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UFC – UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACED – FACULDADE DE EDUCAÇÃO


FORTALEZA – CEARÁ
IV SEMANA DE PEDAGOGIA – 27/09/2011 A 01/10/2011

A HISTÓRIA CANTADA NA RODA DE CAPOEIRA:


CONTRIBUIÇÕES PARA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA

José Olímpio Ferreira Neto


Professor de Capoeira
Especialista em Educação
Acadêmico de Filosofia – UECE

Este artigo trata da roda de capoeira como espaço que colabora para a formação da
identidade afro-brasileira. O africano deixou marcas na sociedade brasileira (CUNHA
JÚNIOR, 2006), a Capoeira, como uma dessas marcas, pode contribuir para a valorização
de culturas oriundas dessa mesma matriz. Nesse universo, a corporeidade e a oralidade são
elementos indissociáveis também presentes nas manifestações de origem africana. Essa
expressão do negro africano em Terras brasilis foi perseguida pelo Império e pela
República, hoje é reconhecida pelo Governo Brasileiro e registrada como Patrimônio
Cultural do Brasil. Teve a roda e os mestres registrados nos respectivos livros das formas
de expressão e dos saberes contidos no art. 1º da Lei 3.551/2000. A escola hodierna abre as
portas para diversas manifestações culturais trabalhando ao lado da comunidade em seus
interesses. A arte cultural em tela figura nesses espaços oficiais colaborando para que o
conteúdo da Lei 10.639/2003 possa se tornar realidade. Através da imersão pessoal na
citada manifestação cultural inspirada na Etnografia (MENDES, 2009) e de pesquisa
bibliográfica sobre as cantigas (CAMISA, 1997), (MATTOS & MATTOS, 1995), (REGO,
1968) tenta-se expor esses elementos estéticos como fonte de ensino de História e de
valorização da figura do negro no cenário brasileiro. Nelas aparecem heróis como Besouro
(VASCONCELOS, 2009), Zumbi, Bimba ou Pastinha (VIEIRA, 1998) que oferecem
outras possibilidades de referência. Eles são os protagonistas da nova história que é
contada. O objetivo desse trabalho é tão somente apontar as cantigas como ferramenta que
colabora para o ensino de História oferecendo outra visão, retirando da mão dos
dominantes o privilégio único de repassar as tradições e a memória do povo (BENJAMIN,
1994). Ao final desse trabalho percebe-se com a análise das composições que os
praticantes dessa arte valorizam a matriz africana como componente indispensável na
formação brasileira.

Palavras-chave: Cantigas de Capoeira. Identidade Afro-brasileira. Ensino de História.


No final da década de 1980 a expressão Nova História Cultural entrou em uso
através de uma historiadora norte-americana chamada Lynn Hunt (2001) que publicou um
livro com esse nome. A nova história cultural é, hoje, uma forma de história cultural
bastante utilizada nas pesquisas, ela se torna mais coerente e com mais sentido sob um
olhar etnográfico. O interesse pela cultura popular aumentou, tornando a antropologia mais
relevante para os historiadores. É trilhando essas veredas que esse trabalho se desenvolve.
Buscando o estudo da história cultural sob os alicerces da etnografia (MENDES, 2010).
O tema de estudo foi inspirado na vivência escolar, na participação nas rodas e
nos estudos de filosofia. Ressalte-se ainda a participação no NHIME - Núcleo de Pesquisa
em História e Memória da Educação da FACED/UFC sob coordenação do Professor
Doutor Gerardo Vasconcelos.
Nas escolas públicas de Fortaleza há a presença de muitos grupos de capoeira.
A partir da vivência pessoal fica nítido a riqueza pedagógica que essa atividade possui, o
que é corroborado pelos estudos sobre o assunto que indicam que essa manifestação de
origem afro-brasileira vem trazendo grande contribuição para o desenvolvimento dos
jovens (CAMPOS, 2001; FERREIRA NETO, 2009, 2011; SILVA, 2010;
VASCONCELOS, 2009; VIEIRA, 1998).
As pesquisas em História tem sofrido mudanças em seu foco, novas áreas e
interesses tem surgido ao historiador. Mesmo com essa nova abordagem, o ensino de
história que acontece nas escolas públicas não está muito voltado para o pensamento dos
vencidos. Geralmente, o ensino se processa com foco nos vencedores, mais parece um
cortejo ao triunfo das classes dominantes. No interior das instituições, pode-se observar
cartazes que são confeccionados nas aulas que reproduzem a história dos dominantes, a
história oficial.
Ao mesmo tempo, a escola abre as portas para a comunidade, para a
diversidade cultural. A Capoeira é uma importante ferramenta nessa nova perspectiva do
ambiente escolar. Atividade que representa o povo brasileiro, fruto da mistura das raças
que já ganhou o mundo e se aperfeiçoa como instrumento de educação (FERREIRA
NETO, 2009).
Entende-se, aqui, que a escola é um espaço de conflito, pois além da educação
oficial penetra nesse ambiente diversas culturas como a Capoeira que colaboram para um
discurso que se opõe ao que é imposto pelos dominadores. Para nortear essa reflexão
utiliza-se o filósofo da Escola de Frankfurt, a saber, Walter Benjamin (1994) através de seu
artigo intitulado Sobre o conceito de História presente no primeiro volume do livro Obras
Escolhidas.
Benjamin (1994) diz na sua tese VI do texto supracitado que a transmissão dos
bens culturais, da história deve ser arrancada às mãos do vencedor. Mas será que essa é a
realidade em que vive as escolas?
Os negros, desde sua chegada em Terras brasilis manifestaram seu espírito de
resistência e deixaram sua contribuição para a sociedade. Segundo Cunha Júnior (2006, p.
77):

A marca africana é indiscutível na cultura brasileira. Africanos e


afrodescendentes na busca da liberdade e da igualdade social realizaram
os eixos marcantes da história social brasileira. Foram milhares de
quilombos, de rebeliões, de instituições no combate ao escravismo
criminoso.

Em 2008, a Capoeira foi reconhecida como Patrimônio Cultural Brasileiro e


registrada como Bem Cultural de Natureza Imaterial. Os Mestres e a Roda estão inscritos
nos respectivos Livros dos Saberes e das Formas de Expressão previsto no texto
constitucional e regulamentado pelo Decreto 3.551/2000.
O ensino de história vêm sofrendo modificações em sua abordagem, pelo
menos em teoria. Em março de 2003, o governo Lula sancionou a Lei 10.639/03, que altera
a LDB, A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira. A mesma estabelece diretrizes
curriculares e sua implementação. Seu teor resgata historicamente a contribuição dos
negros na construção e formação da sociedade brasileira.
O art. 26, § 4º da Lei nº. 9.394/96, a LDB, diz que: "O ensino da História do
Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do
povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia." Já o art. 26-A, §
1º e 2º da Lei supracitada nos diz o seguinte:

Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e


particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira. O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros
no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e políticas pertinentes à História do Brasil. (Incluído pela Lei
nº. 10.639, de 9.1.2003)

Tal texto é a valorização da cultura de matriz africana e afro-brasileira, onde a


Capoeira figura em seu rol e pode dar significativa contribuição para sua efetivação. Sabe-
se que o negro, assim como o índio são as figuras oprimidas e vencidas da História do
Brasil. Hoje, o governo brasileiro tenta através de políticas afirmativas, como essa, tenta
reparar o dano causado a essa parcela que compõe a grande maioria do povo brasileiro.
Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana há um princípio
chamado consciência política e histórica da diversidade que encaminha para “valorização
da oralidade, da corporeidade e da arte, por exemplo, como a dança, marcas da cultura de
raiz africana, ao lado da escrita e da leitura; educação patrimonial, aprendizado a partir do
patrimônio cultural afro-brasileiro, visando a preservá-lo e difundi-lo” consta ainda que “o
ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africano se fará por diferentes meios, em
atividades curriculares ou não” (MEC, 2004, p. 20). Tais tarefas podem ser realizadas a
partir da Capoeira. Pois esta trabalha o corpo envolvido com a música.
A escola não é a grande responsável pela transformação social, mas essa
transformação não se fará sem ela. Ela só poderá ser o lugar onde os oprimidos adquirirão
sua autonomia, se eles puderem adentrar nesse espaço. O primeiro passo é abrir suas portas
para que eles possam entrar (GADOTTI, 1995). Hoje, o capoeirista, outrora marginalizado,
já está dentro desse espaço educacional, realiza a antítese do pensamento dominante.
Na Roda, quando o capoeirista está no jogo, sua expressão corporal é
manifestada de várias formas, para Vasconcelos (2009, p. 15) “É como se o corpo se
deslocasse o tempo inteiro em profundo equilíbrio que dança, interpreta, canta, chora, ri
[...]”. O mundo se inverte e a figura do oprimido não é mais um sujeito sem importância,
ele se reconhece como protagonista de sua história e interfere em sua comunidade
deixando a marca de sua passagem, a história deixa de ser construída apenas pelo
dominante (BENJAMIN, 1994).
Nesse período de adaptação aos novos parâmetros, a escola permite a
constituição de espaços de resistência, embora sejam controlados de longe pelos gestores.
A escola abre as portas para a comunidade, esta expressa através de suas inúmeras
manifestações culturais o sentimento de contestação ao estado imposto pelos dominantes.
A Capoeira através das rodas é um desses espaços de afirmação do oprimido.
Vieira (1998) aponta três funções básicas das cantigas, a saber, função ritual,
mantenedor das tradições e diz ainda que se constitui em espaço de constante repensar.
Vários são os fatos e os heróis que são indicados nessas composições. Segundo Mattos &
Mattos (1995, p. 12) os cantos que fazem parte da roda “[…] podem ser em forma de:
ladainha, quadras e corridos, narrando as vezes um lamento, uma oração, um aviso, […]
um desafio, um elogio, um fato, uma história […]”. As cantigas podem ter vários
significados e expressam diversos pensamentos. Adequam-se a situações da roda ou
mandam mensagens para os jogadores, participantes, espectadores. Podem desafiar,
mandar uma ofensa, elogiar ou agradar, tudo vai depender da intenção de quem canta e de
quem comanda a roda.
Cunha Júnior (2006, p. 79) aponta que “O conceito de afrodescendência nasce
com o pleno conhecimento do passado africano, aflora, […] da necessidade de relacionar o
passado africano com a história do Brasil”. As cantigas indicam diversos pontos de
encontro da história do negro dentro da história brasileira. Segundo Pastinha (1988, p. 29)
“A História da Capoeira, se inicia com a vinda dos primeiros escravos africanos para o
Brasil”. Vários são os cânticos que narram passagens históricas, cita-se, a seguir, alguns
títulos: Guerra do Paraguai, Princesa Isabel, Escravidão, Navio Negreiro, O Negro
Zumbi, De Zumbi a Mandela, A Escravidão, Adeus Pastinha (CAMISA, 1997). Rego
(1968, p. 257) diz que: “Dentro do aspecto histórico, o acontecimento de maior relevância
na vida funcional do capoeirista foi a guerra do Paraguai que vem mencionada nas cantigas
[…]”
Para Cunha Júnior (2006) cultura, identidade e história fazem parte de um jogo
político de dominação. Diz que:

A identidade é definida por uma síntese de vários fatores sociais que


fazem sentido para um determinado grupo social, e que, por sua vez, não
fazem sentido e não são compreendidos por outros. A identidade negra ou
afrodescendente é definida a partir da experiência social dos povos
originários da África e descendentes. A cultura processada serve de
referência à identidade. (CUNHA JÚNIOR, 2006, p. 82).

Certamente, a Capoeira pode ajudar nesse processo de formação da identidade


afro-brasileira, pois sua prática trata-se, em sua gênese, de uma experiência social dos
povos originários do continente africano. Embora tenha recebido forte influência da cultura
européia nos últimos anos ainda mantém seu caráter negativo de recusa a um sistema
opressor. “A identidade alimenta-se da própria história e produz no significado político
dado a esta história a transformação da história” (CUNHA JÚNIOR, 2006, p. 83).
Ao final desse trabalho constatou-se que a roda de capoeira é um espaço de
resistência cultural onde o dominador tem dificuldade de se estabelecer. A cultura oral que
se processa na composição das cantigas não demonstra empatia com o vencedor. Esse é
rechaçado nas composições e os ídolos e heróis são louvados como representantes dessa
arte marginal.

Referências Bibliográficas

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