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A ESPIRITUALIDADE DOS PADRES

DO DESERTO APLICADA À NOSSA

CONTEMPORANEIDADE
The spirituality of the fathers of the desert applied to the contemporary-

ness of our times

José Mozart Tanajura Júnior *


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RESUMO: O texto propõe uma reflexão atualizada sobre a espiritualidade dos padres deserto
como forma de se chega ao autoconhecimento e domínio de si mesmo através das categorias
místicas do silêncio, oração e renúncia vivenciadas pelos monges do deserto. A espiritualidade
do deserto apresenta-se como uma forma autêntica de se buscar uma intimidade maior com
Deus em meio ao nosso mundo amplamente marcado pelas seduções do sistema consumista.
Neste contexto, procura-se evidenciar como a mística de Santo Antão, Pacômio e Evágrio Pôntico,
Padres do Deserto do Século IV, podem ser atualizadas em nossa cotidianidade como forma de
se conservar a própria dignidade humana cuja vocação é alçar voos aos valores eternos e não
efêmeros deste mundo.

PALAVRAS CHAVE: mística – deserto – oração – silêncio – renúncia.

ABSTRACT: The text proposes an updated reflection on the spirituality of the desert fathers
as a way to come to self-knowledge and self-control through the mystical categories of silence,
prayer and renunciation experienced by the monks of the desert. The desert spirituality
presents itself as an authentic way to seek greater intimacy with God in the midst of our world
widely characterized by the allurements of the consumerist system. In this context, we seek to
show how the mystique of Saint Anthony, Pachomius and Evagrius Ponticus, the Desert Fathers
of the fourth century, can be updated in our daily lives as a way to preserve human dignity
whose vocation is to launch flights to eternal values and not to the ephemeral of this world.

KEY WORDS: mystique - desert - Prayer - silence - renunciation.

* Especialista em Teologia Contemporânea (CEUCLAR), pesquisador no Núcleo de Estudos sobre Imaginário e


Linguagem - NEIL – UESB, graduado em Letras pela UESC e pós-graduado em Epistemologia e Fenomenologia
(UESC).
INTRODUÇÃO

A espiritualidade dos padres do deserto aplicada à nossa

contemporaneidade propõe uma reflexão atualizada dos ensinamentos dos

Padres do Deserto como forma de se alcançar o autoconhecimento, o domínio

de si mesmo e a busca constante da face de Deus na cotidianidade da existência

humana.

O texto apresenta inicialmente as origens do movimento monástico

do deserto como mística profética cristã de não se acomodar às estruturas

sedutoras do mundo imperial que não mais exigia dos cristãos uma vida de

entrega e renúncias. A espiritualidade monacal do Deserto surge como um

modelo de vida consagrada a ser experienciada por cristãos inconformados

com a nova configuração do cristianismo após a “Pax Romana”.

Dentro deste contexto, propomos uma releitura desta espiritualidade

m três tópicos e uma conclusão a partir das categorias espirituais do silêncio,

104 e
oração e renúncia, utilizadas pelos Padres do Deserto como caminho
para se

chegar à alta contemplação que propicia a união mística do coração humano

ao coração divino.

Outrossim, o texto também propõe em seu bojo a atualização desta

espiritualidade como forma de se vencer as sutis influências do mundo pós-

moderno amplamente marcado pela negação da dimensão transcendental do

ser humano.

1. AS ORIGENS DA ESPIRITUALIDADE DOS PADRES DO DESERTO

O cristianismo inicialmente foi considerado uma “seita” religiosa

pelas autoridades judaicas e romanas. As grandes perseguições que se

desencadearam fizeram com que os primeiros cristãos testemunhassem com

a própria vida o evangelho da salvação. Uma confissão pública na crença em

Jesus de Nazaré trazia como consequência o martírio. O ideal de santidade

vivenciado pelos primeiros seguidores do Cristo era justamente o martírio. Com

o fim das perseguições aos cristãos por parte do Império Romano e anuência

dos imperadores Constantino e posteriormente Teodósio, o culto dos cristãos


foi permitido em todo o Império sem ressalvas. Tornava-se “fácil” ser cristão

naquela oportunidade.
O século IV se descortinava como um tempo novo para a espiritualidade

cristã a partir de homens e mulheres que, descontentes com o modo de vida

oferecido pelo “mundo”, se decidiram ir ao deserto a fim de melhor experienciar

a presença de Deus em suas vidas. Antão ou Antônio do Egito e Pacômio

foram os primeiros a peregrinarem no deserto e lá se estabelecerem, isso

por volta do século IV d.C. É o que expressa Jacques Lacarrière em sua obra

“Padres do Deserto: Homens embriagados de Deus”: “Quando os primeiros

monges e os primeiros anacoretas se instalaram, no século IV, nos desertos

do Egito, o cristianismo praticamente já se tornara a religião oficial do Império

romano”(LACARRIÈRE, Jacques. Padres do deserto: homens embriagados de

Deus. São Paulo: Loyola, 1996, pg. 23).

Antonio Maria Polito, sacerdote vocacionista e historiador da vida

consagrada, assim também afirma:

erminadas as grandes perseguições, no quarto século e declarada


a liberdade religiosa por Constantino (com o edito de Milão de 09

Tde maio de 313), a Igreja livremente começa a organizar-se e, com 105


ela, a vida religiosa que vivia precariamente em diferentes regiões
do Oriente, do Ocidente e da África Mediterrânea. Com a paz
constantiniana, o cristianismo começou a baixar o nível religioso
e moral, portanto, os que procuravam a perfeição não eram
favorecidos pela decadência das comunidades cristãs. Perante
esta situação nasce o movimento monástico(...) (POLITO, Antônio
Maria. História da vida consagrada. Vitória da Conquista: Edições
Vocacionistas, 2005, 27).

Mas qual a finalidade ou a meta a ser alcançadas por esses homens de

Deus? A ideia de perfeição é uma constante no cristianismo nascente. O mundo

já não oferecia obstáculos aos autênticos seguidores do Evangelho. Se o mundo

já não os perseguia, então, era preciso perseguir o mundo com uma vida de

questionamentos à nova estrutura religiosa cristã que estava se formando sob

os auspícios do Império romano. O monacato torna-se, portanto, a forma de

perfeição cristã a ser alcançada e almejada por muitos homens e mulheres

sedentos de uma profunda experiência de estar sempre na presença de Deus.

Tornava-se ainda uma espécie de profecia contra o mundo das regalias dos

palácios romanos que agora estavam sob a direção dos “cristãos”. Outrossim,

o monacato era uma expressão própria de busca de uma transcendência que

visava a recuperar o sentido do “paraíso perdido”. Além disso, havia no imaginário

do cristão daquela época a necessidade de se travar uma luta espiritual contra

os demônios justamente em seu território: o deserto. Também os estudiosos

mencionam a busca de contemplação pura do rosto de Deus numa vida de oração


e silêncio, consagrando-se totalmente a Deus com a própria vida de entrega e

renúncia das coisas do mundo. Entretanto, alguns fugiam realmente do mundo

como forma de se livrarem da servidão, de dívidas, da dependência dos pais ou de

alguma outra dificuldade humana (POLITO, idem).

Os estudiosos são quase unânimes em falar que o iniciador do movimento

monástico na vida cristã foi Antonio do Egito ou como popularmente se conhece

Santo Antão. A vida de Antão1 é relatada na clássica obra A vida e conduta de

Santo Antão de autoria de Santo Atanásio. Lá encontramos alguns relatos que

tradicionalmente foram transmitidos a toda Igreja como forma de exemplo

de uma vida voltada exclusivamente para as “coisas de Deus”, apresentando

motivações para se viver uma consagração ao Senhor mediante a oração, o


silêncio

e a renúncia de si mesmo tal como se propõe literalmente os Santos Evangelhos.

Aliás, foi justamente ao escutar uma passagem do Evangelho que dizia a respeito

da renúncia, de dar tudo o que se tinha aos pobres e ganhar um tesouro nos Céus,

que Antão sentiu-se chamado à vida anacoreta.

106
1 “Antão era egípcio de nascimento, filho de nobres riquíssimos. Eles
mesmos cristãos, educaram-no cristãmente (...). Com a morte dos
pais, ficou sozinho com uma irmã muito jovem. Entre os dezoito e
vinte anos, assumiu a responsabilidade da casa e da irmã. Menos
de seis meses depois do luto, indo à igreja, segundo seu costume,
refletia consigo mesmo, meditava, caminhando, como os apóstolos
deixaram tudo para a seguir o Cristo (...). Ocupado o coração com
esses pensamentos, entrou na igreja. Ocorreu que se leu o evangelho,
e ouviu o Senhor dizendo ao rico: “se queres ser perfeito, vai, vende
tudo o que tens e dá aos pobres; vem e segue-me, terás um tesouro
nos céus” (Mt 19, 21). Antão, tendo recebido de Deus a lembrança
dos santos, como se a leitura tivesse sido feita para ele, saiu logo da
igreja. os bens que recebeu dos pais, trezentos arures de excelente
terra fértil, deu-os de presente às pessoas da aldeia, para não ser
estorvado por eles, nem ele nem sua irmã. Vendeu todos os móveis
e distribuiu aos pobres todo o dinheiro recebido, salvo pequena
reserva para a irmã” (ATANÁSIO, 2002, 296). Após isso, Antão ouve
nova passagem bíblica na igreja que enfatiza o fato de ele não dever
se preocupar com o dia de amanhã. Resolve entregar a sua irmã aos
cuidados de umas virgens consagradas e fiéis ao Senhor, para, em
seguida, partir para o deserto numa vida de total abandono nas
mãos de Deus. (ATANÁSIO. Vida e conduta de Santo Antão. São
Paulo: Paulus, 2002)

A partir daí, muitos outros cristãos passaram a viver o ideal monástico

inspirados na vida de Ascese de Antão, uma vida evidentemente anacoreta, um

pouco diferente do estilo de vida consagrada de Pacômio que, a exemplo de

Antônio do Egito, foi para o deserto, porém criando uma vida cenobítica, ou seja,
a reclusão do mundo juntamente com um grupo de consagrados no deserto que

formavam uma espécie de comunidade orante, como se fosse uma aldeia de

consagrados no deserto. Santo Antão era instruído por um mestre espiritual de

nome Palamão que lhe indicava o caminho da ascese como forma de encontro

profundo com Deus. Após a morte de seu mestre Palamão, Pacômio se instala no

deserto de Tabenesi e, após pouco tempo, o seu irmão João torna-se seu primeiro

discípulo e junta-se a ele nesta empreita espiritual. O número de discípulos cresce

consideravelmente, exigindo de Pacômio a observância de uma regra comum.

A partir deste dia, a vida de Pacômio vai mudar completamente.


Digamos, para encurtar, que o número de seus discípulos cresceu a
ponto de o edifício provisório de Tabenesi tornar-se insuficiente. Foi
preciso ampliá-lo e construir outro, a alguns quilômetros de lá, perto
de Dióspolis Parva, onde Pacômio fizera suas primeiras experiências
anacoréticas(...) A partir da fundação do primeiro mosteiro de
Tabenesi até sua morte, ocorrida em 348, durante uma epidemia
de peste, Pacômio se consagrou por inteiro à organização da vida
enobítica(...) Até sua morte, portanto, Pacômio cumpriu sua obra

ccenobítica e fundou nove mosteiros(...) A seus olhos, era possível 107


doravante ser um asceta vivendo no seio de uma comunidade (
LACARRIÈRE, idem, pg. 84;86).
Como se vê, as origens da espiritualidade dos padres do deserto não

representam uma fuga mundis alienadora, mas uma fuga mundis na tentativa

de viver com plenitude e autenticidade o evangelho de Cristo nas condições

mais rígidas da época, em virtude dos descaminhos enfrentados pelos cristãos

que agora gozavam da proteção do Império romano. No tópico seguinte,

procuraremos abordar alguns traços da espiritualidade dos padres do deserto

como forma de posteriormente propormos a atualização destes ensinamentos

que ainda encontram eco na vida cristã.

2. CATEGORIAS DA ESPIRITUALIDADE DOS PADRES DO DESERTO:

ORAÇÃO, SILÊNCIO E RENÚNCIA

Ao longo do percurso espiritual dos padres do deserto, encontramos

alguns elementos notórios no desenvolvimento transcendental destes cristãos

sedentos da contemplação do rosto de Deus. Surgem como elementos fundantes

desta espiritualidade o silêncio, a oração e a renúncia. A tríade mística referida em

muitos momentos se apresenta ao mesmo tempo na vida destes cristãos unidos a

Deus pela via da consagração monacal. Entretanto, para melhor compreendermos


a espiritualidade do deserto, faz-se necessário avançarmos em nossa reflexão

apresentando distintamente, embora não haja dissociação entre eles, cada uma

destas categorias místicas próprias da vida anacoreta e/ou cenobítica.

O silêncio sempre foi no cristianismo um modo de se relacionar com

Deus muito íntimo e próximo da proposta contemplativa do Cristo orante. Nas

Sagradas Escrituras, percebemos a presença silenciosa de Deus na vida de tantos

seguidores do Senhor. Algumas metáforas apresentadas por Jesus na tentativa

de conceituação do Reino dos Céus têm-se no silêncio o modo próprio de

compreensão. Basta citarmos a metáfora da semente que cresce silenciosamente

e produz a sua árvore e seus frutos. O silêncio sagrado produzia no coração dos

monges do deserto uma profunda transformação, capaz de lhes propor uma

vida interior totalmente renovada e reequilibrada segundo as marcas do dizer

silenciosamente do Espírito Santo.

Além disso, o silêncio era sempre o meio iniciatório do processo de

contemplação buscado pelos monges do deserto. Não se iniciava nunca uma

ontemplação sem antes silenciar e aquietar a casa da presença de Deus em

108 csua existência, o coração. Passavam horas e horas meditando alguma


simples
passagem do Evangelho de preferência para aquietar a mente e o
coração e

estabelecer o silêncio por completo.

Uma história tradicional dos padres do deserto nos serve de ilustração

para a importância do silêncio na vida de deserto espiritual. Diz a Tradição que

um homem chamado Arsênio, rico e culto, recebeu do Senhor um chamado

especial à vida de deserto. Após uma oração piedosa e pedindo ao Senhor que lhe

mostrasse o caminho da salvação, Arsênio escuta em seu âmago a voz silenciosa

de Deus exortando-o a buscar o silêncio como caminho precípuo de salvação

(NOUWEN, Henri. A espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo.

O caminho do coração. São Paulo: Loyola, 2000).

). Outros fatos narrados a partir da vida dos padres do deserto são também

muito ilustrativos para se evidenciar o silêncio como caminho transformador do

interior humano e altamente propiciador de conversão e de autoconhecimento.

“Certa vez, depois de dar a bênção aos irmãos na igreja de Scete,


o abade Macário lhes disse: ‘Fujam, irmãos’. Um dos anciãos lhe
respondeu: ‘Como podemos fugir além deste ponto, já que estamos
no deserto?’ Então Macário pôs o dedo na boca e falou: ‘Fujam
disto’. Assim dizendo, entrou em sua cela e fechou a porta”. (apud:
NOUWEN, pg 39).
A todo instante os monges do deserto estavam preocupados com a

exigente presença do silêncio em sua caminhada espiritual. Era o ponto necessário

e condição sine qua non para se envolver plenamente no amor divino. O silêncio

sempre representou na vida destes cristãos uma imprescindível disciplina

espiritual que os levasse ao sublime encontro da divindade no êxtase místico.

Além disso, a prática do silêncio oferecia aos padres do deserto a vivência

do autodomínio de suas paixões e fragilidades. Com o autoconhecimento

adquirido, os padres do deserto possuíam uma sabedoria para lidar com os

ataques ferozes dos seus instintos humanos, oferecendo-lhes o autocontrole

mediante o silêncio interior que seria a ação mística não reduzida ao não falar,

mas amplamente marcada por uma “mística concentração” da alma em Deus.

Os monges do deserto falavam do silêncio como espaço interior

perscrutável somente por Deus e lugar de se estabelecer uma paz


superabundante,

com o fim de encontrar a si mesmo e consequentemente a Deus.

Para Evágrio Pôntico, o mais importante escritor monástico do século 109


IV, este lugar de Deus está representado na imagem de Jerusalém,
cujo significado é “olhar para a paz”. Assim, chegamos a esse espaço
de silêncio para “olhar para a paz, onde podemos contemplar aquela
paz em nós, superior a toda compreensão e que resguarda nossos
corações” (Evágrio Pôntico) (...) Há em mim um espaço sobre o qual
ninguém tem poder, onde Deus habita. Nesse lugar, entro em contato
com o meu verdadeiro Eu. (...) Para Evágrio, o autoconhecimento é
um importante pressuposto para o verdadeiro encontro. “ Queres
reconhecer Deus? Conhece primeiro a ti mesmo” (Os padres do
deserto. Temas e textos. Petrópolis: Vozes,, pg. 10-11).

O silêncio é via mística através da qual os monges percorrem o caminho de

união íntima com o Senhor no existencial do autodomínio e do conhecimento de

si mesmo. Contudo, o silêncio não é o meio único e que dispensa as outras duas

categorias fundantes da espiritualidade do deserto. É, na verdade, um pórtico

que se abre ao diálogo com Deus, entendido como oração, segunda categoria de

nossa tríade estabelecida para se compreender a mística do deserto.

A oração dos padres do deserto traz uma marca específica de um

diálogo simples, porém muito profundo com Deus. Usam poucas palavras

em sua oração vocal. Os monges preferem a repetição de frases do Evangelho

como forma de alimento espiritual na busca constante da face de Deus. Talvez a

oração mais conhecida e que chega com força aos nossos tempos é o hesicasmo,

popularmente conhecido como oração do coração ou simplesmente oração

de Jesus. Trata-se de uma oração feita com breves palavras repetidamente de


acordo com o nosso movimento de respiração que consiste em obter na alma

do orante uma paz interior capaz de se sentir a presença amorosa de Deus na

própria alma. Desenvolvida a partir do século IV, essa oração conserva os traços

de uma espiritualidade do deserto em que se evidenciam, como já foi visto no

item referente ao silêncio, o autodomínio e o conhecimento de si mesmo. Essa

oração consiste em repetir a expressão “Jesus, filho de Deus, tende piedade de

mim”. Uma frase bíblica que nos remonta ao pedido do cego Bartimeu à beira do

caminho, portanto, à margem da sociedade. É a oração dos excluídos, dos que

vivem à margem, mas que conseguem ter forças na fé orante em sintonia com a

própria vida.

A meditação da Oração de Jesus foi maravilhosamente descrita por


um autor desconhecido, no clássico Relatos de um peregrino russo.
O peregrino exercita a Oração de Jesus até que ela ore [a alma] por si
só dentro dele (...) A Oração de Jesus conduz a um profundo silêncio
interior e ao “tornar-se um” com Deus. A palavra da Oração de Jesus
– assim se refere o monge Isaac – abre as portas para o mistério
udo de Deus. Esta oração enlaça o espírito, de modo que ele seja

110 mconduzido, cada vez mais, ao espaço de silêncio onde Deus, para

além de todas as palavras, em mim habita. A meta da Oração de Jesus


é “tornar-se um” com o Deus-Pai de Jesus Cristo (GRUN, idem, 18).
Com efeito, a oração é uma categoria na via mística dos padres do deserto

que permite ao orante unir-se intimamente ao seu Senhor, a tal ponto de se fazer

cumprir as palavras do Apóstolo Paulo:“não sou eu quem vive, é Cristo quem vive

em mim”. Por isso, a meta do monge do deserto é sempre a sua união mística com

Deus mediante uma oração contínua em que sua alma se eleva para dentro de

Deus (ibidem, 2009).

Anselm Grün, monge beneditino, tem escrito muitas obras de

espiritualidade em nosso tempo. Muitas delas dedicadas aos ensinamentos dos

padres do deserto, possibilitando-nos conhecer esta espiritualidade sempre muito

atual, embora possa parecer estranha aos nossos dias. Na obra já mencionada por

algumas vezes, Grün nos mostra como a oração se desenvolve no contexto dos

monges do deserto não como uma rígida disciplina a ser cumprida, embora isso

o fosse necessário a fim de se manter a perseverança do ideal monástico, mas

sobretudo como um dom de Deus oferecido aos homens e mulheres do deserto

na busca de unir o coração monástico à vontade de Deus.

Um patriarca dizia: “ A oração constante melhora em pouco tempo o

espírito” (Apot. 1128) (...) Muitos ditos dos padres giram em torno da oração,

cantam o louvor da oração. Os monges não veem a oração tanto como dever,
mas como dádiva de Deus. Tem efeito terapêutico: cura as feridas das pessoas,
leva a alma a respirar e melhora o espírito. A oração transforma os pensamentos e

sentimentos da pessoa. (ibidem, 35).

Outrossim, podemos compreender a oração essencialmente como

diálogo entre os padres do deserto e Deus. Um diálogo alicerçado numa grande

atenção da alma com o seu Criador. Um diálogo que se perfaz mediante o estar

da alma diante de Deus. O coração do orante fala ao coração da divindade, sem

pressa ou atropelos, expressando uma mútua confiança em que as palavras são

ditas justamente no silêncio envolvente da sacralidade do encontro iniciado

por Deus diante do monge do deserto, um frágil ser humano necessitado deste

relacionamento transformador e purificador.

Encontramos a melhor formulação da oração do coração nas palavras do

místico russo Teófano, o Recluso: “ Rezar é descer com a mente ao coração e ali

ficar diante da face do Senhor, onipresente, onividente dentro de nós. No decorrer

dos séculos, essa perspectiva da oração tem sido central no hesicasmo. Rezar é

ficar na presença de Deus com a mente no coração, isto é, naquele ponto de


nossa

xistência em que não há divisões nem distinções e onde somos totalmente um.

eAli habita o Espírito de Deus e ali acontece o grande encontro. Ali, coração fala a
111
coração, porque ali ficamos diante da face do Senhor, onividente, dentro
de nós

(NOUWEN, idem, pg. 69).

O outro elemento da tríade que nos deparamos na via mística dos

padres do deserto é a renúncia. Aliás, esta é uma categoria também fundante

na espiritualidade cristã como forma de se alcançar a metanóia (conversão do

coração).

A narrativa sobre a conversão de Antônio do Egito nos mostra a existência

explicita de uma conversão sincera do coração deste monge mediante a renúncia

inclusive de sua própria vida, sem negar a sua condição humana no mundo. Para

ele, a renúncia era uma forma de se ganhar a eternidade em Deus. Desprezar as

coisas da terra para ser inteiramente livre e de Deus. A renúncia na vida deste

monge do deserto tornara-se um grito profético diante de um mundo transitório

e ilusório, na esperança de se ganhar os dons eternos de Deus. Torna-se


expressivo

o ensinamento de Santo Antão sobre a renúncia, o deixar tudo por amor à

esperança que nos dá o Evangelho:


Portanto, meus filhos, não nos cansemos, não pensemos que o tempo
seja longo ou que fazemos grande coisa. ‘Os sofrimentos do tempo
presente não têm proporção com a glória futura que se manifestará
em nós’(Rm 8,18). Olhando para o mundo, não pensemos que
renunciamos a grandes coisas. A terra inteira é muito pequena diante
do céu. Se, pois, possuíssemos a terra inteira e renunciássemos
totalmente a ela, isso não seria digno do reino dos céus. Como quem
desprezasse uma dracma para ganhar cem, assim o senhor de toda
a terra, renunciando a ela, deixaria pouco e receberia o cêntuplo. Se
toda a terra não é digna do reino dos céus, aquele que deixa algumas
jeiras de terra não perde, por assim dizer, nada, e, se deixa sua casa
e muito ouro, não tem motivo para se gloriar ou esmorecer. Aliás,
as coisas que não deixamos, a morte no-las tira, e elas muitas vezes
passam às mãos de pessoas para as quais não quereríamos que
fossem, como diz o Eclesiastes (Ecl 4,8). Por que não deixá-las por
virtude, para obtermos a herança do reino? Portanto, que o desejo
de possuir não nos invada (ATANÁSIO, idem, pg. 310).

O ensinamento acima de Santo Antão nos conduz à dinâmica da renúncia

enquanto via mística. Uma renúncia mais voltada para o autodomínio de nossas

paixões terrenas e como forma de preparação para obtermos os bens futuros da

eternidade que como tal não são efêmeros. A renúncia praticada por Antão e
pelos

demais padres do deserto tem como meta não uma alienação ou aniquilamento

da alma frente às possibilidades dadas por esta vida terrena, mas uma espécie de

exercício espiritual ou ascese a ser desenvolvido na luta suprema da alma contra

dominações impostas pelo mundo imanente em detrimento da elevação da

112 as
alma a Deus. Muitas vezes, no entender dos monges do deserto, a alma ocupada

com os bens e criaturas desta terra não dá espaço aos sublimes valores a
serem

buscados na eternidade. A renúncia, no entanto, só encontra sentido se for

desprovida de interesses pessoais, mas vivenciada tão somente sob o aspecto da

gratuidade e da não imposição de condições do seguimento da alma para Deus.

Desse modo, encontramo-nos diante da tríade silêncio-oração-renúncia

como modo próprio da espiritualidade dos padres do deserto a ser atualizado

em nossa contemporaneidade tão marcada pelo relativismo e indiferentismo

religioso. Como podemos percorrer uma via mística que parece se encaminhar

contrariamente à proposta e apelos deste mundo atual? Estaríamos forçosamente

impondo uma espiritualidade ultrapassada na caminhada cristã atual? São

questões que nos permitem estabelecer um diálogo com vistas à atualização entre

a mística do século IV com a nossa própria época em busca de uma vivência mais

autêntica de nossa fé cristã e de uma redescoberta de nossa condição humana

vocacionada ao absoluto.

3. A ATUALIZAÇÃO E APLICAÇÃO DA ESPIRITUALIDADE DOS PADRES

DO DESERTO EM NOSSA ATUALIDADE

A contemporaneidade apresenta-se como um período marcado pela


fragilidade da condição humana em suas relações com o próximo, com Deus e
com o próprio ambiente em que se insere. O sistema consumista amplamente

influenciador em nosso tempo tem criado uma mentalidade descartável e

individualista. A pessoa humana tem perdido a sua consciência de perceber o

outro em sua dignidade. Perde-se a relação interpessoal e consequentemente

a dimensão de alteridade que é subjacente ao seguidor de Cristo, pois todo o

evangelho de Cristo é pura alteridade. Tal fenômeno se evidencia pelo fato

de as pessoas não buscarem com afinco a sua dimensão antropológica de

transcendência, permanecendo presas à imanente realidade consumista

que, com os seus produtos de mercado, embriagam e alienam o ser humano

contemporâneo. O homem pós-moderno passa a temer o encontrar a si mesmo e

o que é pior perde completamente a sua autenticidade nas relações com Deus e

com o próximo. Encaminha-se também para o hedonismo como forma de procura

desenfreada de uma falsa e efêmera felicidade.

Diantedessequadroavassalador,temosascategoriasdaespiritualidadedos

padres do deserto como mecanismos místicos para dar um novo direcionamento

existência humana. O silêncio surge como grito profético paradoxalmente na

àbusca humana por seu autoconhecimento e controle de si mesmo. A oração

113
aparece como via segura para se reatar os laços que o consumismo
fragiliza na

relação homem – Deus. A renúncia se mostra como caminho a ser percorrido por

um coração sedento dos bens eternos e não transitórios deste mundo.

No percurso da vida pós-moderna, o silêncio surge como algo

transformador e purificador dos desejos humanos que, em muitos momentos, se

veem presos às seduções do modelo consumista que invadem a sensibilidade

humana. O homem pós-moderno teme o silêncio, pois teme encontrar a si mesmo

e exigir de si um novo caminhar fundado numa autêntica conversão de vida.

Em meio ao nosso mundo tão tecnologizado e marcado pelo barulho

ensurdecedor, o silêncio surge como algo impossível de se concretizar. No

entanto, os místicos padres do deserto bem sabiam que o silêncio é pré-requisito

imprescindível para encontrar a Deus no âmago humano. É também elemento

propiciador para afastar do coração humano os vários embates, conflitos e

depressões que assolam a humanidade em seu estar-no-mundo, pois nos permite

o autoconhecimento e o domínio de nossas paixões: “O silêncio nos impede de

ser sufocados por nosso mundo repleto de palavras e nos ensina a falar a Palavra

de Deus” (NOUWEN, idem, pg. 85).

A oração, por sua vez, se apresenta como uma proposta de diálogo


a ser estabelecido entre Deus e a humanidade sedenta de sua voz. No mundo

contemporâneo muitas são as vozes barulhentas que atrapalham esse diálogo.

A pessoa humana necessita cada vez mais abrir-se em todas as suas dimensões

antropológicas para uma sincera conversa com Deus em seus momentos orantes.
A oração é curativa, purificadora e transformadora da existência humana. Faz com

que a dimensão de transcendência do ser humano se torne mais ampla e aberta

aos valores absolutos da eternidade, não se deixando prender aos contra-valores

da pós-modernidade oriundos muitas vezes do hedonismo. Por ser dialógica, a

oração nos faz sair de nós mesmos, a fim de irmos ao encontro do outro. Os
Padres

do deserto aplicavam a sua oração dialógica como forma de vencer o seu orgulho

e autossuficiência. Em nosso tempo, somos marcados por um individualismo

estéril que não permite ser um com os outros. Negamos constantemente a

nossa dimensão dialógica própria da nossa constituição ontológica. Deixamos

o orgulho e a autossuficiência invadirem a nossa alma. A oração surge como

exercício espiritual transformador de nosso individualismo para a comunhão

solidária. Refaz em nós o projeto salvífico de Deus que se embasa em nosso modo

de ser com o próximo.

Os Padres do deserto costumavam praticar a renúncia como ascese, cujo

objetivo era não negar a própria identidade humana, mas dar pleno sentido à

iberdade humana. O ato de renunciar proporcionava ao monge do deserto uma

114 lgrande liberdade interior. Trazendo à nossa contemporaneidade a


categoria de

renúncia da mística do deserto, podemos afirmar que é meio propiciador


para

negarmos com firmeza as seduções próprias do mundo consumista, tornando-

nos mais livres frente às ameaças de escravização da matéria de consumo com

que o mundo atual tende a nos aniquilar. Com efeito, a renúncia é um mecanismo

espiritual muito eficaz na luta travada pelo ser humano contra as realidades que

desastrosamente negam a dignidade humana em nome da força do mercado

que se alimenta da insaciável vontade humana, a qual não encontrará de forma

nenhuma satisfação plena nos objetos de consumo do mundo atual, mas somente

nos bens eternos. A renúncia possibilita ao ser humano perceber o outro dotado

de mesma dignidade. É que a ascese da renúncia abre e direciona os olhos não

para si mesmo, mas para o outro, tão diferente dele mesmo. Faz com que o outro

seja mais importante naquele momento.

No mundo contemporâneo, parece que o ser humano tem perdido o

centro de sua existência e, consequentemente, o sentido dela. Tudo porque o

homem pós-moderno, seduzido pelos bens de consumo e pelas virtualidades

dos avanços tecno-científicos, deixa de estar consigo mesmo em momentos de

silêncio e oração e não tem forças para a prática da renúncia quando esta lhe

é essencial em seu desenvolvimento humano e nas suas relações com Deus, o


próximo e o ambiente que lhe é vital. Contudo, a esperança de se revitalizar o

coração humano deve ser uma constante busca dos seguidores de Cristo Jesus,

chamados por Ele para dar sentido à existência humana mediante a vivência de

uma mística que nos torne mais próximos de Deus e dos nossos semelhantes.
No dizer Nouwen,

a solidão, o silêncio e a oração permitem salvar a nós e aos outros do

naufrágio de nossa sociedade autodestrutiva (...). Nosso mundo compulsivo,

verborrágico e voltado para a mente exerce um controle firme sobre nós, e

precisamos de uma disciplina muito forte e persistente para que ele não nos

comprima até a morte. Com sua solidão, seu silêncio e sua oração incessante, os

monges do deserto nos mostram o caminho. Essas disciplinas nos ensinam a ficar

firmes, pronunciar palavras de salvação e nos aproximar do novo milênio com

esperança, coragem e confiança (NOUWEN, idem, pg. 87).

A mística do deserto nos ensina como percorrermos este caminho de

intimidade com Deus e com os outros através de uma vida de doação ao próximo,

na prática constante da oração autêntica e dialógica sem os devaneios de uma

pseudomística individualista que nos traga aparente e ilusório bem estar.

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CONCLUSÃO

A contemporaneidade tem sido amplamente tema de discussão nas

várias áreas do conhecimento humano. A teologia não poderia deixar de reler a

época contemporânea a partir de determinadas temáticas, dentre as quais a da

espiritualidade dos Padres do Deserto.

A força espiritual que emana das reflexões destes místicos cristãos do

século IV é fascinante e bem sugestiva para uma atualização em nosso próprio

século, marcado muitas vezes por um indiferentismo religioso ou ainda por

uma falta de sensibilidade à interiorização como forma de reconquista de nossa

subjetividade perdida frente ao consumismo pós-moderno.

Ao lermos os textos espirituais dos padres do deserto ou sobre eles,

percebemos que é possível atualizarmos a sua proposta mística em meio ao nosso

mundo circundante, tão marcado pela dificuldade de se estabelecer momentos

reflexivos de silêncio questionador e orante.

O homem contemporâneo sente-se cada vez mais sufocado pela correria

de seu dia-a-dia. O tempo, que antes era sagrado, torna-se um tirano que fere

as relações humanas e intervém consideravelmente no âmago do ser humano.


Prova disso são as dificuldades enfrentadas em nosso meio: depressão, estresses,

nervosismo, suicídios... O ser humano anda meio perdido diante de tantos


conflitos e barulhos provocados pela pós-modernidade.

Todo o avanço tecno- científico não foi capaz de resolver a

problemática da humanidade diante de seus conflitos

pessoais. A dimensão de transcendência ficou esquecida

em função da procura desenfreada pela materialidade

sedutora da vida contemporânea.

Os ensinamentos dos monges do deserto nos

indicam uma vivência pautada nos valores evangélicos da

entrega e desprendimento praticados a partir da

interioridade mística que nos possibilita um encontro com

Deus, o Totalmente Outro, a partir da dinâmica do

silêncio orante e da interiorização em nossa

cotidianidade pós-moderna.
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