dada a
freqüência com que aparece nos textos cristãos e não-cristãos. Para um estóico por
exemplo a natureza correspondia não ao mundo natural, visível, mas a natureza
específica do homem, quer dizer, o Logos ou o discernimento racional que lhe é
próprio(LOZANO, A. 2001: 30). Se estabelecermos as relações da interdiscursividade,
poderemos inferir a apropriação desta idéia estóica sobre a natureza nos discursos de
Orígenes, na posição de filósofo, mas com uma releitura sobre a valorização do
discernimento racional, a qual se subordinava às interpretações da revelação bíblica.

Outra consideração é a ênfase dada pelos estóicos à busca em si mesmo da


superação das angústias humanas. A felicidade não dependia de coisas externas, como
a riqueza, o poder, mas a prática de virtudes 42 era o caminho para a superação da
irracionalidade que acometem o homem sob domínio das paixões, dos impulsos, dos
afetos. M. Foucault afirma que esta configuração da filosofia estóica de época imperial
focaliza a chamada a si, aos cuidados consigo, um tema bastante antigo na cultura
grega porém, agora mais problematizada e de alcance mais geral; significou “a
inquietação com todos os distúrbios do corpo e da alma que era preciso evitar por meio

39
Não negavam a existência dos deuses, porém os via como degradados vivendo nos espaços
interestelares completamente fora do mundo e sem contato com ele. Nada se explicava pelo atuar
divino(In: LOZANO, A. 2001: 28)
40
Verificamos que embora os filósofos tenham sido muitas vezes motivos de zombaria, por esconder seus
apetites e ambições, indicando uma certa ambigüidade em sua “arte de viver”, sua figura ou a do Sábio,
de forte cunho moralista, são sobrevalorizadas tanto por ditos representantes pagãos como por mestres
cristãos. Estes últimos intensificaram em suas prédicas com deslocamentos específicos a prática de uma
vida de autênticos filósofos, como a ascese e austeridade sexual a partir de “um sentimento novo da
presença de Deus”(expressão utilizada por Peter Brown em “Antiguidade Tardia”, p.240).
41
LOZANO, A. “La religiosidad griega en época helenística”. In: História: Questões e Debates,
Curitiba, n.33, 2001, p.30. Editora da UFRJ.
42
Teólogos, polemistas cristãos também chamariam atenção para a prática da virtudes como um caminho
de maior proximidade com a divindade, na busca da imagem e semelhança do homem com Deus.
40

de um regime austero”(1985: 45-73). M. Foucault tem em mente os textos de fundo


estóico protagonizados por Sêneca, Epícteto, o imperador Marco Aurélio,
principalmente, e identifica a herança trazida pela Academia acerca do
individualismo(que havia marcado a racionalidade grega) mas, ressalta o cuidado para
consigo como uma prática social dos primeiros séculos do império, por ter alcançado
limites mais amplos à medida que filósofos estabeleceram conversas (com amigos,
confidentes), correspondências, conselhos fornecidos a quem deles necessitava.
Constituira uma prática que implicou em diversas ocupações 43 . Mesmo assim ainda fica
a dúvida acerca do limite de sua extensão, do alcance até extratos mais inferiores.

Os estóicos traziam uma interpretação diferente acerca do mundo em


contraponto aos gnósticos. Esses últimos apresentavam uma visão pessimista e dualista
que percebiam o homem e o mundo constituídos de uma parte má. Os filósofos estóicos
em contrapartida tocavam na questão da inseguridade da vida humana, mas apontavam
um caminho para a sua superação através da fé na divina providência e na personalidade
moral do homem, convocando-o a ouvir sua própria consciência. “As Meditações” de
Marco Aurélio são exemplos de seus conselhos a respeito dessa consciência moral, na
qual o homem deve exercitar, atentando para o dever quanto aos seus semelhantes44 .
Nesta direção A. Lozano identifica semelhanças com o cristianismo, porém com
múltiplas discrepâncias. Desenvolve essa reflexão ao afirmar que o estoicismo e
cristianismo “sempre foram dois mundos análogos, mas diferentes(LOZANO, A. 2001:
32).

Essas intermediações às construções ideológicas são pontuadas a respeito dessas


formações discursivas quando reconhece que todo discurso se constrói no debate com
outros(PINTO, M. 1999:27), por conseguinte eles apresentavam essa capacidade de
interagir com o seu ouvinte ou leitor à medida que se aproximavam (até
estrategicamente) de um conjunto de sentidos e significados inteligíveis em um dado
contexto ou situação sócio-cultural. Percebemos essas configurações de temáticas a
princípio filosóficas, ent retanto acabaram resultando em proposições que recaíam sobre

43
Foucault sinaliza os cuidados para com o corpo, regimes de saúde, exercícios físicos sem excessos,
meditações, leituras, anotações, etc. (1985: 56,57).
44
Verifica-se que os homens do Mediterrâneo na antiguidade tardia tendiam para aceitar que o poder
divino não mais concentrava-se em instituições estabelecidas, com ênfases crescentes para um caráter
41

uma prática diária, um estilo inconfundível de comportamento ou conduta.


Estabeleceram sobretudo uma concorrência nessas construções paradigmáticas que
marcaram cada representação de acordo com seu locus social, espacial, temporal e seus
enfoques particulares, quer sejam a níveis teológicos, filosóficos ou até psicológicos.

Nesta efervescência de idéias, cabe inclur o neoplatonismo 45 , outro movimento


filosófico de língua grega que teceu parale los com estes discursos contemporâneos.
Notadamente o neoplatonismo, segundo muitos pesquisadores, era um “ar que se
respirava”. A filosofia como “medicina da alma” haveria ainda de demarcar outros
preâmbulos, ainda com referências àquele ideal humano da educação física, intelectual e
moral dos gregos, mas também efetuando a reestruturação de um certo número de
elementos já dados. O neoplatonismo assentou suas idéias desde a primeira metade do
século II d.C. até ao decreto pelo qual Justiniano ordena o fechamento da escola de
Atenas em 529. Com mais precisão o neoplatonismo pode ser aplicado à filosofia de
Plotino(205-270 d.C.) com máxima expressão na obra Enéadas e a dos seus discípulos,
tendo percorrido as cidades de Alexandria, de Roma e Atenas. Igualmente ao
estoicismo, epicurismo ou mesmo ao gnosticismo, os neoplatônicos fundiram diferentes
formas de pensamento(de Platão, de Aristóteles, inclusive dos estóicos)dialogando até
com o cristianismo nascente. Eles criaram uma espécie de síntese nova do pensamento
grego, em que os desejos de salvação ou redenção são acrescentados aos argumentos
lógicos. Do platonismo, em suas releituras, tem partido os únicos contra-ataques
perigosos que a cultura antiga tinha dirigido contra o cristianismo. Se concentram nos
escritos de Celso(filósofo polemizado por Orígenes), Porfírio e posteriormente com o
imperador Juliano(GIGON, O. 1970: 146).

Novamente as indagações acerca do homem, de sua existência, do cosmos, são


pontuadas com diversas releituras dos filósofos clássicos e o que vamos discutir, serão
elementos que consideramos mais fundamentais para a discussão apresentada neste
capítulo. Uma das singularidades trazidas por Plotino é a presença de um novo tipo de
sábio: o contemplativo. Desta categoria se produzem as muitas assertivas de Plotino. O
contemplativo é aquele que “no e pelo isolamento, parte simultaneamente de si próprio

mais pessoal. Haja vista as incursões das religiões mistéricas e suas práticas que incidiam sobre a mesma
necessidade, como vimos no ítem 2.1.
45
Tudo indica que também tenha fechado seu círculo entre as famílias patrícias romanas.
42

e das coisas para subir, numa ascensão gradual até o Princípio Universal de todas as
coisas”(BRUN, J. 1991:34,35). Essa busca ao princípio universal tem relação com o
Uno e para alcançá- lo deve-se percorrer a via da contemplação. Para Plotino não é algo
que transcende a natureza humana, mas concernente a volta ao homem interior, o qual
deve através de exercícios espirituais reconhecer o seu eu mais profundo, a sua
dimensão divina. Há um verdadeiro itinerário de progresso espiritual: 1) a moral e a
ética, que visava assegurar a purificação inicial da alma; 2) a física que buscava mostrar
a inutilidade das coisas sensíveis; 3) a metafísica, que dirigia a alma até a contemplação
do divino(BRUM, J. T., 2001:6).

Para nós essas reflexões são significativas, pois envolvem o diálogo entre
neoplatonismo e o cristianismo, assim como lutas de poder quanto aos discursos, as
posições assumidas por quem fala, de um lugar, representando uma determinada
conformação social e religiosa, um direito reconhecido institucionalmente. Como
vimos o caminho para se identificar com Deus(Supremo, Superior, o Maior) vem do
conhecimento contemplativo para afastar-se do mal, permitindo ao indivíduo
empreender uma auto-purificação, num trajeto ascencional até o alcance da Verdade.
Diferentemente desta visão, o cristianismo daria toda ênfase a transcendência de Deus
com o acréscimo de que “não é o homem que sobe em direção a Deus até conseguir
identificar-se com ele, mas é Deus que desce para o homem por meio da Revelação e da
Encarnação”(BRUN, J. 1991:107). Mais um elemento de distinção se apresenta para J.
Brun: o cristianismo fala mais à pessoa do que ao indivíduo, em termos gregos, como
parte de um Todo. A pessoa está num plano superior à espécie, possui em si esse
caráter sagrado ao qual liga a idéia de que foi criado à imagem de Deus(Ibidem, p.108).
No entanto, para os cristãos os homens jamais serão deuses, mas encontrarão a
felicidade num outro mundo se agirem em busca da perfeição. O cristão encontrará a
sua máxima realização na ressurreição, na vida futura, no céu. Em contrapartida, para
os neoplatônicos, a perfeição que a alma procura não está fora, em um outro mundo,
mas dentro, em um eu mais profundo. Esse é um diferencial entre neoplatonismo e
cristianismo.

Imaginemos então as lutas estabelecidas por esses diferentes pensamentos e


escolas, que se firmaram no II e III séculos d.C. Ao abordar a essencialidade do Uno,
por exemplo, as disposições dogmáticas e filosóficas se fizeram presentes e receberam
43

suas divergentes interpretações. Celso, filósofo neoplatônico, nos dá essas


demonstrações do conflito de idéias, ao discorrer acerca do divino condenando a visão
judaico-cristã de não admitir divindades servidoras a um Deus Supremo, nem admitir
que o Deus Supremo dos judeus fosse o mesmo dos gregos, dos egípcios, etc. Se
aparentemente esta noção do Deus Uno carregava tons filosóficos, para Celso resultou
em admitir uma certa hierarquia divina, ou seja, o Deus Supremo que governava aos
deuses como o imperador aos homens 46 . Aplicava-se à vida prática dos cidadãos
comuns, fiéis às tradições religiosas mantidas por séculos, por seus antepassados. Celso
aspirava que “os cristãos reconhecessem sua pertença ao mundo do direito, da lei e da
piedade tradicional e que se sentissem dispostos a defender este mundo comum frente
aos bárbaros, unidos aos representantes das antigas tradições”(GIGON, O. 1970: 167).
Para Orígenes este pertencimento se redefinia sob outro referencial, o qual será
discutido no quarto capítulo.

Podemos reconhecer nesses debates travados entre as diferentes escolas


filosóficas que floresceram nos primeiros séculos do império, a problematização de
questões pertinentes à existência humana e à natureza. Pagãos e cristãos atravessaram a
mesma crise de sentido e com pressupostos intelectuais tentaram dar respostas às
angústias e suas defesas contra essas angústias. Cecile Daude analisando a obra de
Clemente de Alexandria, O Pedagogo por exemplo, argumenta que o aborrecimento, o
desgosto, a desgraça, o sentimento de inanidade de todas as coisas e a idéia de que a
vida social era somente um drama, foram correntes em seu tempo. Algumas dessas
temáticas presentes inclusive em discursos médicos gregos como o de Galeno que foram
articuladas por Clemente em suas obras. (In: Mactoux M. e Geny, E. 1995: 41-83).

Resgatar este legado cultural da época imperial através da produção filosófica


que se limitava aos restritos círculos dos notáveis, bem-nascidos, dos textos moralistas
tal como se apresentaram, significa na interpretação de Peter Brown analisá- los sob uma
nova perspectiva quando comparados aos discursos cristãos. Exortações filosóficas de
escritores como Plutarco e Musônio Rufo, antes dirigidas aos leitores das classes
superiores, são retomadas com entusiasmo pelos guias cristãos da alma(citando
Clemente de Alexandria) e dirigidas a um público de respeitáveis comerciantes e

46
Posição desenvolvida por Porfírio(neoplatônico) anos à frente, na segunda metade do III século.
44

artesãos citadinos47 . P. Brown argumenta que se as obras de moralistas filósofos (sécs.


II e III d.C.) fossem pouco lidas pelas elites em comparação às obras de Homero, no
entanto, percebe-se que: “a obra dos filósofos embora pudesse ser vastamente ignorada
pelo notável citadino médio, adensou-se através da prédica e da especulação cristãs
para formar um sedimento profundo de noções morais difundidas entre milhares de
pessoas humildes” (1992: 241). Fazendo um mapeamento da História Eclesiástica de
Eusébio podemos conc luir que a efetivação dessa prática cristã ocorreu também através
das trocas de correspondências, de tratados pessoais entre os líderes das diversas
comunidades em cada cidade e que provavelmente traziam temáticas a serem
discutidas 48 ; as viagens, os contatos estabelecidos, as pregações ao público leigo, as
assembléias convocadas que traziam ao conhecimento do seu auditório as prerrogativas
dos problemas existenciais tais como se traduziam em seus dias, de acordo com
especificidades locais.

Concluímos que as divergências das interpretações construídas pelas escolas


regionais filosóficas, interpeladas em seus discursos para esboçar suas “verdades”,
suscitaram: profundas reflexões, fizeram “falar” distintos posicionamentos ideológicos,
colocaram à superfície temáticas problematizadas culturalmente, despertaram a atração
para um público específico e marcaram diferentes conformações identitárias.

47
Brown considera a mais profunda revolução do período clássico tardio foi a democratização
surpreendentemente rápida da contracultura dos fiósofos da classe superior pelos dirigentes da Igreja
cristã. “Antiguidade tardia”, pp. 240,241.
48
Se tomarmos as cartas paulinas como exemplo, dirigidas às várias comunidades da Ásia percebemos de
fato esta realidade. Várias questões morais foram trabalhadas em suas epístolas que deveriam ser
partilhadas por toda comunidade, com diversas recomendações aos relacionamentos entre os seus
membros , de socorro mútuo, benevolência, de orientações quanto ao viver diário, aos bens desta vida,
etc. Para Brown, a especificidade cristã diz respeito à aplicação de caráter universal dessa modalidade de
ação e seus efeitos sobre a vida privada do crente. Ibidem, pp. 248-252.
45

3.ORGANIZAÇÃO E AFIRMAÇÃO DO CRISTIANISMO

3.1. Debate Doutrinário

Até agora, procuramos analisar principalmente o contexto cultural e as


transformações que acompanham as manifestações religiosas no Império, no qual
inserimos a construção da identidade cristã segundo os discursos apologéticos. Se nesse
espaço plural não foram poucos os conflitos externos do cristianismo com o Estado
imperial e com as ações políticas implementadas sob profundas bases religiosas do
paganismo romano oficial, outros problemas surgiriam com os conflitos internos
vivenciados pelas comunidades cristãs.

Temos em vista problematizar o contexto de formações plurais nos embates


dogmáticos travados entre os próprios cristãos. Em nosso entendimento os conflitos
surgidos entre as diferenças quanto à interpretação das doutrinas cristãs que se
traduziram em diversas tendênc ias49 , acabaram por produzir no cristianismo um imenso
esforço de auto-defesa, de explicitação de seus dogmas, de esclarecimento à opinião
pública e a preocupação em definir a atribuição dada aos cristãos num processo de
diferenciação entre nós-eles.

Reconhece-se a importância dos apologistas na história interna da Igreja,


conforme defendem os historiadores M. Simon e A Benoit, principalmente no que
concerne ao trabalho da exposição racional da fé(1987: 125), a qual foi estrategicamente
46

utilizada para combater os grupos dissidentes. Alexandria foi o centro da formação


intelectual, científica, do teólogo-filósofo Orígenes, e se caracterizou em um local de
convergência e diálogo de sistemas filosóficos e religiosos bastante diversos. Dentre
eles, a gnose assentou fortes raízes nas produções culturais locais bem como na região
da Ásia Menor. É interessante ressaltar as posições distintas assumidas por líderes
cristãos quanto a uma maior ou menor proximidade à doutrina gnóstica, que resultaram
no esforço de aperfeiçoá- la ou refutá- la em diferentes contextos e espaços.

Alexandria viveu no século II o apogeu do gnosticismo. Já contava em épocas


anteriores com o respaldo da inserção da filosofia grega aliada à exegese bíblica, da
interpretação alegórica, através das expressões judaico-alexandrinas, notadamente com
Fílon, no século primeiro. O gnosticismo ou gnosis, como movimento religioso e
filosófico, bastante diverso em sua apreensão, será problematizado tendo em vista a sua
influência sobre o cristianismo emergente, sua proximidade com os contemporâneos
Clemente e Orígenes, de Alexandria, e as críticas estabelecidas entre os intelectuais
cristãos ou conflitos com membros das seitas gnósticas50 . Também verifica-se que as
temáticas levantadas pelo gnosticismo já havia sido de certo modo focalizadas por
Platão, o que indica o aperfeiçoamento de suas considerações, e da referência cristã à
cultura clássica. Esses intercâmbios enriquecem toda a produção cultural dos antigos e
mais uma vez a diversidade é marcante em todo o processo de construção dos saberes.
Por si só o gnosticismo apresentou uma mescla de elementos provenientes de regiões
diversas, greco-romanas, orientais, etc. Segundo Ruy Nunes, o gnosticismo do III séc.
d.C. mostrou-se bem variado em sistemas engajados num panteísmo e neopitagorismo
supersticioso que se reduziam à magia, dispersos em múltiplas seitas, menos
comprometidas com a filosofia e mais alicerçadas em elementos religiosos ou
teúrgicos51 . Tais disposições iriam confiná- las em grau inferior à doutrina oficial do
credo apostólico, interpretadas como falsas doutrinas, identificadas como heresias52 .

49
Citamos como exemplo: encratistas, ebionitas, marcionitas, docetas, sibilitas, etc. Só Celso enumera
mais de dez (Contra Celso, V, 61-65). A maioria apresenta combinações gnósticas em sua composição.
50
No século II d.C. seus representantes foram Valentim, Basílides e Carpócrates em Alexandria.
Segundo Eusébio de Cesarea “Ambrósio, adepto da da heresia de Valentim, deixou-se convencer acerca
da verdade proposta por Orígenes; e com a mente iluminada por certo fulgor, aderiu à doutrina ortodoxa
da Igreja”(História Eclesiástica, VI, 18). Segundo os pesquisadores Orígenes pôs fim à ameaça gnóstica
feita contra a Igreja.
51
NUNES, R. 1978: 106.
52
Neste trabalho iremos interpretar as heresias, como grupos dissidentes que divergiam quanto às
posições majoritárias da Igreja oficial. Ao mecionarmos o termo heresia será em face de assim
47

Para os gnósticos, este mundo (o cosmos material) é o resultado de um erro


primordial por um ser divino (sophia) durante o curso de seu próprio ato criativo. Suas
especulações apresentam um forte dualismo e projetam o cosmos na discussão. O
filósofo Platão, por exemplo, já tinha pensado a questão, considerando que o cosmos
assim como o espírito humano, possuía uma parte racional e que a tarefa da parte
racional seria governar a irracional. Esses pensamentos reinterpretados pelos gnósticos
impunham toda uma aferição acerca de quem criou o cosmos, se ele era em parte mau
ou bom, divino e/ou material; o que é Deus, de que parte é constituído; ou ainda, a
desordem sob o controle da Razão. O antagonismo é a marca que se identifica nas
proposições gnósticas. Seus temas recorrentes abordavam a oposição entre Deus Pai e o
Criador, depreciação da criação e do seu Demiurgo como inferior e imperfeito; da
encarnação do Filho de Deus, na recusa em reconhecê- lo com o Jesus terreno e
crucificado. Logo, julgamos que a teologia teve grande significado, tornando-se um
aspecto primordial nesses pensamentos confluentes. Esse conjunto de interpretações
dogmáticas que atravessavam o ambiente alexandrino, a Ásia Menor e chegavam até
Roma, iriam exercer fortes matizes nas construções das correntes consideradas
heterodoxas pela Igreja, tais como: o docetismo, o marcionismo(séc.II), e o
maniqueísmo(a partir do séc.III). A Igreja oficial defensora da tradição apostólica,
eclesial e pública, institucional, condenaria essas representações em favor da unidade
doutrinária. Vejamos o esquema abaixo, que nos coloca a par dessas discussões:

As principais concepções heterodoxas de Deus e de Cristo, combatidas por


Tertuliano e pelos Padres do século III d.C. 53

O Docetismo – um dos mais antigos desvios da fé em Cristo, já combatido por São João
e por Inácio de Antioquia. Sob formas muito diversas, umas nascidas mais de uma
piedade mal inspirada, outras de uma doutrina ponderada, é uma forma tanto de reduzir
como até negar a realidade humana da encarnação do Verbo, especialmente sua

encontrarmos nos textos cristãos, no qual interpretamos como forte indicador de uma postura que já em
si demonstra marcar as diferenças, num processo que demanda incluir e excluir elementos por uma certa
liderança cristã que acredita ser representante da ortodoxia.
53
Este esquema foi reproduzido de LIÉBART, Jacques. Os Padres da Igreja: sécs. I-IV. v.I São Paulo:
Edições Loyola, 2000. p. 82.
48

realidade corporal: nascimento, Paixão e, portanto, também Ressurreição. Acredita-se


tornar a Encarnação mais divina, fazendo-a menos humana, contrariando a palavra de
João “o Verbo se fez carne”.

O Dualismo Gnóstico ou Marcionista – distinção e oposição entre Deus, Pai de Jesus


Cristo, revelado no Novo Testamento, e um Criador inferior e imperfeito, que seria o
autor do Antigo Testamento e deste mundo terreno.

O Modalismo – tendência teológica que aparece já no século II e ainda é capaz de tentar


espíritos modernos. Nasceu da idéia, consciente ou não, de que só é possível
salvaguardar a fé mo noteísta(um só Deus), afastando toda distinção real entre o pai, o
Filho e o Espírito Santo. Estes não seriam mais que faces sucessivas sob as quais Deus
se revela; formas ou modos de sua manifestação. Essa tendência recebe o nome
também de “monarquianis mo”(“um só príncipe” divino), “patripassianismo”(pois, se
pode dizer, por conseguinte, que foi igualmente o Pai que sofreu a Paixão,
“sabelianismo”(do nome do principal teólogo modalista do século III, Sabélio).

O Adocianismo – interpretação do mistério de Cristo que também desponta no século II,


mas não sobrevive para além do III. Cristo é visto como um homem comum, profeta,
elevado(“adotado”) à condição de Filho de Deus por graça, em virtude de seus méritos,
na ocasião de seu batismo ou no momento da Ressurreição. Como o docetismo e o
modalismo, o adocionismo pode ter tido origem nos meios judaizantes e nos meios
propriamente helenísticos.

Essas temáticas condenadas ou não, abertas ao conhecimento público e passíveis


de discussões, possibilitaram o seu desenvolvimento, sem que deixassem de demonstrar
posicionamentos distintos. Na região do Oriente Próximo, os conflitos dogmáticos em
torno da figura de Cristo e o comprometimento do homem com o Ser divino,
enfatizaram a dicotomia entre espírito e matéria, questões que se relacionavam
significativamente com a construção da identidade cristã, conforme veremos no quarto
capítulo através das posições assumidas por Orígenes.

Se aparentemente essas formações dogmáticas à primera vista apontam somente


para um caráter religioso, por outro lado deliberam e incluem o ser humano neste plano
de definições 54 e projetam a filosofia mais do que um sistema de pura abstração, de uns
poucos, para um caráter mais prático intensificando-a como conduta de vida. No
alcance deste fim desenvolveu-se várias especulações, dentres elas a inclusão do homem
pela gnosis, filiando-o à angústia do mal, na existência deste mundo, neste:

54
No ítem 2.2., identificamos as articulações estabelecidas entre as escolas filosóficas que discutiram
essa questão, imbuídas de argumentações éticas, morais.
49

“o homem sente-se extraviado, dividido entre bem e mal, matéria e espírito, corpo
e alma, cindido em sexos distintos, disperso no tempo(...) a salvação consiste em
se libertar da matéria e de todas as dualidades que ele gera; é evasão e retorno
ao mundo perfeito e unificado do espírito. O caminho da salvação está no
conhecimento, que é simultaneamente percepção inata da condição do espírito
neste mundo e aquisição da ciência perfeita que desenvolve essa percepção. Pelo
conhecimento o homem toma consciência de sua verdadeira natureza de ser
espiritual; a gnose é o retorno do espírito a si mesmo, unindo-se ao velho adágio:
<conhece-te a ti mesmo>”(LIÉBART, 2000: 60).
Em oposição a este dualismo pessimista de certa forma, os ditos representantes da
ortodoxia(reta doutrina) da Igreja, para citar Irineu de Lião 55 , apresentariam outra
leitura para o mesmo objeto: a valorização do ser humano na totalidade de sua natureza
e do universo, incluídos na história da revelação bíblica, com referências a um plano de
Deus e da salvação em seu Filho. Nesta confluência situam o homem e o exaltam como
criatura em relação ao ser divino, seu Criador, a Deus.

Ressaltamos a contraposição surgida nos embates entre as formações discursivas


consideradas majoritárias, engajadas por posições ortodoxas e, as minoritárias
interpretadas como heterodoxas, quanto à ênfase construída acerca de uma
“antropologia”. Como vimos, a gnosis posicionava o homem num plano inferior desde
a constituição de sua natureza, preso na dualidade boa e má da matéria(LIÉBART, J.
2000: 69). Um dos seus dogmas consistia nos dizeres: “há salvação apenas para a alma
pois o corpo é corruptível por natureza”. Entretanto nos discursos dos representantes da
ortodoxia(Irineu, Justino), corpo e alma eram destinados à salvação na totalidade da sua
natureza, num processo digamos, de maturação, de vir a ser, de tornar-se. Jacques
Liébart fornece uma interpretação a esse respeito: “Deus é...o homem se torna, segundo
uma lei de crescimento (...) inerente à sua condição. Esta, portanto, está aberta a um
desenvolvimento, tanto no plano da existência individual quanto no da história
espiritual da humanidade; e finalmente para uma superação”(Ibidem).

55
Escreveu um tratado Contra as Heresias(182-188 d.C.) em grego. Irineu viveu neste ambiente
florescente de idéias e posicionamentos, porém originário da Ásia Menor, região fortemente cristianizada
de legado da pregação apostólica, diante da alteridade, defendeu veementemente discursos majoritários
conforme as posições tradicionalistas da Igreja.
50

Caminhando para uma suposta perfeição, fruto de um longo amadurecimento, os


discursos dogmáticos que se baseavam na tradição apostólica, focalizam uma outra
perspectiva, que para J. Liébart:

“põe a perfeição do homem não na origem, mas no termo de sua história, é


verdadeiramente nova em relação à mentalidade antiga, inclinada a privilegiar
as origens; vê-se como a revelação bíblica e o cristianismo deram início a uma
reinterpretação do homem e do mundo; a corporeidade e o cosmo são
associados ao destino do homem; o tempo e a história não são mais
considerados como desgaste (...)mas como lugar de maturação em que se
completa o plano divino (Ibidem) 56 .

Com essas diferenças preliminares estabelecidas e apesar de dissidências, a gnosis


como conhecimento superior(sophia) haveria de receber outro tratamento, a exemplo
dos padres alexandrinos no II e III séculos d.C. A junção da gnose e o cristianismo veio
a ser entendido como gnose cristã57 , na qual aprofunda a reflexão sobre “as verdades da
fé” com o auxílio da filosofia. Clemente de Alexandria mostrou-se crítico a respeito
desse misticismo que tornava a gnose como uma religião de iniciados, de caráter
secreto 58 . No entanto, não deixa de aplicá- lo, com novas vertentes, apresentando o que
considerava ser um verdadeiro gnóstico: “do cristão que vive da fé e coloca a sua
inteligência e a sua vontade a serviço da crença, de tal modo que, ao mesmo tempo que
se aprofunda nos mistérios divinos até chegar à contemplação, pratica a ascese até
alcançar o pleno domínio sobre as paixões”(Estrômatos II, IV, VI e VII). Tanto
Clemente quanto Orígenes 59 reforçariam o papel da gnosis como conhecimento “das

56
Essa mesma interpretação dada ao cristianismo verifica-se em Guy Palmade no qual argumenta que
postula-se um campo de experimentação de uma nova concepção antropológica do mundo e sua projeção
escatológica: “não sem riscos e confusão, a entrada do cristianismo no mundo da sabedoria antiga
tendia a convencer mais profundamente os homens da dimensão histórica da sua condição de homens,
vivendo no tempo” (“Teologia da História: elucidação global do sentido da história”. In: (vvaa) História
e Historicidade – Panfletos. Lisboa: Gradiva, 1988. p.81).
57
Fortemente combatida pelo teólogo latino Tertuliano, a exemplo de seu predecessor Irineu, que adota
uma postura crítica em relação à filosofia e contra a gnose especificamente escreveu “Contra Marcião”.
58
“os gnósticos, baseados nessa palavra nêpioi sustentavam a existência de duas espécies bem diferentes
de cristãos, os imperfeitos e perfeitos. Só estes últimos é que conheceriam os segredos da salvação e
seriam os verdadeiros gnósticos, pairando bem acima da turbamulta ignara e imperfeita.” NUNES, R.
1987:77.
59
A tradição cristã dos padres da Igreja consideraram perigosa a posição que tanto Orígenes e Clemente
adotaram no sentido de induzir a uma possível síntese entre cristianismo e filosofia grega, passando-se a
considerar o cristianismo como um simples sincretismo de filosofia grega e teologia bíblica. No entanto
reconhecem o valor de suas obras na exposição sistemática do cristianismo. In: CAIRNS,Earle E. O
51

verdades”(sejam naturais ou sobrenaturais) através do exercício do raciocínio,


submetidas à revelação bíblica. O gnóstico portanto, segundo Clemente “não é um ser
privilegiado por natureza nem um participante especial de mistérios secretos, mas o
cristão que procura crer na Palavra de Cristo e vivê-la com intensidade em todos os
atos e momentos da existência”(Ibidem). Apesar dessa afirmação fica claro nas obras
de Clemente que o mesmo aceitava a existência de uma elite gnóstica cristã que chegava
ao conhecimento de uma verdade inacessível aos simples fiéis.
No contexto da cidade alexandrina, como grande metrópole egípcia, “cidade
para onde confluíam pessoas de todas as raças, local onde se defrontavam todas as
formas de culto, de superstição de fábulas e filosofias inovadores(NUNES, R. 1978:83),
as discussões dogmáticas foram incluídas nos debates acadêmicos. Orígenes em
especial, segundo esclarece Eusébio de Cesarea na História Eclesiástica, lidou
abertamente com essa multiplicidade de práticas e pensamentos. Menciona que para
Orígenes se dirigiam pessoas instruídas, ao saber de sua fama, tanto “hereges”(é a forma
de assumir sua marginalização) como não poucos filósofos que aderiam a sua instrução
com entusiasmo(H.E., VI). Assim como o apologista Orígenes, outros apologetas do
séc. II d.C. tiveram de se defrontar com indagações filosófico-religiosas e explicar seus
posicionamentnos à luz dos debates quanto à soteriologia(doutrina da Salvação) e à
escatologia( doutrina dos fins dos tempos). Essas temáticas se fizeram prementes
quanto ao entendimento do homem, sua existência e destino pessoal num plano
macrocosmos, através da interferência direta com a divindade. Foram explicitadas,
sobretudo, nos debates entre as formas de devoção politeísta e monoteístas. De modo
geral, foi significativo nessas discussões a tônica sobre a prática de uma ascese, na qual
deliberava sobre o domínio das paixões, que recaíam sobre questões morais, éticas,
matéria de discussão tanto no campo da filosofia quanto da religião, o que vem
comprovar suas mútuas relações.

Apesar de tendências dogmáticas difusas, o alexandrino Orígenes se preocupou


com os iniciados na fé cristã, ao fazer do ensino um meio de preservar e garantir a
continuidade da doutrina monoteísta e de uma tentativa de unidade, aprofundando os
seus dogmas na interpretação da revelação bíblica. Verifica-se essas determinações no
empenho que os alexandrinos(desde Panteno) dedicaram à instrução dos catecúmenos

Cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. Trad. Israel Belo de Azevedo. São Paulo:
Edições Vida Nova, 1990. pp.90,91.
52

em preparação para o batismo 60 . Clemente escreve u o Protréptico, no qual convida à


conversão, ao abandono da idolatria, exaltando e conclamando a adesão ao Logos61
salvador, Jesus o Cristo. Também o Pedagogo concede instrução aos convertidos à fé
cristã, dando- lhes orientação moral para a vida cotidiana, ao lidar com o ambiente
circundante à sua volta, como vimos, bastante heterogêneo. Clemente formou
discípulos como Orígenes, que na atividade de mestre regeu a escola de
catecúmenos(incluindo neófitos e mais tarde os mais adiantados), por quase trinta anos.
Dedicou-se ao estudo das Escrituras sagradas e doutrinas religiosas desde a sua
juventude, como nos informa Eusébio(VI, H.E.). É dele também o testemunho do
esforço de Orígenes contra “as heresias”62 , a favor das normas da Igreja(H.E. VI, 2), e
uma de suas visitas realizadas na Arábia foi para combater uma suposta heresia lá
surgida(H.E. VI, 37). A convite de Júlia Maméia, mãe do imperador Alexandre
Severo, Orígenes esteve em Antioquia também para explicar- lhe a doutrina cristã,
monoteísta(abordada no quarto capítulo).

Estes enfoques nos remetem ao conteúdo da cultura filosófica-religiosa entre os


contemporâneos dos três primeiros séculos de época imperial, da confluência das
religiões ditas mistéricas ou de salvação, das temáticas envolvidas que se
entrecruzaram, pelos quais os indivíduos localizados em certo tempo e lugar,
posicionavam-se diante do novo e do diferente. Suas produções intelectuais sejam de
cunho dogmático-religioso ou filosófico são testemunhas da cultura plural e de
referências a um legado clássico 63 ou helênico, reinterpretados a luz de novas
necessidades. Se considerarmos o itinerário intelectual dos chamados padres da Igreja

60
O batismo, por si só incluia a confissão de fé, que reconhecia o Cristo humano e divino. Prática
identificadora de pertencimento às comunidades cristãs, enfatizada em outros tipos de gênero literário
cristão.
61
Princípio fortemente polemizado pelos escritores de época imperial e aplicado em referência às
releituras da cultura clássica.
62
Nas proposições de Eusébio percebe-se a sua imensa admiração pelo mestre Orígenes, entretanto não
podemos enquadrá-lo como um fiel partidário da ortodoxia, devido ao seu sistema alegórico de
interpretação no qual identifica por exemplo Cristo subordinado ao Pai, visão polêmica para a tradição
apostólica. Nossas considerações nesta pesquisa levam em conta esse cuidado diante da figura ambígüa
de Orígenes perante os estudiosos da história da Igreja quando analisam os seus trabalhos. Nosso
direcionamento se limita à análise quanto a contraposição estabelecida do monoteísmo cristão frente ao
politeísmo, no qual diante das perseguições e da diversidade os escritores cristãos tentaram evitar trazer à
superfície as interpretações teológicas distintas.
63
Momigliano identifica esta pauta, defendendo que o debate com os cristãos foi cada vez mais um
debate dentro dos termos de referência da cultura clássica, tendo sido uma característica notadamente
cristã, tendo em vista que os judeus não persistiram nisto. “Algunas observaciones preliminares sobre la
oposición religiosa”. In: Paganos, judíos y cristianos. México: Fondo de Cultura Económica, 1987.
p.320.
53

ou mestres, como a tradição eclesiástica os denomina ou de representantes cristãos não


assim identificados, verificaremos que muitos advinham do politeísmo, convertendo-se
em momentos posteriores, vindo a ser cristãos64 . Naturalmente esses indivíduos
incorporavam o patrimônio helenístico, de um espírito universal e se no entanto não
tinham procedência do politeísmo, muitos receberam uma formação acadêmica, em
escolas filosóficas ou de educação grega, difícil de escapar ao espírito da época, uma
vez que a filosofia era fundamentalmente um estilo de vida. Contudo, a tradição
eclesial, ou a Igreja institucional, oficial, ponderou, julgou e classificou aqueles que se
punham em aproximação ou profunda incursão neste legado cultural no exercício de
interpretação de sua doutrina. Trata-se de conflitos nos embates discursivos e de
estratégias levadas a cabo para o desenvolvimento e organização da liderança cristã e
seus dogmas.

Ruy Nunes coloca em questão que a defesa do patrimônio cristão contra as


doutrinas consideradas heréticas, foi obra dos padres apologistas, em meio as
perseguições(1978: 15). Com efeito, percebe-se a tentativa de buscar uma base de
unidade a fim de se fortalecer diante das críticas recebidas e garantir a expansão da
religião cristã até em círculos ilustrados, sendo estes os espaços de confrontamento
intelectual das exposições dogmáticas sob bases racionais 65 . Para o alcance desta base
de unidade era de interesse primário a condenação ou o não reconhecimento de tais
grupos dissidentes. Este último embate, mostra quão prioritário foi para os apologistas
silenciar-se ou pouco discorrer a esse respeito. O. Gigon66 analisando a cultura antiga e
cristianismo, escreve que escritores cristãos primitivos não se sentiram tão preocupados
com distintos grupos dissidentes e assinala que de fato eram de pequeno círculo e de
pouca duração 67 . A obra de Orígenes sugere alguma referência a respeito do tratamento
dado, da atitude cristã quanto aos dissidentes segundo seu ponto de vista: “nós que
seguimos a doutrina de Jesus(...) não podemos lançar vitupérios ditos e não ditos
contra os que opinam de modo distinto que nós”(Contra Celso,V, 63). O “nós” surgido

64
Exemplos: Justino, tertuliano, Cipriano, Panteno, Clemente de Alexandria, Teófilo de Antioquia, etc.
65
Falamos das argumentações da cultura filosófica. Exemplificada através dos filósofos Celso e Porfírio.
66
GIGON, O. “La polêmica de los filósofos contra el cristianismo”. In: La cultura antigua y el
cristianismo. Madrid: Gredos, 1970. p. 155.
67
Através de Orígenes percebemos que este assunto foi problematizado no discurso de Celso, mostrando-
se bem informado, no qual aponta diversos grupos dissidentes entre os cristãos. Realidade que força
Orígenes para responder a esse respeito, alegando ter conhecimento de distintas opiniões, mas também
54

nas margens do texto, aparentemente apenas recurso língüistico, já é significativo para


acentuar a contraposição e diferença 68 . O procedimento que ele aponta seria a tentativa
de convertê-los a doutrina de Cristo e ao seu Criador. Se os chamados heterodoxos
mostrassem indiferença, citando um preceito bíblico 69 , a saída seria evitá-los,
entendidos como deformadores do cristianismo (Contra Celso, Ibidem).
A afirmação de um legado doutrinário interferiu no grau de reconhecimento e
aceitabilidade de grupos dissidentes e a defesa de posições majoritárias. Fato que no
entanto não impediu de trazer à superfície, o debate, as incursões religiosas
problematizadas por opiniões distintas. Vejamos no próximo ítem, configurações
intelectuais e sociais que ao nosso ver também contribuem para este fim, do qual
Orígenes participa.

3.2. Liderança cristã e literatura apologética

Tendo em vista as preocupações dogmáticas que serviram de orientação para a


preservação de um suporte doutrinário da Igreja de tradição apostólica, entendemos que
esta configuração esteve intimamente relacionada ao ordenamento de uma série de
discursos produzidos pela liderança cristã intelectualizada, representada por diferentes
sujeitos e posições sociais. De que liderança estamos falando e qual o papel que ela
desempenhou nessas formações discursivas e delimitações de fronteiras? Tais questões
nortearam a redação deste ítem.

Recordando uma das diretrizes de Foucault, o qual considera o discurso como


prática, percebemos a importância das operações de significação que os enunciados
manifestam na superfície e na sobrevivência dos próprios discursos. Com M. Foucault
o discurso é o espaço em que saber e poder se articulam, pois quem fala, o faz de algum
lugar, a partir de um direito reconhecido institucionalmente. Esse discurso, que passa
por verdadeiro, que veicula saber (o saber institucional) é gerador de poder(In:
BRANDÃO, H. 1996: 31). Alguns pesquisadores trazem certas contribuições e

defende “a grande Igreja”majoritária ante esses grupos dissidentes. Também argumenta que na filosofia e
na medicina existiam escolas contra escolas (Contra Celso, V, 61-65).
68
Aprofundaremos devidamente essas características de marcas discursivas em torno da identidade no
quarto capítulo.
69
“Ao homem faccioso, depois da primeira e segunda admoestação, evita-o” Tito 3:10.
55

singularidades a respeito da produção intelectual do cristianismo e seus representantes,


que merecem ser analisadas. R. Macmullen70 argumenta que o dever da Igreja em
aperfeiçoar seus conversos foi realizado de maneira notável pelas escolas de instrução,
as quais ofereciam semanalmente conferências nos púlpitos e realizavam ações pastorais
familiares a todos. Isso incluía também um rígido controle sobre a publicação e a
disseminação dos fatos e opiniões que eram tomados como assuntos da Igreja(1984: 6).
Na cidade de Alexandria percebemos como a Escola de Catecúmenos(Didascália) foi de
singular interesse para os seletos dirigentes da comunidade cristã ali localizada, na
figura dos intelectuais Panteno, Clemente e Orígenes.

Peter Brown discorre sobre a expansão da doutrina cristã, trazendo a seguinte


prerrogativa: deve-se perceber o processo de conversão na Antiguidade Tardia através
da construção de discursos evangelizadores, diversos e diferentes, realizados por uma
inteligência cristã, adequados aos vários grupos sociais que compunham a sociedade
tardo-antiga romana(BROWN, P. apud CRUZ, M. 1995: 319-335). Por esta razão
aplicamos o entendimento das fronteiras sempre móveis na constituição da identidade e
na própria constituição dos sujeitos. A organização e a capacidade de criar foram
fatores relevantes no desenvolvimento da Igreja; um processo de inovação a cada nova
conjuntura, em termos de coesão e sobrevivência, além de produzir heróis, um número
restrito de agentes humanos especiais que haviam recebido o privilégio de comandar a
ação do poder divino entre os homens, relação claramente percebida e aceita pelos
outros crentes. Mais uma vez percebemos a ênfase sobre o processo da conversão que
se concretiza num tempo evolutivo(se perpetua ao longo da vida), isto é, neste
entendimento de maior proximidade com Deus quanto maior o distanciamento das
paixões humanas. Esta condição acabou favorecendo os escritos cristãos na sua
produção em larga escala, de forma controlada, a fim de moldar o novo crente às
exigências da nova fé e às exigências que se colocavam nos confrontamentos das
relações sociais, com o outro.

R. Macmullen focaliza a perspectiva cristã em não admitir relativismos,


estabelecendo que escritos hostis ou visões indesejáveis não foram reproduzidas ou

70
MACMULLEN, Ramsay. Christianizing the roman empire (A.D. 100-400). EUA: Yale University
Press, 1984.
56

foram ativamente suprimidas, ou mesmo assuntos que desacreditavam a fé foram sendo


relegados ao silêncio(1984: 6). No entanto este controle que a própria história
institucional, eclesiástica como Eusébio parece indicar, não impediu que intelectuais
cristãos fizessem uso de disposições conceituais discutidas pela cultura filosófica
clássica, helênica, imperial, sobretudo de uma racionalidade subordinada à fé(condição
bastante reconhecível na literatura apologética). Por esta razão insistimos no
ordenamento dado nas produções discursivas daquilo que fosse prioritariamente útil à
composição e compreensão de seus dogmas e até na formação de elementos identitários.

Judith Perkins faz menção que hoje se reconhece a importância dos discursos
literários, religiosos e técnicos que contribuem para produzir um mundo cultural(1995:
4). A mesma autora, entende que reconhecidos modos de pensamento, de fala, de
escrita e os mundos sociais que produzem tipos de poder que eles tornam possíveis, têm
se tornado uma matéria de pesquisa histórica, cabendo considerar os discursos imbuídos
de formas particulares que geram certos tipos de poder social. Ressaltamos que tanto
Judith Perkins como Averil Cameron, incluem a retórica cristã neste processo. Com
este fim, ident ificamos no discurso cristão a sua capacidade de unir outros tipos de
discurso e garantir a dominação de certos interesses sociais e políticos.
Simultaneamente, tais formações discursivas se preocupam em construir discursos de
“si” e dos “outros”, através de uma retórica dirigida para afirmar a hegemonia sobre o
outro.

Entendendo o discurso como uma prática social, deve-se considerar as posições


ocupadas pela liderança cristã, focalizadas em sua atuação na cristandade oriental,
identificadas com suas configurações espeçíficas. Deve ser mencionado a existência de
especificidades regionais tais como: os alexandrinos, que apresentavam tendências do
judaísmo helenístico(as alegorias) e platonismo místico, aplicados à teologia
doutrinária; os antioquenos, que apresentavam tendências do judaísmo rabínico,
dedicando-se à exegese hebraica e científica, porém desconfiando das especulações
filosóficas como elaboradas em Alexandria, vindo a desenvolver a teologia pastoral; o
cristianismo sírio, que desenvolveu tendências ascéticas(DANIÉLOU, J. e MARROU,
H.-I. 1984). Além dessas características, a Igreja do século III já contava com escritos
anteriores produzidos pelo legado neotestamentário(a teologia paulina exerceu grande
expressão), pelos chamados padres apostólicos e padres apologistas, por bispos
57

proeminentes em suas regiões específicas, além da literatura denominada apócrifa que


também havia tecido suas raízes no cristianismo nascente, enfim produções que datam
dos dois primeiros séculos d.C. Esses discursos se caracterizaram especialmente no
esforço de desvincularem-se da identificação com o judaísmo, no que concerne à
interpretação distinta dada à figura de Cristo, uma luta que para os cristãos resultou, em
delimitar contornos especificamente “seus”, a partir de uma referência cristocêntrica.
Debates intensos foram projetados por líderes e intelectuais cristãos em torno da figura
do Cristo, fundador da religião, tendo favorecido forçosamente o desenvolvimento
interno das comunidades cristãs e seus dogmas, em confrontamento sempre atuante com
diferentes grupos, dando forma a entendimentos particulares.

Com o embate de poderes sociais e atuações locais, sobressai a figura do bispo,


o qual desde o final do primeiro século ocupava posição de liderança em cada
comunidade individual (ecclesia) urbana, responsável por sua organização. A partir do
século II os bispos se reúnem de vez em quando por província ou região(MATOS, H.
1987: 35). São eles que coordenam toda a vida da Igreja e que presidem71 a celebração
do batismo, da eucaristia e muito mais. Eusébio de Cesaréia traz a idéia de um
movimento real entre a liderança cristã através de correspondência e contatos pessoais
estabelecidos entre eles. Podemos situar o próprio Orígenes neste círculo, à medida em
que Eusébio identifica-o na História Eclesiástica, como alguém que “detêm sabedoria
superior aos demais homens”, ingressando numa larga carreira de forte expressão e
alcance geográfico, indo além dos limites das cidades oficiais de grande manifestação
cristã(Alexandria, Antioquia, Roma).

Nosso interesse por Orígenes, que nesta pesquisa ocupa um foco central, vem da
relação do indivíduo com a sociedade, com o mundo social a que ele se insere e
representa, das relações que ele mantêm com os atores envolvidos neste espaço, do que
se produz face às contingências que surgem e da importância dos resultados criativos
dessas ações para um coletivo. Através da História Eclesiástica identificamos Orígenes
como interlocutor de diversas vozes e saberes, articulando diversos contatos com
pessoas proeminentes da comunidade cristã, quer seja pessoalmente ou por escrito. De
Porfírio (270 d.C.) temos o testemunho de que Orígenes teria sido leitor de Platão e

71
São assistidos por um conselho de presbíteros e por alguns diáconos(boulh,), e no terceiro
século são desenvolvidas outras ordens menores.
58

profundo seguidor de suas idéias; foi leitor também de: Numênio, Crônio, Longino,
Nicômaco, Apolófanes, Moderato e de pitagóricos influentes; incluindo livros dos
estóicos Queremão e Cornuto. Segundo Porfírio, deles Orígenes aprendeu a
interpretação alegórica dos mistérios gregos e aplicou às Escrituras judaicas(outra
leitura dada a figura de Orígenes). Também nos informa que Orígenes foi leitor de
Ammônio Saccas(neoplatônico), que perfazendo um caminho inverso deste, sendo
grego, formado segundo métodos gregos, desviou-se aderindo à obstinação peculiar aos
bárbaros. Talvez por esta razão Porfírio(mostrando seu patriotismo, falando como
grego) teria dito que “Orígenes vivia à margem das leis” (15 Tratados Contra os
Cristãos, III). Podemos concluir que Orígenes circulou em diferentes espaços. Isto não
significa necessariamente que tivesse havido uma imediata adesão de todos às suas
idéias, algo que nem teríamos como precisar. Porém, pode-se afirmar que atraídos por
sua fama, no exercício da propedêutica, muitas pessoas estiveram dispostas a ouví-
lo,como Porfírio dá a entender em sua obra(15 Tratados Contra os Cristãos, III).

Em Alexandria, Orígenes atraía diversos estudantes, tanto “hereges” como


filósofos, neófitos ou sábios, estrangeiros, os quais submetiam seus próprios trabalhos
para que Orígenes os julgasse, comentando-os e examinando-os, além de formar
discípulos, muitos dos quais se tornaram bispos ou mártires, circunstância pela qual
levou Orígenes a escrever “Exortação ao Martírio”(em 235 d.C. aproximadamente,
durante a perseguição de Maximino). Sua capacidade exegética e hermenêutica72
possibilitou tecer diversos comentários bíblicos, tanto em Alexandria como em
Cesaréia, além de escrever a vários bispos73 ou chefes das comunidades regionais
pontuando questões ortodoxas, heterodoxas ou de extrema importância para a
sistematização da doutrina da Igreja. Uma prova deste último intento, se trata da obra
Peri Arxon (Tratado dos Primeiros Princípios) tida entre os teólogos como a primeira
teologia sistemática, escrita por Orígenes provavelmente entre 230-232 d.C., em
Alexandria, na qual expõe abertamente a doutrina cristã.

72
Provavelmente em Alexandria, Orígenes foi autor de uma imensa obra intitulada Hexáplas na qual
apresenta versões das Escrituras hebraicas em grego, dispostas em seis colunas; como também as
Tétraplas, tendo em mãos como fontes a Tradução dos Setenta, além das de Áquila, Símaco e Teodocião,
vindo sobre elas exercitar sua exegese.
73
A obediência ao bispo parece indicar a garantia prática da unidade cristã nos documentos da Igreja. Da
forma como Eusébio escreve, podemos identificar esse objetivo similar ao retratar a carreira de Orígenes,
por exemplo, pontuada por contatos sempre contínuos com esses líderes.
59

Podemos deduzir dessas informações que Orígenes era interpelado a falar de


distintas posições, quer seja como filósofo exercitado nas “ciências profanas”, quer seja
como teólogo, mestre 74 , pregador 75 , escritor, etc. Tudo indica que gozava de ampla
circulação no meio cristão, pelo que sabemos em cidades do Oriente Próximo como:
Cesaréia, Tiro, Antioquia, Jerusalém(berços do cristianismo), Cesaréia da Capadócia,
além das cidades da Arábia 76 ; Grécia 77 (Atenas); e até Roma (a maioria é considerada
como tendo sido centros escolares da patrístíca). Ressaltamos que neste percurso
Orígenes teve uma audiência heterogênea, mista, composta de gregos, judeus, sírios,
persas, além de cristãos adeptos de correntes divergentes, todos inclusos no programa
evangelisador da mensagem cristã. Efetivamente buscou-se com todos os meios sociais,
políticos, estratégias discursivas e dispositivos(falamos dos sínodos, conselhos, da
própria divisão de funções e especializações dentro da organização eclesiástica) para
preservar uma base doutrinária que pudesse absorver este grande contingente humano.

Temos visto paulatinamente que distintos indivíduos poderiam construir seus


lugares de fala, mas notadamente nem todos receberiam tratamento equânime, isto é,
nem todos obteriam reconhecimento público, oficial, caso não satisfizessem
determinados critérios estabelecidos pela Igreja de tradição apostólica, haja vista o
tratamento dado às cognominadas heresias, banidas como heteredoxas. Autoridade de
fala, representou para muitos escritores eclesiásticos, uma identificação com códigos
pré-determinados institucionalmente. Lembramos, por exemplo, dos chamados padres
ou pais da Igreja(incluindo os chamados padres apologistas, sendo alguns filósofos) que
assim foram denominados por atender a certas especificidades: se leigo, sacerdote ou
bispo considerados pela tradição posterior, como tendo dado testemunho autorizado da
fé; ou quem tivesse as qualificações de ortodoxia de doutrina, santidade de vida,
aprovação eclesiástica e antiguidade; ou ainda aqueles que ao longo dos sete primeiros
séculos, foram forjando, construindo e defendendo a fé, a liturgia, a disciplina, os
costumes, e os dogmas cristãos, decidindo assim os rumos da Igreja(Padres
Apologistas, 1995: 7). Na prática, a liderança eclesiástica foi considerando e admitindo

74
Pela carta de louvor de Gregório o Taumaturgo ao seu mestre, Orígenes empreendeu em Cesaréia uma
intensa atividade de ensino, dando inclusive aulas particulares de gramática.
75
Em Cesaréia exercita-se na pregação de homilias.
76
Eusébio informa sobre a realização de um sínodo nesta região para discussão de desvios heterodoxos da
qual Orígenes participa(História Eclesiástica, VI).
77
Tudo indica que Orígenes foi chamado a esta região para lutar contra o marcionismo.
60

na patrística até aqueles que mostraram certas desconfianças de rigor doutrinário como
o próprio Orígenes(interpretações especulativas) e Tertuliano(adepto da doutrina
montanista; latino).

Acrescenta-se a essas disposições quanto ao caráter de aceitabilidade, também


uma demonstração de profunda lealdade aos líderes da Igreja como vimos,
principalmente em relação às deliberações dos conselhos episcopais. No ocidente o
prestígio do bispo ou de presbíteros foi uma característica bastante acentuada, porém
através de Eusébio concluímos que no Oriente certa subserviência e vínculos pessoais
com esses líderes deveriam ser buscados. Também é notório nesta composição o
reconhecimento ou prestígio social nas comunidades cristãs daqueles que sofreram a
experiência do martírio ou estiveram muito próximos a essas testemunhas.

Ultrapassando este círculo religioso, podemos identificar nas relações sociais


vínculos mantidos de líderes cristãos com autoridades locais, de províncias, ou mesmo
com a casa imperial, como os documentos da Igreja atestam, resultado das próprias
conversões nesses espaços de poder. O próprio Orígenes nos dá a conhecer essa
realidade, sendo em algumas ocasiões convidado a estar diante de
personalidades(governadores; a mãe do imperador Alexandre, Júlia Maméia). Isto em
nosso entender demonstra que alguns líderes cristãos das suas comunidades tiveram
certa inserção social, obtendo oportunidades de acesso até escalões sociais mais altos,
ajuda ou até apoio financeiro de que necessitassem, embora recusassem obter alguns
cargos públicos para evitar certos constrangimentos ou ligações com a estrutura
politeísta(Contra Celso, VIII). Acreditamos que estas aproximações facilitaram a
aquisição de terrenos, ou casas para uso das comunidades, como verificado no III
século 78 . Evidentemente se para um filósofo, a total inserção como cidadão era fato de
grande importância, o mesmo não se podia dizer de um filósofo cristão que buscava a
possibilidade de desvincular-se deste dever. Talvez este tenha sido mais um motivo que
teria suscitado a crítica feroz de Porfírio a Orígenes, como alguém que vivia à margem
da lei(subentende-se também do mundo do direito, da piedade tradicional) 79 . No

78
O exemplo mais conhecido é a “domus ecclesiae” de Dura Europus, cidade situada na fronteira da Síria
com a Mesopotâmia, onde foi encontrada uma casa transformada para receber um batistério e um local de
celebração da Eucaristia (MATOS, H. 1987: 35).
79
Nestes aspectos Porfírio se aproxima de seu predecessor Celso em relação aos cristãos em geral, mais
ou menos com o mesmo teor de crítica.
61

entanto, indivíduos que ocuparam posições de liderança ou foram influentes nos


círculos intelectuais, mestres, sacerdotes, presbíteros, bispos, filósofos, etc., transitaram
em espaços de poder legitimando seus atos de fala, atraindo curiosos, estudantes e
discípulos, construindo dogmas e articulando saberes, até no que diz respeito da
proximidade com o ideal da educação intelectual e moral dos gregos.

As críticas aos cristãos encontradas nos autores politeístas contemporâneos


como Galeno, Celso, Marco Aurélio, Luciano de Samósata(todos da segunda metade
do séc. II d.C), demonstram de certa forma o conhecimento em graus diferenciados que
estes tinham do cristianismo e da penetração de cristãos nos círculos intelectuais. O
filósofo Celso, por exemplo, demonstrou ter sido leitor das Escrituras Hebraicas e neo-
testamentárias, vindo a polemizar em tom bastante reticente quanto à capacidade dos
cristãos, à vista de um grego, de argumentar dialécticamente, de indagar a razão das
coisas. Se observarmos a produção literária cristã da segunda metade do séc. II,
veremos que as apologias e seus autores também foram contemporâneos às críticas
estabelecidas, elaboradas por intelectuais não-cristãos, como os mencionados
anteriormente. Podemos citar alguns apologistas: Atenágoras, Melito de Sardes,
Justino, Taciano, Teófilo de Antioquia, além do autor da Epístola a Diogneto datada
provavelmente do segundo século. A maioria das apologias foi dirigida aos
imperadores Antonino Pio, Marco Aurélio e Cômodo. Tendo em vista que a maioria
desses escritores cristãos foi formado nas escolas gregas e romanas sendo partícipes da
efervescência filosófica de seu tempo 80 , concluímos que também foram concorrentes
neste espaço de saber, inclusive até nas configurações específicas, como a escola
Alexandrina, que se caracterizou metodologicamente nas alegorias, nas especulações,
etc.

Estamos tentando com essas prerrogativas, ir além das interpretações


historiográficas que apenas identificam as apologias num quadro político ou religioso,
isto é, sob os objetivos a que se propunham na defesa da fé perante às autoridades
constituídas, buscando alcançar estatuto legal. Essa realidade vem associada pelos
pesquisadores a um resultado negativo, no sentido de não terem alcançado o objetivo

80
É a vez do brilhantismo nas escolas da retórica, da diatribe com os cínicos, da dialéctica de Aristóteles,
da moral estóica, e do platonismo, que revelam o ecletismo da Nova Academia (Daniélou e Marrou,
1984: 113).
62

desejado sobre o espaço externo, a apreensão de suas súplicas, haja vista as


perseguições. Por outro lado, entendemos a importância da inserção social destes
escritores cristãos, o desafio a que se submetem de incluírem em sua pauta a discussão
de argumentos racionais e preceitos morais, dos debates de que participam, das
construções que articulam, dos conhecimentos que veiculam. Fundamentalmente,
queremos comprovar o grau significativo que as apologias tiveram internamente, em
relação às comunidades cristãs expondo a natureza da sua doutrina, na identificação de
si, mas também em comparação aos outros, politeístas ou mesmo quanto aos adeptos do
judaísmo monoteísta.

Outra característica básica das apologias diz respeito à argumentação histórica


que defendiam. Para esses escritores cristãos o surgimento do cristianismo representava
uma inserção histórica, já revelada pelas Escrituras e pelas Profecias, as quais
acentuavam o seu caráter irrepetível no tempo e no espaço sob a intermediação da
vontade divina. Em decorrência dessa concepção, a existência do Império Romano era
devido à providência divina, para que fosse possível o advento do Logos Salvador,
fundador da religião cristã. Alguns apologistas disseram que os gregos erraram em suas
práticas acerca da piedade 81 por desconhecerem “a verdade”, por esta razão precisavam
se alinhar a este novo tempo que já se havia concretizado na história da humanidade.
Orígenes argumentava que o próprio império caminhava para esta realidade(Contra
Celso, VI).

É interessante incluirmos a apologia de Orígenes neste raciocínio embora ele


apresente uma particularidade. A época de produção do seu tratado apologético,
meados do século III, representa outro contexto. Pela análise do discurso de Orígenes,
inferimos ser um momento mais favorável à expansão cristã. O próprio autor mostra
uma certa relutância em ter que responder as acusações de Celso, pois considerava que
já não apresentavam mais fundamentos. Por outro lado, podemos identificar outros
fatores82 : 1) possivelmente, Orígenes se considerava superior ao seu adversário, já

81
Por este motivo as apologias são repletas de desqualificações quanto às práticas politeístas, as quais
consideram como fábulas da mitologia. Essas teriam sido, apropriações mal aplicadas aos mistérios
divinos revelados pelos profetas, por esta razão os pagãos precisavam se corrigir.
82
As interpretações a seguir são analisadas de maneira geral através do texto que Orígenes escreveu no
Prólogo de Contra Celso.
63

numa fase experiente da vida(mais de sessenta anos), de ampla formação filosófica e


religiosa, o que o obrigaria a deter-se sobre libelos que desqualificava; 2) para Orígenes,
as práticas cristãs ou a conduta de vida já eram elementos de refutação às ditas calúnias
produzidas por Celso; 3) Orígenes não estava mais preocupado, como seus
predecessores apologistas, em defender a existência legítima perante juízo dos
indivíduos nomeados cristãos, diante das autoridades romanas, tendo em vista as
perseguições. Para Orígenes importava que os cristãos se sentissem mais esclarecidos a
respeito de seus dogmas, de seus compromissos éticos e morais, de seu pertencimento
religioso através de seus símbolos e significados; que seguissem praticando o culto ao
Deus monoteísta e a observância de valores, de virtudes cristãs 83 , a fim de que todos os
indivíduos, cidadãos ou não do Império Romano, fossem atraídos e alcançados pelo
cristianismo de maneira universal84 . 4) os cristãos precisavam ser esclarecidos e
consolidados nos seus dogmas, para que não caíssem nas armadilhas das próprias
“heresias”, que como vimos foram bastante atuantes e distintas, ou de qualquer outro
adversário que se colocasse em seu caminho, como “um Celso” por exemplo, bastante
informado a respeito do cristianismo.

A par dessas inferências, acreditamos, que Orígenes escreveu sua apologia tendo
em vista uma audiência mais interna, isto é, entre os próprios cristãos 85 , a fim de que
também estivessem preparados para responder a seus interlocutores, diferentemente das
apologias do segundo século, destinadas às autoridades romanas. Neste caso a
identidade visava consolidar o ideal de pertença, uma profunda identificação do neófito
à sua comunidade e às suas regras de conduta. Enfim, as produções dos escritores
cristãos dos primeiros séculos, ao nosso ver participaram de configurações intelectuais
proeminentes de seu tempo, mantiveram-se sob controle eclesiástico, incluiram seus
preceitos religiosos nos debates acadêmicos, construíram seus lugares de fala e, a
literatura apologética contribuiu para o aprofundamento da doutrina cristã. Esse

83
De certa forma boa parte das virtudes professadas pelos cristãos foram também solicitadas pelos
filósofos pagãos, sendo que entre os cristãos acentuou-se a combinação da teoria e prática, devido o apelo
de “conformar-se à doutrina do Logos”, como requisito para completa identificação ao cristianismo.
84
Orígenes repetidamente em sua obra, insiste no alcance do cris tianismo em todas as terras gregas e
bárbaras ou a estatutos de pessoas, sábias ou ignorantes. Isto parece indicar que em sua época
vislumbrasse um maior número de cristãos confessos(Contra Celso).
85
Também existe a possilidade de Orígenes alcançar a pagãos cultos que viessem ter em mãos a sua
apologia.
64

conjunto de fatores concedeu a Orígenes o arcabouço para os primeiros ensaios de


sistematização da teologia cristã.

3.3. ESTRATÉGIA DISCURSIVA NA APOLOGIA DE


ORÍGENES

Considerando a linguagem como produtora de sentidos, na elaboração de um


conteúdo cognitivo cuja função é criar elos de identificação entre aqueles que
compartilham de uma mesma identidade, analisaremos o uso de argumentações
filosóficas estruturadas por Orígens como estratégia discursiva para expressar as novas
realidades espirituais, as quais dominavam os debates entre os intelectuais. Em
particular vimos como o neoplatonismo demandava por uma reorientação quanto ao
entendimento do homem e sua busca pelo divino, o nível supremo. Identificamos na
ordem do discurso o esforço sistemático de estabelecer “verdades”, positividades 86 , que
compreende dar uma nova direção à existência humana. Se faz necesário investigar
como os discursos se constituem, que regras o discurso obedece ou exclui em
determinada formação sócio- histórica dada, para que funcione e produza seus efeitos de
sentido.

Verifica-se a utilização de argumentos filosóficos a fim de dar veracidade ou


respaldo “científico” às formulações que eram construídas, pelos formados nas ciências
gregas. A filosofia na antiguidade reunia categorias de pensamento necessárias à
investigação mais profunda do conhecimento. Tomemos como exemplo as palavras de
Clemente(150-215 d.C.), de Alexandria: “a filosofia é a ginástica do espírito que leva à
percepção das noções inteligíveis”, ou ainda, “é a busca da verdade e da natureza real
das coisas”(Estrômatos, I). De fato os alexandrinos(Panteno, Clemente, Orígenes)

86
Para Orígenes, filósofos que constroem sentenças e em seguida as corrigem não são verdadeiros
filósofos. A verdadeira filosofia não muda o seu parecer nem por necessidade, nem por persuasão(Carta
de Gregório, o Taumaturgo em louvor a Orígenes(III séc.d.C.).
65

caracterizaram-se pela proximidade direta da filosofia e portanto argumentam com os


recursos da ciência e da cultura.

Na Carta de louvor de Gregório, o Taumaturgo, dirigida a Orígenes temos a


descrição dos passos metódicos quanto ao ensino que ministrava na Palestina, a saber:
a) o estudante deveria iniciar-se antes de tudo no exame do que fosse patente, à primeira
vista(que possui um caráter sofístico), para então aprofundar-se, objetivo a ser
alcançado através da dialéctica; b) em seguida, os ensinamentos das ciências da
natureza, a Física(o estudo da natureza e de cada um dos seres, a constituição do
universo em geral e cada parte), a Geometria, a Astronomia; c) as “divinas virtudes
morais”, a ética – tinha a arte de tornar o indivíduo disciplinado e constante, além de
fazer ver os princípios e raízes mesmo dos males da alma, suas paixões, e a escolha pelo
que nela havia de mais racional que se traduzia nas principais virtudes: a prudência, a
temperança, a justiça e a piedade, mãe de todas as virtudes(princípio e fim de todas); d)
os que desejassem prosseguir, receberiam o ensinamento da teologia e da metafísica,
desenvolvendo a reflexão de forma comparativa acerca das coisas divinas, incluindo os
escritos dos antigos filósofos e poetas, helênicos ou não, excetuando-se os ateus(os que
negavam a existência e providência divina). O objetivo era evitar o perigo de que uma
única doutrina fosse exclusivamente estimada 87 e ao fim, já tendo dominado a mente,
demonstrar-se enganosa.

Porém, no estudo da teologia e metafísica, o exame e interpretação das


Escrituras Sagradas e seus significados ocultos tornavam-se prioritários, pois o maior
bem era o conhecimento e piedade para com a divindade; nas coisas divinas só se daria
atenção a Deus e seus Profetas. O cristianismo era uma religião revelada, implicando
assim, no assentimento às verdades que Deus manifestava aos homens. Essa, era
fundamentalmente a distinção básica com o politeísmo e com a sistemática da filosofia
não-cristã; implicava a total inserção nos textos considerados sagrados e uma profunda
convicção íntima em matéria de fé; conferiam autoridade a uma contínua tradição
escriturária, bíblica, e a seus tratados teológicos. Para esses fins, os pensadores da

87
Era comum entre patronos e estudantes de filosofia de época imperial, escolherem a opção que melhor
lhes condizia. R. Macmullen afirma que havia uma mistura de elementos, sendo favorito dentre eles, os
estóicos, mas também epicuristas, peripatéticos, pitagóricos, acadêmicos ou cínicos. O autor ainda
observa que ditas escolhas se davam não por sua lógica, mas motivados por interesses econômicos,
tendência política e costumes sociais(1992: 49).
66

patrística se dedicaram. O curso ministrado em Cesaréia da Palestina(tendo seguido as


mesmas orientações de Alexandria) possuía então, a inserção de conteúdos religiosos
resumindo-se a dois ciclos básicos: o de propedêutica científica e filosófica 88 e o outro,
de religião.

Segundo Gregório, o método de Orígenes aplicava-se a guardar tudo que fosse


considerado proveitoso e verdadeiro em cada filósofo 89 , os bens que se deviam seguir e
outros que se deviam fugir. Por esta razão não é possível afirmar que houve uma
filosofia própria e exclusiva do cristianismo, ainda mais se considerarmos a ampla
variedade de interpretações e aplicações, do caráter bastante eclético dos pensadores
desta época imperial. Esta é uma questão bastante dinâmica e de explicação nenhum
pouco simplista. Para G. Fraile, a Igreja não tinha se ligado a nenhuma tendência
filosófica concreta, senão que sua teologia tinha incorporado e assimilado elementos
procedentes de ideologias bastante distintas como a do neoplatonismo, estoicismo, etc.,
no sentido analógico e instrumental(1986: 44,45). Esta realidade contudo, não impedia a
manifestação por determinadas preferências. Ainda neste raciocínio, acrescenta-se a
ressalva de que cristianismo e filosofia foram independentes para existir 90 , tendo havido
uma especulação racional de caráter filosófico nas concepções de Deus, do mundo e do
homem, na qual alguns pensadores cristãos dotaram o cristianismo de um caráter
científico, embora seja difícil precisar seus limites e influências mútuas 91 . Para alguns
pesquisadores de fato as atividades literárias e a influência pessoal de Orígenes
conferiram à filosofia um lugar reconhecido dentro da cristandade e por outro lado

88
Percebemos nos primeiros procedimentos metódicos de Orígenes, quanto ao ensino que ministrava, o
diálogo estabelecido entre cristianismo e neoplatonismo. Para uma melhor comparação verificar nesta
pesquisa as páginas 41, 42. Plotino(205-270d.C.),filósofo pagão e Orígenes(185-254 d.C.), filósofo
cristão foram contemporâneos e oriundos da mesma terra natal, Egito.
89
Neste aspecto, a partir do IV século, Orígenes receberia acusações veementes, por ter se aproximado
exageradamente dos filósofos não-cristãos, levando-o para interpretações não consensuais. Dentre as
temáticas combatidas destacam-se: a crença na preexistência da alma e na restauração universal, inclusive
dos demônios na ocasião do julgamento final, na eternidade.
90
Haja vista os discursos inflamados de Ireneu e Tertuliano contra a filosofia.
91
O itinerário de filósofos convertidos ao cristianismo como Justino, também demonstra como foi
valorizado o exerçício propedêutico alcançado pela filosofia e o auxílio que ela teria trazido para o
entendimento de saberes mais profundos numa tentativa de conciliação. Ele descreve no Diálogo, os
contatos estabelecidos com um estóico, com um peripatético(discípulo de Aristóteles), com um
pitagórico, com um platônico, tendo este último o conduzido a proveitosas lições. Para Justino, o
entendimento das coisas incorpóreas o fascinava e a contemplação das idéias dava asas ao espírito e
conduzia a enxergar a soberania divina, Deus, objetivo que ele julgou ser apresentado na filosofia de
Platão(Diálogo, VII,1-3)
67

enriqueceu consideravelmente a teologia cristã a despeito de alguns


abusos(CLAMPLIN, R. N. & BENTES, J. M. 1995: 626).

Desde então, temos como objetivo, analisar argumentos utilizados por Orígenes
em Contra Celso(248 d.C.), sua apologia de língua e expressão grega, a partir de um
lugar social, isto é, como filósofo exercitado na atividade docente, formado nas ciências
gregas e partidário das releituras aplicadas ao platonismo que estavam sendo correntes
em seu tempo. A elaboração discursiva de Orígenes visa responder em mesmo grau de
igualdade, ao seu adversário filósofo. Os argumentos filosóficos que Orígenes utiliza
em seus discursos apologéticos foram elaborados em virtude do mesmo ter em mãos
uma obra intitulada “Doutrina Verdadeira” (Alèthès Lógos) cujo autor apontava para
Celso(escrita por volta do ano 178 d.C.), filósofo neoplatônico. Os pesquisadores
supõem que esta obra foi constituída de quatro livros. Através da reconstituição dos
fragmentos do texto de Celso 92 (reproduzidos na obra de Orígenes), reconhecem a
dificuldade de perceber uma coerência, uma marca do desenvolvimento do texto, ou
uma unidade orgânica em seus livros,embora se apresentem em quantidade bastante
significativa. Os escritos de Celso parecem não apresentar uma base homogênea,
condição que faz com que alguns estudiosos duvidem de sua observância filosófica. No
entanto, Celso revela ser um profundo conhecedor de textos bíblicos do Antigo
Testamento e Novo Testamento, bem como sobre o desenvolvimento da comunidade
cristã nos tempos apostólicos, além de constituir o primeiro ataque vigoroso do
cristianismo por um representante da alta cultura. O apelo que Celso faz à razão e à
tradição politeísta, resulta na comparação do pensamento cristão à cultura antiga.

Marcel Borret acrescenta que o próprio título da obra de Celso, Doutrina


Verdadeira, para Oríge nes representa um título agressivo, provocante, que o faz reagir
com indignação pelo fato de ser obrigado a refletir no conteúdo do libelo. Realmente,
o texto de Celso em mãos de qualquer cristão intima-o a explicar sobre ele mesmo, o
que são as coisas que eles dizem e o que eles vivem. Suscita entre os cristãos uma

92
A obra original em sua íntegra encontra-se perdida. Tudo que sabemos de Celso vêm através das
narrativas de Orígenes, inclusive a provável data do seu escrito é postulada segundo alguns
acontecimentos reproduzidos por Orígenes. As alusões à situação do império, à ameaça dos Bárbaros,
revoltas, calamidades, motivos que acentuam as perseguições aos cristãos no reinado de Marco Aurélio,
indicam os anos 178-180 o período aproximado de sua escrita. As palavras de Celso mostram em sua
elaboração um rigor patriótico, pelo zelo dos costumes tradicionais, das instituições e a preocupação pelo
resgate da pax deorum e subseqüente pax romana. Conferir a síntese de sua obra na pág. 75.
68

verificação completa sobre a doutrina, sobre o culto, sobre seus costumes e sobre sua
história(BORRET, M.: 1986: 24-28) . Orígenes então, apropria-se do título “Doutrina
Verdadeira” e aplica-o para identificá- lo com o alèthès lógos, o Cristo, estabelecendo
as diferenças entre o politeísmo e o cristianismo.

Convêm atentarmos para uma questão interessante, principalmente entre os


intelectuais cristãos adeptos da filosofia, alguns apologistas: não houve um combate
direto nas relações entre razão e fé, mas sim um intenso debate entre a filosofia não-
cristã com a doutrina do evangelho, de forma comparativa(FRAILE, G. 1986: 39-44).
Com os filósofos cristãos, tais como Clemente, Atenágoras, Orígenes, Justino, o Mártir,
a razão têm a virtude, de não entrar em conflito com a fé, senão em ajudar a argumentar
em seu favor, o que demonstra seu sentido utilitário. Para Orígenes, por exemplo, todo
o universo participa da racionalidade e da espiritualidade que lhe conferem ordem e
dignidade, tendo em vista que “todo lugar é parte do universo e o mundo todo é templo
de Deus”(Contra Celso, VII, 44). Orígenes assim, atribui sentido, contextualizado à luz
da interpretação cristã, de que toda alma racional tem a virtude de aceitar as doutrinas e
o poder de captar o seu significado. Plotino, filósofo pagão neoplatônico,
contemporâneo de Orígenes, manifestava a mesma linha de pensamento, acreditando
que o espírito racional deveria naturalmente escolher o Bem, se caso falhasse, seria
devido à ignorância adquirida 93 . Assim, é notório em Orígenes que todo o
conhecimento que deriva da divindade deve ser acompanhado de sabedoria e razão94 ,
com a seguinte ressalva: para aqueles que queiram elevar-se da fé simples e indagar o
sentido das Escrituras divinas(III, 34).

Esta interpelação surge em função dos enunciados formulados por Celso os


quais enfatizam o caráter “bárbaro” do cristianismo 95 : composto de gentes incultas

93
Tanto Orígenes quanto Plotino apresentam o exercício das virtudes, de maneira gradual, para participar
da essência divina; as virtudes faz do espírito uma viva expressão da Mente divina (In: The internet
encyclopedia of philosophy. www.utm.edu/research/iep/g/gnostic.htm) . Embora, sejam distintos quanto
à adesão religiosa, Orígenes e Porfírio apresentam certas características comuns: são provenientes do
Egito; tudo indica que ambos foram alunos de Ammônio Saccas, fundador do neoplatonismo; participam
do mesmo espaço temporal(primeira metade do século III); estabelecem uma escola, uma sistemática de
ensino.
94
Na obra Peri Archôn, Orígenes define melhor o que pensa sobre a razão: “é a capacidade de discernir e
julgar as representações e tendências, reprovando e recusando uma e aprovando e acolhendo outras, a
fim de que possam ser dirigidos pela razão para uma vida digna todos os movimentos do
homem”(III,1,3).
95
Discussão que Orígenes transcreve em todo terceiro livro.
69

(apaideutota,touj ou
idiwtikou.j dh,mouj), rústicas
(agroikota,touj); escravos(andra,poda); insensatos,
desprovidos de razão(avno,htoj) e de origem humilde, vulgar
(agenh.j), tais como os cardadores(eriourgou.j),
sapateiros(skutoto,mouj), pisoeiros(knafei/j), enfim artesãos
– Contra Celso, III, 49-61. O criticismo de Celso demonstra o pensamento da elite
conservadora romana. A questão ganha relevância tendo em vista as adesões às
associações tanto religiosas como filosóficas na cultura greco-romana que se
restringiam a determinados segmentos. Para aristocratas, nobres ou intelectuais adeptos
à filosofia, dedicados ao “exercício do trabalho da mente”, a opinião das massas
deveriam ser ignoradas, mostrando-se muitas vezes impacientes com os segmentos
inferiores da sociedade(MACMULLEN, R. 1992: 49). Orígenes então, argumenta que
Celso era contra a “raça dos cristãos”
(o` Ke,lsoj pro.j to. cristianw/n ge,n
oj). Em função disso, elabora sua refutação, supondo que Celso escreveu sob a
paixão mais inflamada motivada pelo ódio contra os cristãos, desprovido de modéstia ao
contrário de autênticos filósofos como Platão ou Crisipo(I, 40). Verifica-se através
desses embates entre intelectuais, o apelo à reflexão e finalmente à razão que procuram
o rigor e a penetração do espírito àqueles discursos filosóficos de caráter persuasivo e
sedutor (BORRET, M. 1976: 27).

A filosofia nas escolas cristãs marcou-se pelo procedimento de passar das coisas
sensíveis(tw/n ai`sqetw/n) às realidades
inteligíveis(ta. nohta,). Essa operação é bastante significativa para as
formações discursivas de Orígenes. Em sua linguagem é bastante recorrente termos
filosóficos, utilizados estrategicamente para infundir a veracidade de suas afirmações,
tornar o discurso eficaz e fazer-se persuasivo na construção do sistema de
representação da identidade cristã. Orígenes exorta que “é necessário que os que
filosofam sobre a doutrina se equipem de toda classe de provas tiradas das Escrituras
divinas e advindas da série de argumentos”(IV, 9, e VI,10). Suas narrativas portanto,
contêm uma série de citações apropriadas de outros discursos e sujeitos, a fim de
corroborar suas construções defensivas e produzir “efeitos de verdade” nas suas
afirmações. Vejamos outros enunciados de Orígenes, pelos quais reforça que no
70

cristianismo se executa um conjunto de ações investigativas, o que chamamos de


operações de pensamento:

“o exame aprofundado das crenças e a exposição dos enigmas dos


profetas”96 (I,9)
(exe,tasij tw/n pepisteume,nwn kai. di
h,ghsij tw/n en toij profh,taij ainigm
a,twn)

“examinar a fundo o acontecimento”(I,26)

(alla. peirw,menoj teqewrhmenoj exeta


,zein ta pra,gmata)

“esquadrinhai as Escrituras”(III,33 e VI, 37)


(ereuna/te ta.j grafa.j)

“nos exorta a Palavra divina a cultivar a dialéctica”(VI, 7)


(paradeixomen apo tw/n ierwn grammatw/
n oti protrepei ka.i o` qei/oj
lo,goj hmaj epi dialektikh,n)

“se demonstre a razão do cristianismo”(VIII, 1)


(Ta. cristianismou/ apodeicqh/|)

Esses atos enunciativos surgem com bastante veemência no discurso de


Orígenes principalmente ao responder a seguinte assertiva de Celso sobre os cristãos:
“não inquiras; apenas
creia”(mh, exe,taze alla. pi,steuson), quer dizer,
crer sem fundamento. Orígenes empreende sua defesa afirmando que Celso desconhece
as doutrinas da Igreja e os cristãos, “os quais se exercitam no conhecimento mais que os
filósofos gregos”, pois buscam compreender a si mesmos e os mistérios divinos; nesta
direção atribui o seu julgamento, com termos lingüísticos comparativos: “os argumentos
são melhor tratados entre nós,
cristãos”( ma/llon kai. be,ltion, mais e melhor). O recurso

96
Este enunciado está inserido no seguinte parágrafo: “...se fosse possível que todos abandonassem os
negócios da vida para vagar tranquilamente até a filosofia, não haveria que seguir outro caminho que
esse, pois no cristianismo não se achará menor tarefa, para não dizer algo forte, que em outra parte
alguma: o exame das verdades da fé, a interpretação dos enigmas dos profetas, das parábolas
evangélicas e de infinitas coisas mais acontecidas ou legisladas simbolicamente”(Contra Celso, I, 9;
nossa tradução).
71

da dialéctica(perguntas e respostas), muito recorrente em Orígenes, também demonstra


uma estratégia bastante eficaz no sentido da persuasão, da arte retórica, a fim de que os
interlocutores se convençam da necessidade de aceitar um princípio ou uma doutrina e,
revela a capacidade de formular enunciados e tirar conclusões deles. Orígenes reforça
portanto, o papel dos mestres, no qual se inclui, pois os que se voltam para o ensino da
Palavra devem ser capazes de refutar os contraditores. “Esquadrinhar as Escrituras”
significava uma ação que movia o convertido para o conhecimento das verdades da fé,
com sabedoria e razão. Essas ações são repetidamente manifestas através dos seguintes
verbos enfatizados em todos os seus discursos: VExeta,zw (examinar a
fundo/provar, experimentar, interrogar, explorar/admitir depois de exame);
qewre,w (observar ou considerar com a inteligência, inspecionar, passar a
revista/contemplar); peira,w (intentar, esforçar-se, empreender, fazer prova,
examinar/experimentar, ter experiência); peirhti,zw (ensaiar, fazer prova,
escrutar, provar alguém/medir-se com alguém); Kri,nw (distinguir, discernir,
decidir, julgar, interpretar, apreciar, avaliar) 97 .

Essas operações reflexivas se justificavam também em dois aspectos à medida


em que, primeiro: na religião cristã revelada havia enigmas, mistérios que continham
significados simbólicos que precisavam ser devidamente esclarecidos, expostos à luz, à
inteligência superior que se sobrepunha às mentes mais simples. Desta contingência,
surgiram as alegorias 98 , utilizadas com bastante freqüência por Orígenes. Para Celso, as
alegorias eram utilizadas pelos judeus e cristãos, quando suas histórias ou doutrinas,
nem ainda literalmente tomadas, se prestavam a crítica alguma – “os mais moderados
entre judeus e cristãos tratam de explicar tudo isto alegoricamente” e acrescenta que
“envergonhados de tais histórias, buscam refúgio na alegoria”. A contraposição e a
luta pelos discursos significantes são estabelecidos. Um discurso se produz em função
de outro discurso, condição que suscita em Orígenes a refutação daquela assertiva com
outra, indagando como se explica as lendas e mitos gregos, como entender que pais
deuses comam a seus filhos deuses, ou que deuses filhos mutilem seus pais deuses (faz

97
Se atentarmos com mais afinco para estas disposições, veremos a aplicação daquele ideal do ser
contemplativo, postulado pelas releituras do platonismo que evocam a importância do sábio exercitado
nas coisas espirituais para o alcance das verdades mais profundas. Conferir pág. 41.
98
Esse recurso já tinha sido bastante utilizado pelo apóstolo Paulo e por Fílon, alexandrino judeu. Este
último tentou harmonizar os escritos judaicos com a filosofia grega(séc.I d.C.).
72

referência a Teogonia de Hesíodo) ? Percebe-se dois porta-vozes qualificados para


elaborar e estabelecer um criticismo de grande sagacidade investigadora, representantes
de dois pensamentos e duas culturas, politeísta e cristã. Na realidade, observa-se que a
construção de determinados enunciados obedeceu algum tipo de regra, aqui
exemplificado pelo uso da alegoria. Orígenes não exclui totalmente a interpretação
literal dos textos bíblicos, mas também, enfaticamente assevera e atribui importância
fundamental a necessidade da interpretação alegórica a textos de difícil explicação.

Segundo, se aplica a noção de verdade associada à razão, para alcançar a


coerência e a ordem lógica nas exposições dos fatos e dos argumentos e, a ordem
histórica. As exposições doutrinais tem este aspecto sutil em Orígenes e é o momento
quando ele introduz suas interpretações às formulações de Celso. Aos quatro livros de
que consta a obra de Celso, opõe Orígenes com oito 99 . O estilo de sua refutação é
observado quando introduz recortes selecionados dos fragmentos gregos da obra de
Celso. Orígenes então disseca sua argumentação questão por questão, proposição por
proposição e até nos detalhes de uma frase, exerce um contrôle sobre as questões
alegadas, examinando as citações transcritas pelo próprio Celso, acrescentando outras se
julgar necessário e retificando o julgamento sustentado sobre a doutrina. Além desses
passos, denuncia continuamente as omissões até onde ele alcança e volta-se contra a
acusação do adversário, incluindo os termos pejorativos que a acompanham(BORRET,
M. 1976: 201).

Concluindo seu oitavo livro, Orígenes crer ter construído uma refutação
irrepreensível e assinala : “ao leitor de seu escrito e de nossa réplica toca agora julgar
qual dos dois respira mais do verdadeiro Deus, da maneira que haja de darse-lhe culto,
e da verdade que chega aos homens daquelas sãs doutrinas que o induzem ao melhor
gênero de vida” (VIII, 76). Toda elaboração discursiva de Orígenes tem como meta
realizar digamos, a arte retórica da demonstração, buscando interagir e atrair o leitor, a
fim de que o mesmo venha aderir e ser capaz de compreender a mensagem cristã. Suas
narrativas apontam para estratégias de argumentações filosóficas, que visam infundir
efeitos de verdade e eliminar qualquer risco, em seu julgamento, de inserções falsas ou
heréticas, ao dispor tudo ao exame e à razão mais crítica. Com este procedimento
discorre sobre a doutrina cristã e todo seu conteúdo cognitivo. Identifica-se em
73

Orígenes seus “modos de seduzir” através do uso da linguagem que expressa sentidos
bastante significativos na forma de apresentar positiva ou negativamente determinados
valores ou aversões. Se a razão concorre para exercitar os espíritos ou dotá- los da
capacidade de captar o significado das coisas e enxergar as “verdades da fé”, como
vimos anteriormente, assim afirma: “Por que, que dano maior que não compreender
pela ordem do mundo a seu Fazedor? E que pior desgraça que ser cego de
inteligência(tou/ tetuflw/sqai to.n nou/n) e não
ver o Pai e artífice do Universo”(VIII,38). O dano ou desgraça estão associados à falta
de inteligência. É interessante este argumento retórico de Orígenes no livro oitavo,
porque logo no prefácio da obra ele discorre sobre o fato de ter que responder a Celso,
como se o mesmo também fosse enquadrado nessa condição referida, devido não ter
percebido que a realidade mesma oferecia uma clara refutação, pela ordem das coisas.
Essa assertiva mostra também a definição e significado do ateísmo para o cristianismo.
Mais propriamente, negar a providência divina significa estar excluído da comunidade
cristã. Vejamos no próximo capítulo essas marcas de caráter simbólico que atravessam
o conjunto da comunidade social e seus respectivos membros chamados cristãos.

4. A construção da identidade cristã: sistema de


representações

Neste capítulo, vamos analisar a identidade cristã segundo as posições assumidas


por aqueles que a constroem, identificando os efeitos de sentido produzidos pelas
formações discursivas dadas, ou seja, palavras que só encontram sentido em
configurações específicas de discursos, em uma determinada conjuntura sócio-histórica.
Fundamentalmente, trabalheremos a noção de discurso como um espaço onde emergem
as significações, o lugar onde se constituem os sentidos. Nosso procedimento de análise
tem por objetivo identificar um conjunto de enunciados que mantêm relações entre si,
que explicitam uma regularidade de conceitos, de escolhas temáticas, bem como tomada
de posições, investidos de significados pelos sujeitos envolvidos no discurso. Portanto,
nos deteremos na construção, na estruturação do discurso apologético, percebendo os
vestígios de interpretaçao das marcas ideológicas e simbólicas de seu funcionamento

99
Conferir a síntese narrativa de Orígenes nas páginas 75-77.
74

que configuram o sistema de representações da identidade cristã. Principalmente


investigaremos numa formação discursiva dada, as relações de exclusão, de inclusão, de
oposição estabelecidas por quem assume o discurso, determinando o que pode e deve
ser dito. Serão observados nos textos submetidos à análise os usos distintos da
linguagem pelas quais são construídos os modos de interagir e “seduzir” no processo de
construção da identidade cristã. Estes procedimentos de análise serão aplicados
especialmente, na apologia escrita por Orígenes em “Contra Celso”, seguida de
algumas interlococuções estabelecidas com outros discursos apologéticos.

De forma geral, Os apologistas gregos utilizaram-se de conceitos platônicos,


aristotélicos, estóicos, a fim de mostrar a corrupção, os erros, e desvios a que levou a
religião pagã e em oposição mostrar a formação da “verdadeira religião”, a cristã, tal
como a interpretaram. A refutação do politeísmo é direta, tentando aniquilar a
mitologia e a idolatria. Aristides por exemplo, começa a sua apologia com evocação
verdadeiramente filosófica aplicando-a aos dogmas cristãos: a contemplação do mundo
visível leva o autor à admiração da ordem; à observação do movimento que o conduz
até a noção de Deus, primeiro motor de tudo(noção aristotélica), é quem “ordena” tudo
no mundo e o mantêm (noção platônica) e que por “providência” veio ao mundo - noção
estóica (Padres apologistas, 1999: 35).
Os apologistas gregos, combateram a idolatria e a mitologia do politeísmo
através da reinterpretação dada aos elementos da ordem do mundo, o céu, a terra, a
água, o fogo, o sol, a lua, inclusive o homem, considerando cada um, obra ou criação de
Deus. Neste entendimento não eram objeto de adoração, mas sim o seu verdadeiro
artífice, criador e sustentador de todas as coisas. Constrõem suas narrativas tentando
afastar os indivíduos do erro do politeísmo(Aristides. Apologia, 15), chamando atenção
para o monoteísmo cristão. Os apologistas de forma comparativa e em oposição, faze m
alusão aos diversos cultos politeístas e aos deuses da mitologia grega, como Zeus,
Apolo, Dioníso, Afrodite, Ártemis, etc., ou da mitologia egípcia como Ísis, Osíris, tal
como os poetas e filósofos os descreveram, para desacreditá- los100 e encerrá- los na
seguinte ordem: são passíveis de mudança, visíveis e corruptíveis. Essas categorias são
colocadas em plano inferior, principalmente em virtude dos gregos, diferentemente dos

100
Verifica-se essas construções principalmente em relação à mitologia grega em: Taciano, Discurso
contra os gregos, 8-10; Aristides, Apologia, 3-13; Atenágoras, Súplica em favor dos cristãos, 17-29;
Teófilo de Antioquia, A Autólico, II, 7-8; Epístola a Diogneto(de autor anônimo), 2.
75

povos orientais, representarem seus deuses em figura humana. Ao Deus cristão atrib ui-
se as categorias da incorruptibilidade, invisibilidade, imutabilidade. Percebe-se nos
discursos apologéticos portanto, quão significativo foi a apropriação de conceitos,
noções, temáticas filosóficas como recursos instrumentais na construção de seus
argumentos e no esforço de dar lógica e inteligibilidade a todo este processo. Podemos
inferir que os discursos apologéticos também utilizaram de forma sútil a estratégia de
atrair intelectuais exercitados nas ciências gregas aprofundando-se no debate e no
conhecimento, de formação discursiva similar e exercer um consenso.

Verificamos as mesmas especulações trabalhadas pelo filósofo cristão Orígenes,


porém, com mais intensidade e riqueza de análise, haja vista, suas atribuições
exegéticas, teológicas e propedêuticas, com preocupações mais sistemáticas a fim de
garantir um conteúdo irrefutável aos seus futuros leitores, além de algumas
especificidades. A identidade cristã só pode ser conferida ao reconhecimento e
entendimento de categorias que atestam realidades espirituais que transcendem ao
mundo dos homens, à identificação com um espaço físico e seus objetos tal como foi
estabelecido pela cultura greco-romana. As temáticas, as noções e os valores
contruídos, são trazidos à interpretação a partir de comparações e oposições mantidas
entre as representações do sistema politeísta estabelecidas por Celso e do cristianismo
defendidas por Orígenes, acerca da divindade e das formas de culto. Ainda verifica-se a
redefinição do indivíduo e a existência no mundo com base nas noções de
transcendência das esferas sensível, visível e corruptível. Apresentaremos abaixo as
sínteses das estruturas narrativas de Celso e de Orígenes, que atestam estas duas
posições distintas para posteriormente procedermos a análise de acordo com a nossa
terceira hipótese de trabalho.

SÍNTESE DA ESTRUTURA NARRATIVA DE CELSO


Reconstituição da obra “Doutrina Verdadeira” em “Contra Celso”

PREFÁCIO:
§ Qual o mérito da religião cristã, se os seus membros sofrem o risco de morte?

PRIMEIRA PARTE:
§ As origens suspeitas do cristianismo: reuniões e ensinamentos em secreto.
76

Nesta parte introduz um personagem judeu que constrói críticas ao judaico-cristianismo.

SEGUNDA PARTE:
§ A substância da doutrina cristã descende dos judeus, de um povo bárbaro; os
cristãos não apresentam um fundamento religioso verdadeiro. O caráter bárbaro do
cristianismo, que acolhe segmentos inferiores entre a multidão.

TERCEIRA PARTE:
§ O cristianismo professa uma doutrina sem valor; não buscam uma doutrina fundada
sobre a razão à maneira dos gregos; fomentam uma fé cega.
Celso compara a religião cristã e o seu fundador com práticas mágicas.

QUARTA PARTE:
§ Conflito do cristianismo com o império: tentativa de uma conciliação.
Celso reforça a prática das tradições religiosas e da vida cívica dos romanos.

SÍNTESE DA ESTRUTURA NARRATIVA DE ORÍGENES


CONTRA CELSO

Prefácio:
Orígenes apresenta as razões para refutar seu adversário, filósofo pagão, Celso. A
pedido de Ambrósio, seu grande amigo, Orígenes se detêm na tarefa de escrever e
elaborar a defesa do cristianismo. Procurará responder ponto por ponto aos enunciados
de Celso. Apresenta suas preocupações com os seus possíveis leitores, em particular
volta-se para aqueles que possam se deixar comover esse inclinar aos escritos de Celso,
os de fé débil ou fracos na fé.

Livro I:
Defenderá o cristianismo em virtude das acusações de Celso de que os cristãos
formavam uma associação secreta e falsa, além de ter um caráter sedicioso. Orígenes as
considerou como blasfêmias, de quem demonstrava pouco conhecimento acerca dos
cristãos.

Livro II:
Celso apresenta um personagem fictício judeu que acusa aqueles que sendo judeus
convertiam-se ao cristianismo, entendendo como gesto de traição à tradição de seus
pais. Celso reprova as origens judaicas do cristianismo e da mútua contenda sobre o
Cristo. Orígenes parte em defesa das Escrituras judaicas e ressalta que não será
identificando o cristianismo com o judaísmo que Celso conseguirá inferiorizá-lo, pois o
cristianismo observa as Profecias acerca de Jesus e dos Profetas que as profetizaram.

Livro III:
Orígenes rebate as palavras de Celso quanto à origem proletária do cristianismo, em
relação à maneira que Celso designou os cristãos, de forma pejorativa, como aqueles
77

recrutados no meio da multidão. Celso neste sentido acusa as comunidades cristãs de


serem compostas de néscios, plebeus, estúpidos, escravos, mulheres e crianças.
Orígenes então tece sua réplica apontando o cristianismo como escola universal e que
por suas virtudes cura os pecadores; dá a conhecer que no período em que ele escreve
(setenta anos depois da escrita de Celso) a realidade demonstra a inserção de outros
segmentos da sociedade romana como filósofos, não poucos homens e mulheres nobres.

Livro IV:

Orígenes discute sobre as profecias que versam sobre Cristo, sobre a manifestação do
Verbo de Deus, em virtude de Celso argumentar criticamente sobre a encarnação e
ressurreição. Orígenes introduz a mitologia grega e os escritos de poetas e filósofos
para de forma comparativa, esclarecer, enaltecer e defender os mistérios cristãos, a
doutrina da Salvação e a dispensação divina.

Livro V:

Orígenes argumenta sobre as formas de devoção cristã, que repudia a adoração aos
elementos da ordem do mundo, do kosmos, e expõe algumas semelhanças e diferenças
entre judeus e cristãos quanto ao entendimento da prática do culto monoteísta. Orígenes
ainda preocupa-se com os escritos de Celso sobre as relações entre o judaísmo e
cristianismo e as acusações de grupos sectários entre ambos.

Livro VI
Celso defende a antiguidade dos escritos dos poetas e filósofos gregos, argumentando
que há coisas que foram melhor ditas entre eles, principalmente em Platão, do que com
as sagradas letras. Orígenes então ressalta o valor das Sagradas Escrituras consideradas
superiores às ciências gregas, mas também argumenta em favor dos escritos de Platão
interpretando-os como tendo aberto o caminho para o entendimento das coisas
inteligíveis que se realizam no Cristo. A comparação entre sabedoria humana e divina é
estabelecida, sem que uma se volte contra a outra. No cristianismo se dá o escrutínio
das Escrituras.

Livro VII
Orígenes insiste em responder ao criticismo de Celso em relação às profecias e profetas
judaicos como Moisés e as comparações feitas com Jesus Cristo, que os coloca todos
em plano inferior aos homens gregos cultos do passado. Para Orígenes os mais simples
cristãos são melhores moralmente falando do que muitos filósofos e mostram-se
verdadeiramente piedosos para com Deus.

Livro VIII

Orígenes expõe a verdadeira razão do cristianismo, religião monoteísta que se abstêm


de dar culto a ninguém que não seja o Deus supremo e o Verbo de Deus. Apresenta a
78

inutilidade da adoração de muitos deuses. Tudo indica que Celso mostrava-se curioso
para entender o porquê dos cristãos em não seguir a tradição politeísta a tanto tempo
arraigada na sociedade, bem como a ausência de templos e altares. Há um debate
acerca da natureza dos deuses e dos demônios e a argumentação da superioridade do
Artífice do universo e da adoração das criaturas ao seu Fazedor. Celso receia que o
exclusivismo cristão quanto à prática monoteísta venha trazer algum perigo para o bom
andamento do império e o reconhecimento do poder público. Orígenes defende os
cristãos ressaltando que a observância às leis divinas está em primeiro plano, embora
manifeste o desejo de ver o império bem governado e mostre a esperança de vê- lo
tornar-se cristão.

A seguir de forma esquemática esboçamos os recortes selecionados do nosso


corpus que integram a obra de Orígenes e que procura manter a mesma aplicação de
raciocínio em todos os livros. Lembramos que em virtude da imensa obra de Orígenes,
tivemos que efetuar uma seleção bastante rígida, no sentido de nos limitar aos textos
que diretamente corroboram nossas hipóteses, mas necessariamente introduziremos
outros que se ajustam nas temáticas em foco. Os fragmentos selecionados nos
permitirão proceder de forma analítica com os elementos subjacentes:

“Contra Celso”
(Proj ton epigegrammenon Kelsou alh
qh logon)
Orígenes

Refs. TEXTO CONTEXTO


(Nossa tradução)
I, 29 “Jesus introduz no gênero humano uma Orígenes enaltece a Cristo,
doutrina que faz cessar os costumes dossua capacidade de efetuar
judeus, se bem respeitando seus profetas e
mudanças, mesmo não tendo
destrói as leis helênicas sobretudo em a cultura helênica; responde
relação ao divino.” às críticas de Celso quanto a
origem social de Jesus e sua
formação.
II, 5 “A verdade dos cristãos tem o poder de Resposta a Celso que diz não
levantar e elevar a alma e a mente do ser nada novo o que afirma os
homem e persuadir-lhe que busque uma cristãos.
79

cidadania não em algum lugar da terra, à


semelhança dos judeus, senão nos céus.”
II, 50 “Na verdade, por maldade e arte de Refutação de Orígenes às
encantamento não se houvesse constituído acusações de Celso, o qual
todo um povo, que não só abandonasse os associava Jesus e seus
ídolos e templos, obra de homens,mas milagres às práticas mágicas.
também, que se erguesse sobre toda a
natureza criada e se levantasse ao princípio
incriado do Deus do universo.”
III, 15 “...lhe inculcamos o desprezo de todo ídolo e Orígenes não quer ocultar as
imagens e em seguida levantando seus coisas concernentes ao
pensamentos...os elevamos ao Criador de sagrado da doutrina dos
todas as coisas.” cristãos. Descreve o que
acontecece com os que
aderem ao cristianismo.
III, “estes com efeito, levantaram templos e “Estes” são identificados com
34; estátuas, nós, porém, recusamos a render outros povos como: os
culto a divindade por esses meios” cilícios, os tebanos, os
“admiramos a Jesus que tem apartado nossa lebadios, aos getas, etc.
mente de todo o sensível e não só do que é (Celso os comparou aos
corruptível e que se deixa corromper”; e cristãos).
a levanta em honra do Deus supremo, que [A mesma contraposição e
lhe tributamos por vida reta e orações” sentido encontra-se em outras
referências: VII, 64-66, 69,
70; VIII, 6, 12, 13, 17]
III, 56 “Aos que por todos os modos tratam de Os que pregam a Palavra,
levantar a alma ao Criador do Universo, aos identificados por Orígenes
que ensinam como há de menosprezar todo o como “amigos de Deus”.
sensível, temporal e visível...alcançar a Celso os compara,
comunhão com Deus, a contemplação do criticamente a gentes rústicas
inteligível e invisível.” que andam pelas casas
atraindo ao mais fracos.
III, 81 “não há nada melhor do que conceber e ser Resposta à crítica de Celso
capaz de entregar-se ao Deus supremo e sobre a crença na
abraçar uma doutrina que nos aparta de ressurreição.
todo criado 101 , mas que nos conduz ao Logos
animado e vivente, pois é sabedoria vivente e
Filho do Deus Supremo.”
IV, 14 E assim, nem sequer estes são capazes de Orígenes assim define em
elucidar a noção natural de Deus: ser contraposição aos estóicos e
incorruptível, simples, incomposto e epicuristas.
indivisível.”

101
“Nos aparta de todo criado” -
panto.j me.n afista,sh| genhtou/ - criado ou
gerado(advérbio no grego
genhto,j) é um termo filosófico, que diz respeito ao que é criado, resultado de criação, em
Orígenes aplicado em contraposição ao Incriado(agennh,tou), identificado a Deus supremo
que não sofreu o ato de ser gerado, que está justamente na mediação entre as coisas criadas(sujeitas a
corrupção) e o eterno(das coisas invisíveis e inteligíveis). Esse sentido também está presente em Contra
Celso, III,34.
80

IV, 26 “os que perderam a sã idéia de Deus, por Resposta à crítica de Celso
mera aparência de piedade, adoram animais sobre cristãos e judeus serem
irracionais, estátuas e coisas criadas, comparados a formigas e
quando pela beleza delas deveriam haver vermes, que convivem juntos e
admirado ao que as criara e a Ele só dar-lhe discutem entre si. Orígenes
culto” então responde quem ele julga
irracionais.
V, 46 “Por esta razão, nós preferimos suportar Refutação ao pensamento de
todo e quaisquer maus tratos do que Celso de que não importava
reconhecer Zeus por Deus.” chamar Zeus de Altíssssimo,
Adonai, Amon de acordo com
seus costumes nacionais.
VI, 4 “Precisamente por isto, os sábios e eruditos Crítica aos egípcios que
erraram em sua práticas acerca da davam culto a criatura em
divindade...” lugar do criador.
VII, “os cristãos...fechados os olhos da sensação, Comparação entre os
despertos os da alma, transcendem o mundo politeístas e os cristãos.
44
todo...pois tem aprendido de Jesus a não
buscar nada pequeno, isto é, sensível.”
“a imagem de Deus se conserva, afirmamos Comparando às práticas
nós, na alma racional que se realiza na politeístas (dirigir preces às
VII,
virtude.” imagens), refuta que nada
66 fictício deve morar na alma do
homem piedoso para com
Deus.
VIII, “Quem aspira a vida superior à multidão, Orígenes asssim contrapõe
pela piedade para com o Deus Supremo e aos que monosprezam o
60;
pelas orações dirigidas a Ele” divino.
III,50 “exortamos a piedade para com o Deus
Supremo e as virtudes que reinam com
Ele(...)”
VIII, “...certamente não juramos pela fortuna do Refutação sobre as afirmações
imperador, nem a nenhum outro considerado de Celso de que nada impede
65
como Deus.” que os cristãos reconheçam
“o que é tido por fortuna do imperador é o também a piedade para com
seu demônio” os deuses e gênio imperial
também.

A análise que se segue, tem como parâmetro, identificar as principais categorias


envolvidas e co-relacionadas entre si na construção da identidade cristã e da diferença,
segundo as marcas simbólicas selecionadas como fundamentais por Orígenes, na
apologia, para que o discurso alcance os efeitos de sentido pretendidos. Portanto nos
interessa perceber as marcas que fazem o discurso funcionar, isto é, ter uma ordem de
inteligibilidade. Para Orígenes só era possível entender quem eram os cristãos, a quem
adoravam, como e porquê, a partir de determinadas noções, tidas como mais
81

importantes que outras, pelas quais em seu entender dariam conta de expressar a
diferença do cristianismo com o mundo politeísta, e realçar a superioridade daquele.

De início, identificamos no conjunto das narrativas de Orígenes, como o quadro


acima demonstra, uma marca formal que se repete com bastante freqüência: a
conjugação verbal apresentada na primeira pessoa do plural –
nós(h`mei/j),muitas vezes sem acompanhamento do pronome pessoal –
afirmamos, não juramos, admiramos, etc. Na gramática grega as formas verbais
flexionadas constituem pro,swpa, personae, “figurações sob as quais se realiza a
noção verbal. Há sempre um conjunto de três pessoas que determinam a forma verbal,
senso este também o sistema que nós herdamos. Portanto, a pessoa verbal no discurso é
identificada em sua forma plural, que corresponde à maneira como Orígenes se inclui e
os outros cristãos, em um todo globalizado, sem atribuir distinção específica. Esta é
uma característica bastante significativa nas séries de narrativas em Orígenes. Em todo
tempo Orígenes refuta as acusações de Celso “contra nós”, pois ele fala “contra nossa
doutrina”, pelo qual identifica os cristãos ou o cristianismo 102 . A força expressiva
reside também sobre a oposição, Orígenes dirige sua refutação em relação a ele/Celso
que escreveu calúnias contra nós/cristãos ou “o que nos diz o acusador da fé cristã”(...)
“Celso nos pede as razões dessa fé”103 . Em seus diversos atos de fala, podemos
também perceber o sentido comparativo na construção de suas narrativas, quando
escreve que os cristãos não podem se comparados a “estes”, também entendido como
“os outros”, os quais Orígenes exclui, identificados com as diversas manifestações
politeístas 104 . Essa construção se dá sempre em função das proposições de Celso
quando este compara os cristãos de forma crítica com outros segmentos religiosos ou de
caráter filosófico, que se fizeram representar na sociedade. Celso é sempre identificado
como o elemento oposto, o adversário do cristianismo ou dos cristãos, quem tece

102
Como exemplos seguem esses enunciados, que percorrem a obra toda: “Logo diz Celso, que nossa
doutrina é, desde suas origens “bárbara(...)”; “vejamos também como trata de desacreditar nossa
doutrina moral(...)”; “presto-me a combater em minha obra...as acusações que lança Celso contra
nós...”
103

“Lege,tw d’ h`mi/n o` th/| pi,stei Cristianw/n


evgkalw/n"(...)
“Ei` d’ apaitei/ hma/j lo,gouj th/j toiau,th
j pi,stewj”(Contra Celso, I, 19).
104
Encontramos em Contra Celso, logo no livro I, 1, a referência no original grego às palavras
“avqe,ou poluqeo,thtoj” – politeístas ateus.
82

blasfêmias ou calúnias - “é ele”. Orígenes então fala em “nossa defesa”/cristãos, o que


pressupõe falar “em nome de”, fazê- lo na autorid ade que lhe é conferida. No prefácio,
Orígenes diz a Ambrósio, seu discípulo, estar disposto a refutar Celso e empreender
“com todas suas forças” a apologia cristã.

Orígenes não reconhece nenhuma unidade específica, quer dizer, se Celso critica
ou menospreza Jesus ou seus discípulos, ou algum dos personagens bíblicos como
Moisés, por exemplo, ele o faz sempre contra – nós/cristãos. Orígenes quer afirmar o
consenso e ao mesmo tempo, anular qualquer interpretação que viesse a surgir sobre
dissensão entre os próprios cristãos. Outra consideração a ser feita diz respeito a:
diferentemente dos apologistas anteriores, o discurso de Orígenes demonstra através
dessas marcas lingüísticas, que ele visualiza os cristãos como já tendo assentado fortes
raízes, tentando esmorecer quaisquer dúvidas quanto a sua identificação e afirmação,
como uma organização eclesial ou comunidade formalmente constituída. Lembremos
de que os apologistas do século II, se dirigiram às autoridades governamentais em
defesa dos cristãos, tendo sido acusados de crime contra o Estado, onde pesava a
associação do nome a grupos de sedição, portanto, ainda encontravam-se em definição e
tentando se distinguir do judaísmo. Na verdade, este é o contexto em que se situa Celso
quando escreveu sua obra, o que fará com que Orígenes trate de demonstrar, décadas a
frente, ser o contrário. Orígenes insiste diversas vezes em falar da expansão cristã não
mais restrita aos dutos locais, mas em todas as partes da terra. Os membros das
comunidades cristãs, ao seu ver, já estavam bem aliçerçados e acessorados. Podemos
inferir que provavelmente Orígenes quando escreveu (248 d.C), deixou-se influenciar
pelo ambiente circundante que indicava uma época de paz, no governo do imperador
Filipe, o árabe, do qua l acredita-se ter sido mais propenso ao cristianismo. Esta
situação, o induz a ver que tudo concorria para que o império se tornasse cristão. Esse
contexto o distingue dos demais apologistas e, o permite ser mais efusivo nas suas
elaborações discursivas e ideológicas.

Prossiguindo na análise do quadro, verificamos que toda a sistematização


simbólica da identidade cristã reside na sustentação de seu caráter monoteísta. A partir
desta premissa, o discurso se desenvolve em contraposição ao politeísmo e
essencialmente, em virtude de se distinguir da representação humana vinculada,
principalmente, aos deuses gregos. Inferimos que para Celso, um dos problemas dos
83

cristãos era o não reconhecimento da cultura helenística em relação aos costumes e


tradições religiosas. Na interpretação de Celso ou na sua posição de sujeito, disposto a
falar como filósofo grego, “os incultos cristãos” demandavam tocar em questões que
pertenciam ao terreno da filosofia, isto é, pensar sobre si, o homem e sua existência no
mundo com seus pressupostos éticos. Em contrapartida Orígenes irá refutá- lo,
afirmando ser capaz de responder à altura, debate que resultará na construção de
categorias transcendentais as quais serão desenvolvidas no esforço de se diferenciar do
aspecto huma no, que marcava tão fortemente a relação entre os homens e os deuses na
cultura antiga, ou daquilo que representava eles/politeístas. Vejamos o esquema a
seguir, desenvolvido a partir dos textos selecionados de Orígenes em Contra Celso, os
sistemas de representação em conflito:

Campos de oposição
Representação politeísta Representação Cristã

Visível (orato,j/blepwme,nwn)
Invisível (ao,ratoj)
Corruptível ( fqarto,j) Incorruptível
(afqarto,j)
Sensível (aisqhto,j) Inteligível
(nohto,j)

os Deuses/politeísmo o Deus cristão/monoteísmo


Templos (new|,)
alma(yuch,)=templo de Deus
Altares(bw,mioi)
(nao.n tou/ qeou/)
Ídolos (ei;dwla)
orações(euvcai/j) e virtudes(avreta,j)
Estátuas/imagens (aga,lmata)

Orígenes, constrói nas suas narrativas uma série de posicionamentos ideológicos


a respeito da identidade cristã. Primeiro, a identidade é construída pelo que ela não é,
isto é, ela exclui antigas representações entre os homens e seus deuses, sobretudo “as
84

leis helênicas com respeito ao divino e os costumes judaicos”,


(“ta, te Ivoudai,wn e;qh katalu,onta k
ai. tou.j e`llh,nwn no,mouj ma,lista
peri. tou/ qei,ou kaqairou/nta”, I, 29),
e inclui de forma performativa, os novos elementos constituidores de sua formação.
Segundo, para marcar a diferença, estabelecem-se campos opostos, por antíteses. As
categorias que caracterizaram a ideologia cristã nas suas formas de devoção, o
invisível, o inteligível, o incorruptível, representam realidades espirituais que se opõem
a tudo que pode ser identificado com a materialidade: as categorias do sensível, visível,
e corruptível, associadas com a representação do mundo politeísta. Para os cristãos
aquelas realidades espirituais representam um novo condicionamento do espírito, na
compreensão da vida piedosa para com Deus e da existência no mundo. Identifica-se
um antagonismo sempre presente, de Deus para com todos os outros poderes
sobrenaturais ou mesmo de cada cristão confesso para com todos os que persistem em
não se submeterem às leis divinas.

Fundamentalmente, através das redes de significação do sistema de


representações, Orígenes percebe a prática politeísta, fundamentada sobre bases
materiais associando-as ao modo como “os adoradores de muitos deuses” prestavam
culto por meios – inanimados(avyu,coij): templos, estátuas, imagens,
ídolos, altares, objetos consagrados aos deuses, fabricados, ou às imagens que eles
representavam. Essa proposição crítica, ganhava um tom mais persuasivo no discurso,
ao recriminar tais adoradores que se prostravam ante a semelhança da imagem de um
homem mortal ou até mesmo aos animais irracionais, que para Orígenes correspondiam
às coisas criadas(ta. demiourgh,mata). Esse conjunto de
representações era imbuído de significações religiosas, atribuídas às formas tradicionais
de culto à divindade, as quais para Celso eram fundamentais para que os deuses se
fizessem favoráveis ao mundo dos homens. Por outro lado, para Orígenes, indicavam
um erro que nem sábios e nem eruditos souberam elucidar. Logo, para Orígenes, os
adoradores dos deuses são “os outros”, que perderam a sã idéia de Deus e
conseqüentemente, erraram em suas práticas. Em contrapartida, os cristãos
menosprezam( katafrone,w) em suas práticas de culto as coisas que
podem ser percebidas pelos sentidos(aivsqhth,j), pois estas não podem ser
85

comparadas à categoria do inteligível(nohto,j), que exige uma auto-reflexão de


Deus, o pensar com inteligência e praticar o culto racional.

Os atos de culto do politeísmo pressupunham além do significado religioso, uma


prática social e política, como era de costume nas cidades, de identificação aos símbolos
vinculados ao poder imperial e às práticas sociais que garantiam a integração dos
cidadãos oriundos das distintas partes do império. Para Orígenes eram representações
que tinham significados puramente humanos em suas relações, uma prática que não
fomentava a transformação de conduta, pois vinculava os homens no mundo, de todo
corruptível. Vejamos o texto que segue, para percebemos melhor suas interpretações e
e marcações de diferença:
“...e em qualquer parte da terra se impusesse o evangelho de Jesus para conversão e correção
dos homens, e que em qualquer parte surgissem também Igrejas, de constituição mui distinta às
comunidades políticas, compostas de homens supersticiosos, dissolutos e iníquos. Tais são com
efeito os costumes que se tem por comum nas comunidades das cidades. Mas, as Igrejas de
Deus, que seguem os ensinamentos de Cristo, comparadas com as comunidades dos povos junto
aos que vivem como forasteiras, são como luzes neste mundo. Por que quem não confessará que
os piores membros da Igreja e que, em comparação com os melhores deixam muito que desejar,
são melhores do que muitos que formam as comunidades populares?(III,29). E ainda: “os
sinais, porém da divindade de Jesus são as Igrejas compostas de homens por ele
favorecidos...”(III, 33, tradução nossa).

Nas palavras de Orígenes, as comunidades da


cidade(ekklhsi,a tou/ dhmou) apresentavam composição
distinta das comunidades cristãs identificadas também como
igrejas(ekklhsi,a tou/ qeou/), uma vez que estas
pressupunham a não identificação com um lugar aqui no mundo, mas eram forasteiras,
em busca de valores supremos e a prática de virtudes identificadas com o próprio ser
divino. A expressão de “elevar-se”(epai,rw, metewri,zw), tão
marcante e repetidamente enfatizada nos discursos de Orígenes, pode ser interpretada
como a fé que move o novo crente, que serve para invocar uma autoridade que o faz
sentir-se superior a respeito dos não-crentes. Essa superioridade marca um confronto
entre seres que por serem criados por um mesmo Deus, se supõe iguais. As
classificações no processo de marcação de diferença são subjacentes. Para “elevar-se”
da condição de criaturas a adoradores, faz-se necessário a aderência de corpo e espírito.
Segundo R. Macmullen a conversão cristã, deve ser compreendida como uma mudança
de crença pela qual uma pessoa aceitou a realidade e o supremo poder de Deus e
determinou a obedecê- lo. Deveria produzir exclusiva lealdade e mudanças sobre a
86

conduta(1984: 4,5). Ressaltava-se a capacidade da fé, que deveria estar marcada pelo
desprezo do mundo material.

As concepções concernentes ao campo do que seja incorruptível, invisível,


inteligível, que caracterizavam a imaterialidade, Orígenes, como neoplatônico,
transferiu do pensamento clássico e aplicou em suas interpretações dogmáticas. Elas
encontram lugar aqui, ou seja, Orígenes refuta um filóloso grego, por isto quer
responder sob a mesma qualificação de seu adversário, para tornar inteligível as
realidades espirituais que os cristãos queriam afirmar. A materialidade no idealismo
clássico, principalmente com Platão, compreendia aquilo que era corruptível, ao mundo
material que corrompia o espírito. Portanto, para este idealismo havia um mundo
imaterial que era superior ao sensível, ao corpóreo. Com este entendimento, Orígenes
explica e tenta distingüir a prática religiosa cristã, associando as categorias inteligível e
invisível, imbuídas de sentido religioso, à onipotência divina, Deus, cuja imaterialidade
não se vê 105 e não se pode tocar ou compreender, apenas contemplar na sua pura
inteligência, pois se assim não fosse, seria finita, igual a todo criado(III, 56, conferir no
quadro).

O culto monoteísta requer dos cristãos a compreensão da sua natureza divina,


que está associada às noções do incorruptível, mas também do
simples(a`plou/)/, não composto(avsunqe,tou),
indivisível(avdiaire,tou), conforme o nosso quadro. São categorias que
tentam dar conta da eternidade divina, que não tem partes, mas é um todo; não tem
compostos, mas é absoluto. Orígenes têm em mente distinguir essas noções acerca do
divino em contraposição aos estóicos e epicuristas, para quem os deuses compreendiam
uma composição de elementos da ordem material, como o fogo ou dos átomos, que
sofriam mudanças, transformações(IV, 14). Segundo os apologistas filósofos(Aristides
e Atenágoras, de Atenas), o Deus cristão era imutável, não sofria nenhuma composição
material, mas sim da ordem espiritual, que não poderia ser contido à
vista(pari,stw), condição que deveria engendrar por parte de seus
adoradores/cristianoi/j, um culto que ultrapassasse qualquer relação

105
Justino, também apologista, aplicando conceitos platônicos, diria que não é pelos olhos que o divino é
visível aos filósofos, mas é perceptível unicamente pelo espírito; o espírito foi dado para contemplar este
Ser, que é a causa de todas as realidades inteligíveis(Diálogo III, 7-IV, 1,5).
87

com a realidade material. Essa é uma marca bastante significativa na estratégia


discursiva de Orígenes, ao simplificar o ato de culto cristão à seguinte sentença:
“orações e piedade ao Deus supremo” ou “orações e vida reta, virtuosa”(III, 15; VII,
44, 46,51; VIII, 60, 64, 66). “Orações”, remete a idéia, mais uma vez, ao fato de
“elevar-se”, “fazer subir”, superar as condições físicas, materiais, os meios comuns de
adoração até o divino, sustentado pelas antigas tradições e entregar-se a um serviço mais
“elevado”. Obviamente que a devoção, quanto ao culto cristão não se limitava a esta
fórmula tão simples. Sabemos da importância das práticas que vinculavam o novo
membro na comunidade cristã e que atribuíam valor de reconhecimento ao seu
pertencimento religioso, seja através da catequese, do batismo, da eucaristia 106 . Esses
temas são considerados subordinados dentro do conjunto da obra apologética de
“Contra Celso”, em favor dos discursos dominantes que se quer afirmar, de uma
formação discursiva específica, isto é, demonstrar o conteúdo espiritual da doutrina
cristã que precede e orienta as suas práticas. Inferimos que essa fo i a forma encontrada
pelo apologista para estabelecer a distinção com o politeísmo, pois o cristianismo “se
explicava”, apresentava as razões de sua existência e sua eficácia sobre o gênero
humano. Através de nossa análise, verificamos no uso da linguage m esta disposição,
quando Orígenes interage com o discurso de Celso, para construir a identidade cristã,
marcando a diferença no processo comunicacional, em relação a tudo que pudesse
ligeiramente ser associado às antigas representações quanto ao culto politeísta. Para
Orígenes, diferentemente das práticas de devoção aos deuses , buscar o favor do Deus
supremo(pa/si qeo.n), a fim de que ele se torne propício ou benévolo
“evxeumenizw”(VIII,64), só é possível através do exercício da
piedade(evusebei,a) cristã, significando: “dirigir suas orações a Deus,
através do Logos vivente e manter uma vida plena de virtudes”
(tai/j pro.j evkei/non euvcai/j kai
. pa,sh|/ avreth|/ ), II,50;VIII, 60 . Essa é a forma de
adorar ao Deus que é invisível e incorpóreo e praticar uma “piedade pura”(IV,48).

Tal compromisso, era sustentado nas comunidades cristãs, que deveria exigir do
novo aderente um aperfeiçoamento moral, indepentemente da classe ou nível cultural do

106
Essas práticas podem ser atribuídas a identidade cristã, com grande significância, em outra formação
discursiva ou, outro gênero literário, como os Evangelhos e Epístolas Paulinas, por exemplo, situadas
dentro de outras condições sócio-históricas. Lembramos que nosso objeto de análise são as apologias
que apresentam outras características que já foram apresentadas neste trabalho.
88

indivíduo. Peter Brown considera que a introspecção e a busca da verdade, deixavam


de ser patrimônio de uma classe privilegiada, para ocupar outros nichos sociais(1997:
38,39). A identidade cristã engendra conteúdos simbólicos, mas também sociais, pois
recebe real significância à medida que o pertencimento do novo crente é verificado sob
os parâmetros de suas comunidades, no seu interior e de seus líderes. Pressupunha por
sua vez, a relação do indivíduo além do plano vertical, com a potência divina, o plano
horizontal, com os demais seres humanos. Orígenes traz esta consideração quando
descreve o sentido social que o cristianismo avulta(I, 63, 64, 67; III,9; VIII, 50), pois
sua doutrina estabelece um modelo de conduta para os mais indignos homens, dos mais
infâmes e padrões de maldade(da multidão/plh/qoj), e os ensina a viver
bem(tw/| eu zh/n), os converte (epistrofh,- ação de voltar,
desviar, mudar), os corrige(epanorqo,w) - sentidos que se dispersam em sua
obra. Percebemos que a admissão da pessoa na comunidade religiosa cristã a partir da
conversão, incluía o aspecto moral, à medida em que acreditava-se na
utilidade(lusitele.j) conferida a todo o processo de identificação aos seus
dogmas. Reivindicava para si uma autoridade autônoma e exclusiva: “que outra
doutrina será mais eficaz para converter a natureza humana e a conduzir para viver
bem?107 ” – constitui a ênfase persuasiva de Orígenes no discurso.

Comparativamente, ele acrescenta que se houvesse outra doutrina, este alguém


deveria “apresentar outro caminho para converter e melhorar, nem um ou dois
indivíduos somente mas, no possível as mais grandes multidões”108 . Da comparação
dos dois caminhos, o escritor, com o uso freqüente das partículas “wvj”,
“para,tesij ”, “paraba,llw”,“anfote,rwn” que
indicam: pôr em relação, ou a ação de comparar, justapor, entre os ambos os modos ou
representações, nascem as construções lingüísticas, retóricas, de convencimento ao
leitor, nas quais o escritor acredita sobressair aquela doutrina que disporá à vida
virtuosa. Conseqüentemente, é excluída, recusada, sem mais questionamentos, a outra

107

“kai. ti,j a'n a'lloj lo,goj epistrefe,steron p


rosa,goi th.n anqropi,nhn fu,sin tw/| eu/ zh|
/n). Contra Celso, IV, 53.
108

“parabale,tw ga.r o` boulo,menoj a;llhn o`do,


n epistre,fousan a[ma kai. deu,teron avll’ o[
sh du,namij
kai. plei,stouj o[souj”(IV, 53).
89

proposta. A aplicação das partículas


“ovu mo,non...alla kai.”(não só, mas também), reforçam
duplamente o serviço “vantajoso” atribuído à eficácia da doutrina cristã, e inclui o que
dela se pode dispor. Portanto, a estratégia persuasiva do discurso 109 em relação às
comunidades cristãs, deve exercer atração(chama a si - kale,w), conformar os
indivíduos à realidade apresentada e alcançar a integração de novos membros.

Para se mostrar a diferença em relação aos demais homens, ao outro, a alma


devia elevar-se, “ajustar-se”
(metewri,sai avnqrw,pou yuch,n) a um plano
transcendente, e buscar uma cidadania no céu, ideal que se distinguia dos judeus, por
exemplo. Sobretudo, para o cristão, tal inclinação significava: “ser puro de coração,
manso, pacífico, mas também corajoso ante perigo de morte”, ou “sensato, moderado,
justo”(Contra Celso, III), imbuído de bondade de coração, doçura, ação humanitária(I,
67), sendo equivalente a uma “vida verdadeiramente piedosa para com Deus”. Os
sentidos são corroborados de maneira mais enfática: são virtudes que têm sua origem no
próprio Deus. Por esse motivo, no discurso apologético, acentua-se a condenação dos
não-cristãos, que não apresentam a capacidade de aceitar e de conformar suas vidas aos
dogmas cristãos, os quais possuem uma disposição divina. De forma contrária, o
cristão é identificado por agir de forma afirmativa a este preceito(VI, 2). A estratégia
discursiva de um cristão como Orígenes se dá na ênfase de “apartar os ouvintes de todo
o menosprezo ao divino e de toda ação contra a reta razão”(III, 50). A alma exercitada
nas virtudes, deveria refletir a imagem de Deus, a qual na ideologia cristã, representaria
ser “templo de Deus”. Trata-se de um ideal que deve se concretizar na vida diária,
governada por um mais insistente modelo moral, o que representaria para cristãos, a
convicção de que tais disposições não se encontraria em ne nhuma outra associação não-
cristã.

Outra relação estabelecida por essa rede de significações simbólicas que


Orígenes estabelece no seu discurso, diz respeito a contraposição entre a natureza dos

109
O enunciado de Orígenes, assim o demonstra: “dirigimos aos pecadores discursos que os ensinem a
não
pecar”(protre,pomen tou.j amartwlou.j h[kein epi
90

deuses adorados no politeísmo e o Deus cristão. Toda representação dos deuses e dos
objetos pelos quais eram reverenciados, templos, estátuas, altares, foram associados à
morada de demônios(dai,monwn) e traduzia-se em rebaixar a divindade à
matéria configurada, sujeita à corrupção, fabricada por artesãos (VII, 69 e VIII).
Conseqüentemente, os cristãos eram aqueles que se apartavam de tais práticas.
Orígenes assim estabelece: “os cristãos têm aprendido de Jesus a buscar nada pequeno,
isto é, a não buscar nada sensível” 110 , reforçando novamente a idéia da superioridade, de
se elevar acima dos demais homens, a um plano espiritual. Novamente se verifica no
conjunto de significações construído por Orígenes, a utilização e ordenação das
categorias estabelecidas entre as noções do corruptível, visível, sensível, e do
incorruptível, invisível, inteligível, que correspondem classificar o mundo dentro de
duas realidades, material e espiritual. Por esta razão a identificação do cristão e o
estabelecimento da diferença com a alteridade, no momento da crença é determinada
pela convicção da existência de um único Deus e que deve “se abster de dar culto a
ninguém que não seja o Deus Supremo e ao que é primogênito de toda criação, o
Verbo, Logos de Deus”(VII, 70; e todo o oitavo livro). No discurso cristão, não cabe na
sua ideologia, descrever a forma do Deus “invisível e incorpóreo”, muito menos, honrar
em lugar de Deus, de que nada necessita, “coisas sujeitas à servidão da corrupção”,
como por exemplo os incensos, as oferendas, sacrifícios, dirigidos ao culto dos
deuses(VII, 65, 66). Para Orígenes, dar culto ao único Deus através das orações ou
súplicas, corresponde em analogia, metaforicamente, oferecer “os verdadeiros incensos
como perfume” (resgatando o sentido estabelecido nas epístolas neotestamentárias), que
se elevam até Deus(VIII, 17). Cristãos(Cristianoi.), segundo Orígenes não
se valem de fórmulas mágicas(epw|dw/n) de nenhuma sorte, senão do nome de
Jesus e de outras palavras em que se tem fé em conformidade com as Escrituras
divinas(I,6).

Através dos enunciados de Celso e Orígenes, percebemos que estas questões


eram altamente relevantes para a sua elucidação, tendo suscitado um intenso debate e

. tou.j dida,skontaj lo,gouj mh, amarta,nei


n) - Contra Celso, III, 59.
110

“emaqe ga.r apo. tou/ Ihsou/ mede.n mikro,


n, toute,stin aisqhto,n”(VII, 44).
91

identificação de posicionamentos distintos e suas representações. Celso 111 identifica na


ideologia cristã, uma forte ênfase de que os próprios deuses eram tidos como demônios,
portanto, quem adorasse a Deus não poderia render culto aos mesmos. Celso não
entende o porquê dessa construção, uma vez que no seu entendimento, tudo acontece
pela providência divina, que se assenta em soberania sobre outros deuses, demônios, ou
anjos, ou heróis, a quem ele delegar o governo das coisas “daqui debaixo”, na terra. Se
diferenciavam apenas no nome que lhes eram atribuídos. Para Celso, Deus era assistido
pelos demônios, que administravam o mundo material e conseqüentemente a adoração a
eles, honravam ao único Deus. Sua pressuposição indicam a crença numa hierarquia de
deuses112 , com suas divindades secundárias, condição que para Celso, não impediria que
os chamados cristãos, reconhecessem o culto dedicado aos deuses, por cada indivíduo,
em sua própria pátria, de diferentes e diversas formas de piedade. É interessante no
raciocínio de Celso, em vista dessas afirmações, o fato de não encontrarmos nenhum
reconhecimento de que os demônios administrariam os benefícios materiais necessários
à vida e nenhuma obrigação do indivívuo em confessá-los e agradecê-los.

Celso admite que os cristãos de fato, não reconhecem a existência de tais deuses
e nem sequer os nomeiam no seu meio(Livro VIII de Orígenes). Para este filósofo
politeísta, significa palavras de facciosos que se valem de se colocar como um bando à
parte e que se separam da sociedade comum. Ele interpreta que tais recusas pelos
cristãos, incitam a um ajuntamento, a uma ação em conjunto, de tendência misteriosa e
secreta. Além disso, Celso inclui no seu raciocínio, a recusa dos cristãos em jurar pelo
chefe do Império, que ele entendia como uma, dentre outras autoridades, constituída
pela providência divina no governo das coisas da terra. Se todos os outros procedessem
como os cristãos, o imperador ficaria relegado ao abandono e entregue aos “infâmes
povos bárbaros, selvagens e grosseiros”. Era mister, na compreensão de Celso,
combater por ele, com todas as forças civis e militares, cumprindo e zelando pelos
deveres cívicos, pelas funções públicas, para a saúde das leis e a causa da piedade. Se
os cristãos recusavam participar dos costumes tradicionais da cultura romana, por
conseguinte, não identificavam-se com representações tão arraigadas a tempos na vida

111
As considerações de Celso apresentadas a seguir são baseadas na reconstituição da “Doutrina
Verdadeira”, que corresponderia à composição da quarta parte da obra, segundo Louis Rogier(1999: 135-
151).
112
O mesmo sentido aplica à visão da sociedade romana, de um sistema hierarquicamente organizado, em
que a autoridade é garantida pela tradição.
92

coletiva. Então, o ideal de reformulação moral concebido pelos cristãos trazia


precedentes sobre os interesses da estabilidade social e da tradição(Livro VIII de
Orígenes). O pensamento de Celso está inserido na perspectiva do sis tema políade da
cultura greco-romana, que se explica pelo sentido da racionalidade de suas crenças,
associada a função do politeísmo num mundo plurinacional. Essas atribuições
concedem um caráter mais funcional aos deuses do que pessoal. Distinguindo-se
dessas características, o cristianismo aplica o sentido histórico de sua existência, que se
concretiza e evolui no tempo, a consumação de um plano divino. Portanto, o
cristianismo nos discursos apologéticos concede maior valor às razões da sua existência,
explica porquê o gênero humano deve conhecer a Jesus, o Cristo, que se manifesta de
maneira pessoal.

Em razão das indagações críticas levantadas por Celso, Orígenes constrói sua
resposta em defesa dos cristãos, a qual resulta na própria elaboração da doutrina cristã,
com objetivo de dar um ordenado sistema de crenças ao cristianismo, como temos
percebido até aqui e prossegue mais adiante. Orígenes reconhece uma certa hierarquia
divina, porém de maneira distinta de Celso no seguinte sentido: primeiro é Deus
somente, segundo, seguido do Logos, incarnado em Jesus, logo em seguida, os anjos,
que desempenham funções positivas 113 . Orígenes reconhece então, a existência dos
demônios, espíritos maus, identificados como deuses, mas argumenta que Jesus tem
destruído seus poderes. Logo, a adoração a Deus deve ser oferecida diretamente a ele
através de Jesus, o Cristo, e jamais através de demônios, imagens, imperadores, ou até
mesmo de anjos. É assim, que na concepção cristã os demônios apartam os cristãos da
“verdadeira piedade para com Deus”(III, 37). Interpelado a falar sobre a questão “dos
muitos deuses”, afirma que o culto dos demônios diz respeito “a tudo que os gregos tem
por religião com seus altares, estátuas e templos de deuses”(VII, 69). Segundo “a lei
do Deus supremo”, não é possível adorar a muitos senhores. Orígenes afirma, que Deus
é Senhor sobre todos os deuses, em co-relação a essa atribuição, não haveria “um reino
de deuses”, mas “um Reino de Deus”(VIII, 11). Da mesma forma compreende e investe
nos significados simbólicos da adoração cristã, afirmando que cristãos não participam
da “mesa de demônios”, de seus banquetes, de seus sacrifícios de comida e bebida(VIII,

113
Esta afirmação encontra-se no livro oitavo, capítulo 13. Desta disposição origeniana, nascem as
críticas posteriores a Orígenes no meio cristão.
93

31), mas novamente, insiste nas orações, um meio primordial valorizado por Orígenes,
na forma de culto.

Orígenes dá a entender que a religião cristã está além dos interesses nacionais e
dos costumes pátrios. Ela tem a missão de alcançar toda a humanidade, uma vez que
todas as demais representações religiosas estão encobertas pelo erro. A crítica aos não-
cristãos, de que os mesmos teriam errado em suas práticas de piedade, é uma marca
formal bastante recorrente não só nos discursos de Orígenes, mas também nos demais
apologistas. Os cristãos, nesse entendimento, não reconhecem os deuses firmados pelas
outras nações, sejam dos gregos, Zeus ou Apolo, dos egípcios, Amon, etc., por acharem
que neles não havia nada de divino. Estavam inclusive dispostos a morrer do que
confessar a Zeus, por exemplo, por Deus 114 . Estas palavras demonstram a cautela dos
cristãos em não tomar nenhum dos nomes que aparecem na mitologia para aplicá- lo a
Deus, Criador do universo, conforme o próprio Orígenes argumenta(I,25). Cristãos
vivem segundo as leis de Deus, que significa viver segundo a sua providência 115 e o
reconhecimento de sua soberania (VIII,67), aspecto fundamental de confissão e
subseqüente identificação. Isto implica em admitir, diferentemente de Celso, que até os
imperadores ou as líderes de governo devem honrar a quem lhes deu o poder
constituído, ou mesmo, os destitui: ao Deus cristão. Ao imperador não se busca favores
como a um deus mas, se lhe tributa, com súplicas a Deus para que governe com justiça,
sendo o melhor meio para ajudá- lo em combate(VIII,73,74). Orações e súplicas
significam para Orígenes agir como sacerdote(ieureu,j), que presta real
serviço a Deus e pelos seus semelhantes. Com esses efeitos de sentido, corroborados
em seu discurso, Orígenes então afirma a impossibilidade de cristãos jurarem116 pela
“fortuna”117 do imperador, pois esta também é associada à ação de demônios:
“certamente não juramos (omnumi) pela fortuna do imperador,
nem a nenhum outro considerado como Deus

114

“kai. dia. ta toiau/ta pa/san aikian upome,


nein ma/llon airoumeta h to.u Di,a omologh/s
ai qeo,n”.
115
Orígenes diz que as coisas da terra, não são de forma absoluta conferidas pelo imperador, mas
toda a providência(pro,noia) é advinda de Deus:
Dikai,wj ga.r kai. kallw/j lamba,nontej apo
. tou/ qeou/ kai. th/j pronoi,as autou/ la
mba,nomen” (VIII, 67).
116
São empregadas as palavras “jurar”(omnumi) e “fazer prestar juramento”(orko,w).
117
Orígenes a utiliza(Tu,kh) no lugar de genius.
94

(Tu,chn me,ntoi basile,wj ouvk


omnumevn w`j ouvd’ a;llon n
omizo,menonqeo,n) perceba o emprego da pessoa verbal ( 1ª p. pl
- omnumevn ) e acrescenta: “o que é tido por fortuna do imperador é o seu
demônio”
(dai,mon esti.n h` ovnomazome,nh tu,c
h tou/ basile,wj) – VIII, 65.

Em contraposição aos “demônios maus”, reverenciados pelos não-cristãos,


Orígenes atribui sentido positivo ao serviço de Cristo, que tem “a tantos
homens(ímpios) convertido a Deus, apartando a muitos de seus pecados”. Essa é a
ação engendrada nas comunidades cristãs, na qual Orígenes acredita ser “o verdadeiro
benefício” que elas trazem ao conjunto dos cidadãos, e que depõe a favor do seu sentido
social. Ainda que nas comunidades se congreguem homens sem letras, eles serão
transformados para uma vida virtuosa, em sua conduta. O cristianismo então cumpriria
esta função de “educar os cidadãos e lhes ensinar a serem piedodos para com Deus”118
e os elevar até uma cidade celeste e divina, tendo aqui, nas cidades, aprendido a viver
bem. Essa era uma das razões pela qual os cristãos eram sociáveis com todos os
homens 119 , o que para Celso significava ocupar todos os espaços públicos nas cidades e
compartilhar com as massas temáticas que competiam a gentes de melhor instrução e
índole, muito menos se deveria ouví- las, pois suas opiniões deveriam ser ignoradas. Em
contrapartida para Orígenes significava livrá- las “das enfermidades da
alma”(th.n yuch.n nosh,swsi), sendo a fonte de vida moral e
virtuosa, que sofria transformação e se aperfeiçoava, se educava. Além disso, a
atividade da contemplação, do entendimento das coisas inteligíveis era um dos mais
virtuosos recursos da filosofia, a qual todo gênero ou natureza humana deveriam ser
submetidos, em virtude da necessidade de compreensão dos mistérios revelados de
Deus 120 .

118

“Cristiano.i ...paideou,ontej tou.j poli,taj kai


. eusebei/n dida,skontej”(VIII, 74).
119
“O Criador nos fez sociáveis com todos os
homens”(o` poih,saj hma/j pro.j pa,ntaj anqrw,p
oj pepoi,hke koinwnikou,j), VIII, 50.
120
Para os mais simples homens significava crer no Cristo, revelado de Deus e levar uma vida piedosa
para com Deus. Para os mais cultos, importava buscar significados mais profundos de suas doutrinas.
95

“Natureza humana”(avnqrwpi,nhn fusin), corresponderia para


Orígenes, ao que fosse mais íntimo, à conduta, aos condicionamentos do espírito
tendente à corrupção material, que precisavam ser conduzidos à compreensão e
aceitação dos dogmas divinos. O “gênero
humano”(ge,noj anqropon)então deveria conhecer o Logos, que era a
“sabedoria de Deus”. Por conseguinte, o Logos desceu à condição mortal para restaurá-
los. Todos, sem exceção, estavam aptos para receber a doutrina do Logos, Cristo, e
somente o homem interior poderia refleti- lo. Se não o faziam era porque as práticas
politeístas encobriam “a verdadeira luz” e concorriam para fazer os indivíduos errarem
em suas práticas acerca da divindade, da adoração ao Deus Uno. Em contrapartida,
todos que entenderam a missão do Logos e realmente, demonstraram que queriam
ordenar suas vidas segundo o cristianismo(“viver honestamente”– III,51), uma vez
admitidos dentro das comunidades cristãs, tornavam-se cidadãos de um “Novo Reino”,
eram cristãos.

Chegamos à conclusão deste capítulo, tendo percebido que Orígenes manteve as


fronteiras da identidade cristã dentro de uma formação discursiva na qual identificava
categorias que contemplavam realidades espirituais, o mundo imaterial: do invisível,
incorruptível, do inteligível. Eram catego rias totalmente dependentes entre si,
pressupondo que para falar de apenas uma, requeria buscar o auxílio das demais.
Através dessas categorias se explicam e identificam-se: o Deus dos cristãos, as maneiras
de dar-se-lhe culto, o porquê desta adoração, enfim, o próprio cristão(ã)
comprometido(a) com os ideais do monoteísmo e sua doutrina. São discursos que
produziram efeitos de sentido de dois mundos antagônicos, cujos significados
simbólicos afirmavam o “erro” ou “a verdade” e o pertencimento de duas manifestações
religiosas distintas: politeísta e cristã 121 . Os cristãos não são “os adoradores de muitos
deuses”, tendo entendido que sua existência no mundo de forma pessoal, deve
reconhecer, crer e honrar “o Artífice e Pai do Universo, Deus Uno” sobre toda a
natureza criada. Em correlação a tais preceitos, seguem as classificações, pois os
cristãos vivem uma vida superior aos demais homens, exercitados na piedade e virtudes.
Excluídos desta identificação estão os praticantes de “costumes comuns” ou

121
Não usamos “monoteísta”, a fim de não identificar também o judaísmo, tendo em vista que a diferença
nesta pesquis a, é estabelecida com o cristianismo.
96

“tradicionais” como se verifica nas cidades e suas associações. Isto demonstra como o
cristianismo foi fundamentalmente urbano pelo menos até o terceiro século, cujas
características são confrontadas com as representações plurais aí já dadas. Na
organização social, na estrutura da vida citadina romana, que o cristianismo se
manifesta e constrói suas relações. Para opor suas ideologias e estabelecer a diferença,
além do aspecto transcendental, tem em mente este universo do mundo dos homens que
precisa sofrer mudança na forma de conduta. A teologia cristã ou a doutrina, não se
resumem ao que aqui foi exposto, nem foi este nosso objetivo, mas sim, o de identificar
Orígenes especialmente em “Contra Celso” produzindo através da linguagem, temáticas
dominantes estrategicamente selecionadas para mostrar, interagir e seduzir aqueles que
viriam a ser seus leitores, ou interlocutores sobre o cristianismo e seus adeptos cristãos.

5. conclusão

Chegamos ao final da pesquisa, tendo percebido com mais clareza o que


significa realizar uma construção histórica através de nossas narrativas. A “operação
historiográfica” realmente significou para nós um expressivo trabalho de construção,
produzido não aleatoriamente, mas com fundamentação teórica e metodológica, como
convêm ao ofício do historiador. Esta pesquisa suscitou um intenso trabalho analítico,
de seleção, de verificação, de descrição, de desconstrução, de comparação, de inter-
relações, de interpretações, e de síntese, procedimentos que concederam ao nosso
objeto, uma configuração específica de acordo com as fontes utilizadas. “A construção
97

da identidade cristã em Orígenes”, não estava dada, absolutamente, porém implicou em


apreender nas entrelinhas do discurso, as significações construídas e co-relacionadas,
com seus efeitos de sentido produzidos a partir de um lugar social, de uma posição
dada, situada no lugar e no tempo.

Falamos da identidade cristã segundo um conjunto de narrativas que compõem a


literatura apologética de língua grega, na qual apresenta uma série de regularidades
discursivas, que mantêm um princípio de fechamento, pelo qual se sustenta a própria
identidade. Não consiste em um limite traçado de forma definitiva, acabada, mas abre-
se um diálogo com a intertextualidade, isto é, todo discurso nasce de um trabalho sobre
outros discursos, estabelecendo interações. De forma persuasiva, a retórica cristã se
dirige ao leitor, a fim de que o mesmo venha aderir à proposta defendida.

A investigação de nosso objeto de pesquisa, a construção da identidade cristã,


foi analisada sobre a documentação textual, de um gênero literário intitulado de
apologia, produzida em defesa dos cristãos e sua doutrina, em contexto de intenso
criticismo. Selecionamos dentre uma vasta produção, a obra apologética chamada
“Contra Celso”(248 d.C.) escrita por Orígenes(185-253 aprox.), tido pelos historiadores
da História da Igreja, como o maior teólogo antes de Santo Agostinho. A estrutura
teológica de Orígenes é considerada como o maior feito intelectual da Igreja antenicena,
além de ter exercido profunda influência sobre todo o pensamento oriental, sobretudo, o
fato de ter favorecido junto com Clemente, o domínio da cristologia do Logos. Porém,
também não deixou de receber críticas severas quando tomou deliberações fora da
jurisdição do conselho episcopal de Alexandria e a partir do IV século, em relação a
alguns aspectos de caráter especulativo sobre a doutrina cristã. Nascido de família
cristã, em Alexandria, Orígenes foi testemunha da experiência do martírio, através de
seu pai Leônidas, martirizado na mesma cidade, e optou pela castração em plena
juventude, um procedimento de extremo ascetismo que parece ter sido motivado, pela
dedicação exclusiva às funções que desempenhava, com grande desvelamento.
Orígenes foi filósofo, teólogo, exegeta, mestre, pregador, funções que foram realizadas
com profundo empenho tanto em Alexandria quanto em Cesaréia da Palestina, além de
ter estabelecido contatos com outras cidades orientais e até latinas. Foi autor de
diversas obras exegéticas, de comentários bíblicos, de tratado teológico, etc. Orígenes
veio a falecer(no ano 253, provavelmente.) em virtude dos maus tratos recebidos em
98

aprisionamento, resultado da perseguição sistemática do Imperador Décio contra o


cristianismo.

A identidade cristã nesta pesquisa situa-se num contexto da própria história do


cristianismo, não mais restrito aos círculos do judaico-cristianismo, mas entendido num
momento de maior difusão e expansão da doutrina, pela qual se define em relação aos
outros, como a diferença. No século III, quando Orígenes escreve a obra apologética
intitulada “Contra Celso”, a Igreja já tinha um sólido sentido de sua própria identidade,
em que cada comunidade individual( ekklhsi,a), formalmente constituída
sob os parâmetros da doutrina cristã, era claramente liderada sob um
conselho(boulh,) de presbíteros. Orígenes várias vezes identifica a comunidade
de cristãos(cristianoi.) com a Igreja, composta de “homens convertidos de
pecados inumeráveis”, como resultado da fé em Jesus, o Cristo(Contra Celso, I, 67; III,
29, 30), fortalecendo a consciência de pertença de grupo. Claramente, Orígenes
identifica as Igrejas constituídas, fazendo menção às diferenças existentes entre a
“Igreja de Deus de Atenas” e a “comunidade popular dos atenienses”; ou a “Igreja de
Deus dos alexandrinos” e a “comunidade do povo dos alexandrinos”. Note-se que se
contrapõe a “ekklhsi,a tou/ qeou/” à
“ekklhsi,a tou/ dhmou”, em que a primeira é pacífica e
ordenada segundo o desejo de agradar ao Deus supremo e a segunda, é sediciosa,
facciosa “stasiw,dhj”(Contra Celso, III, 30).

Nas apologias, de forma antagônica, o sistema antigo da religião políade


fundado sobre a pluralidade de deuses, das leis, dos discursos, é contraposto ao novo
sistema estabelecido pelo Logos Revelado, “o Verbo eterno” que se fez homem, Jesus o
Cristo. Um outro tipo de discurso, a lei divina, fundamentada sobre um profundo
monoteísmo, ensina os homens e as mulheres, a conformarem suas vidas à piedade
cristã. Segundo, R. Nunes havia uma identidade de concepção greco-cristã quanto ao
valor da personalidade humana, mas com vantagem para os cristãos, que tiveram
acesso, pela Revelação, ao conhecimento do valor superior do homem, enquanto ser
participante da virtude divina(1978: 66).

Diante das representações plurais já estabelecidas no Império Romano, os


apologistas se empenham através de um trabalho discursivo, na elaboração de vetores
99

de identificação, de fronteiras de diferenciação com a alteridade. Foram estabelecidos


profundos debates e criticismos, entre as representações politeístas e monoteístas, além
de confrontamento aberto através das perseguições, pelas autoridades e pelas polulações
locais, condições que suscitaram entre os cristãos o desejo de auto-explicação. “Ser
cristão” significou não admitir quaisquer similaridades com o politeísmo, mesmo que
isto resultasse em ameaça de morte. Esses foram os efeitos que procuravam produzir.
Cristãos se reconheciam como iguais e se distinguiam dos outros. Celso, adversário do
cristianismo, filósofo, adepto da prática politeísta, argumentava que cada um deveria
seguir a religião de sua pátria e família. Orígenes filósofo cristão, refutava seu
adversário, dizendo que a piedade cristã era o único meio de enxergar o “verdadeiro e
único Criador do universo” e lhe render as devidas honras, já que as práticas politeístas
fundamentadas “no erro”, encobriam “a verdade quanto à natureza divina”. A religião
cristã como uma das religiões de salvação, se alicerçou sobre o exclusivismo na
adoração e formas de culto a uma única divindade, percebida como superior, e que não
sofria mudança e alternância de poderes, dada como absoluta. O convertido à doutrina
cristã deveria manifestar uma profunda convicção de crença em seus dogmas e em seus
escritos considerados Sagrados.

A religião cristã portanto, dotou-se de textos, dedicou-se ao ensino, se


expressava através da revelação bíblica, de relatos da sua própria história, da sua
existência, além de constituir um guia ético de formas de conduta. Sobre essa base,
Orígenes lança a estrutura imponente de sua teologia sistemática, a explicação do
cristianismo destinada àquele que, à sua fé, quisesse acrescentar
conhecimento(WALKER, W. 1967: 114). Esse conhecimento foi desenvolvido a partir
das interações mantidas com os sistemas filosóficos que sofreram releituras
interpretativas, aplicadas às necesidades que se impunha m como contingentes. O
pensamento antigo, esboçado por seus filósofos clássicos, em sua forma original, já não
atendia as prerrogativas acerca do indivíduo, da sua existência no mundo, suas relações
com o macrocosmos, e as próprias relações consigo mesmo, “a chamada a si”. Não era
mais uma cidade, mas sim o Império Romano, de grande diversidade cultural e de
diversas representações, sujeitas à transformações. A literatura do Cristianismo,
especialmente as apologias, foi então, oriunda de novas interpretações conjugadas com
os discursos filosóficos construídos por várias escolas, que estabeleciam categorias de
pensamento para expressar as realidades prementes em seu tempo. Para C. Daude, esse
100

quadro reorienta para um enevoado de forças afetivas, de desejos contraditórios, de


estados abismais que não acham escapatórias na vida real(1995: 82). O cristianismo faz
com que se torne possível ao alcance de segmentos considerados mais inferiores, nas
palavras de Orígenes, o entendimento das coisas inteligíveis - a “busca da verdade e da
natureza real das coisas”, antes suscetíveis aos eruditos, estudiosos das ciências gregas.
Tendo em vista que determinados cristãos, ocuparam posições de liderança em suas
comunidades, exerceram funções de mestre, pregadores, dedicaram-se ao ensino
catequético, ou tanto das ciências gregas como “das divinas”, conforme os padres
alexandrinos, aproximaram-se de um contingente humano mais amplo, tanto sábios
como os mais simples. Não só, mas também, devido a própria atividade missionária ou
de evangelização que caracterizaram as comunidades cristãs desde a sua formação,
através do testemunho pessoal, com o intuito de alcançar qualquer ouvinte,
independentemente de seu status .

Novas contingências foram se impondo ao debate, desta feita, entre os próprios


cristãos. Identificam-se construções dogmáticas distintas, consideradas pela Igreja de
tradição apostólica, como heteredoxas. Com os apologistas verifica-se a vontade de dar
ordenamento a este embate discursivo, o que pode e deve ser dito, e o que deve ser
combatido, a fim de manter uma unidade doutrinária na figura de Cristo, “o Verbo
encarnado de Deus”. Em nosso entendimento este esforço intelectual resultou na
seleção de traços e valores constitutivos da marcação da diferença e, conseqüentemente,
da produção da identidade entre a liderança cristã. Combatendo as divisões internas,
produzia-se um sentimento de pertença a uma mesma filiação doutrinária, religiosa,
além da regulação institucional sobre a comunidade de crentes. Podemos inferir que
esses esforços se traduziram na disputa da hegemonia de fala e também na ordem de
classificações, delimitar discursos que fossem tidos por “verdadeiros e outros falsos”.

Identificamos nos discursos apologéticos cristãos, estratégias lingüísticas, o que


deve ser considerado como ideologicamente eficaz a fim de dar validação às
construções interpretativas da realidade. Orígenes através da utilização de argumentos
filosóficos em suas narrativas, construiu modos de interagir com os seus leitores, como
efeito de demonstração, para afirmar as “verdades do cristianismo” de maneira
“racional”, segundo os métodos filosóficos gregos, retóricos, de persuasão, de
comparação entre diversos enunciados e em decorrência, tirar conclusões. Na
101

linguagem de Orígenes, de formação filosófica, significava expor as Escrituras Sagradas


em comparação as Letras gregas, para infundir a capacidade de reflexão, em discernir e
julgar as representações e tendências, reprovando uma e aprovando outra, a fim de que a
alma humana fosse dirigida por uma reta razão; em linguagem cristã significava fugir
dos males da alma e suas paixões, para então crer “nas verdades da fé”, alcançar a
“piedade pura” para com Deus e viver uma “vida digna” exercitada nas virtudes.

Identificamos através dos discursos produzidos por Orígenes, seguido de


interlocuções com outros apologistas gregos, o sistema de representações que
corresponde a identidade cristã, elaborada nas formações discursivas específicas, quer
dizer, no gênero literário das apologias. Percebemos em “Contra Celso”, uma série de
regularidades discursivas que apresentavam categorias, de intensa significação, co-
relacionadas entre si, para explicar as realidades espirituais e valores que caracterizavam
o grupo de cristãos, seus atos de culto, e a nova direção dada à existência humana no
mundo. As estratégias lingüísticas de Orígenes, demonstravam de forma comparativa,
os erros das representações politeístas estabelecidas pela tradição, sob a mediação do
social, pela qual se caracterizava o sistema políade da cultura greco-romana, que em sua
obra foi representado pelo filósofo Celso. Em contrapartida, o monoteísmo cristão
aliçercado sobre o Criador do Universo, Deus supremo e seu Filho Jesus, o Cristo, na
linguagem da retórica cristã, suscitava novas representações como resultado da relação
pessoal, da alma individual com o ser divino.

Para Orígenes, ser participante da natureza divina, é ser um convertido ao Logos


de Deus, é ser um cristão comprometido com os ideais de vida virtuosa e piedosa, é
deixar-se guiar por valores que transcendem a natureza física. Sua elaboração
discursiva descrevem os sistemas de representação em conflito que apontam para as
seguintes categorias: a materialidade, as coisas sensíveis, corruptíveis e visíveis que
correspondiam aos altares, templos, estátuas, imagens do sistema de culto politeísta. De
outro lado, identifica a imaterialidade, falando a respeito das coisas invisíveis,
inteligíveis, incorruptíveis, percebidas pelas formas de devoção da fé monoteísta, com
orações e vida virtuosa(de bondade, de mansidão, de moderação, etc.; limpos de toda
maldade). Por conseguinte, os praticantes da religião politeísta são “os outros”(iníquos,
pecadores, injustos, etc.; se exercitam na prática do mal) que erraram em suas práticas
acerca da divindade e, os cristãos, são aqueles que “se fizeram verdadeiramente
102

piedosos para com Deus”. Essa é a linguagem, simbolicamente representada, com seus
efeitos de sentido produzidos sobre a comunidade de crentes.

Em suma, identificamos no conjunto de enunciados da obra apologética de


Orígenes, estratégias discursivas que indicam operações significativas de construção, de
desconstrução, de articulação, de apropriação, de deslocamento, de reordenação de uma
série de argume ntos e noções, explicitados à luz dos ideais cristãos. Seus propósitos
foram: estabelecer marcos definidores da diferença, com a alteridade, e diante das
representações plurais, afirmar a própria identidade cristã. Além disso, de fato para
Orígenes, importava reconhecer a diferença, mas também, destacar a superioridade da
doutrina cristã, em vias de se tornar universal, como ele pressupunha.

Deixamos para o futuro uma análise mais profunda, sobre as relações entre
Orígenes e outros “líderes espiritua is”, que compartilhavam de um mesmo campo de
ação, na região oriental, e investigar, como relata Eusébio, se realmente contribuiram
para preservar o legado cristológico e da cultura helenística através de sua produção
literária. Pensamos nas comunidades de Capadócia, ou de Edessa, da Síria, e de outras
regiões próximas, também alcançadas pela pregação cristã, as quais suscitam a
indagação a respeito da conformação que elas receberam nesses locais.

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