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Todo Mundo é um Pouco de Kafka.

Porque Kafka é tão estudado? Essa pergunta me rondou por muito tempo, até eu
li Kafka. Sinceramente, suas histórias não são de tudo geniais. Algumas delas são meio
bobas (que eu não seja crucificado por dizer isso). Por exemplo, um cara que, de um dia
para o outro, acorda com um corpo de barata. Que negócio mais bizarro, não? Sim, é
bizarro. Mas não são essas bizarrices que encantam seus estudiosos e leitores, mas sim a
sinceridade contida nas obras. Os livros de Kafka são, sobretudo, humanos, e muito
humanos.
É inegável o fato de que Kafka foi um baita escritor – escrevia de uma forma
plena, fato que torna a leitura instigante, cativante. Todos reconhecem isso. Todos menos
o próprio Kafka. Apesar de todo o sucesso de sua obra, ele sempre se considerou um
escritor ruim. O mundo gostava de suas obras, contudo ele se convencia de que sua arte
não prestava. Kafka pensava dessa maneira porque ele sofreu de um mal que todos sofrem
– mal esse que é refletido em suas obras.
As obras de Kafka são uma espécie de autorretrato. É aquela história: quando
Pedro fala de Paulo ele diz mais de Pedro do que de Paulo. Em Suas obras, Kafka expressa
suas angústias e as representa de uma forma teatral. Ele sentia-se estranho, insuficiente,
ignorado por todos, sentia-se um animal, sentia que causava nojo nas pessoas que o
rondeavam – isto é, em termos chulos, ele sentia-se um completo bosta. Todos esses
sentimentos explícitos de uma forma tão escancarada fizeram com que sua obra fosse tão
estudada.

Aliás, quem nunca se achou insuficiente, odiado por todos? Quem nunca sentiu
vergonha ao olhar para o espelho? Angústia, desespero, monotismo.

Repúdio à mesmice;
ânsia pelo vento que coreia o rosto e fomenta a alma
quem nunca?
A cada ângulo solar todos inundam-se com tal.

Desatar o nó angustiante e assim tempestar o travesseiro;


covardia de viver, agir e produzir-se no ouro indígena
quem nunca?
A cada ângulo solar todos inundam-se com tal.

Desconhecer o reflexo, estranhar-se aos olhos;


dessaber, indeterminar atitudes voluntárias, jejuar seus significados
quem nunca?
A cada ângulo solar todos inundam-se de humanidade.
Todas as pessoas, sem sombras de dúvidas, já sentiram algo similar a tudo o que
foi dito acima. Somos produtos do que nos cerca, de nossas vivências, experiências. E
apesar de ninguém ser sentimentalmente igual, há coisas que não podemos escapar. Uma
delas são os sentimentos angustiantes – oriundos de uma sociedade doente, baseada em
pressão extrema, estereótipos, competição.
Tudo começa com coisas que ouvimos nos primórdios de nossa vida: “esse vai
causar problemas com as garotas”; “senta que nem moça”; “isso não é coisa de menino”;
“isso não é coisa de menina”; “engole o choro”; “viu?! Ninguém mandou”. Desde cedo
somos rondeados pela pressão e pelos estereótipos. Quando crescemos um pouco
acontecem as mesmas falas, porém agora há, além das anteriores, novas: “ele vai ser
advogado”; “ela vai ser modelo”; “o boletim dele é tudo acima de nove”; “ela parece uma
princesa, é tão quietinha”. A adolescência dispensa exemplos – vestibular, futuro
profissional, relacionamentos, corpo físico, a lista é infinita. Nesse momento, inicia-se a
incitação à competição. Impregna-se nas nossas mentes que devemos sempre nos destacar
– apesar de que realmente devemos nos destacar: devemos nos destacar pelas nossas
particularidades e sua boniteza – e que sempre devemos ser os melhores e blá, blá, blá.
Isso faz, de certa forma, com que todo mundo seja rebaixado, já que para existir
competição deve [1º] haver algo igual que os competidores façam (correr, chutar uma
bola, uma prova…), e [2º] deve haver sempre um perdedor e um ganhador. Contudo, não
estamos nem perto de aptos para competir. Não possuímos gostos e habilidades iguais,
ou seja, é impossível que todas as pessoas do mundo façam a mesma coisa para assim
poder competir nesse âmbito. Aqueles que não se renderem à pressão serão taxados como
derrotados e sofrerão, simplesmente pelo fato de serem diferentes.
Basicamente nos é ensinado a competir em tudo. O vestibulando ao lado torna-se
um inimigo, quando deveria ser um possível futuro colega. A pessoa que trabalha na mesa
ao lado vira “aquele que roubou minha vaga”, quando deveria ser alguém para partilhar
conhecimento e experiências. Tornamo-nos egoístas, frios.
Não vamos ganhar tudo, somos humanos. Não nascemos para ser melhor que os
outros, mas sim para sermos felizes com os outros. Todo esse medo, angústia, insegurança
surge por conta dessa competição, por conta dessa pressão para ganhar. Não temos que
ter o corpo sarado, tirar dez nas provas, passar no vestibular. O mundo vai muito além da
sala de aula. Estudo não é só acadêmico.
No meio dessa confusão esquecemos que somos humanos. Haverá dias em que
vamos estar desesperados. Haverá dias em que sentiremos angústia. Haverá dias em que
choraremos até dormir. Haverá dias de insegurança. Infelizmente isso é inevitável, e tudo
bem se chorarmos, se nos sentirmos mal; ninguém é de ferro, mas ninguém é fraco –
somos de carne e osso: aguentamos coisas muito pesadas; quebramos e rasgamos, porém.

Queria poder terminar esse texto com um parágrafo revolucionário e assim salvar
mundo. Não sou capaz disso. Esse texto é, assim seu autor, incompleto.
“Procurando bem, todo mundo tem pereba, marca de bexiga ou vacina.”
Todos temos mágoas, arrependimentos, vergonhas, angústias, motivos para
chorar, enfim. A melhor forma de lidar com tudo isso é através da fraternidade –
superando, assim, a competição existente. É preciso que estejamos abertos à escuta de
desabafos e à compreensão. Desabafar, muitas vezes, é a melhor coisa a se fazer, aliviar
o peso que carregamos nas nossas costas. Tornemo-nos compassivos, sem que – como de
costume - privemos os outros dessa áurea.

E Kafka? Bem. Ele sentia o mesmo que você. E – just like you – ele tinha um
talento imensurável.

Porto Alegre, 2017-18. Pedro Longo.

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