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INTRODUÇÃO

Os ensinamentos nos quais adentrarmos neste, e


nos próximos três e-books, os quais compõem este
curso de “Introdução à Escola Austríaca de Economia”,
infelizmente não estão popularizados no Brasil.
Até pouco tempo, o pensamento austríaco não
constava nos currículos e nas formações acadêmicas
das universidades brasileiras, fazendo com que fosse
pouco conhecido, mesmo por economistas. Tor-
nou-se, por isso, heterodoxo em nosso país.
O estímulo para o florescimento dessas ideias
teve de vir da iniciativa privada, impulsionado, princi-
palmente, pela fundação do Instituto Mises Brasil, em
2007. Os resultados já são visíveis no meio universi-
tário, que passou a ofertar disciplinas dessas teorias.
A existência desse curso também é expressão
do desejo dos brasileiros por explorar a Escola Aus-
tríaca.
Neste primeiro e-book, partiremos das questões
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epistemológicas e metodológicas para começar a
INTRODUÇÃO

explorar o pensamento austríaco, pontuando esse


percurso com debates acerca das soluções que essas
teorias dizem encontrar para dilemas que permeiam
as discussões econômicas.
Diferentemente de outras escolas, a escola aus-
tríaca contempla uma miríade muito maior de variáveis
econômicas nas suas análises. Os keynesianos, por
exemplo, estão mais preocupados com a macroeco-
nomia e esquecem ou negligenciam uma parte sig-
nificativa do método por trás disso, dos conceitos de
racionalidade e incerteza. Os neoclássicos, por outro
lado, focam sua atenção na microeconomia. Nen-
huma dessas escolas tem, ou trabalha, desde a epis-
temologia até a teoria do capital.
Você pode não estar entendendo estes termos
ainda, mas não se preocupe. O destino final desse
curso é fazer uma interligação entre a epistemologia,
o método e a parte prática econômica do nosso dia a
dia: inflação, juros, preços, políticas monetárias e fiscais.

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A ECONOMIA E OS
CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Antes de começarmos o estudo do pensamento


austríaco, precisamos construir, juntos, um alicerce:
tanto do que é a economia, quanto de conceitos fun-
damentais - que não são propriamente austríacos, mas
que são essenciais para que possamos avançar. Pense
na resposta para essa pergunta: o que a economia,
ou as ciências econômicas, estuda?

A economia estuda a escassez

Se todas as coisas fossem abundantes, nós não


precisaríamos nos preocupar em produzir, porque a
abundância resolveria todos os nossos problemas.
Vivemos em escassez. Tendemos a esquecer desse
pressuposto, porque o capitalismo conseguiu esta-
belecer um modo de produção extremamente efici-
ente. Quando os caminhoneiros entraram em greve,
no Brasil, em 5 dias, produtos e alimentos básicos
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começaram a faltar nas gôndolas, pois não é nada sim-
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ples alimentar 200 milhões de pessoas numa miríade


gigante de alimentos. Hoje, não é por um problema
de produção que as pessoas passam fome, mas sim
de distribuição.
Portanto, apesar de todos os avanços, a escassez
ainda existe e é responsável por nossa necessidade
de alocar os recursos disponíveis. Quando um bem
existe em abundância, não é preciso alocá-lo. O
ar, por exemplo, não é um meio econômico, pois
está abundante. Quando você respira, você não
toma o ar de outra pessoa. Em contraste, quando
vamos mergulhar debaixo d’água, o ar é escasso.
Nesse caso, é preciso comprá-lo. “Comprar” é um
fenômeno econômico que ocorre em um cenário
de escassez. Eu preciso comprar um cilindro de
oxigênio porque ele não está disponível para todo
mundo. Se todas as pessoas quiserem mergulhar
ao mesmo tempo em Fernando de Noronha, pri-
meiro: não haverá espaço; segundo: não haverá
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cilindros suficientes. Precisamos, então, decidir
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como vamos alocar esse recurso. É imprescindível


internalizar que a escassez está constantemente pre-
sente em nossa sociedade. Por incrível que pareça,
muitos economistas tentam tergiversar nesse sen-
tido. Os austríacos alertam o tempo todo para isso,
especialmente por enxergarem a economia a partir
da ótica da produção. Um assunto que abordaremos
mais adiante.
Devido à escassez, é necessário fazer a alocação
dos recursos, cujo processo é extremamente com-
plexo e que envolve o sistema de trocas. Como eu
consigo alocar um bem cuja quantidade não é capaz
de contemplar a todo mundo a partir das demandas
que são infinitas para vontades alternativas? Para
ajudar a solucionar essa equação, temos a relação
entre demanda e oferta, que é a primeira relação na
economia, cujo equilíbrio é chatíssimo de se encon-
trar, mas que tentamos.
Para compreender a demanda, precisamos com-
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preender o que os seres humanos querem. Essa não
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é uma tarefa fácil. Mudamos de gosto e de pensa-


mentos, e, à medida que vamos envelhecendo, até
mesmo as nossas preferências vão se alterando. A
pessoa que está fazendo a oferta tem que tentar adi-
vinhar ou entender isso. Além disso, é possível que
duas pessoas queiram uma mesma coisa, mas por
motivos distintos. Você pode comprar um carro para
trabalhar e eu, para passear. Por mais que a demanda
seja igual, ou seja, comprar um carro, essa relação
de troca já não é a mesma. É preciso compreender
a motivação diferenciada dessas duas compras para
poder explorar as relações de oferta e assim poder
encontrar o equilíbrio: nem produzir em demasia e
nem produzir a menos. Produzir numa relação em
que não haja desperdício ou sobra de recursos.
Todo esse processo pode parecer relativamente
simples hoje, pois temos farta informação com a era
da internet, mas permanece sendo um problema
alocativo complexo de ser feito. O problema de renda
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baixa vivenciado na América Latina, África e alguns
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países do Oriente, é de caráter alocativo. São prob-


lemas de erro produtivo, ou seja, oferta demais ou
produção de menos. Esse erro está associado a uma
incapacidade de ler perfeitamente a demanda. Esse
problema alocativo significa que estamos perdendo
recursos, riqueza, aço, ferro, materiais e, principal-
mente, estamos perdendo tempo. Talvez o tempo
seja um dos principais recursos econômicos que per-
demos quando produzimos mal e a escola austríaca
tem um tratamento especial para ele.
Você está alocando tempo ao ler esse livro. O
termo “tempo é dinheiro” não é o mais correto, mas
tempo, de fato, é riqueza.

Tempo é riqueza

Você poderia estar empregando seu tempo, ou


seja, alocando-o, em outra atividade, que o ajudaria
a produzir melhor do que está fazendo agora. Espero
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que isso não seja verdade e que estejamos utilizando o
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nosso tempo da melhor maneira possível. Para deixar


clara a importância do tempo, vamos recorrer a um
exemplo: digamos que você é um empresário e con-
trata empregados para realizar uma construção.
Depois de dois anos, a sua empresa quebra. Além
de ficar endividado, perder recursos, a empresa
quebrar e você se frustrar, você também fez aqueles
empregados perderem tempo da vida deles, pois
eles ficaram dois anos imbuídos de um projeto que
não prosperou e precisam retornar ao mercado de
trabalho com dois anos a menos para viver, pro-
duzir e buscar novos horizontes.
Esse é o problema alocativo do tempo. A única
escola de pensamento econômico que trabalha com o
tempo dessa maneira é a escola austríaca. As demais
trabalham com o tempo de uma forma patética, sendo
um dos pontos que mais irrita os austríacos. Os gráf-
icos econômicos de tempo por quantidade são irreais,
pois não explicam nem de perto a realidade.
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A alocação vai gerar o problema do conheci-
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mento: como eu encontro mecanismos que me


ajudem a alocar perfeitamente essa tal oferta e essa
tal demanda?
Isso exige que eu estude um outro conceito, o de
poupança em economia. O conceito de poupança em
economia é bastante distinto do conceito de poupança
que usamos em nossas vidas cotidianas. Nas nossas
vidas, poupança é o depósito de um recurso no CDB,
no CDI, na poupança, em títulos do tesouro nacional,
enfim, um pull de investimentos. Isso é poupar para
nós. Para economia, isso é uma poupança individual.
E a melhor forma de esclarecermos essa dif-
erença é a partir de um exemplo.
“Digamos que você consuma mil reais em
cerveja todos os meses. Com isso, você estaria
consumindo certa quantidade de alumínio, lúpulo,
malte, água, vidro e assim por diante. Se, de repente,
você decidir reduzir o seu consumo de cerveja pela
metade, para poupar em um CDB, para a economia,
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importa que você esteja poupando a metade do
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alumínio, do lúpulo, do malte, do vidro, da água. Por


isso, o conceito de poupança, em economia, está
atrelado ao conceito de abstenção de consumo.”

O conceito de poupança, em
economia, está atrelado ao conceito
de abstenção de consumo

O conceito de abstenção do consumo me for-


nece uma poupança de fatores de produção, cujos
três principais são: o capital, a terra e o trabalho. Como
eu aloco alumínio, malte e vidro corretamente? Como
eu aloco a terra para produzir corretamente? Todos
esses problemas econômicos estão relacionados ao
paradoxo da poupança.
A poupança é fundamental na economia porque
além de liberar recursos, ela propicia investimentos,
fundamentais para que a economia cresça.
Vamos a mais um exemplo: quando as pes-
soas começam a poupar para comprar uma casa
própria e colocam o dinheiro na conta corrente
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ou em algum fundo do banco, esse dinheiro não
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fica poupado na instituição. Ele é emprestado para


outras áreas, para que as pessoas possam inve-
stir. Quando as pessoas poupam em volume para
realizar um consumo futuro, como um apartamento,
elas propiciam que esse recurso poupado seja
absorvido por algum investidor que percebe que
as pessoas estão poupando para comprar apar-
tamentos. Esse investidor toma um empréstimo
e começa a levantar um edifício. Ele demora três
anos para construir o prédio, enquanto o recurso
das pessoas fica rendendo no banco. Depois de
três anos, quando o prédio está pronto, as pessoas
resgatam seu recurso com juros e correção mon-
etária e compram os apartamentos. O investidor
não desperdiçou o tempo dele, pois havia uma
demanda efetiva, ou seja, um consumo realmente
poupado.
É assim que a economia tende a entrar numa
zona próxima ao equilíbrio de mercado, um equilíbrio
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que para os austríacos nunca é alcançado, pois o
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investidor irá fazer uma leitura falha da realidade em


algum momento e vai construir mais apartamentos
do que o necessário, ou outros cenários desse tipo.
Precisamos estar conscientes de que foi a
poupança das pessoas que propiciou o investimento
no edifício. No final das contas, o investidor está em
uma melhor situação, pois lucra com o prédio, e a
economia está funcionando melhor porque as pes-
soas têm casas para morar. Sem exageros na pro-
dução, com um certo volume de equilíbrio entre con-
sumo e oferta. Quando há um desequilíbrio de maior
escala entre ambos, estamos diante de um grande
problema econômico.
O problema é que essa relação tende a se dese-
quilibrar. Por quê? Porque o investimento feito no
edifício se dá ao longo do tempo. Como se dá ao
longo do tempo, há uma variável chamada incerteza
que afeta diretamente essa relação. Eu, como inves-
tidor, não tenho certeza se a poupança que as pes-
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soas estão fazendo é realmente para comprar apar-
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tamentos. Eu suponho. E as pessoas não têm certeza


se vão conseguir poupar o quanto haviam planejado
ou se irão retirar o dinheiro no tempo previsto. Nós não
temos essas variáveis em nossa cabeça, porque esse
conceito de incerteza está presente no ser humano.
Por isso, o tratamento da incerteza na escola aus-
tríaca também é bastante genuíno, próprio, particular,
pois compreende que

A incerteza é inata ao ser humano


e portanto está presente e deve
ser levada em consideração

Depois de passarmos por todos esses conceitos e


exemplos, podemos vislumbrar a ciência da ação que
Mises procurou desenvolver a partir do que chamou
de ação humana. Dentro dessa ciência, estariam
englobadas todas as demais: psicologia; ciência
econômica; direito; ciência política; sociologia; todas
as demais variáveis sociológicas e das demais ciên-
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cias sociais. Interligadas por um conceito praxeológico
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de agir, todas se desenvolveriam com base no estudo


da ação humana. Por isso, diz-se que o tratamento
austríaco é mais subjetivista e completo. Há, na base
do pensamento austríaco, a ideia de entender a ação
humana.
É por isso que a economia é uma ciência com-
plexa. Ela exige que seus profissionais façam cálculos,
mas que também divaguem sobre epistemologia,
método e ciências sociais. É preciso somar o conceito
de epistemologia e método ao conceito prático-físico,
mecânico, que é o do cálculo da ciência natural. A
metodologia aplicada precisa estar correta para que
haja um desenvolvimento correto e seja possível for-
mular uma ciência adequada.
A escola austríaca não se livra de questões com-
plexas que não encontram fácil resolução. Isso nor-
malmente é feito por economistas de outras escolas
que buscam ignorar problemas difíceis. Um exemplo
é o fato de estas escolas não levarem em consid-
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eração a natureza heterogênea do capital e a aus-
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ência de padronização na demanda das famílias. Na


fórmula matemática, o capital é expresso pela con-
stante k. A partir disso, se desenvolvem modelos
macroeconômicos para tentar entender a produção
da economia. Os austríacos alegam que a constante
k não informa nada, pois o capital (máquinas e fer-
ramentas) é heterogêneo e não podemos fazer sua
alocação assim. Fogões não viram geladeiras da noite
para o dia. Quando eu desperdiço material com a
produção de fogões, eu não consigo realocar esse
capital facilmente para a geladeira. O uso do alumínio
já foi feito. Nas teorias macroeconômicas usuais,
aquele k permanece nos cálculos, sem ter qualquer
vinculação com o que acontece na realidade. Sem
qualquer representação. Sem informar nada. Os aus-
tríacos apontam que é preciso entender o que está
acontecendo de fato.
Outro fator de produção é o trabalho, que, como
já dizia Marx, é um grande fator de geração de valor.
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Por incrível que pareça, um certo nível de desem-
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prego na economia faz algum sentido, porque quando


todos estão empregados, há o esgotamento de um
dos fatores de produção. E o fator de produção tra-
balho também não é facilmente realocado. Se você é
psicólogo, não pode virar advogado do dia para a noite.
Você não consegue transitar entre várias profissões.
Por isso, assim como o capital, o trabalho também é
heterogêneo e precisa ser bem alocado. Na Coreia
do Norte, todos estão empregados, mas o que estão
fazendo de produtivo? Para qual tipo de trabalho as
pessoas estão sendo formadas? Ou seja, qual é o
tipo de emprego que a economia gera?
A partir da soma entre terra, trabalho e capital,
conseguimos compreender qual a melhor forma de
os alocar. Quem faz isso melhor? Os países mais
livres e desenvolvidos. São os países que melhor
conseguem juntar terra, trabalho e capital. Con-
seguem desenvolver o seu capital melhor, tec-
nologicamente falando, conseguem desenvolver
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melhor a sua mão de obra e assim usar melhor a
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terra. Quando essas três coisas se juntam, você


fica mais produtivo. Quando você fica mais produ-
tivo, o teu salário sobe, quando o teu salário sobe,
você consome mais, quando você consome mais,
os investimentos aumentam. Quando os investi-
mentos aumentam, você volta a ganhar mais renda,
você volta a consumir mais e a roda da economia
começa a se desenvolver.
Os países que entenderam isso são considerados
referência na hora que escolhemos onde trabalhar:
Estados Unidos, Nova Zelândia, Canadá, Alemanha.
Os países que continuam brigando com essas regras
de mercado, permanecem com uma renda média ou
inferior: Brasil, Argentina e piores, como a Venezuela.
Por isso, o conceito de poupança em economia
está atrelado a poupar riqueza. Nos debates na
televisão ou jornais, costumamos ouvir que “a
economia não está bem porque o consumo está
caindo” ou que “o consumo das famílias está caindo
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e a economia não está bem”. O consumo, o con-
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sumo, o consumo. Em economia, o consumo é


considerado destruição de riqueza, pois, de fato, ao
consumir, é isso que as pessoas fazem. É claro que
o consumo tem fundamental importância na sinal-
ização para o empresário produzir mais, mas, em
economia,

A definição de consumo é destruir


riqueza, enquanto que a de produção
é geração de riqueza.

Isso diz muito a respeito das óticas econômicas,


das quais trataremos ainda neste e-book. Antes,
é necessário compreender que a poupança vai
nos ajudar a produzir melhor, pois tornará capital,
terra e trabalho mais abundantes, ou seja, faz com
que sejam encontrados com mais facilidade. Isso
propicia a produção, que é a geração de riqueza.
O professor Hans Hermann Hoppe tem uma
explicação fabulosa para demonstrar por que a
poupança é tão essencial, ao interligar poupança,
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tempo e geração de riqueza, ou seja, produção.
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“Imagine que você caiu numa ilha deserta. Em


meio à escassez completa. Não há comida pro-
duzida ou qualquer abundância ali. É muito provável
que, por uma questão de sobrevivência, você vá
atrás de comida. Você está diante do mar e, por
isso, raciocina que a melhor opção é pescar. Logo
à frente, você consegue construir uma pequena
linha e anzol. Esse é o seu capital 1. Você enrola
a linha no dedo e vai pescar. A produtividade alca-
nçada é de dois peixes para o almoço e dois para o
jantar. Todos os dias, você ruma ao mar para con-
quistar comida. Às vezes, você apresenta a mesma
produtividade, às vezes, não. Então, você decide
comer um peixe a menos tanto no almoço quanto
no jantar. Ao fazer isso, você ganha um dia, ou seja,
você ganha tempo para fazer outras coisas.
Você está passando fome para poupar os
peixes. Poupar é um sacrifício, consumir é algo
bom. Depois de vários dias explorando a ilha com
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o tempo extra disponível, você consegue, com esse
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tempo poupado associado à economia de peixes,


construir uma rede de pesca. Esse é o seu cap-
ital 2. Com ela, você consegue obter peixes em
abundância. Assim, o seu problema de produtivi-
dade está resolvido. Com um tempo ainda maior
disponível, você constrói uma casa na ilha, e mel-
hora o seu nível de vida.”
A melhoria e o bem-estar se devem ao fato de
você ter começado a poupar. Essa explicação mostra
que a poupança vai nos permitir uma melhoria das
condições de vida, porque conseguimos investir
tempo em outras atividades mais produtivas.
A poupança é uma variável fundamental. E aqui
uma interligação com o mundo real: as poupanças
nos países são mensuráveis. A média dos países
poupadores é 25% do PIB. Não há um percentual
ideal exato, pois há uma dependência do número do
PIB. Há países que conseguem atingir a marca dos
33%, como a Alemanha. A China apresenta 50% de
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poupança. Os japoneses têm uma poupança exag-
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erada. Os austríacos argumentam que é preciso ficar


alerta quando a poupança estiver abaixo de 20% do
PIB, pois os fatores de produção não estão sendo
poupados. Assim, sobra muito pouco para o investidor
alocar na produção de coisas benéficas para o futuro,
como tecnologia, por exemplo. A poupança brasileira
é historicamente baixa e, durante o governo de Dilma
Rousseff, atingiu o patamar de 13% do PIB. Esse é
um dos componentes econômicos que faz com que
o Brasil permaneça no setor primário de produção. O
FGTS, instituído nos anos 1960 por Roberto Campos
e Octávio Bulhões, surgiu para forçar uma poupança
interna, que já era baixa desde aquele período.
Existe uma enorme discussão sobre as razões
que levam a poupança brasileira a ser baixa. Eu tenho
uma tese que isso é consequência do somatório das
seguintes circunstâncias: o brasileiro tem uma renda
média extremamente baixa, sob a qual imputa-se uma
tributação de cerca de 40/45%, em um cenário que
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normalmente apresenta inflação elevada.
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Na prática, o que acontece é: uma pessoa ganha


R$3500, dos quais cerca de R$1700 vão para o gov-
erno. Sobram R$1800 para sua sobrevivência, em
um contexto no qual a inflação mediana é de 5%, um
valor alto. Além disso, caso pertença à classe média, a
tendência é que recompre os serviços ofertados pelo
governo, como saúde, segurança, educação. Sobra,
assim, muito pouco para poupar. Claro que não há
poupança.
Ainda há mais uma discussão acerca dos Estados
de bem-estar social. Toda vez que se cria uma
ingerência gigantesca sob o bem-estar da população,
em termos de setor público, você tende a desincentivar
a poupança, pois, mal ou bem, há saúde e escolas
públicas. Há uma rede assistencial que provoca uma
diminuição da preocupação em relação ao futuro.
O que acontece com uma família de renda média
americana? Como não há universidades públicas
ou sistemas de saúde gratuitos, as famílias se veem
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forçadas a fazer poupança para adquirir esses serviços.
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E, claro, há recursos para serem poupados.


Todos os países que têm uma rede assistencialista
muito grande tendem a ter poupança baixa. A França,
por exemplo, em relação à média, tem a menor taxa
de toda a Europa. Ela é baixa perante o que poupam
os alemães e os ingleses, que apresentam uma rede
assistencialista minorizada em relação aos franceses.
Isso não significa que os austríacos defendam
a extinção completa da rede assistencialista. Eles
apenas usam esses dados para apontar que é pre-
ciso pensar sobre os mecanismos de incentivo. Os
mecanismos de incentivo buscam explicar por que as
pessoas tomam determinadas ações e não são uma
concepção exclusiva dos austríacos, pois também
estão presentes no trabalho dos institucionalistas. No
caso da poupança brasileira, há um somatório de
Estado assistencialista, que não estimula a poupança,
associado a uma população que já não ganha muito
bem e que é muito tributada. Juntos, esses três com-
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ponentes baixam a poupança em um ciclo que se
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retroalimenta, porque toda a produtividade cai. Com


a baixa produtividade, as pessoas não ganham bons
salários, e, num segundo momento, também não
poupam. Esse ciclo se retroalimenta ad infinitum. É
uma armadilha que o Brasil montou para si mesmo,
que advém do nosso modelo de Estado, muito grande
para um país de renda média. A França e os escandi-
navos, que são países ricos, apresentam um modelo
de bem-estar social. Desde que esse modelo foi for-
temente implementado, esses países permanecem
estagnados em termos de crescimento econômico,
porque é caríssimo sustentá-los. E os mecanismos
de incentivo do governo não são bons.
A esse respeito, Milton Friedman afirmava que
existem quatro formas de você gastar um recurso.
Essas quatro formas não apresentam uma ordem
precisa.
A primeira forma é gastar um recurso que é
seu, consigo mesmo. Essa é a melhor forma de
todas, porque, como é para você, e o dinheiro sai do
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seu bolso, você tende a encontrar a melhor relação
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custo-benefício. Eu não quero pagar muito caro,


mas quero consumir algo bom. Eu sou criterioso
em minha escolha.
A segunda forma é gastar o seu dinheiro com
outra pessoa. Nessa modalidade, você está mais
preocupado com o custo, mas não tanto com a
qualidade. É o caso das meias com as quais pre-
senteamos nosso amigo secreto no final de ano.
A terceira forma é gastar o dinheiro dos outros
com você mesmo. Neste caso, você busca a qual-
idade acima de tudo, mas não se preocupa com o
custo.
A quarta forma é gastar o dinheiro dos outros
com os outros. Como não é para a pessoa e não é
ela quem paga, qual o mecanismo de incentivo?
Se sair caro ou barato, não há problema. E se a
qualidade não for a melhor, tanto faz. A pessoa não
derrama rios de lágrima por isso. Ela não procura
o melhor custo-benefício.

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Gastar o dinheiro dos outros com os outros é o
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que o governo faz. Quando um político constrói uma


ponte em uma cidade no interior, ele jamais vai usufruir
dessa construção, porque ele não está lá naquele
município. Por isso, essa ponte custa três vezes mais,
demora o triplo do tempo e ainda apresenta uma
péssima qualidade. Esse é o mecanismo de incentivo
do governo atuando. Por outro lado, observem o
nível de qualidade das construções e dos bens que
os políticos compram para as estruturas das quais
vão usufruir. O prédio do Tribunal Superior Eleitoral é
um exemplo. E enquanto a cadeira dos deputados

Prédio do Tribunal Superior Eleitoral


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e senadores nunca está rasgada, quem estudou em
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escola pública sabe que sempre existe uma sala que


abriga cadeiras quebradas que foram se acumulando
ao longo dos anos, que ninguém trocava, porque é a
educação dos outros para os outros.
Isso diz muito sobre os mecanismos de governo.
Significa dizer que o Estado não deva existir e que o
governo é sempre perverso? Não. Mas precisamos
estar cientes que ao fazer as coisas, o governo tenderá
a utilizar esses critérios. O dinheiro, quando vem dos
outros, e é gasto com os outros, tende a não ser
melhor aproveitado. No caso dos Estados de bem-
estar social, quando incumbe ao governo ofertar
saúde, educação e segurança, os mecanismos de
incentivo do governo impelem para que isso não seja
feita da melhor forma possível.
Agora, vamos entender as duas óticas da
economia mencionadas no início do e-book.

28
3
AS ÓTICAS ECONÔMICAS

Há duas óticas que são mais utilizadas em


economia. Elas formam um trade off, ou seja, é pre-
ciso optar entre uma das duas, pois elas não dialogam
entre si. Essas duas óticas são usadas para pensar a
economia e para compreender os ciclos econômicos.
Cada uma explica a economia de um jeito específico.
Há a ótica do consumo e a ótica da produção.
A ótica do consumo é a mais utilizada. É a que
está presente nos jornais, revistas, na televisão. A ótica
do consumo busca enxergar a economia a partir do
consumo, também chamado de demanda agregada.
O grupo de economistas que aderem à ótica do con-
sumo, acreditam que os problemas econômicos estão
sempre no consumo, por o consumo ser o principal
sinalizador da atividade econômica.

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PRODUÇÃO ESTAGNADA
pelo aumento da incerteza

QUEDA DO CONSUMO EMPRESÁRIO DEIXA


sinalização negativa DE EMPREGAR
para o empresário
NÃO HÁ GERAÇÃO
DE RIQUEZA
Não há aumento
da produtividade

Para eles, quando há queda no consumo


no Tempo 1, há uma sinalização negativa para o
empresário. Essa sinalização negativa faz com que
a produção estagne ou tranque, pois há aumento da
incerteza. Ao trancar a produção, o empresário deixa
de empregar. Se ele não emprega, não há geração
de renda e não há aumento da produtividade. Não
há, portanto, motivos para o consumo aumentar no
Tempo 2. Se o consumo no Tempo 2 volta a ficar
muito estagnado, eu informo novamente no Tempo
3 ao investidor que as coisas não vão bem. Ao per-
ceber que esse processo de letargia no consumo
continua forte, a incerteza volta a aumentar, e a pos-
sível diminuição da produção. Se diminui, por óbvio
não aumenta o emprego, não aumenta a renda, não
30
aumenta a produtividade e no Tempo 4, o consumo
AS ÓTICAS ECONÔMICAS

volta a cair. Esse ciclo não para de ocorrer. Algumas


escolas, dentre as quais se destaca a keynesiana, diz
que esse é o momento de o Estado intervir estim-
ulando o consumo, estimulando a demanda agre-
gada. O que é estimular a demanda agregada? Fazer
obras, jogar dinheiro na economia para estimular
a oferta de crédito com política monetária e fiscal
expansionistas. Fazer o que se chama de política
anticíclica, ou seja, quebrar a letargia do consumo e
fazer a economia crescer. Essa é a ótica mainstream.
Nas universidades, o consumo está no cerne do
problema.
Os austríacos enxergam de uma outra perspec-
tiva. Eles também compreendem que o consumo é
o sinalizador de coisas boas ou ruins. No entanto, a
pergunta ausente no problema é: por que o consumo
caiu? O que aconteceu para o consumo experimentar
uma queda? As pessoas não acordam do dia para
a noite e decidem que consumir é ruim, que não
31
gostam de ir ao shopping. Que a escassez é boa.
AS ÓTICAS ECONÔMICAS

Não. Na sua imensa maioria, as pessoas não trancam


o seu consumo porque querem. Você encontrará
apenas exceções que confirmam essa regra. Existem
pessoas que de fato gostam de poupar, mas esse
não é o padrão de consumo das famílias. As pes-
soas gostam de consumir: sair de noite para tomar
uma cerveja; contratar bons serviços; comprar casa
e carro próprios. O consumo é tácito, está presente,
não cai à toa. Os austríacos chamam atenção para o
fato de o consumo ter caído por algum motivo. Além
disso, salientam para os keynesianos que o aumento
ou queda do consumo apresenta algum motivo.
Somos conduzidos então à pergunta: de onde
vem a sua capacidade de consumir? O que faz
com que você ganhe 2 mil reais aqui e 4 mil reais
nos EUA fazendo o mesmo trabalho? Resposta: a
produtividade.
Produtividade é produção. Assim, o cerne está
na produção, pois é ela quem te dá capacidade de
32
consumir. Uma pessoa muito produtividade ganha
AS ÓTICAS ECONÔMICAS

um bom salário e o bom salário garante as possi-


bilidades de consumo. Por isso, para os austríacos,
o consumo não é a causa do problema econômico,
mas sim o efeito. A relação de causa e efeito em
economia também apresenta caráter ad eternum.
Um professor adepto ao keynesianismo entende que
o consumo é a causa dos problemas econômicos e
não a produção. Ele enxerga que o consumo estimula
a produção e não que a produção estimula o con-
sumo. Essa situação em economia diz muito sobre o
próprio ser humano e sua capacidade de olhar para
um mesmo problema econômico e interpretá-lo de
forma tão distinta.
Ao colocar a compreensão dos seres humanos
na base da ciência econômica, e, portanto, a própria
natureza humana, os austríacos apresentam uma
grande capacidade de dialogar, por compreenderem
o pensamento humano. Assim, por mais que debatam
ferrenhamente com keynesianos, neoclássicos e
33
marxistas, os austríacos não classificam algumas
AS ÓTICAS ECONÔMICAS

pessoas como burras e fogem da discussão. Essa


definição de burrice é muito cômoda, pois permite
que as pessoas se mantenham em sua bolha interna,
com sua verdade, e ignorem a outra pessoa, como se
aquele pensamento não fizesse parte da sociedade.
Os austríacos honestos são pessoas adaptadas ao
diálogo, porque conseguem entender essa miríade
de problemas e dialogar, porque entendem mais a
natureza humana.
Depois de vermos aspectos introdutórios, con-
ceitos, como se enxerga o mundo econômico, quais
as discussões mais presentes hoje na economia, a
partir de agora entramos no curso de escola austríaca.
Algumas coisas já foram abordadas brevemente.
Vamos aprofundar os conceitos e começar a tra-
balhar com questões metodológica, epistemológica,
do método praxeológico, que é a ciência que nos
norteia na análise do homem, na análise da ação
como um todo.

34
4
OS ASPECTOS DO VALOR

Estudaremos primeiramente, as discussões


sobre os aspectos do valor. Essa questão não é
austríaca propriamente dita, mas tem a colaboração
profícua de um austríaco chamado Menger. A teoria
do valor do trabalho não é apenas de Marx. Smith e
alguns outros clássicos também trabalhavam com
ela. Marx somente a difundiu.
Comecemos por uma pergunta básica: Como eu
faço, de onde vem, e onde está o âmago do valor?
Por que as pessoas valorizam alguma coisa e depois
deixam de a valorizar em um determinado período de
tempo? O que acontece para haver essa mudança?
Como se compõe o valor? Durante um bom tempo,
o dilema do valor atormentou os pensadores que
raciocinavam e buscavam interpretar o mundo
econômico a partir dessa discussão. Utilizamos a
terminologia pensadores, pois a ciência econômica
passou a existir em sua formatação atual apenas
a partir do século XVIII. As questões referentes ao
valor, no entanto, remontam aos escolásticos dos
35
séculos 12, 13, 15 e se desenvolvem até o apa-
O S A S P E C T O S D O VA L O R

recimento de Menger, um dos partícipes da Rev-


olução Marginalista. Deste modo, a discussão sobre
o que é o valor permeia os dilemas econômicos há
pelo menos 800 anos. Uma pergunta está presente
em certa medida ainda hoje nesta discussão: por
que as pessoas querem alguma coisa? Por que em
algum momento queremos alguma coisa e em outro
momento deixamos de querê-la? Essas questões
são epistemológicas, mas são essenciais para que
posteriormente compreendamos o consumo das
famílias.
Até a Revolução Marginalista de Menger,
Jevons e Walras, essa pergunta era respondida
com base na teoria do valor do trabalho, que era
a que melhor satisfazia esse dilema. De acordo
com a teoria do valor do trabalho, o valor de algo
está atrelado ao tempo de trabalho necessário
para sua produção. Deste modo, se eu produzo
um celular em oito horas, e você produz exata-
mente o mesmo celular em nove horas, o celular
que você produziu em mais tempo tem que valer
36
mais. A valoração de algo era medida pelo tempo
O S A S P E C T O S D O VA L O R

destinado ou dedicado a produzir aquele bem. É


uma forma objetiva de medir valor. O Smith apre-
sentava essa interpretação. Marx avançou nesse
raciocínio e alegou que a última hora de trabalho,
responsável por incorporar valor em uma merca-
doria e fazer ela ser demandada, não é repassada
a quem realmente gerou valor nela: o trabalhador.
Por esse valor não ser repassado, isso constitui
uma exploração. Esse é o conceito de mais-valia
absoluta em Marx. Mas ele avançou ainda mais e
afirmou que além da mais-valia absoluta, ao dis-
ponibilizar uma máquina ou equipamento para fazer
o celular, houve um aumento da produtividade do
trabalhador que também não é repassada a ele,
configurando a mais-valia relativa. Portanto, o tra-
balhador ficava mais produtivo, mas não ganhava
mais. Essas duas vertentes formam toda a con-
cepção de exploração patrão-empregado de Marx
e a sua lógica do sistema capitalista. Marx conse-
guiu avançar ainda mais e disse que essa é uma
lógica perversa porque essa exploração tende a
37
aumentar, porque as taxas de lucro dada a mais-
O S A S P E C T O S D O VA L O R

valia relativa e o aumento da produtividade, aumen-


tariam. Isso levaria a uma crise de superprodução
e o capitalismo ruiria por si só.
As predições de Marx nunca se confirmaram.
As crises de superprodução que vivenciamos ao
longo da história provém mais de falhas estatais
do que o contrário. Suas previsões também não
foram precisas pois Marx partiu de uma concepção
errada de valor, ao compreender que somente o
trabalho gera valor. E isso não é verdade. Não é só
o trabalho que gera valor. É o trabalho associado
à máquina, à terra, a uma série de coisas. Embora
o trabalho seja de fato um dos principais compo-
nentes da geração de valor, ele não é o único. E
ao achar que o trabalho era o único, Marx esquece
de todo o resto dos fatores de produção, todos os
demais componentes que geram realmente valor
em alguma coisa e esse processo acaba não expli-
cando a economia de verdade. Por isso, não faz
o menor sentido, quando você produz um celular
em nove horas e eu, em oito, você cobrar mais
38
pelo mesmo produto.
O S A S P E C T O S D O VA L O R

Existem outras variáveis associadas a isto.


Esse dilema do valor também encontrava corre-
spondência no paradoxo da água e do diamante,
que foi resolvido pelos marginalistas. O paradoxo
da água e do diamante é o seguinte: se pergun-
tava muito se era o trabalho que gerava valor a
alguma coisa, por que a água, que é algo tão útil
para nós, e necessária à vida humana, e o dia-
mante, que é algo absolutamente inútil para as
necessidades humanas, tem tamanha diferença
de valor. Por que a água, sendo tão útil, vale tão
pouco e o diamante, sendo tão inútil, vale tanto?
Qual a lógica por trás disso, ao se considerar que
ambos não tem trabalho incorporado, e só pre-
cisam ser coletados? O paradoxo não conseguia
ser resolvido pelas discussões que associavam o
valor exclusivamente ao trabalho.
Ao ser estudado,este paradoxo também começou
a gerar dúvidas associadas aos tipos de valor. Havia o
valor do trabalho, cujos principais teóricos eram Marx
e Smith, e havia o valor marginalista, proposto por
39
Menger, Jevons e Walras. O Menger é considerado
O S A S P E C T O S D O VA L O R

o pai fundador da escola austríaca de economia e


ajudou a fundar o que chamamos de teoria margin-
alista, que conseguiu solucionar boa parte do dilema
relacionado a valor.
Para os marginalistas, não é apenas o trabalho
que dá valor ou utilidade para uma coisa e faz com
que pessoas a queiram. O valor surge de uma con-
cepção de interação subjetiva entre agentes. Por-
tanto, o valor das coisas, em determinado período
de tempo, é dado pela utilidade marginal decres-
cente. Isso quer dizer que a utilidade que você dá
para alguma coisa tende a cair de unidade em uni-
dade, de margem em margem, à medida que você
consome mais dessa coisa. Um exemplo tolo é o
do pacote de bolachas: digamos que você está com
muita fome e consegue comprar as bolachas do
pacote de forma unitária. É provável que você pague
muito pela primeira unidade consumida. Que ainda
pague bastante pela segunda. Na sexta e sétima
unidades, no entanto, a utilidade já terá caído, pois
você já não está mais com a mesma fome e já
40
sentiu o gosto das bolachas várias vezes. Até que
O S A S P E C T O S D O VA L O R

chega um ponto que você não quer a bolacha nem


de graça, porque cansou de comer, porque está
saciado, porque aquilo ficou muito abundante.
Deste modo, a utilidade do que você compra
tende a cair à medida que você compra mais em
determinado período. É importante dar ênfase a “em
determinado período” pois, conforme o tempo passa,
a tendência é que a utilidade volte a crescer. Então,
o que os marginalistas, cada um em sua cidade,
sem conversarem entre si, descobriram ao mesmo
tempo no mesmo ano? Que o

Valor é composto pela utilidade do


lado do consumidor, que é decrescente
de unidade em unidade, de margem em
margem, associado à oferta do lado
de quem vende, do produtor.

Por isso, o produtor não pode colocar um pro-


duto de forma abundante ao lado do consumidor,
porque cai a utilidade do que ele está vendendo,
e isso faz toda a diferença na hora de montar uma
41
estratégia de vendas.
O S A S P E C T O S D O VA L O R

O principal é compreender que existe uma inter-


ação. Vamos retomar o mesmo exemplo da água
e do diamante e aplicar essa teoria. Você está no
deserto, com dinheiro, e alguém lhe oferta água e
diamante. A tendência, na imensa maioria dos casos,
é que as pessoas escolham a água, porque o grau
de escassez da água e do diamante no deserto se
aproximam. Ambos no deserto são bens escassos.
Na cidade, essa valorização da água não ocorre,
pois ela está disponível facilmente e em abundância.
Ao mesmo tempo, neste cenário, o diamante se
torna mais escasso e, portanto, ainda mais caro.
Não importa a circunstância: a escassez gera um
valor enorme.
No entanto, a escassez nem sempre é a melhor
estratégia. É o caso do arroz, cujo processo de venda
se dá por massificação da demanda. Todo mundo
consome arroz, então o ideal é que você produza
em excesso para abastecer o mercado consumidor.
Por que o arroz é barato? Porque serve as coisas
básicas e é bastante abundante. Se o arroz fosse uma
42
iguaria produtiva, ele seria caro. Por sua forma pro-
O S A S P E C T O S D O VA L O R

dutiva, ele transformou-se em um produto de larga


escala, e, ao ser produzido em excesso, se torna
uma utilidade básica. Todos os produtos que tem
essa natureza produtiva tendem a se tornar de utili-
dade básica, ou seja, ficam facilmente consumíveis
ao longo do tempo.
Esse teorema é fundamental porque não
explica apenas a valorização de um bem ou serviço,
mas também o salário das pessoas e a inflação de
preços.
No mercado de trabalho, a situação se inverte.
O trabalhador oferta mão de obra, portanto, é o
ofertante. E o produtor, a empresa, é a consumidor,
pois compra mão de obra. Surge a pergunta: como
fazer para ganhar um bom salário? Tem dois jeitos:
ou você fica mais escasso e se torna raro ou você
tem uma capacidade/habilidade que nenhum outra
pessoa tem. Essa é a tendência de mercado, porque
ao ficar mais escasso, o trabalhador gera mais uti-
lidade para quem o contrata. A utilidade gera mais
valor, valor está associado à produtividade. A pro-
43
dutividade que ele entrega é maior, ele ganha um
O S A S P E C T O S D O VA L O R

salário maior.
Esse conceito de utilidade também se aplica ao
dinheiro. Geralmente, cansar de ganhar dinheiro não
é algo que ocorre. Mas a valoração na unidade do
dinheiro, à medida que você acumula mais, também
muda. Não fosse assim, ir em um restaurante e gastar
200 reais deveria ser a mesma coisa para mim do
que é para o Bill Gates, e não é, porque eu tenho
muito menos dinheiro do que ele. Deste modo, ele
se livra ou consome mais fácil do que eu, porque a
unidade do valor do dinheiro, da moeda, de um em
um dólar dele, é menor do que a minha. Eu valo-
rizo mais a unidade monetária, enquanto ele valo-
riza menos e, por isso, tende a se livrar do recurso
com maior velocidade. Se livrar da moeda com mais
facilidade significa comprar.
Isso significa que se eu distribuísse dinheiro na
mão de vocês, a tendência é que vocês se livrassem
dessa moeda consumindo, ou seja, dessem pouca
utilidade para o dinheiro. Assim, a baixa utilidade do
dinheiro é o aumento do consumo. Como o con-
44
sumo tende a ser mais rápido do que a produção,
O S A S P E C T O S D O VA L O R

o aumento do consumo gera aumento dos preços


na economia. Consumir é rápido. Produzir, demora.
Por isso não se deve aquecer em excesso o con-
sumo, pois a produção não aguenta. Deste modo, a
explicação do por que eu não posso distribuir din-
heiro para as pessoas advém do teorema da utili-
dade marginal decrescente.
Se você simplesmente distribui moeda para as
pessoas, a utilidade da moeda cai, as pessoas con-
somem em demasia. Como o consumo é mais rápido
do que a produção, os preços sobem. Por isso, esse
tipo de política monetária apresenta um limite. Há,
portanto, uma explicação epistemológica de por que
colocar dinheiro na economia, gera inflação.

Para os austríacos, o problema da


inflação se encontra no aumento da
moeda em circulação e não dos preços.

Boa parte do que chamamos de inflação está


associado ao aumento da quantidade de dinheiro
45
na economia, e não ao aumento generalizado do
O S A S P E C T O S D O VA L O R

nível de preços. É assim que Mises vai se referir


ao fenômeno monetário da inflação. Quando ele
afirma que o governo recorreu à inflação, significa
que o governo recorreu a uma política monetária
expansionista. Para Mises, a inflação começa com
o aumento da quantidade de dinheiro na economia.
A concepção de que a inflação corresponde ao
aumento no nível de preços pertence aos keynes-
ianos. Os austríacos entendem que essa interpre-
tação uma vez mais está olhando apenas para as
consequências e não para as causas. Normalmente,
quando há um aumento de preços sistêmico, a causa
está associada a um fenômeno monetário. Essa
definição de inflação como aumento da quantidade
de moeda na economia é puramente austríaca.
Esse teorema, portanto, solucionou boa parte
dos problemas que permeavam a economia há um
longo tempo, ao encontrar uma correspondência
teórica para explicar inflação, demanda, queda e
aumento dos preços, as relações de consumo, de
produção, as estratégias de produção e consumo.
46
A teoria marginalista nos forneceu uma forma para
O S A S P E C T O S D O VA L O R

pensar economia e de entender a composição do


valor sendo formada por uma utilidade decrescente
do consumidor na margem, que interage com uma
escassez da oferta. A partir do valor, haverá a for-
mação do preço.

Valor e preço são diferentes.


A valoração é absolutamente subjetiva.
Depende de cada um de nós.

Não há uma mensuração correta, precisa, ini-


cial sobre o valor. O que temos é subjetividades
associadas a consumos. Para alguns, um aumento
derruba muito a utilidade em pouco tempo. Não
há uma queda igual da utilidade para todo mundo.
Retomemos o caso da bolacha. Se você não gosta
de bolacha, é possível que sua utilidade caia dras-
ticamente a partir da terceira unidade. E eu, por
outro lado, por ser um amante de bolacha, ainda
não tenha reduzido em praticamente nada a minha
utilidade na quinta bolacha.

47
A marginalidade de unidade em
O S A S P E C T O S D O VA L O R

unidade é diferente para cada pessoa.


A utilidade cai de consumidor para
consumidor de forma distinta.

Isso diferencia Carl Menger de Jevons e Walras.


Esses dois últimos fundamentaram uma parte da
microeconomia e calculavam a utilidade por derivadas
parciais associadas a mudanças dos padrões de
consumo. Eles colocavam uma função utilidade (FU)
para fazer esse cálculo. A FU incluía o consumo, a
renda, a religião e coisas desse tipo. Quando a renda
do indivíduo aumentava, ele tendia a consumir mais
de alguma coisa. A utilidade do indivíduo aumentava
para alguma coisa. Ou quando variava o preço de
algum produto. A queda na utilidade não é sempre a
mesma para todo mundo. Eles calculavam isso por
derivadas parciais. Então, há muito cálculo e pouca
teoria por trás.
Menger, por outro lado, adotava uma linha muito
mais subjetiva de análise. Para ele, é verdade que a
utilidade do consumidor cai à medida que ele con-
48
some mais de alguma coisa. Agora, ela cai de forma
O S A S P E C T O S D O VA L O R

diferente em um determinado período de tempo. É


preciso acrescentar “em um determinado período
de tempo”, porque uma coisa que é muito quista
hoje, as pessoas podem não dar valor amanhã. Em
algum momento, o celular com o jogo da cobrinha
foi extremamente valorizado. Hoje, devido ao avanço
da tecnologia, aquele modelo se tornou ultrapas-
sado. Essa análise sempre ocorre em determinado
período de tempo. Isso porque o tempo tem valor.

Enquanto o valor é subjetivo, o preço


tem um conceito puramente objetivo.

Por isso, para os austríacos, não existe preço


justo. Preço é um número. A formação desse preço,
desse número, que é subjetiva, porque vem de uma
zona de interações de utilidades com escassez, de
um com o outro, que vai formando o valor para
alguma coisa e deu o preço para aquele bem. E aí
vocês podem, no início da formação do preço, pegar
isso de carona, dependendo de quando você entra
49
no mercado, produzindo ou comprando. Depende.
O S A S P E C T O S D O VA L O R

Depende muito do momento, do timing de mercado


que você entra.
A teoria marginalista também conseguiu explicar
as teorias de moeda, as teorias de demanda, as teo-
rias de oferta, que ajudaram a entender boa parte
da ciência econômica hoje.

50
5
OS ÚLTIMOS DOIS CONCEITOS
DESSE MATERIAL

O consumo é tácito.

Quando as pessoas querem consumir, o fazem


e não tendem a deixar de consumir à toa. Por isso,
os austríacos consideram que o consumo é perene,
está presente na economia e não deve ser fonte de
preocupação, pois, se as pessoas tiverem renda, elas
irão consumir.
No entanto, nem sempre você deixa de consumir
porque perdeu o emprego ou teve uma redução sal-
arial. Às vezes, você faz uma escolha de poupar por
decisão puramente individual, técnica, econômica. O
que faz com que você tome essa decisão?
Os austríacos consideram que há uma preferência
do consumidor entre consumir hoje e consumir no
futuro. De acordo com o teorema, sempre preferíamos
consumir hoje do que amanhã. Para que se abstenha
de consumir em prol de consumir no futuro, a pessoa
51
precisa se confrontar com uma diferença intertemporal
O S Ú LT I M O S D O I S C O N C E I T O S D E S S E M AT E R I A L

nessa escolha. Ninguém deixa de consumir alguma


coisa se não vislumbrar um ganho futuro, porque se
não vislumbra algum ganho futuro, você consome
hoje. Essa é a tendência. Isso precisa estar claro: o
consumo no tempo presente é sempre preferível ao
tal consumo no tempo futuro.
O que faz com que eu economize (deixe de con-
sumir) mil reais ou eu os empreste é a taxa de juros.
Deste modo, você guarda dinheiro e não gasta, deixa
de consumir no presente para consumir no futuro e
experimenta um aumento da preferência intertem-
poral devido à taxa de juros. Os juros têm o papel
fundamental de interligar o tempo presente com o
tempo futuro e é por isso que para os austríacos a taxa
de juros não pode ser administrada pelos governos,
porque ela é um preço fundamental da economia. A
proposição de deixar os juros fluírem sem qualquer
controle governamental diferencia muito a escola aus-
tríaca das demais, que acham essa ideia amalucada.
52
Para os austríacos, esse preço tem que fluir livre-
O S Ú LT I M O S D O I S C O N C E I T O S D E S S E M AT E R I A L

mente por interações de preferência intertemporal do


presente em relação ao futuro. A taxa de juros tem
que representar a escassez das coisas no tempo.

O preço na economia nada mais é


do que uma interligação entre
oferta e demanda.

Não existe preço justo porque ele não foi feito para
agradar nem a quem vende, nem a quem compra.
O preço não é feito, mas se forma no mercado para
interligar oferta e demanda e não deixar que as coisas
faltem. Quando um produtor produz leite em demasia,
ele não precisa conhecer seus consumidores para ser
informado do erro de sua produção. É o preço que
traz esse conhecimento para ele. Quando o leite é pro-
duzido em excesso, o preço cai, porque a quantidade
de leite está excessiva em relação ao que as pessoas
querem consumir. Ele não conhece sua demanda,
mas consegue ver no preço aquilo que sua demanda
53
quer. O preço interligou o conhecimento. O mesmo
O S Ú LT I M O S D O I S C O N C E I T O S D E S S E M AT E R I A L

acontece quando a situação é ao contrário: quando


as pessoas querem muito alguma coisa, ou quando
há um problema na produção, eu não preciso con-
hecer o produtor de leite, pois o preço sobe, e eu
percebo claramente que há um problema produtivo.
Como preço subiu, eu consumi um pouco menos
e dei tempo ao produtor para a produção voltar ao
normal e os preços retornarem ao seu padrão.
No fim das contas, esteja o preço subindo, caindo
ou oscilando fortemente, você vai nas gôndolas e
encontra o produto. É para isso que serve o preço:
para não faltar produto. É por isso que quando você
controla o preço, faltam as coisas mais básicas em
supermercados, porque você perde a interligação que
o preço dá entre o ofertante e o consumidor. Ou seja,
você perde a relação de conhecimento que o preço
carrega em si. O conhecimento do preço é um dos
principais conhecimentos que a economia gera para
o empreendedor.
54
O que isso tem a ver com juros? O juro é o preço
O S Ú LT I M O S D O I S C O N C E I T O S D E S S E M AT E R I A L

das coisas no tempo.


Digamos que eu vendo tijolos agora e os pro-
duzo para o futuro. Quando você chega na minha loja
de materiais de construção e diz que quer comprar
tijolos e parcelar em 48x, eu estou vendendo tijolos
para receber no futuro. O que fará que eu te cobre
uma taxa de juros baixa ou alta é a minha perspectiva
futura de ter muitos tijolos ou não. Se eu não souber
como estará a produção de tijolos hoje e eu não sei
se estará boa no futuro, eu devo cobrar caro os juros,
pois eu não sei se terei tijolos suficientes no futuro. É
muito provável que eu suba a taxa de juros pelo risco
inerente dessa operação. Os juros têm que interligar
o quanto eu acho que terá de coisas no futuro.
O que o banco faz quando te empresta dinheiro se
não é isso? O banco não se comporta muito diferente
de um agiota. A diferença é que o agiota é um pouco
mais violento com você quando você deve, mas, fora
isso, o banco se comporta de forma muito parecida.
55
Quando o banco tem muito dinheiro, a tendência é
O S Ú LT I M O S D O I S C O N C E I T O S D E S S E M AT E R I A L

que ele empreste para muitas pessoas com uma taxa


de juros mais baixa, por quê? Porque a perspectiva
de ter dinheiro no futuro aumenta.
Quando ele percebe que ter dinheiro hoje está
ruim e que no futuro também não está bom, ele sobe
o nível de juros porque a perspectiva futura sobre a
escassez do produto dele que é dinheiro, aumenta.
Vocês percebem? O risco inerente da operação
também aumenta. E é claro que daí os preços sobem.
Isso funciona para o tijolo, isso funciona para o din-
heiro. Os juros têm que interligar a demanda futura
com a oferta futura. Simples assim. Essa é a lógica.
Quando o Estado ou algum outro ente regulam-
enta esse preço futuro, os juros, ele pode bagunçar
completamente a relação entre compradores e vend-
edores para o futuro.
Como conversamos, a poupança em economia
é um conceito associado a economizar fatores de
produção (trabalho, capital e terra). Quando eu poupo
56
metade da cerveja que eu consumia, eu poupo lúpulo,
O S Ú LT I M O S D O I S C O N C E I T O S D E S S E M AT E R I A L

malte e tal. Quando eu faço isso, eu libero recursos


no tempo. Significa dizer que os recursos ficam mais
abundantes. Se os recursos ficam mais abundantes,
hoje e no tempo, tem uma coisa que a poupança vai
diminuir: a taxa de juros.
Eu expliquei para vocês que quando pessoas
poupam dinheiro para comprar uma casa própria, um
investidor usa esse dinheiro que está sendo poupado,
que está rendendo juros, para construir um edifício e
que, após um determinado período, o edifício ficava
pronto e as pessoas resgatavam o dinheiro para com-
prar o apartamento, ou seja, havia um casamento da
oferta com a demanda no tempo. Por que isso ocorria?
Porque vocês estão interligando a poupança presente
com o juro do futuro. Quando as pessoas poupam,
estão poupando consumo de materiais, propiciando
que o investimento seja mais barato, porque os juros
caem hoje. Quando eu resolvo poupar para com-
prar casa própria, eu deixo de consumir coisas na
57
economia. Essas coisas em abundância na economia,
O S Ú LT I M O S D O I S C O N C E I T O S D E S S E M AT E R I A L

tijolo, aço, metal, ficam mais baratas. Uma das coisas


que tornam elas mais baratas é o juro. Quando as
coisas estão mais abundantes, os juros também
caem. E aí você viabiliza não só porque agora tem
dinheiro, mas porque está barato pegar esse capital
e investir para fazer o tal do edifício. O investimento
fica mais viável, vocês ficam vendo o seu dinheiro
render, chega lá no final você fecha o consumo dos
apartamentos e o edifício fica todo vendido. Significa
dizer que a poupança economiza fatores de produção
para hoje e para o futuro. E aí, com isso, além dos
preços de hoje ficarem mais acessíveis, os do futuro
também ficam. Os juros caem. Se os juros caem, o
investimento aumenta. Se o investimento aumenta, a
tendência é que a economia prospere de forma sus-
tentável.
Imagine agora que um terceiro ente na economia,
chamado Estado, entra nessa interação e baixa os
juros. Porque ele coordenada os juros, ele os baixa
58
sistematicamente. Com essa política, ele informa
O S Ú LT I M O S D O I S C O N C E I T O S D E S S E M AT E R I A L

aos empreendedores que está barato para investir.


Como os juros baixos deveriam derivar da poupança,
o empreendedor acredita que há poupança. Mas, na
verdade, as pessoas não pouparam. Como o juros
está barato para elas também, elas também estão
consumindo. O empreendedor começou a construir
um edifício porque houve uma sinalização do mer-
cado através do juros, a sinalização de que havia
poupança. O fato é que quando ele termina de con-
struir o edifício, porque o juro estava barato e fácil, ele
descobre que as pessoas estão endividadas e sem
capacidade de consumir apartamentos porque não
fizeram a poupança que financiava a queda do juro
para construir o edifício. Há uma ilusão de consumo
futuro que não vai existir, já que as pessoas perd-
eramm a capacidade de consumir no futuro ao se
endividarem no presente. O ciclo econômico é nada
mais do que essa relação de manipulação da taxa
de juros associada ao descasamento no futuro sobre
59
consumo e produção. Simples assim. Já vivenciamos
O S Ú LT I M O S D O I S C O N C E I T O S D E S S E M AT E R I A L

isso na economia brasileira.


Devemos perceber que todas essas coisas têm
um fechamento econômico. A Teoria Austríaca dos
Ciclos Econômicos ajuda a interligar tudo isso que
a gente viu em termos epistemológicos à economia
de verdade, à taxa de juros, à formação dos preços
da economia. Entender essa ciência não é muito
simples. A escola austríaca é a que mais complica
essa tarefa, porque interliga três ou quatro linhas de
pensamento muitas complexas e que aparentemente
estão muito distantes, que é essa parte epistemológica
com a economia de verdade, que é a dos juros, das
demandas, dos preços. Porque, à medida que ela
trabalha com a preferência intertemporal, ela diz que
o consumo presente em relação ao consumo futuro
é regido por uma preferência no tempo que forma os
juros. É basicamente esse o fechamento desta pri-
meira parte, que é a parte mais teórica-conceitual.

60
6
PERGUNTAS

Podemos considerar que, apesar dos juros baixos,


o FGTS compensa?
Podemos dizer que ideia do FGTS foi bem pen-
sada. Ela foi uma tentativa de gerar formação de
poupança privada através do uso da força pública. A
concepção desse projeto é bem liberal, pois o obje-
tivo central é o estímulo à poupança. O problema é
que houve uma desvirtuação da ideia original. Esse
recurso não se tornou e não é uma poupança, pois
o governo drenou esse dinheiro privado e o gastou.
Assim como os recursos da previdência, os recursos
do FGTS não estão poupados. O nosso governo con-
some fortemente a poupança privada das famílias,
dentre elas, o FGTS, e se endivida também.
Portanto, a ideia, a concepção do projeto, é
boa: forçar as famílias que não eram culturalmente
poupadoras, a poupar. Infelizmente, o projeto foi e
está completamente desvirtuado.
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É possível aumentar a renda média sem aumento
P E R G U N TA S

de produtividade? Se não, como aumentar a pro-


dutividade?
É possível. A diferença salarial entre a empre-
gada doméstica no Japão e a empregada doméstica
brasileira não está na produtividade, a japonesa não
faz mais esfregadas por minuto.
O conceito de desenvolvimento econômico
acontece da seguinte forma: quando você tem uma
economia poupadora, que baixa os juros e propicia
investimentos, boas empresas começam a surgir para
fazer esses investimentos vigorarem. Essas empresas
crescem de tamanho e produzem na sociedade
um mecanismo de incentivo para que as pessoas
estudem e se qualifiquem, a fim de ocuparem bons
empregos nessas empresas, que começam a se
avolumar. Esse grande volume de empresas começa
a aumentar a produtividade das famílias. Mais pessoas
se empregam em bons empregos de boa produtiv-
idade. Quando as pessoas se empregam volumo-
62
samente em bons empregos de boa produtividade,
P E R G U N TA S

começam a não querer mais trabalhar em empregos


de menor valor agregado: pintor, cortador de grama,
babysitter, empregada doméstica, diarista. Com isso,
há uma escassez de mão de obra disposta a trabalhar
nesse mercado de baixo valor agregado. Devido à
escassez, apesar de não haver um aumento da pro-
dutividade, automaticamente o salário para mão de
obra de baixo valor agregado sobe. Esse aumento
salarial pode ser pago pois as pessoas estão bem
empregadas.
A quantidade de bons empregos na economia
é transmitida para aqueles empregos de baixo valor
agregado. O aumento salarial se transmite, não por
um aumento na produtividade, mas pela escassez da
oferta de mão de obra. É por isso que quem con-
struiu no Brasil entre 2005 e 2012, percebeu uma
elevação substancial no salário de pedreiros, mestres
de obra, diaristas.
Portanto, é possível aumentar a renda sem
63
aumento de produtividade no emprego em questão,
P E R G U N TA S

uma vez que o aumento salarial em empregos de baixo


valor agregado está sendo propiciado por um aumento
da produtividade de outros setores econômicos.

Existe algum governo que não controla a taxa de


juros?
Desconheço. Desde o surgimento dos bancos
centrais, os juros estão sendo controlados sistemati-
camente. O governo automaticamente controla os
juros para ter uma boa relação monetária nas suas
decisões políticas. Então, não ocorre.

Por que a escola austríaca não é aceita nos gov-


ernos ou por que não existe um governante que
implemente ideias austríacas nas suas políticas de
governo?
Porque a implementação de políticas econômicas
austríacas retira poder das mãos dos governantes,
ao dizer que não deve haver interferência econômica
64
através de política fiscal e monetária.
P E R G U N TA S

A teoria keynesiana, por outro lado, posiciona


os políticos como agentes fundamentais no ciclo
econômico, ao afirmar que lhes incumbe a missão de
realizar políticas monetárias e fiscais, o controle dos
juros e das demais variáveis econômicas, para que
haja desenvolvimento. O aumento do intervencion-
ismo econômico está associado às recomendações
keynesianas de controle.
Esse problema também encontra respaldo no
sistema político, na democracia. Como a democracia
é um sistema que privilegia resultados em curto prazo,
se as políticas de austeridade não encontram corre-
spondência e resultados em pequenos períodos de
tempo, não são de interesse dos políticos na democ-
racia. Há um problema político-econômico, pois os
mecanismos de incentivo dos políticos são de curto
prazo, enquanto o mais eficiente seria pensar no longo
prazo. Entra um pouco de ciência política por trás da
explicação. Por isso, quando há um cruzamento entre
65
ciência econômica e ciência política, há uma com-
P E R G U N TA S

preensão mais profunda de todo o mecanismo e do


por que as coisas não avançam.

Em algum momento, antes do surgimento


dos bancos centrais ou do keynesianismo, houve
períodos em que os juros flutuaram sem controle
estatal?
Sim, principalmente antes do surgimento dos
bancos centrais. O próprio Estados Unidos no século
19, é um exemplo. Quando ainda não havia um forte
desenvolvimento da moeda fiduciária, esse dinheiro
de papel que temos hoje em circulação, já existiam
vários mecanismos que impossibilitavam o controle
dos juros. O controle dos juros foi facilitado também
pelo aumento da tecnologia. Até então, os governos
não conseguiam nem se controlar e nem se autof-
inanciar a ponto de conseguirem controlar os juros
incisivamente. É como o governo tentando controlar
o câmbio. Depois de um tempo, se as medidas não
66
funcionam, não há mais como controlar.
P E R G U N TA S

A concepção dos bancos centrais surge de uma

influência marxista associada à prática keynesiana.

No Brasil, o banco central surge somente nos anos

1960. Quem cumpria essa função até esse momento,

era o Banco do Brasil. O conceito de Banco Central

deriva da ideia de controlar a economia.

67
7
INDICAÇÕES DE LEITURA

IORIO, Ubiratan Jorge. Ação, Tempo e Conhecimento:


A Escola Austríaca de Economia. São Paulo: Instituto
Mises Brasil, 2011.

IORIO, Ubiratan Jorge. Dos Proto-austríacos a Menger:


Uma breve história das origens da Escola Austríaca
de Economia. São Paulo: LVM Editora, 2017.

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