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Tive vontade de ser

Ou “Sementes de girassóis” ou “Girassóis na cerca”?

Adaptado do original de Hilda Hilst, O Rato no Muro

Personagens
Cecília
Clarissa

(Escuro, penumbra. Parede ao fundo tem algumas manchas negras, como as


de um incêndio. Os adereços cênicos são um banco pequeno, uma janela
móvel (armação de janela – moldura – com pedestal móvel) e, através dela,
pode-se ver um muro imaginado. Cada uma das personagens possui uma
caixa/baú pequeno com adereços pessoais. Para iluminação podem ser
utilizadas lanternas/refletores movidos manualmente.)

CENA I

(Na primeira cena Clarissa e Cecília estão de costas uma para outra, em pé, e
fazem pêndulo com movimentos para frente e trás, dobrando o corpo. Clarissa
fala quando está com o corpo para o lado de baixo e Cecília no meio do
percurso.)

CLARISSA - Nós somos um. Nós somos apenas um. Um só rosto. Um.
(pausa) De todas as nossas culpas, perdoai-nos. De todas as nossas culpas,
salvai-nos. De todas as nossas culpas, esquecei-vos.
CECÍLIA - (tom objetivo e severo) Hein? Como disse?
CLARISSA - (tom cantado e agudo, em tensão crescente) Tentai esquecer-
vos. De todas as nossas culpas, entristecei-vos.
CECÍLIA - Hein? Como disse?
CLARISSA - (tom mais agudo, tensão crescente) Alegrei-vos, para que nós
nos esqueçamos de todas as nossas culpas.

(Impulsionam-se, uma para cada canto lateral do palco. Clarissa à esquerda,


ao chão, Cecília à direita em pé.)

CECÍLIA - São muitas?


CLARISSA - Muitíssimas.
CECÍLIA - (tom objetivo e severo) Quantas?
CLARISSA - Tan... Tas. Tan... Tas. Tan... Tas.
CECÍLIA - Diga uma delas. Uma de suas culpas de hoje.
IRMÃ A - (levantando-se) Hoje eu olhei para o alto. Havia sol. Eu me alegrei.
(Pausa longa) Hoje eu olhei para baixo. Havia só terra e sombra. Eu me
entristeci. Hoje eu olhei para dentro de mim. Havia sangue. Eu tive medo.
(displicente) Hoje o gato me arranhou. Eu o matei, com aquele veneno para
cupins. (angustiada) Hoje eu não tive para quem dar o meu pão, nem o leite.
Ah,procurei-o tanto, procurei-o tanto! (seca) E por isso me esqueci de plantar
os girassóis na cerca. (chora) Hoje o dia foi tão longo... Olhei o pássaro que
pousou na janela. Tive vontade de ser. Ah, não sei, não sei. Vivi pensando em
comer, como sempre, é uma coisa do meu ventre. É doença. (grave) Hoje eu
não tenho queixa de mim.
CECÍLIA - (tom angustiado) Eu pensei na minha pobre irmã o tempo todo.
Queria quetodas as minhas culpas não fossem minhas e sim...
CLARISSA - (em cochicho) Não lavei o pátio, como devia. E depois, que
saber? Aquelas manchas onde eles pisam nunca saem.
CECÍLIA - (severíssima) Basta, basta.

CENA II

(Cecília sentada no canto superior do palco, à esquerda, posição “nobre”, como


se lesse um livro. Clarissa no canto inferior direito, movimentos repetitivos de
limpar o chão.)

CECÍLIA - Mas tu serás assim tão velho? E tão triste? E eu poderia ainda te
cantar como um dia te cantar? Se algum irmão de sangue, de poesia, mago de
duplas cores no meu manto, testemunhou seu anjo em muitos cantos eu, de
alma tão sofrida de inocências, o meu não cantaria? E antes deste amor, que
passeio entre sombras! Tantas luas ausentes e veladas fontes! Que asperezas
de tato descobri nas coisas de contexto delicado. Andei, em direção oposta aos
grandes ventos. Nos pássaros mais altos meu olhar de novo incandescia.
JUNTAS – (Cecília em continuidade ao texto, Clarissa zombeteira, em
uníssono, mais baixo) Ah, fui sempre a das visões tardias! Desde sempre
caminho entre dois mundos, mas a tua face é aquela onde me via... Mas, tu
serás assim tão velho e tão triste?
CLARISSA - Por favor, por que você não inventa, meu Deus, uma culpa
qualquer, um pensamento tolo, qualquer coisa? Eu não sei o que inventar... E
depois... Eu não consigo me esquecer... deles, você não entende? Deles. Eu
não sei mais o que inventar.
CECÍLIA - Mas o que adianta você se lembrar, nós nos lembrarmos? Eles se
foram. Foram embora. Não há mais nada o que fazer. Ficamos nós, neste
lugar.
CLARISSA - E havia o gato. Ele morreu agora. Tudo faz tão pouco tempo...
CECÍLIA - Faz muito tempo, meu Deus! Já faz muito tempo! Muito tempo.
CLARISSA - E por que você acha que eles não podem voltar?
CECÍLIA - Porque é uma coisa evidente. Eles levaram todos. Você acha que
não está bem claro? Que se nós ficamos, era para ficarmos?
CLARISSA - Mas para que? Por quê? Não tem sentido algum.
CECÍLIA - Mas você pode afirmar isso? Deve haver um sentido. Ah, aquele sol
lá fora, só aquele sol. E aqui tem uma árvore, tem água, tem alimento. Onde é
que você quer ir? Então você acha que é possível que eles tenham se
esquecido de alguma coisa?
CLARISSA - E por que não? (aponta as manchas) Olha, olha!
CECÍLIA - O quê?
CLARISSA - As manchas.

(Cecília movimenta a iluminação do palco para as manchas)


CECÍLIA - São as manchas de sempre. Você sabe. Foi na noite.
CLARISSA - Não são as mesmas. Elas crescem a cada dia. Você não vê?
CECÍLIA - Não, não vejo. Por que é que você insiste? (pausa) Nós faremos
sacrifícios.
CLARISSA - Mas sacrifícios pra quê? Não há mais para que, nem por que
fazer sacrifícios. Então você mesma não disse que não há mais ninguém?
CECÍLIA - Mas talvez me engane. Alguém certamente deve ter ficado, não é?
E se fizermos tudo para não pensarmos mais nisso, hein? Por favor... por favor.
CLARISSA - Você viu quanto tempo eles levaram... e quantos eram... O céu...
Coalhado... Horas... dias, dias, que noites! Haverá alguém além de nós?
Alguém? E será por esse ou por essa que eu farei tanto sacrifício? Vem
comigo, porfavor. Vamos embora. Quem sabe se eles estão colhendo gente
ainda e nós não vemos?
CECÍLIA - Ainda que haja uma só criatura, devemos ficar... E se eles estão na
colheita ainda, virão até nós um dia. Uma noite?
CLARISSA - (rude) Você não quer me ajudar.
CECÍLIA - Mas você não poderá jamais sair daqui. Nem eu. Há o muro.
CLARISSA - Tenho certeza que nós arranjaremos uma saída.
CECÍLIA - Uma saída? Você sabe que é impossível. Há o muro. E além do
muro existe a cerca. A cinco metros do muro.
CLARISSA - Mas a cerca não é frágil?
CECÍLIA - Mas o muro é altíssimo. E nem tem porta.
CLARISSA - Deve haver cordas. Nós acharemos cordas. As do poço!
CECÍLIA - Mas não vão até a metade do muro.
CLARISSA - (rude) Você mente. Mentira.
CECÍLIA - Mas por que você acha que eu minto?
CLARISSA - Porque nenhum muro pode ser tão alto, nenhum poço tão
profundo.

(Clarissa vai para a janela. Cecília se aproxima também, aos poucos.)

CLARISSA - Demorou tanto tempo, tanto tempo! E daqui, você pode ver as
enormes feridas que ficaram nas montanhas de pedra. Vem. Olhe. O muro é
tão alto, e as pedras são tão lisas. E tenho fome. E sede. E o alimento está
acabando. Não tem uma rosquinha? Tenho tanta fome.
CECÍLIA - Não, não tenho.
CLARISSA - Mas agora não temos para quem dar o pão e o seu leite. Antes
era para o gato. Ele morreu... foi maldade, mas ele morreu.

(Cecília puxa Clarissa para perto, ajoelha-se e a deita sem seu colo, fraternal.)

CECÍLIA - Sinto muito, mas é verdade. Não tenho mesmo nada.


CLARISSA - Está tão escuro aqui... Oh... mas você está tão pálida,
pobrezinha. Está cansada. De tanto pensar.
CECÍLIA - Neles, não é?
CLARISSA - Eu também não deixo de pensar neles, nunca. E não sei você
reparou...
CECÍLIA - O quê?
CLARISSA - O hálito.
CECÍLIA - O hálito?
CLARISSA - É... O que saía de dentro... Era luminoso, quando eles moviam os
lábios.
CECÍLIA - Eles moveram os lábios?
CLARISSA – (Tenta desvencilhar-se, mas é puxada para o colo de Cecília)
Não... Bem, sim... Sim, moveram os lábios.
CECÍLIA - Mas quando?
CLARISSA - Quando tocaram as pedras do muro.
CECÍLIA - Tocaram as pedras do muro?
CLARISSA - Sim, sim, tocaram as pedras do muro.
CECÍLIA - Mas quando?
CLARISSA – Ah, não sei... A minha vista, os meus olhos... Hoje de manhã
havia sol e eume alegrei, mas agora...
CECÍLIA - Agora já é noite.
CLARISSA - Eu sei, eu sei, mas...
CECÍLIA - Mas você quer sempre o sol, não é?
CLARISSA - Você me compreende bem. Não sei se é a memória que nos
confunde, mas havia tanta luz onde eu nasci.
CECÍLIA - Não sei se era tanta, tanta luz, porque depois... (olha cautelosa para
os lados) deles, o que nós vemos ainda é luz? Primeiro me vêm à lembrança
certas águas... o rio, o rio enorme da infância. Um sol que cegava todos. A
mim, não. E muitos diziam só ela é que não põe a mão sobre os olhos, um dia
certamente ficará cega. Mas isso não aconteceu. Vejo perfeitamente, só que à
noite os olhos doem. Eles precisam da luz do sol, e por isso, para não
incomodá-los, fico assim de olhos bem abertos... sempre há alguma luz ao
redor, não é mesmo?
CLARISSA – Se há não consigo lembrar-me, com essa fome que estou.
CECÍLIA - Você está com muita fome?
CLARISSA - Muita, muita. Por quê? Tem alguma coisa aí?
CECÍLIA - Se eu tivesse... mas não... (levanta-se, abruptamente. Pega a maçã
em sua caixa/baú) Ah! Tem sorte, pois agora me lembrei desta maçã. Tome.
CLARISSA - Uma maçã? Verdade? É verdade... mas onde foi que descobriu?
CECÍLIA - Na cozinha... de repente. Estava um pouco escondida, perto...
CLARISSA - (interrompe) Perto do remédio dos cupins?
CECÍLIA - Mas que ideia fixa!
CLARISSA - O remédio dos cupins é para os cupins. E para o gato também...
CECÍLIA - Mas você não é cupim nem é gato. Coma, coma.
CLARISSA - Tenho medo... Não teriam posto o remédio na maçã?
CECÍLIA - Meu Deus, desde Adão que não vejo tanto medo de maçã!
CLARISSA - Também devia ter medo.
CECÍLIA - Deles? Não tive medo nenhum. Você os viu bem?
CLARISSA - Como poderia deixar de vê-los?
CECÍLIA - Mas viu assim? Os olhos tão abertos?
CLARISSA - Ah, nunca meus olhos se alegraram tanto. Não vi exatamente
quando eles chegaram, mas depois, quando tocaram o muro... Aí eu vi bem.
CECÍLIA - Mas eu não vi, eu não vi!
CLARISSA - Não é possível. Acho que todas viram. Eles tocaram sim. E
moveram os lábios. E de dentro da boca saia uma corda de luz. Não sei se era
uma corda, mas era bem luminoso.
CECÍLIA - Mas porque será que eles tocaram o muro?
CLARISSA - Ninguém sabe. Talvez pra ver como era. O tato. A temperatura.
CECÍLIA - Da pedra?
CLARISSA - Se você estivesse no mundo deles, também não gostaria de tocar
o muro deles?
CECÍLIA - Por quê?
CLARISSA - Para vencer o medo. Você também tem medo?
CECÍLIA - Sim, eu também tenho medo.
CLARISSA - E por que...
CECÍLIA - (interrompe) Porque hoje eu vi terra e sombra. Fui junto do muro.
CLARISSA - Junto do muro? Você chegou até o muro?
CECÍLIA - Não. Agora existe a cerca. Mas havia a sombra do muro. É quase a
mesma coisa. E perto da cerca a terra estava revolvida, por causa dos
girassóis que serão plantados amanhã. Esqueça o muro.
CLARISSA - Por que você quer que a gente esqueça do muro? Diga!
CECÍLIA - Mas é tão claro! Antes... Quando (olha para os lados) eles ainda não
tinham vindo, a gente quase encostava no muro. Agora... O que você está
fazendo?
CLARISSA – (calçando botas e procurando alguma coisa – sementes de
girassol) Vou ver os girassóis.
CECÍLIA - Mas não há girassóis.
CLARISSA - Eu sei. Mas vou ver se as covas estão prontas para os girassóis.
CECÍLIA - Isso não é o seu trabalho.
CLARISSA - Mesmo assim, o que é que tem? Sempre gostei de ajudar.
CECÍLIA - Ajude-se a si mesmo. Olhe cada vez mais para baixo, mas não
neste lugar.
CLARISSA - E será que eu posso perguntar por quê?
CECÍLIA - Não deveria, mas posso responder. Se ficar por perto terá vontade
de colher as sementes dos girassóis quando eles crescerem.
CLARISSA - E isso teria muita importância?
CECÍLIA - Lógico. Olhando para o alto, na hora de colher as sementes, você
veria o muro.
CLARISSA - Nós sempre veremos o muro. De qualquer lado que se olhe... E
mesmo se eu não colher as sementes, outros hão de fazê-lo...
CECÍLIA - E basta. Afaste-se daí. (Clarissa desiste dos girassóis)

CENA III

(Cena dinâmica, rápida, com caminhada com quebra de rota por alguns
instantes. Arrumam o palco para a próxima cena. Banco em foco de luz, caixa
de Cecília próxima. Na caixa tem pedaços de panos, como vendas. Cecília
amarra Clarissa no banco ao longo da cena. No final terá olhos, ouvidos e boca
tapados – no sentido de ser calada.)

CLARISSA - Porque eles tocaram o muro? Nós vimos os seres.


CECÍLIA - É preciso esquecer... mas vimos. Mas não perto do muro.
CLARISSA - Talvez porque para você o muro é maior do que devia? E para
mim? Não perco jamais a esperança, já disse... Se houvesse cordas...
CECÍLIA - Ainda que as houvesse...
CLARISSA - Por que a senhora fala assim? Não vê que eu sofro? Que desejo
tanto ir além do que me prende? Hoje olhei para dentro de mim. Havia sangue.
Tive medo.
CECÍLIA - E, se é por dentro, como saberia?
CLARISSA - Mas é a mesma coisa. Então não vê? Imagine... as nossas coisas
de dentro são tão complicadas. Milhares de ramificações. Às vezes até sem
sentido. A luz, o sol é que nos faz ser assim como somos.
CECÍLIA - Aquela luz me fez mal... Quando eles vieram, na noite, foi minha
pior noite. Mas eles já se foram, basta!
CLARISSA - Aquela noite tudo em mim pedia complacência. E eu tinha muito
menos fome, muito menos, lembro-me perfeitamente. E sabe? Quando fechei
os olhos, naquela noite, não senti muita dor. Antes deles aparecerem estava
justamente pensando que não era só terra e sombra o que existia. Mais fundo,
mais fundo... Existia outra coisa. A terra não é só o que se vê. Mas eu não sei
como chamar isso que eu sentia.
CECÍLIA - Seria fadiga? Será que nós estávamos tão fatigadas e por isso é
que vimos?
CLARISSA - Nunca! Eles deixaram as manchas... Ali. E no pátio! Eles tocaram
o muro. Moveram os lábios. Tinham o hálito luminoso. Eles... sangravam.
CECÍLIA - Sangravam?!
CLARISSA - Sim! Essas manchas na parede e aquelas outras no pátio são
manchas de sangue.
CECÍLIA - (Em pânico) Mas não é possível... são tão escuras.
CLARISSA - É que já faz muito tempo. É bem possível que seja de sangue.
Você acha que eles tocariam o muro impunemente? Já não sabia que as
manchas eram de sangue?
CECÍLIA - (olhando-se e olhando as manchas com horror) Não... É sempre
muito difícil a gente se limpar. É sempre muito difícil. Muito.
CLARISSA - Por quê?
CECÍLIA - Porque é inútil querer desfazer-se de todas as culpas.
CLARISSA - Não fale assim.
CECÍLIA - Não é preciso carregá-las... Sempre. É como alguém que está
habituado acada dia com seu feixe de lenha sobre os ombros. Experimente
tirar. Esse alguém andará sempre curvado.
CLARISSA - Nada disso é verdade.
CECÍLIA - Você não vê? Eu vi muitas iguais a vocês. Algumas... Se tocavam,
assim, assim, como se fosse possível descobrir pelo tato as invasões do
tempo. E outras choravam. Uma chegou a dizer “eu vou matar esse meu corpo
que só conhece a treva”. E por aqui, no pescoço, ela ficou negra.
CLARISSA - Por quê?
CECÍLIA - Porque ela quis conhecer o seu próprio desgosto. E é sempre aqui,
(passa a mão no pescoço) nessa faixa do medo, que a palavra tenta explicar-
se e sair.
CLARISSA - Ela falava?
CECÍLIA - Falava e chorava muito. Aqui ela discursava. E tudo o que ela falou
eu agora tento engolir.

(Foco de luz é tirado de Clarissa, que desamarra-se na penumbra. Cena física


de Cecília??)

CENA IV

CLARISSA - Você ouviu?


CECÍLIA - Talvez seja um rato.
CLARISSA – (culpa) E agora não temos mais um gato.
CECÍLIA - Você fez bem em matá-lo. Ele movia-se com muita liberdade.
CLARISSA – Não há mais nada para tomar conta do muro agora.
CECÍLIA - Ainda que consigamos tocar o muro, não adianta. Ainda que
existam ótimas fotografias... deles. E relatórios. E monografias. E estatísticas
convincentes. Auditórios repletos. Conferências. Pesquisas. Trocas. De órgãos
vitais. Substanciosas.
CLARISSA - (apontando a cabeça) O tálamo, o hipotálamo.
CECÍLIA - Devassado.
CLARISSA - Compreendido.
CECÍLIA - (aponta a cabeça) A zona do silêncio.
CLARISSA - Em mil tarefas exatas...
CECÍLIA - Ainda assim.
IRMÃ D - Não adiantaria...
CECÍLIA - Um outro muro maior se ergueria. (pausa) Dizem que o rato tem
dois tons.
CLARISSA - Dois tons? Como é isso?
CECÍLIA - Um é sobre a pele, escuro e modulado, conforme suas heranças e
seu patriarcado. Às vezes é branco, embora isso seja raro. Mas nem tanto... Se
quiser ver um rato branco, procure na limpeza. Homens do mesmo tom
descobrem as suas vísceras com tais delicadezas, que é preciso parar para
espiar tanta pesquisa e sutileza.
CLARISSA - Então é o rato que ajuda o homem a ser mais homem?
CECÍLIA - Ou menos realeza. (pausa)
CLARISSA - (pensando) O rato tem dois tons?
CECÍLIA - Um outro mais fundo uma ânsia de ser vertical e agudo. A senhora
nunca viu um rato sobre o muro... naquela pedra lisa?
CLARISSA - Não... mas talvez fosse porque havia o gato.
CECÍLIA - Nem por isso... E se o rato chegasse até lá, na manhã ou no escuro,
não poderia libertar-se?
CLARISSA - De qualquer forma não seria sempre um rato?
CECÍLIA - Seria um rato sobre um muro. Olhando para o alto, pode ver o mais
fundo. E olhando para baixo.
CLARISSA - Você quer dizer para dentro de si mesmo?
CECÍLIA - Assim como eu tenho feito sempre.
CLARISSA - Pode ver sangue. Mas no alto, saberá resistir.
CECÍLIA - (repensando) De qualquer forma, ser rato é primeiro, sendo branco,
ficar entre tramas de alguns homens de branco. Segundo ser escuro e moldado
segundo suas heranças e seu patriarcado, mas tentar subir, subir sempre.
(sorrindo) Imaginar que é homem e nunca desistir.
CLARISSA - (fazendo um gesto vertical, com a mão distendida) Assim?
CECÍLIA - Sem limites. (na janela) Devíamos ter pensado nisso antes. Muito
antes.
CLARISSA - No quê? No rato?
CECÍLIA - Não. Em olhar pela janela e sossegar. Tivemos tanto sobressalto
quando eratão simples olhar.
CLARISSA - Parece simples... parece simples. Eles eram quase assim. Mas
de hálito luminoso. Como uma corda. E tocaram o muro. E moviam os lábios. E
sangravam. (pausa) Fiquei sozinha durante muito tempo.
CECÍLIA - E por que não veio antes? Você sabe que estamos sempre aqui.
CLARISSA - Fiquei olhando o pássaro que posou na janela.
CECÍLIA - Mas até agora?
CLARISSA - Sim. E já é tão tarde.
CECÍLIA - Ele está sempre lá. Você é que não o vê.
CLARISSA - Mas não foi só hoje que você confessou essa culpa?
CECÍLIA - Só hoje? Imagine! Eu digo isso todos os dias. Você é que não ouve.
CLARISSA - Mas isso pode ser? Será assim? Não, não pode ser. Só hoje que
você confessou.
CECÍLIA - O dia foi tão longo.
CLARISSA - Fiquei olhando o pássaro que pousou na janela. Tive vontade de
ser.
CECÍLIA - Nós nunca nos ouvimos... Nunca. Porque sempre pensamos...
Neles. E no rato. Que esteve aqui, mas não deixou vestígios.
CLARISSA - E nós deixaremos algum vestígio, um dia? Uma testemunha?
CECÍLIA - Talvez as próprias culpas.
CLARISSA - (em aflição) Não fale assim, não fale assim, meu Deus, nós temos
que chegar até o muro. (vai até a janela) Olhe, olhe aquela ferida enorme nas
montanhas de pedra... Tudo isso não deve ser em vão. Ninguém arranca as
vísceras de uma montanha por nada.
CECÍLIA - Mas se arrancam as vísceras do rato, porque não arrancariam as da
pedra? As pessoas ficam patéticas diante da morte.
CLARISSA - (com firmeza) Eu quero chegar até o muro.
CECÍLIA - Você sabe que é impossível.
CLARISSA - Por quê?
CECÍLIA - Porque sempre foi assim.
CLARISSA - Não é verdade. Nós podíamos quase encostar no muro plantando
girassóis. Não é verdade?
CECÍLIA - É verdade somente nessa hora. Mas assim mesmo nunca
chegamos muito perto. Por quê?
CECÍLIA - (ri altíssimo) Vocês nem sabe o que quer. Chegou tão perto... É
porque o muro parece tão irreal agora que você o deseja.
CLARISSA - Você quer me confundir.
CECÍLIA – Você se confunde sempre.
CLARISSA - Só quando você está por perto. Tenho medo.
CECÍLIA - Medo de mim? Você tem medo é daquilo. (aponta para o muro)
CLARISSA - Imagine, eu posso até tocá-lo. Nem temos medo... Deles.
CECÍLIA - Dos estrangeiros?
CLARISSA - Os que vieram na noite.
CECÍLIA - Você pensará sempre nessa possibilidade.
IRMÃ H - Que possibilidade?
CECÍLIA - De chegar até o muro, de subi-lo, transpô-lo, ver mais adiante. E é
inútil. É inútil.Como um pássaro... como um pássaro!
CLARISSA - Eu estou cansada de sangrar.
CECÍLIA - Como um pássaro... como um pássaro!
CLARISSA - Eu não me canso de sentir fome. É uma coisa do ventre. É
doença.
CECÍLIA - É culpa.
CLARISSA – Sempre que você fala em culpa eu penso no tempo. É assim que
você me faz como um brinquedo de corda? Mas estou farta de ficar diante da
morte e da renúncia.
CECÍLIA - (severa) Sabe o rato? O rato é você. Que deseja subir e ver. (tom
crescente, procurando tensão) No entanto, ainda que tu subisses aquela pedra
lisa e assistisses ao mais fundo, ao mais alegre, o mais triste... Ainda que
tocasses aquela pedra rara e deixasses o vestígio de uma mancha escura ou
clara, ainda não seria o suficiente para o teu desejo de ser mais. E mais, e
mais...
CLARISSA - (tom cantante) Oh, Senhor de todas as nossas culpas, entristecei-
vos.
CECÍLIA - Como disse?
CLARISSA - Alegrai-vos para que nós não nos esqueçamos de todas as
nossas culpas.
CECÍLIA - São muitas?
TODAS - (tom cantante) Muitíssimas.
CECÍLIA - Quantas?
CLARISSA - Tan... Tas, tan... Tas, tan... Tas, tan... Tas.

(Clarissa planta sementes de girassóis.)

FIM

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