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Espiritualidade Dos Padres Do Deserto
Espiritualidade Dos Padres Do Deserto
CONTEMPORANEIDADE
The spirituality of the fathers of the desert applied to the contemporary-
RESUMO: O texto propõe uma reflexão atualizada sobre a espiritualidade dos padres deserto
como forma de se chega ao autoconhecimento e domínio de si mesmo através das categorias
místicas do silêncio, oração e renúncia vivenciadas pelos monges do deserto. A espiritualidade
do deserto apresenta-se como uma forma autêntica de se buscar uma intimidade maior com
Deus em meio ao nosso mundo amplamente marcado pelas seduções do sistema consumista.
Neste contexto, procura-se evidenciar como a mística de Santo Antão, Pacômio e Evágrio Pôntico,
Padres do Deserto do Século IV, podem ser atualizadas em nossa cotidianidade como forma de
se conservar a própria dignidade humana cuja vocação é alçar voos aos valores eternos e não
efêmeros deste mundo.
ABSTRACT: The text proposes an updated reflection on the spirituality of the desert fathers
as a way to come to self-knowledge and self-control through the mystical categories of silence,
prayer and renunciation experienced by the monks of the desert. The desert spirituality
presents itself as an authentic way to seek greater intimacy with God in the midst of our world
widely characterized by the allurements of the consumerist system. In this context, we seek to
show how the mystique of Saint Anthony, Pachomius and Evagrius Ponticus, the Desert Fathers
of the fourth century, can be updated in our daily lives as a way to preserve human dignity
whose vocation is to launch flights to eternal values and not to the ephemeral of this world.
humana.
sedutoras do mundo imperial que não mais exigia dos cristãos uma vida de
104 e
oração e renúncia, utilizadas pelos Padres do Deserto como caminho
para se
ao coração divino.
ser humano.
o fim das perseguições aos cristãos por parte do Império Romano e anuência
naquela oportunidade.
O século IV se descortinava como um tempo novo para a espiritualidade
por volta do século IV d.C. É o que expressa Jacques Lacarrière em sua obra
já não os perseguia, então, era preciso perseguir o mundo com uma vida de
Tornava-se ainda uma espécie de profecia contra o mundo das regalias dos
palácios romanos que agora estavam sob a direção dos “cristãos”. Outrossim,
Aliás, foi justamente ao escutar uma passagem do Evangelho que dizia a respeito
da renúncia, de dar tudo o que se tinha aos pobres e ganhar um tesouro nos Céus,
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1 “Antão era egípcio de nascimento, filho de nobres riquíssimos. Eles
mesmos cristãos, educaram-no cristãmente (...). Com a morte dos
pais, ficou sozinho com uma irmã muito jovem. Entre os dezoito e
vinte anos, assumiu a responsabilidade da casa e da irmã. Menos
de seis meses depois do luto, indo à igreja, segundo seu costume,
refletia consigo mesmo, meditava, caminhando, como os apóstolos
deixaram tudo para a seguir o Cristo (...). Ocupado o coração com
esses pensamentos, entrou na igreja. Ocorreu que se leu o evangelho,
e ouviu o Senhor dizendo ao rico: “se queres ser perfeito, vai, vende
tudo o que tens e dá aos pobres; vem e segue-me, terás um tesouro
nos céus” (Mt 19, 21). Antão, tendo recebido de Deus a lembrança
dos santos, como se a leitura tivesse sido feita para ele, saiu logo da
igreja. os bens que recebeu dos pais, trezentos arures de excelente
terra fértil, deu-os de presente às pessoas da aldeia, para não ser
estorvado por eles, nem ele nem sua irmã. Vendeu todos os móveis
e distribuiu aos pobres todo o dinheiro recebido, salvo pequena
reserva para a irmã” (ATANÁSIO, 2002, 296). Após isso, Antão ouve
nova passagem bíblica na igreja que enfatiza o fato de ele não dever
se preocupar com o dia de amanhã. Resolve entregar a sua irmã aos
cuidados de umas virgens consagradas e fiéis ao Senhor, para, em
seguida, partir para o deserto numa vida de total abandono nas
mãos de Deus. (ATANÁSIO. Vida e conduta de Santo Antão. São
Paulo: Paulus, 2002)
Antônio do Egito, foi para o deserto, porém criando uma vida cenobítica, ou seja,
a reclusão do mundo juntamente com um grupo de consagrados no deserto que
nome Palamão que lhe indicava o caminho da ascese como forma de encontro
profundo com Deus. Após a morte de seu mestre Palamão, Pacômio se instala no
deserto de Tabenesi e, após pouco tempo, o seu irmão João torna-se seu primeiro
representam uma fuga mundis alienadora, mas uma fuga mundis na tentativa
apresentando distintamente, embora não haja dissociação entre eles, cada uma
e produz a sua árvore e seus frutos. O silêncio sagrado produzia no coração dos
especial à vida de deserto. Após uma oração piedosa e pedindo ao Senhor que lhe
). Outros fatos narrados a partir da vida dos padres do deserto são também
e condição sine qua non para se envolver plenamente no amor divino. O silêncio
mediante o silêncio interior que seria a ação mística não reduzida ao não falar,
si mesmo. Contudo, o silêncio não é o meio único e que dispensa as outras duas
que se abre ao diálogo com Deus, entendido como oração, segunda categoria de
diálogo simples, porém muito profundo com Deus. Usam poucas palavras
oração mais conhecida e que chega com força aos nossos tempos é o hesicasmo,
própria alma. Desenvolvida a partir do século IV, essa oração conserva os traços
mim”. Uma frase bíblica que nos remonta ao pedido do cego Bartimeu à beira do
vivem à margem, mas que conseguem ter forças na fé orante em sintonia com a
própria vida.
110 mconduzido, cada vez mais, ao espaço de silêncio onde Deus, para
que permite ao orante unir-se intimamente ao seu Senhor, a tal ponto de se fazer
cumprir as palavras do Apóstolo Paulo:“não sou eu quem vive, é Cristo quem vive
em mim”. Por isso, a meta do monge do deserto é sempre a sua união mística com
Deus mediante uma oração contínua em que sua alma se eleva para dentro de
atual, embora possa parecer estranha aos nossos dias. Na obra já mencionada por
algumas vezes, Grün nos mostra como a oração se desenvolve no contexto dos
monges do deserto não como uma rígida disciplina a ser cumprida, embora isso
espírito” (Apot. 1128) (...) Muitos ditos dos padres giram em torno da oração,
cantam o louvor da oração. Os monges não veem a oração tanto como dever,
mas como dádiva de Deus. Tem efeito terapêutico: cura as feridas das pessoas,
leva a alma a respirar e melhora o espírito. A oração transforma os pensamentos e
atenção da alma com o seu Criador. Um diálogo que se perfaz mediante o estar
por Deus diante do monge do deserto, um frágil ser humano necessitado deste
místico russo Teófano, o Recluso: “ Rezar é descer com a mente ao coração e ali
dos séculos, essa perspectiva da oração tem sido central no hesicasmo. Rezar é
xistência em que não há divisões nem distinções e onde somos totalmente um.
eAli habita o Espírito de Deus e ali acontece o grande encontro. Ali, coração fala a
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coração, porque ali ficamos diante da face do Senhor, onividente, dentro
de nós
coração).
inclusive de sua própria vida, sem negar a sua condição humana no mundo. Para
coisas da terra para ser inteiramente livre e de Deus. A renúncia na vida deste
enquanto via mística. Uma renúncia mais voltada para o autodomínio de nossas
eternidade que como tal não são efêmeros. A renúncia praticada por Antão e
pelos
demais padres do deserto tem como meta não uma alienação ou aniquilamento
da alma frente às possibilidades dadas por esta vida terrena, mas uma espécie de
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alma a Deus. Muitas vezes, no entender dos monges do deserto, a alma ocupada
com os bens e criaturas desta terra não dá espaço aos sublimes valores a
serem
religioso. Como podemos percorrer uma via mística que parece se encaminhar
questões que nos permitem estabelecer um diálogo com vistas à atualização entre
a mística do século IV com a nossa própria época em busca de uma vivência mais
vocacionada ao absoluto.
o que é pior perde completamente a sua autenticidade nas relações com Deus e
Diantedessequadroavassalador,temosascategoriasdaespiritualidadedos
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aparece como via segura para se reatar os laços que o consumismo
fragiliza na
relação homem – Deus. A renúncia se mostra como caminho a ser percorrido por
ser sufocados por nosso mundo repleto de palavras e nos ensina a falar a Palavra
A pessoa humana necessita cada vez mais abrir-se em todas as suas dimensões
antropológicas para uma sincera conversa com Deus em seus momentos orantes.
A oração é curativa, purificadora e transformadora da existência humana. Faz com
oração nos faz sair de nós mesmos, a fim de irmos ao encontro do outro. Os
Padres
do deserto aplicavam a sua oração dialógica como forma de vencer o seu orgulho
solidária. Refaz em nós o projeto salvífico de Deus que se embasa em nosso modo
objetivo era não negar a própria identidade humana, mas dar pleno sentido à
que o mundo atual tende a nos aniquilar. Com efeito, a renúncia é um mecanismo
espiritual muito eficaz na luta travada pelo ser humano contra as realidades que
nenhuma satisfação plena nos objetos de consumo do mundo atual, mas somente
nos bens eternos. A renúncia possibilita ao ser humano perceber o outro dotado
para si mesmo, mas para o outro, tão diferente dele mesmo. Faz com que o outro
silêncio e oração e não tem forças para a prática da renúncia quando esta lhe
coração humano deve ser uma constante busca dos seguidores de Cristo Jesus,
chamados por Ele para dar sentido à existência humana mediante a vivência de
uma mística que nos torne mais próximos de Deus e dos nossos semelhantes.
No dizer Nouwen,
precisamos de uma disciplina muito forte e persistente para que ele não nos
comprima até a morte. Com sua solidão, seu silêncio e sua oração incessante, os
monges do deserto nos mostram o caminho. Essas disciplinas nos ensinam a ficar
intimidade com Deus e com os outros através de uma vida de doação ao próximo,
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CONCLUSÃO
de seu dia-a-dia. O tempo, que antes era sagrado, torna-se um tirano que fere
cotidianidade pós-moderna.
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