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Hernando de Soto

O mistério
do capital

Tradução de
ZAIDA MALDONADO

EDITORA RECO RD
RIO DE JANE IRO • SÃ O PAULO

2001
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CIP-Brasil. Caialogaçl!o-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
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Soto. Hem ando de, 1941-
S693m 0 mistério do capital / Hemando de Soto: tradução
de Zaida Maldonado. - Rio de Janeiro: Record, 2001.

l).lo"I Tradução de: The Mystery of Capita!


tJ ,l&: r. Apêndice
ISBN 85-01 -06!08-5
lt ,. r ,,-,1, · 1. Capitalismo. 1. Título.
:.V 1 --
CDD - 330. 122
=\,-~ ç, 01-0730 CDU - 330 .342. 14 A Mariano Cornejo, q ue m e mostrou como m e m anter firme,
e a Duncan Macdonald, que me ensino u
Título original em inglês: a navegar pelas estrelas.
THE MYSTERY OF CAPITAL

Copyright © 2000 by Hem ando de Soto

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ISBN 85-01-06 J08-5

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Sumário

Prólogo 11

Capítulo 1. Os cinco mistérios do c apital 15

Capítulo 2. O mistério da informação ausente 29


Uma revolução surpr~~~- 31
O s obstáculos à legalidade 33
O setor su bcapitalizado 40
Quanto capital morto? 42
Quanto vale este capital morto? 45
Hectares de diamantes 49

Capítulo 3. O mistério do capital 51


Pistas d o passado (d e Smith a Marx) 53
A energia p otencial dos ativos 57
O oculto processo conversor ocidental 59
Efeito Propriedade nº 1: Afixação do potencial econômico dos
ativos 63
Efeito Propriedade nº 2: A integração das informações
dispersas em um único sistema 65
8 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 9

Efeito Propriedade n º 3: A responsabilização das pessoas 68 Atirando no xerife 139


Efeito Propriedade 11º 4: A traniforrnação dos ativos em bens O avanço legal: "A preempção" 141
fungívei.s 71 Mais obstáculos legais - mais extralegais 143
Efeito Propriedade nº 5 : A integração das p essoas 73 Ilegalidade ou choque entre s istemas legais? 151
Efeito Propriedade nº 6: A proteção das transações 76 Esforços estatais para retirar a redoma de vidro 154
Capital e dinheiro 78 Esforços federais para retirar a redoma de vidro 157
A redoma de vidro de Braudel 82 Esforços extralegais para retirar a redoma de v idro 160
Associações de reivindicação de concessões 161
Capítulo 4. O mistério da percepção política 85 Organizações de mineradores 165
PONTO CEGO I : A v ida fora da redoma de vidro nos dias de O significado para o Terceiro Mundo e as extintas n ações
hoje 92 comunistas 174
Cidades em crescimento 94
A marcha para as cidades 97 Capítulo 6. O mistério do fracasso legal: por que a Lei
Pobres, voltem para casa 99 de Propriedade não funciona fora do
Extralegalidade crescente 103 Ocidente 179
Os extralegais chegaram para ficar 105
PARTE I: O desafio legal 187
A velha história de sempre 112
A passagem de um sistema pré-capitalista para um sistema
PONTO CEGO II: A vida fora da redoma de vidro no capitalista de propriedade 191
passado 113 O fracasso da lei coercitiva 193
O deslocamento para as cidades 113 Fundamentando a lei no contrato social 200
O surgimento da extralegalidade 115 A solidez dos contratos sociais pré-capitalistas 204
A derrocada da Velha Ordem 119 Ouvindo o ladrar dos cães 208
E finalmente ... 300 anos depois 123
Decodificando a lei extralegal 212

-t Capítulo 5. As lições esquecidas da história norte- PARTE II: O desafio político 219
americana 125 Adotar o ponto d e vista dos pobres 221
O paralelo com a história norte-americana 129 Integrar as elites 225
Deixando para trás a antiquada legislação britânica 131 Lidar com os guardiães da redoma de vidro 229
Uma antiga tradição norte-americana: A ocupação 134 Os advogados 229
O novo contrato social: "Direitos Tomahawk" 138 Os técnicos 234
10 HERNANDO DE SOTO

Capítul o 7 . Como conclusão 241


O clube privado da globalização 241
Encarando o fantasma de Marx 246
A propriedade facilita à mente a compreensão
do capital 253
Os inimigos das representações 258
O êxito no capitalismo é cultural? 260 Prólogo
O único jogo disponível 264

Apêndice 267
Notas 273
Agradecimentos 285
Há muitos anos tenho um compromisso com o apoio ao desen-
Índú:e 295
volvimento su stentável em todo o mundo. Em sua definição mais
elementar, trata-se da idéia de que o progresso deve satisfazer as
n ecess idades dos que vivem hoje sem p r ejudicar as gerações que
v irão amanhã. Penso que para alcançar este objetivo é preciso
ter regras, um quadro n ormativo em que se encoraje a conver-
gência gradual do interesse individual com os interesses coleti-
vos que a sociedad e busca em longo prazo.
Hernando De Soto sustenta que a maioria das pessoas, não
importa quão pobr es ou marginalizadas, vive na verdade de
acordo com regras. Tais regras nem sempre se harmonizam com
as le is oficiais, mas em vez disso contam com o apoio de sua
comunidade: é o que há centenas de anos o s filósofos chamam
d e um "contrato socia l". D e Soto e eu concordamos em que,
em sua forma mais simples, o d esenvolvimento se refere a este
tipo de contrato social entre as pessoas, o qual - quando che-
ga a ser abarcado pela lei - p ermite a todos os integrantes da
sociedade cooperar e dividir o trabalho d e forma que o cresci-
mento se torne sustentável. Dito de outro modo, o que confe-
re às pessoas a oportunidade de livrar-se da pobreza e criar
12 HERNANDO DE SOTO 13
O MISTÉRIO DO CAPITAL

riqueza é a integração de seu contrato social com as leis de seu seguiram gerá-lo. Outra das contribuições centrais do livro é que
p aís. ele responde a algumas perguntas persistentes: por que no mun-
Até onde estou informado, ninguém está apresentando su- do em desenvolvimento as pessoas respeitam contratos e honram
gestões práticas sobre como avançar neste tipo de transforma- compromissos relacionados com a propriedade, acordados por elas
ção, salvo De Soto. Este livro explica como se pode fazer e O que e seus vizinhos, e ao mesmo tempo não respeitam aqueles que
d eve ser feito. tentam lhes impor seus governos? Por que as pessoas aceitam as-
Conheço Hernando há mais de uma década e há mais tem- sumir responsabilidades individuais dentro desses contratos so-
po d o que isso me dedico a observar como evolui seu trabalho. ciais exn·alegais ao mesmo tempo em que se afastam - ou resistem
Nesse processo, tornamo-nos bons amigos. Assim, creio saber a aceitar - as leis que seus governos desejam imJ:>or?
de onde provém seu impulso intelectual e moral. Também te- O livro de De Soto é o resultado de anos de trabalho de cam-
nho consciência dos paradigmas que compartilhamos. Ele e eu po nos bairros e bolsões de estagnação social da Ásia, Oriente
acreditamos que, como explicou certa vez Carl Jung, "a psique Médio, América Latina e Caribe. Ali ele explorou esses contratos
humana não é um fenômeno individual completo e autocon t ido, sociais informais, tencionando ajudar cada governo a decifrar as
mas coletivo ... sem o qual todas as o rgan izações de massa, 0 verdadeiras regras que regem os processos socioeconômicos em
Estado e a ordem social seriam impossíveis". seu país. Ao mesmo tempo, ele e sua equipe de pesquisadores e
O que De Soto diz neste livro é que a riqueza das nações advogados trabalharam arduamente para descobrir que dinamis-
d ependerá, em termos gerais, da capacidade de seu s líderes de mo social poderia reunir as pessoas sob um só contrato social
criar ordens legais que r eflitam e articulem adequadamente 0 unificado e uma só lei. O que os países em desenvolvimento e os
contrato social de seus povos. O desafio, então, consiste em lo- antigos países comunistas aprenderam com este livro é que oca-
grar u m contrato social que regulamente a propriedade de modo pital não é uma questão de possuir ativos; sequer é uma questão
satisfatório para todos ou, pelo menos, para quase todos. Penso de dinheiro. Para De Soto, o importante não são os ativos per se,
que este é um dos principais objetivos do livro de De Soto: ten- mas como eles se inter- relacionam. Mostra-nos que é o sistema
ta ajudar- nos a compreender como se conduzem diversas co- de propriedade legal que possibilita uma rede efetiva de ativos e
munidades e o que devemos fazer para estimulá-las a criar um em seguida demonstra como esses vín culos criam capital.
sistema legal comum que permita aos cidadãos de um país coo- Outro aspecto verdadeiramente novo e importante no traba-
perar para criar capital. lho de D e Soto é que nos permite entender de que forma ativos tão
O mistério do capital abrangem uitos temas: como a mente com- simples como uma casa ou uma pequena oficina podem conver-
preende a propriedade e a u tiliza para descobrir e estabelecer va- ter-se em capital graças à engenhosidade da mente humana. Expli-
lor, o s~cesso dos países do Ocidente na geração d e capital e por ca com extraordinária clareza como nosso conhecimento descritivo
q~e hoJe os países em desenvolvimento e os antigos países comu- da propriedade e das transações cria condições gue a mente pode
nistas - o nde residem cinco se,...-tos da humanidade - n ão con- processar sem d ificuldades. Ao mesmo tempo, porém, D e Soto não
14 HERNANDO DE SOTO

é o tipo de pensador que se sente perpetuamente preso a sua biblio-


teca. Neste livro, revela-nos o quanto podemos aprender sobre o
desenvolvimen to quando saúnos às ruas onde vivem e trabalham
as pessoas de carne e osso, para encontrar aquelas leis que elas estão 1
dispostas a obedecer sem a n ecessidade de coerção. Essa explicação
é, faz-nos ver De Soto, a única m aneira de dar à maioria das pessoas Os cinco mistérios do capital
do mundo a oportunidade de sair da pobreza e começar a gerar ri-
queza. Em outras palavras, o desenvolvimento sustentável tem tudo
a ver com as o portunidades.
O mistério do capital n os ajuda a compreender que as leis, que
são c riado ras de capital, não se diferenciam muito do papel-moeda; o principal problema é descobrir por que aquele setor da sociedade do
as pessoas têm de acreditar nelas antes d e acatar seu uso. O s siste- passado, que eu não hesitaria em chamar capitalista, teria 11i11ido como que
mas su stentáveis de propriedade, da mesma forma que o dinhei- em uma redoma de 11idro, isolado dos demais; por que nãofoi capaz de se
ro, são criação humana; dependem totalmente de consenso. Como expandir e conquistar toda a sociedade? (. ..) [Por que] uma taxa
disse De Soto-:"Não é sua própria m ente que lhe confere direitos significativa deforma~o de capitalfoi possÍtlel tão-somente em alguns
exclu sivos sobre um determinado ativo, mas outras mentes pen- setores, e não em toda a economia de mercado da época?
sando em seus ativos no mesmo sentido em que você o faz. Por FERNAND BRAVDEI., As rodas do comércio
isso, a propriedade em qualquer d e su as formas é um conceito
con struído a partir do consenso de muitas mentes sobre como e
por quem as coisas são possuídas ; por isso a propriedade é uma O momento triu nfante do capitalismo é seu momento de cris e.
trama d e relações que propicia a criação de capital." A queda do Muro de Berlim pôs fim a mais de um sécu lo de
Com De Soto compartilhamos uma fé em que, empregando competições entre o capitalismo e o comunism o. Restou oca-
as mesmas fó rmulas que fizeram a grandeza da Europa, dos Esta- pitalismo como o único modo viável de se organizar_ra~i~-
dos Unidos e do Japão, os demais países do mundo também pode- nalmente a economia medema. Neste m omento da h1stona,
rão aprender a cooperar, e assim a prosperar, quiçá de uma maneira nenhuma nação responsável tem outra opção. Por conseguinte,
su stentável, com o passar do tempo. O problema é que essas fór- em variados grau s de entusiasmo, o Terceiro Mundo e as na-
mulas ficaram confinadas em nosso inconsciente. De Soto as de- ções do extinto bloco comunista equilibraram seus orçamentos,
volveu à superfície e, para mim, esta é a importância deste livro. cortaram subsídios, deram boas-vindas aos investimentos estran-
geiros e reduziram suas tarifas.
Stephan Schmidheiny Seus esforços foram recompensados com amargas decepções.
Da Rússia à Venezuela, os últimos cinco anos foram tempos de
16 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 17

sofrimento econômico, de queda nas receitas, de ansiedades e tem , também, ser uma das razões de seu boom de uma década o
ressentimentos -nas palavras contundentes do primeiro-minis- fato de quanto mais precário parecer o resto do mundo, mais
tro malaio, Mahathir Mohamad, tempos de "fome, distúrbios e atraentes serão as ações e títu los norte-americanos como refú-
pilhagens". Um recente editorial do New York Times declarou: gio para o dinheiro internacional.
"Em boa parte do mundo o mercado, enaltecido pelo Ocidente Na comunidade de negócios ocidental aumenta a preocu -
no crepú sculo da vitória da Guerra Fria, foi suplantado pela pação de que um fracasso na implementação do capitalismo em
crueldade dos mercados, pela desconfiança em relação ao capi- grande parte do mundo acabe por conduzir as economias ricas à
talismo e pelos perigos da instabilidade." O triunfo de um capi- recessão. Como milhões de investidores aprenderam dolorosa-
talismo circunscrito ao Ocidente pode bem ser a receita de um mente assistindo à evaporação de seus fundos em mercados
desastre econômico e político. emergentes, a globalização é uma via de mão dupla: se o Tercei-
Para os norte-americanos que desfrutam tanto de paz como ro Mundo e as nações antes comunistas não podem escapar à
de prosperidade, tem sido por demais fácil ignorar o tumulto influência do Ocidente, tampouco este as pode dispensar. Mes-
em outras partes. Como pode oca pitalismo correr perigo quando mo nos países ricos, aumentam as reações adversas ao capitalis-
a média do Dow Jones Industrial escala mais alto do que Lorde mo. Os tumultos em Seattle, no encontro da Organização
Edmund Hillary? Os norte-americanos dirigem o o lhar para as Mundial de Comércio em dezembro de 1999 e, meses depois,
outras nações e vêem progresso, mesmo se lento e desigual. Não no encontro do FMI e do Banco Mundial em Washington, DC ,
se pode comer um Big Macem Moscou, alugar um vídeo da apesar da diversidade das queixas, salientaram a raiva inspirada
Blockbuster em Xangai, e ter acesso à Internet em Caracas? pela expansão do capitalismo. Muitos começam alem brar-se dos
Ainda assim, mesmo nos Estados Unidos, o mau pressá- alertas do historiador da econ omia Karl Polanyi de que os m er-
gio não pode de todo ser abafado. Os norte-americanos perce- cados livres podem colidir com a sociedade, levando ao fascis-
bem a Colômbia à beira de uma enorme guerra civil entre mo. O Japão move-se com dificuldade em meio à sua mais
guerrilhas do narcotráfico e milícias repressivas, vêem uma prolongada queda desde a Grande Depressão. Os europeus oc i-
teimosa insurgência no Sul do México e uma importante par- dentais votam em políticos que lhes prometem uma "terceira
te d o crescimento econômico forçado da Ásia escoar para a via", rejeitando o que um best seller francês rotulou de O horror
corrupção e o caos. Na América Latina, a simpatia pelos mer- econômico.
cados livres diminui - em termos mais concretos, em maio Esses murmúrios de alarme, embora preocupantes, têm até
de 2000, o apoio da população à privatização caíra de 46 para agora tão-só instigado os líderes norte-americanos e europ eus a
36 por cento. Mais preocupante ainda, nas nações do extinto repetirem para o resto do mundo os mesmos sermões cansati-
bloco comunista o capitalismo vem deixando a desejar, e ho - vos: estabilizem suas moedas, agüentem firmes , ignorem as de-
mens associados aos antigos regimes já se posicionam à espera sordens acerca de alimentos e esperem pacientemente a volta dos
de uma retomada d o poder. Alguns norte-americanos pressen- investidores estrangeiros.
18 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 19

Investimento estrangeiro é, obviamente, coisa muito boa. Nas cidades do Terceiro Mundo e nas dos países antes comu-
Quanto mais, melhor. Moedas estáveis também são coisa boa, nistas abundam empresários. Não se pode atravessar um merca-
como o são o livre comércio, as práticas bancárias transparen- do do Oriente Médio, excursionar a uma vila latino-americana
tes, a privatização das indústrias estatais e todos os outros remé- ou pular para um táxi em Moscou sem que alguém nos proponha
dios da farmacopéia ocidental. Todavia, continuamente nos um negócio. Qs_h~bitant~s de~ses pafa_~~ p..ossuem talento, entu-
esquecemos de que já se t entou antes o capitalismo global. Na siasmo e uma espantosa capacidade de arrancar lucro praticamente
América Latina, por exemplo, reformas direcionadas à criação do nada. Podem compreender e usar a tecnologia moderna. De
de sistemas capitalistas foram ensaiadas ao menos quatro vezes outro modo, as empresas norte-americanas não estariam lutando
desde que esta se tornou independente da E spanha, em torno para controlar o uso desautorizado de suas patentes no estrangei-
de 1820. A cada vez, após a euforia inicial, os latino-americanos ro; nem estaria o governo dos EUA buscando tão desesperada-
afastaram-se das políticas do capitalismo e da economia de mer- mente manter a tecnologia das armas modernas longe das mãos
cado. Portanto, essas prescrições claramente não bastam. Na dos países do Terceiro Mundo. Mercados são uma tradição anti-
verdade, deixam tanto a desejar a ponto de serem quase irrele- ga e universal: Cristo enxotou os mercadores do templo dois mil
vantes. anos atrás, e os mexicanos levavam seus produtos ao mercado bem
Ql_:J~ndo esses remédios falham , a resp~o_cidental com antes de Colombo chegar à América.
fr~qiiência não é uestionar a adequação de suas soluções, e sim Mas se as pessoas dos países que estão fazendo a transição
c~lpar___s,s _povos do '"ferceiro M undo de falta de esp~ito em-pie- para o capitalismo não são pedintes dignos d e pena, não estão
sarial ou de vocaçã~ p~ra o mercado. Se esses povos fracassaram paralisados e indefesos por causa de costumes obsoletos e não
em prosperar apesar de todo o excelente aconselhamento, é são os prisioneiros sem discernimento de culturas anômalas, o
porque há algo errado com eles: ou fez-lhes falta a Reforma que impede o capitalismo de conceder-lhes a mesma riqueza
Protestante ou paralisou-lhes a herança incapacitante da Euro- concedida ao Ocidente? Por que o capitalismo floresce apenas
pa colonial ou têm o QI muito baixo. Mas sugerir que o fator no Ocidente, como se isolado em uma redoma de vidro?
cultural explica o sucesso de lugares tão diversos como o Japão, :,... ~este liv~o pr~~ndo demonstrar que o m_iliorobstáculo ara
a Suíça e a Califórnia, e que este mesmo fator pode explicar a que o r~_s!o d~ mundo s~ beneficie do capitalismo é ª sua__ inca-
pobreza relativa de lugares igualmente diversos como a China, acidade d~gerar capital. O capital é a força que aumenta a pro-
a Estônia e a Baja Califórnia, é mais do que desumano: não con- dutividade do trabalho e gera a riqueza das nações. É o sangue
vence. A disparidade da riqueza entre o Ocidente e o resto do vital do sistema capitalista, a base do progresso e a única coisa
mundo é por demais ampla para ser justificada apenas cultural- que os países pobres do mundo parecem não conseguir produ-
mente. A maioria das pessoas d eseja os frutos do capital, tanto zir para si mesmos, não importa o quão avidarn ente sua gente se
que muitos, dos filhos de Sanchez ao filho de Khrushchev: dedique a todas as outras atividades características de uma eco-
bandeiam para as nações ocidentais. ' nomia capitalista.
20 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 21

Também demonstrarei, com o auxílio de fatos e cifras que Em contraste, no Ociden te, toda parcela de terra, toda cons-
minha equipe de pesqu isa e eu coletamos de quarteirão em trução, todo equipamento ou estoque é representado em um
quarteirão e de propriedade rural em propriedade rural, na documento de propriedade, o sinal visível de um vasto proces-
Asia, na Africa, n o Oriente Médio e na América Latina, que a so oculto conectando todos esses ativos ao restante da econo-
maioria d as pessoas já possu i o s ativos necessários para trans- mia. Graças a esse processo de representação, os ativos podem
formar o capitalismo num s ucesso. Mesmo nos países mais levar uma vida invisível, paralela à s ua existência material. Po-
pobres, os pobres economizam. O valor de suas economias dem ser u sados como garantia na obtenção de crédito. A mais
é, com efeito, imenso: quarenta vezes o valor de toda a ajuda importante fonte de fundos das empresas iniciantes n orte-ame-
estrangeira recebida desde 1945. No Egito, por exemplo, a ricanas é a hipoteca da casa do empresário. E sses ativos servem
riqueza acumulada pelos pobres vale cinqüenta e cinco vezes também como e lo com a história financeira de seus donos, pro-
mais do que a soma de todo o investimento estrangeiro dire- porcionam u m endereço verificável e responsável para a coleta
to jamais lá registrado, incluindo o C anal de Suez e a Repre- de dív idas e taxas, fornecem a base para a criação de serviços pú-
sa d e Assuã. blicos confiáveis e universa is e facilitam a criação de valores
No Haiti, a nação mais pobre da América Latina, o valor total (como títulos cobertos por hipotecas) que podem ser desconta-
dos ativos dos pobres é mais de cento e cinqüenta vezes todo o dos e vendidos em mercados secundários. Por meio desse pro-
investimento estrangeiro recebido desde sua independência da cesso o Ocidente injeta vida em seus ativos, fazendo-os gerar
França em 1804. Se os EUA elevassem o seu orçamento para capital.
ajuda estrangeira ao nível r ecomendado p elas Nações Unidas As nações do Terceiro M undo e do extinto bloco comunista
-0,7 por cento da renda nacional - , o país mais rico da Terra não possuem esse processo de representação. Como resultado, em
levaria mais de cento e cinqüenta anos para transferir aos po- sua maioria estão subcapitalizadas, do mesmo modo que uma
bres do mundo recursos equivalentes aos que estes já possuem. empresa está subcapitalizada quando emite valores menores do
Mas são posses defectivas, as suas: casas construídas em ter- que sua renda e seus ativos justificariam. As empresas dos pobres
ras cujos direitos de propr iedade não estão adequadamen te se parecem muito com corporações que não podem emitir ações
registrados, empresas sem constituição legal e sem obrigações ou apólices para a o btenção de novos investimentos e financia-
definidas, indústrias localizadas onde financistas e investidores mentos. Sem representações, seu s ativos são capital morto.
não as podem ver. Porque os direitos de propriedade não são Os habitantes pobres dessas nações - a grande maioria -
adequadamente documentados, esses ativos não podem se trans- possuem bens, mas falta-!hes o pi:-oc~sso de_r~ resentar suas
formar de pronto em capita l, não podem ser trocados fora dos propriedades e gerar capital. Possuem casas, mas não suas escri-
estreitos círculos locais onde as pessoas se conhecem e confiam t~olheitas, mas não os documentos d e posse da terra;
umas nas outras, n em servir como garantia a empréstimos e empresas, mas não os estatutos de incorporação. É a indispo-
participação em investimentos. nibilidade dessas representações essenciais que explica por que
22 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 23

esses povos que adaptaram todas as outras invenções ocidentais, A ausência desse processo, nas regiões mais pobres do mundo
do clipe de papel ao reator nuclear, não foram capazes de pro- onde cinco sextos da humanidade vive, não é conseqüência de
duzir o capital suficiente para fazer funcionar seu capitalismo alguma conspiração monopolista ocidental. Na verdade, os oci-
doméstico. dentais consideram esse processo tão corriqueiro que perderam
É este o mistério do capital. Solucioná-lo requer compreender toda a consciência de sua existência. Embora enorme, ninguém
por que os ocidentais, representando seus ativos por títulos, são o vê, incluindo os norte-americanos, os europeus e os japone-
capazes de enxergar e extrair deles capital. Um dos maiores desafios ses, que devem toda a sua riqueza à sua capacidade de usá-lo.
à mente humana é compreender e ganhar acesso àquilo que sabe- Trata-se de uma infra- estrutura legal implícita, oculta bem ao
mos existir mas não podemos ver. Nem tudo que é real e útil é tan- fundo de seus sistemas de propriedade da qual a posse não é mais
gível e visível. O tempo, por exemplo, é real, mas só pode ser do que a ponta do iceberg. O resto d o iceberg é um intricado pro-
administrado com eficácia q uando representado por um relógio ou cesso construído pelo homem , que pode transformar seus ati-
calendário. Ao longo da história, os seres humanos inventaram sis- vos e seu trabalho em capital. Esse processo não foi elaborado
temas de representação - a escrita, a notação musical, a contabili- de um plano e não vem descrito em um folheto de capa brilhante.
dade paralela - para compreenderem com a mente o que as mãos Suas origens são obscuras, e sua significância jaz enterrada no
humanas não poderiam jamais tocar. Do mesmo modo, os grandes subconsciente econômico das nações capitalistas ocidentais.
praticantes do capitalismo, desde os criadores do sistema integrado Como algo tão importante pôde escapulir à nossa observa-
de títulos e ações corporativas até Michael Milken, foram capazes ção? Não é raro sabermos como usar as coisas sem compreen-
de revelar e e>..'trairo capital de onde outros apenas enxergaram lixo, dermos como funcionam. Marinheiros usavam compassos
inventando novas formas de representar o potencial invisível tran- magnéticos bem antes da existência de uma teoria satisfatória
cado nos ativos que acumulamos. sobre o magnetismo. Criadores de animais possuíam um conhe-
Neste exato momento estamos cercados por o ndas emitidas cimento funcional da genética bem antes de seus princípios
pela televisão ucraniana, chin esa e brasileira; ondas que não serem explicados por Gregor Mendel. Mesmo enquanto o Oci-
pod emos ver. Cercam-nos, igualmente, ativos que abrigam ca- dente prospera devido a seu abundante capital, será que os oci-
pital invisível. Assim como as ondas da televisão ucraniana são dentais de fato compreendem a origem desse capital? Se não a
por demais fracas para que as sintamos diretamente, mas pode- compreendem, sempre subsiste a possibilidade de que o Oci-
mos, com a ajuda da Tv, deco dificá-las de modo a serem vistas dente possa prejudicar a fonte de sua própria força. Ser exato
e ouvidas, assim também pode o capital ser extraído e processa- acerca da fonte do capital também irá preparar o Ocidente para
do dos ativos. Mas só o Ocidente possui o processo necessário proteger-se e ao r esto do mundo tão logo a prosperidade do
para transformar o invisível em visível. É essa disparidade que momento ceda à crise certamente porvir. Então, a pergunta que
explica por que as nações ocidentais podem criar capital e o Ter- sempre surge em crises internacionais de novo ecoará: "O di-
ceiro Mundo e as antigas nações comunistas não. nheiro de quem será usado para sanar o problema?"
24 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 25

Até agora, os países ocidentais perman eceram felizes toman- do ao resto do mundo: "Vocês têm d e ser mais como nós." Na
d o inteiramente por certo os seu s sistemas de produção de capital verdade, o resto do mundo se parece muito aos EUA de um
e deixando sem registro sua história. Devemos recuperá-Ia. Este século atrás, quando este, também, era um país de Terceiro
livro é um esforço de reabrir a exploração da fonte do capital e, Mundo. Os políticos ocidentais tiv eram também, certa vez, de
co nseqü entemente, de explicar como se corrigirem os fracassos enfrentar os mesmos desafios dramáticos que os líderes dos paí-
econô m icos dos países pobres. Esses fracassos não têm n ada a ver ses em desenvolvimento e do extinto bloco comunista enfren-
com deficiências de heran ça cu ltural o u genética. Alguém saber ia tam hoje. Mas os seus sucessores pe rderam o contato com
apontar traços "culturais" comun s entre os latino-americanos e aqueles dias em que os pioneiros que desbravaram o Oeste nor-
os russos? Ainda assim, na última década, desde qu e essas du as te-americano estavam su bcapitalizados, pois raras vezes pos-
regiões iniciaram a construção d e um capitalismo sem capital, têm suíam os títulos das terras em que se assentavam e dos bens que
compartilhado os mesmos problemas políticos, sociais e econô-
possuíam. Dias em que Adam Smith saía às compras nos mer-
micos: d esigualdades gritantes, economias subterrâneas, máfias
cados negros, e os moleques de rua ingleses colhiam moed as
ubíquas, instab ilidade política, fuga de capital, d esrespeito flagrante
atiradas nas margens lamacentas do Tâmisa po r turistas dando
à lei. E sses problemas não se o riginaram nos m onastérios da Igreja
risadas. Dias em que os tecnocratas d e J ean- Baptiste Colbert
Ortodoxa ou por entre as trilhas dos incas.
executaram 16 mil pequenos empresários cujo único crime fora
M as não só os antigos países comun istas e d o Terceiro Mun -
fabricar e importar tecido de algodão estampado, violando o
do so frem desses problemas. O mesm o igualmente ocorr eu n os
código industrial da França.
EUA, em 1783, época em que o presidente George Washington
E ste passado é o presente de m u itas nações. As nações oci-
queixava- se de "bandidos(... ) coand o e d ispondo da nata do país
d entais integraram com tal sucesso os seus pobres às suas eco-
para prejuízo de muitos ". Esses "ban didos" eram colo n os e p e-
quenos empresários ilegais ocu pan d o terras que não lhes per- nomias que perderam até a lembrança de como o fizeram, de
tenciam. Duran te cem an os, tais homens lu taram po r direitos como teve início a criação do capital tempos atrás, quando, como
legais às terras e m ineradores reivind icaram concessões porque escreveu o historiador n orte-americano Gordon Wood, "algo
as leis d e dire itos de propriedade variavam de c idade a cidade e p ortentoso acontecia à sociedade e à cultura, algo que liberou as
de acampamento a acampamen to. Fazer c umprir os direitos de aspirações e energias das pessoas comuns como nunca antes na
propriedad e criou tamanho lam açal de inquietação e de antago- h istória n or te-americana". 1 E ste "algo portentoso" fo i os norte-
nismo por todo o jovem p a ís que o juiz da Suprema C orte, americanos e eu ropeus estarem prontos a estabelecer uma lei de
Joseph Story, se pergun tava em 1820 se os advogados algum dia propriedade formal e universal e inventar o processo de con-
conseguiriam reso lver o caso. versão mediante o qual a lei lhes permitiria gerar capital. Era o
Ocupação ilegal d e terras, bandidos e flagrante desrespeito à mom ento em que o Ocidente cruzava a linha de demarcação para
lei soam familiar? O s norte-americanos e europeus vêm dizen- o capitalismo bem-sucedido - quando o capitalismo deixaria
F

26 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 27

de ser um clube privado para tomar-se uma cultura popular, A O mistério da percepção política
quando os temíveis " bandidos" de George Washington transfor- Se há tanto capital morto no mundo, e nas mãos de tan-
mar-se-iam nos pioneiros h oje venerados pela cultura norte- tos pobres, por que os governos não tentaram explorar essa
amencana. r iqueza em potencial? Simplesmente por q ue a evidência
da qual precisavam apenas tornou-se acessível nos últi-
O paradoxo é tão claro quanto inquietante: o capital, o principal m os quarenta _anos, quando bilhões de pessoas por todo
componente do avanço econômico ocidental, é o que menos o mundo passaram de uma vida organizada em escala pe-
recebe atenção. Essa negligência envolveu-o em mistério - na q u ena para uma em escala maior. Essa migração às cida-
verdad e, em uma série de cinco m istérios. des r apidamente dividiu o trabalho e d esovou nos países
mais p obres uma enorme revolução industriaVcomercial
A O mistério da informação ausen te - revo lução que, por incrível que pareça, tem sido vir-
As organizações de caridade tanto enfatizaram as misérias e tu almente ignorada.
o status de indefesos dos pobres do mundo, que ninguém
documentou apropriadamente as suas capacidades na acu- A As lições esquecidas da história dos EUA
m u lação de ativos. Durante os ú ltimos cinco anos, eu e mais O que vem acontecendo no Terceiro Mundo e nos antigos
cem colegas de seis nações diferentes fechamos nossos li- p aíses comunistas já aconteceu antes na Europa e nos Esta-
vros e abrimos nossos olhos; saímos às ruas e aos campos de d os Unidos. Infelizmente, temos ficado tão hipnotizados
quatro continentes para computarmos o quanto os setores p elo fracasso de tantas nações na transição para o capitalis-
mais p obres da sociedade têm poupado. A quantia é enor- mo que agora esquecemos como esta ocorreu nas bem-
me. Mas é, em sua maior parte, capital morto. sucedidas nações capitalistas. Durante anos v isitei tecnocratas
e políticos em nações desenvolvidas, do Alasca a Tóquio, mas
A O mistério do capi tal
eles n ão tinham a resposta. Era um mistério. Finalmente a
É este o mistério-chave e peça central deste livro. O capital encontrei em seus livros de histór ia - o exemplo mais per-
é um tema que tem fascinado pensadores nos últimos três tinente sendo o da história dos EUA.
séculos. Marx afirmou ser preciso ir a lém da física para se
tocar "a galinha dos ovos de ouro"; Adam Smith o pinava ser A O mistério do fracasso legal: por que a lei de propriedade
preciso c riar "u m tipo de caminho aéreo" para se alcançar não funciona fora do Ocidente
esta mesma galinha. Mas ninguém nos d isse onde se escon- Desde o século XIX, as nações vêm copiando as leis do Od-
d e esta galinha. O que é o capital, como é produzido e co mo
den te para conceder a seus povos uma infra-estrutura insti-
se r elaciona com o dinheiro?
tucional para a produção de riqueza. Contin uam hoje a
copiar essas leis, e, obviamente, n·ã o dá certo. A maioria dos
28 HERNANDO DE SOTO

cidadãos não pode usar a lei para converter suas economias


em capital. O porquê disso e o que é preciso para fazer a
lei funcionar permanece um mistério ·
2
A solução de cada um desses mistérios será o tema de um capí-
tulo neste livro.
o mistério da informação ausente
Chegou o momento de explicar por que o capitalismo triunfa
no Ocidente e fracassa em praticamente todas as outras partes.
Como todas as alternativas plausíveis ao capitalismo já agora se
evaporaram, estamos finalmente em condição de estudar o ca- Ao longo dos anos, a economia tomou-se mais e mais abstrata e divorciada
pital desapaixonada e minuciosamente. dos acontecimentos do mundo real. Em geral, os economistas não estudam
ofuncionamento do sistema econômico em si. Teorizam a seu respeito.
Como Ely Devons, um economista inglês, observou certa vez em um
encontro: "Se os economistas desejassem estudar o cavalo, não observariam
cavai.os. Sentar-se- iam em seus escritórios a se perguntar: 'O que eu faria
sefosse um cavalo?"'

RoNALD H. CoASF., The Task ofSociety

Imagine um país onde ninguém consegue identificar quem é


d ono de quê. Um país onde endereços não podem ser conferi-
dos fac ilmente, e não se tem como obrigar as pessoas a saldarem
suas dívidas. Onde não se consegue transformar conveniente-
mente recursos em dinheiro, nem posses em ações. Onde não
se padr onizam as descrições de ativos, portanto não se pode
compará-los. Onde as normas que regem a propriedade variam
de um bairro a outro, ou m esmo de uma rua a outra. Acabamos
de imaginar a v ida num país em desenvolvimento ou no extinto
bloco comunista. Mais precisamente, a vida de 80 por cento de
suas populações - maioria que leva uma vida tão marcadamente
30 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRI O DO CAPITAL 31

diferente da de suas elites ocidentalizadas quanto a d os brancos todos os três jamais ter em posto os olhos no terreno. Enquan to
e dos negros sul-africanos durante o apartheid. isso , o país enchia-se de imigrantes que demarcavam fronteiras,
Essa maioria de 80 por cento não é, como os ocidentais com cultivavam campos, construíam casas, transfer iam terras e esta-
freqüência supõem, desesperadamente empobrecida. A despei- beleciam crédito, muito antes d e os governos conferirem-lhes o s
to d e sua óbvia pobreza, mesmo aqueles vivendo sob o s regimes direitos de se entregarem a essas atividades. E ram o s tempos dos
m ais grosseiramente desiguais possuem muito além do que ja- pio n eiros e do "Oeste B ravio". U ma das razões de este ser tão
m ais foi constatado. No entanto, o que possu em não é repre- bravio era que os pion eiros, na maior parte invasores, "insistiam
sentado de modo a produzir valo r es agregados. Ao se pôr O p é que o trabalho, e não as escrituras formais o u linhas de fronteira
fora do Hilton no Nilo, o que se deixa para trás não é o mundo arbitrárias, dava valor à terra e estabelecia sua posse''. 1 Acredita-
d a alta tecnologia - dos faxes e geladeiras , das te levisões e anti- vam que, se ocupassem uma terra e a valorizassem com casas e
bióticos. As pessoas no Cairo têm acesso a tudo isso. O que se lavouras, esta lhes pertencia. O s governos estaduais e federais
d eixa para trás é o mundo das tran sações controladas por nor- pensavam diferente. Enviavam tropas para queimar lavouras e
m as q u e estabelecem os direitos d e propriedade. Hipotecas e d estruir construções. O s colonos defendiam-se. Com a partida
end ereços verificáveis que respondam por co branças e gerem dos soldados, os colonos reconstruíam tudo e re to rnavam a cavar
riquezas adicio n ais não existem n o C airo mesmo para aqueles a sub sistência. É esse passado o presente do Terceiro Mundo.
qu e con sideraríamos bastante ricos. Fora do Cairo, a lgun s dos
m a is pobres entre os pobres moram em uma zona de antigas
tumbas conhecida como "a cidad e d os m ortos ". Mas quase todo Uma revolução surpresa
o Cairo é u ma cidade de mortos - de capitais mortos, de ativos
que não podem ser totalmente apro v_e itados. As instituições que Antes de 1950, os países do Terceiro Mundo eram, na maior parte,
dão vida ao capital - que nos permitem assegurar a participa- sociedades agrícolas organizadas de tal forma que faria um euro-
ção d e terceiros em nossos trabalhos e ativos - não existem lá. peu d o século XVIII sentir-se em casa. A maioria das pessoas traba-
Para compreendermos como isso é possível, devemos exami- lhava na terra, que pertencia a pouquíssimos: uns, oligarcas nativos,
nar o século XIX, q uando os E stados Unidos esculpiam uma so- outros, fazendeiros coloniais. As cidades eram pequenas e funcio-
ciedade de su a própria rusticidade. Haviam herdad o da Inglaterra navam como mercados e portos em vez de centros industriais; do-
não apen as uma lei de terras terrivelmente complexa, mas tam- minava-as uma peq u ena elite mercantil q ue protegia seus próprios
bém um am plo sistema d e concessões sobrepostas dessas terras. interesses por um denso invólucro de leis e regulamentações.
Um mesmo terreno poderia p ertencer a alguém que o r ecebera Depois d e 1950, iniciou-se no Terceiro Mundo uma revo-
da Coroa Britânica como parte d e uma vasta concessão, a um outro lução econô mica similar aos distúrbios sociais e econômicos
que afirmava tê-lo comprado de uma tribo de índios e a um ter- europeu s d e 1800. As novas máquinas diminuíam a demanda
ceiro que o aceitara d e uma assembléia estadual como salário - e de trabalho rural, assim como os novos r emédios e m étodos
32 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 33

na saúde pública r eduziam as taxas de mortalidade infantil e Os obstáculos à legalidade


prolongavam a expectativa m édia de v ida. Logo, centenas de
milhares de pessoas rodavam p elas novas estradas em direção Para termos uma idéia das dificuldades da vida de um migrante,
às cidades tão tentadoramente descritas n os novos programas minha equipe de pesquisa e eu abrimos uma pequena oficina
de rádio. para confecção de roupas nos subúrbios de Lima. N osso objeti-
A população das cidades começou a crescer de forma rápi- vo era criar um novo negócio totalmente legalizado. M inha equi-
da. Somente na China, mais d e 100 milhões de pessoas mud a- pe começou, então, a preencher formulários, entrar em filas e
ram-se dos campos para as cidades desde 1979. Entre 1950 e enfrentar as viagens de ônibu s ao centro de Lima para a obten -
1988, a população metropolitana de Port-au-Prince aumentou ção de todas as certidões exigidas para a operação, segundo a lei,
de 140.000 para 1.550.000. Em 1988, aproximava-se de 2 mi- de uma pequena empresa no Peru. Despenderam seis horas diá-
lhões. Quase d o is terços dessas pessoas moram em favelas. Os rias e por firn a empresa estava registrada - 289 dias depois.
peritos já se d esesperavam por esse crescimento populacional Embora a oficina fosse projetada para operar com um só op erá-
repentino nas cidades em 1973, bem antes da ocorrência do r io, o cu sto do registro legal foi de US$1.231-31 vezes o valor
maior influxo. "Tudo acontece como se a cidade estivesse aca- de um salário mínimo mensal. Para obtermos autorização legal
bando", escreveu um urbanista. "Construção d escontrolada, em para a construção de uma casa em terras estatais consumimos
qualquer lugar e de qualquer modo. O sistema d e esgotos não seis anos e onze meses - sendo necessárias 207 etapas admi-
dá vazão às águas das chuvas e entope diariamente. A população nistrativas em 52 repartições governamentais (veja Figura 2.1).
se concentra em áreas onde não há infra-estrutura sanitária. As Para obtermos a escritura legal do terren o desta mesma casa, 728
calçadas da Avenue Dessalines estão literalmente tomadas por etapas foram c umpridas. Também descobrimos que u m moto-
vendedores ambulantes. Esta cidade tomou-se inabitável."2 rista de ônibu s particular, de uma condução o u táxi que deseje
Poucos haviam previsto essa enorme transformação no modo obter o reconhecimento oficial de seu trajeto e nfrenta 26 meses
d e vida e de trabalho das pessoas. Teorias sobre "desenvolvimen- de burocracia.
to" em dia com a moda buscavam levar a modernidade para o Minha equipe d e pesquisa, com auxiliares locais, vem repe-
campo. Os camponeses não deveriam estar vindo às cidades em tindo experiências similares em outros países. Os obstáculos não
busca do século XX. Porém, dezenas de m ilhares vinham mes- são m enos formidáveis do que os encontrados no Peru; muitas
mo assim, apesar das crescentes r eações hostis. Confrontavam- vezes, foram aind a mais desanimadores. Nas Filipinas, se uma
se com uma muralha impenetrável de r egras barrando- os das pessoa constrói em um terren o urbano, seja estatal o u particu-
atividades sociais e econômicas estabelecidas legalmente. Para lar, para legalizar sua moradia precisa formar uma associação d e
esses novos habitantes da c idade era tremendamente difícil a vizinh os se qualificando ao programa do Estado para financia-
aquisição d e m oradias legalizadas, a particip ação em negócios mento habitacional. Todo o processo pode tomar 168 etapas,
formais ou empregos legais. envolver 53 agências públicas e privadas e levar de 13 a 25 anos
il
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ci.. O MISTÉRIO DO CAPITAL 35

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- (veja Figura 2.2) . E isso, pressupondo-se que o programa es-
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tatal de financiam ento tenha fundo s suficientes. Se acontece
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d e a moradia estar em uma área ainda considerada "agríco-
- la", a pessoa terá d e so luc io nar empecilhos adicionais par a
•• ;=::!~ converter essa terra ao uso urbano - 45 procedimentos bu-
-~ '"' rocráticos ante 13 entidades, som ando outros dois anos à sua
11 ~- __,. luta.
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1.~ 1
No Egito, quem deseja adquirir e registrar legalmente um
terreno em terras do deserto de propriedade estatal d eve perfa-
,_ zer no mínimo 77 procedimen tos burocráticos e percorrer 31
1• --:. :;.
... =~. . órgãos públicos e pr1vados (veja Figura 2.3). O que pode levar

-~- •:. ' de 5 a 14 anos. A construção de uma moradia legalizada em ter-


reno antes agrícola tomaria de 6 a 11 anos de bata.lhas burocrá-
1• &~
- • ticas, talvez m ais. Isso explica por que 4,7 milhões d e egípcios
· ~~ optaram por construir su as moradias ilegalmente. Se, depois d e
i

.
•-:;:. construir su a casa, você d ecidir que agora gostaria de ser um
•-
•~, cidadão obediente da lei e comprar os direitos à sua moradia, se
arrisca a tê-la demolida, a pagar uma alta multa e a passar até dez
r-• 1
anos na prisão.
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N o Haiti, u ma das formas de um cidadão comum assentar-
se legalmente em terras governamentais é antes arrendar essa
terra do governo por cinco anos para depois comprá-la. Traba-

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lhando com assistentes no H aiti, nossos p esquisadores des-
cobriram que tal contrato de arrendamento exigia 65 medidas

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total para se legalizar um terreno no Haiti: 19 anos. Ainda as-
sim, mesmo essa longa provação n ão garantirá que a proprieda-
de permaneça legal.
Figura 2.1
Os procedimentos de formalização de uma moradia obtida legalmente no
Peru consistem em 5 etapas; s6 a primeira envolve 200 fases
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Fim

1. ACESSO À TERRII. NO DESERTO PARA 11. OBTENDO UMA LICENÇA 111. REGISTRO FORMAL
DESENVOLVIMENTO URBANO PESSOAL DE CONSTRUÇÃO DA PROPRIEDADE
111 (s.t1P~1) •M~otoumm

O M ISTÉRIO DO CAPITAL 39
'" ('tlfl Sf l) OltilOO> op
onsi61J • ,.-u~s• 'P>!ICIIJd
f ...l-Uxt tpOl~adll] li)(

E m todos os países investigados descobrimos q u e é quase


' (~Pí&l°'""'l tão difícil permanecer legal quanto tornar-se legal. Sendo assim, não
op JO!l'A op 0'11.lnll'Õtd I
O)MUO) 00 01MJed1.14 IX
são bem os migran tes quem q u ebram as leis, e sim as leis que os
quebram - inevitavelmente, acabam optando po r ficar fora do
sistema. Em 1976, dois terços dos trabalhado res na Venezuela
eram empregados de empreendimen tos estabelecidos legalmen_-
Wll>!Pfül
ou,J~• op ot")t/:r.Av ·x
te; hoje, a proporção caiu para menos da m etade. Trinta anos
atrás, mais de dois terços das novas moradias construídas no
(tf!P9ZI)
Brasil visavam o aluguel. H oj e, apenas cerca de 3 por cento das
1)1:Jqt'Cf•i ,P l)U'9!~Jd o,IJd Jtj
19 o,W!SjnWOld • t ffll!U!H\f )O novas construções é oficialmen te registrada com o moradia de
aluguel. Para o nde fo i esse m ercado? Para as áreas extralegais das
cidades brasileiras c hamadas favelas, que op eram fora da alta re-
!Jf19W)~,:,P-.-,O)OU~,i,
0~09,..,IIU!ffl,"fll.~1"
gulamentação da economia formal e fun cionam segundo oferta
e procura.
........
(•!P tou 1•1 •P
o~~Jd op opt.l)(lff3 Ili
Uma vez fora do sistema, esses recém-chegados tomam-se
"extralegais". Só lhes resta a alternativa de viver e trabalhar fora
(s~ ZU WllS!U!~ '°P
,t OllpwGJ ou ctW.\OJdy "/\

(ll'!P lBC) WJ•>t1td VI~ IP


da lei oficial, utilizando seus próprios acordos informais de com-
.,' Of}l'Jrdlld IWJ~ !WSO
sop0l 1' Of~IIJnWO) "/\1
promisso na proteção e m o bilização de seus ativos. Esses acor-
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dos são o resultado de uma combinação de regras seletivamente
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emprestadas do sistema legal oficial, improvisações e costumes
>->- V'l V'l
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trazidos ad hoc de seus locais de origem ou localmente elabora-
>- >- V'l C)
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dos. São m antidos po r um contrato social apoiado pela comu-
>- - '
1- - ...... .-- "
>- -
>-- ;: ~...
' nidade como um todo e reforçado por a utoridades escolhidas
da comunidade. Esses con tratos sociais extralegais criaram um
:
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'9 tpi,,M ,p OU.ll.UO)
wiilPoi.-M'tJa~l
setor vibrante, mas s ubcapitalizado: o centro do mundo dos
!•f!i pobres.

F igura 2.4
Procedimentos para obtenção d e um contrato de com p ra (ve nce) após o
contrato d e arre ndam ento d e 5 anos no Haiti
40 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 41

O setor subcapitalizado Nacional de Estatística mexicano, em 1994, de computar o


número de "microônibus" informais em todo o país alcançou
Embora os migrantes tenham escapado da lei, não se retraíram o total de 2,65 milhões .
na indolência. Setores su bcapitalizados por todo o Terceiro Todos esses são exemplos reais da vida econômica no setor
Mundo e países antes comunistas fervilham com trabalho ár- subcapitalizado da sociedade. Nos antigos países comunistas
duo e engenhosidade. Indústrias caseiras de fundo de quintal encontram-se atividades extralegais ainda mais sofisticadas, desde
brotaram por todos os lados; fabricam de tudo, de roupas e cal- a produção de hardware e seftware até a fabricação de jatos de caça
çados até imitações dos relógios Cartier e das bolsas Vuitton. vendidos ao estrangeiro.
Oficinas constroem e reconstroem máquinas, carros, ônibus. Os Claro, a história da Rússia é bem diferente da de países do
novos pobres urbanos criaram indústrias e bairros inteiros qu e Terceiro Mundo como o Haiti e as Filipinas. Não obstante, desde
operam com conexões clandestinas de água e luz. Há até den- o colapso do comunismo, os antigos estados soviéticos caíram
tistas fazendo obturações sem licença. nesses mesmos padrões de posse informal. Em 1995, a Business
Mas essa não é só uma história de pobres servindo a pobres. Uiéek relatou que na Rússia, quatro anos após o fim do comu-
Esses novos empresários igualmente preenchem as lacunas da n ismo, somente "uns 280 mil fazendeiros, de um total d e 10
economia legal. Os ônibus, conduções e táxis sem au torização milhões, têm a posse de suas terras". Outra reportagem p inta
respondem por grande parte do transporte público em muitos um quadro similar ao do Terceiro Mundo: "[Na antiga União
dos países em desenvolv imento . Em algumas regiões do Tercei- Soviética] os direitos de propriedade privada, de u so e de alie-
ro Mundo, são os vendedor es das favelas que fornecem a maio- nação de terras são inadequadamente definidos e n ão recebem
r ia dos alimentos d isponíveis no mercado, seja em suas carroças proteção clara na lei (...) Os mecanismos usados na econom ia
n as ruas ou nas pequenas barracas montadas em mercados tam- de mercado para proteger os direitos da terra ainda engatinham
bém por eles construídos. (...) O próprio Estado continua a restringir os direitos ao uso de
Em 1993, a Câmara do Comércio do México estimou se- terras que não lhe pertencem."3 Estimativas baseadas no con su-
r em 150 mil as barracas de vendedores de rua n o Distrito Fe- mo de eletricidade indicam que entre 1989 e 1994 a atividade
deral d a Cidade do México, com um adicional de 293 m il em informal n os antigos estados soviéticos cresceu de 12 por cento
43 o utros centros mexicanos. Essas minúsculas barracas têm para 37 por cento da produção total. Alguns estimam ser ainda
em média 1,50 cm de largura. Se os vendedores mexicanos as mais alta essa proporção.
alinhassem em uma única rua, sem espaços entre elas, for m a- Nada disso será novidade para quem vive fora do Ocid ente.
riam uma fila contínua de mais de 21 O quilômetros de com - Basta-nos abrir uma janela ou tomar um táxi do aeroporto ao
pr imento. Milhares e milhares d e pessoas trabalham no setor hotel para nos depararmos com perímetros urbanos apinhados
extralegal - nas ruas, nos seu_s lares, nas loj as, escr itórios e de casebres, verdadeiros exércitos de vendedores apregoando
oficinas sem registros da cidade. Uma tentativa d o Instituto mercadorias nas ruas, vislumbres de oficinas atribuladas por trás
42 HERNANDO DE SOTO O MI STÉRIO DO CAPITAL 43

de portas de garagens, enquanto os ônibus amassados cruzam resultados, ç__oncentram o-nos no m ais tangível e d etectável dos
ruas sujas. A-extralegalidade é com freqüência considerada uma ativos: o imóvel.
,,
questão de-pobreza, de desemprego, um assunto margina ~ e=.
. r~
Ao contrário da venda de alimentos o u de calçad os, da me-
m elhante...ao dos mercados n e ~ nas nações a~tad~ O cânica d e automóveis ou das falsificações de relógios Cartier -
~ o extralegal é tido geralmente como um lugar por onde tod as atividades difíceis de serem computadas e mais ainda ava-
circulam gângsteres, um lugar de per sonagens sinistros que in- liadas - , as çm:is_truçôes n~odem .se es.c..QJ1d er. Podemos es-
teressam apenas à polícia, aos antropó logos e aos missionários. tabelecer os seus valores simplesmente levantando o custo dos
~ e , margin~! é a le alidade·_a ~xtralegalidade tor- materiais de construção e observando o preço de venda d e pré-
n ou -se a norma. Os pobres já tom aram o controle de vastas dios comparáveis. Passamos muitos milhues de dias contando
q__uantidades de imóveis e de produção. As agências intema~io- prédios, quarteirão por quarteirão. Sempre que a utorizados,
n ais despachando seu s con su ltores às reluzentes torres d e vidro publicávamos os resultados obtidos em cada país,' para que fos-
nos quadrantes elegantes das cidades para reuniões com o "se- sem abertamente discutidos e criticados. C om a colaboração das
tor privado" estão falando tão-só com uma fração do mundo pessoas d o local, testamos e retestamos nossos métodos e resul-
empresarial. O s poderes econômicos emergentes do Terceiro tados.
M undo e das nações do extinto bloco comunista são os coleto- D escobrimos que os modos de construção n o setor subca-
res de lixo, os fabricantes de eletrodomésticos e as companhias pitalizado variam tanto quan~ o s em~ilhos legais a serem
ilegais de construção, todos situados nas ruas bem abaixo dessas d_riblados. O s gcm~ os mais óbvios são os barracos7onstruídos
torres. A única verdadeira escolha dos governos d ~ ~s nações é em terras do governo. Mas n ossos pesquisadores descobriram
se vão integrar esses recursos em uma estrutura legal ordenada muitos Q_utros m~~ criariYos de se burlar as leis de pro-
~ coerente ou continuarão a viver em anarquia. priedade. N o Peru, por exemplo, as pessoas formavam coo~-
rativas agrícolas para comprar terrenos dos a ntigos donos e
convertê-los em assentamentos habitacion ais o u industriãis .
Quanto capital morto? Porque não existem meios legais fáceis para a transferência de -
posse de terras, os fazendeiros das cooperativas de propriedade
Buscando m edir o valor das posses dos que são mantidos fora estatais su.bdiYióem..ilega.l mente essas terras em parcelas meno-
da economia capitalizada por leis discriminatórias, meus pesqui- res de propriedade privada. Como r esultado uase ninguém
sador es, com o auxílio de competentes profissionais locais, exe- possui uma escritura válida de suas terra~. Em P<2!_'t-au -Pr.ince,
cutaram vários levantamento} nas últimas décadas em cinco mesmo as propriedades bastante caras mudam d e mãos sem .9u e
cidades do Terceiro M undo: Cairo, Lima, Manila, Cidade do alguém se importe de informar o cartóriot que, de qualquer for-
México e Port-au-Prince. (O;;esultados estão resumidos nos ~ está irremediavelmente atrasado em seu s registros. Em
diagra~ do Apêndice). Para uma m aior confiança em nossos Manila, moradias surgem em zoneamentos para uso industrial
44 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRI O DO CAPITA L 45

exclusivo. No Cairo, os moradores dos antigos projetos públi- volvido . Mas é nesse setor que a maioria vive. Um mundo onde
cos de habi;;ção- de quatro andares constroem tr.ês___ancJares ik- é difícil com rovar e~ li~ar a pos~qos ativ_os...~ que não é go-
gais no alt; de seus préd~os e vendem os apartamentos a parentes vernado.por nenhum.conj unto de regras de fác il reconhec~e"õ-:.
;;;_ outros clientes. Também n o Cairo, locatários legais de apar- to; onde os atributos econ ômicos potencialment~ ú~ is dos ai~~
tamentos cujos aluguéis foram congelados n os prime iros anos não fora~ critos ou organizado~; o~d_e._!!SSê_não .eodem ser
de 1950 em valores que hoje valem menos d e um dólar ao ano usados na obtenção de valores excedentes por m eio de múlti-
subdividem essas propriedades e as alugam a preços de mercado . ---:--;::::::-:::::-:::-==-=====~"""',-:--=~---=-=--
pias transaçoes porque suas naturezas variáveis --:-;-......_ -e- su- as__i_n-.-,e-
Algumas das habitações do seto r s ubcapitalízado foram terminações deixam m argem ao mal-entendido, aos enganos de
extralegais desde o seu primeiro dia, construídas em v iolação a memória e à revogação d e contrato. R esumindo, um munde -
todo tipo de lei. Outras constru ções - as casas de Port-au- onde...a maior.@ dos ativos é ca ittl..m._on.o.
Prince, os apar tamentos com o aluguel congelado no Cairo -
or iginaram-se no sistem a legal mas, depois, quando a obediên-
cia à lei tornou-se por demais custosa e complicada, optaram pela Quanto vale este capital morto?
e:xtralegalidade. Por uma ou outra v ia, quase todas as habitações
nas cidades pesquisadas fugiram da estrutura legal e das leis que, Verdadeiras montanhas d e capital morto se alinham n as ruas de
em tese, proporcionariam a seu s proprietários representações e todos os países em desenvolvim ento e nações previamente co-
instituições para gerar capital. Talv ez ainda haja escrituras ou munistas. Nas Filipinas, segundo os nossos cálculos, 57 por cento
algum tipo de registro nas mãos de alguém, mas o verdadeiro dos m o radores das c idades e 67 por cento dos das áreas rurais
status de proprietário desses ativos esgueirou-se para fora do sis- vivem em habitações que são capital m orto. No Peru, 53 por
tema de r egistros oficiais , deixando esses registros e mapas cento dos moradores das cidades e 81 p or cento dos das áreas
desatualizados. O resultado é que os recursos de uma grande rurais habitam moradias extralegais.
maioria são comercial e financeiramente inv isíveis. N inguém As cifras são ainda mais extremas no Haiti e no Egito. N o
sabe na realidade quem tem o quê e onde, quem é o responsável Haiti, também segundo nosso levantam ento, 68 por cento dos
pelas obrigações, quem responde por perdas e fraudes, e quais moradores das cidades e 97 por cento dos das áreas rurais vivem
os mecanismos disponíveis para se fazer cumprir os pagamen- em moradias das quais ninguém possui uma escritura legal. No
tos pelos serviços e as mercadorias entregues. Como conseqüên - Egito esse capital m orto serve de habitação para 92 por cento
c ia, a maioria dos ativos em potencial desses países não foi dos moradores das cidades e 83 por cento dos das áreas rurais.
identificada ou convertida em dinheiro; h á pouco capital aces- Muitas dessas_habitaçõ.es não v~ ~ande c.oisa n q_s padrões
sível, e a economia de troca é limitada e vagarosa. ocidentais. Um barraco em Port-au-Prince pode ficar pela peque-
Esse quadro do setor subcapitalizado é enfaticamente dife- na quantia de US$500, uma cabana à beira de um canal poluído
rente do quadro de sabedoria convencional no mundo desen - em Manila somente US$2.700, uma casa mais o u menos razoá-
46 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 47

velem uma vila fora do Cairo, apenas US$5.000, e nos morros ao pital total das empresas estatais e 14 vezes o valor de todo o inves-
redor de Lima um bangalô respeitável com garagem e vista pano- timento estrangeiro direto.
râmica é avaliado em US$20.000. ~as ~ ~ ? j e nú1Ee!o de Talvez as Filipinas, também, sejam uma anomalia - algo a
tais habitações e, em conjunto, seus valores valem dramaticamente ver com o modo como o cristianismo se desenvolveu nas anti-
mais do que a soma total da riqueza dos ricos. gas colônias espanholas. Se for assim, consideremos o Egito(?
No Haiti, imóveis rurais e urbanos sem escrituras valem valor do capital morto em forma de imóveis no Egito é, de acor-
coletivamente cerca de US$5,2 bilhões. Pondo em contexto, essa ' do com a contagem feita com o auxílio de nossos colegas egíp-
soma é quatro vezes o valor total d e todos os ativos de todas as cios, de uns US$240 bilhões. Isso representa 30 vezes o valor de
empresas que operam legalm ente no Haiti, nove vezes o valor todas as ações da Bolsa d o Cairo e, como já mencionei, 55 vezes
total de todos os ativos do governo, e 158 vezes o valor de todo o valor de todo o investimento estrangeiro no Egito.
investimento estrangeiro direto jamais registrado na história do " Em todos os países estudados, a engenhosidade empresarial
Haiti até 1995. Será o Haiti uma exceção, uma parte da África dos pobres criou riqueza em larga escala - uma riqueza que,
francófona erroneamente transferida para o hemisfério ameri- de longe, também constitui a maior fonte de capital em poten-
cano, onde o regime Duvalier retardou o surgimento de um sis- cial para o desenvo lv imento . Esses ativos não apenas excedem
tema legal sistematizado? Pode ser. em muito os do governo, das bolsas de valores locais e dos in-
Consideremos então o Peru, um país hispano-indígena-ame- vestimentos estrangeiros diretos, são muitas vezes maiores que
ricano com tradição e constituição étnica bem diferentes. Q valQr toda a ajuda das nações desenvolvidas e todos os empréstimos
d s im~ eis rurai~ e urbanos extralegais no Peru monta a uns concedidos pelo Banco Mundial.
US$74 bi~õ~sJ.sso r~resenta cinco vezes o valor total da Bõlsa" Os resultados são ainda mais espantosos quando tomamos
E_e Lima antes da queda de 19~8, 11 vezes o valor das empresas e os dados desses quatro países estudados e os projetamos nos
-- ..- - ---=------- países do Terceiro Mundo e nos antigos países comunistas como
instalações governamentais com potencial de privatização, e 14
vezes o valor de todo _!?Vestimenta estrangeiro d i r e t o ~ _ um todo. Estimamos que cerca de 85 por cento das parcelas
toda a sua história documentada.. Podemos contrapor que a eco- urbanas nessas nações, e entre 40 e 53 por cento das rurais, são
nomia formal do Peru também foi atrofiada pelas antigas tradi- posses mantidas de tal forma que não podem ser usadas para gerar
ções do império inca, pelas influências corruptoras da Espanha capital. Avaliar todos esses ativos inevitavelmente acarretaria um
colonial e pela guerra recente com o maoísta Sendero Luminoso. número aproximado. Mas acreditamos que nossas estimativas
Muito bem, consideremos então as Filipinas, um antigo prote- sejam bem corretas e bastante conservadoras.
torado asiático dos EUA O valor de seus imóveis não escriturados - Por nossos cálculos, o valor total dos imóveis de posse
é US$133 bilhões, quatro vezes a capitalização das 216 empresas extralegal dos pobres no Terceiro Mundo e nas nações do ex-
nacionais listadas na Bolsa de Valores das Filipinas, sete vezes o to- .._ tinto bloco comunista é de pelo menos US$9,3 trilhões (veja
tal dos depósitos nos bancos comerciais do país, nove vezes o ca- Tabela 2.1).
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circulação. É aproximadamente o valor total de todas as empre-
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sas listadas n as principais bolsas de valores dos vinte países mais
-. desenvolvidos do mundo: as bolsas de Nova York, Tóquio, Lon-
dres, Frankfurt, Toronto, Paris, Milão, o pregão N asdaq e ou-
,-..
-
li\
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m _ tras dezenas. É mais de v inte vezes o total de investimentos
estrangeiros diretos em todo o Terceiro M undo e antigos países
comunistas nos dez anos seguintes a 1989, 46 vezes mais do que
li\
,- todos os empréstimos do Banco Mundial nas ú ltimas três déca-
das e 93 vezes m ais do que todo o auxílio para o desenvolvimento
concedido por todos os países desenvolvidos ao Terceiro Mun-
oz ....J ,... ,.._ ,.._
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a, <( 11'1..,. ..,. do no mesmo período.
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Hectares de diamantes

A expressão "pobreza internacional" facilmente traz à mente ima-


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a,
gens de pedintes destituídos dormindo nas sarjetas de Calcutá e
ã:
B crianças africanas morrendo de fome nas areias dos desertos. Essas
5
w
e:
QI
E cenas, é claro, são reais, e milhões d e nossos semelhantes deman-
'>
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i!:QI dam e merecem nossa ajuda. Não obstante,..essa imagem mais ater-
o
:e radora do Terceiro Mundo não é a mais precisa. Pior a~da, desvia
E
QI
:e nossa atenção das árduas conquistas daqueles pequenos empresá-
.,
,!a
a. rios que triunfaram sobre todos os obstácu los imagináveis, criando
~ a maior parte da riqueza de suas sociedad es. Uma imagem mais
;
o
verdadeira retrataria homens e mulheres meticulosamente poupan-
1/ 179 nações em desenvolvimento e antes comunistas.
21 Estima-se que 85¾ da parcela urbana seja informal. Foram: 1) construidas em violação de leis expressas; ou ii) não do para construírem moradia para si mesmos e seus filhos, criando
obedeceram às exigências de a cesso a terras; ou Ili) eram originalmente formais mas tornaram-se informais; ou lv)
foram construidas pelo governo sem obedecerem às exigências legais. empreendimentos onde ninguém imaginaria ser-possível Eu me
3/ Foram utilizados USS 3.973 por hectare de terras de lavoura e USS 138 por hectare de terras de pastagem.
ressinto de uma caracterização desses empreendedores heróicos
como contribuintes ao problema da pobreza global.
Tabela 2.1
Capital morto em imóveis urbanos e rurais mundialmenre (1997)
50 HERNANDO DE SOTO

Não são o problema. São a solução.


Nos anos seguintes à guerra civil norte-americana um con-
ferencista chamado Russell ConweH-'Z-iguezagueou pelos Esta-
dos Unidos com uma mensagem que estimulava milhões de
3
pessoas. E le contava a história de um comerciante índio a quem
um profeta prometera riqueZfS além da imaginação caso sou-
O mistério do capital
besse encontrar o seu tesouro.10 comerciante viajou pelo mun-
do todo, voltando a sua casa velho, triste e vencido. Ao reentrar
em sua casa abandonada teve sede, mas o poço de sua proprie-
dade secara. Cansado, pegou a pá e cavou um novo poço-, de
imediato encontrou Golconda, a maior mina de diamantes do
O sentido do mundo deve situar-sefora do mundo. No mundo tudo é
mundo.
como é e acontece como acontece. No mundo não há val.or- e se
É proveitosa a mensagem de Conwell. Líderes do Terceiro houvesse, não seria de valor.
Mundo e dos países antes comunistas não precisam errar por Se há um val.or de 11alor, deve situar-se fora de todos os acontecimentos
ministérios e instituições internacionais buscando suas fortunas. e existências. Pois todo acontecimento e existência é acidental.
E m meio a seus bairros mais pobres e favelas existem - se n ão O que concede sentido não pode situar-se no mundo, ou seria também
enormes extensões de diamantes - trilhõe11 de dólares prontos acidental.
a serem postos em uso, se apenas pudermos desvendar~ De11e situar-sefora do mundo.
r io de como se transformam ativos em capital vivo. _
LUDWIG WITTGENSTEIN, Tractatus Logico-Philosophicus

Caminhe pela m aioria das estradas do Oriente Médio, da antiga


União Soviética ou da América Latina e verá muitas coisas: ca-
sas servindo de abrigo, parcelas de terra sendo cultivadas, semea-
das e colhidas, mercadorias sendo compradas e vendida~. Os
ativos nos países em desenvolvimento e nos antes comunistas
servem principalmente a esses propósitos materiais imediatos.
Mas, no Ocidente, esses mesmos ativos também levam uma vida
paralela ao m undo físico sob a forma de capital. Podem ser usa-
dos para movimentar mais produção, assegurando o interesJ~_
de..ter~eiros como "garantia adicional" a uma hipoteca, por exem-
- - ----------
52 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 53

_elo, ou asse~ndp o fornecimento de outras formas d:_::édi- Pistas do passado (de Smith a Marx)
to e d e serviços públicos.
- - Por que os prédios e as terras das outras partes do mundo Para desvendarm os o mistér io do capital, temos de voltar ao sig-
n ão podem também levar uma vida paralela? Por que os enor- nificado seminal da palavra. Em latim m edieval, "capital" pare-
m es recursos discutidos no Capítulo 2 - US$9,3 trilhõesde ce ter se referido às cabeças de gado ou d e reban hos, que sempre
capital morto - não podem produzir um valor além do seu foram fontes importantes de riqueza, além da carne básica que
estado ''natural"? Minha resposta é: o capital morto existe po~_-::_ proporcionam. Rebanhos são posses de baixo custo ; são móveis,
que esquecemos (ou talvez nunca tenhamos percebido) que a e podem ser transportados para longe dos perigos; são também
conversão de u m ativo físico a uma forma que gera capital - fáceis d e contar e m edir. Porém, m ais importante, dos rebanhos
u t ilizando, por exemplo, uma casa para pedir um empréstimo podemos obter riquezas adicionais, ou valores exced entes, mo-
que financie um empreendimento - r.equer um processo bem vimentando outras indústrias como as do leite, do couro, da lã,
complicado. É semelhante ao processo ensinado-por Einstein , da carne e do combustível. O s r ebanhos também possuem o
no qual um único tijolo pode ser usado para liberar uma imensa atributo bem útil de serem capazes de reprodução. Assim, o ter-
qu antidade de energia sob forma de explosão atômica. Por ana- mo "capital" exerce duas funções simu ltân eas, captura a- dime~-
logia, o capital é o resultado da descoberta e da liberação da ener- são física dos ativos _(rebanhos) , assim como o seu potencial de
gia potencial dos trilhões de tijolos acumulados pelos pobres em gerar valor excedente. Dos estábulos, foi um pequeno passo às
suas con struções. escrivaninhas dos inventores da economia, que geralmente de-
Existe, porém, uma d iferença crucial en tre a liber ação da finem "capital" como aque la parte dos ativos de um país que dá
energia em um t ijolo e a liberação do capital nos tijolos edi- início à produção excedente e aumenta a produtividade.
ficados: ao passo que a humanidade (ou ao menos um bom Qs grandes economistas clássico s como Adam Smith e Karl
número de cientistas) dominou o processo de extração de ener- Marx acreditavam ser o capital o m otor de força da,_ ~cqnom.i'a-
gia da m atéria, parecem os ter esquecido o processo que nos p er- -o
d~ n_iercad.Q. c~ taf era_~onsiderado co o_a_p.a__rte princip.al
mitiria extrair capital dos ativos. O resultado é que 80 por cento do todo econômico - o fa tor preeminente em tais frases como
do mundo é subcapitalizado; essas pessoas não con seguem ex- questões capitais, pena capital, a cidade capital d e um país. Alme-
trair vida econômica de suas construções (ou nenhum outro javam compreender o que é o capital e com o é produzido e acu-
ativo) e gerar capital. Pior, as nações desen volvidas parecem in- mulado. Concordando ou não com os ecogomis~~ clássicos, ou
capazes de en sinar-lhes. Por qu e se consegu e que os ativos pro -
duzam capital abundante no Ocidente, m as m uito pou co capital
os julgando, quem sabe, irrelevantes (talvez Smith não t enha
--
percebido a Revolução Industrial se desenvolvendo, ou talvez a
~-----
no resto do mundo, é u m m istério. teoria trabalhista d e Marx sobre valor não tenha aplicação práti:
ca), não há dúvida de que esses pensadores construíramª..:> tor-
res de pensamento nas quais hoje nos situamos e tentamos
54 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRI O DO CAPITAL 55

descobrir o que é o capital, o que o produz e por que as nações Seria, por assim dizer, uma certa quantidade de trabalho estoca-

--
não-ocidentais geram tão pouco dele.
0_) Para_Smith a especialização - a di:<Lisão de trabalho e a sub-
do e armazenado para ser empregado, se necessário, em uma
outra ocasião".2 Smith advertiu que o trabalho investido na pro-
seqüente comercialização dos produtos no mercado - era a dução de ativos não deixaria nenhum rastro ou valor se não ade-
fonte d<? cres_cimento_produtivo ~ E9rtanto, a ~'riqueza daJ;..na- quadamentefixado.
ções". O que tornava possível a especialização e a comercialização O que Smith de fato pretendia dizer serviria de tema a um
era o capital, definido por Smith como o estoque de ativos acu- debate legítimo. O que apreendo dele, no entanto, é que o caei-
mulados visando à produtividade. Os empresários poderiam tal não é o estoque acumulado de ativos, mas o potencial que e~
utilizar os seu s recursos acumulados para apoiarem empreendi- tes têm de- desdobrarem-se em nova produção. Este potencial é,
mentos especializados, até poderem negociar os seus produtos obviamente, abstra!_o. Deve ser processado e fixado numa for-
trocando-os por outros de que necessitavam. Quanto mais c~- ma tangível antes de podermos libertá-lo - como a energia
pi_tal se acumulasse, mais a especialização seria possíve~~ maior nuclear potencial no tijolo de Einstein. Sem um processo de
a_produtividade da sociedade.. Marx concordava; para ele, a ri- conversão - q u e retire e fixe a energia potencial contida n o ti-
queza produzida pelo capitalismo se apresentava como u ~ jolo - não há explosão; um tijolo permanece tão-só um tijolo.
ime_11_s~1e1cadorias. - - - Gerar capital também requer um processo de conversão.
Smith acreditava que o· fenômeno do capital fosse conse- Essa noção - de que o capital é antes de tudo um conceito
qüência da progressão natural do ser humano de uma sociedade abstrato e deve receber uma dada forma fixa e tangível para ser
de caça, rural e agrícola, para uma comercial onde, pela interde- útil- era conhecida por outros economistas clássicos. Simonde
pendência, a especialização e o comércio, seus poderes produti- de Sismondi, o economista suíço do século XIX, escreveu que o
vos cresceriam imensamente. O capital se destinava a ser a mágica capital era "u m valor permanente q ue se multiplica e não pere-
que aumentaria a produtividade e c riaria valor excedente. "A ce(... ) H oje esse valor se desvincula do produto que o cria, tor-
quantidade de indústria", escreveu Smitl!, "não apenas çres.c..e em na-se uma quantia metafísica e insubstancial sempre na posse
todos...os..~unto com o aumento d~ u e [caeital) que a de que m quer que o produza, e para quem esse valor poderia
emprega, mas, em con seqüência desse crescimento, a mesma [ser fixado] em formas diversas".3 J ean Baptiste Say, o grande
quantidade de indústria produz uma quantidade muito maior economista francês, acreditava que "o capital é sempre de natu-
de trabalho ." 1 reza imaterial, já que não é a matéria que gera o capital mas o
Smi~h enfatizava um ponto que está bem no âmago do_mis- valor desta matéria, e o valor nada tem de corporal".4 Marx con-
t~io qu=5_entamos solucionar: para os ativos acum_ulados setor- cordava; para ele, uma mesa podia se constituir de algo material,
narem capital ativo e movimentarem produçõ~s adici..Qn;lis, como a m adeira, "mas tão logo passa a mercadoria, é m odifica-
pE_ecisam ser fixados e realizados em alguma coisa em particular "~e da em algo transcendente. Não só mantém seus pés no chão,
dure ao menos por algum tempo após o término do trabalho. mas, em sua r elação com todas as outras mercadorias, também
HERNANDO DE soro O MISTÉRIO DO CAPITAL 57
56

u sa a cabeça, e desenvolve em seu cérebro de madeira idéias com un istas são notórios por inflarem suas economias com di-
grotescas, bem mais admiráveis do que sua transformação em nheiro enquanto não são capazes de gerar muito capital.
mesa jamais foi".5
Esse significado essencial do capital se perdeu para a histó-
ria. O capital é hoje conf~ndido com dinh~in~.,_g~e é aeena_s..u.ma A energia potencial dos ativos
das muitas fo~em qtJe circt~i~. É sempre mais fácil lembrar-
mos um conceito difícil em uma de suas manifestações tangíveis O que é qu e fora o potencial de um ativo para que possa movi-
do que em sua essência. A mente se aconchega mais facilmente m entar u m a produção adicional? O que desvincula o valor de
em tomo de "dinheiro" do que de "capital". Mas é u m erro su - uma simples casa e o fixa de modo a nos permitir realizá-la como
por ser o dinheiro que por fim fixa o capital. Como Adam Smith capital?
apontou, o d inheiro é a "grande roda da circulação", m as não é Podemos com eçar a encontrar u ma r esposta usando nossa
capital, porque o valor "não pode consistir nesses p edaços de an alogia da energia. Imagine um _@gO em uma montanha. Po-
metal".6 Em outras palavras, o dinheiro facilita as transações, demos p ensar n esse lago em seu contexto físico im~ato e ver
permitindo-no s comprar e vender coisas, m as não é em si o pro- alguns primeiros usos para ele, tais como a canoagem e a pes-
genitor de produção adicional. Com o Sm ith insistiu, "o dinh ei- ca. Mas quan do pen samos nes te mesmo lago como o faria um
ro de ouro e prata, que circula em qualquer país, pode bem en gen heiro, nos concentrando em sua capacidade de gerar
apropriadamen te ser comparado a uma estrada, q u e, enqu anto energia co m o um valor agregado além do seu estado natural
se estende e carrega ao mercado as ervas e grãos do país, não de lago d e uma extensão de águas, de s úbito enxergamos o
produ z n en huma única p ilha d estes".7 poten cial c riado p ela posição elevada do lago. O_gesafio_,__p.a.ra-
Muito do mistério do capital se dissipa tão logo paramos de o engenheiro, é d escobrir como pode c riar o processo que lhe
pensar no "capital" como sinônimo de "d inheiro guardado e permitirá converter e fixar esse potencial de modo a ser usado
investido". O m al-entendido de qu_e é o dinheirQ_Q11e fi~ o ca- para fazer traballio adicional. No caso do lago elevado, o pro-
pital vem, eu suspeito _Qos negó~ios modernos e~ressa~o cesso se contém em uma ~ entrai h idrelétrica que permitirá às
valor do capital em termos de dip.Jieiro. É difícil estimar o valo r águas do lago se moverem rapidamente para baixo com a força
total de uma coleção de ativos de tipos variados, tais como m á- da gravidade, transfor mando deste modo a energia potencial
quinas, construções e terras, sem nos reportarmo s ao dinheiro. . do plácido lago na energia cinética de águas que caem. Essa nova
~mal, por isso inventou-se o d inheiro; ele oferece um índice ener gia cinética poderá então girar turbinas, crian do energia
padrão para medirmos p valor das coisas e pod ermos negociar m ecânica que poderá ser usada para girar eletromagnetos que
ativos diferentes. Mas apesar de útil, o dinheiro n ão pode d e a converterão em energia elétrica. Como eletricidad e, essa ener-
m odo algum fixar o potencial abstrato d e um ativo qualquer para gia potencial do plácido lago é agora focada na forma necessá-
convertê-lo em cap ital. O Terceiro M undo e as n ações antes ria para a pro dução de uma corrente controlável que poderá
58 HERNANDO DE SOT O O MISTÉRIO DO CAPITA L 59

ser transmitida através de fios conduto r es a loca is distantes e ma de propriedade das nações ocidentais, desenvolveu-se, im-
desdobrar nova produção. perceptivelmente, uma variedade de mecanismos que gradual-
Assim, um lago aparentemente plácido pod e ser usado para mente combinaram-se em um processo que produzia capital em
iluminar o seu quarto e prover en ergia à m aquinaria de uma série como nunca antes. Embora usemos esses mecanismos todo
fábrica. O que se fez necessário fo i um processo externo criado o tempo, não nos damos conta de que possuem funções gera-
pelo homem, qué1ne permitiu, primeiro, identificar o potene-ial
- .----~
do peso da água de fazer trabalho adicional e, segundo, conv~r-
doras de capital porque não apresentam esse rótulo. Nós os ve-
mos como partes do sistema que protege a propriedade, não
ter essa energia potencial em eletricidade que pode ser usada para como mecanismos interligados para a fixação do potencial eco-
criar mais-valia. A mais-valia que obtem os do lago não é um valor nômico de um ativo de tal modo que possa ser convertido em
do I~g_o em si (como uma pepita preciosa, intrínseca à terra) , mas capital. O que gera capital no Ocidente,_e~o~tras palavras, é
e~ v~_i disso J!P1-;;fQr do- p~Q~s~o c riado pelo homem, extrín; co um processo implícito enterr-;do ;;-as complexidades de-; e~-~j ~-=-
ao lago. É esse processo que nos permite transform a; o lago de tema de propriedade formal.
um l~r do tipo que serve para a pesca e a canoagem em um
lugar do tipo que produz energia.
O -capital,_como a_energia, é também um valor inativo. Trazê- O oculto processo conversor ocidentaJ
lo à vida r equer irmos além de enxergar nossos ativos como são ----
para pensar ativamente em como poderiam ser. Requer um pro- Isso poderá soar por demais simples ou complexo. Mas consi-
cesso de fixação do potencial eco nômico do ativo em uma for- dere se é possível a ativos serem usados produtivamente quando
ma que poderá ser usada para iniciar produção adicional. não pertencem a alguma coisa ou a alguém. qude co~fmnamos
Contudo, embora o processo de conversão da energia po- a existência desses ativos_ e as transações que os transformam e
tenc ial da água em eletricidade seja bem conhecido, o processo aumentam sua produtividade, senão no contexto de um sistema
que concede aos ativos a forma necessária para movimentar mais de propriedade formal? Onde registramos as características re-
produção não o é. Em-outras pafavra-s; embora-saibam~ -s~ exn levantes de ativos, senão em registros e títulos proporcionados
as comportas, as turbinas, os geradores, os transformadores e fios pelos sistemas formais de propriedade? Onde os códigos de con-
do si~ de energia hidrelétrica que convertem a energia po- duta que governam o uso e a transferência de ativos, senão na
tencial do lago até q u e seja fixada em uma forma acessível,_não- estrutura dos sistemas formais de propriedade? É a propriedade
sabemos ond e encontrar a chave do roce$_SQ_que convert~ formal que proporciona ~roces~~s [or_!!l_as e as rwii~ que
po~Zonômico de uma casa em caP-ital. --- fixam os ativos em uma condição que permite conv ert?-1º~ em
Isso ~ µ . c o .ce~~o:-chaye n ão fo i d eliberadamente caprt~ivQ. · --- - - - -
organ izado para criar capital, mas para o propósito mundano de No Ocidente, esse sistema formal de propriedade começa a
protegerã posseclepropriedades. Com o crescimento do siste-
-- - processar os ativos em capital descrevendo e organizando os as-
HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 61
60

pectos mais úteis econômica e socialmente sobre esses ativos, aprovação envolvendo todos os vizinhos. Esse é com freqüên-
preservando essa informação em um sistema de registros - cia o único meio de se verificar que um proprietário verdadei-
como inserções em um livro razão ou dados em um disco de ramente possui sua casa, que não existem outros requerentes. É
computador - , e depois, incorporando-os em um título. Um também o porquê de o comércio da maior parte dos ativos fora
conjunto de r egras legais e precisas governam todo esse p roces- do Ocidente se restringir aos círculos locais de parceiros de ne-
so. ~istroúormais de ~ropriedade e títulos, portanto, repr:- gócios.
sentam nosso conceito COJ!!Partilhado do que é economicamente Co~~vgnos no capítulo a_nterior, o principal problema d~s-
significativo sobre qualquer ativo. Capturam e organizam toda ses países não é a falta de espírito empreendedor: os pobres ae:u-
a informação r elevante necessária n a conceituação do valor po- mularam trilhões de dólares em imóveis durante os últimos
tencial de um ativo, nos permitindo assim controlá-lo. A pro- quaren ta anos. O que os pobres não têm é o fácil acesso aos
priedade é o domínio onde identificamos e exploramos os ativos, mecanismos que poderiam fixar legalmente o potencial econô-
os combinamos e unimos a outros ativos. O sistema formal de mico de seus ativos de um modo que pudessem ser u sado~ara
propriedade é a central hidrelétrica do capital. É onde nasce o produzir, assegurar o u garantir um valor maior no mercado e~-
capital. pandido. No Ocidente, todo ativo- todo pedaço de terra, toda
É-extre~ente difícil.m.ouimentar no mercado...qua.lqu er casa, todo bem m óvel - é fixado formalmente em registros
ativo cujos aspectos econômicos e sociais não estejam fixad__QS_- atualizados regidos por regras contidas no sistema de proprie-
em um sistem a de propriedade formal Como podem as quan- dade. Todo incremento na produção, toda nova construção, pro-
tias en ormes de ativos trocando de m ãos em uma economia de duto ou coisa de valor comercial é propriedade formal de alguém.
mercado moderna ser controladas, senão por meio de um pro- Mesmo se os ativos pertencem a uma corporação, gente de ver-
cesso de propriedade forma l? Sem um tal sistema, q ualquer dade tem a sua posse indiretamente, por meio de títulos certifi-
comércio d e ativos, digamos um imóvel, requer um enorme cando que são donos da corporação como "acionistas".
esforço apenas para se determinarem os princípios da transação: Como a energia elétrica, o capital não será gerado se a peça-
o vendedor é dono do imóvel e tem o direito de transferi-lo? chave, a instalação que o produz e o fixa , não existir. Assim como
Pode empenhá-lo? O novo dono será aceito como tal por aqu e- um lago precisa d e uma central hidrelétrica para produzir ener-
les que fazem cumprir os direitos de propriedad e? Quais são os gia u sável, os ativos precisam de um sistema formal de proprieda-
meios eficazes para se excluir outros requerentes? Nas nações de para produzir uma mais-valia significativa. Sem a propriedade
em d esenvolvimento e nas antigas nações comunistas tais per- tõrmal para extrair seu potencial econômico e conver tê-los em
guntas são difíceis d e responder. Para a maioria dos a tivos, não ~ fo~a qu~ pode-;er facihe~te transportada e controlada,
existe um lugar o nde as respostas estejam fixadas de m odo os ativos dos países em desenvolv imento e dos antigos países
confiável. É por isso que a venda ou o arrendamento de uma comunistas são como a água de um lago no alto dos Andes -
m oradia pode envolver longos e ineficientes procedimentos d e uma reserva inexplorada de energia potencial.
62 H ERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 63

Po_r que a ~ênese do capital se tornou um tal mistério? Por Efmo P.r.QR[iedade nº 1:
que as nações ricas do mundo , tão prontas com os seus conse-
lhos ·econômicos, não explicaram o quão indispensável a pro_:__
-
Afixa5ão do potencial econômico dos ativos
--- -
priedade formal é para a formação de capital? A resposta é que o O valor potencial aprisionado em uma casa pode ser revelado e
pro cesso dentro do sistema de propriedade formal que reduz os transformado em capital ativo da mesma forma que a energia
ativos a capital é de visualizaçã.o..e _xti;_emamen.~ Esconde- potencial é identificada em um lago de montanha e depois trans-
se em milhar.es de. boca.dos de legislação, estatµ tos, regulamen- formada em energia real. Em ambos os casos a transição de um
tos e instituições que gov ernam o sistema. Qualquer um que se estado a ou tro requer um processo que transponha o objeto fí-
encontrasse em tal pântano legal estaria em apuros para decifrar sico para um universo representativo cria.do pelo homem, onde
como o processo funciona. A única maneira de c~mpreendê-lo poderemos desembaraçar o recurso de suas limitações materiais
é do lado de fora do sistema - do setor extralegal -, que é o-nde estorvadoras e nos concentrarmos em seu potencial.
m eus colegas e eu exercemos grande parte do nosso trabalho. O capital nasce du:epresentação escrita das qualidades ec0-
Já há algum tempo venho examinando a lei de um ponto de nômica e socialmente mais úteis sobre os ativos-escrituras, fian-
v ista ~a egat, parã entender melhor como funciona e quais ças, contratos e outros registros - , em oposição aos aspectos
efeitos produz. Isso não é tão louco quanto parece. Como o fi- visualmente mais marcantes do ativo. É onde o valor potencial é
lósofo francês Michel Foucault argumentou, pode ser mais fácil pela primeira vez descrito e registrado. No momento em que
descobrir o que algo significa observando esse algo do lado opos- concentramos nossa atenção na escritura de uma casa, .por exem-
to da ponte. "Para se descobrir o que nossa sociedade entende plo, e não na casa em si, passamos automaticamente do mundo
por sanidade", escreveu Foucault, "talvez devêssemos investi- material para o universo conceitua} onde o capital mora. Estamos
gar o que anda acontecendo no terreno da insanidade. E o que lendo uma representação que concentra nossa atenção no po-
entendemos por legalidade, no terreno da ilegalidade."8 Além tencial econômico d a casa, filtrando todas as confusas luzes e
do mais, a propriedade, como a energia, é um conceito; não pode sombras do seu aspecto físico e do aspecto de seus arredores. A
ser experimentada diretamente. A energia pura nunca foi v ista propriedade forma l nos força a pensar sobre a casa como um
ou tocada. E ninguém pode ver a propriedade. Só se pode expe- conceito econômico e social. Nos convida a irmos além da vi-
rimentar a energia e a propriedade por meio de seus efeitos. são da casa como um m ero abrigo - e portanto um ativo morto
D.9 meu ponto de vis.ta no setor extralegal, constatei que os - e vê-la viver como capital.
sistemas formais de propriedade ocidentais produzenu,_ris_efei- A prova de que a propriedade é puro conceito vem quando
~ t e - m-a·-seus cidadãos gerarem capital. A incapaci- uma casa muda de mãos; nada se altera fisicamente. Observar-
dade nas outras partes do mundo de desdobrarem o capital brota mos uma casa qualquer não nos revela quem é o seu dono. Uma
do fato de que a maioria das pessoas no Terceiro Mundo e nos casa que hoje é sua apresenta o mesmo aspecto que tinha ontem
países antes comunistas está privada desses efeitos essenciais. quando era minha. Apresentará o mesmo aspecto quer eu seja
64 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 65

seu dono, a alugue ou a venda a você. A propriedade não é a casa Portanto, a propriedade legal concedeu ao O cidente as fer-
em si, mas o conceito econômico sobre a casa expresso em uma ramentas para produzir um valor excedente além e acima de seus
representação legal. Isso significa que uma representação fo rmal ativos físicos. As representações de propriedade permitiram às
de propriedade é algo separado do ativo em si. pessoas pensar nos ativos não apenas por meio do conhecimen-
· O que têm as representações forma is de propriedade que as to físico , mas pela descrição de suas qualidades econôm icas e
permitem exercer uma função adicional? Não são apenas subs- sociais latentes. Sendo ou não intenção de alguém, o sistema legal
titutos dos ativos? Não. Eu repito: uma representação formal de de propriedade transformo u-se na escadaria que conduziu es-
propriedade tal como uma escritura não é a reprodução da casa, sas nações do universo dos ativos em seus estados naturais para
como uma fotografia, mas uma representação de nossos con- o universo conceituai do capital, onde os ativos podem ser co-
ceitos sobre a casa. Especificamente, representa as qualidades nhecidos em todo o seu potencial produtivo.
invisíveis com o potencial de produzir valor. Essas não são qua- Com a propriedade legal, as nações desenvolvidas do Oci-
lidades físicas da casa em si, mas, em vez disso, qualidades eco- dente tinham a chave para o desenvolvimento moderno; seus
nômica e socialmente significativas que nós humanos atribuímos cidadãos agora possuíam os meios de descobrir, com grande fa-
à casa (tal como a possibilidade de usá-la para uma variedade de cilidade e constantem ente, as qualidades de seus recursos po-
propósitos que podem ser afiançados por direitos de retenção, tencialmente mais produtivas. Como Aristóteles descobriu 2.300
hipotecas, direitos de u so e outros compromissos). anos atrás, o que se pode fazer com as coisas aumenta infinita-
Em nações desenvolvidas a representação formal de proprie- tl}en te qua~do se concentra o pensamento em seus potenciais.
dade funciona como um meio de assegurar os interesses de ter- Aprendendo a fixar o potencial econômico de seus ativos por
ceiros e de promover a responsabilidade proporcionando as meio de registros de propriedade, os ocidentais criaram uma
informações, as referências, as regras e os mecanismos de execu- trajetória rápida para explorar os aspectos mais produtivos de suas
ção necessários para tal. No Ocidente, por exemplo, boa parte da posses. A propriedade formal tornou-se a escadaria para o do-
propriedade formal pode ser utilizada com facilidade como ga- !!!_ínio conceituai, onde o significado económico das coisas po e
rantia em empréstimos; como ação ordinária negociada em in- ser descoberto, e onde nasce o capital.
vestimentos; como endereço de cobrança de dívidas, impostos e
taxas; como localização que identifica os indivíduos para motivos Efeito Propriedade nº 2:
comerciais,judiciais ou cívicos; ou como terminal responsável pa- A- integração
.--
das informações dispersas em um único sistema
-
ra o recebimento de serviços públicos tais como energia, água, es-
goto, telefone ou Tv. Enquanto as casas nos países desenvolvidos C omo v imos no capítulo anterior, a maioria das p~oas n_as .
funcionam como abrigos ou locais d e trabalho, suas representa- nações em desenvolvimento e nas previamente com unistas não_
ções estão levando uma vida paralela, cu m prindo uma variedade consegue adentrar o s istema ~Sªl d e pro priedade,. tal com o se
de funções adicionais para assegurar os interesses de terceiros. apresenta, não importa o quão arduam ente o ten tem. Porque não
66 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 67

podem inserir seus ativos no sistema legal de propriedade, aca- ginação d e cada proprietário e seu círculo de conh ecidos. Nos
bam por possuí-los e:xtralegalmente. A razão do triunfo doca- países ocidentais, onde a informação sobre propriedades é pa-
pitalismo no Ocidente e de seu fracasso no resto do mundo é dronizada e disponível universalmente, o que os donos podem
que a maior parte dos ativos nas nações ocidentais foi integrada fazer com os seus ativos beneficia-se da imaginação coletiva e
em um sistema de representação formal. de uma rede mais ampla de pessoas.
,,......_ Essa integração não aconteceu por acaso. Durante décadas Pode surpreender ao leitor ocidental que a maioria das na-
no século XlX, políticos, legisladores e juízes juntaram os fatos ções do mundo ainda esteja por integrar acordos extra legais de
e regras dispersados que haviam regido a propriedade por todas propriedade em um único sistema formal legalizado. Para os
as cidades, vilas, construções e fazendas e os integraram em um ocidentais, supostamente, existe uma só lei- a oficial. Contu-
único sistema. Essa "reunião" das r epresentações de proprieda- do a dependência ocidental de sistemas de propriedade integra-
dos é um fenômeno, no máximo, dos últimos duzentos anos.

~
de, um momento revolucionário na história das nações desen-
volvidas, depositou todas as informações e regras, regendo a Na maior parte dos países ocidentais, sistemas integrados de pro-
riqueza. acumulada de seus cidadãos em uma só base de conhe- priedade surgiram somente há cercá de cem anos; a integração
1 cimento. Antes desse momento, as informações sobre os ativos no Japão se deu há pouco mais de cinqüenta anos. Como vere-
~ram bem menos acessíveis. Toda fazenda ou assentamento re- mos com algum detalhe mais adiante, acordos informais de pro-
gistrava seus ativos e as regras que os regiam em livros rudi- priedade variados foram, certa vez, a norma em todas as nações.
mentares, por meio de símbolos ou testemunho oral. Mas a O pluralismo legal era a norma na Europa continental, até a lei
informação era atomizada, dispersada e não era disponível a romana ser redescoberta no século XIV e os governos reunirem
qualquer um em q ualquer momento. Como tão bem hoje sa- todas as leis atuais em um sistema coordenado. Na Califórnia_,
bemos, uma abundância de fatos não é necessariamente uma logo aeós a corrjda do ouro em 1849, havia cerca de _oitocentas_
abundância de conhecimentos. Para o conhecimento ser funcio- jurisdições d e propriedade separadas, cada uma com os seus pró-
nal, as nações desen volvidas tiveram de integrar em um único pr ios registros e regulamentações individuais estabelecidos pelo
sistema compreensível todos os seus dados soltos e isolados so- consenso local. Por todos os EUA, da Califórnia à Flórida, ~
bre a propriedade. ci~çõe~ ~e reivi~dicação de concessões concordavam com suas
Os países em desenvolvimento e os previamente co!llilnis- próprias regras e elegiam seus próprios funcionários. Levou mais
tas n ão o fizeram. Em todos os país~ _que.estudeijamais..!!_l~ de cem anos, até o final do século XIX, para o govern~d~s EUA
trei apenas um s istema egal, ~- si!n ~ ú_zjas ou mesmo centenas, aprovar estatutos especiais que integravam e formalizavam os
maneja os por toda sorte de organizações, algumas legais , ~ ativos norte-americanos. Promulgando mais de 35 apropriações
tras extralegais, indo de pequenos grupos empresariais a orga- e estatutos de mineração, o Congresso gradualmente conseguiu
niz~eslia15itãêionais. Conseqüen_!:eviente, o que 'li.._P~SSOli integrar em um único sistema as regras informais de propr ieêl~ -
~ sses aíses odem faz:_r com----;~ropriedades se limita à irna- de c'i·iãdas por ipilhões de imigrantes e colonos. O resultãõõt~f
68 HERNANDO DE SOTO O M ISTÉRIO DO CAPITAL 69

um m ercado de propriedade in tegrado que serviu de c~ stí- o con texto impessoal da lei. Libertando os proprietários d os ar-
vel ao cr escimento econ ômico explosivo dos EUA d esd e então. ranjos restritivos locais e levando-os a um sistema legal m ais
-
A razão po r que é tão difícil seguir essa histór ia da--·---
integração integrado, favoreceu o estabelecimento de suas r esponsabili-
de s ist emas d e p ropr iedade espalh ados é qu e o processo teve dades.
lugar durante um tem po bastante longo. Registros formais de Transformando as pessoas com interesses de propriedade em
propriedade começaram a aparecer n a Alemanha, por exemplo, indivíd uos r esponsáveis, a propriedade formal estava cr iando
no século XII, mas não foram completam ente integrados antes indivíduos onde antes havia a massa. As pessoas não m ais tinham
d e 1896, quando o sistema Grundbuch para registro d e transa- de depender das relações de vizinhança ou fazer acordos locais
ções de terras começou a operar em escala nacional. No Japão a para proteger seus direitos a ativos. Libertos das atividades eco-
campanha nacional para a formalização da pro priedade dos fa- nô micas primitivas e das limitações provincianas estorvadoras,
zendeiros teve início no fin al do século XIX e terminou apenas podiam explorar como gerar mais-valia de seus ativos. M as ha-
nos últimos anos d e 1940. Os esforços extraordinários da Suíça via um preço a ser pago: uma vez dentro de um sistema forma l
de unir os diversos sistemas pro tegendo as propriedades e tran- de pro priedade, proprietários perdiam su a autonom ia. Tornan-
sações ao final do século XX ainda não são de todo conhecidos, do-se ligados de modo inextricável a imóveis e negócios que
mesmo de muitos suíço s. podiam ser facilmente identificados e localizados, as pessoas
Como resultado da integração, cidadãos em nações desen- abriam m ão da capacidade de se perder nas massas. A opção do
volvidas podem obter descrições das qualidades econômicas e anonimato pratica~en te d esae_areceu n~ Ü<;}dente, ao pa~o qge
sociais de qualqu er ativo dispo n ível sem ter de examinar o ativo a ~ po n sabilid ade individual foi reforçada. Pessoas qu e não
em si. Não prec isam mais cruzar o país para v isitar cada dono e pagam por serviços e bens que consu miram poclem -ser iden-
seus vizinhos; o sistema forma l de propriedade os informa so- tificadas, çobradas c~ j u ros, 'multadas, embargadas e ter suas
bre qu~is os ativos d ispon íveis e que oportunidades existem para taxas de crédito aumentadas. As au tor idades são capazes d e des-
a criação de mais-valia. Conseqüentemente, o potencial de um co brir as infrações legais e contratos desonestos; podem su spen-
ativo tornou-se mais fác il de avaliar e negociar, aumentando a d er serviços, reter a propriedade e retirar alguns ou todos os
produção de capital. privilégios de propriedade legal.
O r espeito nas nações ocidentais pela propriedade e pelas
~feito P,ropriedade-nº 3; transações não está codificado no DNA de seus cid adãos; é, em
A responsabili?._a_ção das p essoas vez d isso, resultado de estes possuírem sistemas de propriedade
formais impostos pela lei. O papel da propr iedade formal d e
A integração de todos os sistemas de propriedade sob a lei for- pro teger não só a posse mas a segurança das transações incenti-
mal de propriedade deslocou a legitimidade dos dire itos dos va os cidadãos nos países desenvolvidos a respeitarem títulos,
proprietários do contexto politizado das comunidades locais para honrarem co n tratos e obedecerem à lei. Quando um cidadão
70 HERNANDO DE soro O MISTÉRIO DO CAPITAL 71

qualquer age desonestamente, seu ato é registrado no sistema, hipoteca, um direito de retenção ou qualquer outra forma de
pondo em risco sua reputação como pessoa de confiança frente garantia protegendo a outra parte contratante.
a seus vizinhos, aos serviços que recebe, bancos, companhias
telefônicas, seguradoras e o restante da rede à qual o sistema de Efeito Propriedade n° 4:
propriedade o liga. A transfonnação dos ativos em bens fung[_vei~
Sendo assim, o sistema formal de propriedade no Ocidente
conferiu bênçãos variadas. Ao passo que proporcionou a cente- Uma das funções mais importantes do sistema de propried!_de
nas d e milhares de cidadãos uma participaçao no jogo cãpifalis- formal é transformar a condição dos ativos de menos a mais aces-
ta, o que to~ava significativ~ essa E_a_!"ticipação é que P?dia ~e_r síveis, para que possam fazer trabalho adicional. Diferentemen-
perdida. Grande
- - - parte
-- do valor potencial da propriedade
___ _ _ _legal
.::--
é te dos ativos físicos , as representações podem ser combinadas
derivada da possibilid~ge de c~nf}sc-9 dos direitos. Conseqüen- com facilidade, divididas, mobilizadas e usadas para estimular
temente, boa parte de seu poder vem da responsabilidade que acordos de neg6cios. Separando as características econômicas de
cria, das limitações que impõe, das regras que procria e das san- um ativo de seu rígido estado físico, uma representação toma o
ções que pode aplicar. Permitindo às pessoas que vejam o po- ativo "fungível" - capaz de ser moldado para servir praticamente
tencial econômico e social dos ativos, a propriedade forma l a qualquer transação.
alterou a percepção nas sociedades desenvolvidas não s6 das r e- Descrevendo todos os ativos em categorias padronizadas, um
compensas de se usar os ativos, mas dos perigos de fazê-lo. A sistem~ f~rmal de propriedade integrado toma possível a cÕm-
propriedade legal favoreceu o compromisso. ___,,_ de dois préd ios de arquiteturas difur;ntes construídos
Faração-
A falta da propriedade legal explica, então, por que cidadãos :ºmo mesmo prop6sito. ~sso permite a discriminação rápida ~
nos países em desenvolvimento e naqueles previamente comu- barata entre semelhanças e diferenças em ativos sem ter-se que
nistas não podem fazer contratos lucrativos com estranhos, não lidar com cada ativo como se fosse sem igual.
conseguem crédito, seguros ou serviços básicos: não têm nenhu- Descrições de propriedade padronizadas no Ocidente tam-
ma propriedade a perder. Porque ~ão têm_ nenhuma proprieda- bém são escritas para facilitar a combinação de ativos. Regula-
de a perder, são levados ~ sério ~orno partes intere~sadas em mentos de propriedade formal requerem que os ativos sejam
con~tos tão-s6 por seus parentes e vizinhos. Pessoas sem a_!go descritos e caracterizados de um modo que não s6 trace o perfil
a perder se encontram aprisionadas nos porões ençardidos _çlo de suas singularidades mas aponte suas semelhanças com ou-
m:1ndo pr~-capitalista. tros ativos, tornando assim mais óbvias as possíveis combina-
Enquanto isso, os cidadãos das nações desenvolvidas podem ções. Com o uso de registros padronizados, pode-se determinar
con tratar praticamente qualquer coisa razoável, mas o preço do como ~ !orar mais lucrativam ente um imóvel em especial, se
ingresso é o compromisso. E o compromisso melhor se enten- como espaço para escritórios, quartos de hotel, livraria, quadras
de quando apoiado por uma promessa de propriedade, seja uma de squash ou uma sauna (com base nas restrições de zoneamentos,
72 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 73

quem são os vizinhos e o que fazem, o metro quadrado das cons- Além do mais, todos os documentos formais padronizados
truções, se podem ser unidas etc.). de propriedade são talhados de tal modo a facilitarem a men-
As representações também permitem a divisão dos ativos . .;uração dos atributos dos ativos. Se as descrições padronizadas
sem ser preciso tocá-los. Enquanto um ativo tal como uma dos ativos não fossem facilmente disponíveis, qualquer um que-
fábrica pode ser uma unidad e indivisível no mundo real, no rendo comprar, alugar ou conceder crédito apoiado em um ati-
universo conceituai da representação de propriedade formal vo teria de despender recursos enormes comparando e avaliando
pode ser subdivido em porções de qualquer número. Os cida- esse ativo com outros - que também careceriam de uma des-
dãos das nações desenvolvidas são portanto capazes de dividir crição padronizada. Proporcionando padrões, os sistemas for-
a maioria de seus ativos em ações, cada qual pode ser prop~ie- mais de propriedade ocidentais reduziram significativamente os
dade de pessoas diferentes, com direitos diferentes, para de-_ custos de transações de mobilização e u so dos ativos.
sempenhar funções· diferentes. Graças à propried~mal, Uma vez que os ativos fazem parte de um sistema de pro-

--
uma única fábrica pode ser mantida por inúmeros investido-
r es,_que podem se livrar de suas propriedades sem afetar a in-
tegridade do ativo físico.
priedade formal, conferem a seus donos uma vantagem enorme
pela possibilidade de serem divididos e combinados de mais
maneiras que os brinquedos de montar '· Os ocidentais podem
De modo semelhante, em um país desenvolvido, o filho d e adaptar seus ativos a qualquer circunstância~ conômica para pro-
um fazendeiro que deseje seguir os passos do pai pode ficar com duzirem continuamente combinações de maior valor, enquanto
a.fazenda comprando a parte de seus irmãos mais voltados para suas contrapartes no Terceiro Mundo permanecem aprisionadas
(,.,ocomércio . Os fazendeiros de muitos países em desenvolvimen- no mundo físico de formas rígidas e não-fungíveis:
1 to não têm essa opção e precisam continuamente dividir suas .J
fazendas a cada geração até as parcelas serem pequenas demais ~ o p . r i dade nº 5:
para a exploração lucrativa, deixando aos descendentes duas al- A integmç_ão das pessoas
~

-..temativas: a fome ou o furto.


Representações de propriedade formais podem também ser- Tomando os ativos fungíveis - capazes de serem divididos,
vir como substitutos móveis para os ativos físicos, permitindo combinados, mobilizados para servirem a qualquer transação - ,
aos proprietários e empresários simularem situações hipotéti- ligando os proprietários aos ativos, os ativos aos endereços, a
cas de modo a explorar outros u sos lucrativos de seus ativos - posse ao compromisso, e tornando as informações da história
assim como planejamos a estratégia de nossas batalhas moven- dos ativos e seus donos facilmente acessíveis, os sistemas for-
do representações simbólicas de nossas tropas e armas em um mais de propriedade converteram os cidadãos ocidentais em uma
mapa. Se pensarmos a respeito, são as representações de proprie- rede de indivíduos identificáveis e agentes de negócios respon-
dade que permitem aos empresários simular estratégias de ne- sáveis. O processo formal de propriedade criou toda uma infra-
gócios para fazer crescer suas empresas e construírem capital. estrutura de dispositivos de conexão que, como os desvios nas
74 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 75

estradas de ferro, permitiu aos ativ9s (trens) correrem com se- Construções são sempre os terminais de serviços públicos.
gurança entre as pessoas (estações)\A contribuição da proprie- O que as transforma em terminais confiáveis e responsáveis é a pro-
dade formal para a humanidade não é a proteção da posse em si; priedade legal. Qualquer um que duvide disso precisa apenas
posseiros, organizações habitacionais, máfias e mesmo tribos examinar a situação do serviço público fora do Ocidente, onde
primitivas arranjam um meio de proteger seus ativos com bas- perdas técnicas e financeiras, além do roubo de serviços, respon-
tante eficiência. A verdadeira inovação da propriedade é quera- dem por 30 a 50 por cento de todos os serviços disponíveis.
dicalmente melhorou o fluxo de comunicação sobre os ativos e A propriedade legal ocidental também fornece às empresas
seus potenciais. Também enfatizou o status de seus donos, que informações sobre os ativos de seus donos, endereços verificáveis
se tomaram agentes econômicos ~apazes de transformar ativos e registros objetivos do valor da propriedade, todos estes con-
dentro de uma rede mais ampla. 'y,· 1 duzindo a registros de crédito. Essa informação e a existência de
Isso explica como a propriedade legal encoraja os fornece- uma lei integrada tornam os riscos mais manejáveis, distribuin-
dores de serviços como luz e água a investirem na produção e do-os a dispositivos como os seguros e as junções de proprieda-
na instalação de distribuidoras que sirvam às construções. Li- des na garantia de dívidas.
gando legalmente as construções onde os serviços serão recebi- - Poucos parecem haver percebido que o sistema de proprie-
dos a seus donos, que os u sarão e pagarão por eles, um sistema dade legal de uma nação desenvolvida é o centro de uma rede
formal de propriedade reduz o risco de roubo desses serviços. --< complexa de conexões que dá condições aos cidadãos comuns de

Também reduz as perdas financeiras de cobranças a pessoas di- formarem vínculos tanto com o governo como com o setor pri-
fíceis de ser em localizadas, assim como as perdas técnicas ·d a vado, e assim obterem mercadorias e serviços adicionais. Sem as
estimativa incorreta das necessidades elétricas de áreas onde os ferramentas da propriedade formal , é difícil imaginar como os
negócios e os residentes são clandestinos e não registrados. Sem ativos poderiam ser usados para tudo o que realizaram no Oci-
se saber quem tem direito a quê, e sem um sistema legal inte- dente. De que outro modo organizações financeiras identificariam
grado onde a capacidade d e se fazer cumprir as obrigações foi solicitantes de empréstimos potencialmente confiáveis em uma
transferida dos grupos extralegais para o governo, os fornece- escala maciça? Como objetos físicos, como a madeira do Oregon,
dores teriam dificuldades em prestar seus serviços de modo lu- poderiam servir de garantia a um investimento industrial em Chi-
crativo. De que outra forma poderiam identificar seus assinantes, cago? Como poderiam as companhias de seguro encontrar e for-
criar contratos de assinaturas dos serviços, estabelecer conexões mar contratos com clientes que pagarão suas dívidas? Como
desses serviços garantindo-os a lotes e construções? Como poderiam os corretores oferecer serviços de informação, inspe-
implementariam sistemas de cobrança, leitura de medidores, ção e verificação eficientes e baratos? Como funcionaria o recebi-
mecanismos de coleta, controle de perdas, controle de fraude, mento de impostos?
procedimentos das cobranças inadimplentes e serviços de con- É o sistem a de propriedade que extrai o potencial abstrato
trole como o desligamento? das construções e o fixa em representações que nos permitem ir
76 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 77

além do uso passivo dessas apenas como abrigos. Muitos siste- reitos de uso, arrendamentos, aluguéis atrasados, falências e hi-
mas de títulos nas nações em desenvolvimento fracassam n a potecas. Os cartórios também garantem que os ativos sejam ade-
produção de capital porque não reconhecem que a propriedade quada e corretamente representados em formatos apropriados,
pode ir muito além da posse. Esses sistemas funcionam pura- que podem ser facilmente atualizados e encontrados.
m ente como inventários de posse, certidões e mapas substituindo \ Além dos sistemas de cartórios públicos, muitos outros ser-
os ativos, sem permitir os mecanismos adicionais necessários para viços se desenvolveram para auxiliar as partes a fixar, movimen-
a criação de uma rede onde os ativos poderão levar uma vida tar e encontrar as representações e poder com faci lidade e
paralela como capital. A propriedade formal não deve ser con- segurança produzir mais-valia. Esses serviços incluem entida-
fundida com tais sistemas maciços de inventário semelhantes ao des privadas de registro de transações, organizações guardiães
Domesday Book dos ingleses, novecentos anos atrás, ou a uma de depósitos d e garantia responsáveis pelo fechamento legal de
operação de conferência de bagagem de um aeroporto inte~na- vendas, agências de certidões, avaliadores, seguradoras de títu-
cional. Apropriadamente compreendido e planejado, o sistema los e certidões, agências de hipotecas, serviços privados de reco-
de propriedade cria uma rede por meio da qual as pessoas po- nhecimento de firma e conservação dos documentos originai~. "
dem montar os seus ativos em combinações mais valiosas. Nos EUA as companhias s...e.gu,rad.o.gs d~_título ainda auxiliam a
~liZª-ç~~resentações emitindo apólices QJ,Le_çobre_!E
Efeito Propriedade nº 6: as par.tes_P-QLJ:.is,c.os_~~<:_~fic<?_s, desde defei;os escriturais até a
Aproteção das..1[.E_n~_ações inexeqüibilidade de hipotecas e a impossibilidade de negocia-
ção de títulos. Por l<:b.E_odas essas entidades têm de seguiI:.rígidos
Um motivo importante do porquê de o sistema formal de pro- padrões de operação, que regem suas capaci_qades d e.tastrea.a:._
priedade ocidental funcionar como uma rede é que todos os ~ o de do~!:!!!!...enta ão, suas instalações para armazenagem
registros de propriedade (títulos, escrituras, garantias e contra- físic e seu pessoal.
tos que descrevem os aspectos economicamente significativos , Embora se estabeleçam para proteger tan~ a se~rança da
dos ativos) são permanentemente rastreados e protegidos em posse.somo a das transações é óbvio que os sistemas_ocident:ais-
suas viagens através do tempo e do espaço. A primeira parada é
---- - -
enfatizam estas últimas. A segurança é principalmente enfocada
nos cartórios públicos, os administradores das representações de na produção de confiabilidade nas transações de modo que as
uma nação desenvolvida. Arquivos públicos administram os pessoas possam mais facilmente fazer os seus ativos levarem vida
documentos que contêm toda a descrição economicamente útil paraleJa como capital.
dos ativos, sejam terras, construções, bens móveis, navios, in- Na maior parte dos países em desenvolvimento, em contras-
dústrias, minas ou aviões. Esses arquivos alertarão a qualquer te, a lei e os cartórios oficiais estão presos à antiga lei colonial e
um ansioso por usar um ativo sobre os dados que podem res- romana, que tendem para a proteção da posse. Tornaram-se
tringir ou possibilitar a sua realização, tais como encargos, di- custódios dos desejos dos mortos. Isso pode explicar por que a
O MISTÉRIO DO CAPITAL 79
78 HERNANDO DE SOTO

criação de capital na propriedade ociden tal se dá tão facilmen te, produção adicional e aumentar a divisão de trabalho . O gênio
e por gue a maioria dos ativos nos países em desenvolvimento e ocidental foi o d e ter criado um sistema que permitiu às p essoas
nos extintos p2íses comunistas caíram fora do sistema legal for- compreen derem com a mente valores que os olhos humanos
mal à procura de mobilidade. nunca poderiam ver, e m anipular coisas que as mãos nunca po-
A ênfase ocidental na segurança das transações permite aos deriam tocar.
cidadãos ~o~;rem 'g rãnde quantidades de ativos com bem PQ~- Séculos atrás, estudiosos esp ecularam sobre se u samos a
ca; _transações. De que outro modo se explica que nas n ações palavra "capital" ("cabeça", em latim) porque a cabeça é onde
em desenvolvimento e nas antes comun istas as pessoas ainda m antem os as ferram en tas com as quais se cria o capital. Isso
estejam levando os seus porcos ao mercado e os trocando um a su gere que o m otivo por que o capital tem sido velado em mis-
um, como o têm feito há milhares de anos, enquan to no Oci- tério é que, com o a en ergia, pode ser descoberto e administrado
den te comerciantes levam as representações de seus direitos so- apenas na m ente. O único meio de se tocar o capital é se o siste-
bre os porcos ao mercado? Comerciantes nos mercados de tro ca ma de propriedade pu der registrar seus aspectos econ ômicos no
em Chicago, por exemplo, negociam através de representações, papel e o s ancorar a um local e dono esp ecífico s.
que concedem mais informação acerca dos porcos qu e trocam A propriedade, en tão, n ão é um m ero pedaço de papel e sim
do que se pudessem examinar cada porco fisicamente. São ca- um dispositivo d e med iação que captura e estoca a maior parte
pazes de fazer negócios por enormes quan tidades de porcos com do que se precisa para m anutenção do funcionamento de uma
pouca pr eocupação com a segurança das transações. economia de m ercado . A propriedade sem e ia o sistema, tomando
as pessoas responsáveis e os ativos fungíveis, acompanhando de
perto as transações e, assim, proporc ionando todos os mecanis-
Capital e dinheiro mos n ecessários ao fu n cion am ento dos sistemas monetário e
bancário e de investimen tos. A ligação entre o capital e o dinheiro
Os seis efeitos de um processo de propriedade in tegrado signi- moderno passa pela propriedade.
ficam que as casas dos ocidentais não mais apenas m antêm a H oj e em dia, no fim das contas, é a informação do cumenta-
chuva e o frio do lado de fora. Dotadas de existência repr esenta- da encon trada em registros legais de posse e de transações que
tiva, essas casas podem agora levar uma vida paralela, exercendo fornece às autoridades mon etárias os in dicadores d e que preci-
fu nções econômicas gue antes não podiam exercer. Um b em in- sam para emitir moeda corrente. Como os cientistas cognitivos
t,egrado sistema de propriedade lega! em essên cia tem duas fun- George A. Miller e Philip N. Johnson-Laird escreveram em
ç ~primeiro, reduz tremendamente os custos de sabermos a; 1976 : ''A cédula d e papel deve sua origem à anotação d e dívidas.
qualidades econômicas dos ativos, representando- os d e uma [Portanto ], o dinheiro (...) pressupõe a instituição da pro prie-
forma que n ossos sentidos logo compreendem; e se~ nclo, fa- dade."9 É a documen tação de propriedade que fixa as caracterís-
cilita a capacidade de acordo com como se u sar ativos para criar ticas econômicas dos a tivos para qu e possam ser usados na
80 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 81

garantia de transações comerciais e financeiras e, por fim, pro- Noblest Triumph: "as muitas b ênçãos de um sistema d e proprie-
po rcionar a base justificativa para os bancos centrais emitirem dade privada jamais foram adequadamente analisadas". 13
dinheiro. Para criar crédito e gerar investimento, o que as pes- O capital, como argumentei anteriormente, não é portanto
soas hipotecam não são os ativos físicos em si, mas suas repre- criado pelo dinheiro ; é criado por pessoas cujos sistemas de pro-
sentações d e propriedade - os títulos e ações registr ados - priedade as auxiliam a cooperar e pensar sobre como podem fazer
r egidos por leis que podem ser executadas em toda a nação. O os ativos que acumularam desdobrarem-se em produção adicio-
dinheiro não rende d inheiro. É preciso antes um direito de pro- nal. O crescimento substancial de capital no Ocidente nos últi-
priedade para se fazer dinheiro. Mesmo quando se empresta mos dois séculos é con seqüência de sis temas de propriedade
dinheiro, a única forma de se lucrar com isso é emprestando ou gradualmente melhorados, que permitem aos agentes econômi-
investindo contra algum tipo de documentação d e propriedade cos descobrirem e realizarem o potencial dos seus ativos, e assim
que estabeleça os direitos a.o principal e aos juros. Repetindo: o conquistarem a posição de produzir dinheiro não-inflacionário
dinheiro pressupõe propriedade. com o qual financiar e gerar produção adicional.
Como os eminentes economistas alemães Gunnar Heinsohn Então, somos mais do que esquilos que estocam alimentos para
e Otto Steiger ressaltam, "o dinheiro nunca é criado ex nihilo do o inverno e se engajam em consumo diferido. Sabemos, por meio
ponto de vista da propriedade, que deve sempre existir antes de do sofisticado uso das instituições de propriedade, como darmos
o dinheiro ter existência". 1º Reconhecendo as semelhanças en- às coisas que acumulamos uma vida paralela. Quandô as nações
tre os seus estudos e o meu , trouxeram à minha atenção um desenvolvidas reuniram todas as informações e regulamentos acerca
esboço inédito de um artigo declarando "que os juros e o di- de seus ativos conhecidos e estabeleceram sistemas de propriedade
nheiro não podem ser compreendidos sem a instituição da pro- que rastreiam seu desenvolvimento econômico, reuniram em uma
priedade".11 Essa relação se torna obscura, afirmam , com a única ordem todo o processo institucional que alinhava a criação
interpretação errônea t ão comum de que os bancos centrais de capital. Se o capitalismo tivesse uma mente, estaria localizada no
emitem n o tas e apóiam a capacidade dos bancos comerciais de sistema legal de propriedade. Mas, como muitas coisas pertinentes
efetuarem pagamentos. Na visão de Heinsohn e Steiger, o que à mente, muito do "capitalismo" hoje em dia opera no nível sub-
escapa a o lho nu é "que todos os adiantamentos são feitos em co sciente.
sólidas transações firmadas em garantias",12 ou , em minhas pa- or que os economistas clássicos, que sabiam ser o capital
lavras, por meio de papéis legais de propriedade. Eles também abstrato e reconheciam sua necessidade de fixação, não ligaram
concordam com Harold Demsetz em que a base capitalista nos o capital à propriedade? Uma explicação pode ser a de que nos
direitos d e propriedade tem sido pouco examinada, e declaram, dias de Adam Smith ou mesmo de Marx os sistemas de proprie-
o que Joseph Schumpeter já suspeitava, que são os direitos de dade ainda eram restritos , pouco desenvolvidos e sua importância
propriedade que garantem a criação de dinheiro. Como Tom difícil de medir. Talvez seja mais significativo o fato de que a
Bethell afirma corretamente em seu livro u'traordinário The batalha para o futuro do capitalismo deslocou-se dos estudos
O MISTÉRIO DO CAPITAL 83
82 HERNANDO DE SOTO

liv rescos dos teóricos para uma vasta rede de empresários, fi- se beneficiarem dos seis efeitos que a propriedade proporciona.
n an cistas, políticos e juristas. A atenção do mundo voltou-se das O real desafio enfrentado por esses países não é o de se devem
teo rias para os negócios reais sendo feitos no chão, dia a dia, ano produzir ou receber mais dinheiro, mas se podem compreen-
fiscal após ano fiscal. der as instituições legais e arrebanhar a vontade política neces-
Uma vez que a vasta máquina do capitalismo estava firmada e sária para criarem um sistema de propriedade que seja de fácil
seus mestres ocupados criando riquezas, a questão d e como tudo acesso para os pobres.
aconteceu perdeu a urgência. Como os habitantes de um rico e O historiador francês Fernand Braudel achava um grande
fértil delta em um longo rio, os defensores do capitalismo não eram mistério que, em seu início, o capitalismo ocidental servisse
pressionados a explorar rio acima para encontrar a fonte dessa apenas a poucos privilegiados, assim como o faz em outras par-
prosperidade. Por que se incomodar? Com o final da Guerra Fria, tes d o mundo hoje:
contudo, o capitalismo tomou-se a única opção séria para o de-
senvolvimento. Então, o resto do mundo voltou-se para o Oci- A chave do problema é se descobrir por que aquele setor da
dente pedindo ajuda e foi aconselhado a imitar as condições de sociedade do passado, que eu não hesitaria em chamar capita-
lista, viveu como em uma redoma de vidro, isolado do resto;
v ida nesse delta: moedas estáveis, mercados abertos e em presas
por que não foi capaz de se expandir e conquistar o todo da
privadas, os objetivos das ditas "reformas macroeconômicas e de
sociedade?(...) [Porque] uma taxa significativa de formação de
ajuste estrutural". Todos esqueceram que o m otivo da riqueza do
capital foi possível tão-somente em certos setores, e não em toda
delta situava-se rio acima, em águas inexploradas. Sistemas legais
economia de mercado da época? (...) Seria talvez intrigante e
d e propriedade amplamente acessíveis são os sedimentos vindos paradoxal declarar que, faltasse o que faltasse, certamente não
de cima do rio que permitem ao capital moderno florescer. faltava o dinheiro (...) era então uma época em que se compra-
Essa é uma das principais razões por que as r eformas ma- vam terras pobres e nelas construíam-se residências magníficas,
croeconômicas não têm funcionado. Imitar o capitalismo no erguiam-se grandes monumentos e financiavam-se extrava-
nível d o delta, pela importação de franquias do M cDonald's e gâncias culturais(...) [Como] resolver a contradição(...) entre
da Blockbuster, não é o suficiente para se criar riqueza. Precisa- o clima econômico depressivo e os esplendores de Florença sob
se de capital, e este requer um sistema complexo e poderoso de Lorenzo o Magnífico? 14
propriedade legal ao qual não se concedeu prio ridade.
Acredito que a resposta à pergunta de Braudel reside no acesso
restrito à propriedade formal, tanto no passado ocidental quanto,
redoma de vidro de Braudel atualmente, nos países em desenvolvimento e nos antigos países
comunistas. Investidores locais e estrangeiros têm capital; seu s
Muito da marginalização dos pobres nas nações em desenvolvi- ativos são mais ou menos integrados, fungíveis, interligados e pro-
mento e nos extintos países comunistas vem da incapacidade de tegidos por sistemas formais de propriedade. Mas estes são ape-
84 HERNANDO DE SOTO

nas uma pequena minoria - aqueles que podem pagar aos advo-
gados especialistas, os que possuem relacionamentos influentes e
a paciência necessária para navegar pela burocracia de seus siste-
mas de propriedade. A grande maioria, que não consegue ter os
4
frutos de seus trabalhos r epresentados pelo sistema formal de
p;opriedade, vive d o lado de fora da redoma de vidro de Braudel.
A redoma de vidro faz d o capitalismo um clube privado,
O mistério da percepção política
aberto somente a poucos privilegiados, e enfurece os bilhões que
estão de pé, do lado d e fora, olhando para dentro. Esse capitalis-
m o de aparthei.d continuará inevitavelmente até todos nós che-
garmos a um acordo sobre a perigosa deficiência do sistemas legal Calados! Calados! os cães estão latindo,
e político de muitos países que impede a maioria de ingressar Os mendigos, as cidades invadindo;
no sistema formal d e propriedade. Uns em sacos, outros em trapos,
Essa é a hora de descobrirmos por que a maioria dos países Alguns em roupões bordados.
r não foi capaz de criar sistemas formais abertos de propriedade.
Poesia infantil inglesa
l Esse é o momento, quando o Terceiro Mundo e as antigas nações

j comunistas vivem suas mais ambiciosas tentativas de implementar


sistemas capitalistas, de se retirar a redoma de vidro.
O fracasso dos padrões populacionais e das leis obrigatórias
\ Mas antes de respondermos a essa questão, temos d e solu-
vem sendo uma tendência inquestionável nos países em de-
cionar o resto do mistério d e por que os governos foram tão len-
senvo lv imento nos últimos quarenta anos e nos extintos paí-
tos em perceber a existência da redoma de vidro.
ses comunistas nos últimos dez. Desde as r eformas econômicas
de Deng Xiaoping em 1979, 100 milhões de chineses d eixa-
ram suas casas à procura de em p rego extralegal. Três milh ões
de migrantes ilegais sitiaram Beijing entulhando os arredo-
res da cidade com uma mixórdia de pequenas oficinas. Por t-
au-Prince está 15 vezes m aior; Guayaquil, onze; e o Cairo,
quatro. O mercado informal hoje representa 50 por cento do
PIB da Rússia e da Ucrânia, e colossais 62 por cento da
Geórgia. A Organização Internacional do Trabalho relata que,
desde 1990, 85 por cento de todos os novos emprego s na
América Latina e no Caribe foram criados no setor extralegal.
86 HERNANDO DE soro O MISTÉRIO DO CAPITAL 87

Na Zâmbia, apenas 10 por cento da força de trabalho está estão fugindo das sociedades auto-suficientes e isoladas em uma
legalmente empregada. tentativa de aumentar seu s padrões de vida por meio da inter-
Que providências tomaram esses países? Muitas. Arregaça- dependência dos mercados mais amplos.
ram as mangas e foram à luta, atacaram cada um desses proble- Raramente se compreende que o Terceiro Mundo e associe-
mas individualmente. Em agosto de 1999, por exemplo, as dades antes comunistas estão vivendo aproximadamente ames-
autoridades de Bangladesh demoliram 50 mil casebres em sua ma revolução industrial que chegou ao Ocidente mais de dois
capital, Dhaka. Onde a demolição é impossível, os governos séculos atrás. A diferença é que essa nova revolução vem rugin-
constroem escolas e asfaltam as ruas para os milhões de invaso- do muito mais rápido e transformando a vida d e muitos mais. A
res das terras públicas e privadas. Ao mesmo tempo, os gover- Inglaterra sustentava apenas 8 milhões de pessoas quando ini-
nos têm apoiado programas de microfinanciamento para auxiliar ciou sua progressão de 250 anos: das fazendas aos laptops. A
as fabriquetas que vêm transformando as áreas residenciais em Indonésia percorre esse mesmo trajeto em apenas quatro déca-
zonas industriais por todo o mundo. Melhoraram as bancas dos das carregando uma população de mais de 200 milhões. Portan-
vendedores que atulhavam suas ruas; removeram hordas de er- to, não surpreende a lenta adaptação de suas instituições. Mas
rantes das praças de suas cidades e plantaram flores. Apertaram adaptarem-se é preciso. Uma maré humana deslocou-se de co-
a fiscalização sobre os códigos de construção e segurança para munidades e famílias iso ladas para a participação nos sempre
evitar a queda de prédios, como aconteceu na Turquia durante mais amplos círculos de trocas econômicas e intelectuais. Foi essa
o terremoto de 1999. Os governos têm tentado forçar lotações e onda que transformou Jacarta, a Cidade do México, São Paulo,
táxis arrebentados que entopem o tráfico a assumirem um pa- Nairóbi, Bombaim, Xangai e Manila em megacidades de dez,
drão mínimo de segurança; seguem uma linha dura com o fur- vinte, trinta milhões, confundindo suas instituições políticas e
to e o desperdício de água e luz e tentam controlar as patentes e legais.
os direitos autorais. Detiveram e executaram tantos gângsteres O fracasso da ordem legal em manter o passo com essa eston-
e traficantes quanto possível (ao menos os mais conhecidos) , e teante co nvulsão econômica e social forçou os novos migrantes
os prenderam (ao menos por um tempo). Aumentaram as me- a inventarem substitutos extralegais para as leis estabelecidas.
didas de segurança no controle da influência de seitas políticas Enquanto todos os tipos de transações de negócios anônimas são
extremas entre as multidões de desenraizados vulneráveis. comuns em países desenvolvidos, os migrantes do mundo em
Para cada um desses problemas há uma especialidade aca- desenvolvimento podem apenas negociar com quem conhecem
dêmica que o estuda e um programa político. Poucos parecem e em quem confiam. Tais acordos ad hoc informais de negócios
se dar conta de que o que temos aqui é uma enorme, mundial, não funcionam tão bem por lá. Como Adam Smith ressaltou,
revolução industrial: um movimento gigantesco para longe de quanto mais amplo o mercado, mais minuciosa a divisão de tra-
uma vida organizada em escala menor para uma organizada em balho pode ser. E com o aumento da especialização no trabalho,
larga escala. Certas ou erradas, as pessoas de fora do Ocidente aumem:am a eficiência econômica, os salários e os valores de
88 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 89

capital. Um fracasso legal que impede pessoas empreendedoras rede mais ampla. Só então o potencial de um direito de proprie-
de negociarem com estranhos malogra a divisão de trabalho e dade em especial não se limita à imaginação de seu dono, seus
acorrenta possíveis empresários a círculos reduzidos de especia- vizinhos ou conhecidos, mas sujeita-se a uma rede mais ampla
lização e baixa produtividade. de outras imaginações. Só então as pessoas se sujeitarão à obe-
A iniciativa empresarial triunfou no Ocidente porque a lei diência de um código legal porque perceberão que sem esse
integrou a todos em um único sistema de propriedade, forne- código cessarão de prosperar. Só então poderá o governo come-
cendo-lhes os meios para cooperarem e produzirem altas quan- çar a administrar o desenvolvimento em vez de correr heroica-
tias de mais-valia num mercado ampliado. Todos os avanços do mente de um lado para o outro para estancar cada vazamento .
Ocidente, indo até o crescimento exponencial de hoje na infor- Um governo moderno e uma econo1pia de mercado são inviáveis
mação eletrônica e na tecnologia d e telecomunicações, s6 pu- sem um sistema integrido formal de prQ~;Í~ª-.~- .Nfuit;s dos
deram acontecer porque os sistemas de direitos de propriedade problemas dos mercados não-ocidentais atualmente se devem
necessários para seus funcionamentos já existiam. Sistemas in- principalmente à fragmentação de seus acordos de propriedade
tegrados de propriedade legal destruíram a maioria dos grupos e à indisponibilidade de normas padronizadas que permitam aos
fechados, enquanto incentivavam a criação de uma rede mais ativos e agentes econômicos interagirem e aos governos gover-
ampla, onde o potencial de gerar capital aumentava substancial- narem pela lei.
mente. Neste sentido, a propriedade obedece ao que se conhe- Quando os migrantes deslocam-se de países em desen-
ce por "Lei de Metcalfe" (de Bob Metcalfe, o inventor do padrão volvimento e ex-comunistas para as nações avançadas, insti-
Ethernet que, em geral, interliga os computadores). De acordo tuições bem-estruturadas acabam por absorvê-los numa rede
com a Lei de Mete~ , de s istemas de propriedade que os auxilia a produzir mais-
valia. As pessoas que migram dentro de seus pró prios países
{ O valo, de uma ,ede ~ definida pm sua utilidade l população não estão sendo acomodadas deste modo - ao menos _ , não
- é,grosso modo, proporcional ao número de usuários enqua- rápido o bastante. Aos países mais pobres faltam instituições
~\

drados. Um exemplo é a rede telefônica. Um telefone é inútil: que integrem os migrantes nos setores formais, fixem seu s
quem se pode chamar? Dois telefones é melhor, mas não o bas- ativos em formas fungíveis, obriguem seu s donos a serem
tante. É somente quando a maioria da população possui um agentes responsáveis e lhes proporcionem dispositivos de
telefone que o poder da rede alcança todo o seu potencial de integração e influência permitindo que se enfrentem produ-
modificar a sociedade.1 tivamente e gerem capital d entro de um amplo mercado le-
gal. Do contrário, os migrantes inventam, à custa da ordem
Como as redes de computador, que existiam há anos antes de legal, uma variedade de acordos extralegais para substituírem
alguém pensar em interligá-las, os sistemas de propriedade tor- as leis e as instituições de que precisam para cooperarem em
nam-se tremendamente poderosos quando interligados em uma um mercado expandido.
1
90 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 91

A cegueira política, portanto, consiste em não se perceber ridades governamentais vêem apenas um influxo maciço de
que o crescimento do setor extralegal e o colapso da ordem le- pessoas, trabalhadores ilegais, a ameaça de doenças e crimes.
gal existente sejam, no fin al das contas, devidos a um gigantesco Assim, enquanto o Ministério da Habitação lida com seus as-
movimento que se distancia de uma v ida organizada em uma suntos e os ministérios da Saúde e da Justiça com os seu s, nin-
pequena escala para uma vida em um contexto maior. O ~ s guém enxerga que a verdadeira causa da desordem não é ~
líd~r~s _n_acionais não_yêm_ p_e.r._ceb endo é que as F§~á__estão o cresc_imento---po pulacional nem o urbano, nem mesmo uma
espontaneamente se or~nizando em grupos t}ITI"al~~is se ara- mi~ obre _m<!_s um _1.1_ltrawtssadq _s.i.s~emª-l~ga) d~ proprie- ·
dos até que o governo possa proporcionar-lhes um sistema l~ l dade,.
de propriedade. ·Muitos_de nós somos como os seis homens cegos na pre-
O problema fundamental para as nações não-ocidentais não sença q_o ~lefante: um segura a tromba ondulante do animal e
é que as pessoas estejam se transferindo para os centros urbanos, pensa que o elefante é uma cobra ; outro encontra sua cauda e
que o lixo esteja se empilhando, que a infra-estrutura seja insufi- pensa que o elefante é uma corda; um terceiro fica fascinado pelas
ciente ou que o campo esteja sendo abandonado. Tudo isso acon- enormes or elhas em forma de vela; outro abraça suas pernas e
teceu nas nações desenvolvidas. Nem é o problema simplesmente conclui que o elefante é uma árvore. Nenhum examina o ele-
o crescimento urbano. Los Angeles cresceu mais rápido do que fante em sua totalidade, e conseqüente m ; n~; não conseguem
Calcutá neste século, e Tóquio é três vezes maior do que Délhi. fo~ ma- estFaleg iQara lidar~<?__f !l~S~roblemª d~ ta.o _
O principal problema é a demora em se reconhecer que a maior gr:and e orte em suas mãos. Como já vimos, os pobres de países
farte da desordem ocorrendo fora do Ocidente resulta de um em desenvolvimento e_dos ex-co munistas constituem dois ter-
, movimento revolucionário mais cheio de promessas do que de ços da população do mundo - e não têm outra alternativa além
/problemas. Uma vez que o valor potencial do movimento seja de viver fora da lei. Como também vimos, os pobres possuem
aproveitado, muitos de seu s problemas serão de mais fácil reso- muitas coisas, m as seus direitos de proprieâaôe não estão ~
lução. As nações em desenvolvimento e as antes comunistas de- nidoti2r_ <:~~ l~ma.:.. O s milhões de pessoas empreendedoras
vem escolher entre criarem sistemas que permitam a seus governos que preenchem 85 por cento d e todos novos empregos na Amé-
adaptarem-se às mudanças contínuas na divisão revolucionária de rica Latina, aqueles 3 milhões de c hineses nos arredores de
, trabalho ou continuarem a viver na confusão extralegal - e esta, Beijing operando fabriquetas ilegais e aqueles russos que geram
na verdade, não é lá bem uma escolha. a metade do PIB de sua nação, o fazem na base de acordos
Por que será que a todos escapou o verdadeiro problema? extralegais. Com muita freqüência, esses acordos populares d e
Porque existem dois pontos cegos. O primeiro é que a maioria propriedade abertamente co ntradizem a lei oficial escrita. É esse
de nós__ não percebe que o aumentóclãpopulação extralegal o elefante à nossa frente.
mundiªl-~ es ~ltimos quarenta anos gerou uma nova classe Não creio que o aparecimento de pequenos enclaves de se-
de empresários com os seu s próprios acordos legais. As auto- tores econômicos prósperos no meio de um amplo setor sub-
92 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 93

desenvolvido ou informal p renuncie o nascimento de urna tran- dição legal. É claro que havia pobres com empregos e propri-
sição desigual mas ainda assim inevitável para sistemas capita- edades fora da lei, mas esse setor extralegal era consid erado
listas. Com efeito, a existência de enclaves prósperos em um mar relativamente pequeno e, por tanto, uma questão "marginal".
de pobreza esconde um atraso abissal na capacidade da nação de As nações desenvolvidas tinham suas cotas de po breza, de-
criar, respeitar e disponibilizar direitos formais de propriedade semprego e mercados negros, e nós tínhamos a nossa. Lidar
à m aioria de seus cidadãos. com eles era basicamente serviço da polícia ou d e um punhado
O segundo ponto cego é que poucos reconhecem que os de sociólogos acadêmicos que haviam devotado suas carrei-
problemas que enfrentam não são novidade. A migração e a ras ao estudo da exótica nativa. No melhor dos casos, os po-
extralegalidade empestando as cidades no mundo em desenvol- bres eram bons exemplares para a National Geographic e o canal
vimento e nos extintos países comunistas muito se assemelha Discovery.
ao que as nações destnvolvidas do Ocidente viveram durante a Mas ninguém t inha os dados exatos. N inguém mesm o sa-
sua própria revolução industrial. Também se concentrara.m em bia como m ensurar o que os pobres faziam ou precisamente
resolver seu s problemas um a u m . A lição do Ocidente é que o quanto possuíam. Então , ~ ~ colegas e eu decidimos
soluções pingadas e medidas paliativas no alívio da pobreza não guardar n ossos livros e pu blicações acadêmicas, para não
foram suficientes. Os padrões de vida cr esceram apenas quando mencionar nossas r esmas e resmas de estatísticas e mapas go-
a lei e o sistema de propriedade foram reformados para facilitar vernamentais, e visitar os v erdadeiros peritos no problema:
a divisão d e trabalho. Com a capacidade de aumentar su as pro- ~ p~ bres. U m a vez nas ruas observando e escutando, trope-
dutividades por meio dos efeitos benéficos dos sistemas inte- çamo·s ~m fatos interessantes. Por exemplo, a indústria da
grados de pro priedade, pessoas comuns foram capazes de se construção no Peru estava em queda. As con struções dimi-
especializar em mercados cada vez mais amplos e d e aumentar a nuíam, os empregados eram despedid os. Curiosamente, po-
formação de capital. rém, nas lojas de material de construção as caixas r egistradoras
não -paravam e as vendas d e cimento cresciam, qüero dizer,
des~;os de cimento. Depois de algumas investigações, desco-
PONTO CEGO I: brimos que os pobres compravam mais cimento do que nunca
A vida fora da redoma de vidro nos dias de hoje para os seus proj etos de construção - casas, p rédios e lojas
que não possuíam r egistr o nem certidão pública e portanto
Por que não percebemos essa revolução industrial chegar? Na nunca apareceram nas telas dos computadores dos eco nomis-
década de 1980, quando meus colegas e eu começamos nosso tas e estatísticos do governo. Pressentimos uma economia
estudo no Peru, a maioria dos dirigentes supu n h a que nosso extralegal vibrante, independente, oficialmente inv isível bor-
pedaço do mundo era em grande parte controlado por leis . A bulhando nas cidades de todo o m undo em desenvolvimento.
América Latina p ossuía uma extensa, refinada e r espeitada tra- No Brasil, por exemplo, a indústria da construção apresen-
94 HERNANDO DE SOTO
O MISTÉRIO DO CAPITAL 95

tou o mero crescimento de O, 1 por cento e m 1995; ainda as- Nas Filipinas, o jornalBusiness World clamou ao governo para
sim as vendas de cimento durante os seis primeiros meses que "estancasse a corrente humana que congestiona nossa cida-
'
de 1996 se elevaram em quase 20 por cento. O motivo dessa de a ponto de estourar (...) Vê-se barong-barongs de concreto e
aparen te an omalia, segundo a análise d a Deutsch e Morgan blocos ocos - e começa-se a pensar. O que está fazendo o go-
Grenfell, foi que de 60 a 70 por cento das construções da re- verno acerca do problema crescente da falta de moradia e dos
gião nunca chega aos registros. 2 invasores em nossas cidades?"5
O setor extralegal, compreendemos, não era uma questão Na África do Sul, alguns observadores (eu , inclusive) crêem
pequena . Era enorme. que o setor imobiliário extralegal está à beira de sua segunda.
grande expansão. Em 1998 a Newsweek informou que "mais e
mais [ os negros sul-africanos] inundam os assentamentos de
q__
d ades -ern crescimento,.. invasores e as favelas cercando toda cidade sul-africana. Sob o
apartheid, as leis raciais de passe confinavam muitos negros às
O movimento em direção às cidades inchou durante a década áreas rurais. Hoje viajam livremente - mas raramente com
de 1960 na maioria dos países em desenvolvimento, e na década conforto".6 The Economist confirmou a tendência: "Embora uma
de 1980 na China. Por várias razões, comunidades auto-sufici- violência política contra os brancos nunca tenha se materializa-
entes abandonaram o seu isolamento e buscaram se integrar nas do, o final da segregação racial facilitou aos negros pobres aden-
cidades e em seus arredores. Desde 1980, milhões de campone- trarem as áreas ricas dos brancos."7
ses chineses vêm se acumulando em tomo das cidades ao ponto No Egito, os intelectuais e tecnocratas parecem estar cons-
de o Beijing Youth Daily proclamar que "a administração da po- cientes dessa questão há algum tempo. Segundo um relatório
pulação migratória está fora de controle".3 recente, entre 1947 e 1989, "o total da população urbana do Egi-
to(... ) cresceu (... ) de 6,2 milhões para 23,46 milhões". 8 Cifras
O fenômeno também é conhecido dos países em torno do
reunidas por Gerard Barthelemy mostram que a população na
Mediterrâneo. De acordo com Henry Boldrick, depois da Se-
área metropolitana de Port-au-Prince, Haiti, aumentou de
gunda Guerra Mundial os migrantes rurais na Turquia dire-
140.000 em 1950 para 1.550.000 em 1988 e hoje aproxima-se de
cionaram- se às cidades, con struindo suas moradias em terras
2 milhões. Barthelemy estima que cerca de dois terços dessas
governamentais. Esses assentamentos espontâneos, conhecidos
pessoas vivem em favelas, ou no que os haitianos chamam de
comogecekondus, hoje abrigam pelo menos a metade da popula-
bidonvilles.9
ção urbana da Turquia. Embora alguns gecekondus tenham sido
No México, o setor privado atenta cada vez mais ao fenô-
ao menos em parte legalizados e conseqüentemente foram ca-
meno extralegal e envolve-se ativamente para saná-lo. De acor-
pazes de conquistar alguns serviços municipais, a maioria é ain- do com um noticiário:
da informal. 4
96 HERNANDO DE soro O MISTÉRIO DO CAPITAL 97

Um estudo de 1987 do Centro para Estudos Econôrrúcos do Se- O simples tamanho da maioria dessas cidades cria suas pró-
tor Privado (CPSEIS) estimou que o setor informal gerava uma prias oportunidades. Emergiram novos donos de negócios que,
atividade econôrrúca de valor entre 28 e 39 por cento do PIB ofi- ao contrário de seus predecessores, são de origem bastante hu-
cial mexicano; e um estudo de 1993 (...) dava o número de pessoas milde. A mobilidade para cima cresceu. Os padrões de consumo
do "setor informal sem registros" como sendo de 8 milhões em e luxo exclusivos da antiga sociedade urbana foram substituídos
uma força de trabalho total de 23 rrúlhões (...) "Para todo negócio
por outros, mais difundidos.
formal, existem dois informais", declara Antonio Montiel Guer-
rero, presidente da Câmara do Pequeno Comércio da Cidade do
México (CANACOPE), um grupo representando 167 .000 peque-
~ marcha para as cidades
nos negócios formais registrados. "No Distrito Federal (Cidade do
México) existem por volta de 350.000 pequenos negócios infor-
--------
mais para uma população total aproximada de 8 rrúlhões." O que A migração é, obviamente, o fator principal do crescimento ur- (\
isso representa para a área metropolitana da Cidade do México, de bano na maioria das nações em desenvolvimento e nos antigos
20 rrúlhões de pessoas, fica a cargo da imaginação individual, espe- países comunistas. Suas causas, contudo, são difíceis de detec- :,
cialmente quando as crescentes e desregulamentadas favelas se tar. Analistas em cada país ofer ecem diferentes explicações: uma
concentram fora do coração central da cidade}º guerra, um programa de reforma agrária, a falta de um progra- 1

ma de reforma agrária, um embargo estrangeiro do comércio


As zonas extralegais em países em desenvolvimento se caracte- internacional, a abertu ra do comércio internacional, o terroris-
rizam por moradias modestas amontoadas nos perímetros ur- mo e as guerrilhas, a decadência moral, o fracasso do capitalis-
banos, miríades de oficinas entre elas, exércitos de vendedores mo, o fracasso do socialismo, até o mau gosto (é tão mais bonito
apregoando suas mercadorias nas ruas, e inúmeras linhas de no campo, por que não ficam por lá?).
microônibus ziguezagueando. Todos parecem ter surgido do Ultimamente, contudo, as opiniões vêm convergindo em
nada. Correntes contínuas de artesãos, ferramentas debaixo dos torno de u mas poucas causas gerais. A explicação mais visível
braços, expandiram o âmbito das atividades exercidas nascida- para a onda de m igração por todo o mundo em desenvolvimen-
d es. Adaptações locais engenhosas somam-se à produção de bens to é a melhoria das estradas. A construção de estradas e pontes e
e serviços essenciais, transformando drasticamente certas áreas a transformação de caminhos desconexos em estradas apropria-
d e fabricação , distribuição varejista, construção e transporte. As das afloro u na população rural a possibilidade de v iajar, e eles
paisagens passivas que uma vez circundaram as cidades do Ter- começaram a mover-se para as cidades. Novos meios de comu -
ceiro Mundo to maram-se as últimas extensões da metrópole, e nicação proporcionaram um incentivo adicional. O rádio, em
cidades moldadas no estilo europeu cederam a uma personali- particular, aflorou expectativas de um aumento de renda e con-
dade local mais ruidosa misturada a sombrias imitações da faixa sumo. D e milhares de quilômetros de distância vinham trans-
comercial dos subúrbios norte-americanos. missões de rádio divulgando as oportunidades, as amenidades e
98 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 99

os confortos da vida urbana. A modernidade parecia ao alcance tórios governamentais com competência de oferecer conselhos,
de qualquer um com coragem para tomar a estrada em sua busca. responder a perguntas, emitir autorizações ou proporcionar tra-
Há hoje também um acordo razoavelmente difundido de qu e balho situavam-se nas cidades Ê qualquer migrante que buscasse
crises agrícolas foram fatores decisivos em muitos países. A um futuro melhor para seus filhos sabia que as oportunidades de
modernização da agricultura e o mercado incerto para algumas educação eram muito melhores nas cidades. Para camponeses
colheitas tradicionais após a Segunda Guerra Mundial deslan- subempregados com poucos recursos mais do que os de seus pró-
charam demissões maciças de trabalhadores rurais em estados prios engenhos, a educação era um investimento mais e mais va-
trad icionais e libertou vastos contingentes de pessoas prepara- lioso e produtivo. \As cidad es continham a maior parte dos
das a buscar novos horizontes. graduados na escola secundária, assim como os estudantes matri-
Havia também o problema dos direitos de propriedade no culados em centros de treinamento vocacional, escolas e institu-
campo. O longo e complexo processo da reforma agrária apenas tos de educação superior, e candidatos e alunos de universidades.
compactou - e no fim das contas, exacerbou - as dificu ldades A migração, portanto, não é bem um ato irracional. Tem pouco
tradicionais de se adquirirem terras próprias para o cultivo. In- a ver com "instinto de rebanho". É o produto de uma calculada
capazes de possuir uma terra ou encontrar trabalho no campo, avaliação racional das pessoas rurais de suas situações atuais medi-
muitas pessoas migraram para as cidades. das em comparação com as oportunidades a eles abertas em outros
Outra atração poderosa foi uma taxa m enor da mortalida- lugares. Certos ou errados, acreditaram que migrar para mercados
de infantil na maioria das cidades. Essa brecha entre a morta- maiores lhes seria benéfico. A mudança, porém, não era fácil.
lidade infantil nas c idades e no campo se ampliou co m a
melhoria dos serviços médicos nas cidades depois da Segunda
Guerra Mundial. Salários melhores também foram incentivos Pobres, voltem para casa
importantes. Na América Latina, por exemplo,já em 1970 as
1
pessoas que deixavam o campo por empregos semi-especia- Os migrantes encontraram um mundo hostil nas cidades: Logo
lizados nas capitais podiam dobrar ou triplicar s uas r endas, e se deram conta de que, enquanto as pessoas urbanas tinham uma
profissionais e técnicos podiam ganhar seis vezes mais. O sa- imagem romântica, tema mesmo, dos camponeses e facilmente
lário m ais alto contrabalançava o risco do desemprego: um concordassem que todos os cidadãos têm direito à felicidade, pre-
migrante desempregado há um ano podia recuperar a renda feriam que esses bons camponeses fossem buscar a felicidade
perdida em dois meses e meio n a cidade. A vida nas distantes em casa. Camponeses não deviam aparecer procurando a moder-
cidades não apenas parecia melhor; era melho r. nidade. Com esse fim , prati~_IEente_t_?do_país do munds.>_em
Mesmo o crescimento da burocracia nacional tomou-se um d~semrolvilJlento e os antigos países comunistas mantiv~ra1:1
incentivo para a m igração. A centralização do poder nas mãos dos programas de d esenvo lvimento para levar a m odernidade ao
dirigentes governamentais significava que grande parte dos escri- campo.
O MI STÉRIO DO CAPITA L 101
100 HERNANDO DE SOTO

A maior hostilidade aos migrantes v eio do sistema legal. No que frustram as expectativas daqueles a quem exclu i. Como
início, 0 sistema os absorvia ou ignorava com facilidade porque vimos n o Capítu lo 2, muitos países fazem os obstácu los d e
os pequenos grupos que haviam chegado dificilmente transtor- entrada ao s istema legal de propriedade tão desanimad ores e
nariam O stal11s quo. Com o crescimento de seus números, porém, caros que po uco s migrantes con seguiriam passar por en tre a
ao ponto de n ão poderem mais ser ignorados, os recém-che~- burocracia - quase 14 anos e 77 procedimen tos buro cráti-
dos se encontraram barrados das atividades sociais e econômi- cos em 31 ó rgão s públicos e privado s no E gito, e 19 an os e
cas estabelecidas. Era tremendamente difícil para eles o acesso a 176 etapas burocráticas para legalizar a compra de uma terra
moradia, participar de um n egócio formal, o u encontrar traba- papicular n o Haiti.
lho legalizado . As instituições legais da maioria dos países do \)Se existem custos para to rnar-se legal, também existem cus-
Terceiro Mundo haviam sido desenvolvidas ao longo dos anos tos para se permanecer fora da lei. Descobrimos que operar fora
para servir às necessidades e interesses d e certos grupos ur~a- do mundo de trabalho e n egócios legalizado é surpreendente-
nos; lidar com camponeses das áreas r urais era um assunto dife- mente caro. N o Peru, por exemplo, o custo de operação de um
rente. Enquanto os camponeses ficaram o nde deviam, a implícita negócio extralegal inclui pagar 10 a 15 por cepto d e sua renda
discriminação legal não foi aparente. Uma vez acomodados nas anual em subornos e comissões às autoridades. ,Acrescente a esses
c idades, contudo, vivenciaram o apartheid da lei formal. Súbito, pagamen tos os custos de se evitar penalidades, fazendo transfe-
podia-se ver a redoma de vidro. rênc ias fora dos canais legais e o perando de locais d ispersos e
Algumas das nações da antiga União Soviética também en- sem c rédito, e a vida do empresário extralegal acaba sendo bem
frentaram a desorganização de seu s sistemas de propriedade, e mais custosa e c he ia de complicações diárias do que a de um
ao menos algumas elites vêm reconhecendo os benefícios eco- comerciante legal1
nômicos de organizá-los. Segundo um relatório de 1996, Talvez o custo mais significativo seja cau sado pela falta d e
instituições que criem incentivos para que as pessoas· aga~rrem
Mecanismos (...) para a proteção dos direitos da terra ainda as o portunidades economICas e socíãis d e se especializarem den-
engatinham na Rússia (...) Em muitas regiões a terra deve ser tro do mercado. Descobr imos que pessoas que não conseguiam
registrada com uma agência distinta da que registra imóveis. operar d entro da )ei também não con seguiam manter com efi-
Além disso, as proteções legais que o registro fornece não são
cácia a propriedade ou fazer cumprir seus contratos nas cortes;
claras (...) Os procedimentos e alfândega para a proteção e uso
nem con seguiam redu zir as incertezas por m eio de sistemas de
dos direitos da terra devem ser criados do zero (...) A terra é
provavelmente o mais valioso recurso russo, um recurso no qual obrigações e apólices de seguro, ou criar ações d e suas empresas
toda uma sociedade econômica e social pode se basear. 11 para atraírem capital adicional e dividir os riscos. Sendo incapa-
zes de levantar d inheiro para investimen to, não conquistam eco-
Descobrimos que por todo o Terceiro Mundo as atividades nomias d e escala ou protegem suas inovações por meio de royalties
extralegais brotam sempre que o s istem a legal impõe regras ~ patentes.
102 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 103

Com sua entrada na redoma de vidro bloqueada, os pobres Extralegalidade crescente


nunca conseguem chegar perto do mecanismo legal de proprie-
dade necessário para gerar capital. Os desastrosos efeitos eco- As populações das principais cidades do Terceiro Mundo qua-
nômicos desse apartheíd legal são mais marcadamente visíveis na druplicaram nas últimas quatro décadas. Até 2015, mais d e
falta de direitos formais de propriedade sobre imóveis. Em todo c inqüenta cidades nos países em desenvolvimento terão 5 mi-
país pesquisado descobrimos que cerca d e 80 por cento dos lo- lhões ou mais de pessoas, 12 a maioria vivendo e trabalhando
tes de terra não eram protegidos por registros atualizados ou extralegalmente. O setor informal é onipresente nos países
mantidos por donos legalmente responsáveis. Qualqu er troca em desenvolvimento e nas extintas nações comunistas . N o-
de tais propriedades extralegais se restringia portanto a círculos vas atividades surgiram e gradualmente substituíram as tra-
fechados de parceiros de troca, mantendo os ativos de proprie- dicionais. Cam inhando na maioria das ruas fatalmente
tários extralegais fora do mercado expandido. esbarramos em lojas, câmbios, transporte e outros serviços
Proprietários de ativos extralegais têm portanto negado o informais. Até muitos dos livros à venda foram impressos
acesso ao crédito que lhes permitiria expandir súas operações extralegalmente.
- um passo essencial na direção de começar um negócio ou fazer
Bairros inteiros foram adquiridos, desenvolvidos e cons-
crescer um negócio nos países desenvolvidos. Nos Estados
truídos à margem ou se opondo o,~tensivamente aos regula-
Unidos, por exemplo, até 70 por cento do crédito recebido por
mentos governamentais de assentamentos e negócios extralegais.
novos negócios vêm do uso de títulos formais como garantia para
De cada cem moradias construídas no Peru, somente cerca
hipotecas. A extralegalidade também significa que os incentivos
de trinta possuem escritura legal; setenta foram construídas
ao investimento oferecidos pelo seguro legal n ão existem.
extralegalmente. Por toda a América Latina, descobrimos, ao
De09-_4os de fora ~o sistema legal, a única garantia de pros-
menos seis em cada oito prédios eram do setor su bcapi-
peridade do migrante está nas suas mãos. Tinha de competir não
talizado, e 80 por cento de todo imóvel era mantido fora da
só com as outras pessoas, mas contra o próprio sistema. Se os
sistemas legais de seus próprios países não iriam dar-lhes as boas- lei. Segundo a maioria das estimativas, os setores informais
vindas, não tinham outra alternativa além de organizarem seus do mundo em desenvolvimento representam de 50 a 75 por
próprios sistemas extralegais. Esses sistemas extralegais, na mi- cento de todos os trabalhadores e respondem por entre um
nha opinião, constituem a mais importante rebelião contra o status quinto e mais de dois terços de toda a produção econômica
quo na história dos países em desenvolvimento desde suas inde- do Terceiro Mundo.
pendências, e nos países do antigo bloco soviético, desde oco- Consideremos o B_rasil: comojá vimos, trinta anos atrás, maj~
lapso do comunismo. de dois terços das construções para moradia eram de aluguel;
hoje a locação constitui nem bem 3 por cento da construção
brasileira. A maioria desse mercado deslocou-se para as partes
104 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPIT AL 105

informais das cidades brasileiras - as favelas. Segundo Donald processo de poupança e formação de capital. A lém disso , a
Stewar t : crescente contribuição das c idades ao PIB s ugere que muito
capital potencial e conhecimento tecnológico vêm sendo acu-
As pessoas não têm consciência do volume de atividade eco- mulados principalmente nas áreas urbanas.
nômica que existe em uma favela. Essas economias informais
nasceram do espírito empreendedor dos camponeses do Nor-
deste do Brasil atraídos aos centros urbanos. Eles operam por Os extralegais chegaram para ficar
fora da altamente regulamentada economia e funcionam de
acordo com a oferta e procura. A despeito da aparente falta Essa explosão de atividade extralegal no Terceiro Mundo, a to-
de recursos, essa economia informal funciona eficiente-
mada maciça por invasores das áreas rurais e a disseminação
mente.13
de c idades ilegais - os pueblosjóvenes do Peru , as favelas do
Brasil, os ranchos da Ven ezuela, os barrios marginales do México
O Wall Streetj ou rnal relatou em 1997 que, segundo o grupo
e as bidonvilles das an tigas colônias francesas, assim como as
Amigos da Terra, somente 1O por cento da terra ocupada na sel-
cidades formadas por casebr es nas antigas colônias inglesas -
va amazônica brasileira tem escritura.14 Nos o utros países a
é muito mais do que um crescimento populacional, muito mais
extralegalidade cresce.
Diferentemente da s ituação n as nações desenvolvidas, do que pobreza ou mesmo ilegalidade. Essas ondas de ex-
ond e a "classe baixa" representa uma pequena minoria viven- tralegais batendo contra as r edomas de vidro do privilégio le-
d o à m argem da sociedade, em alguns pa íses a extralegalidade gal bem poderiam ser o mais importante fator forçando as
sempre foi a corrente principal. Por exemplo, na maioria dos autoridades a receber a revolução industrial e comercial que
países que estudamos, o valor do imóvel extralegal por s i só é se abate sobre eles.
muitas vezes maior do que o total de depósitos nos bancos "f'm aioria dos governos na maior parte das nações não está
co merc iais, do que o valo r das empresas registradas na bolsa cm condições de competir com o poder extralegal. Em ter-
d e v alores local, do que todo o investimento estrangeiro di- mos estritamente físicos, os empreendimentos extralegais j á
reto e todas as empresas públicas privatizadas e a serem ultrapassaram os esforços governamentais de prov idenciar
privatizadas postas juntas. Isso não deve, refletindo melhor, moradias p ara migr antes e pobres .'. No Peru, até o final da
surpreender: os imóveis r espondem p or cerca de 50 por cen- década de 1980, por exemplo, o investimento governamental
to da r iqueza nacional das nações des envolvidas; n os países em moradias de baixa renda pairou em torno de 2 por cento
em desenvolvimento as cifras estão perto de três quartos. As- do investimento em moradias d o setor extralegal. A inclusão
se n tamentos extralegais são com freqüência o único caminho das moradias d e classe média erg u e a cota governamen/ ~l a
ao investimento nos países em desenvolv imento e nos ex-co- apenas 10 por cento do total dos investim entos informaisl No
munistas, e portanto representam uma parce la importante do Haiti, em 1995, o valor do imóvel extralegal foi aproxim1a-
106 HERNANDO DE SOT O O MISTÉRIO DO CAPITAL 107

mente dez vezes maior do que toda a contr ibuição do gover- em habitações construídas pelo Estado, comunidades nativas, as-
'- sociações de pequenos fazendeiros e organizações de v ilas. Es-
n o haitian9
Esse setor extralegal é uma área cinzenta com uma longa sas organizações resultam dos tipos dife rentes de ocupação
fro nteira com o mundo legal, um lugar onde indivíduos se re- extralegal, tais como as benfeitorias nas construções em terras
fu giam quando os custos da obediência à lei pesam mais do do deserto, em terras agrícolas, acordos especiais para as partes
que os benefícios. Os migrantes tornaram-se extralegais para históricas das cidades, subdivisões das moradias públicas, assen-
sobreviver: pularam fora da lei porque não se lhes permitiu o tamentos com contratos privados, assentamentos com contra-
ingresso. Para viver, comerciar, fabricar, transportar ou até con- tos públicos, apropriações por meio do subarrendamento com
su mir, os novos habitantes das cidades tiveram de fazê-lo o consentimento do proprietário, habitações estatais com escri-
exrralegalmente. turação incompleta, contratos de locação ilegais declarados em
Os acordos extralegais que montaram são obrigações explíci- notário mas não registrados, contratos de assentamentos regis-
tas entre certos membros da sociedade que proporcio nam segu- trados mas não declarados perante notário, assentamentos reco-
rança às suas propriedades e atividades. Representam combinações nhecidos por "processos nacionais d e paz", colonos reassentados,
d e regulamentos emprestados seletivamente do sistema legal ofi- assentamentos registrados com fornecedores de serviços bási-
cial, improvisações ad hoc e costumes trazidos de seus locais de cos ou jurisdições de impostos mas não registrados com a cus-
origem ou criados localmente, e são mantidos por um contrato tódia oficial da propriedade.
social apoiado pela comunidade como um todo e controlado pe- A informalidade raramente é anti-social em sua intenção.
las autoridades que a comunidade escolheu~~ desvantagem dos O s "crimes" cometidos pelos extralegais são planejados com
acordos e>..'tralegais é que não são integrados no sistema formal de objetivos tão comuns como a construção de uma casa, o for-
propriedade e, como resultado, não são fungíveis e adaptáveis à necimento de serviços ou a criação de um negócio. Longe de
maioria das transações; não são ligados ao circuito financeiro e de ser a causa da desorganização, esse sistema de lei informal é o
investimentos; e seus membros não prestam contas às autorida- único meio que os assentados têm de regulamentar suas vidas
des fora de seu próprio contrato social. e transações. Como resultado, nada poderia ser mais relevante
Esses acordos são dirigidos por uma variedade de organiza- socialmente para o modo de vida e de trabalho dos pobres. Em-
ções, incluindo as associações de desenvolvimento urbano, as- bora suas "leis" possam estar fora da lei formal, elas são, em
sembléias de fazendeiros, associações de pequenos comerciantes, geral, as únicas leis com as quais essas pessoas sentem-se con-
organizações de pequenas empresas, comunidades microem- fortáveis. É esse o contrato social por meio do qual vivem e
presariais, federações d e transportes, clubes de reivindicações de trabalham~
mineradores, beneficiários da reforma agrária , cooperativas O s assentamentos extralegais habitados pelos migrantes po-
habitacionais particulares, organizações de assentamento, jun- dem parecer cortiços, mas são bem diferentes dos cortiços das
tas residenciais, comissões comunitárias, comissões beneficiárias metrópoles das nações desenvolvidas. Estes últimos consistem
108 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 109

em prédios uma vez decentes que estão caindo aos pedaços por como estradas, fornecimento de água, sistemas de esgoto e de
n egligência e pobreza. No mundo em d esen volvimento, os abri- eletricidade, construção de mercados, abastecimen to de servi-
gos básicos dos pobres provavelmen~~fr.erão !Ue§9rias, se- ços de transporte e mesm o a administração da justiça e a manu-
rão ; mpliados e progressivamente aristocratizados. Enquanto as tenção da ordem.
h ab itações d os pobresna-s11ações-d esenvolv1.das perdem o valor Em face do avanço d os extralegais, o s gov ernos r etiraram-
co m o passar do tempo, as construções nos assentamen tos po- se. Mas tendem a considerar temporár ia cada concessão, "até a
b r es d o m u ndo em desenvolvimento valorizam-se, evoluindo crise passar". Na verdade, entretanto, essa estratégia é apenas um
em pou cas décadas para equivalentes das comunidades da clas- modo de retardar a derrota inev itável. Em alguns c asos o s go-
se trabalhad ora no Ocidente. vernos criaram exceçõ es para algumas empresas extralegais,
Acima de tudo, os assentados extralegais, contrariamen te às enclaves legais, por assim dizer, onde empresas de origem ilegal
suas imagens d e fora-da-lei, compartilham o desejo da socieda- po dem operar sem perseguição - mas sem as integrar de modo
de civil de levar em vidas pacíficas e produtivas. Como Simon que usufruam da proteção e benefício s d e todo o sistema legal.
Fass escreveu n a eloqüente conclusão de seu livro sobr e a eco- Esses acordos evitam a confrontação aberta e como tal podem
nomia do H aiti: ser considerados um tipo d e tratado d e paz legal transitório. No
~ ~ o r exemplo, peritos já comentam as "habitações se~ -
Essas pessoas comuns são extraordinárias tão-só em um aspec- formais": ----.._____________
to. Suas rend as são muito baixas, tão baixas que um erro sério
de j ulgamento ou um ato infeliz da providência pode com fre- Tais habitações não apenas aumentam o estoque de moradias
q üência ameaçar a sobrevivência de uma farm1ia como uma dentro do país e proporcionam moradia relativamente barata
mas também oferecem a um a ampla gama da população urbana'
entidade corporativa, e às vezes também ameaçar a sobrevivên-
cia de seus membros como entidades corporais_. O que é extra-
um ativo no qual investir. Esse tipo de habitação tem wn certo
o rdinário não é tanto a pobreza em si, mas em vez diss~a
grau de ilegalidade. As estruturas habitacionais não são desen-
h abilidade dessas pessoas de sobreviverem a despeito dela ( ...)
volvidas por meio de procedimentos estabelecidos e regulamen-
N ada que fazem nesse processo é algo além de uma con tribui-
tados e aqueles que as constroem não utilizam as instituições
ção produtiva à sobrevivência e ao crescimento, e os itens sim -
de habitação reconhecidas. São geralmente construídas em áreas
ples por eles obtidos têm uma fun ção concreta como fatores de
agrícolas que foram ilegalmente subdivididas em pequenos lo-
investimento para o processo de produção.15 tes por empresários privados (...)
O governo em geral está envolvido no processo d e aquisi-
Com o crescimento e a diversificação d as ativ idades com as quais ção da terra na habitação semiformal. N as áreas das habitações
são associadas, essas organizações informais também com eça- semiformais onde se efetuaram pesquisas, foram órgãos gover-
ram a assumir o papel do governo . Em grau s variados, respon- namentais que iniciaram suas criações e isso encorajou empre-
sabilizaram-se p elo fornecimento de infra-estruturas básicas tais sários privados a subdividirem a terra ilegalmente em pequenos
HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 111
110

lotes em uma etapa seguinte. O uso da terra foi mudado de agrí- Em outras partes do mundo as preocupações dos extralegais
cola para residencial com a ajuda dissimulada do governo. Os de perderem suas propriedades podem incendiar conflitos aber-
habitantes de tais áreas normalmente adquirem suas terras atra- tos . Um tal caso é a Indonésia, cujos problemas têm estado sem-
vés de um processo informal de subdivisão e comercialização pre nos noticiários nos últimos anos.Já há seis anos, The Economist
de terra informal. Hager El Mawatayah, Exbet Abou Soliman e alertava:
Ezbet Nadi El Sid são os melhores exemplos de tais áreas na
cidade de Alexandria.16 Pessoas pobres inquietam-se pela perda de suas propriedades
porque a urbanização e a industrialização criam demandas por
Mesmo nos locais mais improváveis, existe evidência de que os terras, em um país onde a posse da terra é um negócio extre-
governos estão reconhecendo que suas instituições legais não se mamente turvo. Somente 7 por cento da terra no arquipélago
adaptaram às condições econômicas atuais. Em 1992, a Reuters indonésio tem dono registrado.
informou que o líder líbioly1}:!-'1mmar Gaddafi havia incinerado Inevitavelmente, há um amplo comércio tanto de verdadei-
ras como de falsas escrituras. As pessoas tentando comprar lo-
as escrituras de terras líbias. tzJodos os registros e documentos
tes de terra algumas vezes se deparavam com vários donos
do antigo registro de terras, que mostravam pertencer a terra a
aparentes. E os bancos se precaviam de receber terra como ga-
essa ou àquela tribo, foram queimados", diz-se que o coronel
rantia de empréstimos.19
Gaddafi informou em uma reunião de seu Ministério da.Justi-
ça.. "Foram queimados porqri'f baseavam-se na exploração, na Em outras partes , a extralegalidade está associada de perto com
falsificação e na pilhagem.':17..- a miséria: "Em Bombaim ( ... ) dois terços da cidade de 10 mi-
Em alguns países o se tor informal está hoje na própria raiz lhões de residentes moram o u em barracos de um cômodo ou
do sistema social. As pessoas de Touba, Senegal, que podem ser nas calçadas."20 Não obstante, os extra.legais em outros países vêm
encontradas alardeando suas mercadorias nas calçadas de Nova subindo a escada econômica. Segundo a Organização para Ava-
York e outras grandes cidades dos EUA, pertencem com freqüên- liações Técnicas no Peru (Cuerpo Técnico de Tasaciones del
cia a uma sofisticada seita afro-islâmica que afunila seus lucros Perú), enquanto o valor da terra no setor formal de Lima atinge
de milhões de dólares de volta às su as cidades natais. ANewsweek uma média de US$50 por metro q uadrado, na região de Ga-
descreve Touba como "um Estado dentro do Estado, amplamente marra, onde se situa boa parte d o setor informal de fabricação
isento das leis senegalesas ... [e] a cidade de maior crescimento do Peru, o valor por metro quadrado pode chegar a US$3.000.
no país. Vilarejos inteiros deslocaram-se para lá, erguendo bar- Em Aviación, outro centro extralegal em Lima, a terra vale
racos de lata entre as vilas dos ricos (...) A cidade sem impostos US$1.000 o metro quadrado; e em Chimú , da seção Zárate,
é o centro dos impérios de transportes e de imóveis senegaleses, US$400. Em contraste, em Mira.flores e em San Isidro, os en-
do crescente setor informal e do mercado de amendoim, a prin- dereços mais prestigiosos de Lima, o valor de propriedades legais,
cipal fonte de comércio estrangeiro da nação".18 escrituradas, varia d e US$500 a US$1.000 o metro quadrado.21
112 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 113

velha história de sempre da inquietação social. Eles, também, a princípio atacaram esses
problemas pouco a pouco.
Uma vez que os governos compr eenderem que os pobres já
tomaram o controle de vastas quantidades d e imóveis e unida-
des econômicas produtivas, ficará claro qu e muitos dos pro ble- PONTO CEGO Il:
mas q ue enfrentam são o resultado de a lei escrita não estar em A vidafo@da_Jedoma de vidro no passado
harmonia com o modo de funcionamento real de seus países. É ---
lógico que se a lei escrita está em conflito com as leis pelas quais O deslocamento para as ci_dades
os cidadãos vivem, o descontentamento, a corrupção, a pobreza
e a violência certamente surgirão. A m aior parte dos escritores liga a chegada da grande revolução
A única pergunta que permanece é quando os governos co- industrial e com ercial na Europa à migração em massa para suas
meçarão a legitimar essas posses extralegais integrando-as em cidades, o crescimento da população como o resultado do declí-
uma estrutura legal ord en ada e coerente. A alternativa é perpe- nio das pestes, e a redução na renda rural comparada com a renda
tuar a anarquia legal na qual o sistem a de direitos de pro prieda- urbana.22 Nos séculos XVII e XVIII os trabalhadores nas cidades
de existente continuamente comp ete com o extralegal. Se esses passaram a receber salários mais altos do que os das áreas rurais
países desejam um dia conquistar um sistema legal único, a lei por desempenharem projetos de construção encom endados pe-
oficial deve adaptar-se à realidade do impulso extralegal em massa las classes governantes. Inevitavelmente, os campo n eses mais
em direção a um direito de propriedade difundido. ambiciosos migraram às cidades, atraídos pela perspectiva de
A boa nova é que os reformadores legais não estarão entran- melhores salários.
do em um abismo escuro. O desafio a que são submetidos, Na Inglaterra, a primeira onda de m igração iniciou-se ao fmal
embora enorme, já foi enfrentado antes em muitos outros paí- do século XVI. Desconcertados com o número crescen te de
ses. Os países em desenvolvimento e os ex-comunistas enfren- m igrantes nas cidades e a inquietação resultante, as autoridades
tam (embora em proporções muito mais drásticas) os mesmos tentaram manter a paz com várias medidas paliativas tais como
desafios com os quais as nações desenvolvidas lidaram entre o a distribuição de alimentos aos po bres. Também exerceram per-
século XVIII e a Segunda G uerra Mundial. A extralegalidade sistentes medidas persuadindo as pessoas a retomarem ao cam-
maciça não é um fenômeno novo. É o que acontece quando os po. Uma série de leis promulgadas em 1662, 1685 e 1693 exigia
governos fracassam em fazer coincidirem a lei e o modo d e vida que os cidadãos retornassem a seus locais de nascimento ou suas
e trabalho das pessoas. residências fixas prévias como condição para o recebimento de
Quando a Revolução Industrial teve início na Europa, os ajuda. O objetivo era impedir mais famílias e trabalhadores de
governos também sofreram o incômodo das migrações sem con- migrarem para as cidades à p rocura de emprego. Em 1697 foi
trole, do crescimento do setor extralegal, da pobreza urbana e posta em vigor uma lei que permitia a migrantes viajar pela ln-
114 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 115

glaterra somente se obtivessem um certificado d e assentamento taram as antigas. Processos judiciais proliferaram; o contraban-
das autoridades em seus novos locais de residência. Embora es- do e a falsificação difundiam-se. O s governos recorreram à re-
sas leis desencorajassem a migração de famílias e de enfermos, pressão violenta.'·J
os jovens, saudáveis e ambiciosos solteiros criaram um meio de
retomar às cidades. Tinham, além do mais, o tipo para empre-
sários bem-sucedidos - o u revolucionários v iolentos.
A maioria dos migrantes não encontrou os empregos que
esperava. As regulamentações restritivas, particularmente as di-
--
O surgimento da extralegalidade-

Gradualmente, os migr_antes europe_u s que nã.9_ encontr avam


ficuldades de se obter permissão para expandir ou diversificar tr.abalho legal . começaram a abrir oficinas ile; is em suas ~i-
atividades, limitavam a capacidade dos negócios formais d e cres- dêru::ias...Muito desse trabalho "consistia em procedimento dire-
cer e proporcionar emprego a novos trabalhadores. Alguns en- to, com pouco equipamento capital além d e simples ferramentas
contraram trabalho temporário o u entraram para o serviço de mão".25 Antigos residentes das cidades desprezavam o traba-
doméstico.23 Muitos foram forçados a se assentar precariamen- lho exercido fora das corporações e do sistema industrial oficial.
te nos arredores das cidades européias, nos "subúrbios", os as- Os migrantes, é claro, não podiam ser exigentes; o trabalho
sentamentos extralegais da época, esperando a admissão em uma extralegal era sua única fonte de renda, e o setor extralegal da
empresa o u um emprego em um negócio legal. economia começou a espalhar-se rapidamente. Eli Hecksche r
A inquietação social foi inevitável. Nem bem começou a cita um comentário de Oliver Goldsmith em 1762: "Muitos
m igração para as cidades, as instituições políticas existentes fi- ingleses ofendem impunemente uma ou outra lei praticamente
caram para trás da realidade em rápida mudança. A rigidez da todos os dias de suas vidas... e n enhum, a não ser o venal e o
lei e dos costumes mercantilistas impediam os migrantes de rea- mercenário, procuram fazê-las valer. "26 Dois decretos franceses
lizarem todo o seu potencial econ ômico. A superlotação de uma (de 1687 e 1693), igualmente citados por Heckscher, reconhe-
crescente população urbana, as doenças e as inevitáveis dificul- cem que um dos motivos das especificações de produção não
dades de adaptação de pessoas do campo à vida da cidade agra- serem obedecidas era que os trabalhadores, naquela época mais
varam o conflito social. D . C . Coleman observa que cedo no analfabetos do que nos países em desenvolvimento hoje em dia,
século XVI havia reclamações no Parlamento inglês sobre a não conseguiam praticar mesmo a mais simples exigência legal
"multidão de mendigos" e o grande aumento de "velhacos, va- de que os fabricantes de tecido pusessem seus nomes na borda
ga~undos e ladrões" nas cidades.2 • de seus tecidos. Não obstante, esses trabalhadores migrantes
~ m vez de se adaptarem a essa nova realidade urbana, os eram eficientes. Adam Smith certa vez comentou que, "se dese-
governos criaram mais leis e regulam e ntações na tentativa de jamos que um trabalho seja razoavelmente executado, este deve
eliminá-la. Mais regulamentos acarretaram mais infrações - e ser feito nos subúrbios onde os trabalhadores, não tendo nenhum
logo novas leis eram aprovadas para processar os que desrespei- privilégio exclusivo, não têm do que depender a não ser de seus
116 H ERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 117

caracteres, e, depois, nós o s contrabandeamos à cidade como ta_m parias de algodão traziam penalidades qu e iam desde a escra.-
pudermos".27 vidãQ_~ o _ap_:isionamento até a morte. Os extralegais perma-
As autoridades e os negociantes legalizados não se impressio- n eceram firmes. Heckscher estima qu e em um per íodo de dez
navam tanto com a competição como Adam Smith. a Ingla- anos, n o século XVIII, os franceses executaram mais de 16 mil
terra, durante as décadas seguintes à restauração da monarquia contrabandistas e fabricantes clandestinos de tecidos estampa-
em 1660, alguns tradicionalistas principiaram a queixar-se do dos de algodão. Um número ainda maior foi condenado- ~
número c rescente de mascates e vendedores de rua, das confu- lés ou punido de outra forma. Somente n a cidade de Valence
'
sões em frente a seus estabelecimentos e do aparecimento de ?7 empresários extralegais foram enforcados, 58 su p liciados em
novos lojistas em muitas cidades pequenas. Negociantes formais rodas e 631 m andados às galés. As au toridades tiveram compai-
tentavam em vão livrar-se dos recém-chegados. Em Paris, aba-
- /
xão por apen as um extralegal.
talha legal entre os alfaiates e os negociantes de roupas de se- D e acordo com Ekelund e Tollison, o m otivo d e as autori-
gunda mão durou mais de trezentos anos. Só findou com a dades p erseguirem tão acirradi me;_t~ extralegais não era ape-
Revolução Francesa. ~ p..QFEJ-Ye.-_desejavam proteger as indústrias estab~ l; cid;;;-as
Os preâmbulos das leis e decretos desta epóca freqüentemente estam arias multicolori,d~s _ta!:11.bém d ific~~--:im a coleta d e
referem-se à desobediência a leis e regulamentos prévios. Se~n- i.ry_ip ostos.28 E mbora fosse fáci l identificar os fabricantes de teci-
do Heckscher, tecidos de algodão estampados importados da Ín- dos d e um a só cor e_,nor conseguinte v~rifica!: se pagavam_§eus
dia foram-préíbidos em 1700 de modo a proteger a indústria de lã ~ pastos, os tecidos d e algodão, devido a um n ov~ ; i~tema de
inglesa. Ingleses empreendedores fabricaram suas próprios estam- impressão, podiam ser produ zidos em vári~s ~~s, tornando ·
parias de algodão, encontrando sempre um meio de achar as ex- Il}Uito m~ cil a identificação d e sua o rigem.
ceções e os furos da lei. Um modo de contornar a proibição de se O Es tado apoiava-se solidamente nas corporações - cuja
estampar tecidos de algodão era usar o fustão - um tecido inglês função prin cipal era contro lar o acesso ao em preendimento le-
de algodão com a urdidura em linho . Agspanha também proces- gal - como auxílio n a identificação dos burladores de leis. Mas
sava e punia seus empreend edores extralegais. Em 1549 o impe- tornando as leis mais rigorosas em vez de ajustá- las para incluir
rador C.MJ,oS-l-promulgou ?5 decretos dirigidos_aQ_s_negócios a fabricação extralegal, as autoridades simplesmente forçaram os
extrak.g.üs. Uma lei clamava às-a-;:;:t~ridades para mutilarem as empresários aos subúrbios extralegais. Q uando o Estatuto In-
amostras cortando as bordas que continham a m arca do fabrican- glês dos Artífices e Apr endizes de 1563 fixou os salários para
te para que os compradores soubessem estar comprando merca- trabalhadores e requer eu que fossem aj ustado s anualmente de
doria extralegal. A. intenção era humilhar os distribuidores. acordo com os pr eços de certas n ecessidad es básicas, muitos dos
A repressão governamental aos extralegais foi abundante e pr imeiros extralegais deslocaram seu s negócios para as cidades
cemda e, na Fran_ça., mortal. Em meados do século XVIII as leis afastadas ou para os novos subúrbios estabelecidos, onde a su-
proibindo o público francês de fabricar, importar ou venderes- pervisão estatal era menos rígida e as regulamen tações m ais negli-
118 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 119

gentes o u simplesmente inaplicáveis. A retirada para os subúr- A_derrocada da V~..Ofà€ffl


bios também permitiu aos e:>.."tralegais escaparem ao olhar vigi-
lante das corporações, cujas jurisdições estendiam-se apenas até O s governos europeus foram gradativamente forçados a se reti-
os limites da cidade. rar frente à crescente extralegalidade - como os governos dos
Mais tarde, a competição extralegal aumentou ao ponto de ,,países em desenvolvimen to e os ex-comunistas hoje o fazem .
os proprietários de n egócios formais não terem mais alternativa 'Na Suécia, incapaz de deter os assentamentos extralegais, o rei
a não ser subcontratar parte de suas produções das oficinas nos Gustavo Adolfo teve de visitar e abençoar cada assentamento para
subúrbios - estreitando a base dos impostos e causando sua manter a aparência de um controle governamental.J Na Ingla-
elevação. Um círcu lo vicioso se estabeleceu: impostos mais al- terra, o Estado foi forçado a reconhecer que novas indústrias se
tos exacerbaram o desemprego e a inquietação, induzindo a uma desenvolviam basicamente nos locais sem corporações oures-
maior migração aos subúrbios e a mais subcontratação de fabri- trições legais ; com efeito, os extralegais haviam criado os seus
cantes extralegais. Alguns extra legais saíram-se tão bem que con- próprios subúrbios e cidades especificamente para evitarem o
quistaram o direito de ingressar no negócio formal - embora controle estatal e das corporações. Além do mais, as indústrias
extralegais eram mais eficientes e bem-sucedidas. Era amplamen-
não sem pagar suas cotas de suborno e aplicação de pressão po-
te reconhecido que a indústria têxtil do algodão crescera verti-
lítica.
ginosamente porque não era regulamentada com tanto rigo r
As corporações responderam. Sob os Tudor, numerosas leis
quanto a indústria da lã. As pessoas logo principiaram a reparar
inglesas proibiam oficinas e serviços extralegais nos subúrbios,
que os assentamentos extralegais produziam melhores merca-
mas o simples número de extralegais e su a capacidade de evitar
dorias e serviços do que os seus concorrentes legais da redoma
a detecção frustraram esses esforços. Entre os fracassos mais
de vidro. ~ m 1588 um relatório do Lorde Cecil, ministro da
notáveis, o da corporação de fabricantes de c hapéus e cobertas
rainha Elizabeth I, d escrevia os cidadãos d e Halifax, um dos
de N orwich, que, após uma campanha altamente divulgada con-
novos assentamentos extralegais:
tra os operadores extralegais, se viram incapazes de fazer cum-
prir seus direitos legais exclusivos de produção de chapéus e Sobressaem-se na política e na indústria pelo uso que fazem de
cobertas.29 A competição deixara as corporações tontas. Coleman seus comércios e terras e, de acordo com a maneira rude e ar-
atribui seu declínio à "crescente mão-de-obra, mudanças nos rogante de seus locais de origem selvagens, ultrapassam a todos
padrões de procura e expansão do comércio; o crescimento de em sabedoria e riqueza. Desprezam seus velhos costumes se
novas indústrias e o aumento considerável da indústria rural souberem de um novo, mais cômodo, se afeiçoando mais a
organizada no s istema de produção".3º novidades do que a antigas cerimônias (...) [Possuem] um ar-
dor natural por novas invenções anexado a urna indústria in-
cessante.31'
120 HERNANDO DE SOTO
T O MISTÉRIO DO CAPITAL 121

Os extralegais também começaram a construir dentro das cida- letar o pagamento dos impostos combinados sem jamais exami-
des. Na Alemanha, ónde era necessário ser aprovado num teste nar as mercadorias para conferir quanto os produtores de fato
e obter aprovação legal para se construir, segundo um historia- possuíam. A maioria dos supervisores de produção, seja os per-
dor, "se encontravam distritos inteiros nos quais muitas casas tencentes às corporações ou os nomeados pelo Estado, eram
estavam sendo construídas, embora não houvesse ninguém no continuamente acusados de corrupção e negligência de seus
distrito qualificado para construí-las".32 deveres, uma situação atribuíctaITãlta de respeito ~ivil à lei.
O número d e extralegais, su a persistência e sucesso come- Mesmo os membros do Parlamento, que ao final do século
çou a minar a própria fundação da ordem mercantil. Qualqu~r XVII tinham o poder de autorizar o estabelecimento de negócios,
sucesso obtido era ganho apesar do Estado, e os extralegais ten- eram conhecidos por receberem subornos em troca de favores
diam a considerar as autoridades como seus inimigos. Nesses especiais. As autoridades locais eram ainda piores. Em 1601 um
países onde o Estado processava e transformava em fora-da-lei orador na Câmara dos Comuns defmiu um juiz de paz como
os empresários extralegais em vez de ajustar o sistema para ab- "uma Criatura viva que por Meia Dúzia de Galinhas D ispensa-
sorver os seus negócios, não houve apenas o progresso econô- rá uma Dúzia inteira de Estatutos Penais". Oficiais públicos
mico retardado, mas a inquietação aumentou, derramando-se buscavam culpar os fracassos legislativos não·em leis ruins mas
\ '
em violência. As manifestações mais conhecidas são as revolu- em uma execução inadequada das leis.1 f'Concluo que melhores
ções francesa e russa. leis acerca desses pontos não podem ser feitas, apenas falta-lhes
Os países que se adaptaram com rapidez, contudo, fizeram execução", declarava um folheto de 1577.Joseph Reid argumenta
ullla trãnsiçio relativamente pacífica para uma economia de que a velha ordem desmoronou porque a difundida corrupção
merc~go. Lõgó que o Estado se deu conta de que um setor ope- permeou todas as suas instituições e dividiu a população entre
rário extralegal era social, política e economicamente preferível os que conseguiam tapear o sistema e os que não conseguiam.
a um número crescente de migrantes desempregados, as auto- Ele também observa que um sistema legal que encorajava algu-
ridades começaram a. retirar seu apoio às corporações. O resul- mas pessoas a quebrar a lei e condenava outras a sofrer suas con-
tado, na Inglaterra, foi que menos e menos pessoas requeriam seqüências inevitavelmente iria perder o prestígio de ambos os
admissão nas corporaç_?es, deste modo preparando a cena para eleitorados.33 Juízes de paz dos subúrbios tinham pouco incen-
que o Estado drasticamente alterasse o modo de condução dos tivo para fazerem cumprir leis esboçadas nas cidades e inaceitá-
negócios. - --- veis para os residentes dos subúrbios.'\e..o final do século XVIII
0 poder do Estado também decaiu. Qualquer sistema legal todo o aparato legal enfraquecera e, em alguns países, se corrom-
tão rígido quanto o que precedeu a Revolução Industrial inevi- pera completamente. \
tavelmente tenderia a ser repleto de corrupção. Uma determina- 1Numa época em que o governo a tudo controlava, as pessoas
ção legal de 1692 na Inglaterra declarava que fiscais de impostos punham todas as suas expectativas econômicas no Estado. Isso
em muitas regiões visitavam oficinas e fábricas apenas para co- deu margem a um padrão típico do pré-capitalismo: quando os
122 HERNANDO DE SOTO
l O MISTÉRIO DO CAPITAL 123

salários aumentavam mais do que o preço dos alimentos, os E finalmente ... 300 anos depois
comerciantes clamavam por tetos salariais: quando o preço dos
alimentos subiam mais dos que os salários, os trabalhadores Enquanto as regulamentações mal estruturadas sufocavam os
exigiam um salário mínimo e um teto para o preço de alimen- negócios formais , e os extralegais abertamente desafiavam a lei
tos. Preços, rendas e salários foram fixados por meio de ação e e proclamavam sua insatisfação por serem empurrados às mar-
pressão política, uma situação que desencorajava a produção e gens, a cena estava pronta para os políticos se adaptarem aos fatos.
contratação industrial e agrícola. Nem os preços mínimos, nem A lei ossificara quase na mesma proporção que os assentamentos
os máximos, no entanto, resolveria11_1 os problemas da escassez, migrantes circundavam as cidades. E enquanto os mascates, pe-
da falta de alimentos e do desemprego! "A época", escreve Charles dintes e ladrões invadiam as ruas, enquanto mercadorias extra-
Wilson, "era de violência, quando a busca de fins econômicos legais fabricadas ou contrabandeadas atulhavam os mercados a
'
constantemente demandava a força na retaguarda. "34 Era uma corrupção oficial d isseminou-se, e a violência p erturbou a socie-
época amadurecida para uma batalha ideológica e partidária, nos dade civil.
parlamentos e nas ruas. (~ lei começou a adaptar-se às necessidades das pessoas co-
Já em 1680 um tipo de fatalismo emergira em face da apa- m uns, inclusive às suas expectativas acerca de direitos de pro-
rente impossibilidade de um progresso econômico substancial: priedade, na maioria dos países ocidentais durante os séculos XIX
"os fabricantes pobres em geral acreditam que nunca valerão dez e início do XX. Nessa época, os europeus haviam concluído que
libras( ... ); e se puderem se proporcionar o suficiente para man- era impossível governar a Revolução Industrial e a presença da
ter suas maneiras de viver trabalhando apenas três dias na sema- extralegalidade maciça por meio de ajustes ad hoc. rs políticos
na, Jamais trabalharão quatro". 35 finalmente compreenderam que o problema não eram as pes-
\Em meio a tais c rises econômicas e inquietações sociais, os soas, mas a lei, que as desencorajava e as impedia de serem mais
mais fortes e mais confiantes em si mesmos decidiram emigrar produtivas.
ou se alistar em movimentos revolucionários: .Entre os séculos Embora o quadro da sociedade pré-capitalista e as circuns-
XVII eXIX, centenas de milhares de italianos, espanhóis e fran- tâncias de seu declínio sejam bastante semelhantes na maioria
ceses e outros europeus emigraram a outras terras em busca de dos países europeus, o resultado não foi sempre o mesmo. Paí-
um futuro melhor: Na França a perseguição dos huguenotes e ses que fizeram esforços legais para integrar o empreendimento
~ extral~gais r:.o setor têxtil impeliu muitos trabalhadores extralegal prosperaram mais rapidamente do que os países que
empreendedores e habilidosos a partirem, principalmente para resistiram às mudanças. Facilitando o acesso à propriedade for-
a Inglaterra e a Holanda, onde eles e seu s anfitriões consegui- mal, reduzindo os obstáculos engendrados por regulamentações
ram prosperar. obsoletas e permitindo os acordos locais existentes de influen-
ciarem a feitura de leis, os políticos europeus eliminaram as
contradições em seus sistemas legais e econômicos e permiti-
124 HERNANDO DE SOTO

ram às suas nações conduzirem a Revolução Industrial a novas


alturas.
O passado da E uropa se assem elha fortem ente ao presente
dos países em desenvolvimento e ao dos extintos países comu- 5
nistas. O problema fundamental que estes últimos enfrentam
não é que as pessoas estejam invadindo e entulhando as c idades, As lições esquecidas da história
que os serviços públicos sejam inadequados, que o lixo esteja se norte-americana
acumulando, que crianças maltrapilhas esmolem nas ruas, ou
mesmo que os benefícios de programas de reforma macroeco-
nômicos não alcancem a maioria. Muitas dessas dificuldades
existiram na Europa (e também nos Estados Unidos) e foram
por fim superadas. Q_problema real é que nós ainda não reco- Esta terra é abençoada por ter de vencer apenas uma tirania: a do status quo.
nhecemos que todas essas dificu ldades con_s titu~um~ m-
MILTON E ROSE FRIEDMAN
~t_a m_udança no caráter das expectativas: embora os pobres
fluam para as cidades e criem acordos sociais extralegais, estão
f~rçand~ uma grande redistribuição de poder. U ma vez que os
governos dos países em des~nv~lvimento e os antes comunistas Ao m e interessar cada vez mais pelo papel do sistema fo rmal
~Zeitem isso, poderão começar a surfar a onda em vez de serem de propriedade no desenvolvimento econômico, fiz inúme-
engolidos por ela. ras viagen s a nações desenvolvidas para descobrir o que os seus
peritos em direitos de propriedade fariam para integrar os ati-
vos extralegais de urna nação em um único s istema de pro-
priedade legal. Treze anos depois, milhares de quilômetros e
alguns cabelos brancos a mais, eu havia visitado praticamen-
te toda o rganização relacionada com a propriedad e no mun-
do desenvolvido - dos meus amigos do Registro de Terras
de Sua Maj estade e da Autoridade de Terras do Alasca, até o
Toki Bo japonês. Ninguém sabia a resposta. Todos os peritos
a qu em consultei e todos os profissionais associados às mi-
r íades d e instituições e órgãos relacionados com a proprie-
dade por mim visitados admitiram não ter jamais pensado no
assunto.
'1
1

HERNANDO DE soro O MISTÉRIO DO CAPITAL 127


126

As pessoas que operam os sistemas de propriedade nas nações foram capazes de reconhecer que os contratos sociais nascidos
desenvolvidas têm, fundamenta.hnente, preocupações diferentes. fora da lei oficial eram u ma Í<?!!.t<:_~i!ima ~ e de i!!contrar
Preocupam-se, em grande parte, com assuntos relativos aos di- meios_de ~bsorve~ss~s çontratos. D esta forma, obrigavam alei
reitos de propriedade. Minha principal preocupação, contudo, não a servir à formação do capital popular e ao crescimento econô-
eram os direitos de propriedade per se, mas os "meta.direitos" - o mico. É isso o que confere vitalidade às instituições de proprie-
acesso a esses direitos, ou o direito aos direitos de propriedade. dade atuais do Ociden te. Além do m ais, essa revolução na
Apesar dos muitos assuntos de interesse mútuo - ta.is como a propriedade foi sempre uma vitória política. Em todos os países
reestruturação de uma organização de registros para que integre resulto u da conclusão de poucos hom en s iluminados de que a
as informações recolhidas em pesquisas de campos em um banco lei oficial não fazia sentido se uma boa parte da população v ivia
de dados, ou como desenvolver procedimentos para digitar os li- fora dela.
mites de fronteiras em mapas de base-, os peritos em proprie- As várias histórias da propriedade na Europa ocidental, no
dade não sabiam me dizer como conduzir as pessoas na posse de Japão e nos Estados Unidos, todas têm algo ú til a oferecer em
ativos adquiridos em acordos extralegais para o sistema legal de relação às preocupações atuais dos países em desenvolvimento
propriedade. Como conced er às pessoas o direito aos direitos de e antes dos ex-comunistas. Em cada um desses países a aparente
propriedade? ilegalidade não se referia a crimes, e sim a um confron to da cria-
Era óbvio, do bocado de h istória ocidental que eu lera, que ção de leis em nível popular com o legislar o ficial. A revolução,
em algum ponto em seus passados todas as nações ocidentais em cada um dos casos, envolveu a fusão gradual d e ambos os
fizeram a transição dos acordos dispersos e informais para um sistemas.
sistema de propriedade legal integrado. Então, por que não ir Histórias detalhadas de todos esses países seriam, contudo,
buscar lá, na história do Ocidente, a evolução d e seus sistemas um pouco demais para este livro. Resolvi, portanto, concentrar-
de propriedade? Meus anfitriões concordavam plenamente, e os me nos Estados Unidos porque, há mais de 150 anos, este tam-
aficcionados em história no Registro d e Terras de Sua Majesta- bém era um país de Terceiro Mundo. Os governos e o judiciário
de e na Associação Alemã de Agrimensores Licen ciados m e apon- dos novos estados, ainda não tão u nidos legahnente, tentavam
taram seus livros favoritos. lidar com a lei e a desordem dos migrantes, colonos, mineradores
Minha leitura, milhares de páginas depois, me levou à con- de ouro, gangues armadas, empresár ios ilegais e todo o matiza-
clusão fundamental de qu e a transição para um sistema ~ r~- do resto de figuras que tornaram o estabelecimento do Oeste
priedade legal integrado tem pouco a ver com a tecno0g1a. norte-americano tão bravio e, ao menos em retrospectiva, tão
(Embora a tecnologia desempenhe um importante papel d e romântico. Para um terceiro-mundista como eu , esse quadro do
apoio, como veremos no Capítulo 6.) A mudança crucial tem a passado gringo é surpreendentemente fam iliar. Enquanto meus
ver com a adaptação da lei às necessidades econômicas e sociais colegas e eu temos dificuldade em compreender o índice Dow
da maioria da população . Gradativamente, as nações ocidentais Jones d e 11.000, nos sentimos bastante em casa entre os ínvaso-
128 HERNANDO DE SOT O O MISTÉRIO DO CAPITAL 129

res da Virgínia de Thomas Jefferson, ou nas povoações de caba- simplesmente explorando-a. No desenrolar, como será visto.
nas de madeira do Kentucky de Daniel Boone. descobri muitos exemplos que me recordaram os países em
Como as autoridades do Terceiro Mundo hoje, os governos desenvolvimento e os antes comunistas.da atualidade: migração
n orte-americanos de então tentaram podar o aumento expo- maciça, explosões de atividade extralegal, inquietação política e
nencial de invasores de terras e acordos extralegais; mas ao con- descontentamento geral com o antiquado sistema legal que se
trário das autoridades do Terceiro Mundo, acabaram por admitir recusava a reconhecer que suas doutrinas e fórmulas eram pou-
que, nas palavras de um congressista norte-americano, "o siste- co relevantes para o mundo real. Também descobri como a lei
ma d e terras v irtualmente desmoronou(...) e no lugar de legis- dos EUA gradualmente integrou os acordos extralegais trazen-
larmos para eles, havemos de legislar atrás deles, numa dedicada do uma ordem pacífica - demonstrando deste modo, como
perseguição, seja às Montanhas Rochosas ou até o Oceano Pa- veremos no Capítulo 6, que a lei deve ser compatível com a for-
cífico". O que os políticos norte-americanos por fim aprende- ma de as pessoas organizarem suas v idas. O único modo de a lei
ram , como expressou Francis Philbrick, foi que as "forças que continuar viva é permanecendo ligada aos contratos sociais reu-
mudam a lei em modos outros que os triviais situam-se fora nidos entre gente de carne e osso que tem os pés no chão.
dela". 1 Mesmo a celebrada "Lei de Herdades" de 1862, que con-
cedia aos colonos 160 acres de terras livres simplesmente por
concordarem em habitá-las e trabalhá-las, foi menos um ato de O paralelo com a história norte-americana
generosidade oficial do que o reconhecimento de umfait accompli:
os norte-americanos se assentavam - e melhoravam - a terra É difícil compreender o quão importante foram a pressão ex-
extralegalmente há décadas. Seus políticos gradualmente modi- tralegal e a resposta política nos Estados Unidos com a leitura
ficaram a lei para integrarem essa realidade no sistema legal ofi- indiscriminada na seção de H istória Norte-americana de uma
c ial e conquistarem alguns pontos políticos em troca. Tendo biblioteca. Nem será fácil para a maioria dos políticos e tecno-
assim modificado suas leis para acomodar os acordos extralegais cratas preocupados com reformas descobrirem a história norte-
existentes, os dirigentes dos Estados Unidos deixaram os ativos americana que mais devia lhes interessar: a conexão entre a
dos colonos e min eradores norte-americanos prontos para se- legalização da propriedade e a criação de capital. Para ser social
rem convertidos em capital. Assim como nos Estados Unidos e politicamente útil, a história tem de ser remontada para que
no século XIX, o desafio de capitalizar os pobres do Terceiro esclareça o problema tratado. E, no final das contas, os especia-
Mundo e de países antes comunistas é, no fundo , um desafio listas em propriedade não escreveram sobre a transição dos di-
político que precisa ser reformado com ferramentas legais. reitos extralegais a um sistema de propriedade legal integrado.
Descrevendo a evolução da propriedade nos Estados Uni- Pode haver diversas razões para isso.
dos, como o farei neste capítulo, não tenciono reescrever a his- Em primeiro lugar, o processo histórico ainda não está com-
tória norte-americana; como o meu homônimo legendário, estou pleto. Contrariando a crença popular, os sistemas de proprieda-
130 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 131

de abertos a todos os cidadãos são fen ômenos relativamen te re- Minha intenção neste capítulo, quero mais u ma vez enfatizar,
centes - não têm mais de duzen tos anos - e todas as implica- não é reescrever a h istória dos Estados Unidos, m as reorganizar
ções d essa transição ainda estão por surgir. Na maioria das nações essa narrativa familiar de u m modo que nos permita compreen-
do Ocidente a importante tarefa de uma reforma de p roprieda- der que o caos aparente nas nações em desenvolvimento e nos
de difundida se completou somente há cerca de cem anos; no extintos países comunistas é na verdade a bu sca de uma nova
Japão se firmou há men os d e cinqüenta anos. J á que todo o pro- ordem legal. Examinemos, então, a transição da "lei" extralegal
cesso da criação de sistemas de propriedade integrados foi mais das florestas e campos do infante Estados Unidos para os seu s
o resultado de uma evolução inconsciente do que de um plane- livros de lei.
jamento consciente, não surpreende que talvez leve um tempo
antes que todas as lições úteis da c riação de propriedade nas
nações desenvolv idas sejam aparentes para o mundo em desen- Deixando para trás a antiquada legislação britânica
volvimento.
Em segundo lugar, a propriedade tem sido considerada tra- O século XVI assistiu ao começo de u m a m igração sem prece-
dicionalmente do ponto de vista das nações d esenvolvidas. A dentes de eu ropeus ocidentais às costas da América do Norte e
maior parte da literatura que hoj e d esabrocha acerca da proprie- da América d o Sul - o que o h istoriador Bernard Bailyn cha-
dade toma a sua gênese no Ocidente por certa. mou "um dos maiores eventos da h istória registrada".2 Na Amé-
A terceira razão do porquê do processo de criação da pro- rica do Norte britânica, segundo H offer, um "frio, cansado e
priedade formal ser de difícil compreensão é a dificuldade de apreensivo agrupamento d e hom en s e mulher es (...) juntou-se
seguir-se o fio de sua história. A lenta absorção das práticas, cos- na costa oeste do Atlân tico, perscrutando uma r egião selvagem
tumes e normas das leis extralegais na lei formal foi obscurecida densamente arborizada. E m punhando bacamartes e Bíblias, al-
por outros eventos históricos. A concessão de direitos d e pro- guns devem ter evocado lembranças do mun do deixado para
priedade aos colonos e invasores de terras nos Estados Unidos, trás".3
que acabou por criar a base para a geração d e capital e transações Entre essas lembranças havia noções de com o se construir e
em um mercado expandido, é em geral considerada uma estra- manter comunidad es, solucionar d ispu tas, adquirir terras e for-
tégia política que visava a auxiliar as ambições imperiais norte- mar instituições governamentais. O sistema legal desempenhou
americanas, ajudar os pioneiros a explorarem os vastos recursos papel proeminen te n a resolução dos conflitos que essas ações
do país e acalmar tensões regionais. Que essas mesmas medidas invariavelmente criavam. Com efeito, a lei "ia a todos os luga-
possam também ter permitido aos EUA transcender o conflito res n o m1c10 n orte-americano, Jª q ue os pnmerros governos
" • ., • • • ,I' '' • •

entre o sistema legal e os acordos extralegais dos invasores de colon iais baseavam-se em docu mentos legais- 'alvarás'(...) As
terras e outros pioneiros não tem s ido o enfoque principal dos econom ias co lon iais funcionavam sob leis que regiam os pre-
especialistas em propriedade. ços, os salários e a q ualidade dos artigos. A lei conced ia o meio
132 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 13 3

para as pessoas venderem ou cederem suas terras a outros, pro- coloniais esperavam, fossem seguidos".6 Nem toda a terra era
porc ionava um foro para a resolução de discussões sobre cercas fértil, bem drenada, ou próxima a prados para suprir com fen o
qu ebradas e gado extrav iado, e até dizia às pessoas como adorar, o gado e os cavalos dos colonos.7 E m suas buscas por terras ade-
casar, cr iar seus filhos e tratar seus empregados e vizinhos".4 quadas os colonos no rte- americanos com freqüência desloca-
In icialmente os colonos tentaram aplicar as doutrinas da lei vam-se por capricho, marcando fronteiras, cultivando campos,
de propriedade inglesa para trazer a o rdem. Mas a tradicional construindo casas - e então abandonando tudo e seguindo para
lei inglesa n ão h avia prev isto uma sociedade que rapidamente um território mais fértil.
gerava novas formas de acesso à propriedade sem um sistema O resultado para os direitos de propriedade foi a grande varia-
d e escrituras estabelecido e aceito . A tragiçional lei inglesa, eor bilidade e extralegalidade. Em sua análise das mudanças legais do
exemplo, n ão aconselhava como as cortes deveriam lidar com Massachusetts colonial, David Thomas Konig oferece uma des-
casos envolvendo pessoas que houvessem comprado ou herd_a- crição dos fracassos burocráticos e técnicos que exacerbaram o
d o uma escritura dúbia. C om o resultado, 'Julgamentos abertos problema da migração. A falta de um sistema agrimensor unifor-
d e escrituras nas cortes dos condados fizeram-se indispensáveis. me, por exemplo, criou divergências e irregularidades. Por todo
Todas as p artes interessadas podiam testemunhar, e a decisão da o estado de Massachusetts, as autoridades coloniais com freqüência
corte firmava-se como uma garantia pública e relativamente efi- discordavam acerca de como as terras deveriam ser divididas. "Não
caz onde não existia outra".5 havia um acordo, por exemplo, se linhas retas ou as característi-
A m aioria desses colonos, contudo, pouco compreendia as cas naturais dos terrenos deveriam ser usadas para separar os lo-
~ecnicalidades da lei inglesa. Muitos não sabiam ou não se im- tes d e terra." Um colono "presumira que sua concessão de
portavam em saber a diferença entre mandados judiciais, lei, trezentos acres em Reading tinha forma retangular mas, para o
eqüidade e outras sutilezas. Mais importante, a tradicional lei seu desapontamento, mais tarde descobriu que o lote de seu vizi-
inglesa de propriedade freqüentemente era inadequada para li- nho na cidade seguinte fora marcado 'em formato circular' cujo
dar com os problemas confrontando os colonos. Uma supera- arco subtraía alguns hectares de sua terra".8 Falhas técnicas nos
bundância d e terras na América do Norte britânica presenteou procedimentos agrimensores também se somavam à incerteza e à
o s primeiros colonos com oportunidades inimagináveis na Eu- confusão. Konig nota que a dificuldade em compensar o meridiano
ropa que haviam deixado. Chegando "a um continente onde norte-americano m uitas vezes criava concessões de terras sobre-
muitos dos terrenos eram naturalmente abertos ou foram des- postas, até que John Wmthrop N criou uma tabela de variação
bravados pelos índios, os ing_leses [ e outros europeus] apressa- para a mensuração de terras em 1763.9
ram-se em dividir suas novas fontes de riqueza ( ... ) Como Ao articular decisões para uma atordoante variedade de dis-
resultado, a escrupulosa observação de detalhes foi facilmente putas por propriedade, cujas n aturezas tinham poucos ou ne-
omitida. A inexatidão nas partilhas e registros foi tolerada, e nhum precedente inglês, as autoridades coloniais não podiam
pouca atenção foi dada aos planos ordeiros que, as autoridades facilmente submeter-se à jurisprudência inglesa. Em vez disso,
134 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 135

"as cortes com freqüência voltavam-se para os costumes locais invasores em seus territórios, e podiam basear seus direitos so-
da cidade e os transformavam em um novo conjunto de leis que mente na ocupação e na compra feita dos índios". 12 Durante os
iria estabilizar os negócios de terra".10 Em questões que iam da primeiros anos de Maryland, franceses e outros povos não-
autonomia política doméstica ao uso e distribuição de terras, os ingleses residiram em terras que não poderiam possuir confor-
colonos principiaram a desviar-se significativamente das leis me as condições da concessão. E em 1727, legisladores da
inglesas que ofereciam pouca ou nenhuma relevância lógica às Pensilvânia protestavam contra aqueles "tipos que freqüen-
realidades da vida colonial. Como Peter Charles Hoffer enfatiza: temente sentam-se em qualquer pedaço vazio de Terra que en-
"Na teoria eram parte do domínio pessoal do rei [ e sujeitos à contram". Esses colonos invasores norte-americanos já haviam
sua lei] , mas os fatos anteciparam-se, invadindo o terreno da ocupado e melhorado 100.000 acres de terra sem, como o ex-
teoria. Distantes da Inglaterra, pouco povoadas, ricas em recur- primiu um historiador, "uma sombra de direito". 13
sos naturais e ocupadas por homens e mulheres que sabiam o Na Nova Inglaterra, políticos com propriedades não viam
que queriam e agarravam uma pechincha quando a v iam, asco- virtude alguma nas atividades desses homens a quem conside-
lônias inclinavam-se ao autogoverno."11 ravam simplesmente invasores ilegais.Já em 1634 em Massa-
chusetts, a Corte Geral tentou restringir a ocupação ordenando
"que todas as concessões de terras aos cidadãos fossem regis-
Uma antiga tradição norte-americana: A ocupação trad as e uma transcrição enviada à Corte. O levantamento se-
ria executado em cada cidade pelo chefe de polícia e quatro
Embora os migrantes iniciais fossem principalmente súditos ou tros cidadãos". 14 Isso também não funcionou. O fracasso di-
ingleses e obedecessem a leis inglesas, uma vez na América do fundido daqueles que ocupavam as terras "de seguirem as
Norte, em uma realidade diferente, o modo como se relaciona- inj u nções de 1634 e 1635 forçaram a Corte Geral [ em 1637] a
vam começou a mudar. Na Inglaterra, ocupar um lote de terra agir mais uma vez e exigir 'que alguma medida fosse tomada
por um longo período sem uma escritura - "a ocupação" - para levar os homens a registrarem suas terras, ou multá-los
era contra a lei. Nos Estados Unidos, sem enfrentar uma resis- por essa negligência"'.15
tência inicial e com muitas oportunidades, a ocupação das ter- No entanto, não havia meios legais eficazes de reconci-
ras disponíveis rapidamente tomou-se prática comum. 10 ato da liar muitos dos conflitos que surgiam. Como resultado, os
ocupação de terras é tão antigo quanto a própria nação. Segun- invasores voltaram-se para dispositivos de facto que criaram
do o estudo de Amelia Ford dos precedentes coloniais do siste- passagem para a legitimação da ocupação. Muitos dos confli-
ma de terras estadunidense, "antes da chegada da Massachusetts tos mais intensos tiveram lugar nos remotos terr itórios, lar-
Bay Company na Nova Inglaterra, havia colonos sem alvarás ou gamente desocupados, hoje conhecidos por Vermont e Main e.
concessões vivendo em vários locais dentro dos limites da baía Antes da Revolução norte- americana, Nova York e New
(...) os primeiros colonizadores de Connecticut legalmente eram H a m pshire reivindicaram o território de Vermont. 16 De modo
136 HERNANDO DE SOTO O M ISTÉRIO DO CAPITA L 137

a driblar a reivindicação de Nova York, o governador de New um hectare, e manter u m reban ho por um ano; se isso não fosse
Hampshire, Benning Wentworth, "agindo sob o princípio de feito dentro de três anos, a terra voltava ao E stado".20 So b a lei
que a posse representava nove décimos da lei( ...) doou con- de Massachusetts, os deveres d e um colono " incluíam a posse
cessões na região aos cidadãos de N ew Hampshire e de de fato e, no prazo de três anos, a construção de uma casa de um
Massachusetts( ... ) [O resultado foi que entre 1764 e 1769] certo tamanho, normalm ente dezoito a vinte pés quadrados, e a
131 condados foram concedidos a mais de seis mil(...) gru- limpeza d e c inco a oito acr es para a ceifa e o cultivo".2 1
pos seletos de indivíduos".17 Em M aryland, d urante os anos de 1670 , Lorde Baltimore
Seguindo em seus calcanhares, invasores pouco leais a qual- usou a ocupação d e terras para "solucionar a disputa de terri-
quer estado em especial logo ocuparam o territór io. Com efei- tórios na Costa Leste e na baía de D elaw are".22 Como medida
to, "colonos começaram a fluir para Vermon t e se assentar onde para manterem suas en tradas de r enda fluindo, o s Penn na
quer que lhes agradasse".18 Bem cedo deram-se conta da impor- Pensilvânia "comunicaram q ue as p essoas assentad as em qual-
tância da ação coletiva e principiaram "a peticionar primeiro N ew quer terra poderiam obtê-las ao pr eço da época d e seu assen-
H am pshire e depois o governador de Nova York por uma con- tamento com juros até o presente, m enos o valor das melhorias;
cessão de terras que incluísse os seus povoamentos, ou u m a os que não podiam cumprir essa deter minação eram obriga-
determinação legal confirmando-os em suas terras". 19 Embora dos a pagar uma q uitação pr o porcional ao dinheiro de com-
ambas as colônias tenham tentado frustrar as r eivindicações dos pra".23 Como os Penn logo d esco briram, porém, tal diretiva
invasores repetidamente exercendo procedimentos de despejo provou-se por demais difícil d e se exec utar se os ocupantes das
contra eles, o dommio invasor do território era tão completo que terras não quisessem pagar. Na verdade, "ficou claro que a não
E than Allen e seus "seguidores invasores" conquistaram o status ser que algum modus vivendi fos se estabelecido com esses ho-
de estado para Vermont logo após a Revolução . Um pr imeiro mens determinados, com fom e de terra e que não podiam ser
resultado desse triunfo extraordinário do ''poder da ocupação" mandados embora, im ensas receitas se perderiam( ...) Por con-
fo i o reconhecimento formal de seus acordos de propr iedad e. seguinte, o d epartamento de terras (da Pensilvânia] foi coni-
A ocupação muitas vezes era alimentada por políticos com vente ou permit iu muitos usos que não tinha poder de impedir
posses, ansiosos por desenvolver e explorar os recursos da colô- e surgiram, a lém dos direitos r egulares oficiais, muitas espécies
nia. Na maioria das colônias os políticos acred itavam qu e o de- locais d e escrituras d e terra".24
senvolvimento territor ial poderia ser con quistado apenas por Garantindo os d ireitos que esperavam conquistar por meio
m e io da imigração. Para conquistarem esse objetivo, os políti- de tais po líticas de povoamento, os invasor es de terras com fre-
cos coloniais concederam concessões a indivíd uos e grupos para qüência acharam o sistema formal demasiado oneroso ou com-
que se assentassem em terras inexploradas, predicando a passa- plexo. Como Amelia Ford também observa, "o departamento
gem da escritura na ocupação e melhoria. Na Virgínia, segundo de terras era por demais d istan te, as questões por demais confu-
Ford, "assentar a região significava construir uma casa, plantar sas, e os métodos por demais lentos para serem convenientes
138 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 139

aos práticos invasores" .25 As leis inglesas tornavam-se mais e mais vida de que tais direitos de propriedade extralegais ajudaram a
irrelevantes para o m odo de viver e trabalhar de muitas pessoas. evitar discórdias, eram amplamente reconhecidos nas comuni-
dades de fronteira norte-americanas e tornaram-se a fonte dos
títulos legais anos mais tarde.
O novo contrato social: "Direitos Tomahawk" A despeito da aquiescência implícita dos políticos locais a
esses acordos extralegais, os ocupantes das terras ainda encon-
No caos circundando a lei, as terras e as propriedades, os migran- traram um mundo hostil. Constantemente provocavam confli-
tes se deram conta de que se fossem viver em paz entre si, ti- to com os índios por invadirem suas terras. Mas esses homens
nham de estabelecer algum tipo de ordem, mesmo se esta tivesse também eram uma ameaça à elite, que temia perder suas vastas
de ser fora da lei oficial. Os ocupantes das terras começaram a propriedades. Foi por isso que um membro da elite - George
inventar seus próprios títulos extralegais de propriedade conhe- Washington - reclamou em 1783 dos "Bandidos que desafiam
cidos como "direitos tomahawk", "direitos de cabana" e "direi- toda Autoridade enquanto coam e dispõem da Nata do País para
tos de milho". Os "direitos tornahaw k" eram garantidos matando prejuízo de muitos". 29
algumas árvores próximas a urna fonte, e marcando a casca de
uma ou m ais delas com as iniciais da pessoa que fizera a melhoria.
Já em 1660, ocupantes de terras de Maryland desenvolveram o Atirando no xerife
costume de marcarem as árvores nas terras que desejavam antes
de serem m edidas com a permissão do "agrimensor geral da O s migrantes começaram a demarcar fronteiras, cultivar cam-
colônia".26 Ao final da Revolução norte-americana a prática de pos, construir moradias, tran sferir terras e estabelecer c rédito
se marcar árvores para direitos de posse a terras tornara-se tão bem antes d e os governos lh es conferirem o direito de fazê-lo.
proeminente que um oficial do exército escreveu ao secretário A despeito de seu s empreendimentos, contudo, muitas autori-
de G uerra: "Esses homens da fronteira acostumaram-se a assen- dades permaneceram convencidas de que esses novos n o rte-
tar-se nas melhores cerras, por meio de um direito tomahawk ou americanos desobedeciam flagran temen te a lei e deviam ser
m elhoria, como o denominam, supondo-o suficiente como es- processados. Mas isso não era fácil. Mesmo quando George
critura. "27 Washington, o pai dos Estados Unidos, tentou d espejar os inva-
"Direitos de cabana" e "direitos de milho" s ignificavam sores em sua fazenda na Virgínia, seu advogado o advertiu de
marcar a terra pela construção de uma cabana de madeira ou uma que, "se ele tivesse sucesso em seu processo contra os ocupan-
plantação d e milho. Significativame nte, esses d ireitos extralegais tes de sua propriedade, eles provavelmente incendiariam seus
eram comprados, vendidos e transferidos - assim como os tí- estábulos e cercas".3º
tu los.28 E embora tais direitos de cabana ou de m ilho possam As relações entre outros estados e os invasores locais tam-
não ter concedido a ninguém o dir eito legal à terra, não há dú- bém começaram a esquentar. Mesmo antes da revolução, os
140 HERNANDO DE SOTO O M ISTÉRIO DO CAPITAL 141

migrantes de Massachusetts já haviam começado a assentar-se Outras colônias também fizeram o melhor possível para re-
n o Maine, um território que Massachusetts r eivindicou já em primir a ocupação das terras públicas e privadas. Na Pensilvânia
1691. A princípio, os políticos de Massachusetts toleraram o os colonos escoceses e irlandeses principiaram adentrando ter-
crescimento rápido de invasores no d istante Maine. Depois da ras índias já em 1730, e os índios reagiram. As autoridades colo-
Revolução, contudo, com o seu tesouro falido e sua moeda de- niais repetidamente alertavam os colonos "contra o roubo de
preciada, os políticos de Massach usetts enxergaram as extensas terras dos índios, e como lição, queimavam suas cabanas".36 Com
r- · l · 31
terras de Maine como u ma ronte capita para novas receitas. efeito, de 1763 a 1768 a Assembléia da Pensilvânia tentou deter
Súbito, os invasor es do Maine er am um obstáculo para a v enda a ocupação de terras com a punição da "pena de morte", enquanto
d e grandes lotes de terra. Em 1786, o governador decretou u m a o governador William Penn o rdenava aos soldados a remoção
proclamação proibindo a ocupação n o Maine.32 dos colonos ilegais.37 A despeito dessas medidas, o número de
Para r eassegurar os potenciais compradores, Massachusetts invasores dobrou. Em r esposta, segundo um historiador da épo-
no m eou uma comissão para investigar e exigir pagamento dos ca, "o governador enfurecido então proclamou que aqueles se
"invasor es ilegais".33 A maioria dos ocupantes das terras, entre- assentando em terras índias seriam executados. Mas nenhum juiz
tanto, simplesmente recusou-se a abandonar ou a pagar por suas ou júris submissos e prisões seguras foram encontrados para tais
terras. No lugar de um acordo com os invasores, o estado orde- prisioneiros".38
nou que os xerifes fizessem cumprir os procedimentos legais d e
despejo, incendiando um barril de pólvora que levou ao que um
historiador descreveu como "algo como uma guerra declarada". O avanço legal: ''A preempção"
"A característica m ais proeminente do caráter [do invasor de
terras] é um ódio implacável e violento à lei", comentou um Em um país onde todo colono era o u um migrante ou parente
advogado d o Maine em 1800. ''Ao xerife do condado e seus ofi- de um, os invasores de terras só podiam receber apoio entre as
ciais, eles marcaram como vítimas fadadas ao sacrifício, e a odiada autoridades coloniais que r econheciam a dificuldade de se apli-
palavra execução [demandados judiciais nos procedimentos de car a tradicional lei inglesa a muitos novos colonos. Sob a lei
despejo] não mais os aterrorizará. Declaram que a profissão da inglesa, mesm o se alguém se assentasse por engan~ na terra de
lei deve ser derrubada, qu e advogados dev em ser extirpados e outro e fizesse melhorias, não conseguiria recobrar o valor das
seu s escritórios prostrados ao p ó ."34 E quando um xerife era benfeitorias que fizera. Nas colônias, contudo, devido à falta de
morto ao t entar d espejar um ocupante d e terras, os júris recusa- um governo eficaz, de registros e levan tamentos confiáveis, as
vam-se a condenar o acusado de homicídio. Em parte co mo autoridades tinham de aceitar que as melhorias feitas à terra, os
r esultado das ramificações políticas da hostilidade entre os ocu- impostos pagos e os acordos locais entre vizinhos igualmente
pantes de terras no Maine, Massachusetts consentiu com seu serviam como fontes aceitáveis de direitos de propriedade.Já em
status de estado em 1820.35 1642, a colônia da Virgínia permitiu a um invasor recobrar do
142 HERNANDO DE soro O MISTÊRIO DO CAPITAL 143

verdadeiro dono o valor de qualquer melhoria. O estatuto da suas terras, em o utro local de seu estado natal da Virgínia ou-
Virgínia observava que "se qualquer pessoa ou pessoas assenta- tros políticos encorajavam esses homens protegendo os seus
ram-se em qualquer plantação ou terreno que pertencia propria- títulos extralegais.
mente a qualquer outro homem [uma] compensação de valor Para os estados com pouco dinheiro , a preempção era tam-
deve ser conferida pelo julgamento de doze homens".39 E mais, bém uma fonte de renda. Cobravam aos colonos p elo levanta-
se o dono por direito não desejasse reembolsar o invasor pelas mento das terras que haviam melhorado e pelos títulos legais
melhorias, o invasor poderia comprar a terra a um preço deter- que emitiam. Como resultado, as leis de preempção prolifera-
minado pelo júri local. 40 Esse estatuto logo foi imitado p e las ram tanto antes quanto depois da Revolução. Em 1777 a Caro-
outras colônias. Tais cláusulas demonstram a extensão da sim- lina do Norte abriu um departamento de terras para o condado
patia das elites locais para com as pessoas desejosas de tirar mais- oeste, permitindo aos colonos tomarem 640 acres, e dando pre-
valia de suas terras. ferência aos ocupantes da região. 44 Dois anos mais tarde a Virgínia
Essa inovação legal de se permitir ao ocupante de terras aprovou uma lei que concedia aos colonos com posses em suas
comprar a terra que houvesse melhorado antes de esta ser ofe- fronteiras ocidentais o direito de preempção da terra que haviam
recida em venda pública era conhecida como "preempção" - melhorado. 45
um princípio que seria a chave para a integração dos acordos
de propriedade extralegais na lei norte-americana durante os
duzentos anos seguintes. Políticos e j uristas passaram a inter- Mais obstáculos legais - mais extralegais
pretar "melhorias" em modos que beneficiavam fortemente o s
invasores. Na Carolina do Norte e na Virgínia, os direitos de Tendo vencido muitas batalhas, os colonos norte-americanos,
cabana e os direitos de milho contavam como m elhorias.41 Em contudo, estavam longe de ganhar a guerra. A ambivalência em
Massachusetts os direitos tomahawk estavam incluídos. 42 Sig- relação aos extralegais persistiu durante o primeiro século dos
nificativamente, incorporar tais acordos locais extralegais à lei Estados Unidos, e em nenhuma parte foi mais evidente do q u e
"não era apenas o reconhecimento de que se dev ia alguma con- no novo governo federal, de súbito controlando vastas terras
sideração aos primeiros colon os pelos custos e riscos que in- públicas. De cerca de 1784 a 1850, os Estados Unidos adquiri-
correram; era uma expressão legal de um sentimento difundido ram quase 900 milhões de acres por meio de conquistas e com-
( ...) de que o ocupante de terras era na realidade um benfeitor pras: a Compra da Louisiana (1803) incluía 500 milhões de acres;
do estado, e não um invasor". 43 Já na época da Revolução nor- a Compra da Flórida (1819), 43 milhões de acres; a Compra de
te-americana os "direitos do milho" do ocupante de terras Gadsen (1853) , 19 milhões de acres; a guerra com o México
itinerante haviam se transformado, nas mentes de muitos, nos (1848) conquistou 334 milhões de acres.46 Além disso,já em 1802
direítos de ocupação do resistente pioneir o. Mesmo enquanto o governo federal havia adquirido todos os territórios ociden-
George Washington lamentava os " bandidos" que invadiram tais dos estados costeiros do Leste.
O MISTÉRIO DO CAPITAL 145
144 H ERNANDO DE SOTO

Iniciando em 1784, o congresso dos n ovos estados confede- do de terras federais.49 Os responsáveis pelos Decretos do No-
rados (embora ainda não con stitucionahnen te unidos) começou roeste, entretanto, presumiram que investidores ricos fossem
a formular planos para restringir o acesso e os direitos ao domí- ven der essas terras em menores parcelas, oferecer crédito, ou
nio nacional. A decisão mais portentosa foi a de que os povoa- arrendamentos favoráveis da terra. Mesmo essas opções espe-
mentos no Território Noroeste iriam por fim tomar-se estados culativas com freqüência estavam fora do alcance do pionei-
com os mesmos direitos e pr iv ilégios d os 13 estados originais.47 ro.50 Em vez disso, os migrantes "escolhiam as incertezas do
Em 1785 o Congresso expandiu o decreto d o ano anterior pro- assentamento ilegal".51 E assim dezenas de milhares de norte-
porcionando um sistema de levantamento e venda de ter ras americanos a m ais tornaram-se ocupantes de terras na base dos
públicas. Seguindo o modelo usado n as co lônias da N ova In- acordos extralegais.
glaterra, o sistema de levantamen to d e terras div idia a terra em Quase imediatamente o governo federal se mobilizou para
condados d e seis milhas quadradas com subdivisão em trinta e marginalizar e punir esses homens. Foram ardentemente ataca-
seis seções de uma milha quadrada, ou 640 acres. Uma vez ins- dos nos debates acerca da adoção do Decreto Noroeste. William
pecionada a área, essas seções de 640 acres seriam vendidas a um Bu tler, de Nova York, escreveu: "Eu Presum o que o Conselho
dólar o acre. tenha se familiarizado com a vilania das Pessoas deste País, que
Em 1787 o Congresso co nsolidou os decretos prévios no afluem dos Quatro Cantos, assentando-se & tomando não só as
Decreto do Noroeste, que proporcionava a divisão do Territó- terras dos Estados Unidos mas também estes Estados, muitas
rio Noroeste em várias seções, e esboçav a três etapas de repre- Centenas cruzaram os Rios, & diariamente se vão com suas famí-
sentação acrescida que levaria ao status de estado. Notadamente, lias, a Sabedoria do Conselho eu espero Proverá contra tão grave
a lei estabelecia o conceito d e " posse de taxa simples" (os esta- e crescente mal. "52 Bastante influenciados por tal sentimento, os
dos eram mantidos em perpetuidad e com po der ilimitado de membros do Congresso trabalhavam para desalojar os ocupan-
vender ou doar) e oferecia a primeira garantia da liberdade de tes, freqüentemente de modo violento. Em 1785 o Congresso
contrato nos Estados Unidos. 48 Embora tais leis federais ofe- aprovou u m a resolução explicitamente proibindo a ocupação n o
recessem uma estrutura elegante d e lei formal para a d istr ibui- domínio público e conferindo ao secretário de Guerra a autori-
ção das terras públicas - os historiadores consideram o Decreto dade para remover colonos ilegais das terras federais no Territó-
do Noroeste como a principal conquista do governo esta- rio Noroeste. Essa política entrou em vigor na primavera de 1785
dunidense pré-constitucional - , eles n em podiam controlar no entroncamento dos rios Muskingum e Ohio, onde o exército
nem conter o número crescente d e migrantes à p eriferia da norte-americano desalojou dez famílias, destruindo suas mora-
nação. Um grande problema era o preço proibitivo da terra dias e construindo um forte para impedir-lhes o retomo.53 Q ua-
federal. Confrontados por e tique tas de preço n o v alor de tro anos mais tarde, o presidente Washington ordenou a destruiçã9
US$640 - uma soma enorme na época - , milhares de nor- das cabanas e a remoção das famílias assentadas nas terras da fron-
te-americanos migrantes foram chutados para fora do merca- teira da Pensilvân ia de propriedade os índios.54
O MISTÉRIO DO CAPITAL 147
146 HERNANDO D E SOTO

Porém, embora a maioria dos políticos desejasse apoiar a lei requerimentos dos ocupantes aos direitos de preempção, a co-
missão reconhecia que os ocupantes tinham, "com muito tra-
estabelecida da nova nação soberana, alguns já duvidavam de que
essa lei pudesse ser executada de um modo que conviesse aos balho e dificuldade assentado, cultivado e melhorado certas terras
(... ) [ e portanto] não apenas aumentado o valor das terras res-
melhores interesses do país. Foi por isso que a questão da
preempção veio à tona quase que imediatamente.55 Logo durante pectivamente assentadas, mas das terras nas proximidades das
a primeira seção do novo Congresso, em 1789, um membro mesmas, para grande b enefício dos Estados Unidos". Ainda as-
sim, a comissão argumentava que conceder "a indulgência pe-
comoventemente descreveu as escolhas enfrentadas pelos ocu-
dida operaria como encorajamento a in trusões em terras públicas,
pantes:
e seria um sacrifício injustificável do interesse público".57 E , as-
Existe, neste momento, um grande número de pessoas dispos- sim , o sentimento prevalecente entre os congressistas era de
tas a adquirir por meio de compra um direito ao solo em que se negar- lhes qualquer direito .
assentam. O que pensarão esses ho mens, que se colocaram num Nas duas décadas após a sua instituição, segundo o Artigo
local desocupado, ansiosamente aguardando sua disposição pelo Primeiro da Constituição dos EUA, o Congresso firmemente
governo, para descobrirem q ue seus direitos de preempção fo- arraigou-se a seu antagonismo para com os colonos que residiam
ram absorvidos por uma compra de milhões de hectares? Ima- ilegalmente no domínio público . Em 1796 aumentou o preço
ginar-se-ão perseguidos e caçados?(...) Farão uma dessas coisas: mínimo das terras públicas de US$1 por acre, resolvido no
ou se mudarão para território espanhol, o nde serão de certo Decreto de Terras de 1785, para US$2 por acre. 58 Em 1807 o
modo bem-vindos, e se tomarão um aumento do poder de uma Congresso aprovou uma medida promulgando multas e aprisio-
nação estrangeira formando uma fronteira perigosa para nós; ou namento para qualquer ocupante de terras que não obedecesse
tomarão esse curso, se mudarão para o território dos Estados à lei uma vez notificado, e autorizando a remoção à força de co-
Unidos, e tomarão a posse sem permissão. O que acontecerá? lonos ilegais, se necessário. 59 Um documento de 1812 da Co-
Eles não pagarão nosso preço. Organizaremos uma força para
missão de Terras Públicas da Casa o bservava: "Povoamento
expulsá-los? Isso já foi tentado; reuniram-se tropas, e enviaram-
promíscuo e sem au torização em terras públicas é, em muitos
nas (...) para executar esse propósito. Queimaram as cabanas,
aspectos, injurioso ao interesse público."6()
derrubaram as cercas, destruíram as plantações de batata; mas
O problema, contudo, era que o Congresso, como é o caso
três horas depois da partida das tropas essas pessoas retomaram,
em muitos países hoje em dia, tinha perdido o contato com a
consertaram os estragos e estão agora assentadas na terra num
realidade: não tinha idéia da simples dimensão da pressão des-
desafio aberto à União.56
ses ocupantes, nem possuía os meios de impor seus mandados.
Mesmo o Departamento Geral de Terras, estabelecido em 1812
Típicas da ambivalência do Congresso na época eram as consi-
para levantar, vender e registrar as terras públicas, não conse-
derações da Comissão de Terras Públicas na Câmara dos Depu-
tados. Recomendando em 1801 que o Congresso recusasse os guia cumprir sua função. Encarregado de confirmar as patentes
148 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 149

de terra enviadas dos departamentos distritais, o novo órgão fe- tia ao governo norte-americano pagar o s oficiais e soldados por
deral também tinha de fiscalizar os registros de compras a cré- seus serviços. O Congresso também temia a contínua ameaça
dito. Os legisladores esperavam que o Departamento de Terras militar de que as populações indígenas, espontaneamente ou
operasse como um centro de informações, servindo aos cida- pagas pelos mercenários dos ingleses e franceses, apoiassem a
dãos que requisitavam terras. Mas todas essas funções logo so- nova república. O objetivo de instalar antigos soldados na fron-
brecarregaram sua pequena equipe, que cedo ficou atrasada na teira era resolver amoos os problemas ao mesmo tempo.
maioria de suas obrigações.61 Como Patrícia Nelson Limerick Em meados do século XIX, contudo, um próspero mercado
aponta, os próprios congressistas contribuíram para os proble- negro de terras surgiu, alimentando a ocupação e a especulação.
mas do Departamento de Terras: ''Em nome de seus eleitora- Para cada cem soldados que recebiam títulos de terras, 84 ven-
dos, os congressistas reclamaram da lentidão do trabalho do diam seus direitos no mercado negro - uma situação semelhan-
departamento; em seus próprios nomes, os congressistas faziam te à que ocorre hoje em muitos países em desenvolvimento e
muitos dos requerimentos de informação que tomavam o tem- nos antes comunistas, que proporcionaram moradias públicas a
po dos auxiliares; e por questão de economia e redução de des- alguns grupos de cidadãos.65 Como comentou um historiador,
pesas, os congressistas recusavam-se a aumentar as apropriações "ninguém podia esperar que o meio milhão de viúvas e idosos
do departamento."62 que receberam [títulos] formassem uma barreira contra a inva-
Além do m ais, em seu s primeiros anos os Estados Unidos são estrangeira".66
possuíam recursos financeiros limitados e tinham de recorrer a O governo federal também cedeu milhões de hectares de
concessões de terras para compensar certos setores da popula- terras livres para a nova estrada de ferro que atravessaria o conti-
ção. Vários historiadores j ulgam que pela prática de emitir "tí- nente. Durante o século XIX, mais de 318 milhões de acres -
tulos de terras", que já foi descrita como "o equivalente do século quase um quinto de todas as terras federais - foram entregues,
XIX do vale-refeição" - um documento que podia ser trocado ou diretamente a companhias particulares de estradas de ferro
por terras - o governo incentivava a ilegalidade e a ocupação.6.3 ou aos estados que então redistribuíam as terras às estradas de
De 1780 a 1848 o Congresso ofereceu 2 milhões de acres de ter- ferro. A lógica por trás dessa doação maciça era a de qu e promo-
ra a soldados que lutaram na Revolução, 5 milhões aos vetera- veria u m povoamento ordenado da fronteira. Embora grande
nos da guerra de 1812, e 13 milhões àqueles que combateram parte dessas terras fosse de pouco valor, uma ooa porção con-
na guerra com o México. Entre 1851 e 1860 o Congresso acres- tinha minérios ou era arável. 67 A parte do leão ia para as estradas
centou outros 44 milhões de acres por serviços na Guerra Re- de ferro transcontinentais que recebiam apenas seções alterna-
volucionária, a guerra de 1812, as guerras contra os índios e a das de terras em suas rotas, c riando um padrão de xadrez de ter-
guerra contra o México .64 Quando primeiro idealizada pelo ras do governo alternadas com terras das ferrovias. O Congresso
Congresso Continental durante a guerra de independência, a julgava que as companhias ferroviárias venderiam as terras de
política de títulos de terras tinha uma certa lógica,já que penni- que não precisassem rapidamente, e a oom preço, para incenti-
150 HERNANDO DE SOTO O MIST ÉRIO DO CAPITAL 151

var o povoamento. 68 Contudo, mais uma vez, as realidades dos 'Concedê-las aos soldados', exigiram uns. ' Usá-las para pagar a
assentamentos de terras confütaram com as esperanças dos po- dívida nacional', d isseram outros. 'Guardá-las para uso futuro',
líticos. O padrão de xadrez, segundo um historiador, "atrasou o aconselharam outros ainda, e houve aqueles que mantiveram que
assentamento em milhões de hectares das melhores terras, fe- qualquer u m que desejasse devia ter o direito de se assentar nes-
chando-as à aquisição".69 Em certos casos até resultou em uma sas propriedades".72
guerra aberta entre as companhias ferroviárias e os colonizado-
res. Stephen Schwartz relata o conflito de 1880, em SanJ oaquin
no Vale da Califórnia, então chamado Mussel Slou gh, q uan do Ilegalidade ou choque entre sistemas legais?
os fazendeiros e rancheiros estabelecendo-se em propriedades
das ferrovias não conseguiam chegar a um acordo de venda com l;J"o começo do século XIX o sistema de propriedades dos Esta-
as companhias de estrada de ferro. Isso levou não só a uma ação dos Unidos estava em desordem. A lei de propriedade existente
judicial que não pôde resolver o caso, mas também a tiroteios, à e legisladores antagônicos apenas exacerbaram a crise enfrenta-
morte de cinco colonos e à admissão do oficial de justiça de "n ão da pelos migrantes da nação. Em seu estudo seminal sobre os
estar certo de quem foi o primeiro tiro". Num editorial sobre o colon os e as leis de terra na Virgínia e no Kentucky, Paul Gates
incidente, o San Francisco Chro,úcle condenou as ferrovias de- argumenta que a lei formal contribuiu para os "custos sempre
'
clarando que "quaisqu er que sejam seus estritos direitos legais, crescentes do litígio para regularizar os títulos, despejar pessoas
é inegável que toda eqüidade estava a favor dos colonos". D e com reivindicações rivais e proteger a terra da intrusão e o sa-
q ualquer forma, a força física também estava a favor dos co lo - que". Combinado "com as taxas das cortes e os juros altos d os
nos,já q ue os oficiais estimavam que, para desalojá-los, algo entre empréstimos de capital", a inadequação da lei formal era uma
duzentos e mil valentes soldados seriam necessários.70 "ameaça constante à segurança dos investimentos e mantinha os
Os esforços do governo federal na construção de u m siste- litigantes em contínua agitação". 73
ma de terras ord enado não con seguiram sobrepor-se ao desejo Os migrantes que colonizaram essas terras, muito freqüen-
das pessoas comuns de afirmarem seus d ireitos ao domínio na- temente, não possuíam títulos formais de suas propriedades e
cional. Um ocupante de terras bem articulad o argumen tou : "Eu de forma geral acabavam tendo d e n egociar pelo título não com
testemun ho que toda humanidade simpática a toda constitui- um, mas com dois donos; e, então, mesmo depois de haverem
ção formada na América tem o direito inquestionável de ingres- comprado a terra e executado melhorias, possivelmente enfren-
sar por todo o país desocupado e ( .. .) o Congresso não tem tavam procedimentos de despejo levados a cabo por outros com
poderes de proibi-lo. "71 Durante as primeiras décadas do século direitos prévios à região. 74 Um visitante estrangeiro viajando pelo
XIX, os políticos e os invasores diglad iaram-se acerca de como Kentucky em 1802 observou que em toda casa que se detinha, o
os d ireitos de propriedade seriam conced idos. Entre os políti- proprietário expressava dúvidas sobre a confiabilidade do título
cos, "surgiu a questão : 'O q ue se deve fazer com essas ter ras?' do vizinho.75
152 HERNANDO DE soro O MISTÉRIO DO CAPITAL 153

Entre 1785 e 1890 o Congresso dos Estados Unidos apro- rarem (... ) Permanecerá para sempre um código desconhecido,
vou mais de quinhentas leis diferentes de reforma do sistema em um dialeto particular, a ser explorado e estudado, como a
de propriedade, ostensivamente baseadas no idealjeffersoniano jurisprudência de algumas nações estrangeiras. "78 A ironia não
de se pôr a propriedade nas mãos dos cidadãos civis. Os proce- passou despercebida por Joseph Story de que os Estados Uni-
dimentos complicados associados a essas l~is, no entanto, m ui- dos "não eram uma antiga e conservadora sociedade, mas um
tas vezes atrapalhavam esse objetivo. Para confundir ainda mais novo Estado na periferia legal".79
as coisas, os estados individuais desenvolveram suas próprias As leis dos EUA haviam se tomado tão ineficientes que cons-
regulamentações de propriedade e distribuição de terras qu e tituíam um enorme empecilho aos colonizadores desejosos de
amplamente beneficiava e protegia somente as suas elites pro- garantir seus direitos de propriedade e livrarem-se do status de
prietárias. Como resultado, as tentativas de r eforma do sistem a "ocupantes". Não lhes sobrou alternativa além de principiar
de propriedade apenas serviram para aumentar a dificuldade na- moldando suas próprias " leis", em especia l aquelas relacionadas
cional acerca das terras, enquanto tomava os migrantes extre- com a propriedade, fundindo a lei inglesa e as tradições legais
m am ente receosos de perderem qualquer aparência d e título que nativas norte-americanas com os seus próprios sensos comuns.
pudessem ter possuído. Comentando a reforma no Ken tucky, O resultado foi "uma falange de direitos adquiridos de proprie-
u m contemporâneo enfatizou que "muitos dos residentes ob - dade"80 em dois sistemas econômicos e legais, um assentado e
têm a garantia de suas propriedades dessa confusão( ...) [ e conse- codificado nos livros de estatutos, o outro operando em terra. E
qü entemente] muitos não ous.lm afirmar seus direitos, tem endo assim os Estados Unidos se viram com um sistema legal plu-
ser em obrigados a pagar indenizações consideráveis".76 Duran- ralista no qual muitos direitos sobre propriedade e acordos de
te o século XVIII e o início do XlX. "enquan to velhos pro ble- posse passaram a se definir pela lei extralegal.
mas se resolviam, novos surgiam. Havia uma dificuldade crônica A classe dirigente política e legal se encontrava dividida en-
de se determinarem os títulos(...) (com o t ítulo tomando-se] tre a sua lealdade à lei formal e a simpatia para com a necessidade
um conceito mais indescritível do que a longitu de, m ais nebu- de os colonizadores criarem seus próprios acordos. Um discur-
loso do q ue u m toco de árvore ou um riacho. Título torno u-se so de Thomas Jefferson resume perfeitamente a ambivalência
um tema tão vexam inoso e intratável quanto a abolida lei d e qu e os políticos sempre sentiram em relação aos acordos extra-
posse".77 Em termos bem simples, as instituições legais dos Es- legais em seus meios. "Tão multifários eram [ esses acordos] (...)
tad os U n idos fracassaram, de modo fundamental, em lidar com que nenhum princípio estabelecido em lei ou eqüidade poderia
eficácia com a crescente população migrante. ser aplicado em suas determinações; muitos deles construídos
J á em 1820 o sistema de propriedades original d os E U A apre- sobre costumes e hábitos criados naqueles Condados, fundados
sen tava tam anha desordem que o juiz da Supr em a C orte,J oseph em modos de transmissão particulares, e que, havendo passado
Stmy, escreveu: "Transcorrerão provavelmente séculos antes de a quase todos os títulos, não poderiam de modo algum ser ignorados."81
os lit ígios baseados nas [leis de propriedade dos E UA] se en cer-
O MISTÉRIO DO CAPITAL 155
154 HERNANDO DE SOTO

Esforços estatais para retirar a redoma de vidro Em 1821 a corte declarou a lei de ocupação do Kentucky
inconstitucional.83 O caso envolveu os herdeiros do latifundiá-
Sendo assim, aos políticos norte-americanos res~yam ajggmas r io John Green e Richard Biddle, um colono que se assentara
escolhas: continuarem te~und; frus~ar ou ignorar os extraleg_ais; ilegalmente nas terras de Green. A terra em disputa originalmen-
fazerem, de mau grado, concessões; ou tomarem- se defensores te situava-se na Virgínia, mas passara a ser parte do Kentucky.
dos direitos extralegais. A expansão das leis de ocupação - re~o- No caso Green li. Biddle a Suprema Corte sentenciou contra a lei
nhecendo o direito à terra com base nas melhorias feitas - em de ocupação do Kentucky alegando as "regras de propriedade"
' estabelecidas sob os precedentes da tradicional lei inglesa.84
todos os Estados Unidos durante os primeiros sessenta anos do
século XIX, sugere que os políticos crescentemente seguiam a A decisão favorecia abertamente somente àqueles possuido-
últin1.a opção. A história da ado_ção das leis de ocu a ão nos E__s.ta- res d e escrituras legais da terra ocupada. Segundo a corte, a lei
d~s Unidos é a história do crescimento dos extrale&lis como for- do Kentucky "operava injusta e opressivamente porque o dono
ça pol~. - - - - por lei era compelido a pagar, não apenas pelas melhorias de fato
O momento de virada veio no novo estado de Kentucky; cujo à terra, não só por seu acréscimo de valor, mas pelos custos in-
sistema de propriedade, como o d e muitos estados, se encontrava corridos pelo ocupante com essas pretensas melhorias, fossem
em completa desordem. Seu governador queixava-se de que as meramente úteis ou mesmo irreais, questão d e gosto ou orna-
reivindicações à terra no novo estado totalizavam mais de três vezes mentos ditados tão-só por suas fantasias e caprichos".85 Após uma
o tamanho da região. Paul Gates argumenta que isso deveu-se aos nova audiência do caso Green li. Biddle, a corte, em 1823, reafir-
políticos terem aprovado, entre 1797 e 1820, legislações atenden- mou sua decisão prévia , enfatizando que as leis de ocupação
do ao eleitorado extralegal. Essas medidas foram uma contribui- privavam "o dono das terras, por lei, de aluguéis e lucros devi-
ção aos "dois grandes princípios de eqüidade na lei estatutária dos pelos ocupantes".
[norte-americana] : o direito dos ocupantes ( ... ) às s uas ben- Os políticos que vinham cultivando o apoio de seus eleito-
feitorias, e o direito, aceito por sete anos, dos colonizadores qu e res extralegais acusaram duramente o caso Biddle de ser "desas-
pagavam impostos em terras privadas a uma escritura segura e troso em e>..'tremo" e de causar "grande alarme" para os cidadãos
regularizada de suas terras apesar da existência de outras escritu- do Kentucky. 86 A Suprema Corte podia ignorar a nova realidade
ras adversas pendentes".82 A importância da legislação do Kentucky, política - e legal - que se formava na fronteira norte-ameri-
contudo, não estava em sua contribuição à doutrina legal, mas em cana em rápida expansão, mas os políticos do Oeste apenas pre-
refletir o crescente poder político dos pioneiros. Significativamen- cisavam abrir suas janelas para verem o quão rápido o país
te, a pressão que esses colonizadores extralegais exerceram nos mudava. Nas décadas iniciais do século XIX, dezenas de milha-
governantes eleitos levaria os governos de muitos estados arejei- res de resistentes migrantes haviam se arrastado para oeste das
tarem uma decisão antagônica à ampla população extralegal da colônias originais além dos Apalaches, assentando-se em terras
nação tomada pela Suprema Corte dos EUA. férteis e virgens. A população estadunidense dobrava a cada vinte
156 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 157

anos. Em 1620, havia aproximadamente cinco mil colonos em Desde o seu início, a corte fora o alvo principa l dos po líticos
toda a América do Norte britânica. Em 1860, a população críticos da autoridade de um grupo de juízes de elite eleitos por
estadunidense era de mais de 30 milhões, e aumentava. Cinqüen- ninguém. Mas, em uma virada extraordinária, os juízes d o
ta por cento da população norte-americana vivia a oeste dos Kentucky também rejeitaram a decisão da Suprema Corte. Em
Apalaches. um caso semelhante dois anos mais tarde, um juiz do Kentucky
Os migrantes exigiam das cortes o reconhecimento de seus d ecidiu que o caso G reen v. Biddle não poderia ser observado
direitos à propriedade em que se assentassem.87 Assim, a resposta porque "fora decidido por apenas três dos sete juízes que com-
política e judicial à decisão da Suprema Corte no caso Green v. punham a Suprema Corte dos Estados Unidos; e sendo a opi-
Biddle no Kentucky foi uma vitória gigantesca para os extralegais, nião de menos da maioria dos juízes, não poderia ser considerado
e eles logo partiram para a ofensiva. Nas mentes de muitos po- como tendo estab elecido um princípio constitucional" .92 Em
líticos e dos editores dos jornais locais o v ilão agora era a Supre- 1827, outro juiz do Kentucky rejeitou o Biddle, enfatizando ser
ma Corte. Um jornal local falou d a "conduta traiçoeira" de constitucional a lei de ocupação reivindicada em "casos por de-
justiças que ameaçavam "exterminar" os direitos dos "não-resi- mais numerosos para serem citados".93
dentes e estrangeiros".88 N o meio do furor acerca da autoridade Após o furor acerca do caso G reen v. Biddle, os políticos do
da corte, o poderoso Richard M. Johnson do Kentucky decla- Oeste e os democratas de todas as partes do país passaram a consi-
rou em um discurso no Senado qu e a decisão " iria derrubar a derar esse ele itorado crescente de ocupantes por um prisma di-
política deliberativa do [Kentucky] (...) e, persistindo-se nela, ferente. Não mais eram os criminosos desmazelados coando a
produzi.ria as mais desastrosas conseqüências, dando margem a nata das terras da nação, mas "pioneiros nobres" auxiliando no
muito litígio em questões há anos resolvidas, confundindo enor- desenvolvimento do país. É claro, também eram eleitores em
m emente todo respeitante à propriedade de terras".89 Outro se- potencial.94 Políticos compreensivos passaram a atacar o sistema
nador norte-americano do Kentucky, o ainda mais influente de propriedade. Um congressista de Kansas enfatizou , "por todo
Henry Clay, há tempos um oponente da liberal ampliação dos [esse] estado os colonos tomaram as terras públicas, fizeram
direitos dos ocupantes, admitiu: "Eles constroem casas, plantam melhorias, pagaram impostos, e mais tarde foram ordenados a
pomares, cercam campos, cultivam a terra e criam famílias à sua abandoná-las sem r estituições pela decisão do secr etário do In-
volta. Nesse meio tempo, a onda de migração flui até eles, suas terior, por um motivo ou por outro".95
fazendas trabalhadas agregam valor, começa uma procura por
elas, eles as vendem aos recém-chegados com lucro, e seguem
mais para o Oeste(...) Dessa m aneira, milhares e dezenas de mi- Esforços federais para retirar a redoma de vidro
lhares diar iamente melhoram suas situações e circunstâncias.''90
Também o governador e o legislativo do Kentucky deram voz às Em meio à disputa do caso Green v. Biddle, Andrew J ackson, o
suas oposições à decisão da Suprema C orte.91 herói da guerra de 1812 contra os ingleses e um professo defen-
158 HERNANDO DE SOT O O MISTÉRIO DO CAPITAL 159

sor dos pioneiros, quase chegou à presidência. Quatro anos mais ricano desempenhara um valioso serviço público pelo qual me-
tarde,Jackson finalmente tornou-se presidente. Durante os dois recia compensação.100 Os ocupantes u ma vez temidos eram agora
períodos de sua administração, quando as últimas qualificações homens "que por seu empreendimento e indústria haviam cria-
de propriedade para o direito ao voto e à concorrência a cargos do para si m esmos e suas famílias um lar em regiões ermas e
políticos desapareciam , as esco las públicas proliferavam, os es- deveriam ter direito à recompensa. Haviam proporcionado fa-
tados humanizavam as leis p enais e fechavam as prisões para c ilidades para a venda de propriedades públicas, trazid o a com-
devedores, a simpatia pelos direitos dos ocupantes aumentou. petição a terras que de outro modo não alcançariam bom preço
Também cresceu a animosidade pública aos juízes e advogados, e para as quais não haveria compradores, se não fosse por suas
considerados ávidos agentes dos ricos e poderosos.96 benfeitorias". 101
Já em 1830, os 13 estados originais eram 24 , incluin do sete M embros do Congresso elaboravam leis que auxiliassem a
no Oeste cujos representantes em Washington dedicavam-se por facilitar o caminho para os acordos dos ocupantes serem absor-
completo às políticas que favoreciam os ocupantes. Para ganhar v idos p elo sistema legal. 102 Como peça central, o dispositivo le-
o apoio desse bloco crescentemente influente, os estados do gal q ue fora a salvação dos ocupantes durante o p eríodo colo nial
Nordeste e do Sudeste competiram, demonstrando o quanto ( e qu e o Congresso dos EUA havia inflexivelmente combatido):
eram pró-Oeste. 97 O s estados do Oeste e os ocupantes que ti- a pr eempção. Em 1830, uma coalizão de congressistas do Oeste
nham o domínio dessas terras começaram a flexionar os seus e do Sul aprovou um decreto geral de preempção que se aplica-
músculos políticos acrescidos, e os resultados foram impressio- va "a todo colono ou ocupante de terras públicas (... ) agora na
nantes. Entre 1834 e 1856, Missouri, Alabama, Arkansas, Michi- posse, e que tenha cultivado qu alquer parte dessa no an o de mil
gan, Iowa, Mississippi, Wisco nsin, Minnesota, Oregon, Kansas oitocentos e vinte e nove". 103 Um ocupante podia reivindicar 160
e Califórnia, todos adotaram leis d e ocupação semelhantes à lei acres de ter ra, incluindo terras que houvesse melhorado, por
do Kentucky rejeitada pela Suprema Corte no caso Green v. US$1,25 o acre. O pagamento era exigido antes da terra ira leilão
Biddle.98 Paul Gates argumenta que " nenhum caso decidido pela pú blico, e as transfer ências de venda dos direitos de preempção
Suprema Corte fora tão completamente derrubado pela legisla- eram estritamente proibidas.
ção e cortes estatais, pelo fracasso das cortes federais de fazerem E m 1832, 1838 e 1840 o Congresso renovou o decreto geral
uso do caso e, por fim , pelo ato não desafiado do Congresso de de pr eempção de 1830. A cada vez, b uscou fortalecer mais os
estender a cobertura das cortes federais a ocupantes como os do direitos dos m ais simples ocupantes, en quanto b u scava bloquear
caso Green v. Biddle".99 algun s dos abu sos do princípio de p reempção. Por exemplo, o
Washington finalmente começou a entender o recado. En- decreto de 1832 reduziu a quan tia mínima de terra qu e um oc u-
quanto em 1806 a Comissão de Terras Públicas culpava os ocu- pante teria de com prar de 160 para 40 acres.
pantes por suas dificuldades, em 1828 a mesma comissão relatava Já em 184 1, o princípio d e preempção se estabelecera tão
à Câmara dos Deputados que o ocupante de terras norte-ame- fir memente que o Congresso promulgou um futuro projeto de
HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 161
160

lei geral de preempção. O projeto de lei de 1841 se estendia não tro-Oeste norte-americano durante a primeira metade do sécu-
só aos ocupantes existen tes mas a "toda pessoa ( ...) que daqui lo XIX, e os distritos mineradores que tomaram o Oeste norte-
para a frente se assente em terras públicas". 104 A terra assenta da americano depois da descoberta de ouro na Califórnia. Para
tinha de ser inspecionada, mas mesmo essa provisão foi por fim muitos historiadores norte-americanos, as associações de reivin-
derrubada. 105 dicação d e concessões e as regulamentações dos mineradores
representaram a "manifestação da capacidade do homem da fron-
teira para uma ação democrática". 107 Outros argumentaram que
Esforços extralegais para retirar a redoma de vidro essas organizações operavam "como cortinas de fumaça para
108
obscurecer o roubo de terras de seus bonafide donos". Não é o
Muitas vezes isolados geograficamente dos debates políticos e que me interessa. O que mais me interessa sobre as associações
constitucionais sobre a propriedade, vários ocupantes fizeram o de reivindicação de concessões e as organizações de mineradores
possível para garantir a terra que ocupavam; alguns até pagaram é que demonstram que grupos extralegais desempenharam um
duas vezes pelo mesmo lote, enquanto outros pagaram enormes papel importante na definição dos direitos de propriedade nos
quantias a advogados para ajudá-los a legalizar suas terras. 106 Estados Unidos e no acréscimo do valor das terras. Embora tec-
Muitos não tinham os meios de cobrir os custos do sistema le- nicamente invasores do domínio público, esses posseiros tinham,
gal oficial, então estabeleceram seus próprios acordos extralegais, nas palavr as de Donald Pisani, "uma mente voltada para leis,
criando, assim, novos caminhos para o acesso e a posse de pro- enraizada na convicção de que( ...) 'as pessoas' possuem maior
priedade na fronteira norte-americana. Para todos os fins práti- direito de definir e interpretar as regulamentações do que o s
cos, tomava1n a lei em suas mãos - e forçavam a instituição legal peritos legais". 109 Para esse fim, as organizações extralegais de-
a seguir os seus passos. Os políticos levaram um tempo antes de sempenhavam uma gama de funções que iam desde a negocia-
acordar para o fato de que, ao lado da lei oficial, contratos sociais ção com o governo até o registro de propriedades e d ireitos
extralegais de propriedade haviam se formado e que representavam reivindicados pelos posseiros.
uma parte essencial do sistema de direitos de propriedade da na-
ção; q ue para estabelecerem um sistema legal abrangente que Associações de reivindicação de concessões
pudesse ser executado em toda a nação teriam de englobar as for-
mas como as pessoas estavam definindo, usando e distribuindo As associações de reivindicação de concessões do Centro-Oeste
os direitos de propriedade. norte-americano eram originalmente formadas por colonos para a
Dois exemplos importantes servem para ilustrar o surgi- proteção de seus direitos contra especuladores ou usu rpadores de
mento de organizações extralegais para a proteção dos dir eitos concessões. D uas associações de reivindicação de concessões em
de propriedade adquiridos informalmente: as associações de Iowa, por exemplo, concordaram em suas constituições em prote-
reivindicação de concessões que proliferavam por todo o Cen - ger a concessão de cada membro por um período de dois anos após
O MISTÉRIO DO CAPITAL 163
162 HERNANDO DE SOTO

a venda da terra.110 Allan Bague, historiador desses "clubes de rei- Mas a função dessas associações de reivindicação de conces-
vindicação" de Iowa, observa que "o ocupante podia contar com o sões também se estendia da proteção contra terceiros para bem
auxilio de seus camaradas do clube caso usurpadores de conces- além, acé o âmbito da lei oficial. Por exemplo, os membros das
sões ameaçassem sua posse e (...) que seus amigos intimidariam os associações, "em geral ocupantes que pela primeira vez toma-
especuladores que porventura viessem a oferecer lances mais altos vam posse de uma terra em alguma região, concordavam em não
no leilão de terras". Ili Um historiador local de Iowa comentou que: dar lances uns contra os outros nos leilões de terras e em impe-
· - l" .11s
dir aos outros de o fazer contra os mem b ros [da assoc1açao
quando um colono de fato - um que deseja a terra para mora- O preâmbulo constitucional de uma associação de concessões
dia e ocupaçáo imediata(...) se assenta em uma porção do domí- candidamente descreve sua missão:
nio [da associaçãoJ, ele é imediatamente abordado por membros
da associaçáo com a exigência de que ou abandone a terra ou Uma vez que nos tomamos, sancionados pelo Governo, colo-
pague pelo [que J estes mantêm ser direitos seus (...) [Se] o nos em suas terras, e gastamos nosso tempo e dinheiro melho-
colono demonstra dúvida de estes haverem de fato reivindica- rando-as, nos consideramos com o justo direito de comprá-las
do antes o local, a [associação de reivindicação de concessões] ao preço habitual. E uma vez que podem existir pessoas dispos-
sempre tem à mão uma ou mais testemunhas para jurarem a tas a interferir em nossos direitos, e portanto criarem desconfian-
validade do interesse que afirmam. 112 ça, agitação e alarme; Resolvemos, Ponanto, que para nós existe
segurança, apem1s na União-na determinação de resolvermos
Essas associações proporcionavam sua própria justiça severa e amigavelmente qualquer disputa entre nós, reciprocando con-
primitiva. Um pastor local certa vez perguntou a um membro cessões, e evitando tudo que possa tender a criar desconfiança e
da associação o que aconteceria se um usurpador de concessões agitação -obedecendo explicitamente aos guardiões das várias
conseguisse comprar a con cessão. O homem replicou: "Ora, eu comissões e defendendo-os no desempenho dos deveres a eles
o mataria; e, por acordo com os colonos, eu devo ser protegido, designados.116
e sejulgado, nenhum colono do júri ousaria emitir um veredic-
to contra mim."m Mais tipicamente, contudo, as associações de Esse documento é particularmente marcante por sua semelhança
reivindicação de concessões proporcionavam ao m enos a apa- com os "contratos de assentamento" qu e os grupos de ocupantes
rência de um processo justo, por um jún convocado - de ca- de terras fazem por quase todo o Terceiro M undo nos dias de hoje.
maradas colonos - para julgamento dos casos de usurpadores Cada associação de concessões traçava sua própria constitui-
de concessões. Em um condado de Iowa um usurpador de con- ção e leis municipais, elegia diretores de o peração, estabelecia
cessão que tentou ocupar uma parte desocupada da terra em as regras para a adjudicação de disputas e os procedim entos de
posse de um membro da associação foi "no espaço de uma hora" registro e proteção das concessões.117 A constituição da associa-
trazido para a frente de um júri de colonos por "um bando de ção de con cessões do condado de Johnson , em Iowa, por exem-
homens decididos e enraivecidos". 11 ~ plo, providenciava um presiden te, um vice-presidente, um
164 HERNANDO DE soro O MISTÉRIO DO CAPITAL 165

auxiliar e um registrador; a eleição de sete juízes, e cinco deles E assim, as associações de reivindicação de concessões aju-
podiam compor uma corte e resolver disputas; a eleição de dois daram a criar "um tipo de lei comum(...) estabelecida por con-
oficiais encarregados de fazer cumprir as regras da associação; e senso e necessidade comum". 124 C omo Tatter ainda observou,
procedimentos que especificavam os direitos de propriedade de "embora a lei das reivindicações não seja uma lei derivada dos
118
terras. Segundo Allan Bogue, a maioria das "regulamentações Estados Unidos, ou do livro de estatutos do território , não
cobria o tamanho das concessões permitidas; as orientações para obstante, é a lei, criada e derivada dos próprios soberanos, e seus
demarcação, registro e transferência de concessões; e O proce- mandados são imperativos".125 Os colonos, no entanto, não dis-
d imento a ser seguido quando mern bros do clube contestassem pensaram d e todo a lei oficial. Seus acordos extralegais serviram
o direito uns dos outros, fossem ameaçados por usurpadores de como paradas d e descanso temporárias na estrada para a respei-
concessões e a data da venda da terra se aproximasse".119 tabilidade legal.
Os contratos de assentamento das associações de reivindicação
de concessões claramente contribuíram para o aumento de valor Organizações de mineradores
das terras reivindicadas pelos ocupantes. Nos condados de Po-
weshiek, de Johnson e de Webster, em Iowa, as associações de rei- Em 24 de janeiro de 1848 James Marshall e um grupo de índios
vindicação de concessões traçaram específicas "regulamentações e mórmons descobriram ouro ao lo ngo do rio Americano na
prescrevendo o grau em que um membro deveria melhorar sua Califórnia. Embora os mineradores tenham jurado segredo,
concessao . =
- " 120 A_ · - ,
assoctaçoes tambem estabeleceram os limites dentro de quatro meses a notícia da descoberta era informada
máximos e mfuimos do tamanho da concessão a ser protegida, e a nos jornais de São Francisco. A descoberta "acendeu provavel-
maioria permitia a seus membros vender suas concessões para re- mente a maior migração humana voluntária da história do mun-
ceber o valor de suas propriedades. Muitos membros, no entanto, d o ate, aque1a epoca,
, to d os atras
, d o ouro d a C a 1:c:, · ".126 O
uorn1a
« -
nao se contentavam com a quantia de terras que a lei lhes conce- efeito imediato foi profundo: "Fazendeiros deixaram seus ara-
dia, mas reivindicavam pretensas concessões a porções tão largas dos nos campos. So ldados e m arinheiros desertaram. Lojistas
do território, que em alguns casos era dillcil para um comprador abandonaram seus negócios. São Francisco tornou-se uma ci-
encontrar um lote sem reivindicação". 121 Essa prática recebia O apoio dade fantasma da noite para o dia. " 127 E m um ano havia 100.000
tácito da maioria dos membros das associações. Embora os mem- mineradores na Califórnia; dois anos mais tarde, quase 300.000.
bros das associações de reivind icação de concessões denunciassem Quando esses prospectores esperançosos correram à Cali-
grandes especuladores, eles próprios eram, como White aponta fórnia para enriquecer "não encontraram nem cercas, nem agri-
"especu Iadores em menor escala". 122 As associações de r eivindica-' mensores".128 N ão obstante, legalmente eram invasores,já que
ção de concessões da história norte-americana eram mais do que na maioria das terras em que mineravam competiam centenas
uma conspiração na proteção de herdades; eram utilizadas para de interesses.129 Na época da corrida do ouro, a maior parte das
proteger o comércio de concessões.123 terras era do governo federal, até 9 por cento da área total da
166 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 167

Califórnia era de reivindicações de posse mexicanas, ao passo Como o clube de reivindicação de concessões dos ocupan-
que boa parte do restante era deserta, montanhosa ou de outro tes de terras no Centro-Oeste, os mineradores tinham dois pre-
modo inacessível. 130 E a despeito do fato de que o governo fede- cedentes em seu favor: o direito da preempção e o direito dos
ral estava, como já vimos, produzindo em série centenas de es- ocupantes a suas melhorias.134 Formaram, então, organizações
tatutos regulamentando o uso da terra, os Estados Unidos não para regulamentar seus direitos extralegais e estipular as obriga-
tinham uma lei regulamentando a venda ou o arrendamento de ções que indivíduos mineradores deviam às terras invadidas.
terras federais contendo minerais preciosos. 131 Além disso, o Esses acordos de assentamento eram conhecidos como "regula-
Congresso excluíra explicitamente "terras minerais" do projeto mentações dos distritos de mineração". Os mineradores sabiam
de lei geral de preempção de 1841. que se traçassem suas regulamentações cuidadosamente, com o
Uma combinação inflamável nessas reivindicações mexica- maior apreço possível pelas leis existentes, cedo ou tarde o go-
nas - donos ausentes, colonos famintos por terras e a falta de verno teria de chegar a um acordo com eles. :l
uma lei federal que se fizesse cumprir - gerou a necessidade Os mineradores deixaram pouco espaço ao acaso. A maioria
imediata de acordos extralegais. Histor iadores como Pisanijul- das regulamentações dos distritos de mineração em geral envol-
gam que os colonos não tiveram muita escolha: "assentando-se via nove etapas distintas. Na primeira, os mineradores colavam
em uma reivindicação mexicana na esperança de que não fosse cartazes ou espalhavam a notícia de uma reunião em massa em
concedida, corriam o risco de perder suas benfeitorias. Mas se local bastante conhecido para formar um novo distrito. Na se-
comprassem a terra de uma reivindicação cujas fronteiras fos- gunda etapa, como primeira ordem de negócio da reunião, os ti

sem subseqüentemente ajustadas, ou cuja concessão fosse sub- mineradores estabeleciam as fronteiras e jurisdições do distrito
seqüentemente negada, poderiam perder o custo da terra assim e o nomeavam (normalmente o nome de alguma característica
como o valor das melhorias". 132 Enquanto os colonos faziam seus geográfica da região, da primeira reivindicação feita, ou do ho-
próprios acordos, o governo tentava encontrar uma solução ba- mem organizador do distrito). Em terceiro lugar, os mineradores
seada na lei oficial existente. O problema é que o governo era estabeleciam as restrições de posse quanto ao número de rei-
por demais lento. Em 1851 o Congresso estabeleceu uma co- vindicações mantidas por local e por compra. Na maior parte
missão para julgar a validade das reivindicações mexicanas e es- dos distritos de mineração, ao descobridor de um novo filão se
panholas. Embora a comissão tenha se reunido até 1856, as cortes permitia, em geral, uma reivindicação dupla, enquanto aos ou-
e o Departamento Geral de Terras adiaram a decisão fmal para tros era permitida uma por pessoa. Em geral não havia limite
anos mais tarde. O resultado foi que os colonos tiveram de de- para reivindicações compradas, desde que a compra tivesse sido
pender sempre mais de suas leis extralegais para manter alguma feita "de boa-fé, justa consideração de valor, e com escrituras
ordem. Eram forçados, porque, nas palavras de Pisani: "Quanto registradas e títulos de propriedade emitidos pelo registrador".
maior a demora do processo de confirmação, maior a chance de No quarto passo, os distritos de mineração restringiam os
litígio e violência. " 133 direitos e a participação na sociedade aos cidadãos dos EUA ou
168 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 169

àqueles que por lei tinham o direito de tomar-se cidadãos. O s bediência era sempre a possibilidade da perda do direito". Por
mexicanos e asiáticos eram deste modo geralmente excluídos pe- fim, as regulamentações estabeleciam um sistema para a resolu-
los preconceitos raciais da época. Os mexicanos e asiáticos mi- ção de disputas.135
neradores foram até acusados d e "nada contribuírem para a Confrontados com o vácuo legal na lei federal de minera-
prosperidade da população cujas riquezas ganh as com muito su or ção, os mineradores, com alguma perspicácia legal, criaram um
eles apropriaram para si mesmos" e de pôr em risco a moral de tipo de lei de mineração. Negociando entre si, trabalharam para
"jovens [norte-americanos] (...) sem as influências de um lar". proteger seus direitos e aumentar o valor de suas propriedades
Em quinto lugar, as regulamentações fixavam as dimensões da até q ue o governo pudesse validar su as reivindicações. Criar di-
reivindicação à mineração em side 150 a 300 pés de comprimen- reitos de propriedade por meios extralegais não era coisa rara. A
to para reivindicações de porte, até o comprimento da pá do mi- extralegalidade era - como é hoje no Terceiro Mundo - co-
neiro para escavações menores. Era normalmente concedido um mum. Nos anos seguintes à descoberta do ouro, a Califórnia teve
direito de passagem em cada extremidade da reivindicação para umas oitocentas jurisdições, cada qual com suas regulamenta-
túneis e cursos d'água a qualquer distância desde que não interfe- ções individuais.136 Toda jurisdição obtinha sua legitimidade ini-
rissem com os direitos de uma reivindicação v izinha. Em sexto cial e força do consenso de seus membros. Charles Howard
lugar, as regulamentações estabeleciam orientações d e como os Shinn observa que "nenhum alcade (prefeito], nenhum conse-
mineiros identificariam as fronteiras de suas reivindicações. Em lho, nen h um juiz de paz jamais foi forçado a um distrito por
geral, a reivindicação se iniciava por um aviso datado da reivindi- um poder externo. O distrito era a unidade de organização po-
cação com os nomes do localizador, do distrito e do condado. lítica, em muitas regiões, bem depois da criação do estado; e os
Em sétimo, as regulamentações estabeleciam o escritório do delegados de distritos vizinhos com freqüência reuniam-se para
registrador, onde os registros oficiais do distrito seriam manti- consultas acerca de fronteiras, ou assuntos do governo local, e
d os, e especificava com o as reivindicações seriam registradas. depois as relatavam a seus respectivos eleitorados em reuniões
Com freqüência os r egistradores eram eleitos pelo período de ao ar livre, aos pés de um morro ou na beira de um rio".137
um ano. Ainda d e maior importância, as regulamentações exi- Por fim, a maioria dos políticos apoiou as reivindicações dos
giam que os mineradores "arquivassem seus anúncios de títulos mineradores, e as cortes passaram a sancionar seus acordos ex-
com o registrador dentro de cinco a trinta dias da data do anún- tralegais. Em 1861 um juiz da Suprema Corte da Califórnia co-
cio da reivindicação, e o registrador devia manter um livro de mentou a legitimidade dos acordos extralegais dos mineradores
tais arquivos e também registrar transferências de títulos dentro no caso Gore v. McBreyer: "é o bastante que os mineradores con-
do distrito". Em oitavo lugar, as regulamentações estabeleciam cordem - seja em reuniões públicas ou após comunicado devi-
as exigências para o d esenvolvimento de reivindicações forne- do - acerca de suas leis locais, e que essas sejam reconhecidas
cendo a "duração, extensão e caráter" do trabalho a ser feito de como as r egras da vizinhança, a não ser que se demonstre alguma
modo a se o bter a reivindicação. A " penalidade por uma deso- fraude, ou a1guma causa semeIhante para se recusar as 1ets · ". 138
170 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 171

Um motivo para a fácil aceitação das regulamentações dos americanas - assim como as o rganizações dos ocupantes de
distritos mineradores foi que essas eram freqüentemente traçadas terras o fazem hoje no Terceiro Mundo. Durante os anos de
com base em princípios, idéias e procedimentos não muito di- 1850 o Congresso não buscou tomar para si os recursos mine-
ferentes dos da lei oficial existente. Lacy observa que as regu- rais do Oeste. Os historiado res especulam que talvez o suces-
lamentações dos distritos "refletiam a sabedoria e costumes so dos mineradores de autogoverno tenha agradado à filosofia
acumulados (... ) das Assembléias das Minas de E stanho dos p olítica da época, ou talvez a nação estivesse por demais preo-
mineradores de estanho em Cornwall; as práticas do distrito de cupada com a questão da escravidão e a ameaça de secessão
High Peak e da Corte de Barmote em Derbyshire; a organiza- pelos estados do Sul. 142 Talvez os advogados entre os legisla-
ção e as práticas dos Burgermeisters da Saxônia; as determina- dores norte-americanos simplesmente soubessem reconhecer
ções legais da Espanha colonial, vice-realeza da Nova Espanha e uma boa legislação. Uma coisa, contudo, fica clara: a falta de .,
do Peru; e algumas práticas dos distritos mineradores do cinturão ação do Congresso apenas acrescentou credibilidade ao con-
de chumbo do Missouri. 139 Por exemplo, "o nde um minerador trato social que os próprios mineradores haviam não só ideali-
tomava sua posse seguindo as regras e costumes da mineração, a zado, mas feito funcionar. 143
posse, de fato, de parte de uma reivindicação com fronteiras Já n os anos de 1860, porém, a Guerra Civil, a necessidade
definidas concedia-lhe um direito de posse à reivindicação com- de fundos para mantê-la e as preocupações de investidores com
pleta. Isso não era mais do que a aplicação de ( ...) [um aspecto] a Califórnia, o Nevada e o Colorado, forçaram o C ongresso a
da lei de posse adversa".140 Um advogado dos mineradores co- considerar uma consolidação dos milhares de leis de minera-
mentou como suas leis seguiam um paralelo com o sistema d e ção em um sistema integrado. As preocupações dos investidores
direitos de propriedade formal e o simplificavam: acerca dos títulos de terras desempenharam papel proeminente
nesse debate. Um contemporâneo observou que por causa da
Segundo a lei dos mineradores, o localizador é o seu próprio falta de um sistema de títulos padrão, "os capitalistas não esta-
executivo para tomar a terra, conceder a si próprio um título de vam dispostos a gastar dinheiro em custosos poços que pode-
posse, fixar as fronteiras e anunciar-se a si mesmo o proprietá- riam afundar, e erigir m aqu inaria e construções, para encontrar
rio ( ... ) O anúncio é o substituto do requerimento escrito; a filões que, segundo a lei dos mineradores, pod eriam ser inde-
marcação das fronteiras responde ao propósito do levantamen- finidamente subdivididos dependendo de suas riquezas". 144 O
to; a lei de mineração é a concessão, e o registro com o oficial governo federal passou a considerar seriamente urna maneira
local, o título. O único oficial responsável é o grande público, a de regulamentar a mineração em terras federais. 145 Segundo
quem os mineradores representam, e cuja lei é inexorável.•~• Lacy, urna das principais preocupações dos membros do Con-
gresso do O este era o "clamor pela segurança dos títulos e a
Essa fusão de modelos legais existentes e informais preencheu possibilidade de se comprarem terras minerais a um preço ra-
o vácuo da lei formal nas extensas terras de mineração norte- zoável". 146
172 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 173

Em 1866 o C ongresso pela primeira vez declarou as terras mi- rou princípios e direitos que haviam sido ganho s pelos colonos
n erais da nação oficialmente abertas à exploração dos cidadãos nor- na p reempção e reivindicações de assentamento. A lei também
te-americanos - dezoito anos depois de centenas de milhares de estendeu direitos de patente a qualquer pessoa ou associação que
mineradores haverem começado a minerar o ouro em terras fede- houvesse gasto US$1.000 em trabalho e melhor ias em uma rei-
rais da Califórnia. O estatuto de 1866 explicitamente observava que vind icação, inspecionada ou não. Isso foi o reconhecimento ex-
todas as explorações de minerais seriam sujeitas àqueles "costumes plícito de que a valorização dos ativos era algo que a lei precisava
locais ou regulamentos dos mineradores nos d iversos distritos de incentivar e proteger.
mineração" que não estivessem em conflito com as leis dos Esta- Em 1Ode maio de 1872, o Congresso aprovou a lei geral de
dos Unidos. 147 O propósito da lei não era o de destruir direitos mineração, estabelecendo a estrutura formal básica da lei de mi-
sustentados extralegalmente, mas fortalecê-los "com algumas regu- neração norte-americana que se mantém até hoje. Essa lei reteve
lamentações saudáveis sobre com o os manter e executar, que não os dois mais importantes princípios do estatuto de 1866: o reco-
conflitassem com as leis existentes dos mineradores, mas simples- nhecimento da lei dos mineradores e o direito d e qualquer um
m ente conferissem uniformidade e coerência a todo o sistema".148 que melhorasse uma mina de comprar seu título do governo a
Outro aspecto significativo dessa primeira lei de mineração foi que um preço razoável. 151 Num espaço de vinte anos a extralegalidade
"a essência do decreto veio diretamente do filão das regulamenta- gerou direitos, e os acordos dos mineradores foram integrados em
ções de mineração do D istrito de Mineração de Grass Valley, no um novo sistema formal. Até a Suprema Corte, cuja hostilidade
condado de Nevada, Califórnia(...) e do Distrito de Mineração de aos d ireitos informais provocara u m a reação a favor dos ocupan-
Gold Mountain, no condado de Storey, N evada". 149 Ao aprovar a tes de terras, reafirmou a validade das leis federais de mineração
de 1866 e 1872 emjennison 11. Kirk. Segundo a corte, os dois esta-
lei, o Congresso chegou mesmo a elogiar o gênio n orte-americano
pela criação de acordos extralegais: tutos "concediam a sanção do governo a direitos de posse adqui-
ridos pelos costumes, leis e decisões das cortes locais (...) [e]
É essencial que esse grande sistema estabelecido pelo povo em reconheceu a obrigação do governo de respeitar direitos privados
suas capacidades primárias, e evidenciando pelo mais alto teste- qu e cresceram sob o seu consentimento tácito e aprovação. N ão
munho possível o gênio distinto do povo norte-americano para a propunha nenhum sistema novo, m as sancionava, regulamenta-
fundação de impérios e da ordem, seja preservado e afirmado. A va e outorgava um sistema j á estabelecido, ao qual as pessoas
soberania popular é aqui demonstrada em um de seus maiores estavam apegadas".152 Por volta de 1880, as regras e costumes extra-
aspectos, e simplesmente nos convida, não a destruir, mas a por- legais do distrito minerador haviam sido integrados em um siste-
mos o selo do poder nacional e da inquestionável autoridade.150 ma formal coerente de lei de propriedade. 153

E assim, a legislação de 1866 n ão só reconheceu a legitimidade Ao fin a l do século XIX os políticos n orte-americanos e os juízes
dos contratos sociais nascidos fora da lei oficial, mas incorpo- haviam dado um grande passo na área da le i de pro priedade -
174 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 175

e foram os ocupantes de terras que os lideraram . Isso também produto r de capital no mundo. Como enfatiza Gordon Wood,
foi verdade no caso da habitação: em 1862, quando o Congres- duran te esse tempo "algo portentoso acontecia na sociedade e
so promulgou a célebre "Lei de Herdades" que conced ia 160 na cultura que libertou as aspirações e energias das pessoas co-
acres livres a qualquer colono disposto a viver na terra por cinco muns como nunca antes na história norte-americana". 157
anos e a melhorá-la, estava apenas sancionando o que os colo- Esse algo "portentoso" foi uma revolução que reivindicava os
nos já faziam por si mesmos. 154 A despeito da fama legendária direitos de propriedade. Os norte-americanos, nem sempre ar-
da Lei de Herdades, a maioria dos assentamentos ocorreu antes dentemente ou conscientemente, pouco a pouco legitimaram as
desta ser decretada. "Entre 1862 e 1890, a população dos Esta- normas e acordos extra legais de propriedade criados pelos ameri-
dos Unidos aumentou em 32 milhões - mas somente cerca de canos mais pobres e os integraram à lei da terra. No início do sé-
2 milhões se assentaram nas 372.649 fazendas reivindicadas por culo XIX.as informações sobre propriedades e as regulamentações
m eio da Lei de Herdades." 155 Q u ando o Con gresso fmalmente que as regiam eram d ispersas, atomizadas e desconexas. Existiam
a aprovou, os colonosjá possuíam m uitas alternativas legais para em livros de registro rudimentares, anotações pessoais, constitui-
conseguir um título de terras púb licas.156 Historicamente, po- ções informais e regulamentações distritais ou testemunho oral
rém, a Lei de Herdades tem um grande valor simbólico, signifi- em toda lavoura, mina ou assentamento urbano. Como nos paí-
cando o fim de uma longa e amarga luta entre a lei elitista e uma ses em d esenvolvimento e nos extintos países comunistas de hoje,
nova ordem trazida pela migração maciça e pela n ecessidade de a maior parte dessa informação relacionava-se tão-só com a co-
uma sociedade aberta e sustentável. Abraçando por fim muitos m unidade local, e não estava disponível por meio de nenhuma
dos acordos extralegais dos colonos, a lei formal se legitimou, rede consistente de representações sistematizadas. Embora os di-
tornando-se regra para a maioria nos E stados Unidos ao invés rigentes norte-american os provavelmente não o tencionassem ou
de exceção. se dessem conta, quando construíram leis nacionais tais como os
decretos de preempção e da mineração estavam criando as for-
mas representativas que integraram todos esses dados dispersos
O significado para o Terceiro Mundo e as em um novo sistema de propriedade formal.
extintas nações comunistas Não foi uma tarefa fácil ou rápida; nem foi sem violência.
Mas a experiência norte-americana é muito semelhante ao que
Para os países em desenvolvimento e os antigos países comu- ocorre hoje no Terceiro Mundo e nos países antes comunistas:
nistas tentando suas próprias transições para o capitalismo, a a lei oficial não tem sido capaz de acompanhar a iniciativa po-
experiência norte-americana é extremamente significativa. O pular, e o governo perdeu o controle. Como resultado, as pes-
reconhecimento e a integração d os direitos de propriedade soas fora do Ocidente v ivem hoje em um mundo de paradoxos
extralegais foi um elemento-chave para os Estados Unidos tor- semelhante ao descrito por G. Edward White: "Quando o mine-
narem-se a mais importante economia d e mercado e o maior rador deixava sua choupana e ia trabalhar, empregava a última
176 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 177

palavra em tecnologia. Quando o fazendeiro punha o pé fora de pular e n os acordos extralegais que o povo criava, enquanto re-
seu casebre de terra batida, com freqüência usava a mais mo- jeitou as doutrinas da tradicional lei inglesa pouco relevantes aos
derna maquinaria agrícola." 158 No Terceiro Mundo, igualmen- problemas específicos dos Estados Unidos. No longo e árduo
te, vive-se e trabalha-se em casebres e favelas lado a lado com processo de integração dos direitos de propriedade extralegais,
televisores e ferramentas elétricas. Igualmente organizam-se clu- os legisladores e juristas norte-americanos criaram um novo sis-
bes de reivindicação de concessões. E os seus governos também tema muito mais conducente a uma economia de mercado pro-r
começaram a conceder-lhes os direitos de preempção. dutiva e dinâmica. Esse processo constituiu uma revolução
Mas o que ainda não possuem é um direito legal traçado sustentad a pelas expectativas normativas de pessoas comuns, que
eficientemente para integrar suas propriedades em um sistema o governo desenvolveu em uma estrutura formal sistematizada
legal formal que lhes permita usá-las na criação de capital. Por e profissional.
meio da ocupação, da preempção, leis de herdade, leis de mine Isso não quer dizer que as nações em desenvolvimento e os
radares e assim por diante, os norte-americanos construíram um extintos países comunistas devam imitar, servihnente, a transi-
novo conceito de propriedade, "que enfatizou seus aspectos di- ção dos EUA. Existem muitas conseqüências negativas na expe-
nâmicos, associando a propriedade com o crescimento econô- riência dos EUA que deveríamos ter o cuidado de evitar. Mas,
mico", e que substituiu o conceito "que enfatizava seu caráter como já v imos, há muito o que aprender. A primeira lição é que
estático, associando-a com um tipo de segurança contra mudan- fingir que os acordos extralegais não existem ou tentar acabar
ças por demais rápidas".159 A pr~pri~a:!_e ~arte-americana trans- com eles, sem uma estratégia para canalizá-los no setor legal, é
formou-se de um meio de preservaçã_p d~ mn~_!iga ordem
--
econômica para ser, em vez disso, uma ferramenta poder<?sa_~
- uma prática tola - especialmente no m undo em desenvolvimen-
to, onde, como vimos no Capítulo 2, o setor extralegal hoje cons-
titui a maioria da população desses países e possui trilhões de
criação de uma nova orde~. O resu!tado foi a expansão dos
mercados e do capital necessário para alimentar_o crescimento dólares em capital morto.
econômico explosivo. Essa foi a mudança " portentosa" que ain- Os esforços para a criação de uma revolução da propriedade
da d irige o crescimento econômico norte-americano. no Terceiro Mundo e nos países antes comunistas enfrentarão
No fim das contas, as lições da transição dos Estados Uni- suas próprias exigências, obstácu los e oportunidades. Temos de
dos à formalidade não serão encontradas nos detalhes técnicos, competir com as outras revoluções que ocorrem nas comunica-
mas nas mudanças nas atitudes políticas e nas amplas tendências ções, na tecnologia de informação e na rápida urbanização, mas
legais. Ao aprovarem leis para integrar a população extralegal, a situação é basicamente a mesma. Hoje, em muitas nações em
os políticos norte-americanos expressaram a idéia revolucioná- desenvolvimento e nas antes comunistas, a lei de propriedade
ria de que as instituições legais sobrevivem apenas se respon- não é mais relevante para o modo de vida e trabalho da maioria.
dem às necessidades sociais. 160 O sistema legal norte-americano Como pode um s istem a legal pretender legitimidade se deixa
obteve sua energia porque fundamentou-se na experiência po- de fora 80 por cento de seu povo? O desafio é corrigir essa falha
178 H ERNAND0 DE S0T0

legal. A experiência norte-american a mostra que isso é uma ta-


refa tripla : devemos encontrar os verdadeiros contratos sociais
de propriedade, integrá-los na lei oficial e traçar uma estratégia
política que torne a reforma possível. Como os governos po- 6
dem vencer esses desafios é o tema do próximo capítulo.
O mistério do fracasso legal
Por que a Lei de Propriedade não funciona fora do Ocidente

A vida da lei não tem sido a lógica; tem sido a experiência.

OLIVER WENDELL HoI.MES, JU1Z DA SUPREMA CoRTE oos EUA

Praticamente toda nação em desenvolvimento e ex-comunista


possui um sistema formal de propriedade. O prÕblema é que a
maioria de seus cidadãos não tem acesso a e le. Depararam-se com
a redoma de vidro de Fernand Braudel, aquela estrutura invisí-
vel no passado do Ocidente que reservou o capitalismo a um
setor bem pequeno da sociedade. A única alternativa dessa maio-
ria, como vimos no Capítulo 2, é retirar-se com os seus ativos
para o setor extralegal onde podem viver e negociar - mas sem
. jamais conseguir converter seus ativos em capital.
Antes de podermos levantar a redoma de vidro, é importan-
te sabermos que não seremos os primeiros a tentá-lo. Como
veremos neste capítulo, os governos dos países em desenvolvi-
mento vêm tentando há 180 anos abrir os seus sistemas de pro-
priedades aos pobres.
Por que têm fracassado? Porque agem, em geral, com base
em cinco equívocos:
180 HERNANDO DE SOTO O M ISTÉRIO DO CAPITAL 181

A todos que se abrigam nos setores extralegais ou clandestinos suas contas de impostos. Mas os fabricantes e lojistas extralegais
o fazem para evitar o pagamento d e impostos; - que operam com margens de lucros estreitos como navalhas,
A os ativos em imóveis não são posses legais porque não foram em cêntimos em vez de dólares - conhecem a aritmética bási-
apropriadamente levantados, mapeados e r egistrados; ca. Tudo que tivemos de fazer foi garantir que os custos de uma
A decretar leis obrigatórias de propriedade é o bastante, e o s operação legal fossem menores do que os da sobrevivência no
governos podem ignorar os c_u stos de execução dessas leis; setor extralegal, facilitar a papelada de legalização, fazer um es-
A acordos extralegais existentes ou "acordos sociais" podem ser forço verdadeiro para comunicar as vantagens do programa e
ignorados; depois assistir a centenas de milhares de empresários abando-
A pode-se modificar algo tão fundamental como a convicção das narem alegremente a clandestinidade.
pessoas ou o modo como mantêm seus ativos, sejam legais Contrariando a cr ença popular, a operação clandestina di-
ou extralegais, sem uma liderança política do alto escalão. ficilmente é isenta de custos. Negócios extralegais são sobr e-
carregados pela falta de uma boa lei de propriedade e por
Justificar as economias subterrâneas desses países, onde de 50 a continuamente ter de esconder suas operações das autorida-
80 por cento das pessoas normahnente operam, com base na eva- d es. Porque não são incorporados, os empr esários extralegais
são de impostos é, no melhor dos casos, parciahnente errôneo. A não podem atrair os investidores com a venda de suas ações;
maioria das pessoas não recorre ao setor eJ1..'tralegal porque este é não co nseguem obter crédito formal a juros baixos porque nem
um paraíso fiscal , mas sim porque a lei existente, não obstante sua mesmo possuem endereços legais; não podem reduzir os ris-
elegância de expressão, não se reporta às suas necessidades ou as- cos declarando responsabilidade limitada ou obtendo cober-
pirações. No Peru, onde minha equipe planejou o programa para turas de seguro . O único "seguro" disponível para eles é o
conduzir os pequenos empresários extralegais ao sistema legal, fornecido por suas vizinhanças e a proteção que os valentões
cerca de 276.000 desses empresários registraram suas empresas locais ou as m áfias se dispõem a vender-lhes. Além disso, por-
voluntariamente nos novos cartórios de registros que providencia- que os empresários extr alegais vivem em um constan te temor
mos - sem uma promessa de redução de impostos. Seus negó- da descoberta do governo e da extor são por oficiais corruptos,
cios clandestinos não haviam antes pago qualquer imposto. Quatro são forçados a dividir e compartimentar suas instalações de
anos depois, a receita de impostos de negócios antes extralegais produção em diversos locais, portanto raramente conquistam
totalizavam US$1,2 bilhões. importantes economias de escala. No Peru, 15 por cento da
Fomos tão bem-sucedidos porque modificamos a lei das renda bruta das fábricas do setor extralegal é paga em subor-
empresas e de propriedade para adaptá-las às necessidades dos nos, indo de "amostr as grátis" e "presentes" especiais em for-
empresários acostumados às regras extralegais. Também corta- ma de mercadorias, até o dinheiro propriamente d ito. Com um
mos drasticamente os cu stos burocráticos de se abrir um negó- olho sempre atento na polícia, os empresários dos subterrâneos
cio. Isso não quer dizer que as pessoas não se importam com econômicos não podem abertamente anunciar seus produtos
182 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 183

para construir uma clientela ou fazer entregas mais volumosas A r edoma de vidro de Braudel não é feita de impostos, ma-
e de menor custo aos seus clientes. pas e computadores, mas de leis. O que impede a maioria nas
Nossa pesquisa confirmou que na maioria dos países livrar- nações em desenvolvimento e as antes comunistas de usar a
se dos custos e aborrecimentos do setor extralegal, em geral, moderna propriedade formal para gerar capital é um sistema legal
compensou o pagamento de impostos. Dentro ou fora da redoma e administrativo ruim. Dentro da redoma de vidro estão as eli-
de vidro, pagam-se taxas. O que determina a permanência do tes proprietárias que usam uma lei codificada emprestada do
lado de fora é o custo relativo de se legalizar. Ocidente. Fora da redoma de vidro, onde vive a maioria, a pro-
Outro equívoco básico é que os ativos imóveis não podem priedade é usada e protegida por toda sorte de acordos extralegais
ser legalmente registrados a não ser que tenham sido levanta- solidamente enraizados num consenso informal espalhado por
dos, mapeados e registrados com a última geração de tecnologia amplas regiões. Esses contratos sociais locais representam a com-
de informação geográfica. Isto também é, no melhor dos casos, preensão coletiva de como se possuem as coisas e de como pro-
parcialmente verdadeiro. Os europeus e norte- americanos con- prietários relacionam-se entre si. Criar um contrato social
seguiram registrar todos os seus ativos imóveis décadas antes de nacional de propriedade envolve compreender os processos psi-
os computadores e sistemas de informação geográfica serem cológicos e sociais - as crenças, desejos, intenções, costumes e
inventados. Como vimos no úl~imo capítulo, por todo o século regras - que estão contidos nesses contratos sociais locais e,
XIX o levantamento de terras recém-assentadas nos Estados então, tomar das ferramentas proporcionadas pela lei profissio-
Unidos ficou atrasado em muitos anos em relação à transmis- nal para tecê-los em um único contrato social formal nacional.
são dos direitos de propriedade. No Japão, examinei a documen- Foi o que as nações ocidentais alcançaram não muito tempo atrás.
tação disponível nos cartórios de registro evi como algun s ativos O ponto crucial a ser entendido é que a propriedade não é
em terras haviam sido r egistrados depois da Segunda Guerra um objeto material que pode ser fotografado ou mapeado. A
Mundial usando-se mapas do período Edo - mapas de três a propriedade não é uma qualidade básica dos ativos, mas a expres-
quatro sécu los antes da invenção da fotografia aérea e dos siste- são legal de um consenso economicamente significativo sobre os
mas de posicionamento global. ati~os. A lei é_ o instru~ I ! . ~ ~ ~ capital. No
Isso não significa que a computação de última geração e os Ocidente, a lei preocupa-se menos com representar a realidade
sistemas de informação geográfica não sejam de extrema impor- física das construções ou imóveis do que em proporcionar um
tância para os esforços de qualquer governo que busque abrir processo de regras que permitirão à sociedade extrair a mais-valia
seu sistema de propriedade aos pobres. O que significa é que a potencial desses ativos. A propriedade não é o ativo em si, mas
subcapitalização difundida, a posse informal e as habitações ile- um consenso entre pessoas de como esse ativo deve ser possuí-
gais por todo o mundo não-ocidental estão longe de serem cau- do, usado e trocado. O desafio hoje na maioria dos países não-
sadas pela falta de uma tecnologia avançada de informação e de ociden tais não é o de pôr toda a terra e as construções da nação
mapeamento. em um m esmo mapa (o que provavelmente já foi feito), mas
184
HERNANDO DE SOTO
O MISTÉRIO DO CAPITAL 185

integrar as convenções legais forma is dentro da r .


dro com as eXtralegais do lado d e fora. edema de vi- acerca da propriedade e do capital. Para se conquis tar essa
. Nenhuma quantidade de levantamentos integração, muitas outras disciplinas são, é claro , necessárias: os
isso. Nenhum volume d - e mapeamentos fará economistas precisam acertar os custos e os números; os plane-
e computaçao convert , .
mas que lhes permitirão ad era ativos em for- jadores urbanos e os agrônomos devem designar prioridades ; os
entrar os mercados em -
transformar-se em capital C . expansao e mapeadores, agrimensores e peritos em computadores são in-
. orno vimos no Capítul0 3 .
em si não produzem efc . , os ativos dispensáveis para o funcionamento dos sistemas de informação.
. e1cos no compor tamento . l· -
<luzem mcentivos não .. soc1a . nao pro- Mas, no final das contas, um contrato soc ial nacional integrado
, ,ornam pessoa a1gu ,
levam à execução de ne11 h ma responsavel, não se concretizará tão-só por meio de leis. Todas as outras discipli-
um contrato Ativo - - · •
mente "fu - · ,, · s nao sao mtnnseca-
bT d ngive1s - capazes de serem divididos combin d nas desempenham um papel de apoio.
m o t iza os para adequar-se a qual uer tra ,- a os ou Isso implica qu e os advogados devam liderar o processo de
qualidades surgem da l . d q nsaçao. Todas essas integração? Não. A implementação de uma grande mudança le-
e1 mo erna de propried d É J .
conecta os ativos aos circ . fi . a e. a e1 que gal é uma responsabilidade política. Existem várias ra zões para
u1tos mance1ro e de . .
representação dos ativos fi d mvestunento. E é a isso. Primei , a lei em gera l preocupa-se com a proteção dos
-:--- - -- - - DG!. os em documentos l . d -
pnedade q_ue lhes concede- o d d . - -- ega1s _: ~ direitos ele propriedade, mas a verdadeira tarefa nos países em
Ma. d ~ - P.2_er- e C:tar maIS-valia.
is e sessenta anos atrá . - .--- desenvolvimento e nos antes comunistas não é tanto aperfeiço-
Reinold N s, o emmente historiador legal C
oyes escreveu: · ar os direitos existentes como conceder a todos o direito aos di-
reitos d e propriedade - "metadireitos", se preferir. A concessão
As peças do jogo econômico atual não são de tais metadireitos, eman,s;.ipando o povo das leis prejudiciais, é
cadorias fisicas e os se . . exatamente as mer-
rv1ços em s1 considerad . um trabalho político. Se;~do, bem poucos, mas poderosos,
vamence pelos livro d . os quase exclus1-
s e economia são Ib - direitos adquiridos - em Í,dparte representados pelos melho-
relações legais que den . , ~ e a oraçao daquelas
onunamos propnedad ( ) S res advogados comerciais do país - provavelmente se oporão a
vades, ao estudar o seu dese l . e ... omos le-
de social como urna d d nvlo v111:1enco, a conceber a realida- mudanças a não ser que sejam convencidos do contrário. Trazer
re e e aços mtangíveis - u . para o meio da roda as pessoas com conexões e dinheiro não
aranha de filamentos invisíveis - q e ma teia de
indivíduo e ue . . u cercam e entrosam o requer consultores envolvidos no serviço a seus clientes, 11\3s
q portanto organizam a sociedade ( ) E
so de se arcar com o mund 1 . ... o proces- políticos talentosos engajados no serviço a seu povo. E m tC(g}-
o rea em que vivem ,
de objetivação dessas relações.1 os e o processo ro lugar, criar um sistema integrado não é traçar leis e regu la-
mentações bonitas no papel, mas sim planejar normas enraizadas
Levantar a redoma de vidro é e - . - nas crenças das pessoas e, portanto, que sejam mais provavel-
fio legal. A ordem legal fi .' l ndtao, ~nnc1palmente, um desa- mente obedecidas e executadas. Se envolver com as pessoas de
o Icia eve mterao-ir
extralegais fora da redoma de vid . o ~ com os acordos verdade é tarefa de políticos. Em quarto lugar, incitar as econo-
ro para criar um contrato soc1.a1
m ias clandestinas para que se tornem legais é um enorme traba-
186 HERNANDO DE SOTO
O MISTÉRIO DO CAPITAL 187

lho político de venda. Os governos precisam convencer os cida- indispensáveis da fórmula: ~ s a-fi~ legal.J(A.4 na Figura 6.1)
dãos mais pobres - que desconfiam do governo e sobrevivem e o desafio polític9 ~B.1 na Figura 6.1).
em estreitos acordos provincianos-, e algumas das máfias que
os protegem, a comprar um bilhete de ingresso para um jogo
muito maior e mais confortável. O s governos precisam também PARTE I:
convencer os esquerdistas influentes, que em muitos países es- o desafio legal
tão próximos do povo, de que capacitar seu eleitorado a produ-
zir capital é o melhor meio de ajudá-los. Cidadãos de dentro e Como as coisas estão, a criação de um sistema de propriedade
de fora da redoma de vidro precisam que o governo insista que integrado nas nações não-ocidentais é impossível. Os acordos de
um sistema reformulado, integrado, de propriedade é menos propriedade extralegais estão dispersados por dúzias, em alguns
custoso, mais eficiente e melhor para a nação do que os acordos casos centenas, de comunidades; os direitos e as outras informa-
anárquicos existentes.
ções são conhecidos apenas pelos pertencentes às associações ou
Sem a vitória nas frentes legais e políticas, nenhuma n5ão v izinhanças. Todos estes isolados e dispersos acordos extralegais
i:ode ~~n~Zer o ---;;;;;irtheícflegal entre os q ue co~segy;m g-;;-ar ca- de propriedade característicos da maior parte do Terceiro Mundo
pital e os que ~ão conseguem. Sem a propriedade formal, não e das nações antes comunistas devem ser tecidos em um S~Qlª
importa quantos ativos acumulem ou o quão arduamente tra- ú ~ do qual princípios gerais de lei podem ser extraídos. Em
balhem, a maioria das pessoas não será capaz de prosperar em resumo, os muitos contratos sociais "lá fora" devem ser iritegra-
uma sociedade capitalista. Continuarão permanecendo além dos dos em um contrato social abrangente.
radares dos políticos, além do alcance dos registros o ficiais, e Como realizá-lo? Como podem os governos descobrir quais
portanto economicamente invisíveis. são os acordos extralegais de propriedade? Foi precisamen te essa a
Os governos ocidentais conseguiram levantar a redoma pergunta que me fizeram eirice membros do gabinete indonésio.
de vidro, mas foi um processo errático, inconscien te, que le- Eu estava na Indonésia para lançar a tradução de meu livro anterior
vou centenas de anos. M eus colegas e eu sint.ttizamos o que para o idioma indonésio bahasa, e eles aproveitaram a oportunida-
pensamos ter fejto_cor!'etamente em uma fqrm-:µ que cha- de para convidar-me a explicar como poderiam descobrir quem é
ma_m ~s de~ 'ÇE_ocesso de ca~~izaç3 ", com--;-qual estamos dono do quê entre os 90 por cento dos indonésios que vivem no
ass1stmdo vanos governos por toâõo mundo (veja Figura 6.1). setor extralegal. Temendo perder o m eu público se me enveredas-
Explicar os seus detalhes não faz parte d este livro, mas os lei- se por explicações técnicas de como estruturar uma ponte entre os
tores que desejarem uma descrição técnica de todo o plano setores legal e extralegal, respondi d e outro modo, um modo
estão convidados a consultar as documentações inéditas dos indonésio. Durante a turnê de meu livro eu tirara alguns dias de
arquivos do Institute for Liberation and D emocracy. No res- folga para conhecer Báli, um dos locais mais belos do mundo. Pas-
tante deste capítulo me concentrarei em dois componentes seando pelos campos de arroz, eu não fazia idéia de onde ficavam
g,5.5 C,iit uma atumat?\'J convtl'Wtnttf dtbaixo custo pata a ocu~1o , ow~ forma dt apropri~Jo extnltial. Consolidar o pr«tsliOto rtsptito à lei tsta!>tlt«rdoinctr1livtts visando motinr
, ,tdifi<ia 1,gal, d,sN1Coraj,r • ilfi•I ("tral,gal].
B.>.6 frojtttr eimplM1et1m proceuoi admir,httarivos ou priYados puasubsônrirem os proctssos judicWs, ondt adtqUados, in<toti'filndo a reolu~lo lfgaldtdispuw.
. Criar meanJsmos que reduz.irá.o os riscos associados ao investimento privado, indulndo a credibilidade de títulos e a inadimplência públfca
86

e. AESTRAT'éGIA OPERACIONAL
C.I Projetar e implementar uma ewa~la para operações em campo. procedimentos, quadro de pessoal, equipamento, escritórios, treinamentos
e ,nanua.is que capacitem ao governo reconhecer e trata.ros direitos de propriedade individuais no setor extnleaal
c.1.1 P,ojttill me<ani.smos para a obttnçio da particip,a~ão maci~a dos mtmbnn dos asuntatnent01 t.tualtpiscom opropó1 ito dt rtduri, os custos da capitalira,s~.
C.ll Conduzir cursos dttrfinamt.nto pau a orga.niza~1o dt britadas de capiuliu~oqlH' rtftitam os tipO'S ele titra.ltplidzdt qut irJo tncontr.a,.
tlJ Of'stf!YOIYtt m;nuaisquttx~iquffll aos lídtrts tà poputa~ã.o dos anMtamm1os utraltgiis01 modos DOS qL1ais podtm particip.ar da selfS5o t colru dtp<OY.aidf pom_
Figura 6.1
li.4 Pr,parar pm • capi11liuÇ10das comunidades mral,1ais.
PROCESSO DE CAPITALIZAÇÃO tl.4.1 kftntificv t tr!inu p,omotorts loar1 drntro de oda comunidildt.
MOVIMENTO DO CAPITAL M O RTO PARA CAPITA L VIV O C.l.4J lm~trnfntJr urna c,mpama local prornocional dNitro d,c,da comunid'41t.
C.I .4J EM" c,da comlX!idadt ''°'' as prOY.ll deposs, """slri,s.
A. AESTRAT'éGIA DA DESCOBERTA C.1.4.4 lninar lidfffl loc~, p,rrngistrar as inl0tma1~ dt posmm lor11111lírios dt rfiisuo.
(.1.4.S ldtotiicar, minar fiscais pr~•dos paraclftificarHn • inl«111>1lo coltsad, pela comun~•dt.
A.l ldontificar, localizar e classificar os ativos exmilegals (capital morto) tl.SlMUr e proctuar as informiç6ts sobre os ativos fTSkos.
A.1.1 DfltMol,1< flptcificaç6'1 dt recrt11,me1>10 loc,I pan p"1flr>\lo no sftor nttalfial. C.1.S.I Obt1< ou P''I'"" mapas mo,1T1ndo as lronttins do, loces iodmdu~, (onde nteesslrio, fll'P""' rnapu digiui1pau o r,gisuo dt iníorm>16" sobre íroottir~).
A.1.2 Dttttmii,at as causas da acumulação dt aivos n:tnltg.iis para odt:SM't'offlmtnto dt tipolocias lf'iá'tfls. C.1.Sl Vtriicar qut01 mapas mom,ndo lotfl i,.;duais corr!lpond,rn l 1ituaçlo nosolo.
A.1.3 lo<aliur morn econ6mkos t ân.u geoiráficas onde prmltctm ilS atividadts o:trtlfilaiS. c.lJJ [Jltnr com os m,;as nosis11m, computacional.
A.l Quantificar o valor real e potencial dos ativos extn.legais (capítal morto) C.U kt<,nir • proc,sm u infor111>16ts 10hr,as poss,s.
U.I º"""°"" metodologiu apropfiadas para II es,imar o,alor do, ,.,,, utral,gm utilizando inl0<m>1õ,s uiltffltfl • dados col,t>tios em uabalbo dtc~. C.l.ó.l 1..,;rinlor""\Õfl sobre as I"""'1 rfiisUl,las em formul!rio, dt registro.
C.l.ól Vtrifimqu,01direi101 dtpos11clo,llidos nano,alo.
l21 Padronizu os critirios dt col,tt t p,octssamenrodtinformas~ edt connrrnaçto de mult.ados.
A.2J Estabtfoctr aimportãnàa do valor dos ativos ut:nlepís. c.U.l Entrar com as inlonna~6H ~e as pout5 no sistema computa(~L
A.3 Analisar a interasfio do setor extralegal com o restante da sociedade C.U.411.ftimaroficidment,osdireitos d,po,11.
A.li Peisqtiisaros 'f'Ínculos relf'fantn mmo govrrno e~ ativos txlraltgtis. C.U.l Diltribuir ctrtifiudos aos beneficiados ,m cerimônia pública.
A.31 Pnquhar os vfnnilos tfltvanm tntre os Titg6ciosltgais eos ativos utnle,ais. C.2 lmplementllr estra~ías de comunica,;io utilizando a mídiaapropriada para Incentivar a participação do setor extralegal. oapoio da comunidade
AJJ ldftltiicar os procmo, po, m,io do, qu.m o go,emo jí lidoo com'"'"'º com os atilo, uual,i~,. de negócios e no setor governamental, e a aquiescência entre aqueles com direitos adquiridos no sta/J/squo
A.4 ldontlficar as normas extralegais que regem a propriedade extral02al UI Condurir um, campanh, pm ada tipo partícobr dtcomunidad, no mor u uai,i,1inc!!ltmndo • suo participa\10 no p,octsso.
(Jl r.1eodrar m,ca~,,,., quemomem aos benfÍKilr~s do proceisodtcapi11li1>1!• que 11111 ativos fltio proc,gido, ptl• ""'"" ,suutura Í1111Ítocional quep<Olfl'O! dirtitos do, in,.1tidore1
A.4.1 Detecu.r t dteodilicar as nonnas n:ualtgais qvt dtfintm o modo como os direitos dt proprifdadP são mantidos t uercidos pelas difrrenre comunidades utraltpis ao ~is.
A.5 Determinar os custos da extral,galidade para o país pmadoi. tanto domésticos como emangtiroi. luo fornKHá a mts propritdrios 11N razão para rnptitarem os: contratos ttgidos ptl.a «dem lepl formal.
A.S.I o, cm101 para o,~or u ual,gal. (JJ Condutir uma campanhl para cada con1tnlidad1 lfial que posia lffllÍMI ,ulnerl,d.
A.ll Os custos para omo, dt nfi6cios l,gais. CJ.4 Pro,.., o, meios decomuniar ,0111or lfi~ 01 bfflelicio1 d, capitalizaçlo, N1fatiundo • redução dt risco,• tomandodiro que acapitalitallo nem aletari os dírotos w,~ntn dt propriedadt
A.SJ o, custos pano go,ffno. ntm compromettrá 01 di'titos cft 1erctiros.
CJ.l Con&izír uma comp,nhl par, profissionais com cirtito, adquiridos na dlÍl~\io dt propri,dadt, "plicando 11U lusuro paptl • ..,,oMmfflto ,cnsci<lo dentrod,,m 1ttor lfial npandidoapós
8. AESlRAT'éGIA POÚTICA E l.EGAl ,c,pitaliz~.
CJ Reformular as organ~óes de registro e os processos de registro para que possam reunir IX>das descrições economicamente úteis sobre o• atívos
8.1 Garantir que o mais alto nivel polltico assuma a responsabilidade pela capitalização dos pobres extralegals do pais e os integrar em um banco de dados/conhecimentos base.1do no sistema computacional
8.1 Coloair em operação ag~ndas que permitirão uma rápída mudança CJ.l Estrutum, orraniu\io tios c,~ório, dt rflÍltrO! , ,eu Huxo int,mod,trabalho, simplificJt os processo, dt rtgisuo, ,st.1bel1<tr Hpecific21~ para• •utomati!JIIO d, iolorma16es, projetar
8.2.1 ldmtificar t<one<tas ao proc!lso d, capitali1>1lo as dil1<fflt!l imtinriç6" prnent!fnffltt r,i,odoo, dir~to, dt propriedadeou afttando sua capacidadt dt ,.,., nws-nlia. eifflf)ltmtntar um sistfffla decomrole de q,ra!HSade, ult(ionat, minar ptssoal etstabtltctr proc:.edimentos para iarantir queos cart6rios constgUem lidar com um progn.m2nacional maciio de
8.2.l Projetar. obtu aprmçlo para, t co!O<ar ,m operação 6rglos queperrnitirloa inttodu\lo rápida de modiJl\>l nosd~eno procmo, neullirios àcapitalit>1lo. S. ponínl,cria, oru ú'"" capitali131lo.
organiz.açH tendo o único mandato dt capitalizar os atim t dtsctntrafüar os gabinetes p.ra ooferecimento de 1ffl'Í~ospor todo o pais. UJ COtlltnJÍr sist!ffl1l b,se>dos no SIG,proporcionando opacidade, e1pa10-an~itim.
8.lJ Garantir QUt o p,ocesso dt capitJlizaç:io irKorpo,t as p,k>rid1dts politica.s. do perno t rtftit11111 co1uenso da sociedadeqlff 1orn10 proctno dt fácil uteuçJo. UJ Es1abtltett ll)f(JMmos dt conuolt pm iarantir que oCUllO dos 1tm~~ dt imcri{Jo t dt rteiuro 1-ãotficitntts o basuntt, os custos tficatn para qutsM ~váriosnão 5tjam motindos
8.3 Remover os empecilhos administrativos e legais acair novamente na txtralffalidadt.
8.3.l Cakular os cintos dtsecapiraliza.r os ati,os t1ualtta.is, irKluindo: U.◄ lmtrir dflcr~Õfl caract1rl11im du P"''" t1tr~fiais"" r,gistro, padronizado, ,lormul!rio, dtfáól digitali121lo,para "'"" &l,r,nciada,, rtfltradas tadmilisuadas 1111 llffl únicosis11111a
B.l.1.1 /.s cond~6ts pau aut0ti1>1ó" ""todo, os nmis fO"'n,mennis. computacional.
B.l.l.l /.s condi1~ •• mon1..1, tio• pag,mmtos por'"" ,1110,izaçõ,s. U.S lepar,r, inlormaçlo tradícÍ0<lalmen1, contida 1101 títulos ,m catfiOÓas 1impl,s que poss,rn m onuada, 1111 soltwart 11ilttmatiz,das p•ra lic~ ""'º após uma reforma l,galmftlte aprcrada
BJ.IJ OnUmerod!fo,mulãtios eootros documentos nt«Ssitios. do1 proctdimtnt01 de coitta dt inícwma~Jo tx.isttntH.
B.l.1.4As cond~ll<s qu, nlo podom u, 1IQnÇ11d31 na prltica. tl.4 f,ól~" , a111,Iiz211o dl inlor'"'!lo dtpropritdadt computadotizacb innalondo-11,0100,paraentrada d, dado!nu proximidades dos bendicilrios. Dp,opósito!rtdUiir o,custos detril1lport•
8J.!.S Os cunos df todasootrn tr;ms~õts.induindo otempc de atrt5os. rnansa1~ do r,gisuolfial d, propriedadfl • nfiócios rtla<ionados com• propriedadfl, mam1t01Çlodo JtttWl'f'I.
8Jl ktmOYer os empteilh<n ,administracn'm t lfgiis idtntiftetndo t modificando as instituí~6's. estatutos t pritius qUt lfl'ªmburocraõa desntctulti1.
8.4 Criar consenso entre ossetores l02al e extralegal D.A ESTRATÉGIA COHERCW.
8.4.1 O.ttrminar os pontos ood, as no,mu utnleg~, coiocidem com alei pm setn12r '"""'°' que reconhflam pro,a, mitínis dtpomutr~'fll com oapoio das comunidades tttral'('is.
D.! Implementar mecanismos de informação e execução que irão capacitar as provisões de:
B.◄J Gar,ntir queo, esbo\01 lfi~' dt nonn,sq..incOf]l«tm J propriobdt nu,lfial oi,ç,rn 11111 comprom,ter onlft! dt "l'l""I'p,opo,cionado àpropri,dadedtridamfflltrfiistrada tcontnl>lb
com tficácia ptla 0tdfffl legal txilttntt para a obtmç.io da .1quiescinci.1 doutor ltpl. D.1.1 Procedimentos bancários/Hipotecas/Cr~lto · D.I.S Produtos de segurança
B.5 Esboçar estatutos e procedimentos que tomem os custos da manutenç.10 t02al de ativos menores do que a manorttnçio extralqal 0.1.l Serviços Públicos (P1<clu tdilll01, s,iuro dt~da,Sfiurode cr!dito, dirtito, dt tft!Oli>,11gtJro
B.5.1 Decr,121 os """'!rios ,smuto1 pua qut toda p<opriedade do pais " Í' r,iidapor um sólido 6rglolfial I conjunto d, p,oce&m!!!tos. (fntt1i>,l1u•. "lotos, 1decomunic316es) d, titulos)
B.SJ Ampliar a defini~ao de prov41 dt posst adtquando,.u ao n<wo processo, t comofidu ffl'l pacotts adniniuratn';amtntt mantjivtis os tstatulos t proctdimw.os qvt rftrio • proc1no dt D.IJ Sistemas de Arrecadação OH Sistema Nacional de Identificação
capltafüa\1o. (Crldno, 1,m,impo,10,) D.IJ Habitação e Infra-estrutura
B.U Consolidar lftidaslo dispffsa Hn um.1 única lei. D.1.4 Bancos de dados/Serviços de Informação D.1.8 Segurança Nacional
8.S.4 Omn~YK instituisõts eproctdimtntos qut permitam erconomias dt tsc-afa par.a tidas u a.tmd.adts connitui.ndoo p,oussodtcar,it:alizaç1o.
190 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 191

os limites das propriedades. Mas os cachorros sabiam. Sempre que tema de formação de propriedade e capital que será reconheci-
eu cruzava de uma fazenda para a outra, um cão diferente latia. do e executado pela própria sociedade.
Aqueles cães indonésios podiam ser ignorantes em leis formais, mas
estavam seguros dos ativos que seus donos controlavam.
Eu disse aos ministros que os cães indonésios tinham a in- A passagem de um sistema pré-capitalista para um
formação básica de que precisavam para organizarem um siste- sistema capitalista de propriedade
ma formal de propriedade. Viajando pelas ruas de suas cidades e
campos e atentando ao latido dos cães, eles poderiam atravessar Sem um sistema integrado formal de pro priedade, uma econo-
gradualmente, pelas vinhas de representações e:xtralegais disper- mia de mercado moderna é inconcebível. Se as nações desenvolvi-
sas por todo o seu país, até estabelecerem um contato com o das do Ocidente não houvessem integrado todas as representações
contrato social reinante. "Ah", manifestou-se um dos m inistros, em um sistema de propriedade padronizado e o disponibilizado a
"Jukum Adat [a lei do povo] l" todos, não poderiam ter especializado e d ividido o trabalho para
Foi descobrindo "a lei do povo" que as nações ocidentais criar a rede de mercados expandidos e o capital que produziram '
• 1
1
construíram seus sistemas formais de propriedade. Qualquer suas riquezas atuais. A ineficiência dos mercados não-ocidentais 4

governo comprometido com a reformulação dos acordos infor- tem muito a ver com a fragmentaç~o de seus acordos de proprie-
mais reinantes em um contrato social formal nacional de pro- dade e a indisponibilidade de representações padronizadas. Essa
priedade precisa ouvir o latido de seus cães. Para integrar todas falta de integração restringe a interação não apenas entre os seto-
as formas de propriedade em um sistema unificado, os gover- res legal e extralegal, mas entre os próprios pobres. As comunida-
nos devem descobrir como e por que as convenções locais fun- des extralegais interagem umas com as outras, mas somente com
cionam, e o quão fortes são. O fracasso em fazê-lo explica por grande dificuldade. São como flotilhas de embarcações que per-
que as tentativas passadas de mudança legal nos países em de- manecem em formação navegando com base na posição da outra
senvolvimento e nos antes comunistas não funcionaram. As em vez de se basearem em um padrão objetivo comum, tal como
pessoas tendem a considerar o "Contrato Social" com o uma as estrelas ou o compasso magnético.
abstração invisível, meio divina, que reside apenas n as mentes Padrões comuns em um corpo de lei são necessários para a
de visionários como Locke, Hume e Rousseau. Mas meus cole- criação de um mercado d e economia moderno.2 Como obser-
gas e eu descobrimos que os contratos sociais do setor extralegal vou C . Reinold Noyes:
não são meramente obrigações sociais implícitas que podem ser
inferidas do comportamento social; são também acordos expli- A natureza humana exige regularidade e certeza, e isso requer
citamen te documentados por pessoas de carne e osso. Como que esses juízos primitivos sejam coerentes e portanto possam
resultado, esses contratos sociais e:xtralegais podem ser alcança- se cristalizar em algumas regras - nesse "corpo de dogma ou
dos, e podem também ser organizados na construção d e um sis- prognóstico sistematizado que denominamos lei" (...) A con-
192 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 193

veniência prática do público (...) leva aos esforços recorrentes século, e nesse ínterim, tentaram muitas experiências infelizes
de sistematizar-se o corpo de leis. A demanda por codificação é sendo por fim forçados a uma variedade de comprometimentos.4
uma demanda do povo de ser libeno do mistério e da incerteza
da lei não-escrita ou mesmo da lei de precedentes.3
O fracasso da lei coercitiva
Fazer a transição de uma condição em que as pessoas já dependem
de uma diversidade de práticas extralegais estabelecidas de mútuo Pode-se presumir que hoje seria relativamente fácil para as nações
acordo para um sistema legal codificado é um desafio desanimador. em desenvolvimento e as antes comunistas retirar suas redomas de
Como já vimos, é isso que as nações do Ocidente tiveram de fazer vidro. Afinal, o direito de acesso universal à propriedade é hoje re-
para ir dos ''.juízos primitivos" pré-capitalistas a um corpo sistema- conhecido por quase toda constituição nacional no mundo e por
tizado de leis. Foi assim gue retiraram a redoma de vidro. Porém, muitas convenções internacionais. Programas para dotar os pobres
não obstante bem-sucedidas, nem sempre estiveram conscientes com propriedade existem em quase todos os países em desenvolvi-
do que faziam, e não deixaram esquemas a serem seguidos. Mes- mento e nos ex-comunistas. Ao passo que as reformas ocidentais
mo na Grã-Bretanha, a_nsiosa por estender os benefícios da Revo- durante os séculos XVIII e XIX encontraram uma resistência inte-
lução Industrial, as tentativas de reforma duraram por quase todo lectual e m oral difundida contra o compartilhamento dos direitos
um século (de 1829 a 1925) antes de o governo poder garantir que formais de propriedade, o acesso à propriedade é hoje considerado
os ativos imóveis fossem registrados centrahnente e facilmente parte integrante dos direitos fundamentais da humanidade. Uma
transferidos. John C. Payne resume o guão difícil e errática foi a ampla variedade de tratados internacionais contemporâneos, indo
reforma da propriedade para a Inglaterra: da Declaração dos Direitos Humanos de 1948 à catequese da Igreja
Católica e à Aliança da Organização Internacional do Trabalho so-
Um grande número de estatutos foi aprovado, e a lei de proprie- bre os Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes em 1989,
dade inglesa foi refeita de cima a baixo. Muito dessa refomia foi insistem na propriedade como um direito humano básico e está-
improvisação ad hoc, e temos a impressão de que os líderes do vel. Em graus diferentes, as cortes e as leis por todo o mundo con-
movimento nem sempre tinham uma idéia clara do que faziam sideram esse direito um importante princípio legal. O antigo
ou por que o faziam. A lei de terra inglesa havia se tomado tão costume do exército invasor de pilhar a propriedade é expressamente
técnica e ganho tantos acréscimos ao longo dos séculos que a ta- proibido pela lei internacional desde a Convenção Internacional de
refa inicialmente deve ter parecido quase sufocante. A dificulda- Haia em 1899. Desse modo, a lei internacional trata os direitos de
de foi a de haver tanto detalhe a ser observado que era difícil chegar
propriedade dos indivíduos como mais sagrados do que os direitos
ao âmago da questão. Então os reformadores ingleses começa-
soberanos dos Estados, estipulando que mesmo que os governos
ram a se lançar para toda parte com a máxima boa vontade, mas
percam terras, os donos de propriedade nesses mesmos territórios
com muito mais energia do que clareza de conceito. No final das
contas executaram bem o seu trabalho, mas este tomou-lhes um não perdem suas propriedades.
194 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 195

Os Estados Unidos, o Canadá, o Japão e a Europa - as 25 transações continuando a modificar as relações de propriedade ao
nações desenvolvidas do mundo- prosperaram tão mais do que longo do tempo. Como vimos no Capítulo 2, hoje, no melhor
as nações sem o tipo acessível e integrado de sistemas de proprie- dos casos, com mapas modernos, computadores, organizações de
dade formal que possuem, que hoje ninguém proporia seria- direitos humanos de prontidão e todas as melhores intenções do
mente soluções econômicas que ignorassem a necessidade da mundo, os procedimentos de registro de títulos e suas alterações
propriedade formal. É por isso que a maior parte das nações em podem levar vinte anos. Da evidência que levantamos, parece que
desenvolvimento e das antes comunistas hoje em dia considera os nativos peruanos no século XIX enfrentavam atrasos não me-
o princípio do acesso universal aos direitos de propriedade uma nos longos, talvez piores. Para pessoas que se deparavam com tais
necessidade política, além de um ingrediente im plícito de seus obstáculos, a criação de regulamentos extralegais para proteger seus
programas de reforma de mercado e macroeconom ia. ativos é a única medida racional a ser tomada.
A intenção política de legalizar os ativos dos pobres consa- Quando se tornou claro que as leis obrigatórias não auxi-
grou-se n a lei latino-amer icana há quase dois séculos. A primeira liavam os povos indígenas do Peru a concretizarem seus di-
Constituição peruana, escrita em 1824, somente dois anos após r eitos, as elites econômicas voltaram à ação , engendrando
a sua independência da Espanha, declarava claramente que os novos truques para driblar o propósito da lei. Onde os títulos
pobres, na época peruanos nativos em sua maioria, eram os do- oficiais não existiam, as pessoas com conexões e seu s advo-
nos legítimos de suas terras. Quando ainda assim tornou-se óbvio gados os inventaram, reconstituindo evidências de docu-
que as elites peruanas gradualmente expropriavam os indígenas mentação e fazendo com que as autoridades locais e os notários
pobres, o governou decretou ao longo dos anos uma série de emitissem t ítulos legais em seu favor (títulos supletórios, com o
leis afirmando a inten ção da Constituição peruana. Nenhuma eram chamad os). Mais uma vez as elites expropriavam os
funcio nou. O s povos indígenas conquistaram estatutos que em peruanos indígenas ou os forçavam a vendas por baixos pre-
geral confirmavam serem os ativos legahnente seus. O que não ços. O governo, em lugar de investigar por que os pobres não
conquistaram foram os mecanismos que lhes permitiriam esta- eram capazes de utilizar a lei em seu benefício, presumiu que
b elecer seus direitos econômicos sobre seus ativos por meio de não era a lei o problema, mas que os pobres eram inerente-
representações protegidas por lei. mente inferiores. Assim, em vez de melhorarem-se as leis,
O motivo hoje é claro: no Peru (e em muitos outros países os pobres foram excluídos delas e de instrumentos de influên-
não-ocidentais), a maior parte dos procedimentos d e criação de cia ; e muradas de fogo ergueram-se em volta de suas terras.
propriedade formal não se volta para o tratamento de provas Em 1924 o Peru decretou uma lei para proteger os nativos de
extralegais de posse que careçam de qualquer corrente visível d e futuros estratagemas legais juntando milhares deles em co-
títulos - o que, obv iamente, é o único tipo de prova que os po- munidades agr ícolas r urais onde a transferência de direitos
bres possuem. Nem pode também a lei existente buscar e regis- d e qualquer terra era expressamente proibida. Protegendo
trar as mudanças subseqüentes n os títulos de ativos com as desse modo o s nativos das maquinações e trapaças das elites,
196 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 197

também os privava, embora não intencionalmente, das fer- ria das pessoas nos países em desenvolvimento. Essas pessoas
ramentas básicas para a criação de capital. afastam-se da lei não porque a lei os privatizou ou coletivizou,
Esses enclaves rurais, contudo, podiam conter apenas uma pe- mas simplesmente porque a lei não se dirige a seus desejos. Seus
quena percentagem da população nativa. Ao final de 1960 e no desejos podem variar. Algumas vezes precisam combinar suas
início de 1970, a maioria ainda era vum.erável e infeliz e, conse- propriedades e algumas vezes precisam dividi-las. Se a lei não
qüentemente, uma classe potencialmente volátil, em especial com os ajuda, então eles próprios se ajudarão fora da lei. O que ca-
o surgimento súbito de movimentos de esquerda fortes e bem racteriza os inimigos da formação de propriedade e capital nos
organizados. Para dissolver essa nova ameaça, o governo perua- países em desenvolvimento e nos antes comunistas não é serem
no, como o de muitos países do Terceiro Mundo, instituiu pro- de esquerda ou de direita, mas serem amigos do status quo. Os
).,
gramas de reforma agrária que expropriavam grandes áreas de terra governos nos países em desenvolvimento precisam parar de vi-
das grandes fazendas e ranchos (haciendas) , criando mais de seis- ver os preconceitos de ocidentais preocupados com a crueldade
centas cooperativas governamentais para os camponeses. De novo, dos cercamentos e da criação de propriedade na Grã-Bretanha
o objetivo era nobre: garantir o acesso dos nativos aos imóveis. O de séculos atrás, ou com a sangrenta expropriação dos índios por
que transformou mesmo esses esforços em fracassos foi que todas as Américas. Essas dívidas morais devem ser pagas no
muitos dos povos indígenas não gostavam de trabalhar sob impo- Ocidente, não em outros locais. O que os governos desses ou-
sições burocráticas. Desmembraram as cooperativas em peque- tros locais têm de fazer é ouvir o ladrar dos cães em seus próprios
nas parcelas de terra e voltaram -se novamente aos mais familiares países e descobrir o que suas leis devem dizer. Somente então as
e flexíveis acordos extralegais para proteção de seus novos direi- pessoas irão deixar de viver fora delas.
tos recém-estabelecidos. O que o governo não levou em conside- A lei formal perde mais e mais sua legitimidade quando as
ração é que quando as pessoas finalmente adquirem propriedades, pessoas continuam a criar propriedade fora de seu alcance.
elas têm suas próprias idéias sobre como utilizá-las e trocá-las. Se Nossos dados indicaram que, de 1960 a 1990, o setor extralegal
o sistema legal não facilita as necessidades e ambições das pesso- aumentou não só no Peru, mas em outras nações em desen-
as, elas abandonam, aos montes, o sistema. volvimento e ex-comunistas. Presumindo que o fracasso da lei
A história peruana fornece uma lição importante para os obrigatória não tenha sido um fenômeno apenas peruano, em
reformadores de todas as estirpes políticas. Programas governa- 1994 reuni uma equipe especial de pesquisa para d escobrir se
mentais de concessão de propriedade aos pobres fracassaram nos nos últimos trinta anos as instituições financeiras internacio-
últimos 150 anos, sendo tendenciosos para a direita (direitos de nais relatavam qualquer programa bem-sucedido de "for-
propriedade privada por meio de leis obrigatórias) ou para a es- malização" maciça no Terceiro Mundo - em que todos os
querda (protegendo a terra dos pobres em coletividades gover- ativos fossem adequadamente representados e integrados em
namentais). A paralisante agenda política de "esquerda versus um único sistema de modo a produzir capital. A despeito de
d ireita" é amplamente irrelevant<": para as necessidades da maio- meses de peneiramento metódico pelos registros do Tesouro
198 HERNANDO DE SOTO
O MISTÉRIO DO CAPITAL 199

dos EUA e de o rganizações internacionais, nada encontramos A evidência é assoladora: não importa o quão arduamente
que mesmo remotamente se assemelhasse ao sucesso das na- os governos das nações em desenvolvimento e antes comunis-
ções desenvolvidas.
tas tentem, não importa o quão bem- intencionados, permanece
O que descobrimos foi q ue pelas últimas quatro d écadas uma enorme distância entre o que manda a lei coercitiva e o que
vários governos haviam iniciado muitos programas desse tipo, deve ser feito para essa lei funcionar. A lei coercitiva não basta.
destinando bilhões de dólares ao financiamento de uma enor- Como Andrzej Rapaczynski observou:
me variedade de atividades relacionadas com a propriedade,
tais c omo levantamentos, mapeamentos e sistemas de regis- A noção de que simplesmente instituir-se um regime legal apro-
tro em computadores. Esses p rojetos tinham duas caracterís- priado estabelecerá um conjunto de direitos de propriedade que
ticas principais em comum: um número extraordinário deles podem sustentar um sistema econômico moderno é profunda-
haviam sido abortados prematuramente por causa dos fracos mente implausível, porque a maioria dos direitos de proprie-
resultados ("Muitos novos mapas e computadores, mas pou- dade pode ser executada apenas marginalmente pelo sistema
cos novos proprietários forma is", informava um gerente de legal. O âmago da instituição de propriedade é uma questão de
projeto do governo brasileiro); e, com a exceção de alguns práticas sociais e econômicas amplamente aceitas e inconscien-
programas tailandeses de certificação de propriedades rurais, tes que devem estar enraizadas em desenvolvimentos não-le-
nenhum desses esforços conseguiu transformar ativos extra- gais. É esse o antigo dilema hobbesiano: quando a maioria das
pessoas obedece às leis, o governo pode executá-las com eficá-
legais em legais. Nós certamente não encontramos nenhuma
cia e a um custo [relativamente] baixo contra os poucos indiví-
evidência de que os ativos estavam sendo tran sformados em
capital. duos que as quebram. Mas quando a obediência se quebra em
urna escala ampla o bastante, nenhuma autoridade é forte o
Seria porque os governos na verdade não se importavam?
suficiente para policiar a todos. Em tal cenário, com a execução
Certamente não. No Peru, por exemplo, o governo tentara for- tomando-se menos e menos eficiente, os indivíduos são incen-
malizar a propriedade ao menos 22 vezes nos quatrocentos anos tivados a seguir seus próprios interesses, não obstante as pres-
desde a conquista espanhola. Sua taxa de sucesso: zero. Con- sões escritas.5
tactamos autoridades de registro de outros países em desenvol-
v imento e obtivemos respostas similares: importantes programas Por toda a história recente, os países em desenvolvimento e os
haviam fracassado ou tido apenas um impacto marginal. De antes comunistas não careceram de vontade política, orçamen-
novo, e significativamente, ninguém com quem falamos nesses tos, manifestos internacionais ou leis coercitivas traçadas com o
países po dia afirmar que qualquer número representativo de tí- propósito explícito de conceder direitos sobre ativos à maioria
tulos emitidos fossem fungíveis e fixados de tal modo a serem dos cidadãos. O problema é que quando os governos decidem
parte de uma rede integrada onde a formação de capital pudesse garantir os direitos de propriedade dos pobres, comportam-se
ocorrer.
como se viajassem a um local onde houvesse um vácuo de pro-
200 HERNANOO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 201

priedades, como se estivessem pousando na Lua. Presumem que tabeleceu solidamente suas próprias regras por meio de contra-
tudo a fazer seja preencher esse vácuo com a lei coercitiva. Na tos soc1a1s.
maioria dos casos, entretanto, não há vácuo nenhum. As pessoas A idéia de que os contratos sociais são a base das leis bem-
já mantêm uma q uantidade enorme de propriedade por meio sucedidas vem dos tempos de Platão, que pensava que a legiti-
de acordos extralegais. Embora os ativos dos pobres possam es- midade tinha de se fundar em algum tipo de contrato social.
tar fora da lei oficial, seus direitos a esses ativos ainda assim são Mesmo Immanuel Kant, em suas declarações contra Locke, es-
regidos por contratos sociais de sua criação. E quando a lei coer- creveu que um contrato social tem de preceder a posse real; todo
citiva não se enquadra nessas convenções extralegais, as partes direito de propriedade emana do reconhecimento social da le-
dessas convenções se ressentirão, rejeitando a intrusão. gitimidade de uma reivindicação de direito. Para ser legítimo,
um direito não tem necessariamente de ser defmido por uma
lei formal; que um grupo de pessoas firmemente apóie uma con -
Fundamentando a lei no contrato social venção em particular é o bastante para que seja mantida como
direito e defendida contra a lei formal.
Os contratos sociais extralegais de propr iedade alinhavam pra- ~ s s o qu~ a lei de propriedade e títulos imposta sem
ticamente todos os sistemas de propriedade e são parte da reali- referência aos contratos sociais existentes continuamente fracas-
dade de todos os países, até mesmo nos Estados Unidos de hoje. 6 sa~: ~arecem de legitimidade. Para obter legitimidade, precisa
Como Richard Posner n os faz lembrar, a propriedade é cons- ,,
ligar-se aos contratos sociais extralegais que determinam os d i-
truída socialmente.7 Isso significa que os acordos de pro prieda- reit;s de propriedade existentes. O problema, obviamente, é qu e
de funcionam melhor quando as pessoas formaram um consenso es~s contratos sociais estão dispersados por centenas de juris-
sobre a posse d e ativos e as regras que regem seus u sos e trocas. dições extralegais em vilas espalhadas e bairros nas cidades. O
Fora do Ocidente, os co ntratos sociais extralegais prevalecem por único modo organizado de integrar esses contratos sociais em
uma boa razão: arranjaram bem melhor do que a lei formal a um sistema de propriedade formal é pela construção de uma
construção de um consenso entre as pessoas sobre como seu s estrutura legal e política, uma ponte, por assim dizer, tão firme-
ativos deviam ser governados. Qualquer tentativa de criar um mente ancorada nos próprios acordos extralegais das populações
sistema de propriedade unificado que não leve em consideração que essas irão alegremente atravessá-la para adentrarem esse novo
os contratos coletivos que alinhavam os acordos de propriedade e abrangente contrato social formal. Mas esta deve ser uma ponte
existentes irá se chocar contra as próprias raízes dos direitos nos tão sólida que não rache, gerando uma debandada de volta aos
quais a maioria das pessoas se apóia para a manutenção de seus acordos extralegais; uma ponte tão larga que ninguém dela caia.
ativos. Os esforços de reforma dos direitos de propriedade fra- Foi assim que, por centenas d e anos, o Ocidente fez. Harold
cassàm porque os dirigentes encarregados de traçar novas regras Berman nos recorda que:
legais não se dão conta de que a maioria de seus cidadãos já es-
O MISTÉRIO DO CAPITAL 203
1
202 HERNANDO DE SOTO

A sistematização da lei dentro de várias comunidades (...) foi )eis oficiais: "A lei cresce em direção ao alto vindo das estruturas
possível somente porque antes se desenvolvera urna estrutura e costumes de to d a a soc1e · d ad e " , escreveu Berman, " e mov e - se
informal de relações legais nessas comunidades (...) A tradição para baixo saindo das políticas e valores dos dirigentes da socie-
legal ocidental surgiu - no passado - da estrutura de inter- dade. A lei ajuda a integrar os dois." 9
relações sociais e econômicas nos grupos de base. Os padrões Fundamentando a lei de propriedade formal nos contratos
comportamentais de inter-relacionamentos adquiriram dimen- sociais nos quais as pessoas já estavam engajadas, os governos
sões normativas: usos se transformaram em costumes (...) e do Ocidente conquistaram a aceitação popular difundida neces-
costumes, em leis.8
sária para derrubar a resistência. O resultado foi um sistema le-
gal de propriedade. Com este estabelecido, foram capazes de
Construir uma ponte legal e política dos contratos sociais espa-
começar a integrar convenções espalhadas em um único con-
lhados "pelas bases" em uma única lei nacional foi o que Eugen
trato social nacional. E onde uma vez apenas o dono da casa e
Huber fez na Suíça na virada do século XX. Huber ajustou as
seus vizinhos podiam atestar se a casa lhe pertencia, com o ad-
,,,, doutrinas romanas da lei estatutária suíça aos costumes, regras e vento da propriedade formal, toda a nação sabia que era ele o
'I
.' comportamentos espalhados por todas as grandes e pequenas dono. Os títulos formais de propriedade permitiram às pessoas
cidades e fazendas de seu país. Reuniu todas as convenções so- fazer com que os frutos de seu trabalho deixassem de ter uma
bre propriedade em uma lei codificada que garantia os direitos validação de pequeno alcance e conquistassem o mercado am-
'1 e obrigações do povo segundo as normas locais às quais estavam pliado. As nações ocidentais haviam desse modo organizado a
acostumados. Huber gostava de citar um antigo ditado alemão: usina de energia que forneceria eletricidade a um mercado mo-
"Das Gesetz muss aus dem Gedanken des Ji,lkes gesprochensein ", que, derno e um sistema capitalista.
em tradução livre, s ignifica: ''(\ lei deve vir da boca d~o." A O deslocamento do reconhecimento da posse dos acordos
lei norte-americana, como vimos no Capítulo 5, mostroµ o locais para uma ordem mais ampla de relações econômicas e
mesmo respeito pelos contratos sociais existentes. Sua força não sociais tomou bem mais fácil a vida e os negócios. As pessoas
foi sua coerência doutrinária ou profissional, mas sua utilidade ·não m ais precisavam depender da estorvadora politicagem pro-
nas mãos das autoridades desejosas de transformar ativos im- vinciana para a proteção de seus direitos a ativos. A propriedade
produtivos em ativos produtivos. formal os libertou dos acordos locais demorados inerentes às so-
A transição das relações extralegais para uma relação de pro- ciedades fechadas. Podiam agora controlar os seus ativos. Me-
priedade formal unificada nas nações desenvolvidas não se fez lhor ainda, com representações adequadas nas mãos, podiam
do nada. A sistematização das leis que alinhavam as estruturas concentrar-se nos potenciais econômicos de seus ativos. E por-
modernas dos direitos de propriedade foi possível somente por- que seus imóveis e negócios agora podiam facilmente ser locali-
que as autoridades permitiram que as relações extralegais pree- zados e identificados nacionalmente, os proprietários perderam
xistentes entre os grupos de base algumas vezes suplantassem as 0 anonimato e tornaram-se responsáveis. Gradualmente, esses
204 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 205

mecanismos de propriedade legal prepararam o cenário para os extralegal que regula os ativos da maioria da população. Isso pode
mercados ampliados e a criação de capital envolvendo um imen so parecer contraditório ou até subversivo para os leitores ociden-
número de pessoas. tais que passaram a crer haver apenas uma lei a ser obedecida.
Mas minha experiência, visitando e trabalhando em dezenas de
nações em desenvolvimento, tornou claro para mim que as leis
A solidez dos contratos sociais pré-capitalistas legais e extralegais coexistem em todos eles. Como o resume
sucintamente Margaret Gruter:
Serão os contratos sociais extralegais que atualmente predomi-
nam nos países em desenvolvimento fundações sólidas o bas- A lei é (...) não simplesmente um conjunto de regras faladas,
tante para a criação de uma lei oficial? Sem dúvida alguma. Existe escritas ou formalizadas que as pessoas seguem. Em vez disso,
uma montanha de evidências de que os dirigentes governamen- a lei representa a formalização de regras comportamentais, so-
tais implícita e explicitamente cumprem os contratos sociais bre as quais urna alta percentagem de pessoas concorda, que
extralegais quando operam no setor subcapitalizado. Relatórios refletem as inclinações comportamentais e oferecem beneficies
de organizações internacionais doadoras se referem continua- potenciais àqueles que as seguem. (Quando as pessoas não re-
mente, embora de modo oblíquo, às convenções extralegais. conhecem ou acreditam nesses benefícios potenciais, as leis são
Como poderiam os governos haver desenvolvido projetos de com freqüência ignoradas ou desobedecidas ...}. 11
renov ação agr ícola e urbana nas regiões mais pobres de seus .1
países sem chegarem a um acordo com as organizações bene- Outro estudioso das leis observou q ue a "dependência moder-
ficiárias extralegais? O fato de que os governos e instituições fi- na [ ocidental] do governo para legislar e estabelecer a ordem não
nanceiras inten1acionais auxiliam os assentamentos de ocupantes é uma norma histórica". 12 Leis diversas em uma mesma nação
de terras a instalar os serviços públicos (estradas, eletricidade, não são novidade alguma. O pluralismo legal dominou a Euro-
água e escolas), em desafio à lei de propriedade, é um reconhe- pa continental até a lei romana ser redescoberta nos séculos XIII
cimento implícito dos acordos de propriedade extralegais. Como e XIV e todas as correntes de lei serem gradualmente reunidas
Robert Cooter e Thomas Ullen apontaram: "os termos [dos em um único sistema coordenado.
direitos de propriedade Jsão com freqüência mais eficazes quan- Não devíamos nos surpreender, portanto, ao descobrirmos
do as pessoas concordam com eles do que quando um legisla- que a atividade extralegal nos países em desenvolvimento e nos
dor os impõe". 1º antigos países comunistas é raramente desorganizada. No per-
Os contratos sociais extralegais dependem de uma combi- curso da emissão de títulos formais a centenas de milhares de
nação de costumes, improvisações ad hoc e regras seletivamente donos de moradias e negócios no Peru, minha organização ja-
emprestadas do sistema legal oficial. Na falta de proteção legal mais encontrou um grupo extralegal que não cumprisse regras
estatal, na maioria das nações em desenvolvimento, é a lei consensuais bem definidas. Sempre que visitávamos uma região
206 HERNAND O DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 207

subcapitalizada, seja na Ásia, nas Américas ou n o Oriente Mé- mas de controle dos aluguéis e na compra ou ar rendamento ile-
dio, nunc;i nos deparamos com a selvageria. Observando aten- gal de terras com o pro pósito habitacional ou industrial. A maior
tamente, sempre fomos capazes de distinguir os padrões das parte dos contratos sociais é facilitada por agentes ativos: "cor-
regras. Nos p iores casos, encon tramas um jardim descuidado retores de imóveis" motivados comercial, política ou religiosa-
- nunca uma selva. mente, que ou têm algo a ganhar com essas transações ou um
Como os seus predecessores ocid entais, os setores subca- constituinte a proteger. O denominador comum entre os seus
pitalizados no Terceiro Mundo e dos países antes comunistas clientes é não poderem pagar os custos de uma obtenção legal
espontaneamente geraram suas próprias variedades de regras de de propriedade. Em alguns países que visitei, setores das Forças
propriedade. Para defender dos outros os seus direitos de pro- Armadas nomeiam oficiais militares para obter imóveis extra-
priedade incipientes, foram forçados a organizar entre si suas legalmen te para moradia de oficiais não-comissionados. Ainda
próprias instituições extralegais. Lembre-se, não é a sua própria mais surpreendente, tenho visto autoridades municipais encar-
mente que concede a você certos direitos exclusivos sobre um regadas da titulação de imóveis e operações de registros organiza-
ativo em especial, e sim as outras mentes pensando em seus di- rem a posse informal de terras de modo a fornecer aos membros
reitos da mesma forma que você pensa neles. E ssas mentes pre- de seus sindicatos terras decentes de moradia. Um grande as-
cisam, de um modo vital, umas das outras para protegerem e sentamento que visitei recentemente foi iniciado pelo próprio
controlarem os ativos. Além dos mais, as pessoas precisam tor- conselho da cidade, para proporcionar moradia a cerca de sete
nar os seus contratos sociais ainda mais sólidos do que a lei for- mil famílias de funcionários do governo. Em outro país, um
m al para manter afastados os intrusos, especialmente o governo. jornal local, intrigado com a nossa evidência da extensa posse
Quem quer que duvide da solidez dos contratos sociais precisa extralegal de imóveis, averiguou se a residência do chefe do Es-
apenas desafiar uns desses direitos extralegais. A resistência será tado tinha escritura registrada. Não tinha. As leis da nação, o
bastante impressionante. jornal gracejou, eram decretadas de um local extralegal.
Os acordos extralegais tornaram-se espantosamente difun- Uma vez criados extralegalmente os direitos à terra, os en-
didos n os últimos quarenta anos. Relatórios sobre "o setor volvidos criam instituições para administrarem o contrato social
extralegal de rápido crescimento" parecem tão comuns quanto que construíram: os negócios informais e as organizações resi-
os resultados do futebol nos jornais de praticamente toda cida- denciais se reúnem regularmente, tomam decisões, obtêm e
de do Terceiro Mundo. O motivo é que a lei formal n ão tem supervisionam investimentos de infra-estrutura, seguem proce-
sido capaz de acomodar os acordos extralegais qu e evoluem ra- dimentos administrativos e emitem credenciais. Normalmen-
pidamente. No setor de imóveis, por exemplo, os contratos so- te, eles têm quartéis-generais onde mapas e manuais de registro
ciais extralegais têm origem não só nas invasões declaradas dos com as anotações das posses são guardados. A característica mais
migrantes, mas nos programas deficientes de habitação ou de marcante dessas instituições, por todo o mundo, é o desejo de
reformas agrárias e urbanas, na gradual deterioração dos progra- se integrarem ao setor formal. Em áreas urbanas, construções e
Jl

208 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 209

negócios extralegais evoluem ao longo do tempo até serem pra- no setor extralegaljá são relativamente organizados; também são
ticamente indistintos das propriedades perfeitamente legais. Em "obedientes às leis", embora as leis que obedeçam não sejam as
todas as nações em desenvolvimento e antes comunistas que do governo. Depende do governo d~ss;.2._brir_quais sã_o _e~s~s ª=cQr-
visitei, uma longa fronteira separa o legal do extralegal. Ao lon- dos extrale.gais.,...e_de.p_ois_en_c_on.traLI11eios_deintegi:ádos no sis-
go dela, existem pontos onde as organizações extralegais se tema de pro_priedade __fon.nal. Mas não conseguirão fazê-lo
conectam com os dirigentes governamentais; onde as organiza- contratando os advogados dos escritórios nos espigões de Délhi,
ções lutam para conquistar a aceitação oficial e o governo tenta Jacarta ou Moscou para que elaborem novas leis. Terão de sair
manter uma aparência de ordem. 13 Em geral, as organizações às ruas e estradas, e escutar o ladrar dos cães.
extralegais terão resolvido um modo de coexistir com alguma A lei que prevalece hoje no Ocidente não veio de tomos
camada do governo, provavelmente em nível municipal o u lo- empoeirados ou dos livros de estatutos oficiais do governo. É
cal. A maioria dos grupos tenta negociar um nicho legal para uma entidade viva, nascida no mundo real e criada por gente
proteger seus direitos, enquanto outros já alcançaram alguma comum bem antes de ir parar nas mãos dos advogados profissio-
sorte de acordo que estabiliza sua situação fora da lei principal. nais. A lei tinha de ser descoberta antes de poder ser sistemati-
Há mais uma pista apontando para o fato de que os extralegais zada. Como ressalta o estudioso de leis Bruno Leoni:
desejam ser aceitos e reconhecidos: os engajados e diplomáticos
líderes que escolhem para negociar em seu nome dificilmente Os romanos e os ingleses compartilhavam a idéia de que a lei é
ajustam-se ao estereótipo do mandão dono da rua. algo a ser descoberto mais do que de ser decretado, e que ninguém
é tão poderoso em sua sociedade a pomo de poder identificar
sua própria vontade com a lei da região. A tarefa de "descobrir"
Ouvindo o ladrar dos cães a lei foi confiada nesses dois países ao jurisconsulto e aosjuízes,
respectivamente - duas categorias de pessoas comparáveis, ao
A maioria dos governos das nações em desenvolvimento e antes menos até certo ponto, aos peritos cientistas de hoje. 14
comunistas provavelmente está pronta para reconh ecer que o
motivo pelo qual seus ~~tpres ~ crescem exponen- " Descobrir a lei" é preci~amente o que m~u_s c?legas ~ temos
c ialmente não é porque as pessoas de repente abandonaram o feito em diversos países nos últimos 15 anos como um prim~iro
respeito à lei, mas porque não têm outra alternativa para prote- passo no sentido de ajudar os governos de paíse~ em desenvolvi-
ger suas propriedades e ganhar o sustento. Uma vez que os go- m ento a construir sistemas formais de propriedade que abarquem
vernos se dêem conta desse fato da v ida moderna, terão de toda a população. Quando se abandona o estereótipo
negociar. Embora os extralegais estejam maduros para cruzar a ho llywoodiano de terceiro-mundistas e ex-comunistas como um
ponte para o reconhecimento legal, só o farão se os seus gover- variado sortimento de vendedores de rua, guerrilheiros bigodudos
nos tornarem a viagem fácil, segura e barata. Os donos de ativos e gângsteres eslavos, se encontrarão poucas diferenças entre a
210 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 211

cultura do Ocidente e a desses outros locais no tocante à proteção fora d~ seus próprios parâmetros geográficos. Os sistemas de
dos ativos e à negociação. Depois de anos de estudo emmllitos propriedade extralegais são estáveis e significativos àql!eles que
países1 convenci-me de que a maior parte dos contratos s_oJ:iais pertencem ao grupo, mas não operam em níveis sistêmicos mais
exr_:~l<:_g_~~.?_obre propriedade é basicamente similar aos contratos
sociais nacionais nas nações ociden~is. An}_bos teQ.dem a conter
algumas regras explícitas ou tácitas sobre quem_te~ direitos so-
, baixos e não possuem representações que lhes permitam interagir
facilmente entre si. Novamente, isso se assemelha ao passado
ocidental, quando os títulos oficiais não existiam. Antec; do sé-
bre o quê e os limites desses <:!ireitos e transações; também incluem
provtsões de como se registrar a posse de ativos, procedimentos
de execução dos direitos de propriedade e das reivindicações de
l culo X.V na Europa, por exemplo, embora existissem alguns car-
tórios de registro isolados em algumas partes do quf! hoje é a
Alemanha, a maioria das regras oficiais de como as transações
posse, símbolos para determin ar onde se situam as fronteiras, de propriedade d everiam funcionar não era escrita era conhe-
normas ara reger as trans<!ç§e~, critérios para se decidir o__g~e cida apenas por tradição oral.
requer ação autorizada e o que pode ser efetuado sem autoriza- M uitos consideram seus rituais e símbolos como os pre-
ção, orientações para determinar quais representações são válidas, decessores da r epresentação dos títulos oficiais, das ações e re-
dispo~itiy_ o~ Rara incentivar as pessoas a honrarem seus contratos gistros de hoje. De acordo com o filósofo britânico e h istoriador
e respeitarem a lei e critérios para determinar o grau de anonima- David Hume, do século XVIII, em certas partes da Europa de
to permitido a cada transação. sua época os proprietários trocavam terra e pedras entre si para
É justo supor, portanto, que as pessoas estejam preparadas comemor ar a venda de uma terra; os fazendeiros simboliza-
para pensar sobre os direitos de propriedade de modo muito vam a venda do trigo entregando a chave do celeiro onde esse
parecido: Isso não deveria ser uma grande surpresa; as conven- estivesse estocado. Pergaminhos escritos testemunhando tran-
ções populares sempre se espalharam por analogia de um local a sações de propriedades de terras eram pressionados no solo em
outro espontaneamente. E ainda, a migração maciça dos últimos um ritual representativo do acordo. Similarmente, séculos
quarenta anos, sem falar na revolução m undial nas comunica- antes, na Roma imperial, a lei romana providenciava que relva
ções, significa que estamos compartilhando mais e mais valores e galhos fossem passados de mão em mão para representar a
e ambições. (Terceiro-mundistas assistem à Tv, também ; tam- transferência legal dos direitos de propriedade. Os japoneses,
bém vão ao cinema, usam o telefone e querem que seus filhos também, tinham o seu próprio ritual para confirmar transa-
tenham u ma boa instrução e saibam usar computadores.) É ine- ções; por exemplo, na região de Gumma Kodzuke, durante o
vitável que os contratos sociais extralegais individuais em um período Tokugawa do século XVII ao XIX. qu~ndo a venda de
mesmo país sejam parecidos.15 terra agrícola era proibida por lei, proprietários de terras trans-
O pr~ble_ma com os contratos soci<!.!S extr~~j que suas feriam seus ativos mesmo assim, confirmando esses negócios
~ r_e~nta ões de propriedade não estão suficientemente codi- extralegais em d ocumentos escritos selados pelos parentes do
ficadas e ÍU_!lgíveis para terem um amplo alcance de aplicação vendedor e o líder da aldeia. Gradualmente, os documentos
212 HERNANDO DE SOT O O MISTÉRIO DO CAPITA L 213

escritos foram reunidos em cartórios de r egistros locais. !,._e.- A prova form al de um título como parte de transações comer-
v_gu u m tempo an_tes g_e_~ssa~Iepresentações ser~ __m_e_o~ta~ e!ll ciais de terras é aparentemente um desenvolvimento tardio da
forma _d_~__li_vro~. Mas [oi apenas duran te o século ~ ~ - - = lei inglesa, mas a informação atual é tão escassa que torna essa
ses r egistros diferentes de propriedade e os co ntr~to~ ociais hipótese m eramente experimental. É um a fonte de exaspera-
ção para o historiador que, enquanto grandes eventos são relata-
que os regiam foram padronizados e reun idos para cr~r os sis-
dos em detalhes, as pessoas raras vezes consideram ser necessário
temas formais integrados de propriedad e que o O c idente ~--~--
registrar um relato das atividades d om ésticas e cotidianas, nas
possui.
quais se engaj am. Fazê-lo lhes pareceria supérfluo e banal, pois
As nações antes comunistas e o Terceiro M undo estão exa-
ninguém quer ser recordado do óbvio. Conseqüen temente ,
tamente onde a Europa, o Japão e os Estad os Unidos estavam
aquilo que todos tomam por corriqueiro em uma época é des-
umas duás centenas de anos atrás. Como o Ocidente, precisam conhecido da próxima, e a reconstrução de procedimentos co-
identificar e reunir as representações de propriedade existentes muns requer uma paciente montagem de peças tiradas de fontes
espalhadas por todas as suas nações e levá-las a u m sistema inte- deixadas com um propósito bastante diferente. Esse faco é cer-
grado para transformar os ativos de todos os seus cidadãos em tamente verdadeiro para as p ráticas d os notários, pois, até o sé-
bens fungíveis, e conferir- lhes a maquinaria buroc rática e a rede culo [XIX] , temos um conhecimento bem limitado de como
necessárias para produzir capital. de fato exerciam suas funções. 16

Guiados pelos poucos registros históricos que pudemos encontrar


Decodificando a lei extralegal e preenchendo as lacunas com a nossa pesquisa empírica, tateamos
nosso caminho através dos mundos extralegais e por fim aprende-
Quando meus colegas e eu primeiro confro ntamos a tarefa de mos como conectar com os contratos sociais que lá alinhavavam os
integrar os acordos de propriedade pré-capitalistas em um sis- direitos de propriedade. Descobrir esses acordos não se parece em
tema capitalista formal de propriedad e, o Ocidente foi nossa nada com a busca por provas de po sse em um sistema legal formal,
inspiração. Mas quando começamos a procurar a informação d e onde podemos depender d e um sistema d e r egistros que ao longo
como as nações d esenvolv idas integraram seus acordos extra- dos anos criou um rastro de papéis, uma "co rrente d e títulos", que
legais à lei, não encontramos manuais d e co mo fazê-lo. Infeliz- nos permite buscar suas origens. No setor subcapitalizado, a cor-
mente há pouca documentação d e como as nações ocidentais rente de títulos apresenta-se indistinta, na melhor das hipóteses, para
identificaram quais categorias d e provas extralegais de proprie- os de fora. O setor subcapitalizado n ão possui, entre outras coisas,
dade seriam os denominadores comuns de um sistema formal o registro centralizado e a burocracia d e rastreamento que está no
de prop riedade padronizado. John Payne explica a situação na centro da sociedade formal. O q ue as pessoas do seto r subca-
Inglaterra: pitalizado têm são sólidos, claros e detalhados entendimentos en-
tre si de quem é dono de quê atualmente.
Demande du contrat de Fennage
214 HERNANDO DE SOTO des terres de l'Etat
ProcEs-verbal d'Enquite Domaniale
Attestatlon _des Volsins
Kon1ite de Relnnsman Vi/aj li ~-;,,'6"'.·: .
Por conseguinte, a única forma de se encontrar um contrato K.R. V.P . ,)fl ~ j
..
social extralegal em uma região em especial é no contato com
aqueles que vivem e trabalham respeitando-o. Se a propriedade
,:=·:~º:'"-'" '-.,_ n~!_-':,..J~~.._ -_
"-'•~..,..,~! NA'f'
'._..._~- 12 QJ;
f ),-&....-~ 1 l~A •""'-•tl..9 i 4~78
I
........,...~ ~ :::~~:~•rwc.1
& l '• lM11'1. . h l l 1... ..__.... 1 ~_,-~

fosse uma árvore, o sistema formal rastrearia as origens de cada .,


._Kr..u--""" ,•ltl!M..,.,..._.
folha de volta no tempo, pelos ramos e galhos, até o tronco, e ~ . •~'--- ~ :~~t~·=~~:~~ ,/_J
,c,,..J .....

,._, l• - 1 • ·•H•r 1•11-11., h-'" ra.c• 1 ... . ,,acau.,..


por fim às raízes. Já a abordagem na propriedade extralegal teria ,, 4!'.....a--'-'r -

-•U• tJ--.J.a, l • C-u..,I t , J:alu_....:i, ~" nl•
I,,# 11- •• """'n r, ..," 1.e ,-,.,h1l.,. ... flll•c• ,,_. ....- .1-,, • •
de ser sincrônica: o único meio para alguém de fora determinar ld f U" .,. • -'fU•••W.• ·• l'•i•\.
,....._.._,., ....1,f,..\ '\ll'U 1• . . . .JU1u• •• :,0,1,_..,...,.

quais os direitos que pertencem a quem é fatiando a árvore de .,_.,n1u. Ull,p.J- •\ i t)IIIIU ,1... it, ••tt (1) u,a. lh'"C. ,,.., r t41•
MJ,_ • ~ ' M ,.,,.tt
lNr -1r1Mu.-. Ili ) 'l'lal, U.• ..,.,.,_,, \W

cima, em ângulos retos, até o tronco, para definir o status de cada ::~~;.:;::::;: ~"~,r!Jm~1:.:--N::~~~,~• .
,, galho e folha em relação a seus vizinhos.
Para obter informação sincrônica é necessário trabalho de
-~~ --
campo: ir diretamente àquelas áreas onde a propriedade não está
oficialmente registrada (ou registrada de modo incompleto) e
entrar em contato com as autoridades legais e extralegais locais
- .

...... . ::d3@F

para se descobrir quais são os acordos extralegais. Não é tio d i-


fícil quanto parece. Embora a tradição oral possa predominar nos

-~ - - - .. ----
----
confins rnrais de alguns países, a maioria das pessoas no setor
- - ----. ·- - -•-- ·--
urbano s_ubca..pitalizado encontra maneiras de representar suas
- ---- -- - -~---- ---
propriedades de forma escrita, segundo regras que respeitam «:_
que o governo, em um certo nível, é forçado a aceitar.
No Haiti, por exemplo, ninguém acreditava que fôssemos
encontrar documentos firmando representações de direitos de
propriedade. O Haiti é um dos países mais pobres do mundo;
55 por cento de sua população é analfabeta. Ainda assim, após
um levantamento intensivo das áreas urbanas do Haiti, nós não
encontramos um único lote extralegal de terra, cabana ou cons-
trução cujo dono não possuísse ao menos um documento de
defesa de seu direito - mesmo o seu "direito de ocupação" (veja
Figura 6.2 para uma seleção dos títulos informais no Haiti). Em
todos os lugares do mundo em que estivemos, a maioria dos t
informais tem algum artefato físico para representar e substanciar Figura 6.2
Provas de posse utilizadas por informais no Haiti
216 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 217

seu direito de propriedade. E foi com base nessas representa- sentações nada têm a esconder; foram projetadas para ser reco-
ções extralegais, assim como nos registros e entrevistas, que por nhecidas pe lo que são. Isso não é sempre óbvio porque, infeliz-
todos os lugares fomos capazes de extrair os contratos sociais mente, quando lidamos com os pobres, tendemos a confundir a
que sustentavam a propriedade. falta de uma instalação de registros centralizada com a ignorân-
Embora as fontes de informações extra legais para iden ti- cia. Como John P Powelson conclui corretamente em The Story
ficar as convenções de propriedade sejam importantes, tam- ofLand, mesmo em primitivas áreas rurais de nações em desen-
bém existem as fontes oficiais e legais. Os políticos, situados volvimento as próprias pessoas têm sido os seus advogados mais
no topo, raramente têm consciência da extensão em que as eficientes e sempre têm tido a capacidade de representar-se com
pessoas nos níveis administrativos mais baixos estão em cons- inte ligência.17
tante contato com o setor extralegal. As autoridades munici- Quando os governos obtêm evidência documentária de re-
pais, os planejadores urbanos, os oficiais de saneamento a presentações, podem então "desconstru í-las" para identificar
'
polícia e muitos outros têm de produzir avaliações oficiais do f os princípios e regras que constituem o contrato social que as
alcance da ilegalidade e dos assentamentos informais ou gru- sustenta. Uma vez que os reformadores o fizerem, terão todas
pos de novos negócios que germinam constantemente por l as principais e relevantes peças da lei extralegal. A tarefa se-
todos os seus distritos. Aprendemos a ler a documentação guinte será codificá-las - organizá-las em estatutos formais
oficial para determinar as áreas onde prevalecem os contra- I temporários de modo a poderem ser examinadas e compara-
tos extralegais. das com a lei formal existente. Codificar sistemas livres tam-
Uma v ez que os governos sabem onde procurar por repre- bém não é problema; não é muito diferente dos procedimentos
sentações extralegais e as têm em suas mãos, encontram o fio de governamentais de uniformização de textos legais nos países
Ariadne que levará ao contrato social. As representações são re- (tal como o Código Comercial Unificado dos EUA) , ou entre
s ultado de um grupo específico de pessoas que alcançou um países a um nível internacional (tal como os muitos códigos
consenso respeitado de quem é dono de qual propriedade e o integrados obrigatórios produzidos pela União Européia ou a
que cada dono pode fazer com ela. A leitura das representações O rganização Mundial do Comércio). Comparando o código
em si e a extração de seus significados não requer um diploma extralegal com o legal, os líderes dos governos podem ver como
de arqueologia. Não contêm códigos misteriosos a serem deci- ambos devem ser ajustados para se adequar ao outro, e então
frados. Pessoas com intenções bastante objetivas e voltadas para con struir uma estrutura regulatória de propriedade - um can-
os negócios escreveram esses documentos para tornarem abso- teiro de leis comum a todos os cidadãos - que seja de fato
lutamente claro a todos os interessados que direitos estão reivin- legítima e auto-executável porque reflete tanto a realidade le-
dicando sobre os ativos específicos que controlam. Eles querem gal quanto a extralegal. É esse o caminh o para que as nações
comunicar a legitimidade de seus direitos e estão preparados a em desenvolvimento e as ex-comunistas enfrentem o desafio
fornecer tanta evidência em apoio quanto possível. Suas repre- legal, e foi basicamente como a lei ocidental se formou: gra-
218 HERNANDO DE SOTO O MI STÉRIO DO CAPITAL 219

dualmente se desfazendo do que não era útil ou executável e PARTE II:


absorvendo o gue funcionava. O desafio político
Se tudo isso parece mais uma aven tura an trop ológica do
que uma base para a reforma legal, é porque o conhecimen to Ninguém planejou a evolução dos sistemas feu dal e patr imo n ial
sobr e os pobres tem sido monopolizado pelos acadêm icos, para o sistema moderno de propriedade que existe hoj e no Oci-
jornalistas e ativ istas movidos por compaixão ou curiosidad e d ente. Contudo, através d o longo caminho evolutivo para a
intelectual em vez de pelas porcas e parafusos da refor ma le- m odernidade, naqueles trechos da v iagem em qu e os refor-
gal. Onde têm estado os advogados? Por que e les n ão deram madores embarcaram intencionalmente em programas para tor-
uma bo a examinada na lei e na ordem que seu próprio povo n ar mais acessível a propriedade a u ma gama mais ampla de
produz? A verdade é que os advogados nesses países estão em
cidadãos, esses programas foram bem-su cedidos porque eram
geral por demais ocupados estudando a lei ocid enta l e adap-
apoiados em estratégias políticas bem plan ejad as. Fo i o que
tando-a. Foram ensinados que as práticas locais não são a lei
T homas J efferson fez na Virgínia no final do século XVIII, quan-
gen u ín a, mas uma área romântica de estud o q ue caberia bem
do tornou a pro priedad e fungível pela abolição, en tre outras
mais aos folcloristas. Mas se os advogados d esej am desempe-
coisas, da prática de m orgadio (a transferência de propriedade
nhar um papel na criação de boas leis, devem pôr os pés fo ra
de su as bibliotecas legais e colocá-los no setor extr alegal, que apenas n a família). Quando Stein e Hardenberg pr epararam o
é a única fonte de informação necessária par a a con strução
cenário para o s direitos d e propriedade u niver sais n a Alemanha
de um sistema legal formal v erdadeiramente legítimo . Exa- n o início do século XIX, e quando Eugen Huber, na Suíça no
minando essa "lei do povo" e compreendendo sua ló gica, os começo do século XX, passou a integrar todos os s istemas de
1 propriedade espalhados d e seu país, eles igualmente emprega-
reformador es obterão um sentido do que pr ecisam fazer para
criar em um sistema legal auto-executável. ram estratégias cuidadosamen te planejadas para derrubar as bar-
I ricadas do status quo. G arantiram estar armados de uma legislação
Quando o tiverem feito, os governos terão literalmente al-
cançado o contrato social. Terão a informação n ecessária para astuciosamente dirigida qu e permitisse ao governo criar revo-
integrar os pobres e suas posses em u ma estr u tura legal, para luções sem violência, apoiadas p elo povo, e que não pudessem
que estes possam finalmente começar a participar do sistema ser detidas.
capitalista. Mas implementar a reforma legal significará m exer Por que precisamos d e uma estratégica política hoje?
no status quo. O que torna es ta uma tarefa política da maior im- Quem poderia ser contr ário à remoção d e um apartheid legal
portância. tão o bviamente injusto? Poucos, na verdade, negariam a ne-
cessidade d e reforma. Mas uma minúscula e p oderosa mino-
ria intuirá q u e a reforma tenderá a perturbar o s seu s nichos,
e ela resistirá silenciosa e insidiosamente. Existe também
220 HERNANDO DE SOTO
O M ISTÉRIO DO CAPITAL 221

outro problema: muitos dos estatutos que impedem o acesso vernamentais ou abrir as escolas para todas as raças, o chefe
da maioria das pessoas ao capital p odem também conter pro- de Estad o dá um passo à frente para liderar a mudança. Eman-
visões que protegem os interesses vitais de gr upos podero- cipar os pobres certamente pertence a uma das responsabili-
sos. Abr ir o capitalismo aos pobres n ão será tão simples como dades do líder da nação.
passar um trator por cima de um monte de lixo. Será mais A história e a experiência pessoal n os en sinaram que, para se
como reorganizar os m ilhares de galhos e gravetos de um fazer uma revolução de propriedade, um líder tem de fazer pelo
enorme ninho de águia - sem que a águia se irrite. Embora menos três coisas: adotar o ponto d e v ista dos pobres, integrar a
essa reorganização venha a impor tão-só pequenos inconve- elite e lidar com as burocracias técnica e legal que são os atuais
nientes para essa pequena minoria, em comparação com os guardiães d a redoma de vidro.
benefíc ios em escala nacional de se levar o capital aos pobres,
esses afetados não concordarão a não ser que a reforma seja
levada a cabo por u ma forte in iciativa política com uma m en- Adotar o ponto de vista dos pobres
sagem e cifras para apoiarem-na.
C laramente, esse é um trabalho para políticos experien- Todos se beneficiarão da globalização do capitalismo de um país,
tes co m a sofisticação de reorganizar o ninho da águia sem mas os mais óbvios beneficiários serão os pobres. Com os pobres
conhecer su as garras. São os únicos que podem sincro nizar a a seu lado, um líder determinado em reformar j á venceu ao me-
m udança de u ma maioria e a estab ilidade de u ma m inoria des- nos a metade da batalha. Qualquer o posição terá dificuldade em
encarar o líder do E stado e a maioria da população. Mas, para
co nfiada. Uma estratégia para capitalizar os pobres tem de
vencer, ele terá de adquirir os fatos necessários para configurar o
integrar do is sistem as de prop riedade apar entem ente contra-
caso. Isso envolve desenvolver pesquisas originais: os reformadores
ditó rios d ent ro do mesmo corpo de lei. Se deseja vencer, um
têm de calçar os sapatos dos pobres e caminhar por suas ruas. As
presidente ou primeiro- min istro q u e seja mais do q u e um
estatísticas oficiais não contêm a informação de que precisam. Os
m ero tecn ocrata tem de tomar as rédeas e fazer da forma-
fatos e as cifras podem apenas ser apreciados do lado de fora da
lização u m pilar da política governamental. Somente no ma is
redoma de vidro.
alto n ível político pode a reforma comandar estonteante apoio
Quando comecei a estudar a possibilidade de co nferir aos
e p ôr fim à inércia voluntár ia d o status quo. Som ente o mais
pobres o acesso à propriedade forma l no Peru em torno de
alto n ível do governo p ode imped ir d isputas internas b uro-
1980, todo escritório de advocacia importante que consultei me
cráticas e conflito s políticos d e par a lisarem o progresso da
garantiu que montar um negócio formal para o acesso ao capi-
r eforma. Sempre que uma n ação se p osiciona para u ma grande
tal levaria apenas alguns poucos dias. Sabia ser isso verdade para
mudança, seja p ara estab ilizar a m oeda, privatizar ó rgãos go-
mim e meus advogados, mas tinha o pressentimento de que
222 HERNANDO DE SOTO

não o era para a maioria dos peruanos. Então, meus colegas e


eu decidimos montar uma confecção com duas máquinas de
costuras em uma favela de Lima. Para experimentar o proces- 1

so do ponto de vista do pobre, usamos um cronômetro para


medir o tempo que um típico empresário em Lima levaria para
vencer a burocracia. Descobrimos que para nos tornarmos le-
galizados precisávamos de mais de trezentos dias, trabalhando
seis horas ao dia. O custo: trinta e duas vezes o salário mínimo
mensal. Executamos uma experiência semelhante para desco-
-~-
brir o que seria preciso para uma pessoa que morasse em um
assentamento extralegal, de cuja residência o governo já esti-
vesse ciente, adquirir uma escritura legal dessa moradia. Para
receber aprovação somente da municipalidade de Lima - ape-
nas um dos onze órgãos governamentais envolvidos - foram
precisos 728 procedimentos burocráticos (veja Figura 6.3). Isso
confirmou o que suspeitei desde o início: boa parte dos dados
convencionais refletem os interesses daqueles, como os advo-
gados que consultei, que já estão dentro da redoma de vidro. É
por isso que a redoma de vidro só pode ser vista de fora para
dentro: da perspectiva do pobre.
Assim que o governo obtiver essa informação, será capaz de
explicar suas intenções de forma que os pobres possam com-
preender e se identificar. Como resultado, apoiarão seu progra-
ma de reforma entusiasticamente. Os pobres se transformarão
na mais eficaz máquina de relações públicas para a reforma, desde
que as respostas colhidas nas ruas sejam necessárias para man-
ter o programa em seu curso.

- ,.
Figura 6.3
728 Etapas burocráticas exigidas pela municipalidade de Lima para a obtenção de
uma certidão legal para uma moradia em um assentamento habitacional válido
224 HERNANDO DE SOTO
O MISTÉRIO DO CAPITAL 225

Foi o que se deu no Peru. De 1984 a 1994, meus colegas e Integrar as elites
eu dirigimos todos os nossos esforços para informar o público
dos benefícios de se retirar a r~doma de vidro (na época, cha- Uma vez que se revele o potencial econômico do pobre - o
mamos de "formalização~'). Nosso objetivo era provar aos po- maior eleitorado da nação - e que seu apoio à reforma seja apa-
líticos que existia um consenso nacional oculto para reforma e rente, os reformadores terão a atenção das elites. É o momento
que a formalização dos ativos dos pobres era uma estratégia po- de d issipar suas ilusões de que a retirada da redoma de vidro
liticamente vencedora. No final de 1980 as pesquisas o con-
firmaram: nossas propostas de mudar o siste ma forma l de
propriedade obtiveram uma aprovação de 90 por cento. Com
l beneficia apenas os pobres. Não só porque eliminar o abismo
entre classes seja um bem social geral. Esse tipo de integração
legal pode ajudar quase todo grupo de interesses da nação. As-
números como esses, não foi surpresa que quando as primei- 1 sim como os r eformadores coletaram dados e cifras para ganhar
ras legislações e regulamentações esboçadas pela minha o rga-
nização para a formalização chegaram ao Congresso peruano
j o apoio dos pobres, devem utilizar outros dados e cifras na con-
quista dos grupos que têm direitos adquiridos. As elites devem
em 1988 e início de 1990, foram unanimemente aprovadas. apoiar a reforma não por patriotismo ou altruísmo, mas porque
Durante a campanha pr esidencial de 1990 todo candidato, in- irá também engordar suas carteiras.
clusive Maria Vargas Llosa, o romancista e candidato da coali- Por exemplo, trazer o setor e)..'tralegal para a legalidade abri-
zão dos conservadores libertários, e Alberto Fujimori, o azarão rá a oportunidade para programas em massa de habitações de
populista e vencedor final, junto com o presidente socialista baixo custo que oferecerão aos pobres moradias não apenas mais
no cargo, Alan Garcia, subscreveram o programa de forma- bem construídas, mas mais baratas do que as que eles vêm cons-
lização. Mesmo hoje, a despeito dos esforços de implem entação truindo no setor extralegal. Criar um lar no mundo às avessas
que têm s ido erráticos e muito incompletos, a formalização é do setor extralegal é o equivalente de vestir-se calçando primei-
uma construção incontestável e permanente na paisagem po- ro os sapatos, depois as meias. Considere o que é preciso para
lítica peruana. um novo migrante vindo de uma área rural criar um lar para sua
Com os fatos, as cifras e a opinião política no lado da refor- família nas favelas ao redor de uma grande cidade. Primeiro, não
ma, o governo poderá passar toda a questão da pobreza para a apenas precisa encontrar um local para sua casa, mas tem de
seu programa de crescimento econômico. Aliviar a pobreza não ocupar a terra pessoalmente, com sua família. O passo seguinte é
mais será considerada uma causa caridosa, a ser executada se e levantar uma barraca ou abrigo feito de, dependendo do país,
quando o dinheiro for suficiente. Ao contrário, o futuro dos palha trançada, tijolos de lama, papelão, compensado, corrugado,
pobres pode agora encabeçar a lista dos programas de crescimen- ou latas de alumínio - e assim afirmar seu direito físico (pois
to do governo. um legal não é disponível) . O migrante e sua família então irão
gradualmente trazer móveis e outros utensílios domésticos.
Obviamente, precisam de uma edificação mais confortável e
226 HERNANDO DE SOTO f O MISTÉRIO DO CAPITAL 227

durável. Mas como erigi-la sem um acesso ao crédito? Fazem o blicidade, garantirájuros e coleta de dívidas, taxas e impostos. Além
que todo mundo faz - estocam material de construção e co- disso, um sistema formal de propriedade fornece uma base de
meçam a construção de uma casa melhor, etapa po r etapa, d e- dados para decisões de investimentos na saúde, educação, avalia-
pendendo do tipo de material que conseguem acumular. ção de impostos e plan ejamento ambiental.
Quando os habitantes de uma dessas vizinhanças se o rgani- Uma pro priedade legal difundida até ajudará a solucionar a
zam o suficiente para proteger suas posses ou as autoridades mais gritante e persistente reclamação sobre a expansão do po-
locais penalizam-se com suas privações, podem trazer o asfalto, bre urbano - a necessidade de "lei e o rdem". A sociedade civil
a água, o saneamento e a eletricidade - normalmente com o nas economias de mercado não se deve simplesmente a uma
custo de terem de destruir partes da casa de modo a conectar maior prosperidade. O direito à propriedade também engendra
esses serviços. Só depois de anos de construção e reconstrução, o respeito à lei. Como o eminente historiador Richard Pipes
e acúmulo de material de constru ção, podem esses donos v iver observou em seu livro sobre a Revolução Russa:
confortavelmente.
No Ocidente, criar um lar é o equivalente de calçar suas A propriedade privada é, pode-se argumentar, a mais importante
meias e depois os sapatos, e portanto muito m enos perigoso, caro instituição de integração social e política. A posse de proprie-
e degradante. Um construtor em geral tem o título da terra que dade cria um compromisso com a ordem política e legal, pois a
lhe concede a garantia para desenvolver a infra-estrntura (ruas última garante os direitos de propriedade: transforma, por as-
asfaltadas, serviços etc.). Depois ele vende a casa, que passa a sim dizer, o cidadão em co-soberano. Como tal, a propriedade
erigir de acordo com as preferências do comprador. Os novos é o veículo principal para se inculcar nas massas o respeito pela
donos, que provavelmente pediram emprestado boa parte do lei e o interesse na preservação do status quo. Evidências históri-
preço da casa a um banco, em seguida trarão seus móveis e, por cas indicam que as sociedades com uma ampla distribuição de
propriedade, notadamente terras e moradias, são mais conser-
fim, as crianças e o gato.
vadoras e estáveis, e por essa razão mais resistentes a tumultos
No momento em que os pobres tomarem-se responsáveis sob
de toda sorte. Deste modo, o camponês francês, que no século
a lei legal, serão capazes de poder pagar por habitações de baixo
XVIII era uma fonte de instabilidade, no século XIX tornou-se,
custo e assim escapar d o mundo às avessas do setor extralegal. As
como resultado dos ganhos da Revo lução Francesa, um pilar do
elites passarão então a receber suas recompensas também: cons- conservadorismo. 18
trutores e fabricantes de material d e construção verão seus mer-
cados expandirem-se, e tam bém os bancos, empresas de hipotecas, Quando os pobres confiam que suas terras e negócios lhes per-
agências de títulos e companhias de seguro. A formalização tam- tencem legalmente, cresce o seu respeito pela propriedade dos
bém auxiliará os fornecedores de serviços públicos a converter os outros.
endereços das moradias em terminais responsáveis. Proporcio- Registros de propriedade atualizados e formais igualmente
nará aos governos e negócios informações e endereços para pu- proporcionarão à polícia a necessária informação para uma res-
228 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 229

trição civilizada. Nas nações em desenvolvimento e nas antes dos de propriedade não aparecem em nenhum sistema oficial, a
comunistas uma das principais características do fora-da-lei é não lei não consegue sequer localizá- los, quanto mais negociar um
possuir um endereço legal. Q uand o um crime é cometido, a acordo de substituição de colheita executável. Essa carência de
polícia não tem os registros, pistas e outras informações basea- proteção legal também significa que plantadores de colheitas de
das na propriedade necessárias para " rastrear" os principais drogas têm de se unir para defender seus ativos ou chamar os
suspeitos. É por isso que as autoridades responsáveis pelo cum- traficantes para defendê-los. Sem um sistema formal de proprie-
primento das leis não conseguem ser tão seletivas qu anto suas dade que inclua tais proprietários de terras, o controle da plan-
contrapartes ocidentais na apreensão de suspeitos e, portanto, é tação dessas colheitas, a perseguição aos traficantes de drogas e a
mais provável que violem o s direitos civis d as pessoas. identificação dos poluentes ambientais tornam-se verdadeira-
A posse de propriedade formal também tende a desencorajar mente impossíveis. Não há maneira de as autoridades penetra-
um comportamento indisciplinado. Quando as pessoas são for- rem nos estreitos acordos legais criados pelas pessoas na proteção l
~
çadas a dividir suas propriedades em parcelas cada vez menores, de seus interesses.
é mais provável que o s herdeiros dos herdeiros, amontoados fora Legalizar a propriedade não é de forma alguma uma mera •
das terras da família, ocupem ilegalm ente outros locais. Da caridade aos pobres. Criar um mercado o rdenado que crie pro-
mesma forma, quando uma pessoa não pode provar possuir al- prietários r esponsáveis e conceda às suas moradias escrituras
guma coisa, é provável que tenha de subornar o seu caminho oficiais dignas de financiamento proporcionará um mercado
pela burocracia ou, com a aju da dos vizinhos, tomar as leis em ampliado , incentivará a lei e a ordem e colocará dinheiro no bolso
suas próprias mãos. Pior ainda, sem boas leis fazendo cumprir das elites.
as obrigações, a sociedade com efeito convida os gângsteres e
terroristas a essa função . Meus colegas e e u orientamos campa-
nhas de formalização d e títulos que afastaram os terroristas pela Lidar com os guardiães da redoma de vidro
neutralização de suas funções de mantenedores da segurança da
região contra uma am eaça real ou imaginária de expropriação Uma vez que os pobres, e ao menos parte da elite, estejam do
de terras. lado dos reformadores, será hora de atacar a burocracia pública
A propriedade também fornece uma alternativa legal ao trá- e privada que administra e mantém o status quo - principahnente,
fico de drogas. Enquanto os camponeses permanecerem proprie- os advogados e os técnicos.
tários ilegais de terras, as colheitas d e r etorno rápido, como a
coca e as papoulas do ópio, permanecerão suas únicas alternati- Os advogados
vas. Para os p equenos fazendeiros em algumas regiões do mun-
do em desenvo lvimento, o dinheiro adiantado pelos traficantes Em teoria, a comunidade legal deveria favorecer a reforma, v is-
é praticamente o único crédito disponível e, porque seus acor- to que expandirá o domínio da lei. Mas a maioria dos advoga-
230 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 231

d os n os pa íses em desenvolvimento e nos antes comunistas foi dados econômicos de 52 países, de 1960 a 1980, Samar K. Datta
treinada n ão par a expandir o domínio da lei, mas para defendê- e Jeffrey B. Nugent demostraram que, para cada aumento
lo assim como está. O s advogados são os profissionais mais en- percentual no número de advogados na força de trabalho (de,
volvidos no d ia-a-dia dos negócios da propriedade. Ocupam digamos, 0,5 a 1,5 por cento), o crescimento econômico se re-
posições-chave n o governo, onde exercem um domínio total em duz de 4,76 a 3,68 por cento - demonstrando assim que o cres-
decisões de extrema importância. Nenhum grupo - além dos cimento econômico é inversamente relacionado com a prudência
terroristas - está mais bem posicionado para sabotar a expan- dos advogados. 19
são capitalista. E , ao contrário dos terroristas, os advogados sa- O que mais irrita muitos reformadores é como os advoga-
b em fazê-lo d e forma juridicamente aceitável. dos deslocam a culpa pelos sistemas de propriedade ruins para
E m bora os empresários e as pessoas comuns sejam os cons- terceiros. Já ouvi freqüentemente advogados louvarem a lei de
trutor es do capital e do capitalismo, são os advogados quem fi- propriedade existente e, em um mesmo fôlego, admitir que tí-
xam os con ceitos d e propriedade em formas representativas tulos de propriedade emitidos legalmente são difíceis o u impos-
tangív eis e definem esses conceitos em estatutos. A garantia da síveis de se usar. Isso é inaceitável, claro. Um advogado não pode
p osse, a responsabilidade dos donos e a executabilidade das tran- projetar a lei e os processos administrativos para sua imple-
sações devem , em última instância, se concretizar em procedi- mentação e depois culpar pelo fracasso as inadequações dos
mentos e regras traçados pelos advogados. É a profissão jurídica tecnocratas de nível mais baixo que implementam a lei, ou a
q ue ap erfeiçoa todos os artefatos da propriedade formal: títu-
educação falha daqueles que a u sam. Não é suficiente projetar
los, registros, marcas registradas, direitos autorais, notas promis-
leis elegantes. Elas devem também funcionar na realidade ad-
sórias, letras comerciais, direitos de patente, ações corporativas.
ministrativa e social para a qual foram traçadas.
G ostemos ou não de advogados, nenhuma mudança no regime
Curiosamente, as críticas mais severas aos esforços dos ad-
d e propriedade e no processo de formação de capital terá lugar
vogados de atrasar as reformas de propriedade vêm de seus co-
de fato sem a cooperação de ao menos alguns deles.
legas advogados. S. Rowton Simpson, um advogado, e o mais
A d ificuldade é que poucos advogados compr eendem as
reconhecido autor no mundo sobre a questão do registro de ter-
conseqüências econômicas de suas funções, e suas reações ao
ras, escr eve sobre os seus colegas:
comportamento extralegal e às mudanças em larga escala são em
geral hostis. Todos os reformadores que conheci em meu traba-
Advogados, por todo o mundo, são notórios por sua relutância
lho de tornar a propriedade mais acessível aos pobres trabalham em aceitar mesmo as menores mudanças em seus procedimen-
de acordo com o pressuposto de que a p rofissão de advogado é tos tradicionais (...) Torrens [o criador australiano de um dos
uma inimiga natural. O s economistas envolvidos em reformas mais seguros sistemas de registros do mundo] , que sofreu uma
fru straram-se tanto com o conservadorismo legal que investi- oposição de unhas e dentes da profissão legal, superou a oposi-
ram tem po e d inheiro para desacreditar a profissão. Usando os ção dos advogados no sul da Austrália; mas sua história é uma
232 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 233

exceção. É preciso um diamante para se cortar um diamante, e lei romana. Com efeito, a batalha foi árdua em todas as suas eta-
na maioria dos países o registro de títulos deve, via de regra, pas, principalmente porque, como observou Peter Stein, "a con-
sua introdução aos esforços de um advogado, mesmo se em tribuição [ dos advogados] a um entendimento apropriado das
desvantagem frente à oposição ativa dos membros praticantes instituições legais foi obscurecida por sua ênfase na antigüidade
de sua profissão; e a oposição passiva pode ser bem pior do que 21
e pela aceitação da 1e1· romana como um prod uto acab ado ". N-ao
a ativa, que pelo menos ou vence ou é vencida. A oposição pas- obstante, com o passar do tempo, grandes juristas europeus su-
siva é mais insidiosa; pode neutralizar o progresso. Muitos es-
peraram a rigidez excessiva porque, como aponta Stein, "fize-
tatutos murcharam em seus galhos após receberem boas-vindas
ram com que sua profissão os tornasse peritos nas complexidades
dos praticantes da lei, boas-vindas que se revelaram falsidades 22
·
da lei romana, e garantiram que esta m u d asse com o t empo " .
ou até "o beijo da morte"; noutros estatutos foram inseridos
procedimentos táo demorados que tomam o progresso quase Contra a implacável indiferença de seus colegas, em todo país
imperceptível; tais estatutos certamente nfo oferecem perigo às da Europa um grupo de elite de advogados surgiu para auxiliar
práticas estabelecidas, e portanto tendem a ser aceitos pela pro- na retirada da redoma de vidro.
fissão jurídica, mas na verdade não realizam seus objetivos; ape- Qualquer governo disposto a instaurar um sistema integra-
nas engordam a lista, se não a de fracassos, ao menos a de do de propriedade deve planejar uma meticulosa estratégia para
"insucessos".2º lidar com a profissão legal. A chave é a escolha dos advogados
certos. É preciso um líder político sábio e astuto para evitar os ,1
Embora os advogados com freqüência concordem que outras advogados hábeis nas sutilezas de assustar políticos até o estado
disciplinas devam ser dinâmicas, argumentam que a lei deve ser de imobilidade e encontrar, em vez disso, aqueles que concede-
estável. Tal veneração pelo domínio da lei, não importando as rão forma legal a um programa de transformação, mesmo se isso
conseqüências, p ode chegar ao ponto de os advogados que implicar opor-se ao sistema. Se o político inclinado para a refor-
apóiam reformas arriscarem-se ao ostracismo por parte de seus ma não escolher cuidadosamente seus advogados, ficará à mer-
colegas. Nos países de língua alemã, durante o século XIX e o cê dos dominantes tecnocratas legais que assentirão com os lábios
início do século XX, a hostilidade da profissão legal à reforma enquanto subvertem às escondidas.
de propriedade corria tão solta que qualquer advogado reformista Advogados corajosos e partidários da reforma existem em
era chamado de Mestbeschmutzer - uma besta que emporcalha todas as nações, e uma vez claro o critério de seleção dessas qua-
seu próprio ninho. lidades, as pessoas certas poderão ser encontradas. Muitos en-
A boa nova para os reformadores é que os mais brilhantes tendem que os principais determinantes para as mudanças se
(mas não necessariamente os mais bem-sucedidos) advogados encontram fora da lei. Em todos os países que visitei encontrei
julgam que a lei foi criada para servir à vida, e não a vida à lei. grupos de advogados do governo bastante familiarizados com o
J u ristas visionários no Ocidente triunfaram por fim sobre as setor extralegal, buscando diariamente uma harmonia entre o
tendências reacionárias de sua profissão, mesmo no contexto da sistema formal e os acordos extralegais. Alguns advogados aca-
234 HERNANDO DE soro O MISTÉRIO DO CAPITAL 235

dêmicos também estão bem conscientizados de que as ordens conseguem integrar seus setores extralegais. Isso não surpreen-
paralelas da lei legal e extralegal operam simultaneamente. Mas de mais ninguém que já tenha pensado seriamente nas priori-
os seus trabalhos tendem a passar despercebidos nos escalões dades da reforma de propriedade. Em 1993, um perito do Banco
mais altos do governo, e portanto eles, também, permanecem Mundial advertiu que: "Tem existido uma tendência a se consi-
invisíveis. De fato, é quase uma regra a de que os advogados que derar o registro de terras um problema técnico. Freqüentemente
percebem a existência das duas ordens e são simpáticos à refor- fazem-se mapas e levantamentos, mas os títulos não são feitos
ma sejam empurrados para as margens da tomada de decisões o u emitidos devido a uma obstrução nos sistemas ou problemas
políticas. legais."23
São essas pessoas que a liderança política deve encarregar de Mesmo os técnicos se preocupam de estarem por demais
sacudir o status quo e implementar um programa nacional irre- hipnotizados pelas estonteantes novas tecnologias. Um dos pe-
sistível para formalizar a propriedade. Um tal exército, contu- ritos em terras e sistemas de informação de maior destaque no
do, não dá um passo à frente espontaneamente. Deve-se localizar Canadá expressou a preocupação de que alguns governos conti-
e recrutar cada advogado. Reunidos, formarão a vanguarda que nuem a considerar o mapeamento como a pedra angular da pro-
pode defender a reforma junto a seus colegas advogados. Eles priedade:
,
serão capazes de afugentar os dinossauros e explicar à profissão il
legal em sua própria linguagem o quão crucial é para o futuro Atualmente corremos o perigo de perpetuar esse mito, tentan-
de suas nações integrar toda a propriedade em um sistema legal do reduzir a gerência de recursos a um problema do sistema de
unificado aberto a todas as pessoas. Só eles podem explicar ao informação geográfica (SIG). A tecnologia é atraente; produz
resultados tangíveis. Mas é apenas parte da solução (...) Con-
resto de sua profissão que os procedimentos legais existentes
sultores e organizações de ajuda com freqüência exportam sis-
tornaram-se não apenas uma amolação, mas o obstáculo inven-
temas com os quais estão familiarizados (normalmente os seus
cível que impede a maioria das pessoas do mundo de estar capa-
próprios sistemas, ou sistemas com os quais já trabalharam) sem
citada a criar capital. Advogados também são humanos. Quando considerar suficientemente as necessidades e restrições do país
compreenderem que o sistema que defendem está irremedia- recipiente (...) É necessário mais modéstia entre os profissio-
vehnente desatualizado, reagirão positivamente. nais consultores; é necessário que ocasionalmente admitam que
nem sempre sabem a resposta ou que seus sistemas podem não
Os técnicos ser apropriados.24

Os países em desenvolvimento e os antigos países comunistas Programas d e criação de propriedade continuarão a fracassar
estão sempre gastando centenas de milhões de dólares em enquanto os governos pensarem que a criação de propriedade
mapeamentos e tecnologias de registro informatizado para mo- requer apenas se familiarizar com coisas materiais - que uma
dernizar seus sistemas de propriedade - e ainda assim não vez que tenham fotografado, levantado, medido e informatizado
236 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 237

os inventários dos ativos físicos, têm toda a informação n eces- atualizados e confiáveis. As pessoas não desejam aden trar o sis-
sária para emitir escrituras de propriedade. Não têm. Fotogra- tema formal de propriedade porque sonham em ser mapeadas,
fias e inventários apenas informam as autoridades do estado físico registradas ou ter os impostos cobrados; se alistarão ao sistema
dos ativos; nada dizem sobre quem de fato é don o d esses at ivo s qu ando os seus benefícios lhes forem óbvios e quando estive-
ou como as pessoas organizaram os direitos que os regem. To- rem certas de que seu s direitos continuarão protegidos.
das as fotografias e inventários informatizados do mundo não Enquanto esses direitos forem protegidos por um contrato
conseguem contar a ninguém quais são as regras locais que fa- social extralegal, as pessoas não enxergarão motivos para notifi-
zem cumprir esses direitos ou que redes de relacionamento os car as autoridades de nenhuma mudança n a disposição de seus
sustentam. Embora os mapas e inventários na medição e locali- ativos. Somente quando a lei formal substituir os acordos extra-
zação dos ativos físicos nos quais a propriedade se ancora sejam legais como a fonte de proteção para a propriedade, as pessoas
importantes, não ensinam aos governos como c riar o contrato aceitarão sua legitimidade e se interessarão em fornecer às auto-
soc ial nacional que os capacitará a criar a propriedad e legal di- ridad es a informação necessária para manter seus mapas e regis-
fun dida. tros atualizados. O local onde o contrato social se dá determina
A propensão em alguns países de espremer as qu estões r ela- onde os registros e mapas podem ser mantidos atuais.
1
tivas à propriedade em departamentos de mapeamento e d e Esta não é uma questão sem importância. Projetos de regis- li
1
tecnologia de informação obscureceu a verdad eira n atu reza da tro apoiados tecnicamente tendem a degenerar em sistemas de !
propriedade. A propriedade não é realmente parte do mundo identificação do estoque físico, listagens u ltrapassadas como o
fís ico: seu hábitat natural é legal e econômico. A propriedade Domesday Book dos ingleses ou relíquias históricas. Como r e-
trata de coisas invisíveis, ao passo que mapas são sem elhanças su ltado, as indústrias de mapeamento e informática sofrem. Seus
das coisas físicas no solo. Os mapas apreendem a informação orçamentos de projeto são aprovados por políticos que esper am
física dos ativos, mas escapa-lhes o quadro geral. Sem a infor- qu e os novos métodos incorporem os pobres. Quando perce-
mação per tinente institucional e econômica sobre os acordos bem que não o fazem , os projetos de mapeamento são rebaixa-
extralegais, não consegu em apreender a realidad e externa à dos ou interrompidos. Minha equipe e eu vimos isso acontecer
redoma d e vidro. São assim incapazes de c umprir sua função vezes sem conta.
real, que é a de ajudar a ancorar os aspectos d e p rop riedade dos Essas tecnologias funcionam tão bem nas nações desenvolvi-
ativos em uma realidade física de modo a manter em sincronia a das, sem grande necessidade de muitos reparos legais e políticos,
virtu alidade e a materialidade. porque os reparos foram feitos mais de cem anos atrás. O abrangente
Até os obstáculos ao uso dos sistemas formais d e proprieda- contrato social de propriedade já está firmado solidamente. Quan-
de serem removidos e os acordos extralegais substituídos pela do os sistemas de banco de dados, os sistemas de informação geo-
lei, as pessoas têm poucos incentivos para fornecer a informa- gráfica, os sensores remotos, o sistema de posicionamento global e
ção n ecessária para se manter os mapas e os bancos d e dados todas as maravilhosas ferramentas da tecnologia de informação tor-
238 HERNANDO DE soro
O MISTÉRIO DO CAPITAL 239

naram-se disponíveis nos últimos trinta anos, puderam se encaixar tido nas nações desenvolvidas, onde apenas a mudança gradual
perfeitamente em uma infra-estrutura bem integrada e legal. As- é necessária, visto que a lei e a propriedade formal já estão fun-
sim os dispositivos de representação escrita e gráfica, e as instala- cionando para todos. A criação de propriedade não se parece em
ções para um melhor arquivamento, busca e manipulação de nada com um programa de privatização, que apenas envolve a
informação puderam ser postos em bom uso.
venda de uma dezena ou outra de pacotes de ativos ao ano. O
Não estou dizendo que a engenharia, os sistemas de inte- objetivo da reforma de propriedade é conferir direitos de pro-
gração, as empresas de tecnologia da informação, os vendedo- priedade de milhões de ativos a milhões de pessoas em um cur-
res de equipamentos, os conselheiros de registro e todos os
to espaço d e tempo. Isso significa que ao menos metade da tarefa
outros que fornecem serviços de documentação de propriedade
é um trabalho de comunicação. Os líderes da reforma de pro-
especializados em levantamento, mapeamento e modernização priedade p recisam descrever como o capitalismo popular afetará
de registros não têm importância na criação de propriedade - muitos grupos de interesses diferentes, mostrar-lhes os bene-
bem ao contrário. Se adequadamente adaptados a um registro fícios que obterão e persuadi-los de que é um exercício de vitó-
maciço e a uma operação no ambiente extralegal, são indispen- ria para todos os segmentos da sociedade. Para o setor extralegal,
sáveis na definição das localizações físicas, assim como no esses líderes devem recorrer às suas energias empreendedoras
processamento e na integração da informação. Consumirão boa reprimidas e demonstrar as vantagens de se integrar uma nova
parte do dinheiro gasto na reforma de propriedade, mas só de- lei formal. Para o setor legal, devem explicar que as reformas
pois de solucionados os problemas legais e políticos de se arre- propostas não prejudicarão os direitos legítimos e executáveis e
'I

banhar o setor extralegal.


que haverá ganhos agregados para todos os grupos de interesse.
C riar um sistema de propriedade que seja acessível a todos
Apenas uma liderança política verdadeira pode atrair a lei de é essencialmente uma função política, pois tem de ser mantida
propriedade para fora de suas preocupações com o passado e levá- no rumo por pessoas que compreendam que o objetivo final de
la à apreciação do presente; de se encantar por demais com a um sistema de propriedade não é elaborar estatutos elegantes,
tecnologia e se preocupar com o bem da sociedad e. Os políticos conectar reluzentes computadores ou imprimir mapas colori-
são necessários porque as instituições existentes inclinam-se a dos, mas pôr o capital nas mãos de toda a nação.
favorecer e proteger o status quo. É tarefa política persuadir a
tecnocracia a se remodelar e a apoiar uma mudança.
A intervenção política é também necessária porque as orga-
nizações governamentais do lado de dentro da redoma de vidro
em geral não são projetadas para se encarregar de rápidos e am-
plos programas de reforma. Normalmente são organizadas como 1
departamentos especializados, uma estrutura que faz mais sen-

1
7

Como conclusão

Onde a sabedoria que perdemos com o conhecimento?


Onde o conhecimento que perdemos com a informação?
T. S. EuoT, Coro em ªThe Rock"

O clube privado da globalização

O capitalismo está em crise fora do Ocidente não porque a


globalização mundial esteja fracassando, mas porque as nações
em desenvolvimento e as antigas nações comunistas não têm sido
capazes de "globalizar" o capital dentro de seus próprios países.
A maioria das pessoas nesses países considera o capitalismo um
clube privado, um sistema discriminatório que beneficia tão-só
o Ocidente e as elites que vivem dentro das redomas de vidro
dos países pobres.
Mais pessoas ao redor do mundo podem estar usando cal-
çados da Nike e exibindo seus relógios digitais, mas mesmo
enquanto consomem as mercadorias do Ocidente estão bem
cientes de que ainda permanecem na periferia do jogo capitalis-
ta. Não têm n enhum direito a ele. A globalização não deveria
ser apenas a interligação das redomas de vidro dos poucos pri-
242 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 243

vilegiados. Esse tipo de globalização já existiu antes: no século Charleston e o Lambeth Walk, e mascaram chicletes. Mas nun-
XIX a realeza dirigente era literalmente uma grande família, li- ca produziram suficiente capital vivo.
gada pelo sangue e mantendo constante contato político eco- Podemos agora todos estar nos beneficiando da revolução
mercial com os seus primos na Inglaterra, França, Holanda, nas comunicações, e alguns podem ver progresso no fato de a
Espanha e Rússia. O capitalismo triunfou no século XIX e pre- esfinge egípcia hoje olhar diretamente para um cartaz em neon
valeceu por todo o mundo industrializado até a Revolução Rus- de uma franquia da Kentucky Fried Chicken. Ainda assim, ape-
sa e a Grande Depressão. Mas como o espanhol Ortega y Gasset nas 25 dos duzentos países do mundo produzem capital em
e o crítico norte-americano Walter Lippman observaram, ades- quantidade suficiente para se beneficiar por completo da divi-
peito de su a dominância e sofisticação o sistema capitalista foi são de trabalho nos mercados globais ampliados. O sangue vital
sem pre vulnerável. O econom ista norte-americano Lester Thu- do capitalismo não é a Internet, nem as franquias defast-food. É
row aponta qu e já em 1941: o capital. Só o capital fornece os meios para sustento da especia-
lização, a produção e o comércio d e ativos no mercado amplia-
Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha eram essencialmente os do. É o capital a fonte de crescente produtividade e, portan to, a
únicos países capitalistas [de importância Jque restavam na face riqueza das nações.
da Terra (...) todo o restante do mundo era fascista, comunista Contudo, apenas as nações ocidentais e pequenos enclaves
ou colônias feudais do Terceiro Mundo. A crise final nos anos de ricos em nações em desenvolvimento e antes comunistas
de 1920 e da Grande Depressão em 1930 havia levado o capita- têm a capacidade d e representar os ativos e seu potencial, e,
lismo à beira da extinção. O capitalismo que hoje parece irre- portanto, a capacidade de produzir e utilizar o capital com efi-
sistível poderia, com uns poucos tropeços, ter desaparecido. 1 cácia. O capitalismo é visto fora do Ocidente com crescente
hostilidade, como um regime de apartheíd em que a maioria não
O s latino-amer ican os não p recisam ser lembrados. Em ao me- pode participar. Existe um senso crescente, mesmo entre al-
n os quatro ocasiões, desde que se tomaram independentes da gumas elites, que, se tiverem de depender única e eternamen-
Esp anha em 1820, tentaram tom ar- se parte do capitalism o glo- te da gentileza do capital estrangeiro, nunca serão participantes
bal e fracassaram. Reestruturaram suas dívidas, estabilizaram suas produtivos no jogo capitalista global. Crescentemente se frus-
econ omias con trolando a inflação, liberalizaram o comércio, tram por não serem os donos de seus próprios destinos. Des-
privatizaram os ativos governamentais (venden do suas estradas de que embarcaram na globalização sem proporcionarem a seus
de ferro aos ingleses, por exem plo) e revisaram seus sistem as de povos os meios de produzir capital, começam a parecer-se
impostos. No nível do consumo, os latino-americanos impor- menos com os Estados Unidos e mais com a América Latina
taram toda sorte de m ercadorias, dos paletós de tweed e calçados mercantilista com suas confusas atividades extralegais.2 Dez
C hurch ingleses aos automóveis Modelo T da Ford; aprende- anos atrás poucos teriam comparado as nações do antigo bloco
ram o inglês e o francês ouvindo rádio e discos; dançaram o soviético com a América Latina. Mas hoje se assemelham es-
244 HERNANDO DE SOT O O MISTÉRIO DO CAPITAL 245

pantosamente: fortes econ omias clandestinas , desigualdade Nesse meio tem po, os promotores do capita lismo, ainda
gritante, máfias ubíquas, instabilidade política, fuga d e capital arrogantes e bêbados de sua vitór ia sobre o comunismo, preci-
e ílagran te desrespeito à lei. sam compreender qu e suas reformas macroeco nômicas não
É por isso que fora do O c idente os defensores do capitalis- bastam. Não devemos esquecer que a globalização ocorre por-
mo batem, intelectualmente, em retirada. Ascendendo apenas que as n ações em desenvolvimento e as antigas nações comun is-
uma década atrás, são hoje m a is e mais considerados com o tas estão abr indo suas economias antes protegidas, estabilizando
apologistas das misérias e injustiças qu e ainda afetam a maioria suas m o edas e estabelecendo estruturas regulatórias para aum en-
das pessoas . Por exemplo, em 1999 a câmara superior do conse- tar o com ércio internacional e o investimen to privado. Tudo isso
lho egípcio advertiu ao governo "não se enganar m ais pelos cha- é bom. O qu e não é tão bom é que essas reformas pressu põem
mados ao capitalismo e à globalização". 3 H avendo esquecido a que as po pulações desses países j á estejam integradas no sistema
questão crucial da propriedade, os d efen sor es do capitalism o legal e possuam a mesma capacidade de utilizar seus r ecursos
permitiram ser identificados como d efensores do status quo, ce- na eco nomia aberta. Nada disso acon tece.
gamente buscando executar a lei escrita existente, fosse esta Como argumentei no Cap ítulo 3, a m aior ia das pessoas n ão
discriminativa ou não. pode participar de um mercado am pliado po rque n ão tem aces-
E a lei nesses países discrimina. Como ilustrei no Capítulo so a um sistema legal de direitos de pro priedad e que represente
2, ao menos 80 porcento da popu lação nesses países não conse- os seus ativos d e modo a tomá-los amplamen te tran sferíveis e
guem injetar vida em seus ativos e fazê-los gerar capital porque fungíveis , qu e p ermita que sejam u sados com o garantia em hi-
a lei os mantém fora do sistema formal de propriedade. Eles pos- potecas e que torne os seus donos responsáveis. E nquanto os
suem trilhões d e dólares em capital m o rto, m as é como se fos- ativos da maioria n ão são ad equadamente d ocumen tados e
sem lagos isolados cujas águas d esaparecem em uma faixa estéril rastreados pela burocracia de propriedade, são invisíveis e esté-
de areia, em vez de formarem u ma poderosa m assa de águas que reis no mercado .
pode ser contida em um sistema de propriedade unificado e com Estabilizando e ajustando consoante o "manual", os programas
a forma necessária para a produção de capital. As pessoas pos- macroeconômicos dos globalizados racionalizaram dramaticamente
suem e utilizam seus ativos com base em miríades de acordos a administração econôm ica dos países em desenvolvimento. Mas
informais desconexos onde a responsabilidade é administrada porque o livro que usaram não se dirige ao fato de que a maioria
localmente. Sem os padrões comuns que a propriedade legal das pessoas não possui direitos de propriedade, executaram apenas
oferece, carecem da linguagem necessária para que seus ativos uma fração do trabalho exigido para criar um sistema capitalista
falem uns com os outros. Não adianta urgi-los a serem pacien- abrangente e uma economia de mercado. Suas ferramentas foram
tes até que os benefícios do capitalismo pinguem em suas dire- projetadas para funcionar em países onde a lei sistematizada foi
ções. Isso nunca acontecerá até que as sólidas fundações da "globalizada" internamente, onde sistemas inclusivos de direitos de
propriedade formal estejam assentadas. propriedade que se vinculam a instrumentos monetários e de in-

j
O MISTÉRIO DO CAPITAL 247
246 HERNANDO DE SOTO

vesti.mente eficientes estão firmados - situação que os países em tradição do sistema capitalista é que este cria sua própria morte
desenvolvimento e antes comunistas ainda precisam desenvolver. porque não pode evitar concentrar o capital em poucas mãos.
Os políticos, em demasiado número, encararam o processo Por não proporcionarem à maioria acesso aos mercados amplia-
dos, essas reformas estão deixando um campo fértil para a con-
de globalização com uma v isão olímpica. Uma vez que estabili-
zaram e ajustaram em nível macro, permitindo que negócios frontação - uma economia capitalist.a. e de livre mercado para
legais e investidores estrangeiros prosperassem e os economis- os poucos privilegiados que podem concretizar seus direitos de
tas ortodoxos controlassem o tesouro,julgaram haver cumpri- propriedade, e pobreza relativa para um amplo setor subca-
do suas funções. Porque se concentraram apenas em políticas pitalizado incapaz de valorizar seus próprios ativos.
que lidavam com os agregados, não precisaram perguntar se as Confrontações de classe, nos dias de hoje? Este conceito
pessoas possuíam os meios de participar de um sistema de mer- não caiu junto com o Muro de Berlim? Infelizmente, não. Pode
cado ampliado. Esqueceram que as pessoas são os agentes funda- ser d ifícil a um cidadão de nação desenvolvida acreditar, por-
mentais de mudança e também se esqueceram de concentrar-se que no Ocidente os descontentes com o sistema vivem em
nos pobres. E essa enorme omissão foi porque eles não operam "bolsões de pobreza".5 A miséria nas nações em desenvolvimen-
mantendo o conceito de classe em suas mentes. Nas palavras de to e nos antigos países comunist.a.s, todavia, não está contida
um de seus mais destacados críticos, não têm a "capacidade de em bolsões; está espalhada pela sociedade. Os poucos bolsões
compreender, mesmo vagamente, como as outras pessoas vi- que existem nesses países são bolsões de riqueza. O que o
vem".4 Ocidente chama "a classe sem vantagens" aqui é a maioria. E
Os reformadores econômicos deixaram a questão da proprie- no passado, quando suas expectativas c rescentes não foram
dade dos pobres nas mãos da classe dirigente legal sem interesses sat isfeitas, essa massa de pobres enraivecidos forçou as elites
por modificar o status quo. Como resultado, os ativos da maioria aparentemente sólidas a ajoelharem-se (como no Irã, na Vene-
dos cidadãos permaneceram capital morto, aprisionados no setor zuela e na Indonésia) . Na maioria dos países não-ocidentais,
extralegal. É por isso que os defensores da globalização e das re- os governos dependem de serviços de inteligência poderosos, e
formas de mercado livre começam a ser considerados satisfeitos suas elites vivem, por uma boa razão, trancafiadas por trás de
defensores dos interesses daqueles que dominam a redoma d e portões como os de fortalezas.
vidro. Hoje, em grande parte, a diferença entre as nações avança-
das e o resto do mundo é a diferença entre países onde aproprie-
dade formal é difundida e países onde as classes são divididas
Encarando o fantasma de Marx n os que podem fixar os direitos de propriedade e produzir capi-
tal e os que não podem. Se os d ireitos de propriedade extralegais
A maioria dos programas de reforma nas economias pobres pode não forem acomodados, essas últimas sociedades podem v irar-
estar caindo na armadilha prevista por Karl Marx: a grande con- se com suas economias duais - com o chamado setor obedien -
HERNANDO DE SOTO O MI STÉRIO DO CAPITAL 249
248

te à lei de um lado e o empobrecido setor extralegal do outro. Em um período de crescimento econômico rápido, não há muito
Mas com o continuado aperfeiçoamento da informação e das tempo para pensamentos profundos. A crise, contudo, tem um
comunicações, e com os pobres mais e mais informados do que jeito de afiar as n ecessidades da m ente por ordem, e transfor-
não possuem, a amargura causada pelo apartheid legal tenderá a mar explicações em obsessões. O pensamento marxista, sob
crescer. Em algum momento os que estão fora da redoma de qualquer forma que reapareça - e reaparecerá - fornece uma
vidro serão mobilizados contra o status quo por pessoas com pro- bem mais poderosa variedade de conceitos para se abordar os
gramas políticos que se alimentam de descontentamento. "Se não problemas políticos do capitalismo não-ocidental do que o pen-
inventarmos modos de tornar a globalização mais inclusiva", samento capitalista proporciona.
afirma Klaus Schwab do Fórum Econômico Mundial, "teremos As percepções de Marx do capital, como recentemente ob-
de enfrentar a possibilidade de uma ressurgência das agudas con- servou George Soros, são com freqüência mais sofisticadas do
frontações sociais do passado, ampliadas a nível internacional. "5 que as de Adam Smith.7 Marx compreendeu claramente que "em
A Guerra Fria pode ter terminado, mas os argumentos da si mesmos, o dinheiro e as mercadorias não são o capital e sim
antiga classe não desapareceram. Atividades subversivas e um meios de produção e subsistência. E que precisam ser transfor-
surgimento de conflitos étnicos e culturais ao redor do mundo mados em capital".8 Ele também compreendeu que se os ativos
provam que quando as pessoas estão extremamente insatisfeitas pudessem ser convertidos em mercadorias e levados a inte-
continuam a se reunir em classes formadas com base em injú- ragirem nos mercados, poderiam expressar valores que são
rias compartilhadas. ANewsweek observa que nas Américas, des- imperceptíveis aos sentidos mas podem ser capturados para pro-
de 1980, "cada uma dessas lutas tem sua história particular, mas duzir rendas. Para Marx, a propriedade era uma questão impor-
todos os lutadores vilificam o mesmo inimigo: a nova face do tante porque enxergava com clareza que aqueles que apropriavam
cap italismo latino-americano".6 Numa tal situação, o kit de fer- os ativos obtinham muito mais do que apenas seus atributos fí-
ramentas marxista é mais preparado para explicar o conflito de sicos. Como resultado, o kit de ferramentas intelectuais marxis-
classes do que o pensamento capitalista, que não possuiu uma ta legou aos anticapitalistas maneiras poderosas de explicar por
análise comparável, ou mesmo uma estratégia séria para alcan- que a propriedade privada seguramente colocará os ativos nas
çar os pobres do setor extralegal. Os capitalistas em geral não mãos dos ricos para prejuízo dos pobres.
possuem uma explicação sistêmica de como as pessoas na classe Para aqueles que não repararam, o arsenal do anticapitalismo
sem vantagens chegaram onde estão, e como o sistema poderia e da antiglobalização vem aumentando. Hoje existem estatísti-
ser modificado para erguê-las. cas de importância que fornecem aos anticapitalistas a exata
Não devemos subestimar o poder latente da teoria integra- munição de que precisam para argumentar que(o capitalismo é
da marxista em uma época em que verdadeiras massas de pes- uma transferência de propriedade dos países mais pobres para
soas com pouca esperança buscam uma visão de mundo coesiva os países mais ricos; que o investimento privado ocidental nas
para melhorarem suas perspectivas econômicas desesperadoras. nações em desenvolvimento não·é nada mais do que uma toma-
250 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 251

da maciça de seus recursos pelas multinacionais. O número de za, ele não foi capaz de prever a que grau os sistemas legais de
carros reluzentes, moradias luxuosas e shoppings ao estilo cali- propriedade tornar-se-iam veículos c ruciais para o aumento do
forniano podem ter aumentado na maior ia dos países em de- valor de troca.
senvolvimento e nos ex-comunistas n a últim a d écada, m as (Marx compreendeu, melhor do que ninguém em seu tem-
também aumentaram os seus pobres. A pesqu isa de N ancy po, que na economia não existe cegueira maior do que ver os
Birdsall e Juan Luís Londoii.o mostra que na última d écada (a recursos exclusivamente em termos de suas propriedades físi-
pobreza vem crescendo com maior rap idez e a distribuição de cas. Ele estava bem ciente de que o capital era uma "substância
r enda pioroul9 Segundo o "Relatório de D esenvolvimento H u- independente (... ) da qual o dinheiro e as mercadorias eram
mano" das Nações Unidas, de 1999, o produto interno bruto apenas formas assumidas e rejeitadas s ucessivamente")11 Mas ele
na Federação Russa diminuiu em 41 por cento d e 1990 a 1997, viveu em uma época que provavelmente ainda era cedo demais
forçando m ilhões ao setor extralegal. A expectativa de vida do para se ver como a propriedade formal poderia, por meio da
russo de sexo masculino diminuiu quatro anos - para 58 anos. representação, fazer esses mesmos recursos servirem a fun ções
O relatório culpa a transição para o capitalism o e os efeitos da adicio nais e produzirem mais-valia. Conseqüentemente, Marx
globalização. não podia ver como seria do interesse de todos aumentar a gama
Esses esforços de pesquisa nos fornecem sinais de advertên- de ben eficiados da propriedade. Os títulos são apenas o topo
cia saudáveis, mas igu almente firmam os mísseis intelec tuais visível de um crescente iceberg de propriedade formal. O resto
necessários para d esen corajar os program as de privatização e o do iceberg é hoje uma enorme facilidade criada pela mão do ho-
capitalism o global. É crucial, portanto, reconhecermos os latentes m em d e extrair potenciais econômicos dos ativos. Foi por isso
paradigmas marxistas e depois acrescentarmos o qu e aprende- qu e(M arx não compreendeu por completo qu e a p ropriedade
mos neste sécu lo desde a m orte de Marx. Podemos hoj e dem ons- legal é o processo indispensável que fixa e d ispõe cap ital; q ue
trar que embora Marx visse claramente qu e uma vida econôm ica sem a propriedade a humanidade não pode converter os fru tos
paralela pode ser gerada junto aos ativos físicos em si - qu e "as de seu trabalho em formas fungíveis e líquidas qu e podem ser
produções do cérebro hum ano apareciam com o seres indepen - diferen ciadas, combinadas, divididas e investidas para produ zi-
dentes dotados de vida"'º-, não com preendeu d e todo q u e a rem m ais-valia. Ele não se deu conta de q u e u m bom siste ma
propriedade formal não é simplesm ente um instrumento para legal de propriedade, como um canivete suíço, possui mais
apropriação, mas também o meio de m otivar as pessoas a criar m ecanismos do que apenas a lâmina da "poss~".
mais-valia real e útil. E mais, ele n ão viu que são os mecanism os G rande parte de seu pensamento está desatualizada porque
con tidos no sistema de propriedade em si que concedem aos a situ ação hoje não é a mesma que a da Eu ropa de Marx. C ap ital
ativos, e ao trabalho investido neles, a forma exigida para criar potencial não é mais privilégio de poucos. Após a morte de Marx,
capital. E mbora a análise de Marx de como os ativos se to rnam o Ocidente finalmente conseguiu montar uma estrutura legal
intercambiáveis seja fundamental para a com preensão da rique- qu e deu à m aioria o acesso à propriedade e às ferramentas de
252 HERNANDO DE SOTO
O MISTÉRIO DO CAPITAL 253

produção. Marx provavelmente se chocaria em descobrir que saque dos conquistados e "a caça comercial da pele negra" pelos
nos países em desenvolvimento boa parte da abundante massa sistemas coloniais podem bem ter sido precondições essenciais
não consiste em proletários legais oprimidos, mas em pequenos para o que Marx denominou a "primitiva acumulação de capi-
empresários extralegais oprimidos com um razoável montante tal". Essas condições dificilmente se repetirão. As atitudes mu-
de ativos. daram - em grande parte graças aos próprios escritos de Marx.
A admiração por bons sistemas de propriedade não deve nos As pilhagens, a escravidão e o colonialismo hoje não recebem o
cegar para o fato de que, como M arx observou, esses sistemas imprimátur de nenhum governo. A maioria dos países hoje é
podem também ser usados para o roubo. O mundo sempre será partidária de acordos como a Declaração Universal dos Direi-
repleto de tubarões peritos e m utilizar um documento de pro- tos Humanos, e possui constituições que declaram o acesso
priedade para arrancar a riqueza de pessoas que deles não sus- igualitário aos direitos de propriedade como um dos direitos fun-
peitam. Contudo não nos podemos opor aos sistemas formais damentais da humanidade.
de propriedade por essa razão, assim como não aboliríamos com- Além do mais, como vimos no Capítulo 6,(as autoridades
p utadores e automóveis porque as pessoas os utilizam para co- nos países em desenvolvimento não têm sido reticentes em dar
meter crimes. Se Marx estivesse hoje vivo e visse a apropriação aos pobres o acesso aos ativos~O montante de negócios e cons-
indevida dos recursos que ocorreu em ambos os lados da antiga truções extralegais espontâneas nas cidades por todo o Segundo
C ortina de Ferro, provavelmente concordaria que o furto pode e o Terceiro M undo podem não ter sido formalm ente regis-
acontecer com ou sem a propriedade, e que o controle de rou- trados, mas os governos aceitaram (mesmo que apenas tacita-
bos depende mais do exercício do poder do que da proprieda- mente) su as existências e acordos de posse. Em muitos países
de. E mais, embora Marx desse a "mais-valia" uma definição bem em desenvolvimento durante esse século , largas extensões de
específica, o significado da palavra não ficou aprisionado em sua terras foram cedidas aos fazendeiros pobres como parte de pro-
caneta. As pessoas sempre produziram mais-valia para criar pi- gramas de reforma agrária (em hora sem a representação de pro-
râmides, catedrais e exércitos - para enum erar alguns exem - priedade necessária para gerar capital). Nem têm as autoridades
plos. C laramente, grande parte da mais-valia hoje no Ocidente nesses países sido r elutantes em destinar orçamentos para as
originou-se não do trabalho expropriado escandalosamente, mas
questões de propriedade. Bilhões de dólares foram gastos em
do modo como a propriedade concedeu às mentes os mecanis-
atividades relacionadas com o registro de posses.
mos pelos quais extrair trabalho adicional de suas mercadorias.
Como todos nós, Marx foi influenciado pelas condições
sociais e tecnológicas da época. A expropriação de pequenos A propriedade facilita à mente a compreensão do capital
proprietários de seus meios de subsistência, o acesso aos direi-
tos privados de propriedade bro tando dos títulos feudais, o roubo Por todo este livro venho tentando demonstrar que nós hoje
das terras comuns, a escravidão das populações aborígines, o temos suficiente evidência para fazermos um progr esso subs-
254 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 255

tancial no desenvolvimento. Com ele em mãos , poderemos ir tema de propriedades faz isso - põe os ativos em uma forma
além do estagnante debate "esquerda versus direita" acerca da que nos permite distinguir suas semelhanças, diferenças e pon-
propriedade, e evitar de termos de lutar todas as mesmas velhas tos de ligação com os outros ativos. Fixa-os em representações
batalhas outra vez. A propriedade formal é mais do que a mera que o sistema rastreia enquanto percorrem o tempo e o espaço.
posse. Como vimos no Capítulo 3, precisa ser considerada como Além disso, permite aos ativos tornarem-se fungíveis , represen-
o processo indispensável que fornece às pessoas os instrumen- tando-os para as nossas mentes de forma que possamos facil-
tos com os quais concentrar os seus pensamentos naqueles as- mente combiná- los, dividi-los e mobilizá-los para produzirem
pectos de seus recursos dos quais podem extrair capital. A misturas de maior valor. Essa capacidade da propriedade de re-
propriedade formal é mais do que um sistema de emissão de presentar aspectos dos ativos em formas que nos permitem
títulos, de registro e de mapeamento de ativos - é um instru- recombiná-los para torná-los ainda mais úteis é a mola mestra
mento de pensamento, representando ativos de tal modo que as do crescimento econômico, já que o crescimento trata-se, em
mentes das pessoas podem neles trabalhar para gerar mais-valia. essência, da obtenção de altos valores de produção a baixos va-
É por isso que a propr iedade formal deve ser universalmente lores de investimento.
acessível: para trazer todos a um único contrato social onde pos- Um bom sistema legal de propriedade é um meio que nos
sam cooperar para aumentar a produtividade da sociedade. permite compreender uns aos outros, tecer relações e sintetizar
O que distingue um bom sistema legal de propriedade é ser o conhecimento sobre nossos ativos para aumentar nossa pro-
de fácil aceitação para a mente. Obtém e organiza conhecimen- dutividade. É uma maneira de representar a realidade que nos
tos acerca dos ativos registrados em formas que podemos con- permite transcender às limitações dos nossos sentidos. Repre-
trolar. Coleta, integra e coordena, não só os dados dos ativos e sentações de propriedade bem formuladas nos capacitam a de-
seus potenciais, mas nossos pensamentos sobre eles. Em resu- terminar o potencial econômico dos recursos para aumentar o
mo, o capital resulta da capacidade do Ocidente de usar os siste- que podemos fazer com eles. Não são "meros papéis": são dis-
mas de propriedade para representar seus recursos em um positivos de mediação q ue nos concedem conhecimentos úteis
contexto virtual. Somente lá podem as mentes se encontrar para sobre as coisas que não estão man ifestamente presentes.
identificar e perceber o significado dos ativos para a humanidade. Os registros de propriedade apontam nossos conhecimen-
A contribuição revolucionária de um sistema integrado de tos das coisas na direção de um fim (tomando emprestado de
propriedade é que soluciona um problema básico de cognição. Tomás de Aquino) "assim como a flecha é movida pelo arquei-
Nossos cinco sentidos não são suficientes para que processemos ro".12 Representando os aspectos econômicos das coisas que
a complexa realidade de um m ercado ampliado, muito menos possuímos e organizando-as em categorias que nossas mentes
de um globalizado. Precisamos ter os dados econômicos sobre captam facilmente, os documentos de propriedade reduzem os
nós mesmos e nossos recursos reduzidos ao essencial para que custos de ocuparmo-nos dos ativos e aumentam seus valores
nossas mentes os consigam captar com facilidade. Um bom sis- compativelmente. Essa noção, de que o valor das coisas pode ser
O MISTÉRIO DO CAPITAL 257
256 HERNANDO DE SOTO

acrescido pela redução dos custos d e conhecê-los e negociá-los, mática e a propriedade integrada nos ajudam a manipular e or-
é uma das principais contribuições do laureado com o Nobel, denar as complexidades do mundo de um modo que todos po-
Ronald Coase. Em seu tratado "The Natureofthe Firm", Coase demos compreender, e nos permitem comunicar questões que
estabeleceu que os custos das transações podem ser substancial- de ou tra forma não conseguiríamos tratar. São o que o filósofo
mente reduzidos dentro do contexto controlado e coordenado Daniel Dennett denominou "extensões protéticas da mente"_ts
de uma empresa. 13 Neste sentido, os sistemas de propriedade Por meio das representações trazemos à vida aspectos-chave do
são como a empresa de Coase: ambientes contro lados para a mundo com a finalidade de modificar o modo em que n eles
redução dos custos das transações. pensamos. O filósofo John Searle observou que por meio do
A cápacidade da propriedade de revelar o capital latente nos acordo humano podemos conferir "um novo status a a lguns fe-
ativos que acumulamos é corroborada pela melhor tradição in- nômenos, onde esse status possui uma função de acompanha-
telectual d e controlarmos n osso ambiente com o fim de pros- mento que não pode ser desempenhada unicamente em virtude
perarmos. Por milhares de anos nossos mais importantes sábios das características físicas intrínsecas do fenômeno em questão".16
vêm nos dizendo que a v ida tem graus diferentes de realidade, Essa definição me parece bem pró:icima do que faz a proprieda-
muitos deles invisíveis, e que é apenas pela construção de dis- de legal: confere aos ativos, por meio de um contrato social, em
positivos de representação que seremos capazes de alcançá-los. um universo conceituai, um status que lhes permite desempe-
Na famosa analogia de Platão, somos comparados a prisionei- nhar funções que geram capital.
ros acorrentados a uma caverna de costas para a entrada de modo Essa noção de que organizamos a realidade em um universo
que tudo que podemos conhecer do mundo são suas sombras con ceitu ai é central à filosofia mundialmente. Na França, o fi-
refletidas na parede à nossa frente. A verdade consagrada por essa lósofo Michel Foucault a rotulou de a "região mediana" que
ilustração é que muitas coisas que guiam nosso destino não são fornece um sistema de comutadores (codesfondamentaux) que
evidentes por si mesmas. Por isso , a civilização esmerou-se em constituem a r ede secreta onde a sociedade estabelece o sempre
modelar sistemas de representação para alcançar e capturar essa expansivo âmbito de seu potencial (les conditions de possibilité). 11
parte virtual da nossa realidade e representá-la em termos que Eu con sidero a propriedade formal um tipo de caixa d e comu-
podemos compreender. tado res que nos permite expandir o potencial dos ativos que
Como o expressou Margaret Boden: "Algumas das mais acumulamos mais e mais, aumentando, cada vez mais, o capital.
importantes criações humanas foram novos sistemas de repre- Também me beneficiei da noção de Karl Popper do Mundo 3 -
sentação. Essas incluem as n otações formais tais como os alga- uma entidade separada do Mundo 1 dos objetos físicos, e do
rismos arábicos (sem esquecermos o zero), fórmulas q uímicas, Mundo 2 dos estados mentais-, onde os produtos de nossas
ou as pautas, as mínimas e semínimas utilizadas pelos músicos. mentes assumem uma existência autônoma qu e afeta o modo
As linguagens de programação [ na informática] são exemplos como lidamos com a realidade física. 18 E é a esse mundo con-
mais. recentes. "'4 s·1stemas d e representação tais como a mate- ceituai que a propriedade formal nos leva - um mundo onde o
258 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 259

Ocidente organiza o conhecimento sobre os ativos e extrai de- Esse temor à virtualidade do capital é compreen sível. Sem-
les o potencial de gerar capital. pre que a civilização aparece com um novo modo de u sar repre-
E assim a propriedade formal é essa coisa extraordinária, sentações para lidar com o mundo físico, as pessoas suspeitam .
muito maior do que a posse. Diferentemente dos tigres e lobos, Marco Polo chocou os europeus ao retornar da China com a
que arreganham os dentes para proteger seu s territórios, o ho- no tícia de que os chineses não u savam o metal e sim o papel como
mem, fisicamente um animal mais fraco, usou a sua mente para dinheiro, o que as pessoas Jogo denunciaram como alquimia. O
criar um ambiente legal - a propriedade - para proteger o seu mundo europeu resistiu ao dinheiro representativo até o século
território. Sem que alguém o compreendesse de todo, os siste- XIX As últimas formas derivadas de dinheiro - dinheiro ele-
mas de representação do Ocidente, criados para resolver reivin- trônico, transferências eletrônicas, e o hoje onipresente cartão
dicações de território, tomaram v ida própria, fornecendo a base de crédito - também demoraram a ser aceitos. Com as repre-
de conhecimento e as regras necessárias para a fixação e realiza- sentações do valor menos palpáveis e mais virtuais, as pessoas
ção d e capital. estão, compreensivelmente, céticas. Novas formas d erivadas da
propriedade (tais como as garantias apoiadas em hipotecas) po-
dem auxiliar na formação de capital adicional, mas também tor-
Os inimigos das representações nam a compreensão da vida econômica mais complexa. Assim
as pessoas tendem a ficar mais à vontade com a imagem dos
Ironicamente, os inimigos do capitalismo parecem sempre ter nobres e suados trabalhadores dos murais soviéticos e latino-
sido mais consc ien tes da origem virtual do capital do que o s americanos, arando seus campos ou operando suas máquinas,
próprios capitalistas. É esse aspecto virtual do capitalismo que do que com capitalistas girando e transacionando títulos, ações
eles consideram tão insidioso e perigoso. O capitalismo, acu sa e bô nus na realidade v irtual dos computado res. É como se o tra-
Viviane Forrester em seu bestseller O horror econômico, "inva- balho com as representações sujasse as mãos mais do que a terra
diu tanto o espaço físico quanto o v irtual ( ... ) confiscou e es- e a graxa.
condeu riqueza com o nunca antes, tirou-a do alcance das Como todos os sistemas de representação - da linguagem
pessoas escondendo-a na forrri a de símbolos. Símbolos tor- escrita e o dinheiro aos símbolos cibernéticos - , a propriedade
naram-se sujeitos de trocas abstratas que não ocorrem em em papel tem sido considerada por muitos intelectuais um ins-
outro lugar que não em seu mundo virtual". 19 Consciente ou trumento de engodo e opressão. Atitudes negativas para com as
inconscientemente, Forrester é parte de uma longa tradição representações têm sido poderosas correntes subterrâneas na
de não ficar à vontade d iante de representações econômicas formação de idéias políticas. O filósofo fran cês Jacques Derrida
da realidade v irt ual - aquelas "su tilezas metafísicas " que relembra em De la G rammatologie como Jean Jacques Rousseau
Marxjulgava, n ão o bstante, necessárias para a compreensão argumentava que a escrita era uma causa importante da desigual-
e acumulação da riqueza.20 dade humana. Para Rousseau, aqueles com o conhecimento da
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escrita podiam controlar as leis escritas e os documentos oficiais, r esponsabilidade limitada e apólices de seguro? Quanto capital
e, portanto, o destino das pessoas. Claude Lévi-Strauss também poderia ter acumulado sem os registros de propriedade nos quais
argumentou que "a função primária da comunicação escrita é fixar e estocar esse capital? Quantos recursos poderia ter reuni-
facilitar a subjugação".21 do sem representações fungíveis de propriedade? Quantas ou-
Estou tão ciente quanto todo anticapitalista de como os sis- tras pessoas teria tomado milionárias sem a capacidade de
temas de representação, particularmente os do capitalismo, têm distribuir opções de ações? De quantas economias de escala
sido usados para a exploração e a conquista; como deixaram poderia ter se beneficiado, se t ivesse de operar na base de dis-
muitos à mercê de poucos. Discuti neste livro como os docu- persas indústrias caseiras que não se podem combinar? Como
mentos oficiais foram usados para uma dominação aberta. Ainda passaria os direitos ao seu império aos seus filhos e colegas sem
assim, a arte e a ciência da representação é um dos sustentáculos a sucessão hereditária?
da sociedade moderna. Nenhuma quantidade de reclamações Não creio que Bill Gates o u qualquer outro empresário no
coléricas contra a escrita, o dinheiro eletrônico, os símbolos Ocidente pudesse ter sucesso sem os sistemas de direitos de
cibernéticos e a propriedade documentada os farão desaparecer. propriedade firmados em um sólido e bem integrado contrato
Em vez disso, devemos simplificar os sistemas de representação social. Sugiro humildemente que antes que algum intelectual
e torná-los mais transparentes, e trabalharmos arduamente para vivendo numa redoma de v idro busque nos con vencer de que o
ajudar as pessoas a compreendê-los. De outro modo, o apartheid su cesso no capitalismo requ er certas características culturais,
legal persistirá e as ferramentas de criação de riqu eza permane- devíamos primeiro ver o que acontecerá q uando os países em
cerão nas mãos daqueles que vivem no lado de dentro da redoma desenvolvimento e antes comunistas estabelecerem sistemas de
direitos de pro priedade que possam criar capital para todos.
de vidro .
Por toda a história as pessoas confundiram a eficiência dos
instrumentos de representação que herdaram para criar mais-
o êxito no capitalismo é cultural? valia com o s valores inerentes de suas culturas. Esqu ecem-se de
que, freqüentemente, o que concede uma vantagem a um gru-
Pense em Bill Gates, o mais bem-sucedido e rico empresário do po em especial de pessoas é o uso inovador qu e fazem do siste-
mundo. À parte sua genialidade pessoal, o quanto de seu suces- ma d e representação desenvolv ido por uma outra cultura. Por
so é devido a seu ambiente cultural e sua "Ética Protestante"? E exemplo , os povos do Norte tiveram de copiar as instituições
o quanto ao sistema legal de propriedade dos Estados Unidos? legais da Roma antiga para se organizar, e aprender o alfabeto
Quantas inovações em seftware ele poderia ter inventado sem grego e os sistemas e símbolos da numeração arábica para trans-
patentes para protegê-las? Quantos negócios e proj etos de lon- mitir informação e calcular. E assim, hoje, poucos estão cientes
, . ?
go prazo poderia ter desenvolvido sem contratos executave1s. da tremenda vantagem que os sistemas formais de propriedade
Quanto poder ia ter arriscado no começo sem os sistemas de conferiram ao Ocidente. Como resultado, muitos ocidentais
HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 263
262

foram levados a crer que o que alinhava o seu sucesso capitalista Isso não significa que a cultura não conta. Todas as pessoas no
foi a ética de trabalho que herdaram, ou a angústia existencial mundo têm preferências, habilidades e padrões de comportamen-
gerada por suas religiões - a despeito do fato de que as pessoas to específicos que podem ser considerados culturais. O desafio é
por todo o mundo trabalhem duro quando podem, e de que a investigar quais d esses traços são de fato a identidade inveterada e
angústia ou as mães superprotetoras não são monopólios cal- inalterável de um povo e quais são determinados por restrições
v inistas ou judaicos. (Sou tão ansioso quanto qualquer calvinista econômicas e legais. Será a posse ilegal d e terras no Egito e no
do mundo, especialmente nas tardes de domingo, e em um con- Peru resultante de u ma tradição nômade antiga e inextricável en-
curso de mães superprotetoras, eu apostaria a minha em meu tre os árabes, e dos costumes das idas e vindas do cultivo em dife-
país, o Peru, contra qualquer mulher de Nova York.) Portanto, rentes níveis verticais nos Andes dos quéchuas? Ou isso ocorre
u ma boa parte da agenda da pesquisa necessária para explicar por porque tanto no Egito como no Peru demora mais de quinze anos
que o capitalismo fracassa fora do Ocidente per manece atolada para se obter direitos legais de propriedade das terras do deserto?
em uma massa de suposições sem exame e de todo impossíveis Na minha experiênc ia, a ocupação ilegal deve-se principalmente
d e testar, rotuladas de "cultura", cujo principal efeito é permitir a esta última. Quando as pessoas têm acesso a um mecanismo
a demasiados dos que vivem nos enclaves privilegiados deste ordenado que reflete o co ntrato social para resolver as questões
mundo sentirem-se superiores. de terra, escolhem o caminho legal, e apenas uma minoria, como
Um dia esses argumentos culturais despencarão, quando a em qualquer outro lugar, insiste na apropriação extralegal. M u ito
dura evidência dos efeitos de boas instituições políticas e leis de do comportamento hoje atribu ído à herança cultural não é ore-
pro priedade forem absorvidas. Nesse meio tempo, como obser- sultado inevitável de traços étnicos ou idiossincráticos, mas de ava-
vou Fareed Zakaria, da publicação Foreign Affairs: liações racionais dos cu stos e benefícios relativos d e se entrar no
sistema legal de propriedade.
A cultura está na moda. Por cultura não me refiro a Wagner e A propriedade legal confere poderes aos indivíduos em qual-
ao expressionismo abstrato -estes, sempre estiveram em moda quer cultura, e eu duvido que a propriedade per se, diretamente,
- mas sim à cultura como explicação para o fenômeno cultu- contradiga qualquer importante c ultura. Migrantes vietnamitas,
ral ( ...) As explicações culturais permanecem porque os inte- cubanos e indianos claramente têm tido poucos problemas em
lectuais as apreciam. Tomam valioso o detalhado conhecimento adaptarem-se à lei de propriedade dos EUA. Se concebida cor-
das histórias dos países, suprimentos os quais os intelectuais retamente, a lei de propriedade pode ir além das culturas e au-
possuem em grandes quantidades. Concedem um ar de misté- m entar a confiança entre elas e, ao mesmo tempo, reduzir os
rio e complexidade ao estudo das sociedades( ...) Mas a cultura
custos de reunirem-se coisas e pensamentos.23 A propriedade
em si pode ser moldada e modificada. Por trás de tantas atitu-
legal determina as taxas de comércio entre as diferentes culturas
des culturais, gostos e preferências estão as forças econômicas e
e portanto lhes confere um fundamento econômico comum no
políticas que as formam.22
qual negociar umas com as outras.
264 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 265

O único jogo disponível Com su a vitória econômica sobre o comunismo, o antigo pro-
grama do capitalismo para o progresso econômico se exauriu
Estou convencido de que o capitalismo perdeu-se nas nações em
desenvolvimento e nas antes comunistas. Não é equitativo . Per-
1 e requer um novo conjunto de compromissos. Não faz nenhum
sentido continuarmos clamando por economias abertas sem en-
deu o contato com aqueles que deveriam ser os seu s m a iores
f cararmos o fato de que as reformas econômicas em funciona-
constituintes, e em vez de ser uma causa que promete oportu-
' mento abrem as portas somente a pequenas e globalizadas elites,
nidade a todos, o capitalismo assemelha-se mais e mais ao tema
central de uma corporação de homens de negócios e suas tec-
nocracias. Espero que este livro tenha transmitido a minha crença
I deixando de fora a maior parte da humanidade. Atualmente, a
glo balização capitalista se preocupa com a interligação tão-só
das elites que vivem em redomas de vidros. Para se retirar es-
de que este estado de coisas é relativamente fác il de ser corrigi- sas redomas e liquidar o apartheid de propriedade será necessá-
do - desde que os governos estejam dispostos a aceitar o se- ( r io ir a lém das fronteiras existentes tanto da lei quanto da
econ omia.
guinte: t
i N ão sou um capitalista reacionário. Nã.o considero o ca-
1. a situação e o potencial dos pobres precisam ser mais bem p ita lismo um credo. Muito mais importantes para mim são a
documentados; liberdad e, a compaixão pelos pobres, o respeito pelo contra-
to social e a igualdade de oportunidade. Mas, no momento
2. todas as p essoas são capazes de poupar; r para conquistarmos esses objetivos, o capitalismo é o único
'
3. o que falta aos pobres são sistemas legalmen te integrados de
propriedad e q u e possam converter seus trabalhos e p oupan- j ogo disponível. É o único sistema conhecido que nos forne-
ce os instrumentos necessários para a criação de uma maciça
ças em cap ital;
m ais-valia.
4. a desobediência civil e as máfias de hoje não são fenômenos
Adoro pertencer ao Terceiro Mundo porque este representa
m arginais, e sim resultado da marcha d e bilhões de pessoas
um desafio tão maravilhoso - o da transição a u m sistema ca-
provenientes de uma vida organizada em pequena escala em
pitalista de m ercado que respeite os desejos e crenças das pessoas .
dir eção a ou tra de grande escala;
Q uando o capital for uma história de sucesso não só no Oci-
5. neste contexto, os pobres não são o problema, e sim a so-
d ente, m as em todos os outros lugares, poderemos ir além do
lução;
limite do mundo físico e utilizar nossas mentes para voar para o
6. a implementação de um sistema de propriedade que gere
futuro .
capital é um desafio político, pois envolve entrar em contato
com as pessoas, compreender o contrato social e rever o sis-
tem a legal.

l
266 HERNANDO DE soro

Muitas das idéias neste livro se baseiam em pesquisas reali-


zadas em diferentes países do mundo. Mais informações
sobre a natureza deste trabalho se encontram no website do ,..
Apêndice
Instituto de Liberdade e Democracia:

www.ild.org.pe

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QUANTO CAPITAL MORTO?
De propriedade de 65%
USS 132,9 BILHÕES DE CAPITAL MORTO da população

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4 vezes maior do que o valor de mercado das 216 empresas nacionais listadas na Bolsa
de Valores das Filipinas (US$ 31,4 bilhões) no final de 1997.
5 vezes maior do que o valor total da produção mineral (US$ 23,6 bilhões) nos últimos
vinte anos: 1979-1998.
7 vezes maior do que o total das economias e aplicações nos bancos comerciais das
Filipinas (US$ 18,8 bilhões) até outubro de 1998.
9 vezes maior do que o capital das maiores empresas estatais das Filipinas aó final de
1998 (US$ 14,3 bilhões)
14 vezes maior do que o valor de todo investimento estrangeiro direto nas Filipinas
(USS 9,6 bilhões) entre 1973 e setembro de 1998.

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QUANTO CAPITAL MORTO?

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Outra forma de mostrá-lo é dizendo que USS 74,2 bilhões de capital informal são;

2 vezes maior do que o valor total de mercado das empresas privadas registradas na bolsa
de valores, 1995.

2 vezes maior do que o total de ativos das 1.000 maiores empresas privadas formais.

8 vezes maior do que o total de poupanças e aplicações nos bancos comerciais do Peru, 1995.

11 vezes maior do que o valor de investimento estrangeiro no Peru até 1995.

14 vezes maior do que o valor do investimento estrangeiro direto no Peru até 1995.
QUANTO CAPITAL MORTO?
De propriedade de 82%
USS 5.2 BILHÕES DE CAPITAL MORTO
da populaç:io
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Outra forma de mostrã-lo é dizendo que USS 5,2 bilhões de capital informal são:

4 vezes maior do que o total de ativos das 123 maiores empresas privadas formais.
9 vezes maior do que o capital das maiores empresas públicas no Haiti que poderia ser
liberado por meio da privatização.
11 vezes maior do que o total de poupanças e aplicações nos bancos comerciais do Haiti, 1995.
158 vezes maior do que o valor de investimento estrangeiro direto no Haiti até 1995.

QUANTO CAPITALMORTO?
De propriedade de 85%
USS 241,4 BILHÕES OE CAPITAL M ORTO
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[ Outra forma de mostrá-lo é dizendo que USS 5,2 bilhões de capital informal são:
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6 vezes maior do que o total de poupanças e aplicações nos bancos comerciais do Egito.
~
13 vezes maior do que as reservas líquidas estrangeiras acumuladas até 1996.
16 vezes maior do que o investimento acumulado em ativos formais feito por empresas
privadas atraídas pelos incentivos dados pelo governo egípcio por meio da Lei de
Investimento.
30 vezes maior do que o valor de mercado das 746 empresas que se registraram na Bolsa
de Vaíores do Cairo em resposta aos incentivos proporcionados pela Lei de Mercado
de Capital.
55 vezes maior do que o valor do investimento estrangeiro direto no Egito até 1996.
116 vezes maior do que o valor das 63 empresas públicas privatizadas entre 1992 e 1996.
Notas

Capítulo 1
1. Gordon S. Wood, "Invencing American Capitalism", New York
Review ofBooks, 9 de junho de 1994, p. 49.

Capítulo 2
1. D onald Pisani, TMiter, L and, and Lau, in lhe i#st: The LimitsofPublic
Policy, 1850-1920 (Lawrence: U niversity Press ofKansas, 1996),
P· 51.
2. Comentários do arquiteto e urbanista Albert Mangonese na
Conjonction, nº 119, fevereiro-março 1973, p. 11.
3. Leonard J. Rolfes, Jr, "The Struggle for Private Land Rights in
Russia", Economic Reform Today, nº 1, 1996, p. 12.

Capítulo 3
1. Adam Smith, The i#althoJNatíons (Londres: Everyman's Library,
1977), antigo Vol. I, p. 242.
2. Ibid., p. 295.
3. Simonde de Sismondi, Nouveaux príncipes d'économie politique (Pa-
ris: Calrnann-Lévy, 1827), pp. 81-2.
4. Jean Baptiste Say, Traité d'économie politique (Paris: Dete rville, 1819),
Vol. II, p. 429.
5. Karl Marx, Frederick Engels, Collected Works (Nova York: Inter-
national Publishers, 1996), Vol. XXXV, p. 82.
HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 275
274

6. Smith, The "Wealth of Na!ions, antigo Vol. I, p. 242. usage populaire en milieu urbain ou Paysans, Villes et Bidonvilles
en Haiti: Aperçus et reflexions", Port-au-Prince, esgotado, ju-
7. Ibid., p. 286.
8. Herbert L. Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault: Beyond nho de 1996.
Structuralism and Hermeneulics (Chicago: Harvester, University of 10. Blount, "Latin Trade".
Chicago, 1982), p. 211. 11. Rolfes, "The Struggle for Private Land Rights in Russia".
9. George A. Miller e Philip N. J ohnson-Laird, Language and 12. Jornal oficial da National Geographíc Society (Millenium in Maps),
Perception (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1976), p. nº 4, outubro de 1998.
13. Donald Stewart,AJPE, dezembro de 1997.
578.
10 . Gunnar Heinsohn e Otto Steiger, "The Property Theory of 14. Matt Moffett, "The AmazonJungle Had an Eager Buyer, But Was
Interest and Money", manuscrito inédito, segundo rascunho, It For Sale?", The Wall Streetjournnl, 30 de j aneiro de 1997.
outubro de 1998, p. 22. 15. Simon Fass, Political Economy in Haiti: The Drama efSurvi11al (New
Brunswick, NJ: Transaction Publishers, 1998), pp. xxiv-xxv.
11. Ibid., p. 43.
16. Ahmed M . Soliman, "Legitimizing informal housing: accom-
12. Ibid. , p. 38.
13. Tom Bethell, The Noblest Triumph (Nova York: St Martin's Press, modating low-income groups in Alexandria, Egypt", Environment
and Urbanízation, Vol. 8, nº 1, abril de 1996, pp. 190-1.
1998), p. 9.
14. Femand Braudel, The Ulheeh of Commerce (Nova York: Harper 17. Reuters, impresso em Financial Review, 11 de maio de 1992, p.
an d Row, 1982), p. 248. 45.
18. Mavery Zarembo, Newsweek, 7 de julho de 1997.
19. The Economist, 5 de março de 1994.
Capítu1o4
1. "Survey the Internet", The Economist, 1° de julho de 1995, pp. 4- 20. Ibid., 6 de maio de 1995.
21. "Terrenos de Gamarra valen tres veces más que en el centro de
5.
2. Jeb Blount, "Latin Trade", Neius Finance, 20 de janeiro de 1997. Lima", EI Comercio, 25 de abril de 1995.
3. Tony Emerson e Michel Laris, "Migração", Newsweek, 4 de de- 22. Jan De Vries, Economy of Europe in an Age of Crisis, 1600-1750
zembro de 1995. (Cambridge: Cambridge University Press, 1976); D.C. Coleman,
4. Henry Boldrick, "ReachíngTurkey's Spontaneous Settlements", Revisions inMercantilism (Londres: Methuen and Co., Ltd, 1969);
World Bank Policy, abril-junho 1996. H . H. Clapham, The Economíc Development ofFrance and Germany,
5. "Solving the Squatter Problem", Business Wórld, 10 de maio de 1815-1914 (Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1963); Eli
1995. Heckscher, Mercantilism, org. E.F. Soderland (Londres: Allen &
6. Newsweek, 23 de março de 1998. Unwin, 1934).
7. The Economist, 6 de junho de 1998. 23. Joseph Reid,Respuestas ai primercuestionario del ILD (Lima: Meca,
8. Manal El-Batran e Ahmed El-KhoÍei, Gender and Rehousing in 1985).
Egypt ( Cairo: Toe Royal N etherlands Embassy in Cairo, 1996), 24. D. C. Coleman, The Economy of England 1450-1750 (Oxford:
p.24. Oxford University Press, 1977), pp. 18-19.
9. Gerard Barthelemy, "I.?extension des lotissements sauvages à 25. Ibid. , pp. 58-9
276 HERNANDO DE SOTO O M ISTÉRIO DO CAPITAL 277

26. Heckscher, Mercantilism, Vol. 1, p. 323. 11. Hoffer, L aw and People in Colonial America, p. 15.
27. Ibid ., p. 241. 12. Ame lia C. Ford, C olonial Precedents efour National Larul System as
28. Robert B. Ekelund, Jr. e Robert Tollison, Mercantilis111 as a Rent itExisted in 1800 (Filadélfia: Porcupine Press, 19 10), pp. 112-13.
Seeking Society (College Station: Texas A&M University Press, 13. Ibid. , p. 114.
1981), Capítulo 1. 14. Konig, "Community C ustam", p. 325.
29. H ecksher, Mercantilism, Vol. 1, pp. 239-44. 15. Ibid., p . 325.
30. Coleman, The Economy oJEnglaruJ, p . 7 4. 16. Aaron Morton Sokolski, L tffl..d Tenure and Larul Taxation inAmerica
31. Heckscher, Mercantilism, Vol. 1, p. 244. (Nova York: Schalkenbach Foundation, 1957), p. 191.
32. C lapham, Econo mie Development ofFrance and Germany, pp. 323-5. 17. Ibid. , p. 191.
33. Joseph Rei d responde ao segundo questionário enviado pelo ILD, 18. Henry W Tatter, The P referential Treatment ofthe Actual Settler in the
documento escrito à máquina, Biblioteca do ILD, 1985; H e- Primary Disposition oJthe Uicant L ands in the United States to 1841,
ckscher, Mercantilísm, vol. 1, pp. 247,251. tese de Ph.D., N orthw estem University, 1933, Tatter, The Pre-
34. Charles Wilson, Mercantilism (Londres; Routledge & Kegan Paul, fe rential Treatmen t, p. 273 .
1963),p. 27. 19. Ibid. , p . 23.
35. Coleman, The Economy oJEngland, p. 105. 20. Ford, C olonial Precedents, p . 103.
21. Ibid. , p. 103.
Capítulo 5 22. Ibid. , pp. 89-90.
1. Francis S. Philbrick, "Changing Conceptions of Property Law", 23. Ibid., p. 126.
UniversityefPennsylvania Law Review, vol. 86, maio de 1938, p. 691. 24. Ibid. , p . 126.
2. Bernard Bailyn, The Peopling ofBritish NorthAmerica: An Introduction 25. Ibíd. , p. 128.
(Nova York: Knopf, 1986),p. 5. 26. Ibid., p. 129.
3. Peter Charles Hoffer, Law and People in Colonial America (Bal- 27. Ibid.,p . 130.
timore: Joh ns Hopkins University Press, 1998), pp. 1-2. 28. Tatter, The Preferential Treatment, pp. 40-1.
4. Ibid. , p . xii. 29. Citado em Stanley Lebergott, "O'Pioneers': Land Speculation and
5. D avid Thomas Konig, "Community Custom and the Common the Growth of the Midwest", em Essays on the Eccnomy ofthe Old
Law: Social Change and the Development ofLand Law in Seve- Northwest, org. D avid C. Klingman e Richard K. Vedder (Athens,
nteenth-century Massachusetts", in Larul L aw and Real Property O H : Ohio University Press, 1987), p. 3 9.
inAmerican History: Major Historical Interpretatíons, org. Kermit Hall 30. Ford, Colonial Precedents, p. 119.
(Nova York: Garland Publishing, 1987), p. 339. 31. Sokolski, Land Tenure, p. 192.
6. Ibid. , pp. 319-20. 32. Ibid., p. 193.
7. Ibid. , p . 320. 33. Ibid.
8. Ibid. , p . 323. 34. Citado em Pisani, i¼ter, Land, and Law, p. 51.
9. Ibid., p . 324. 35. Sokolski, Land Tenure, pp. 193 -4.
10. Ibid., p. 349. 36. Lebergott, "'O' Pioneers"', pp. 39-40.
-
O MISTÉRIO DO CAPITAL 279
278 HERNANDO DE SOTO

37. Ibid. by the Congress ofthe United States ofAmerica: 1789 to 1827 Inclusive,
38. Ibid. , p. 40. e rg .Joseph Story (Boston, 1828).
39. Decreto XXXDI, março de 1642, The Statutes at L arge, Beíng a 59. Tatter, The Preferential Treatment, p . 118.
Collection ofali the Laws of Vt.rginía from the First Session of the 60. Citado em ibid. , p. 125.
Legislature, org. William Henning (Nova York, 1823), p. 134. 61. Patricia Nelson Limerick, The Legacy of Conquest: T he Unbroken
40. Richard E. Messick, ':,\ History ofPreemption Laws in the United Past ofthe American l#st (Nova York: WW. Norton & Company,
States", esbofO p reparado para o ILD, p. 7. 1987), p . 59.
41 . Ford, Colonial Precedents, p . 124. 62. Ibid.
42. Ibíd. , p. 124, 63. Ibid. , p. 140.
43. Ibid. , p . 132. 64. Lebergott, "O' Pioneers'", p. 44.
44. Ibid. ,p. 134. 65. Ibid.
45. Um Decreto para Ajustar e Liquidar os Títulos de Requerentes 66. Ibid.
à Terras Não-patenteadas sob o Governo Atual e o Precedente 67. Richard E. Messick, "Rights to Land and American Economic
Antes do Estabelecimento do Gabin ete de Terras da Comunida~ D evelopment", esbofo preparado para o ILD, p. 44.
de Britânica, The Statutes at Large: Being a Collection ofall the Laws 68. Richard White, lt's Your Misfortune and None ofMy Oum: A New
ofVirginia, org. William Henning (Richmond, 1822), p. 40. History of the American l#st (Norman: University of Oklahoma
46. Douglas W Allen, "Homesteading and Property Rights; ou 'How Press, 1991), p. 146.
the West was Really Won"',Jou rnal ofLaw & Economics 34 (abril 69. Ibid.
de 1991), p. 6. 70. Stephen Schwartz, From l#st to East (Nova York: The Free Press,
47. Richard Current et al, orgs., Amerícan History: A Survey, 7ª ed. 1998), pp. 105-10.
(Nova York: Knopf, 1987), p. 150. 71. Citado em Lebergott, "O' Pioneers", p . 40.
48. Terry L. Andersen, "The First Privatization M ovement" em 72. Citado emAnderson, "The First Privatization Movement", p. 63.
Essays on the Economy ojthe Old Northwest, p. 63. ' 73. Paul W Gates,Landlords and Tenants on the Prairie Frontier (lthaca:
49. Current,Amerícan History,p. 150. Cornell University Press, 1973), p. 13.
50. Roy M. Robbins, "Preemption-AFrontier's Triumph",Mi.ssissippi 74. Ibid. ,p.16.
Viilley Historical Review, vol. 18, dezembro de 1931, pp. 333-4. 75. Citado em ibid.
51. Ibid. 76. Citado em ibid. , p. 24.
52. Ford, Colonial Precedents, p. 117 . 77. Lawrence M. Friedman,A History ofAmerican Law, 2ª ed. (Nova
53. Lebergott, "'O' Pioneers'", p. 40. York: Simon & Schuster, 1986), pp. 241-2.
54. Ibid., p. 40. 78. Citado em ibid. , p. 242.
55. Messick, '~ History of Preemption", p. 9. 79. Ibid.
56. Citado em Tatter, The Preferential Treatment, pp. 91-2. 80. G . Edward White, The AmericanJudicial Tradition: Pro.files oJLeading
57. Messick, •~ History of Preemption", p. 10. Judges (Nova York: Oxford University Press, 1976), ~ - 48.
58. Decreto de 18 de maio de 1796, Public and G eneral Statutes Passed 81. Citado em Ford, Colonial Precedents, p. 129 (ênfase mmha).
280 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 281

82. Gates, Landlords and Tenants, p. 27. 108. Pisani, Water, Land, and Law, p. 53.
83. Green v. Biddle, 8 Wheaton 1 (1823). 109. Ibid., p. 63.
84. Ibid., p. 33. 110. Bogue, "The Iowa Claim Clubs", p. 51.
85. Ibid., p. 66. 111. Ibid., p. 50.
86. Gates, Landlords and Tenants, p. 37. 112. Citado em ibid., p. 52.
87. Current,AmericanHistory,p. 149. 113. Tatter, The Preferential Treatment, p. 276.
88. Citado em ibid., p. 31. 114. Bogue, "The Iowa Claim Clubs", p. 54.
89. Citado em ibid. 115. White, It's Your Misfortune, p. 141.
90. Tatter, The Preferential Treatment, p. 265. 116. Tatter, The Preferential Treatment, p. 280.
91. Gates, Landlords and Tenants, p. 33. 117. Terry Anderson e PJ. Hill, ''.AnAmericanExperiment inAnarcho-
92. Bodley v. Gaither, 19 Kentucky Reports 57, 58 (1825). capitalism: The Not So Wild West",Journal oJLibertarian Studies,
93. M'Kínney v. Carrol, 21 Kentucky Reports 96, 97 (1827). vol. 3, 1979, p. 15.
94. White, It's Your Misfortune, p. 139. 118. Ibid.
95. Gates, Landlords and Tenants, p . 46; Congressional Record, 43 Con- 119. Bogue, "The Iowa C laim Clubs", p. 50.
gress, I Session, 1603 (18 de fevereiro de 1874). 120. Ibid., p . 51.
96. Pisani, Water, Land, and Law, p. 63. 121. Citado em ibid., p. 54.
97. Tatter, The Preferentia Treatment, p. 154. 122. White, It's Your Misfortune, p. 141.
98. Gates, Landlords and Tenants, p. 44. 123. Bogue, "The Iowa Claim Clubs", p. 55.
99. Paul W. Gates, "California Embattled Settlers", The Callfomía 124. Tatter, The Preferential Treatment, p . 273.
Historical Society Quaterly, Vol. 41,junho de 1962, p. 115. 125. Ibid., p. 287.
100. Messick, "A History of Preemption", p. 17. 126. John Q. Lacy "Historical Overview of the Mining Law: The
101. Citado em ibid. Miners' Law Becomes Law", The Mining Law of1872 (Washing-
102. Ibid. ,p. 19. ton, DC: National Legal Center for the Public Interest, 1984),
103. Decreto de 29 de maio de 1830,Public StatutesatLargeofthe United p. 17.
States oJAmerica, Vol. 4 (Boston, 1846). 127. Robert W Swenson, "Sources and Evolution ofArnerican Mining
104. Decreto de 4 de setembro de 1841, Public Statutes at Large ofthe Law", em The American Law ofMining, ed. Matthew Bender (Nova
United States ofAmerica, Vol. 5 (Boston: Charles C. Little e James York: Rocky Mountain Mineral Law Foundation, 1960), p. 19.
Brown, 1845-1867). 128. Gates, "California's Embattled Settlers", p. 100.
105. Messick, "A History of Preemptíon", p. 26. 129. Harold Krent, "Spontaneous Popular Sovereigntyin the United
106. Pisani, Water, Land, and Law, p. 69. States", esboro preparado para o ILD, p. 2.
107. Allan G. Bague, "The lowas Claim Clubs: Symbol and Subs- 130. Pisani, i¼ter, Land, and Law, p. 52.
tance", em The Public Lands: Studies in the History of the Public 131. Limerick, Legacy ofConquest, p. 65; veja também White, It's Your
D omain, org. Vemon Carstensen (Madison: University ofWis- Misfortune, p . 147.
consin Press, 1963), p. 47. 132. Pisani, Water, LAnd, and Law, p. 69
282 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 283

133. Ibid. Capítulo 6


134. Gates, "California's Embattled Settlers", p. 100. 1. C. Reinold Noyes, The Institution ofProperty (Nova York; Long-
135. Ibid., pp. 22-6. man's Green, 1936), pp. 2 e 13.
136. Lacy, "Historical Overview ofthe Mining Law", p. 26. 2. Para uma discussão lúcida e atual acerca desse assunto, ver 'William
137. Citado em Charles Howard Shinn, Mining Camps: A Study in M. Landes e Richard A. Posner, ''l\djudication as a Private Good ",
American Frontier Government (Nova York: Alfred A Knopf, 1948), Journal ofLegal Studies, vol. 8, março de 1979, pp. 235-84.
p. 107. 3. Noyes, The Institution ofProperty, p. 20.
138. Gore v. McBreyer, 18 Cal. 582 (1861), citado em Lacy, "Historical 4. John C. Payne, "ln Search ofTitle", Parte 1,Alabama Law Review,
Overview of the Mining Law", p. 22. vol. 14, nº 1, 1961, p. 17.
139. Ibid., p. 21. 5. Andrzej Rapaczynski, "The Roles of the State and the Market in
140. Ibid., pp. 24-5. Establishing Property Rights"Jouma/ oJEamomic Perspectives, vol.
141. Swenson, "Sources and Evolution", p. 24. 10, nº 2, primavera de 1996, p. 88.
142. Ibid., p. 29 6. Veja Robert C. Ellickson, Order without Law: How Neighbors Settle
143. Ibid., p. 30. Disputes (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1991) para
144. Ibid. uma discussão bastante interessante de como a regulamentação
145. Krent, "Spontaneous Popular Sovereigmy", p. 3. extralegal governa os relacionamentos de propriedade nos Esta-
146. Lacy, "Historical Overview of the Mining Law", p. 35. dos Unidos.
147. 14 Stat. 252 (1866). 7. Veja Richard A. Posner, "Hegel and Employment at Will: A
148. Swenson, "Sources and Evolution". Comment", Cardozo Law Review, vol. 10, março/abril de 1989.
149. Lacy, "Historical Overview of the Mining Law", p. 36. 8. H arold J. Berman, La111 and Revolution. The Fom,ation ofthe Westem
150. Citado em Krent, "Spomaneous Popular Sovereigmy", p. 3. Legal Tradition (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1983),
151. Lacy, "Historical Overviewofthe MiningLaw", pp. 37-8; 17 Stat. pp. 555-6.
91, 30 use§§ 22-42_ 9. Ibid., p. 557.
152. Jennison v. Kirk, 98 U.S. 240,243 (1878). 10. Robert Cooter e Thomas Ulen, Law and Economics, an Economic
153. Swenson, "Sources and Evolution", p. 27. Theory ofProperty (Reading, MA: Addison-Wesley, 1997), p. 79.
154. Messick, "Rights to Land and Arnerican Development", p. 45. 11. Margaret Gruter,Law arrd the Mind (Londres: Sage, 1991), p. 62.
155. White, lt's Your Misfartune, p. 143. 12. Bruce L. Benson, The Enterprise of L aw (São Francisco: Pacific
156. Ibid., p. 145. Research Institute for Public Policy, 1990), p. 2.
157. Wood, "InventingAmerican Capitalism", p. 49. 13. Para um relato de como organizações informais procuram pas-
158. White, lt's Your Misfartune, p. 270. sar ao setor formal veja H emando de Soto, The Other Path: The
159. White, The Americanjudicial Tradition, pp. 48-9. Invisib/e Revolution in the Third Ulorld (Nova York: Harper & Row,
160. Philbrick, "Changing Conceptions", p. 694. 1989), em especial, capítulos 1-4.
14. Bruno Leoni, Freedom and the Law (Los Angeles: Nash Publishing,
1972) pp. 10-11.
284 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 285

15. Veja Robert Sugden, "Spontaneous Order",Journal of Economic 7 . George Soros, The CrisisofGlo/Jal C apiralism: Open Society Endan-
Perspectives, vol. 3, nº 4, outono de 1989, especialmente pp. 93-4. gered (Nova York: Public Affairs, 1998), p. xxvii.
Veja também F.A. Hayek, Law, Legislation and Liberty, vols. 1-III 8. Eugene Kamenka, org., The Portable Marx (Nova York: Viking
(Londres: Routledge &Kegan Paul Ltd., 1973). Penguin, 1993), p. 463.
16. Payne, "ln Search ofTitle", p. 20. 9. Nancy Birdsall e Juan Luís Londofio, ''.Assets in Equality Matters",
17. Veja John P. Powelson, The Story of Land (Cambridge, MA: American Economic Review, maio de 1997.
Lincoln Institute ofLand Policy, 1988). 10. Kamenka , org., The Portable Marx,p. 447.
18. Richard Pipes, The Russian Revolution (Nova York: Vmtage Books, 11. Karl Marx, "Capital", Collected Work~, Vol. XXVIII, p . 235.
1991),p.112. 12. Tomás de Aquino, Summa Theologica, Parte 1 da Segunda Pane
19. Samar K. Datta e Jeffrey B. Nugent, '1\dversary Activities and Q. 12,Art. 4 (Londres: Encyclopedia Britannica, 1952),p. 672.
Per Capita Incarne Growth", World Development, vol. 14, nº 12, 13. Ronald H. Coase, "The Nature of the Firm",Economica, novem-
1986, p. 1.458. bro de 1937.
20. S. Rowton Simpson, Land, Law and Registration (Cambridge: 14. Margaret Boden, The Creative Mind (Londres: Abacus, 1992), p. 94.
Cambridge University Press, 1976), p. 170. 15. Daniel C . Dennett, "Intentionality", em The O>Çjôrd Companion
21. Peter Stein, Legal Evolution: The S tory oJ an Idea (Cambridge: to the Mínd , o rg. Richard L. Gregory (Oxford: Oxford Universíty
Cambridge University Press, 1980), p. 53. Press, 1991), p. 384.
22. Ibíd., p. 55. 16. John R. Searle, The Construction ofSocial Reality (Nova York: The
23. Lynn H o lstein, "Review of Bank Experience with Land Titling Free Press, 1995), p. 46.
and Registration", documentos de estudo, março de 1993, p. 9. 17. Veja Michel Foucault, Les Mots et les choses (Saint Amand: Galli-
24. ].D. McLaughlin e S. E. Nichols, "Resource Management: The mond, 1993).
Land Administration and Cadastral Systerns Component", Surve- 18. Karl Popper, Knowledge and the Body-Mínd Problem (Lo ndres:
ying and Mapping, vol. 49, nº 2, 1989, p. 84. Routledge, 1994).
19. Vivíane Forrester, Vhorreur économique (Paris: Fayard, 1996), p. 61
Capítulo 7 (tradução minha).
1. Lester Thurow, The Future of Capitalism (Nova York: Penguin 20. Karl Marx em Kamenka, org., The Portable Marx, pp. 444-7.
Books, 1996), p. 5. 21. Claude Lévi-Strauss, Tristes Tropíques (Paris: Plon, Terre Humaine/
2. H emando de Soto, The Orher Path. Poche, 1996),p.354.
3 . "Side Effects of Egypt's Econornic Reforro Warned", Xínhua 22. Fareed Zakaria, "The Politics ofPort", Slate Magazine, Internet,
(CNN), 4 de fevereiro de 1999. 16 de março de 1999.
4. George F. Will, The Pursuít ofVirtue and Other Tory Notions (Nova 23. Leitura crucial acerca do fenômeno da confiança e da coopera-
York: Simon & Schuster, 1982). ção social é, obviamente, Trust de Francis Fukuyama (Nova York:
5. Klaus Schwab e C laude Smadja, "Globalization Needs a H urnan The Free Press, 1995).
Face", Internatíonal Herald Tribune, 28 de janeiro de 1999.
6. Tim Padgett, Newsweek , 16 de setembro de 1996.
Agradecimentos

Ninguém jamais escreve um livro sozinho. Fui beneficiado com


informações, opiniões, encorajamento e apoio de muitos - ,
tantos, com efeito, que é impossível agradecer-lhes individual-
mente. Mas há vários sem os quais este livro jamais teria sido o
que é, e eu gostaria de registrar minha gratidão de modo im-
presso.
Em primeiro, vêm os meus colegas do lnstitu to de Liberda-
de e Democracia (ILD) em Lima, Peru, que têm sido meus com-
panheiros constantes em nossa busca para a criação de um
sistema de mercado não discriminatório onde a lei ajude a to-
dos a terem uma oportunidade de prosperar. As idéias neste li-
vro são endossadas pelos fatos e cifras revelados por minha
equipe do ILD nas pesquisas de campo de nossos projetos atra-
vés do mundo. Eu verdadeiramente me apóio em seus ombros.
Manuel Mayorga La Torre, meu principal diretor de operações,
aplicou sua longa experiência como engenheiro de projetos em
centrais elétricas para planejar e organizar todos os nossos pro-
j etos, dia a dia, por entre as etapas mais críticas do caminho. Luís
Morales Bayro é o principal economista do ILD, supervisionan-
do a pesquisa e a análise do custo-benefício nos países nos quais
288 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 289

trabalhamos. Seu trabalho é cr ucial ao nosso sucesso na identi- me a capturar as conexões que vinha procurando entre aprop rie-
ficação dos custos ocultos da lei e instituições. Luis é assistido dade e o desenvolvimento. Nossas discussões sobre como os ho-
por Mario Galantini e apoiado, quando necessário, por Vittorio mens conseguem transformar seus ambientes em uma e:i...1:ensão
Corvo. de suas mentes foram cruciais para a minha compreensão de como
No lado jurídico minhas duas queridas colegas de confian- o capital moderno é gerado. Quando estava confuso, encostado
ça dos últimos quinze anos : Ana Lucia Camaiora administra as contra a parede de uma esquina intelectual, ou simplesmente no
equipes legais do ILD e é responsável pelo fechamento do qua- escuro, Duncan me salvou.
dro jurídico. Ela tem o apoio constante de Maria del Carmen Também desejo agradecer à filósofa alemã Dorothee Kreuzer
Delgado, nossa principal analista jurídica. São as mentes mais por me guiar através das sutilezas do pós-estruturalismo fran-
afiadas no pluralismo jurídico que conheço. Não apenas enten- cês, em particular, Jacques Derrida e Michel Foucault. De
dem a lei como também suas implicações. Seus esforços rece- Derrida aprendi que se pode utilizar categorias de u ma cultura
bem o apoio de muitos advogados do ILD, sendo protagonistas, na descrição de uma outra de um modo que todos podem com-
no caso deste livro, Gustavo Marini,Jackeline Silva, Luis Aliaga pr een der - sem violar o car áter único dessas culturas. E assim ,
e Guillermo Garcia Montufar. Nosso principal técnico é Daniel estava mais apto a compreender como nós integrávamos com
Herencia, cuja equipe, incluindo]avier Robles e David Castillo, sucesso acordos extralegais de propr iedade na lei de p roprieda-
montaram nossos sistemas de computação nos campos de estu- de legal. De Foucault aprendi os fundamentos da "arqu itetura
do. Elsa Jo administra o ILD assistida habilmente por sua chefe secr eta" que une o inv isível ao visível, também inferindo de seus
da contabilidade, Eliana Silva, e sua equipe. escritos como um bom sistema de r epresentações aumenta la
Em segundo lugar, vêm aqueles que me proporcionaram o conditwn de possibilité de toda a h um anidade. Meu sentido do poder
subsolo intelectual que me permitiu processar as informações que econ ômico e da significância das representações foi mais acres-
obtive. Nenhum foi mais chegado a mim durante a saga de escre- cido ainda por minhas leituras sobre semiótica, principalmente
ver este livro do que Duncan Macdonald, meu velho am igo es- U m berto Eco e Ferdinand Saussure, e na filosofia da men te, em
cocês e guia cósmico. Foi Duncan quem me apresentou à ciência particular pelo trabalho de John Searle e Daniel Dennett.
cognitiva, em especial às pesquisas acerca da teoria da mente. Para Mas é o meu amigo e colega Mariano Cornejo quem garan-
meu deleite, pude usar o que li na análise dos resultados do meu te que minhas idéias passam os mais severos testes. Não impor-
trabalho de campo. Já havia aprendido do antropólogo norte- ta o qu ão engenhosa ou elegante uma idéia, sua entrada não será
americano Douglas Uzzell sobre a utilidade para o meu trabalho permitida em um projeto do ILD a não ser que passe pelas duas
da capacidade dos antropólogos de "observação participativa", e o pr incipais condições de Mariano: que funcione, e que possa ser
professor de leis Warren Schwartz, de Georgetown, me ensinara aplicada por gente comum. Quando estou certo, ele simplesmen-
a aplicar os princípios econômicos à análise da lei. Mas foi Duncan te sorri e me diz que descobri o óbvio ("No es problema, no es pro-
quem me mostrou como os filósofos da mente poderiam ajudar- blema"); quando estou errado, me aponta a direção certa.
290 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 291

Mas há também aqueles sem cujas inspirações, encoraja- tituições podia transformar posições conflitantes em soluções
mento e apoio eu não poderia escrever este livro. Após doze anos viáv~is e lucrativas. D e meu amigo Bob Litan, da Brookings
de parceria, Stephan Schmidheiny tomou-se um querido ami- Institution, aprendi não só como a lei afeta o comportamento
go. Um intelectual e filantropo , assim como um extremamente econômico, mas também que existem lições valiosas para ores-
bem- sucedido homem de n egócios, Stephan contribuiu de to do mundo de como a revolução financeira nos Estados Uni-
muitas formas para o sucesso do ILD. Ele reforçou nossos es- dos aumentou a formação· de capital. Em um dia de junho de
forços de procurar meios de levar oportunidades àqueles injus- 1999, o Bob entrou na minha casa em Lima dizendo: "Tenho
tamente privados delas. Ele também fortaleceu nossa crença de um ótimo título para o seu livro - O mistério do capital". Por isso,
que os mercados globais sem leis globais são perigosos. Mas a também, eu lhe agradeço.
principal influência de Stephan no trabalho do ILD é a sua in- Devo agradecimentos especiais à Smith Richardson Foun-
sistência na necessidade de realism o: se o idealismo não tem dation, que apoiou grande parte do trabalho feito para este livro
feição de negócios, os ideais permanecem nada além de ideais e na forma de um d onativo generoso. A fundação é uma antiga e
n ão têm utilidade para aqueles que nos prontificamos a ajudar. leal amiga que, durante o início da década de 1990, quando o
Um outro importante e querido amigo é Lawrence Chickering, ILD era bombardeado e alvejado, nos forneceu um veículo à
um intelectual brilhante de São Francisco, q ue ajudou o ILD a prova de bala, permitindo, assim, continuarmos nosso trabalho.
iniciar muitos projetos e aventuras mentais enquanto me ajuda- Também sou muito agradecido a Harold Krent, Saul Lev-
va pessoalmente com o seu compassivo aconselhamento "pas- more, Rick Messick, Tom Romero e Larry Stay por seus
toral". esforços h ercúleos na pesquisa da história da propriedade nor-
Não poderia esquecer meus amigos da Agência Internacio- te-americana. Minha gratidão, também, aos meus amigos do
nal para o Desenvolvimento: Brian Atwood, Dick M cCall, Jim Registro de Terras de Sua Majestade em Londres - em es-
Michels, Norma Parker, Aaron Williams, Paula Goddard e, es- pecialJohn Manthorpe e Christopher West- por me apon-
pecialmente, as pessoas incríveis do Departamento da América tarem os livros que me auxiliaram a compreender a evolução
Latina e do Caribe, Mark Schneider, C arl Leonard, M ichael da propriedade britânica. Monika Bergmeier e Klaus Joachim
Deal, Timothy M ahoney, William B. Baucom, Donald Drga e Grigoleit me ajudaram a investigar as origens da propriedade
Jolyne Sanjak. Estes não só proporcion aram o seu apoio e germânica, e Hans-Urs Wili m e apresentou às origens da pro-
encorajamento ao ILD ao longo dos anos, mas também criaram priedade suíça, me instruindo na conversão da lei romana nas
muitas oportunidades para nós. E qu ando eu me deparava com tradições suíças e germânicas de um rígido sistema de regras
um problem a organizacional, meu velho amigo John Sullivan, a um mais amistoso para as pessoas. Peter Schaeffer, meu
que dirige o Centro para Empreendimento Privado Interna- amigo em Washington, DC , contribuiu com seus pensamen-
cional, me explicava como as instituições norte-americanas o tos, notas e observações, me apresentando a outros com obser-
abordariam. Ele também me ensinou como o grupo certo de ins- vações valiosas para nosso trabalho.
292 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 293

Merran Van Der Tak me ajudou a explorar a relação entre os cutivo Ronaldo Zamora foi crucial paras o nosso progresso.
direitos de propriedade e o desenvolvimento dos serviços pú- Nossa pesquisa se completou graças aos esforços e o apoio
blicos. Oscar Beasley me ensinou como funcionam o seguro de de Vic Taylor, Ernesto Garilao, Jose P Leviste, Arturo Al-
títulos de propriedade e o seguro de bens imóveis. Robert vendia, Alex Melchor e muitos outros.
Freedman aprofundou meus conhecimentos superficiais do mar- Os originais deste livro jamais teriam visto a luz do dia sem
xismo. Lee e Alexandra Benham foram extremamente úteis na Iris MacKenzie, que guiou o meu inglês por inúmeros rascu-
revisão de um primeiro esboço deste livro. nhos; como minha primeira leitora e revisora, Iris constante-
Este livro também se beneficiou dos convites vindos de mente me voltou em direção à clareza. Quero agradecer a minha
\
várias organizações governamentais e não-governamentais assistente Miriam Gago por nos ter ajudado a tornar os origi-
para planejar e implementar projetos em seus países visando nais dignos dos olhos de editores por todo o mundo. Porém,
a capitalizar aos pobres. A oportunidade de coletar informa- mais importante, foi sua eficiente supervisão da minha vida e
ção, analisar instituições e legislações, e de entrevistar parti- papelada, o que me permitiu passar grandes bocados de tempo
cipantes tanto do setor lega I quanto do setor clandestino longe do escritório escrevendo este livro.
virtualmente em todos os continentes, me auxiliou a tornar Por fim, quero estender minha gratidão a várias pessoas que
este livro relevante para a maioria dos países do mundo. A me ajudaram a transformar algumas boas idéias em um livro.
esta a ltura posso publicamente agradecer a associados em Meu agente Andrew Wylie tem sido uma perspicaz fonte desa-
apenas três dos países em que atualmente trabalhamos. No bedoria em como dar vida a um livro para um público interna-
Egito, devo muito aos meus amigos e homólogos no Centro cional. Nunca permitiu que eu ficasse aquém do alto padrão por
Egípcio para Estudos Econômicos, Ahmed Galai, Hisham ele idealizado. Certa vez eu tinha um manuscrito, meus amigos
Fahmy, Taher Helmy, Gamai Mubarak e suas equipes. Sherif David Frum e Mirko Lauer tornaram-se seus arquitetos; em dez
El Diwany contribuiu por todo o tempo ao trabalho do ILD dias, tomaram o rascunho existente, viraram-no de ponta-cabeça,
no Egito. Também crucial foi o apo io do primeiro-ministro e, nas palavras de Frum, "espremeram dele a água", dando-lhe
Atef Ebeid, do ministro das Finanças Medhat Hassanein, do sua atual estrutura. Para aprontar o manuscrito final para o en-
ministro da Economia Yousef Boutros Ghal e do ministro de contro com potenciais editores tive a sorte de ter Edward Tivnan
Questões Sociais Mervat El Talawi. No Haiti, minha grati- a meu lado. Um jornalista e autor cujo doutorado em filosofia o
dão pelo apoio contínuo do presidente Rene Preval e do ex- deixa tão à vontade com idéias quanto com prazos de entrega,
presidente Jean Bertrand Aristide e suas equipes. Também sou Tivnan passou cinqüenta dias comigo em Lima, reescrevendo
devedor do Centro para o Empreendimento Livre e a De- todo o livro, frase por frase.
mocracia, em particular Georges Sassine, Lionel Delatour, Bill Frucht, meu editor nos EUA, fez um trabalho magnífi-
Bernard Craan e jean Maurice Buteau. Nas Filipinas, o auxí- co preparando o livro para publicação, me auxiliando a esclare-
lio recebido do presidente Joseph Estrada e do secretário exe- cer muitos pontos, melhorando, assim, imensamente o livro .
294 HERNANDO DE SOTO

Sally Gaminara foi minha editora inglesa. Seu talento edito rial
só foi superado por sua engenhosidade e criatividade na publi-
cação e promoção deste livro.
O su cesso do produto final d eve-se a todos citados. Suas li-
mitações, a mim.

Índice

acréscimos: de construção, 106-7 algodão, tecidos estampados de,


ações de empresas, 101-2 116-7
advogados: q uestões de proprieda- Aliança da Organização Interna-
de, 229-34 cional do Trabalho sobre os
África, 49 Povos Indígenas e Tribais em
África do Sul, 30, 95 Países Independentes (1989),
agências de certidões, 77 193
agricultura, 31, 54, 97-8; extensões alimento: bancas, 40;j(l5tfood,243;
de construção, 107; reforma, preços, 122
106,206 aluguel, atraso, 77
agrônomos, 185 Allen, Ethan, 136
ajuda estrangeira, 20, 47,204 amazônica, floresta, 104
Alasca, 27; Autoridade de Terras, Americano, rio, 165
125 Amigos da Terra, 104
alcaide, 169 apartheid, 39, 95
Alernanha,Associação de Agrimen- Apalaches, montanhas, 156
sores Licenciados, 126; direitos Aquino, Tomás de, 255
de propriedade, 219; PIB, 85; arábicos, algarismos, 256, 261
regulamentações da construção, aristocratizar, 108
120; sistema Grundbuch, 68; Aristóteles, 65
Alexandria, 110 armas, 19, 41
algodão, 25, 119 arrendamentos, 77
296 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 297

assentamento, organiz.ições de, Bombaim, 87, 111 Chicago, bolsa de mercadorias, 78 contratos sociais, 190, 200-4, 204-
106 Boone, Daniel, 128 China, 18, 22, 32, 85, 94,259 8, 260-1 , 263,264; extralegal,
associações de desenvolvimento Braudel, Femand, 179, 183;As ro- Cidade do México, 40, 42, 87, 96 204-8,210,211,214,217,237
urbano, 106 das do comércio, 15; redoma de cidades: crescimento das, 32, 85, Convenção Internacional de Haia
associações de pequenos comer- vidro, 82-4 94-7, 97-9; migração para, 27, (1899), 193
ciantes, 106 Brasil, 198Javelas,39, 103-4, 105- 32,94,97-9, 113-5 convenções de fazende iros, 106
associações de pequenos fazen- 6; indústria de constru ção, classe, 225,246,247,248 Conwell, Russel, 50
deiros, 106 93; televisão, 22 Clay, Henry, 156 Cooter, Robert, 204
Assuã, represa de, 20 burocracia,33,35, 220, 222-3, 263 clubes de mineradores para rei- Cornwall, Assembléias das Minas
)
ativos, veja capital e fungíveis, Busíness l#ek, 41 vindicação de posse, 106 de Estanho de, 170
ativos Business World, 95 Coase, Ronald H.: Task ofSociety, corporações, 114, 115,1 18,120, 121
avaliadores, 77 Butler, William, 145 29,256 corrente de títulos, 213
Colbert,Jean-Baptiste, 25 corrupção,81
Bailyn, Bernard, 131 Cairo, 30, 42, 44, 46, 85 Coleman, D. C., 114, 118 crédito, 20, 52, 69, 75, 79, 102,
Baja Califórnia, 18 Calcutá, 49, 90 colonialismo, 253 148, 181,228
Bali, 187 Canadá, 194 Colômbia, 16 crime, 91
Baltimore, Lorde, 137 capital: cinco mistérios, 26-8; cria- Colombo, 19 Cristo, 19, 47
banco, 18,80 ção, 25, 80-1; dinheiro e, 56, comissões, 101 cultura, 18, 260-3
Banco Mundial, 17, 47,235 78-82; fonte, 23; incapacidade comissões comunitárias, 106 custódia de documentos, 76
Bangladesh, 86 de produzir, 19, 28; latente, comissões de beneficiários, 106
baro·ng-barongs, 95 256;morto,27,30,42-4,45-50, compra e venda, 56, 76-8, 79-80 Datta, Samar K., 231
barrios marginales, 105 52, 244, 246; origem, 62; po- compromissos, 64 Declaração Internacional dos
Barthelemy, Gerard, 95 tencial, 55, 57-9; significado da cornputadores,41, 182,185,198, Direitos Humanos (1948),
Beijing, 85, 91 palavra, 53-4, 55; valores, 87-8 235-9, 256-7 193,253
Beijing Youth Daily, The, 94 capitalismo: reações adve::sas ao, comunicações, revolução nas, Délhi, 90
Berlim, Muro de: queda, 15, 247 16-7; clube privado, 241-6; 177,210 Demsetz, Harold, 80
Berman, Harold, 201,203 sem capital, 24; vulnerável, comunidades micro-empresa- Deng Xiaoping, 85
Bethell, Tom: Noblest Triumph, 242 riais, 106 Dennet, Daniel, 257
80-1 caridade, organizações de, 26 comunidades nativas, 107 dentistas, sem licença, 40
Biddle, Richard, 155-7, 158 Carlos I, imperador, 116 comunismo: colapso, 15, 16, 82, depósito de garantia, 77
bidonvilles, 95, 105 Ceei}, Lorde, 119 245,247,248,264 depressão, 17,242
Birdsall, Nancy, 250 Centro de Estudos para o Setor F.co- concessões de terras, 147-8, 165, Derbyshire Barmote Court, 170
Blockbuster, 16, 82 nômico Privado (CPSEIS), 96 166-7 Derrida,Jacques: Grammatologie,
Bogue,Allan, 162, 164 centralização do poder, 98 contratos, 63, 76,107,260 259
298 HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL 299

Desemprego, 42, 93 ilegal de terras, 263; população, blicas, 146, 147, 158; Congres- 128, 151, 152, 154-7; lei da ter-
deserto, terras do: acréscimo de 95; propriedade,35, 37, 42-5, so, 144,146,147,148,152,159, ra, 30, 151-3, 166; lei de pro-
construção em, 107 46-7; poupanças, 20 166, 171, 172-3, 174;compra priedade, 261, 263; lei de
Deutsche Morgan Grenfell, 94 Einstein, Albert, 52, 55 de Gadsen, 143; compra da propriedade inglesa, 131, 132,
Devons, Ely, 29 Ekelund, 117 Louisiana, 143; concessões de 133-4, 153; liberdade de con-
Dhaka, 86 Eliot, T. S., 241 terras, 30, 148; concessões de trato, 144; Maine, 135, 140;
diamantes, 49-50 elites, 183, 194,195,221, 224-9, terras espanholas, 166; conces- Maryland, 135,137, 138;Mas-
dinheiro: capital e, 56-7, 78-82; 247,265 sões de terras mexicanas, 166; sachusetts, 133, 137, 140;
derivados, 259; papel, 259; re- Elisabeth I, 119 Congresso Continental, 148; Michigan, 158; migrantes, 67,
p resentativo, 259 empresários, 25, 42, 47, 49, 54, 66, Connecticut, 134; Constitui- 126-41; Minessota, 158;
direitos adquiridos, 185 72,88,90 ção, 147; crédito, 102; contra- Mississippi, 158; Missouri,
Discovery, canal, 93 empréstimos, 20, 111 tos de assentamento, 163, 172; 150, 170; Nevada, 171, 172;
doação, organizações de, 204 encargos, 76 Contrato Social, 200; Lei de New H ampshire, 135, 136;
doença, ver saúde endereço responsável, 30, 64, 68, Herdades (1862), 128, 174; "Oeste Bravio", 31; organiza-
direito de retenção, 64, 69, 71 71,74,79, 181,226 Decreto do Noroeste, 144-5; ções de mineradores, 165-73;
direitos de uso, 64, 77 endereços, ver endereço responsá- Decreto de Terras (1785), 147; Oregon, 158; ouro, 67-8, 127,
dívida, 6, 64, 75, 77, 227 vel Departamento Geral de Terras, 161, 165-6, 169, 172; "país de
divisão do trabalho, ver trabalho escolas, ver educação 147, 166; direitos de cabana, Terceiro Mundo", 25;
Domesday Book, 76,237 escravidão, 253 138, 142; direitos do milho, Pensilvânia, 135,137,141,145;
Dow Jones, 16, 127 escritura, 76 138, 142;direitosdeocupação, pioneiros, 25, 31; população,
drogas, tráfico de, 86,228 Espanha: colônias, 18, 46, 116, 154, 158, 167, 173; direitos 156, 174;possedetaxasimples,
Duvalier, "Papa Doe", 46 122,170,194,198,242 tomahawk, 138-9, 142;domínio 144; preconceito racial, 168·'
Estados Unidos da América: ajuda econômico,174;donosausen- preço de terras, 144, 147;
economias clandestinas, 180, 185- estrangeira, 20; Alabama, 158; tes, 166; escolas públicas, 158; preempção,141-3,146-7,159-
86, 244 Arkansas, 158; associações de empresários ilegais, 127; estra- 60, 165-6, 167, 173;registros
economia comercial, 55 reivindicação de posse de ter- das de ferro, 149; Flórida, 67, das reivindicações de posse de
economias de escala, 102, 261 ras, 160, 161-5; Califórnia, 18, 143; gangues, 127; Guerra Ci- terras, 167-8; regulações dos
Economist, The, 95, 111 67, 150, 158, 161, 165, 171, vil, 50, 171; guerras contra os mineradores, 161; Revolução,
economistas, 185 172; Carolina do Norte, 143; índios, 149; guerra contra o 136,138, 139-41, 142, 148;sis-
educação,99,204,221 , 227 clubes de reivindicação de pos- México, 143, 148; guerra de tema de propriedade, 194; sis-
Egito, 243, 271; burocracia, 101, se de terras, 167; Código Co- 1812, 148, 157; ilegalidade, tema legal pluralista, 153;
263; câmara superior do con- mercial Unificado, 217; 127, 128; índios, 135,141,145, território Noroeste, 144-5;
selho, 244; moradias "semi- códigos penais, 158; Colorado, 197; Iowa, 158, 161, 163, 164; ocupantes de terras, 68, 125-
formais", 109- 10; ocupação 171; Comissão de Terras Pú- Kansas, 157, 158; Kentucky, 87; sucesso, 19; Suprema Cor-
HERNANDO DE SOTO
O MISTÉRIO DO CAPITAL 301
300

te,154,155,156,157,173;Te- Friedmam, Milton e Rose, 125 Haiti, 270; burocracia, 101; eco- 4; reforma de propriedade,
souro, 197-8; Vermont, 135, Fujimori, Alberto, 224 nomia, 108; investimento es- 192-3; Registro de Terras, 125,
136; Virgínia, 128, 136, 139, Fundo Monetário Internacional, 17 trangeiro, 46; propriedade; 126-7; Restauração, 116
141, 142, 151,155,219; Wis- fungíveis,ativos, 71-3, 79, 83, 89, 35, 38, 45, 46, 105, 214-6; inquietação, ver lei e ordem
consin, 158; xerifes, 140 106,184, 198,210,219,245, poupança, 20 integração de ativos, 65-8, 83, 87-
Estatuto dos Artífices, 117-8 255,261 Halifax, 119 8, 92, 123-4, 125, 126-7,187,
Hardenberg, 219 191-3
estradas, 32
Gaddafi, Muammar, 110 Heckscher, Eli, 115, 116 Internet, 16,243
Estônia, 18
gângsteres, 86 Heinsohn, Gunnar, 80 instabilidade política, 244
Ethernet Standard, 88
expectativa de vida, 32, 250 garantias, 20, 21, 51, 52, 64, 102, hipotecas, 21, 30, 51, 52, 64, 71, instinto de rebanho, 99
109 77, 102, 259; corretores, 77 Institute for Liberation and De-
extorsão, 181
extralegalidade, 41-2; governo, Garcia, Alan, 224 Hobbes, Thomas, 199 mocracy, 186
Gates, Bill, 260 Hoffer, Peter Charles, 134 integração,73-6,85
108-9
gecekondus, 94 Holanda, 122 investimento, 80; estrangeiro, 17
e>ctremismo político, 86
Georgia, 85 Huber, Eugen, 202,219 Irã, 247
globalização, 17,221,241-6,250, huguenotes, 122 Itália, 122
falências, 77
254,265 Hume, David, 190, 211
Fass, Simon, 108
Golconda, 50 Jacarta, 87
Jastfood, 243
bairros pobres, 40, 43, 86, 95, 96- Goldsmith, Oliver, 115 Igreja Católica Romana, 193 Jackson, Andrew, 157-8
7, 106,222, 225;favelas, 39, Gore, 169 imóveis, v~a propriedade Japão: ilegalidade, 127; integração
103-4, 105-6; migrantes, as- governo, extralegal, 109 incas, 24, 46 de ativos, 67, 68; baixa, 17; sis-
sentamentos. 107-8 grego, alfabeto, 261 Índia, 116 tema de propriedade, 130,194,
federações de transporte, 106 Green,John, 155-7, 158 índios norte-americanos, 135, 211; sucesso, 18; Toki Bo, 125
Filipinas, 33, 36, 45, 46, 0 5, 268 grundbuch, sistema, 68 141,145,197 Jefferson, Thomas, 128, 152, 153,
Gruter, Margaret, 205 Indonésia, 87, 111,187,247 219
Florença, 83
Ford, Arnelia, 134-5, 136, 137 Guayaquil, 85 indústrias caseiras, 40,261 Jennison, 173
Foreign Alfairs, 262 Guerrero, Antonio Montiel, 96 Inglaterra: awa.1io aos pobres, 113- Jesus, 19
formalização, 197,199,224,226 Guerra Fria, v~a comunismo: co- 4; comércio de lã, 116; criação Johnson, Richard M., 156
Forrester, Viviane: O horror econô- lapso da propriedade, 198; cerca- Johnson-Laird, Philip N ., 79
Gustavo Adolfo, rei, 119 menta de propriedade, 198; juntas residenciais, 106
mico, 17,248
Fórum Econômico Mundial, 248 Estatuto dos Artífices, 117-8; Justiça, 109
Foucault, Michel, 62, 257 habitação; organizações, 66; bai- imigrantes, 123; impostos,
França, 20, 116, 122; empresários, xo custo, 225; cooperativas 120- 1; lei,30, 131-2, 153, 155, lã,116,119
25; Revolução, 116,120,227 privadas, 106 209-10,212-3;migração,113- Lacy, 170, 171
O MISTÉRIO DO CAPITAL 303
HERNANDO DE SOTO
302

Milken, Michael, 22 organizações de fechamento de


Ladrões, 123 Malásia, 16
Manila, 42, 43, 45, 87 Miller, George A, 79 venda, 76-7
legalidade, obstáculos à, 33-39 Organizações de pequenos negó-
mapas, 185, 198,207,234-9 mobilidade para cima, 97
lei: de propriedade, 25, 27-8, 179-
marca registrada, 86, 230 moeda: câmbio, 103; estabilidade, cios, 106
239 ; EUA, 20, 151-3 , 166, organizações de vilas, 107
261 , 263 ; e}..-tralegal, 212-8; Marshall,James, 165 18,82,220
Organização Internacional do
Inglaterra, 30, 131-2, 133, Marx, Karl, 26, 53-5, 81, 246-53, morgadio, 219
Trabalho, 85
134, 153, 155,209-10,212-3; 258 mórmons, 165
Organização Mundial do Comér-
Japão, 211; Mestbeschmutzer, mascates, 115, 123 mortalidade infantil, 32, 98
Massachusetts Bay Company, 134 cio, 17,217
232; natureza da, 183-4, 185, M uskingum, rio, 145
Ortega y Gasset,José, 242
205; coercitiva, 197-8, 199 McBreyer, 169 Mussel Slough, ver San Joaquin,
ouro,67-8, 127,161, 165-6, 169,
lei de Metcalfe, 88 McDonald's, 16, 82 vale de
172
"lei do povo", 190 Mendel, Gregor, 23
lei e ordem, 108-9, 227-8, 243-4, mercados, 19 N ações Unidas, 20,250
livre mercado, 16, 17-8, 81-2,246 Paris, 116
264-5 Nairóbi, 87
mercado negro, 41-2, 85, 92-3 , 149 patentes, 19,86, 101,147,230,260
lei coercitiva, 197-8, 199 NASDAQ,49
Payne,John C., 192, 212-3
lei romana, 77 , 80-1 , 202, 205, mercadorias falsas, 120 National Geographic, 93
pedintes, 123
209-10, 211,232-3,261 mercantilismo, 232 New York Times, The, 16
Penn, William, 137, 141
Mestbeschmutzer, 126, 185 Newsweek, 95, 110,248
Leoni, Bruno, 209 Peru,45,92, 170,180,205,269;
letras de câmbio, 230 metadireitos, 126, 185 Nike, 241 burocracia,33-5, 221-3, 263;
levantamento de terras, 185, 198, México: Baja Califórnia, 18;banios Norwich, 118 Congresso, 224; Constituição
marginales, 105; Câmara do Nova Espanha, 170
235-9 (1824), 194; formalização,
Lévi-Strauss, Claude, 260 Comércio, 40; guerra norte- Nova York, 110, 145 198; fracasso da lei coercitiva
americana, 143-4; PIB, 96; Noyes, C. Reinold, 184, 191 '
Líbia, 110 197; haciendas, 196; indústria
Lima,33,42,46, 111,222 Instituto Nacional de Estatís-
Nugent,Jeffrey B., 231 de construção, 93; investi-
Limerick, Patricia Nelson, 148 ticas, 40-1; insurgência, 16;
mento estrangeiro, 46; mora-
migrantes, 95-6; pobreza, 19
Lippman, Walter, 242 ocupantes de terras, 24, 86, 182- dias de baixa renda , 105·'
Llosa, Mario Vargas, 224 microônibus, 41 3, 206, 207-8; Africa do Sul , propriedade, 43, 44, 45-6;
migrantes, 85-7, 88-9, 97, 206,
Locke,John, 190,201 95; Egito, 263; EUA, 31, 67- propriedade extralegal, 103·,
210-1, 225; contrato social e,
Londofio,Juan Luis, 250 8, 125-78;Peru,263 pueblos jóvenes, 105; reforma
Lorenzo o Magnífico, 83 207 Europa, 112-3; extralega-
oficinas, 85, 86, 91 agrária, 196-7; ocupantes de
lidade, 106; hostilidade a, 99-
Los Angeles, 90 Ohio, rio, 145 terras, 263 ; subornos e co-
102; internacional, 89, 122,
Organização de Avaliações Técni- missões, 101, 181-2; títulos
132. ver também cidades e ocu-
máfias, 181,186,264 cas (CTfP) (Peru), 111 supletorios, 195
Mahathir Mohamad, 16 pantes de terras
HERNANDO DE SOTO O MISTÉRIO DO CAPITAL
304 305

programas de rnicrofinanciamen- representação do valor, 72-3, 78,


Philbrick, Francis, 128 , . Searle,John, 257
PIB, 104-5; Alemanha, 85; Mexi- to, 86 79-80, 190-1 , 214, 21 6, 243-
, · 230 Seattle, protestos em (1999), 17
co, 96; Rússia, 85, 91, 250; prornissona, nota, . 4, 254, 255-7, 258-9; inimigos seguradoras de títulos, 77
propriedade: capital e, 51, 78-9; d1- da, 258-60; extralegal, 214-7;
Ucrânia, 85 segurança, 63, 70, 77
reitos de,20, 98, 102,205,244- dinheiro, 258-9
pilhagens, 253 segurança, padrões de, na cons-
5; efeitos, 61-78; extralegal, repressão, 115
Pipes, Richard, 227 trução, 86
Pisani, Donald, 161, 166 42_5, 46-9, 103-4; natureza da, responsabilidade limitada, 102, seguro, 101, 181, 260-1
l83-4; posse de, 23, 33-9, 58- 181,261
pirataria: de livros, 103 _ Sendero Luminoso, 46
planejadores urbanos, 18::, 9; potencial, 57-9, 63-5, 256; Restauração, 18 Senegal, 110
planejamento ambiental, 227 sistemas de, 59-78, 83-4, 88 , Reuters, 110
serviços médicos, ver saúde
92, 112, 126, 129-30, 254-8. ver Revolução Industrial, 31-2, 53,
Platão, 201, 256 serviços públicos, 21, 40, 41,
também representações de valor 87,92, 112,120,123,192
Polany, Karl, 17 52, 64, 75 , 86, 108-9,204,
protestante, ética de trabalho, Rousseau,].-]., 190,259
Popper, Karl, 257 225-6
260-1,262 royalties, 101
po b reza, 30 , 42 , 92·• aliviação da, Shinn, Charles Howard, 169
92-3; crescimento, 249-50; pueb/osjóvenes, 105 Rússia: direitos da terra, 4 1; ex- Simpson, S. Rowton, 231-2
imagens, 49-50 pectativa de vida, 250; Igre- Sismondi, Simonde de, 55
população: cidades, 32; Egito, 95; QI, 18 ja Ortodoxa, 24; PIB , 85, sistema geográfico de informação,
EUA, 156, 174; inglesa, 87; queda (1998), 46 91, 250; queda do comunis- 234-9
Terceiro Mundo, crescimen- mo, 15; Revolução, 120, Smith, Adams, 115, 249; capital,
to, 103 rádio, 97 227, 242; sofrimento eco- 53, 81; dinheiro, 56; divisão
Port-au-Prince, 32, 42, 43, 44, 45, ranchos, 105 nômico, 16; de trabalho, 87; Wealth ofNa-
85,95 Rapaczynski, Andrzej, 199 tions, 20, 25, 26, 54
Posner, Richard, 200 Reading, 133 salário,89,98, 113,117,122 Soros, George, 249
posse, ver propriedade, pos.se de rebanho,53 Sanchez, 18 Steiger, Otto, 80
potencial, ver capital e propnedade recessão, 17 San Francisco Chronicle, The, 150 Stein, Peter, 219, 233
poupança,20,26,27,264 reconhecimento de firmas, 77 SanJoaquin, vale de, 150 Stewart, Donald, 104
Powelson,John P.: Story ofLand, redoma de vidro de Braudel, 82-4 São Francisco, 165 Story,Joseph, 24, 152
217 registro de terras, veja registros, São Paulo, 87 subcapitalização, 40, 44, 52, 182
prédios históricos, 107 sistema de saúde, 32, 91, 98, 227 subornos, 101,181
privatização, 16, 17, 82, 220, 250 registros, sistema de, 60, 61, 63, Saxônia, 170 sucessão hereditária, 261
processo de capitalização, 186, 65, 71, 77, 147-8, 182,195, Say,Jean Baptiste, 55 Suez, Canal de, 20
188,189 198,207,213,230,231, 234 - Schumpeter,Joseph, 80 Suécia, 119
produtividade, baixa, 88 9,255-6,260-1 Schwab, Klaus, 248 Su~a,18,68,202,219
produtividade, sistema de, 118 Reid,Joseph, 121 Schwartz, Stephen, 150
306 HERNANDO DE SOTO

Tailândia, 198 de propriedade, 100. M?r tam-


Tatter, 165 bém Rússia
taXação,21,64,117-8,120-1,180, urbanização, 177
181,227
ta.XaS, 64, 227 Valence, 117
ta.XaS de câmbio, 263 valores e ações, 16, 20, 46, 47, 49,
tecnologia de informação, 87, 60,64,101-2, 181-2,230,261
177, 234-9 venda, ver compra e venda
telecomunicações, 88 vendedores de rua, 41, 86-7, 96,
Thurow, Lester, 242 115
título, 22,25, 59, 60-1, 63, 65, 76, Venezuela, 15, 39, 105
132, 171, 195, 201, 203-4, viagem: facilidade, 97-8
207,222,226, 228-9, 230,
235,251 ; corrente de,213; in-
Xangai, 87
completa, 107; Líbia, 110; sis-
temas integrado de, 22
rMil/ Streetjournal, The, 104
Tóquio, 27, 90
'Washington, George: ''bandidos",
Tollison, 117
24-5,26,139,142-3;ocupan-
Torrens, 231
tes de terras, 145
Toub;i, 110
Washington, tumultos (1999), 17
trabalho: divisão de, 54, 88, 92,
Wentworth, Benrúng, 136
243; produtividade de, 19
White, G. Edward, 175
tradição oral, 216
transações, ver compra e venda Wilson, Charles, 122
transporte, 35, 40, 96, 103, 109 Winthrop,John, rv; 133
Turquia, 86, 94 Wittgenstein, Ludwig: Tratactus,
51
Ucrânia, 22, 85 Wood, Gordon, 25, 175
Ullen, Thomas, 204
União Européia, 217 Zakaria, Fareed, 262
Urúão Soviética: colapso do co- Zâmbia, 86
munismo, 41, 102; sistemas Este livro foi composto na tipologia
Aldine 401 em corpo 11/15 e impresso em
papel Chamois Fine 80g/m2 no Sistema Cameron
da Divisão Gráfica da Distribuidora Record.

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