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ESTUDOS ALEM ÃES

Série coordenada por

E D UARD O P O R T E L LA , E M M A N U E L CAR N E IR O LEÃO


e V A M IR E H CHACON

Ficha catalográfica elaborada pela equipe de pesquisa


d a ORDECC.

Luhm ann, Niklas


L951 Sociologia do Direito I / Niklas Luhm ann; trad u -
» ção de Gustavo Bayer. — Rio de Janeiro: Edições
Tempo Brasileiro, 1983.

252 p. (Biblioteca Tem po Universitário; n.° 75)

Tradução de Rechtssoziologie I

1. Direito — história 2. Sociologia I. Título


II. Série

CDU 340: 30
NIKLAS LUHMANN

SOCIOLOGIA DO DIREITO 1

Tem po Brasileiro

Rio de Janeiro — RJ — 1983


B IB L IO TE C A TE M PO U N IV E R S IT Á R IO — 75

Coleção dirigida por EDUARDO PORTELLA


Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Traduzido do original alemão


Rechtssoziologie 1
Row ohlt Taschenbuch V erlag GmbH
Reinbek bei Hamburg, 1972

Copyright: Westdeutscher V erlag GmbH


Faulbrunnenstr. 13, D-6200-Wiesbaden

Tradução de G u s t a v o B a y e r
Capa de A n t o n i o D ia s e E l i z a b e t h L a f a y e t t e
Program ação textual de M a r ia d a C o n c e iç ã o R a i n h o

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S U M AR IO

IN T R O D U Ç Ã O ................................................................... 7

I — AB O RD AG EN S CLÁ SSIC AS A S O C IO LO G IA DO
D IR E IT O ................................................................. 20

I I — A FO R M A Ç Ã O D O D IR E IT O : BASES DE U M A
T E O R IA SO C IO LÓ G IC A ........................................ 42
1 — Complexidade, contingência e a expectativa
de expectativas .............................................. 45
2 — Expectativas cognitivas e n o r m a t iv a s ........ 58
3 — Processamento de a p o n ta m e n to s ................. 66
4 — Institucionalização ........................................ 77
5 — Identificação de complexões de expectativas 93
6 — D ireito como generalização congruente . . . . 109
7 — D ireito e força física .................................... 123
8 — Estrutura e com portam ento divergente . . . 132

I I I — O D IR E IT O COMO E S T R U T U R A D A SOCIEDADE 167


1 — O desenvolvimento do d ireito e da sociedade 167
2 — O direito a r c a ic o ................................. 182
3 — O direito das culturas antigas ........ 201
4 — A positivação do d ireito .................... 225

5
INTRODUÇÃO

Toda convivência hum ana é direta o u in direta m en te


cunhada pelo direito. C om o no caso do saber, o d ireito é um
fa to social que em tudo se insinua, e do quaX é impossível se
abstrair. Sem o direito, nenhum a esfera da vida encontra
u m ordenam ento social duradouro; n em a fa m ília cm a co­
m unidade religiosa, nem a pesquisa cie n tífica ou a orga ni­
zação pa rtid á ria de orientações p olítica s. A convivência so­
cial sem pre está pré-sujeitada a regras norm ativas que ex­
cluem outros possíveis ordenamentos, e que pretendem ser
im positivos, de form a su ficientem ente efetiva. Sem pre é im ­
prescindível u m m ín im o de orientação através do direito, se
bem que possam variar o grau de explicita çã o das normas
de d ireito,e a sua efetividade em term os de determ inação
com portam ental.
Isso to rn a ainda mais surpreendente que esse fa to do
d ireito pou co ocupe os sociólogos. Nas universidades, a “ So­
ciologia do d ireito” pouco aparece com o disciplina, e quando
isso ocorre, a tarefa de lecioná-la é assumida mais p or ju ris­
tas que p o r sociólogos. F a lta com pletam en te um a relação
en tre essa disciplina e o desenvolvim ento recente de teorias
sociológicas. Tais ligações existem mais co m a discussão bá­
sica das ciências jurídicas. As pesquisas em píricas no cam ­
po da sociologia do d ireito podem ser contadas nos dedos,
se bem que nos últim os anos o interesse ten h a aumentado.
A sociologia do d ireito encontra-se em desvantagem na com ­
paração com outras áreas da pesquisa sociológica, com o a
sociologia da fam ília, a sociologia da organização, a socio­
logia p olítica , a da estratificação e mobilidade sociais, e a
da teoria dos papéis. Seria possível até m esm o questionar se
existe u m a sociologia sociológica do direito. A sociologia do
d ireito só poderia ser fecundam ente desenvolvida com o a tivi­

7
dade secundária de juristas, com o Hermann K antorow icz
contrapôs aos sociólogos reunidos em seu p rim eiro congresso
alem ão2 Essa fecundidads, porém , não se expressou, e ainda
hoje parece tratar-se aqui essencialmente de uma aspiração
dos juristas, desejosos p or um a u xílio na aplicação de sen­
tenças e na fa cilita çã o de fundam entações, mas talvez ta m ­
bém p or um aconselham ento p olítico-ju ríd ico.
P o r que a sociologia do d ireito é tão d ifícil para os so­
ciólogos?
Os sociólogos podem sim plesm ente rem eter-se à própria
ciência juríd ica, sob cu jo con trole conceituai o d ireito de­
senvolveu-se a um nível de com plicação extraordinário. Sem
estudos especiais penosos não seria possível penetrar nessa
m atéria. Quem não soubesse, por exem plo, o que significa
provocar a validade ju ríd ica , ação negatória, ato adm inistra­
tiv o de duplo efeito etc., co n tin u a ria sendo u m m ero d ile­
tante e não poderia avaliar questões jurídicas. Sem um a com ­
preensão para os conceitos, os símbolos e os instrum entos
de argum entação do ju ris ta não seria possível prog red ir
tam bém em term os sociológicos. Como seria possível, por
exem plo, analisar se a proveniência social de um ju iz in ­
fluencie suas sentenças, se não se puder avaliar se seus argu­
m entos são corretos ou errados, ou utilizados de form a sig-
n ifica n tem en te distorcida, mas ainda sustentável em te r­
mos jurídicos.
Um a ou tra dúvida fundam enta-se em que o d ireito re­
flete-se direta ou in direta m en te em todas as esferas da vida,
sendo, porta n to, d ificilm en te isolável, em term os em píricos,
corno u m fenôm eno específico. Um a sociologia do d ireito que
pretendesse perserutar estas ram ificações não só precisaria
absorver o conhecim ento ju ríd ico -cie n tífico , mas teria que
constituir-se com o siciologia em sua totalidade e, além
disso, servir aos juristas com o guichê geral de inform ações
sociológicas. Na prática, porém , essa tarefa é irrealizável.
N ão é p or mera casualidade que as sociologias especiais bem
sucedidas, com o a sociologia da fam ília, a sociologia da or­
ganização, a sociologia p o lítica e atualm ente cada vez mais
tam bém a sociologia da ciência, têm por tema sistemas so­
ciais demarcados na própria realidade social. Fm outros ca­
sos, com o no da sociologia da juventude ou no campo de pes­
quisas sobre estratificaçóes e mobilidade, estã o. dadas deli­
mitações do objeto bem operacionalizáveis Sempre que o

8
cam po de pesquisas não apresenta critérios claros de demar­
cação, as sociologias especiais são levadas à situação crítica
de se co n stitu írem com o teoria sociológica geral, ou então
definhar. Isso ocorreu com a sociologia do conhecim ento em
sua tentativa de tem atizar a orientação cogn itiva em um a
sociologia especiaL O mesmo sucede com a sociologia do di­
reito — em um paralelismo cujas razões iremos desvendar
— na medida, em que ela deseje fazer da orientação norm a­
tiva com o u m todo o tem a de um a sociologia especial.2
A tu a lm en te observa-se a tendência a esquivar-se dessas
dificuldades de form a singular. P o r um lado eodge-se da so­
ciologia do d ireito um a referência toda especial ao próprio
direito. N em todo ingresso em um a loja com ercial é interes­
sante em term os jurídico-sociológicos, tão-som ente porque
u m escorregão em um a escada demasiadamente encerada
poderia a tin g ir o dever do p rop rietá rio em ga ra n tir a segu­
rança do trânsito público em suas dependências, gerando
assim um a obrigação de responsabilidade. P elo contrário,
teria que tratar-se de com portam entos no bojo de papéis em
pa rticu la r centrados e relacionados tem aticam ente com o
direito, co m o reações a mudanças legais, solicitações de opi­
niões sobre determinadas questões legais, ou situações se­
melhantes. C om isso porém , e esse é o o u tro aspecto, elim i­
na-se o d ireito em sua totalidade, em sua complexidade, em
sua fu n çã o social, em seu caráter basilar onipresente, ao
qual pode-se recorrer enquanto possibilidade. O direito desa­
parece da sociologia do direito. ' Nesse sentido apresentam-se
diversas possibilidades, algumas das quais com eçam a de­
senvolver-se com o pontos centrais de um a nova sociologia do
direito voltada para a pesquisa em p írica :'
Um a saída consiste em desviar a atenção do direito para
o jurista. C om isso o sociólogo volta a trilh a r um terreno
que lhe é fam iliar. P a rtin d o de u m conceito centra l da socio­
logia mais recente, ele pode pesquisar o papel do jurista.
Nesse con texto ele se depara com diversas configurações, co­
mo o papel do juiz, do advogado, do ju rista adm inistrativo,
do ju rista econôm ico, do procurador. A q u i poderia interes­
sar a com binação desses papéis, sua consistência profissio­
nal e, em term os mais detalhados, por exemplo, a verifica­
ção se esses papéis possuem traços em com u m que possibi­
litem um a interação funcional, um a amenização de co n fli­
tos, um a objetivação dos controles recíprocos. A teoria dos

9
papéis leva ainda à indagação se as expectativas de papéis
são consistentes umas com as outras, e ainda sobre quais
medidas de precaução e quais estratégias com portam entais
se prestam, para superar contradições entre expectativas de
papéis, possibilitando, assim, que p or exem plo um advogado
concilie a representação dos interesses do seu cliente com o
exercício digno do direito.
Tais reflexões fazem parte de pesquisas que vêem o ju ­
rista com o um a profissão. C om isso é ressaltada a questão da
carreira, isto é, a verificação de com o determinadas carac­
terísticas (proveniência social, rendim ento na form ação p ro ­
fissional, idade, com provação em determinados papéis, re ­
ligião, relações políticas, e tc .) se distribuem ao longo do tem ­
po entre as diversas posições hierárquicas, ou seja: quem,
com quais características, chega onde? Ou então indaga-se
sobre o grau de profissionalização dessa atividade, p o r um
lado no sentido da propriedade de u m conhecim ento inaces­
sível em termos genéricos, e p o r ou tro lado na medida em
que as chances daí decorrentes estejam vinculadas a uma
ética profissional específica.
Pesquisas deste tip o5 não dependem, em sua abordagem,
sua explicação conceituai e seu método, de u m esclarecimen­
to prévio do p róp rio d ireito e sua função social. Elas podem
ser realizadas nesta mesma form a para o caso de médicos,
empresários, teólogos, soldados, arquitetos, etc. A referência
à tem ática do papel ou da profissão serve apenas para o re­
corte de um cam po de pesquisa m elh or pormenorizado, e
para a determ inação de algumas condições param étricas —
com o o problema da m orte para o médico e, em ou tra form a,
para o soldado, ou o do c o n flito para o jurista. Os entrela­
çamentos teóricos ligam estas pesquisas não com a sociolo­
gia de direito, mas com a teoria dos papéis e co m a sociologia
das profissões: é de lá que elas recebem seus impulsos, e para
lá se destinam seus resultados generalizáveis.
A lgo semelhante ocorre com u m segundo tip o de esfor­
ços, que tentam esclarecer o com portam ento de pequenos
grupos que exercem decisões jurídicàs, prin cipalm en te nos
casos de colegiados de juizes. Ás questões a serem pesquisa­
das e as técnicas são tomadas da pesquisa de pequenos g ru ­
pos, e já se com provaram em contextos com pletam ente dife­
rentes (com o na sociologia industrial e em grupos experi­
m enta is). Os colegiados apresentam-se com o u m “ experi­

10
m ento n a tu ra l” , com o u m m icrosistem a bastante n ítid o e
que opera de form a relativam ente isolada, n o qual é possível
observar-se, diretam ente ou através de questionários e en­
trevistas, o efeito de diversos fatores, tais quais status social,
simpatias, freqüência de interações, com petência na supera­
ção de diferenças internas de opinião. O interesse central
até agora está voltado para um a colocação bastante lim ita ­
da do problem a: até que p on to diferenças na estratificação
social e preconceitos ideológicos in flu en cia m ou são neutra­
lizados no processo de decisões judiciárias,6 N o lugar da ques­
tão ju stiça x injustiça, que interessa aos participantes, pro­
cura-se verifica r qual opinião, sustentada p o r quais fatores,
se im põe na decisão. Com isso perde-se de vista não apenas
o próp rio direito, mas o processo decisório em si, a interação
judiciária, o diálogo ju ríd icoJ
Uma terceira possibilidade consiste em deslocar o tema
de pesquisa do direito em si para as opiniões sobre o direito,
as quais são levantadas através das técnicas da m oderna pes­
quisa de opiniões. Espera-se que essas pesquisas averígüem e
apurem algum a coisa sobre a disseminação do conhecim en­
to ju ríd ico na população, sobre quais são as atitudes predo­
m inantes com relação ao p róprio d ireito e à organização que
cuida do d ireito : principalm ente a ju stiça.8 Nesse sentido se­
ria im p orta n te, entre outras coisas, saber se o conhecim ento
ju ríd ico varia conform e a posição na estratificação sócial,
se a idade, a educacão, o sexo ou a inclusão em determinado
grupo resultam em diferenças nas atitudes co m relação a
certas questões jurídicas. Tais pesquisas adquirem um a rele­
vância prática ao indagar-se com o alterações legais seriam
absorvidas ou teriam efeito sobre a população — se elas ge­
rariam o com p orta m ento intencionado, ou se esvaziariam
devido ao desconhecim ento, ao tradicionalism o ou a interes­
ses, contrá rios.9 De fato, porém , apura-se apenas respostas,
e não opiniões, e m u ito menos disposições com portam entais.10
Vê-se aqui tipicam ente que o valor de tais pesquisas co­
m o instrum entos do conh ecim en to depende fortem en te da
tem ática ju ríd ica captada. A disseminação do conhecim en­
to sobre o d ireito do in q u ilin a to não p erm ite qualauer con­
clusão sobre a disseminação do conh ecim en to o direito de
sucessão. XJma pesquisa sobre as conseqüências sociais de
um a lei sobre empregados domésticos d ificilm en te verm iti-
ria prever os efeitos de um a lei con tra a venda de bebidas al­
coólicas a jovens; ainda mais, teria que perm anecer em aber­

11
to se as mesmas leis não poderiam ter outras conseqüências,
um a vez vinculadas a determinações ou mecanismos de con ­
trole diferentes. Nisso fica demonstrado com o a própria com ­
plexidade do d ireito estabelece estreitos lim ites à pesquisa
em pírica sociológica. A diversidade objetiva da tem ática ju ­
ríd ica d ificu lta o esforço generalizante, no mais típ ic o para
a pesquisa sociológica: a form ação de correlações e hipóteses
genéricas sobre complexões com portam entais.
C om isso retornam os ao nosso pon to de partida. O co n ­
to rn o do direito, tido com o demasiadamente d ifíc il não per­
manece de todo estéril na mais recente pesquisa ju ríd ico -
sociológica. Ela pode, perfeita m en te, dar seus frutos. As pes­
quisas que atualm ente se desenvolvem sob tais perspectivas
heterogêneas não devem ser desencorajadas ou até in te rro m ­
pidas, com o se fossem descaminhos. P o r ou tro lado é evi­
dente que elas não satisfazem enquanto sociologia do d i­
reito. Falta-lhes o p róp rio direito, e com isso fa lta tam bém
a conexão in tern a entre essas diversas abordagens de pes­
quisa.11 A análise dos papéis profissionais em nada co n trib u i
para a pesquisa de opiniões, e a pesquisa de opiniões não fo r­
nece qualquer hipótese para a análise do processo da deci­
são judicial. Apenas seria possível traçar algumas grosseiras
linhas de ligação — com o no sentido da hipótese de que ju i­
zes eruditos, provenientes de camadas sociais mais elevadas,
não produziriam um a jurisprudência que tivesse ressonância
ju n to à população. U m a integração convincente daquelas
pesquisas em píricas só seria realizável através da rein tro d u -
ção do d ireito na sociologia juríd ica, p or m eio de u m a so­
ciologia do d ireito levada a sério.
U m ta l program a, porém , não ultrapassa as dificuld a ­
des já mencionadas, mas leva diretam ente a elas. O que im ­
porta , p ortanto, é te r clareza sobre o cerne destas dificulda­
des encaminhá-las em term os conceituais claros, já que
não é possível um a solução simples.
O ordenam ento ju ríd ico , ta l com o nós o conhecem os
atualm ente, é um a construção de alta complexidade estru tu ­
rada. Complexidade deve ser entendida aaui e no restante
desse texto com o c. totalidade das possibilidades de experiên­
cias ou ações, cu ja ativação p erm ita o estabelecim ento de
um a relação de sentido — no caso do d ireito isso sign ifica
considerar não apenas o legalm ente perm itido, mas tam bém
as ações legalm ente proibidas, sempre que relacionadas ao
d ireito de form a sensível, com o, p or exemplo, ao se ocu lta ­

12
rem .12 A complexidade de um cam po de possibilidades pode
ser grande ou pequena, em term os quantitativos, de diversi­
dade ou de interdependência. A lém disso ela pode ser deses-
truturada ou estruturada.13 A com plexidade totalm en te de-
sestruturada seria o caso lim ite da névoa origina l, do arbí­
trio e da igualdade de todas as possibilidades. A com plexi­
dade estruturada constitui-se na medida em que as possi­
bilidades se excluam ou lim ite m reciprocam ente. N a com ­
plexidade estruturada, portanto, surgem problemas d e.com ­
patibilidade e compossibilidade. A ativação de um a determ i­
nada possibilidade bloqueia a da ou tra , mas perm ite, por
ou tro lado, a construção de novas possibilidades que a pres­
supõem. Desta form a um a “ co n titu içã o de Estado de direi-
to” e xclu i mais ou menos efetivam ente numerosos modos
com portam entais, abrindo porém , e exatam ente p or isso, o
cam inho para outros modos com portam entais, com o por
exem plo ações constitucionais que de ou tra form a não se­
ria m possíveis, p o r dependerem da estruturação (sendo con­
tin g en tes). C om isso a estrutura pode a u m en ta r a com plexi­
dade de u m sistema social no sentido de que, apesar da lim i­
tação recíp roca das possibilidades, n o to ta l dispõe-se de mais
possibilidades para um a escolha sensata. É exatam ente a
exclusão estratégica de possibilidades que, vista em term os
evolutivos, co n stitu i o m eio para a construção de ordena­
m entos mais elevados, que não podem con sen tir com toda e
qualquer possibilidade mas, exatam ente p or isso, gara n tin ­
do sua heterogeneidade.
E videntem ente o d ireito exerce u m a fu n çã o essencial, se
não decisiva, no alcance de um a com plexidade mais a lta e
estruturada em sistemas sociais. A o buscar-se, porém , um
in stru m e n ta l de pesquisa apropriado para tais sistemas,
chocam o-nos com o um a clara deficiência. N ão ê exagerado
registra r que o desenvolvim nto c ie n tífic o encontra-se com o
que estrangulado p or um desfiladeiro, perante sistemas com
elevada com plexidade estruturada, e que o alargam ento se­
guro desse desfiladeiro só poderá ser realizado vagarosamen­
te. Isso é válido para qualquer ciência, mas mais n itidam en­
te para as ciências sociais.1* O rep ertório de métodos e teorias
de que dispomos atualm ente pressupõe microsistemas, de baixa
complexidade, p o r exem plo pequenos grupos experim entais,
nos quais apenas poucas variáveis estão correlacionadas, to r­
nando defensável a cláusula “ ceteris-paribus” , ou então se re­
fere a u m grande n úm ero de fatores homogêneos, aleatoria-

13
tnente dispersôs, que podem ser tratados com métodos esta­
tísticos — ou seja, sistemas de baixa complexidade estrutu­
rada, ou de alta complexidade desestruturada. E m co n tra ­
posição, fa lta m instrum entos para aquele que talvez seja o
mais im p orta n te cam po da pesquisa: os macrosistemas alta­
m ente complexos e estruturados — se bem que esse proble­
m a pelo menos tornou-se exp lícito no funcionalism o e na ci­
bernética, onde tam bém podemos encontrar algumas abor­
dagens apropriadas nesse contexto.
Essa situação se reflete claram ente nos esforços, antes
descritos, de con stitu ir um a sociologia em pírica do direito,
e tam bém eocplica sua deficiência. Com os conceitos de pa­
pel, profissão, carreira, processo decisório, opinião ou a titu ­
de, a pesquisa em pírica fixa-se em microsistemas estrutu ­
rados ou em grandes quantidades homogêneas pouco estru­
turadas, e excluem o d ireito com o estrutura de u m m acro-
sistema com plexo. Agora podemos visualizar o m o tivo que
parece força r essa opção: ele está localizado no nível d ificil­
m ente altêrável do desenvolvimento da ciência, na falta de
u m in stru m enta l adequado a macrosistemas complexos e es­
truturados.
O problem a é aguçado na medida em que os recursos
m etodológicos foram concebidos, elaborados e bastante aper­
feiçoados no co n te xto dos campos de pesquisa até então aces­
síveis, ou seja em pequenos sistemas ou grandes quantidades
pouco estruturadas. Esses progressos nos recursos m etódi­
cos passam, então, a d e fin ir u m nível de exigências in a tin ­
gível no caso que nos interessa; o dos macro-sistemas. Em
term os de com pararão com o referencial do século X I X ,
quando as teorias jurídico-sociológicas clássicas fora m fo r­
muladas, fo i considerável o crescim ento atual das exigências
em term os de referência m etodológica, precisão conceituai
e de tom probabilidade em pírica. Isso fica expresso, por exem ­
plo, na exigência de que afirm ações teóricas sejam “ opera-
cionalizáveis>> — um a exigência que não pode ser satisfeita
p o r nenhum a das teorias até agora colocadas em discussão
n o con texto dos macrosistemas. Nessas circunstâncias, quais
possibilidades cànda restam à sociologia dó direito?
É possível, e nós irem os tentar, sustentar e tem atizar o
problem a, aparentem ente insolúvel ao nível atual da ciên­
cia, da alta complexidade estruturada. Para a sociologia d o'
d ireito isso significa p a rtir da questão do direito com o estru­
tu ra de u m sistema "social. Seguindo as considerações pré-

14
vias acim a esboçadas, a estrutura de um sistema social tem
p o r fu n ç ã o regular a com plexidade do sistem a. Em últim a
análise a com plexidade de um sistem a é sem pre a com ple­
xidade estruturalm ente possibilitada (contingente). mas p o r
outro lado tam bém a estrutura do sistem a depende de sua
complexidade, pois im prováveis estruturas arriscadas, como
a m u ta b ilid a d e legal do d ireito, j á pressupõem um a a lta
com plexidade do sistema. Sistem as sim ples têm necessida­
des estruturais diferentes de sistemas mais complexos, mas
ta m b ém p oss u em m enos p oss ib ilid a d es de e rig ir e m a n ­
ter estruturas relevantes enquanto pressupostos de outras
possibilidades estruturais. Sociedades simples, p or exemplo,
possuem um d ire ito tra d icion a lm en te determ inado, co n ce­
bido em term os relativam ente concretos. No decorrer do de­
senvolvim ento social em direção à complexidade mais eleva­
da, o d ire ito tem que abstrair-se crescentem ente, tem que
a d q u irir u m a ela sticid a d e c o n c e itu a l-in te rp re ta tiv a p a ra
a bran ger situações heterogêneas, tem que ser m odificá vel
através de decisões, ou seja: tem que tornar-se direito posi­
tivo. Nesse sentido fo rm a s estruturais e graus de com plexi­
dade da sociedade condicionam-se reciprocamente.
Desta fo r m a é necessário ver e pesquisar o direito como
estrutura e a sociedade com o sistem a em um a relação de
in terd ep en d ên cia recíproca. Essa rela çã o possui ta m bém
um aspecto tem poral, além do m aterial, levando, portanto,
a um a teoria evolucionista da sociedade e do direito. A re ­
fe rê n cia a esse teorema qualifica conceitos, teorias e pesqui­
sas em píricas com o ju ríd ico-sociológicos. Nesse contexto as
considerações a seguir encontram sua coerência e sua uni­
dade.
E m um prim eiro capítulo verem os que esse posicioiyá-
m ento j á vinha sendo elaborado nas abordagens clássicaiS à
sociologia do direito, e mais claram ente até do que podemos
observar atualm ente. Para a dquirirm os e especificarm os a
base teórica teremos, então, que nos voltar, em um segundo
capítulo, aos mecanismos elementares da formq.ção do direito,
ou seja escla recer o que se com preen de p o r norma, e que
fu n ç ã o o preceito norm ativo preenche na vida social. Nesse
contexto recentes pesquisas psicológicas, sócio-psicológicas e
sociológicas avançam bastante além do norm alm ente a pre­
sentado na doutrina das fo n te s de direito e na distinção en­
tre os diferentes tipos de norm as ju ríd ic a s e pré-jurídicas.
Com base nas colocações do problem a assim adquiridas, p o ­

15
demos travar, em um terceiro capítulo, um a visão panorâm ica
sobre as linhas básicas da evolução social e do desenvolvi­
m en to do direito. A linha m estra dessa análise será a h ip ó­
tese de que a elevação da complexidade social exige e possi­
bilita m odificações no arcabouço ju ríd ico. Isso leva á co n ­
cepção de que a sociedade in du strial moderna tem que ins­
ta u ra r seu d ireito com o d ireito positivo, e m odificável p o r in ­
term édio de decisões. O ca rá ter positivo do direito, estra­
nham ente negligenciado pela sociologia do d ireito mais an­
tiga, será o objeto do quarto ca pítulo, o qual tam bém tra ta ­
rá de problemas e mecanismos específicos aos modernos o r­
denamentos jurídicos, assim com o de questões que se colo­
ca m para pesquisas juríd ico-sociológicas atuais. O quinto
ca p ítu lo tra ta das possibilidades, condições e dificuldades
que a positivação do d ireito apresenta às alterações estru tu ­
rais na sociedade. Na medida em que desta form a possamos
visualizar as bases e o cam po de pesquisa da sociologia de
d ireito, poderemos, finalizando, extra ir conclusões sobre a
m u ito discutida relação en tre a ciência do direito, a sociolo­
gia e a sociologia do direito.

16
NO TAS D A IN T R O D U Ç Ã O

1 Rechtswissenschaft und Soziologie. V erh a n ã lu n gen des Ersten


D eutsch en S oziologentages 1910. Tübingen 1911, p. 275-309.
2 Com essa fundamentação a possibilidade de uma sociologia
autônoma do direito é refutada, por exemplo, em STONE, Julius.
S ocia l ã im ensions o f law and ju stice. Londres, 1966, p. 28 ss.
3 Expressamente, por examplo, na introdução de TRAPPE, Paul
a G E IG E R , Theodor. V orstud ien zu e in e r S oziologie des R echts.
Neuwied/Berlim, 1964. Cf. também, do mesmo autor: Z u r S itu a tio n
der R echtssoziologie. Tübingen, 1968, especialmente p. 19 ss.
* P a ra uma visão geral da pesquisa internacional ver: TREVES,
Renato. L a sociologia del d iritto . Milão, 1966. TREVES, Renato e
VA N LOON, Jan F. G. N orm s and actions. Haia, 1968. TREVES,
Renato. N u o v i svilu p p i delia sociologia del d iritto . Milão, 1968.
EISERM ANN, Gottfried. D ie P ro b le m e ãer R echtssoziologie. A rc h iv
für Verwaltungssoziologie — Beilage zum gemeinsamen Amtsblatt
des Landes Baden-W ürtem berg 2, n.° 2, 1965, p. 5-8.
5 Alguns exemplos: R ICH TER , W alter. Die Richter der Ober-
landesgericlite in der Bundesrepublik. H a m b u rg e r Ja h rb u ch fü r
W irts ch a fts — und G esellsch a ftsp olitik , n.° 5, 1960, p. 241-259.
DAH R END O R F, Ralf. B em erk u n g en z u r sozialen H e rk u n ft und
S te llu n g R ic h te r an O berla n d esgerich ten , ibidem p. 260-275. R IC H -
TER, W alter. Z u r soziologischen S tru k tu r der deutschen R ic h te r schaft.
Stuttgart, 1968. Z W IN G M A N N , Klaus. Z u r S oziologie des R ich te rs in
der B u nd esrepublik D eutschland. Berlim , 1966. FEEST, Johannes.
Die Bundesrichter — Herkunft, K arriere und Auswahl der juristi-
chen Elite. Em ZAPF, W olfgang. B e itra g e zu r Analyse der deutschen
O b ersch ich t. Munique, 1965, p. 95-113. K A U P E N , W olfgang. D ie H ü te r
von R e c h t und O rdnung. Neuwied/Berlim, 1969. W E Y R A U C H , W alter
O. Z u m G esellsch a ftsbild des Ju risten . Neuwied/Berlim, 1970. K A U PE N ,
W olfgang e RASEHORN, Theo. D ie Justiz zioischen O b rigkeitsstaat
und D em ok ra tie. Neuwied/Berlim, 1971. P a ra os advogados, ver prin­
cipalmente as pesquisas americanas, por exemplo: CARL1N, Jerome
E. Latvyers on th e ir own. Brunswick/N J., 1962. SM IGEL, Erwin O
The W a ll S tre e t Lawyer. Nova Iorque/Londres, 1964.
<* Cf.: SCHUBBERT, Glendon. Behavioral research in public
law. T h e a m erica n p o litic a l science review . n.° 57, 1963, p. 433-445.
STRODTBECK, Fred; JAMES, Rita M. e H A W K IN S , Charles. Social

17
status in jury deliberations. A m e rica n soçiologica l review n.° 22,
1957, p. 713-719. STR O D TBECK , Fred. S ocia l process, th e law and
ju ry fu n c tio n in g . Glencoe/lll., Í962. SCHUBERT, Glendon. Q u a n ti-
ta tiv e analysis o f ju d ic ia l b eh a vior. Glencoe/lll., 1959. Idem. J u d icia l
d e cis io n -m a k in g . Nova Iorque/Londres, 1963. Idem. Ju d icia l behavior.
Chicago, 1964. Idem. T h e ju d ic ia l m in d . Evanston, 1965. K A LV E N ,
H arry e ZEISEL. Hans. T h e a m erica n ju ry . Boston, 1966. GRO SSM AN,
Joel B. e TANENH AUS, Joseph. F ro n tie rs o f ju d ic ia l research. Nova
Iorque, 1969. Ver ainda os simpósios: Jurimetrics. Law and c o n -
te m p ora ry problem s, n.° 28, 1963, p. 1-270. Social Science approaches
to the judicial process. H a rva rd law review , n.° 79, 1966, p. 1551-1628.
P a ra uma visão geral mais recente ver: R O TTLE U TH N E R , Hubert.
Zur Soziologie richterlichen Handelns. K ritis c h e Justiz, 1970, p. 282-
306. Idem, ibidem, 1971, p. 60-88.
7 O último aspecto foi brilhantemente criticado em: H O W AR D ,
J. Woodford. On the fluidity of judicial choice. T h e a m erica n p o li-
tic a l science review , n.° 62, 1968, p. 45-56. A consideração insuficiente
do direito em si e em toda a sua complexidade é criticada, por
exemplo em: M ENDELSON, W allace. The neo-behavioral approach
to the judicial process. T h e a m e rica n p o litic a l science review , n.° 57,
1963, p. 593-603. BECKER, Theodore L. P o litic a l b eh a viorism anã
m o d e m ju risp ru d en ce. Chicago, 1964. FULLER , Lon L. An afterword:
science and the judicial process. H a rva rd law review , n.° 79, 1966,
p. 1.604-1.628.
8 Cf. por exemplo: SEGERSTEDT, Torgny, et al. A research
into the general sense of justice. T h e o ria , n.° 15, 1949, p. 323-338.
ROSE, Arnold M. e PRELL, Arthur. Does the punishment fit the
crime? T h e a m erica n jo u rn a l o f sociology, n.° 61, 1955, p. 247-259.
M U R PH Y , W alter F. e TA N E N H A U S, Joseph. Public opinion and
the United States Supreme Court. Law and society review , n.° 2,
1967, p. 357-384. G IB B O N S, Don C. Crime and punishment. S ocia l
forces, n.° 47, 1969, p. 391-397. Ver ainda os relatórios de pesquisa
em A cta sociologica, n.° 10, 1966. P a ra as pesquisas polonesas, ver
PO DGÕ RECK I, Adam. Dreistufen-Hypothese über die W iksankeit
des Rechts. Em HIRSCH, Ernst E. e REH BIND ER , M anfred. Studien
und Materialien zur Rechtssoziologie. K ò ln e r Z e its c h r ift f ü r S ozio­
logie und Sozialpsychologie, caderno especial n.° 11, 1967, p. 271-283.
9 P. ex.: AUBERT, Vilhelm. Einige soziale Funktionen der
Gesetzgebung. Em H IRSCH /REH BINDER, op. cit., p. 284-309.
10* Cf. DEUTSCHER, Irwin. W ords and deeds. S ocia l problem s,
n.° 13, 1966, p. 235-254.
11 Cf.: G IBBS, Jack P. The sociology of law and normative
phenomena. A m e rica n s o cio lo g ica l review , n.° 31, 1966, p. 315-325.
SAU ER M AN N , Heinz. Die soziale Rechtsrealitãt. A rc h iv fü r a n g e -
w andte S oziologie, n.° 4, 1932, p. 211-237.
12 P a ra esse importante esclarecimento ver abaixo, item I I I . 8.
13 N a literatura da teoria de sistemas encontramos freqüente­
mente a diferenciação entre complexidade desorganizada e o rg a n i­
zada, sendo que a última serve de protótipo para o organismo. Cf.
V O N BER TA LA N FFY, Ludwig. General system yheory. G en era l

18
systems, n.° 7, 1962, p. 1-20. P a ra um esclarecimento mais deta­
lhado do conceito de complexidade ver minha contribuição em
H ABERM AS, Jürgen e LU H M A N N , Niklas. T h e o rie der G esellsch a ft
oder S ozia ltech n olog ie. Frankfurt, 1971, p. 292 ss.
14 Cf.: W E AVER , W arren. Science and complexity. A m e rica n
scien tist, n.° 36, 1948, p. 536-544. L É V Y -S T R A U S S , Claude. A n th r o -
pologie s tru ctu ra le . Paris, 1958, p. 350. EM ERY, P. E. The next thirty
years. H u m a n rela tion s, n.° 20, 1967, p. 199-237.

19
I — ABORDAGENS CLÁSSICAS A SOCIOLOGIA
DO DIREITO

Só se pode falar de sociologia do direito a partir do m o­


mento em que exista a própria sociologia, ou seja apenas des­
de a segunda metade do século X IX . Essa não é apenas uma
constatação evidente, tal qual um óbvio terminológico. Isso
porque a sociologia dá um cunho todo especial ao interesse
cientifico no direito, claram ente distinto de tudo que a ante­
rior tradição européia já tinha pensado sobre a relação entre
sociedade e direito.
Aquela tradição doutrinária, de cujo desmoronamento,
na virada do século X V III ao século X IX , surgiu a sociolo­
gia, concebia a relação entre sociedade e direito de form a
mais concreta.1
Para ela o direito sempre já se apresentava como dado,
na essência das associações humanas; ele era im anente à
sua natureza e indissoluvelmente enredado com outros tra ­
ços característicos da sociedade, com a proximidade social
(am izade) e com relações de hierarquia (dom inação). So­
mente a predeterminação natural-verdadeira do que seja
direito possibilitava a liberdade’ concreta em instituições po­
líticas — e não ao contrário, como no sentido de que o
problema com relação ao direito tão só teria que ser criado
através de uma liberdade abstrata e indeterminada. Para o
pensamento em termos de direito natural o convívio na so­
ciedade humana não delineava apenas uma normatividade
abstrata como form a do dever-ser de conteúdos indiscrim i­
nadamente engendráveis, ou seja não apenas a pura e sim­
ples imprescindibilidade funcional das normas, mas traça­
va, além disso, normas determináveis em sua substância, que
podiam reivindicar para si um surgimento e uma verdade
por assim dizer naturais. Desta form a não se tinha qualquer

20
dúvida ao afirmar-se que a sociedade seria uma relação de
direito, ou até mesmo um contrato2 — um a formulaçào que
nenhum sociólogo teria coragem de repetir, apesar de toda
valorização da função e da imprescindibilidade de um orde­
namento jurídico.
É aqui que a distância fica evidente. Ainda assim o di­
reito natural já havia preparado a interpretação sociológica
do direito, em sua últim a fase, como direito racional, e isso
exatamente com o auxílio da categoria do contrato. O ho­
mem é abstraído como sujeito, e o contrato tom a-se a cate­
goria através da qual a dimensão social da vida humana pode
ser pensada como disponível e como contingente em qual­
quer de suas configurações. A contingência das relações hu­
manas ainda é im aginada em uma form a do direito, mas ao
mesmo tempo isso envolve uma ta l radicalidade abstrata, a
partir da qual qualquer direito torna-se possível.® Uma \^z
atingido esse ponto, não é mais possível retornar às crenças
do passado em formas concretamente vinculadas ao direito:
resta apenas a possibilidade de am pliar a tese do con trato
como o único mecanismo de redução, no sentido da socieda­
de como sistema social — e esse é o caminho da sociologia.
Comparando com o direito natural, a sociologia vê a
relação entre sociedade e direito também como o indissolúvel,
só que mais abstrata, ou seja, com um m aior espectro de va­
riações. Também a sociologia pode aceitar a tese de que
toda sociedade tem que possuir um a ordem jurídica;4 mas
não a tese seguinte de que, por isso mesmo, certas normas
jurídicas seriam igualmente válidas para todas as socieda­
des. No âmbito da comparação histórica e etnográfica, pos­
sibilitada pelas pesquisas do século X IX , praticamente não
é possível constatar-se invariâncias normativas, quando mui­
to apenas em abstrações quase desprovidas de qualquer sen­
tido. O direito surge, então, como uma construção social em
princípio indispensável, mas sempre contingente em cada
efetuação. Essa contingência, esse condicionamento da
opção por outras possibilidades, torna-se o tema da sociolo­
gia do direito.
À prim eira vista isso pode parecer uma mera debilita­
ção, um a versão mais abstrata da visão européia tradicional.
Com essa abstração, porém, conquista-se a redenção do di­
reito natural, a liberação com relação à predominação de
certas normas de direito de validade genérica, e com isso
uma perspectiva mais distanciada para com o próprio direi­

21
to. A pura existência da sociedadede não mais perm ite a de­
dução direta da vigência de determinadas normas, pelo con­
trário, direito e sociedade têm que ser abarcados integral­
mente, como variáveis empiricamente pesquisáveis, que se
interperm eiam de form a determinada. Para poder avaliar,
sem preconceitos, quais sociedades podem possuir que tipo
de ordenamentos jurídicos, torna-se necessário abdicar da
premissa de que todas sociedades tenham que reconhecer
um determinado direito. P or isso a sociologia não se sente
obrigada, e sequer autorizada, a com partilhar com a orien­
tação norm ativa da vida em sociedade, e a procurar a base
de sua vigência em normas superiores e princípios indubitá-
veis, pois desta forma, como E m ile D u rk h eim observou quase
ironicamente, ela identificaria não a realidade da m oral de
determinadas sociedades, mas apenas o modo como o m ora­
lista concebe a moral.B
O distanciamento com relação à visão introspectiva do
direito e sua fundamentação m oral caracteriza os esforços
que podemos designar com o as abordagem clássicas à socio­
logia do direito. Elas se compreendem como sociológicas devi­
do a esse distanciamento e à avaliação da m oral a partir de
perspectivas incongruentes. Além disso elas se deixam le­
var pela hipótese de que seria possível adquirir um conhe­
cimento causai, empiricamente fundamentado, sobre a so­
ciedade e sua relação com o direito. Esse conhecimento é
articulado através de um quadro referencial histórico-evolu-
cionista. A noção de evolução oferece a possibilidade da rela-
tivização, secularização, temporalização do direito natural.
Enquanto processo, a evolução é concedida em termos cau­
sais, mas com respeito ao seu sentido, ela é pensada através
de categorias morais, como progresso. Concede-se ao direito
uma posição central no desenvolvimento social — não como
u m í causa impulsionadora ou planejada no sentido político
do desenvolvimento, mas como form a e expressão da situa­
ção social correspondente. Assim, apesar das diferenças en­
tre as versões individuais, é possível reconhecer três premis­
sas comuns à sociologia clássica do direito, através das quais
ela se diferencia da doutrina do direito natural: 1) O direito
é diferenciado como estrutura norm ativa da sociedade, como
um conjunto fático de vida e de ação. (O direito não mais é
a sociedade.) 2) Direito e sociedade são concebidos como
duas variáveis dependentes entre si, e correlação em sua
variação é concebida em termos evolucionistas — no século
22
X I X geralm ente como o progresso regular da civilização.
3) Sob tais condições podem ser estabelecidas hipóteses so­
bre a relação entre direito e sociedade, as quais são empiri-
camente controláveis e verificáveis através da observação da
correlação, em suas variações.
No entanto, tomando por referência as exigências
atuais, não foram esclarecidas as bases teóricas para a ela­
boração dessa abordagem, no que diz respeito à própria so­
ciedade e seu desenvolvimento. Isso faz com que os diversos
pesquisadores visualizem diferentes aspectos parciais do de­
senvolvimento da sociedade e do direito, ressaltando-os, atra­
vés do isolamento acentuado, como distintivos caracterizan-
tes. Somente podemos obter uma noção dos pressupostos do
raciocínio, do estilo e das limitações da sociologia clássica do
direito através de um resumo com parativo de suas bem di­
ferenciadas variações — e para tanto escolhemos M arx, M ai-
ne, D u rk heim , W eber e, já como autores-limite não típicos,
Parsons e E h rlich .6
A teoria da sociedade de K a rl M a rx reage a um traço
fundam ental do recente desenvolvimento social: a transição
do primado sobre a determinação de sentido à sociedade, des-
locando-o da política para a economia. Ela interpreta o pri­
mado da economia, na medida em que este relaciona o eco­
nômico com a materialidade das necessidades humanas, co­
mo uma verdade antropológica e trans-histórica, formulan­
do nesse contexto uma teoria natural-dialética do desenvol­
vim ento social. A propulsão do desenvolvimento se dá a par­
tir de alterações nas forças produtivas e nas condições de
produção que intermedeiam a satisfação de necessidades ma­
teriais ou, em termos mais precisos: de contradições sociais
que resultam no decorrer do desenvolvimento da produção e
da satisfação de necessidades.7 O direito representa um pa­
pel decisivo na fixação de tais contradições, através da atri­
buição individual de chances especiais e desiguais: ele con­
cede e protege a propriedade. Na propriedade o direito funde
as chances de satisfação de necessidades com interesses fam i­
liares no patrimônio e com competências decisórias em for­
mas de combinação tais, que necessariamente têm que ser
modificadas em vista do desenvolvimento das forças produ­
tivas. Se a totalidade do d ireito está moldada aos interesses
dos proprietários, e por eles é administrada, essa m odifica­
ção do direito apenas poderá ocorrer na form a da revolução.
Ao longo do desenvolvimento social tom ar-se-ia então possí-

23
/el uma socialização da propriedade, que separaria a satis­
fação das necessidades (distribuição) das decisões na produ­
ção (planejam ento), substituindo o direito objetivado, vin ­
culado a situações de interesse (classista), pela racionalidade.
Pode-se então interpretar a doutrina marxista da socie­
dade e do direito sob o aspecto de uma dissolução em entre­
laçamentos, subjetivos e locais, entre a satisfação de necessi­
dades e o processo decisório (se bem que esse raciocínio não
transparece nas exposições oficiosas do marxismo nçm na
literatura secundária nelas inspiradas). Desta form a che­
ga-se à compreensão correta, que também ressalta a unitera-
lidade da sociologia do direito de cunho marxista. Em ú lti­
ma análise ela está voltada para um grau m áxim o de varia­
bilidade estrutural consentido, pelo qual o direito é respon­
sabilizado: distribuição e planejam ento da produção têm
que poder variar independente de constelações concretas de
interesses, tornando-se assim passíveis de racionalização
Trata-se de obter uma estrutura jurídica com patível com a
maior complexidade e variabilidade da sociedade, ou seja
com uma m aior esfera seletiva voltada para a solução de
problemas — numa im agem extrem a trata-se do fato de
não ser compreensível que as funções de comando no pro­
cesso econômico tenham que ser hereditárias através de fa ­
mílias, e vinculadas a uma coleção de carros velozes e mu­
lheres bonitas, mansões e iates. A questão, porém, é se esse
é o único sentido no qual o direito condiciona a com plexida­
de sistêmica da sociedade. Certam ente não. Aqui se localizam
as limitações da ótica da sociologia marxista do direito, apre­
sentando ao mesmo tempo um problema que só pode ser con­
venientemente articulado por meio de uma abordagem mais
abstrata da teoria sociológica da sociedade.
S ir Henry Sum m er M am e* visava um outro aspecto do
mesmo problema ao caracterizar o desenvolvimento dó direi­
to das sociedades antigas às modernas como um “ m ovem ent
from status to co n tra ct” .9 Os conceitos de status e contrato
não significam aqui institutos rigorosamente exclusivos em
termos lógicos, mas sim diferentes princípios básicos da
construção de um ordenamento jurídico e da distribuição de
direitos e deveres que devem ser vistos à luz da estrutura so­
cial correspondente, que as determinam. Em sociedades que
se baseiam no princípio do parentesco e são divididas segun­
do famílias e linhagens, a participação no direito depende da
inclusão nessas sociedades e do grau da inserção em termos

24
de status. O status concede a capacidade jurídica, e não a
qualquer um, mas sim de form a diferenciada e sempre con­
creta para cada esfera de direitos e deveres e para liberdades
delimitadas, que são distribuídas através da diferenciação de
status na sociedade. Assim a estrutura fam iliar da sociedade,
e mais tarde a estamental, ordena bastante concretamente,
e ao mesmo tempo, a distribuição de direitos e obrigações —
por exemplo quem pode casar, quem pode caçar, quem pode
estabelecer um negócio, auem deve servir a pé ou encilha-
do — e per isso mesmo ela configura sua realidade nessa
distribuição.
Pouco a pouco, porém, o desenvolvimento social de sis­
temas de complexidade mais elevada, e principalm ente o au­
mento do volume quantitativo e das interdependências da
economia, forçam no sentido de um a m aior mobilização das
relações jurídicas, de uma dissolução de convenções dem a­
siadamente compactas, transm itidas por tradição, de valida­
de apenas local, e ainda no sentido de dispensar condições
sócio-estruturais não mais necessárias para a distribuição
corrente de direitos e deveres. A dom inação política d es­
prende-se da an tiga ordem das fam ílias e linhagens capaci­
tando-se. assim, a conceder ao indivíduo uma liberdade e
unia mobilidade mais amplas. O ius con n u bii ac com m ercii
è am pliado e, finalm ente, estatuído universalm ente com ca­
pacidade jurídica própria. Ao fin a l do século X V III, com a
dissolução da ordem estamental, o homem, em sua persona­
lidade abstrata, torna-se detentor do direito, “ por que ele é
um ser humano, e não por ser judeu, católico, protestante,
alemão, italiano, etc.” .10 Desta form a desaparece a vincula­
ção da repartição do direito a uma estrutura social prescri­
ta de form a demasiadamente concreta. O novo instrumento
distributivo denomina-se contrato. N a concepção liberal ele
ainda pressupõe apenas tipos claros para a facilitação do
rápido entendim ento entre desconhecidos, disposições con­
tra danos mútuos e a previsibilidade do funcionam ento no
âm bito da jurisdição. Dentro destes parâmetros a socie.dade
tudo poderia tolerar.
Nossa fórm ula do crescimento da variabilidade estrutu­
ralm ente perm issível é apropriada tam bém ao “ m ovimento
do status ao contrato” . A relação entre estrutura social e
configuração concreta do direito tam bém é enfraquecida pe­
la interveniência da disposição contratual livre e variável con­
form e as situações. O direito não mais está tão im ediata­

25
mente entrelaçado aos traços centrais da diferenciação so­
cial,11 o que acarreta maiores riscos para a estabilização da
diferenciação social e para a força persuasiva do direito.
Nesse contexto a teoria do contrato social ressalta unilate-
ralmente, e nesse sentido insuficientem ente, a elasticidade
devido à disposição descentralizada — novam ente apenas
uma parte do problema da adaptação do direito às exigên ­
cias estruturais de sociedades que se tornam mais complexas.
Uma geração mais tarde esse tem a central do contrato,
que aparentem ente coverte, sem qualquer ancoram ento na
estrutura social, a vontade individual e o cálculo u tilitário
em direito, provocou um novo e aprofundado impulso, pela
prim eira vez propriam ente sociológico, à sociologia do di­
reito. E m ile Durkheim, aponta, polemizando intencional­
mente, para as bases não-contratuais (e portanto: sociais!)
do contrato.13 A disseminação de ordenamentos contratuais
em sociedades diferenciadas pela divisão do trabalho não al­
tera o fato de que o direito, com o regra m oral, é expressão
da “ solidariedade” de um a sociedade. O tipo de solidarieda­
de necessária, e com isso tam bém o direito, seria condiciona­
do pela form a da diferenciação social e modificar-se-ia com o
desenvolvimento da própria sociedade. Esse desenvolvim ento é
visto por D u rk h e im como um a reorganização da sociedade da
diferenciação segm entária à diferenciação funcional. A d ife­
renciação fu n cion a l subdivide a sociedade em unidades
iguais ou semelhantes, de m uito baixa com plexidade: em
fam ílias ou linhagens. A diferenciação funcional ordena a
sociedade em termos de divisão do trabalho, em diferentes
sistemas parciais que preenchem funções específicas, au­
mentando assim a complexidade da sociedade. N o caso de
predominância da diferenciação segmentária, a sociedade
integ;rar-se-ia através de um a consciência coletiva de con­
teúdo comum, na form a de regras morais cuja; transgressão
provocaria repressões. Através da diferenciação funcional
dissolver-se-ia a comunhão das concepções coletivas, e em
seu lugar surgiria uma solidariedade “ orgânica” que, tal
qual um organismo, possibilitaria a conjunção das diferentes
partes. O direito seria então reestruturado, substituindo san­
ções repressivas por sanções restitutivas, que ainda exigem
apenas a reparação de danos e assim a reconstituição da
capacidade de funcionam ento das partes, e não mais a busca
de vingança contra as ofensas à consciência coletiva, nem a
colère 'publique, exigindo porém a diferenciação social e a

26
especificação suficiente dos sistemas parciais, como condi­
ções prévias para a delimitação e o cálculo de danos. D u rk ­
heim acredita poder verificar em piricam ente uma tal rees­
truturação e a relação entre a estrutura social e o direito,
através da comprovação de sua covariação — reivindicando
assim uma sociologia em pírica do direito ao nível do macro-
sistema da sociedade.13
Um a vez acolhido o problema da complexidade estrutu­
ralm ente permissível, esta tam bém pode ser vista como a
indagação central da sociologia do direito de D u rkheim . De­
cisivo para D u rk h eim é o tipo de diferenciação sistemática;
a form a do direito localiza-se num plano secundário, apesar
de fortem ente vinculada à form a de diferenciação. Partindo
da questão da liquidação de transgressões ao direito, o pro­
blema do direito é captado em um de seus aspectos centrais,1'
mas novam ente tratado unilateral e, portanto, deficiente­
mente. Realm ente as sanções restitutivas são mais variáveis,
mais especificamente dosáveis, e com isso mais adaptáveis
que sanções repressivas, na medida em que perm item o ju l­
gamento de cada transgressão conform e suas conseqüências;
mas esse ganho em elasticidade e em permissividade de al­
ternativas é apenas um dos muitos aspectos que o direito
tem que apresentar nas sociedades modernas.
A conjunção das formas que o interesse sócio-jurídico
assume em M arx, M aine e D u rk h e im se baseia na unidade
de uma colocação evolucionista ainda insuficientem ente ar­
ticulada. Ao mesmo tempo ela m ostra que cada interesse
teórico (e nem sempre apenas teórico) clareia apenas as­
pectos parciais, cuja necessidade de com plementarização fica
evidente através da comparação. Esse quadro não se altera
ao continuarm os nessa exploração, chegando a M a rx Weber.
Atendo-se inicialm ente aos fragm entos da obra de Weber
publicados sob o título de “ sociologia do direito” ,15 apesar de
toda riqueza de seu detalham ento histórico, ressalta um in­
teresse básico de conhecimento: a indagação quanto à ra­
cionalização como traço fundam ental do desenvolvimento
da sociedade européia, principalm ente nos tempos modernos.
O “ desencantamento do m undo” , a constituição de um a re­
lação mais racional com o mundo e notadam ente o erigir
de uma economia “ capitalista” têm no direito suas condi­
ções e suas conseqüências. O direito tem que ser reconstituí­
do, abandonando qualidades em princípio materiais (estabe­

27
lecidas em termos de conteúdo ético, eudemonista ou u tili­
tário) e adquirindo qualidades em princípio form ais (abstra­
tam ente especificadas em termos conceituais, de praticabi­
lidade processual ótim a).
O que isso sign ifica não é suficientem ente caracteriza­
do pelos rótulos de “ form al” e “ m aterial” . Eles tam bém per­
m item a afirm ação de um a tendência oposta que consistiria
na crescente dissolução de formalismos rituais em favor de
um direito m aterialm ente elástico, m elhor adequável a si­
tuações imprevisíveis. W eber, por seu lado, visa um desen­
volvim ento que crescentemente diferencia e autonom iza o
com plexo das norm as de direito, ou seja, os libera do entrela­
çamento com outras estruturas sociais, precisando-as no in­
teresse de funções específicas. Desta form a são superados
elementos do arbítrio pessoal na aplicação do direito (ju sti­
ça de Cádi) e vinculações a costumes e concepções de m oral
próprias a pequenos grupos, transm itidas por tradição e in­
compreensíveis para estranhos. Apenas assim se torn a pos­
sível basear investimentos amplos e a longo prazo em possi­
bilidades calculáveis, juridicam ente asseguradas de form a
confiável; apenas assim podem ser organizadas longas ca­
deias, com plexamente ram ificadas, de relações entre meios e
fins, assegurando-as con tra falhas e seus elos individuais.
Em resumo: é necessário assegurar ao indivíduo possibilida­
des abstratam ente calculáveis, cuja previsibilidade se m a n ­
tenha também em um am biente social de crescente _comple-
xificação, substituindo form as anteriores de confiança con­
creta e de conhecim ento mais íntim o das situações ou das
pessoas. Apenas no caso de um direito reestruturado desta
form a torna-se possível introduzir-lhe finalidades secundá­
rias de bem-estar, cujo preenchimento, como se pode obser-
var-nitidam ente na atualidade, é pressuposto da previsibili­
dade da máquina adm inistrativa legalm ente program ada.
É fácil estabelecer aqui ligações com as análises jurí-
dico-sociológicas já mencionadas — por exemplo com rela­
ção ao tema do poder decisório confiavelm ente assegurado
pela propriedade; com o tema do contrato, possibilitando
a variabilidade sem tem a do contrato, possibilitando a va­
riabilidade sem perda de precisão e o intercâm bio entre par­
tes relativam ente desconhecidas; ou com o tem a da d ife­
renciação social que exige uma crescente especificação e des-
personalização dos mecanismos jurídicos, assim com o a lim i­

28
tação dos mecanismos de sanção à reparação de danos. T am ­
bém as análises de Weber, cuja riqueza em m aterial concreto
não pode ser aqui reproduzida, possuem uma acentuação
unilateral, correspondente ao interesse que as orientam,
sendo que, além disso, seu fundam ento teórico é insuficien­
tem ente desenvolvido. Falta-lhe, principalm ente, uma con­
cepção de racionalidade social destacável da ação individual.
Surpreende, portanto, que T a lco tt Parsons vislumbre a
possibilidade de revelar tanto em D u rk h e im quanto em We­
ber pontos de referência para uma teoria sociológica geral
que pode ser caracterizada como uma sociologia do direito
generalizada, já que procura determ inar sistemas sociais a
partir da imprescindibilidade de suas estruturas normativas.
Por isso vale a pena rever D u rk h e im e W eber a partir da
ótica de Parsons.16
Parsons acentua que as posições teóricas anteriores a
D u rk h e im e Weber, na sua totalidade, não podiam fazer jus­
tiça ao direito, sendo que as primeiras bases para uma teoria
sociológica autônoma cristalizar-se-ia exatam ente em torno
desse problema. O utilitarismo, devido à sua posição de in­
teresse naturalista-individualista, estaria incapacitado para
solucionar o problem a de “ agregação” de valores sociais. A
isso D u rk h e im teria contraposto a tese da realidade objetiva
das normas sociais. Tampouco a visão m aterialista da socie­
dade, ou a interpretação gestáltico-ideográfica da história
teriam sido capazes de compreender a relação geral entre
normas e interesses. A isso W eber contraporia uma análise
da ação social e tipos ideais formados com base nessa aná­
lise. Em ambos os casos tratava-se de reconhecer a regula­
mentação antecipada da ação através de normas, em re­
duzir o d ireito a uma ordem coercitiva m ínim a, a uma ex­
pressão ideológica de interesses m ateriais (e portanto já eles
mesmos não regulados norm ativam ente, mas “ asselvaja-
dos” ) , ou a um objeto da interpretação histórico-hermenêu-
tica.
D u rk h e im não foi além da constatação de uma realida­
de social autônoma do dever-ser norm ativo, que integra or­
dens sociais diferenciadas e determ ina não apenas o com­
portam ento normal, mas também o com portamento diver­
gente e até mesmo o com portam ento “ anôm ico” , inclusive o
suicídio. Não chegou, principalm ente, a um conceito mais
preciso do direito. Desta form a a influ ência de D u rkh eim

29
fez com que, especialmente nos autore.s franceses (e, de fo r­
m a distinta, também no próprio Parsons) a sociologia do di­
reito e a teoria sociológica fluam uma na outra.17
A situação de W eber parece ser diferente, sua sociologia
do direito asáumiu um contorno mais nítido, mas nes.sa v er­
são mais delim itada não absorve a contribuição teórica de
W eber para uma concepção sociológica do direito.18 A “ so­
ciologia do direito” de W eber não é a sociologia do direito
weberiana.19 Sua contribuição específica localiza-se no re­
curso radical a um conceito de ação referido ao sujeito. A
ação social não mais é descrita em termos ônticos, naturais,
característicos, mas definida através do “ sentido intencio­
nado” , ou seja com preendida como algo que prim eiro tem
que ser identificado pelo sujeito ator. P or ser uma esco­
lh a do sujeito, toda a ç io é, de início, contingente; mas va­
riável. Desta form a é passível, e necessário, compreender a
ordem social não mais como lim itação de uma liberdade re­
ferida a necessidades, mas sim como uma lim itação daquela
mesma contingência da ação, como redução que se m otiva
a si própria logo que um ator referencia o sentido inten­
cionado de sua ação e um outro ator, fixando-o assim de fo r­
ma compreensível. W eber responde ao problema da contin­
gência, porém, com o conceito neo-kantiano de cultura, no
contexto da teoria do conhecimento, e, em termos dè socio­
logia, com a concepção antiga da dominação; permanece
inexplorada a possibilidade de se desenvolver um a teoria
sociológica do dever-ser norm ativo exatamente a partir des­
sa questão.20
P ara colocar em m ovim ento um tal desenvolvim ento foi
necessária uma afirm ação singular, estranha: que D u rk h eim
e Weber, no fundo, representariam a mesma teoria socio-
lógífca. Parsons teve essa idéia, e ele soube como torná-la fru ­
tífera. Não precisamos ju lgar aqui a equivalência que
Parsons estabelece entre D u rk h eim e W eber em termos de
história da ciência. Im p orta que em seu esforço por compro­
var uma ta l convergência, Parsons encontrou motivos e m a­
terial suficientes para um a teoria sociológica própria, que
transcende o realismo norm ativo de D u rkh eim e o subjeti-
vismo do sentido de Weber, localizando-se assim, logo de in í­
cio, em um nível de abstração mais elevado.
Parsons relaciona a objetividade do quadro norm ativo
da sociedade à la D u rk h e im à contingência da ação subjeti­

30
va d la Weber. Segundo sua tese cenlral, ns diversos atores,
que podem dar um sentido individualm ente subjetivo à sua
ação, sempre que desejem atuar entre si em uma certa si­
tuação. têm que integrar ns expectativas recíprocas de com­
portamento, e essa integração ocorre com o recurso à esta­
bilidade de normas duráveis, compreensíveis e assimiláveis.
De outra form a seria impossível' superar a “ dupla contin­
gência” da determinação d o.sen tid o da ação a partir de
dois sujeitos, e tampouco constituir a “ com plem entaridade”
das respectivas expectativas.-' Sendo assim toda interação
duradouia pressupõe normas, e sem elas não constitui um
sistema.
Até oiide se sustenta essa argum entação? Quais suas
conseqüências para a sociologia do direito?
O argum ento é convincente como fundam entação fu n ­
cional da imprescindibilidade de normas em sistemas so­
ciais. Ele é, porém, forçadam ente dilatado quando Parsons
afirm a atualm ente — após uma insegurança inicial-- — que
a estrutura de sistemas sociais constilu i-se de expectativas
normativas,-"' com o que ele exclui do sistema social as es­
truturas de outros tipos. Essa concepção força a utilização
de um conceito de sistema social reduzido à ação referida a
normas, cuja unilateralidade não mais poderia ser corrigida
na sociologia, mas apenas em uma tudo abrangente ciência
de ação. A questão da relação entre estruturas normativas
e outras estruturas (p. ex. cognitivas) é, assim, diluída na
indagação sobre as relações recíprocas entre os diversos sis­
temas analíticos parciais (cultura, sistema social, sistema de
personalidade, organismo do sistema de ação — e essa é uma
técnica de deslocamento de problemas típica em Parsons.
Desta form a as possibilidades im plícitas no problema da con­
tingência, no sentido do esclarecimento da função específica
do dever-ser norm ativo — e analogam ente do direito — são
antes obscurecidas que desenvolvidas.
A o lado da pouco desenvolvida sociologia do direito que
nos é fam iliar, podemos então tom ar conhecimento de uma
supra desenvolvida sociologia do direito, que coincide com
a teoria dos sistemas sociais. Tam bém nessa concepção cres­
ce, nos últimos anos, a im portância da relação entre estru­
tura e desenvolvim ento social, em cujo contexto é atribuída
uma posição central às contribuições generalizantes do sis­
tema cultural através da estabilidade de sua fixação de sím-

31
doIos.24 Ao lado de outras aquisições evolutivas como a lin ­
guagem, a escrita, a dominação burocrática, a moeda etc.,
também é mencionado o direito (por exemplo justiça poli­
ticam ente independente e normas universalisticamente apli­
cáveis), mas é exatam ente nesse contexto que o desenvolvi­
m ento dessas idéias deixam m u it o a desejar. A visão geral
aqui intencionada não s u p e r a n e m sequer alcança, em ter­
mos de precisão e de convencimento, os conhecimentos par­
ciais acumulados desde M arx.
Para com pletar nosso panorama geral temos que retor­
nar a um contemporâneo de D u rk heim e W eber: Eugen
E h rlich . E h rlich divide com os juristas progressistas da sua
época a convicção na insuficiência de uma jurisprudência
puramente conceituai que pretensamente acreditaria poder
decidir sobre qualquer questão jurídica através da dedução
lógica a partir de um com pleto sistema conceituai regula-
tivo. Já se dispunha das primeiras experiências com a socie­
dade industrializada tornando claro que se im punham ao di­
reito necessidades de absorção de problemas complexos e de
constante adequação às mudanças sociais, as quais não mais
poderiam ser supridas com os recursos exegéticos da análise
conceituai. Para E h rlich , que vivia em Bukowina, essa expe­
riência era menos típica que para outros representantes da
jurisprudência sociolófica.25 Ao contrário de outros juristas
como R u d olf von Jhering, P h ilip p Heck ou Roscoe Pounã,
que se satisfaziam com uma ciência jurídica sociologizante
que destacasse os interesses na interpretação das normas,26
E h rlich procura, em sua “ Fundamentação da sociologia do
direito” (1913),27 fundam entar a própria ciência jurídica na
sociologia do direito. P ara ele o direito é a organização fática
do com portam ento em corporações sociais; ele surge na vida
social, e daí a acentuação localiza-se na própria sociedade,
em suas mudanças fáticas. O direito form ulado por juris­
tas em conceitos e preceitos, e ainda mais o direito estatuído
pelo Estado são um fenôm eno secundário, derivado e d efi­
cientem ente verbalizado. A aplicação do direito dos juristas
ou do direito estatal, em caso de dúvidas, tem que recorrer
ao direito faticam ente vivenciado, ao direito elem entar da
sociedade.
T a l avanço alarmou juristas mas não impressionou es­
pecialmente os sociólogos. Em termos sociológicos é evidente
que o direito é direito da sociedade e com ela se modifica. A
partir daí não é possível erigir uma trincheira de contraposi­

32
ção ao direito dos juristas ou ao direito estatal que, como
formações jurídicas, só são compreensíveis no contexto so­
cial — e nunca fora dele. Aquilo que E h rlich trata a partir
do ângulo superado de uma separação entre Estado e socie­
dade é, na verdade, uma diferenciação de papéis e sistemas
na sociedade. A intenção sociológica de E h rlich , sua pesquisa
sobre os “ fatos jurídicos” da vida social pré-jurídica, perm a­
necem insuficientes em termos teóricos e relativam ente in­
frutíferas; e seu conceito de direito permanece obscuro.28
For outro lado o exame da utilização jurídica de noções dog­
máticas e da questionável autonomia da especialidade ju­
rídica29 fornece interessantes esclarecimentos sobre proble­
mas dessa diferenciação de papéis; elas teriam que ser com ­
plementadas cor estudos correlatos sobre sua função social,
suas conseqüências e sobre as razões de sua imprescindibi-
lidade para o comando do direito de sociedades complexas.
A autonomia relativa e a dinâm ica própria da lingua­
gem técnica jurídica, a questão de seu direcionamento pelo
legislativo, sua especificidade funcional, sua abertura com
relação a influências sociais, seu valor como poder nas mãos
de determinados grupos, suas necessidades e dispêndios em
termos de trabalho, tempo, dinheiro e inteligência, as possi­
bilidades de sua racionalização e automação — todos esses
seriam problemas sociologicamente interessantes. Mesmo
assim quase não podemos registrar nessas áreas progressos
que ultrapassem as colocações de E h rlich significativam ente.
TJm m aior im pacto é causado apenas pelo desenvolvimento
da dogm ática jurídica com parativa, evidenciando o papel
dos institutos do direito, dos princípios jurídicos, das normas,
das regras de argumentação etc., em sua função como fo r­
mas sistêmicas de encaminhamento de problemas.30 Nesse
contexto a teoria do direito desemboca em um estilo funcional
de abstração que mina a utilização “ ingênua” da dogm ática
jurídica. Mas de onde extrai a dogm ática jurídica seus
problemas? Certa vez a “ Revista de direito privado estran­
geiro e internacional” passou essa tarefa para a sociologia
do direito: ela seria a “ linguagem origin al” da comparação
jurídica.31 Mas a “ Revista de direito privado estrangeiro e
internacional” não é lida por sociólogos.
Agora já podemos desenvolver conclusivamente algu­
mas características correntes das abordagens clássicas à so­
ciologia do direito. O direito não é determ inado por si pró­
prio ou a partir de normas ou princípios superiores, mas por

33
sua referência à sociedade. Essa referência não é interpreta­
da no sentido tradicional de uma hierarquia de fontes do
direito — isto é, a sociedade não substitui o direito natural,
se bem que o jurista E h rlich aproxima-se perigosamente
desse raciocínio — mas é compreendida como uma correla­
ção sujeita a modificações evolutivas,^ e que pode ser verifi­
cada empiricamente como uma relação de causa e efeito. A
evolução é sempre concebida como elevação da complexidade
social (ou pelo menos suposta não exp licitam en te), podendo
acentuar aqui o papel da dissolução das comunidades tribais
e a passagem para a diferenciação funcional, da com plexi­
dade do moderno processo econômico, ou das condições de
comportamento objetivo-racional em escala mundial. O di­
reito surge então como elemento codeterminante e codeter-
minado desse processo de desenvolvimento. Ele o fom enta
ao adaptar-se a suas necessidades. Essas necessidades, po­
rém, apontam para uma m aior complexidade e variabilidade
social: a sociedade torna-se mais rica em possibilidades; com
isso seu direito tem que ser estruturalmente com patível com
um número m aior de possíveis situações e eventos.
Certamente essa linha básica de raciocínio, que teria
perm itido uma síntese, não representava a teoria da sociolo­
gia clássica do direito, mas sim um pano-de-fundo tido
como auto-evidente, frente ao qual foram explicitadas diver­
sas teorias, as quais se aproximam mais ou menos daquelas
idéias básicas. Em termos de um esclarecimento suficiente­
mente abstrato da relação entre os desenvolvimentos da so­
ciedade e do direito faltava, tanto na teoria social quanto
na teoria do direito, o instrum ental conceituai apropriado.
D aí resultaram as análises parciais já expostas e que, basea­
das em pontos de referência diferentes, esclareciam aspectos
isolados, mas nunca a totalidade do fenômeno jurídico con­
temporâneo. Evidencia-se especialmente o fato de ter passa­
do quase que desapercebido aquele fenômeno que caracteri­
za, mais que qualquer outro, o direito da sociedade indus­
trial moderna: a vositividade do direito.32 Pela prim eira vez
na história mundial a m odificação do direito, pela legisla­
ção desde o século X IX , torna-se parte integrante imanente
do próprio direito, e é tratada como questão de rotina cor­
rente: o direito passa a ser visto como em princípio modi-
ficável. Essa transform ação ocorreu praticam ente em para­
lelo ao surgim ento da sociologia do direito. E a sociologia rio
direito deixou-a de lado — seja tratando a legislação, em

34
M arx, como instrumento da dominação de classe, quase
ignorando-a como em D u rk h e im ,33 vendo-a, como em Weber e
E h rlich , sob a perspectiva dos tribunais ou das instâncias de
aplicação do direito, ou até mesmo como em Parsons, vendo
a autonomia do sistema jurídico (ou seja o oposto da posi-
tividade politicam ente conduzida) como a conquista evolu­
tiva decisiva. A sociologia do direito tem um relacionamento
indiferente, frio, quando não abertamente inamistoso para
com a legislação.34 Satisfazia-se com a demolição da tese ju ­
rídica, m al interpretada, da onipotência do legislador (que,
no raciocínio jurídico, apenas deveria afirm ar que só con­
dições legalm ente fixadas na legislação poderiam fundam en­
tar objeçòes contra a vigência de leis). A té hoje não existe
nenhuma abordagem digna de registro no sentido de uma
teoria sociológica da positividade do dirieto. O debate sobré
o positivismo foi relegado aos juristas, em cujas mãos ele
inevitavelm ente limitou-se à problemática jurídica im anente
das bases legitimadoras do direito positivo.
Os motivos desse fracasso da sociologia clássica do d i­
reito frente a esse que poderia ter sido seu problema mais
im portante e atual estão à mão. Eles localizam-se ná içisufi-
ciência de suas bases teóricas, no estágio de desenvolvimen­
to da teoria social então disponível. Se ela tivesse forníulado
o problema da adaptação do direito à crescente com plexida­
de da sociedade, então ela teria podido reconhecer a função
e a inevitabilidade da positivação do direito. Para tanto, po­
rém, faltavam as bases, e isso em dois sentidos.
Por um lado não estavam, e ainda não estão esclarecidos
os processos elementares da form ação do direito, o sentido
do dever ser, a função do direito como componente da estru­
tura de sistemas sociais. Considerações em termos da teoria
de sistemas, como as que desenvolveremos no próxim o ca­
pítulo, levam imediatamente a questões desconhecidas para
a sociologia clássica do direito, cuja construção altam ente
complexa só se torna visível com o recurso a um instrum en­
ta l conceituai mais abstrato e a novas pesquisas sobre ação.
expectativa, interação e form ação de sistemas.
Por outro lado exatam ente ao mesmo tempo que a socio­
logia do direito surgia, a teoria social entrava numa fase de
declínio. Spencer caiu em descrédito. A analogia entre so­
ciedade e organismo até então clássica na Europa e reaviva­
da biologicam ente no século X IX , tornou-se controversa.

35
Essa controvérsia, porém, foi conduzida a partir das trin ­
cheiras erradas e, ainda mais, de form a tão in feliz que seu
ponto central até hoje permanece obscuro. Ele localiza-se
não na rejeição de analogias não apropriadas — como entre
a circulação da moeda e a circulação sangüínea, ou entre
crime e doença do corpo social. Ele localiza-se não só no fato
de que a m etáfora do organismo social não faz jus à alta
variabilidade de sistemas sociais — p. ex. não perm itindo
que se compreenda a positividade do direito. Decisivo é, isso
sim, que o organismo sempre foi compreendido como um
todo vivo, composto de partes vivas, ou seja que o todo e as
partes possuíam sua unidade na vida.s5 Isso, porém, sign ifi­
ca: também a sociedade era vista como um todo vivo, com­
posto por partes vivas — ou seja de homens concretos. Nisso
se baseava a plausibilidade e o humanismo das antigas filo ­
sofias sociais e jurídicas da Europa, isto é, no fato delas ten­
tarem compreender a sociedade e seu direito referenciando-
se ao homem concreto
Essa abordagem evidenciou-se para a sociologia como in­
suficiente, como demasiadamente concreta. Se a sociologia
pretende ser uma ciência que procede de form a analítica e
abstrata, ela só pode ter um interesse seletivo com rçlação
ao homem concreto, e isso a partir daqueles problemas que
^e colocam ao nível do sistema social. E é exatam ente por
isso que ela inicialm ente dificultou para si mesma a pene­
tração nos fenômenos sociedade e direito. A nova sociologia
de Simmels e von Wies, com sua intenção de proceder anali-
ticam ente e com rigor conceituai, parecia poder presçindir
do conceito de sociedade, ou pelo menos poder reduzi-lo a
um emaranhado de relações sociais. O interesse na abstra­
ção dirigia-se mais a métodos e conceitos aplicáveis a todas
as relações sociais, e esse direcionaménto da abstração não
letava a afirmações sobre o sistema social abrangente — a
sociedade global. Tam bém por razões metodológicas a pes­
quisa fru tífera trabalhava em termos microsociológicos. A
única publicação nova relevante da sociologia do direito, os
“ Estudos preliminares para uma sociologia do d ireito” de
Theodor Geiger, também deriva seu vigor da ten tativa de
fundam entar a sociologia do direito como pesquisa em pírica
de relações causais mediatizadas por normas. Mas recentes
considerações no campo da teoria da evolução parecem fio-
vam ente abrir as possibilidades de retornar-se ao tema clás­
sico da sociologia do direito: a relação entre sociedade e di­

36
reito. Esse ponto retomaremos no terceiro capítulo. Somente
a junção desses dois ângulos — considerações preliminares
em termos de teoria de sistemas e de teoria social, sobre a
form ação do direito e a m odificação do direito ao longo do
desenvolvimento social — desbrava para a sociologia do di­
reito a perspectiva de poder apreender a positividade do
direito.

37
NOTAS DO 1.° CAPITULO

1 P a ra uma boa visão geral ver: R IEDEL, Manfred. Zur Topologie


des klassisch-politischen und des modern-naturrechtlichen Gesells-
chaftsbegriffs. A r c M v f ü r R e ch ts — und S ozia lp h ilosop h ie, n.° 51,1965,
p. 291-318. Ver ainda: R IT T E R , Joachim. M eteph ysik und P o litik .
Frankfurt, 1S63.
2 “Por isso a sociedade não é nada mais que um contrato de
algum as pessoas, para ju n ta r forças no sentido da promoção do
seu bem.” Cf. W O LF F , Christian. G rudsàtze des N a tu r und
V õlk errech ts. Halle, 1754.
3 Essa radicalidade do “sujeito burguês”, insuperável e in al-
cançável por qualquer revolução, é o tema de W IL L M S , Bernard.
R e v o lu tio n und P rotest. Stuttgart, 1969. Ver também, do mesmo
autor, F u k tio n , R o lle , In s titu tio n . Düsseldorf, 1971.
4 U m a outra questão é se ela produz um conceito mais estrito
de direito, a partir do qual certas sociedades arcaicas seriam ca­
racterizadas como pré-jurídicas, conhecendo apenas hábitos e cos­
tumes, mas não normas jurídicas propriamente ditas. Ver. a dis­
cussão a seguir, no início do terceiro capítulo.
5 D U R K H E IM , Emile. D e la d iv in o n du tra v a il social. Paris.
2,a ed., 1902, p. 7.
6 Um a “história da sociologia do direito” só é instrutiva nesse
nível de abstração. P a ra exposições mais detalhadas ver: K R A FT,
Julinjs, Vorfragen der Rechtssoziologie. Z e its c h r ift fü r v erg leich en d e
R echtsw issenschaft, n.° 45, 1930, p. 1-78. TIM ASH EFF, Nicholas S.
A n ín tro d u c tio n to th e sociology o f lano. CambridgeíMass., 1939,
p. 44 ss. Idem. Growth and scope of sociology of law. Em BECKER,
H oward S. e BO SK O FF, Alvin. M o d e m s ociolog ica l th e o ry in c o n -
iin u ily and change. Nova Iorque, 1957, p. 424-449.
7 A premissa não verificada de que as contradições seriam
instáveis, tornando-se por isso a causa de mudanças, determina
ainda hoja a teoria m arxista e se introduz até mesmo em form ula­
ções da teoria de sistemas. Ver por exemplo LAN G E, Oskar. W holes
and parts. Oxford/Varsóvia, 1965, p. 1 ss. e 72 ss.
8 P ara a posição de M A IN E no contexto da história das idéias
sobre evolução e sociedade, cf. B U R R O W , J. W . E v o lu tio n and society.
Cambridge, 1966, p. 137 ss.

38
» A n c ie n t law. 1861. Citado segunao a edição The worid’s clas-
sics, Londres/Nova Iorque/Toronto, 1954, p. 141. Comentários mais
recentes podem ser encontrados em R EH BIN D ER , M anfred. Status,
Rolle, Kontrakt. F e s ts ch rift fü r E rn s t E. H irsch . Berlim, 1967, p.
141-169.
10 Não sem incluir uma advertência contra o cosmopolitismo
antiestatal, como acentua H EGEL, Georg W ’. F. G ru n d lin ie n der
P h ilo s o p h ie des R ech ts, § 209.
11 Naturalm ente existem exçessões. A excessão mais importante
para a teoria liberal do Estado e da sociedade é a instituição dos
d ireitos b á s i c o s Sua referência imediata à diferenciação funcional
da sociedade não surge porém na dogmática clássica, mas só na
análise jurídico-sociológica. Cf. L U H M A N N , Niklas. G ru d re ch te ais
In s titu tio n . Berlim, 1965.
12 Cf. D U R K H E IM , op. cit., especialmente p. 177 ss.
13 N a pesquisa mais recente essa tese foi substancialmente
criticada e modificada. Cf. SC H W A R TZ, R. C. e M ILLER , J. C. Legal
evolution and societal complexity. T h e a m erica n jo u rn a l o f s o cio -
logy, n.° 70, 1S64, p. 159-169.
14 No próximo capítulo veremos que realmente a questão do
processamento de frustrações possui um a relevância fundam ental
para a formação do direito. Em D U R K H E IM a fundamentação limi­
ta-se a um tratamento puramente psicológico da experiência da
frustração (op. cit., p. 64 s.),
15 R ech tssoziologie. Neuwied, 1960. Ver ainda os trechos corres­
pondente em W irts c h a ft und G esellsch a ft. Colônia/Berlim, 1964.
Cf.: PARSONS, Talcott. T h e s tru c tu re o f socia l action . Nova
Iorque, lã37. Idem. The place of ultimate values in sociological
theory. T h e In te rn a tio n a l jo u rn a l o f eth ics, n.° 45, 1935, p. 282-316.
P ara o tratamento específico da sociologia do direito ver, do mesmo
autor, S o cio lo g ica l th eory and m o d e m society. Nova Iorque, 1967,
p. 1166-191.
17 Cf. D U R K H E IM , Emile. Leçons de sociologie physique des
m oeurs e du d ro it. Paris, 1950. H UBEH T, René. Science du droit,
sociologie juridique et philosophie du droit. A rch ives de ph ilosop h ie
du d ro it e t de sociologie ju rid iq u e , 1931, p. 43-71 (especialmente
p. 55 s s .). P a ra comentários sobre essas tendências ver TERRÉ,
ivrançois. La soc-ologia giuridica in Francia. Em TREVES, Renato.
La sociologia del d iritto . Milão, 1966, p. 303-343.
is Ver também a crítica à sociologia do direito de W eber em
G U R V IT C H , Georges. G rudzüge d er S oziolog ie des R echts. Neuwied,
1960, p. 37 ss. P a ra Gurvitch a sociologia do direito de W eber está
demasiadamente vinculada à dogmática jurídica. Parsons já de­
senvolve uma outra interpretação para a questão dos valores e da
objetividade nas ciências sociais. P a ra um a interpretação mais am pla
da contribuição de W eber ver: M a x W eber und die Soziologie heute.
Verhandlungen des 15. Deutschen Soziologentages. Tübingen, 1965.
i» Isso pode ser constatado no fato de que sua Sociologia do
d ire ito , op. cit., p. 53 ss., m antém a distinção entre o conceito do
direito’ em termos empírico-sociológicos e o em termos jurídico-
normativos, m inando-a através de seu conceito de ação.

39
20 P ara detalhes ver o item 2 do próximo capítulo.
21 Ver principalmente as formulações básicas em PAR SO NS,
Talcott e SHILLS, Edward A. Tcrward a gen era l th e o ry o f a ctio n .
Cambridge/Mass., 1951.
22 Cl. p. ex. PAR SO NS/SH ILLS, op. cit., p. 105: “ . . . th is
co m m o n cu ltu re, o r sym bol system (que garante a complementa-
riedade das expectativas), in e v ita b ly possesses in ce rta in aspects a
n o rm a tiv e s ig n ifica n ce f o r oth e rs ” .
23 Ver p. ex. PAR SO N S, Talcott. Durkheim ’s contribution to
the theory of integration of social systems. Em W O LFF, K u rt H.
E m ile D u rk h e im , 1858-1917. Columbus/Ohio, 1960, p. 121 s.: “ T h e
s tru c tu re o f a society, o r any h u m a n social system, consists in (is
n o t sim ply in flu e n ce d by) p a tte rn s o f n o rm a tiv e c u ltu re w h ich are
in s titu tio n a liz e d in th e socia l system and in te rn a liz e d (th o u g h n o t
in in d e n tic a l ways) in th e p erson a lities o f its in d iv id u a l m em bers.”
24 Cf.: PARSONS, Talcott. Evolutionary universais in society.
A m e rica n s ociolog ica l review , n.° 29, 1964, p. 339-357. Idem. Societies
— ev o lu tio n a ry and co m p a ra tiv e perspectives. Engelwood Cliffs, 1966.
Idem. T h e system o f m o d e m societies. Engelewood Cliffs, 1971.
25 Por exemplo os juizes e juristas americanos contemporâneos
como Oliver W . Holmes, Roscoe Pound, Louis D. Brandeis ou B en -
jam in N. Cardozo.
26 Cf. ED ELM ANN, Johan. D ie E n tw ick lu n g der In te re s s e n ju ris -
prudenz. B ad Hamburg/Berlim/Zurique, 1967.
27 Berlim, 1967 (reedição). P a ra uma introdução ver R E H B IN -
DER, M anfred. D ie B e g rü n d u n g d er R ech tssoziologie d u rch Eugen
E h rlic h . Berlim, 1967.
28 O mais notável é a tentativa (G ru n d le g u n g , op. cit., p. 131
ss.) de determinar a especificidade do direito a partir da experiência
da frustração, ou seja das reações psíquicas e sociais a transgres­
sões — um a noção rejeitada e ironizada pelos juristas por sua
imprecisão.
29 Cf. principalmente a obra inacabada: EH RLICH , Eugen. Die
richterliche Rechtsfindung au f G rund des Rechtssatzes. Jh erin gs
J a h rb ü ch e r f ü r die D o g m a tik des b ü rg e rlich e n R ech ts, n.° 67, 1917,
p. 1-80. Ver também, do mesmo autor: D ie ju ris tis ch e L o g ik . T ü bin -
gen, 1918.
«b® Cf. ESSER, Josef. G ru n d sa tz und N o rm in der ric h te rlic h e n
F o rtb ild u n g des P riv a tre c h ts . Tübingen, 1956.
31 Cf.: D R O B N IG , Ulrich. Rechtsvergleichung und Rechtssozio­
logie. Z e its c h r ift fü r auslandisches und in te rn a tio n a le s P riv a tre c h t,
n .° 18, 1953, p. 295-309. H ALL, Jerome. C om p a ra tive law and social
th eory . Louisiana Sate U P , 1963. H ELD R ICH , Andreas. Sozialwissens-
chaftliche Aspekte der Rechtsvergleichung. Rabels Z e its c h r ift fü r
auslãndisches und in te rn a tio n a le s P riv a tre c h t, n.° 34, 1970, p. 427-442.
32 Já em H E G E L encontramos a acentuação de que p ara a
sociedade burguesa o direito em si torna-se lei positiva, sendo qup
ele acrescenta que “não pode tratar-se de fazer um sistema de leis
novas em seu conteúdo, mas sim de reconhecer-se o conteúdo legal
existente em sua determinada generalidade, c a p ta n d o -o m ental­

40
mente”. ( G ru n d lin ie n der p h ilo s o p h ie des R ech ts, § 211.) Essa for­
mulação se dirige concretamente contra a dúvida de Savigny na
“aptidão do nosso tempo para a legislação”, mas também mostra
que para Hegel a positividade da lei ainda não implicava na pos­
sibilidade corrente de sua alteração.
33 Léon D U G U IT (V é ta t, le d ro it o b je c tif e t la lo i positive.
Paris, 1901) tentou desenvolver um a teoria do direito positivo a
partir da sociologia de Durkheim, mas é m al sucedido especialmente
no caso do fenômeno da positividade. P a ra ele o direito positivo é
apenas um a “constatação” de »m g “regra de direito” vista como
imediatamente resultante da solidariedade social. De form a seme­
lhante argum enta CRUET, Jean. La v ie du d ro it e t Vim puissance des
lois. Paris, 1908.
si E H R LIC H argumenta com respeito ao avanço do direito
legal às custas do direito dos juizes: “É difícil dizer a que isso está
relacionado, m as de qualquer form a não é um fenômeno satisfatório.”
G ru d le g u n g , op. cit., p. 330.
3i> Esse conceito de organismo, como base da analogia, é ex­
plicitamente usado, por exemplo, em W O R M S, René. O rga n ism e e t
société. Paris, 1895.
só Copenhague, 1947.

41
I I — A FO R M AÇ ÃO DO D IR E IT O :
BASES DE U M A T E O R IA SO CIO LÓ G ICA

Nenhuma das sociologias do direito até hoje apresenta­


das foi capaz de aprofundar-se até às raízes do direito. P o ­
demos chegar rapidamente a uma visão geral sobre o que foi
feito nesse sentido. O dever ser é pressuposto como uma qua­
lidade experimentada, vivenciável mas não mais detalhada­
mente analisável, como o “ fato” básiço da vida jurídica.1
Com isso bloqueia-se de im ediato o acesso às indagaçõss
mais ricas ao nível teórico. Resta ainda a possibilidade da
pesquisa dos diversos tipos de relações sociais, indagando-se
onde e em quais contextos elas ocorrem. Partindo do hábito
meramente fático, o qual segue-se sem qualquer sensação de
exigência ou obrigatoriedade, é possível destacar o uso e o
costum e como um com portamento estimado e valorizado,
cuja obrigatoriedade torna-se manifesta por ocasião de
transgressões; pode-se distinguir ainda as regras morais em
termos de expectativas antecipatórias formuladas normati-
vamente, através das quais impõe-se como norma também a
sensação da obrigatoriedade interna; finalm ente separa-se
o direito, definido por características especialmente lim ita ­
doras — através da existência de papéis especiais que deci­
dem os conflitos de form a impositiva, ou através da disposi­
ção ao estabelecimento de sanções no caso de transgressões,
ou pela combinação de ambas as características.2
Não se pode negar que tal tipologia das normas é em
princípio correta e fornece um certo grau de orientação. Mas
ela não vai além de classificações incapazes de desvendar a
interdependência funcional e a relação, em termos de desen­
volvimento, entre os diferentes tipos, e m uito menos sua re­
lação com outras estruturas cognitivas, com a diferenciação
social, etc. A tipologia força a suposição de condições “ ile­

42
gais” em sociedades arcaicas.3 Ela levanta a questão de que
o costume seria algo com pletamente diferente nas socieda­
des sem e com direito. Coirto teoria da form ação do direito
no sentido do seu surgimento a partir do uso e do costume,
ta l tipologia é insuficiente, em especial no contexto atual.
Em termos de base do conceito do direito, ela perm itiu de­
finições form ais — p. ex.: o direito seria um a vivência do
dever ser com determinadas características adicionais —
sem, porém, conseguir justificá-las teoricamente.
Se quisermos ir mais ao fundo teremos primeiro que
analisar o fato do dever ser. Não é suficiente apenas aceitar
o dever ser de todas as normas como um dado básico do d i­
reito, ou supô-lo como uma qualidade, não mais defirvda, da
experiência fática. Pode-se, ainda, indagar quanto ao sentido
do dever ser, ou mais precisamente: quanto à sua função. O
que afirm a esse símbolo do dever ser? Qual o significado de
que experiências e principalmente expectativas sejam expe­
rimentadas com essa qualidade do dever ser? Sob quais cir­
cunstâncias que essa qualificação é escolhida, e para quê?
Quais temas são assim reforçados? E quais os com portamen­
tos daí decorrentes?
Indagações desse tipo, que provocam a análise da expe­
rim entação e o seu simbolismo, são facilm ente caracteriza­
das como “ psicológicas” , e dessa form a menosprezadas.4 Este
é um grosseiro mal-entendido. Atualm ente é raro encontrar
nas ciências sociais um reducionalismo psicológico.5 Seus re­
presentantes acreditam que a psicologia, como ciência do
com portam ento individual, poderia atin gir teorias com um
grau de abstração mais elevado que no caso da sociologia.
Não é percebido, porém, que a psicologia, da mesma form a
que a sociologia, é uma ciência de sistemas altam ente com­
plexos. P or outrò lado novos desenvolvimentos na psicologia,
na psicologia social e na sociologia excluem a possibilidade
de separação ôntica total entre os objetos dessas disciDlinas
— p. ex.: entre indivíduo e sociedade, ou entre o experimen­
tar e o agir. Isso significaria a transposição da noção de^tím
organism o em relação discreta com seu meio ambiente, er­
radamente, a personalidades (como objeto da psicologia) ou
a sistemas sociais (como objeto da sociologia). No lugar dis­
so deve-se partir de um campo da ação e da experiência sen-
sorial, a partir de onde se constituem as personalidades e
os sistemas sociais, como diferentes estruturações de com-
plexões de sentido das mesmas experiência e ação.6 Tão-só a

43
diferenciação entre diversos sistemas de referência (o que,
naturalmente, é facilitado pela existência de organismos
humanos) estabelece a separação de personalidades e siste­
mas sociais enquanto estruturas distintas de assimilação da
experiência, perm itindo também o destaque da psicologia e
da sociologia — mas o “ m aterial” que constitui esses siste­
mas é o mesmo. Tão-só a indagação quanto à função de de­
terminadas experiências ou ações com respeito à personali­
dade (ou a uma determ inada personalidade individual) ca-
cracteriza uma pesquisa como psicológica, ou seja, a partir
da sua indagação e de determinadas premissas estruturais.
No caso contrário, classifica-se a experiência e a ação no
campo da sociologia quando tematizadas no contexto fun­
cional e estrutural de sistemas sociais.
Daí conclui-se existir um campo de pesquisa ao mesmo
tempo pré-psicológico e pré-sociológico, no qual têm que ser
esclarecidos certos conceitos e mecanismos básicos que são
importantes tanto para a teoria da personalidade quanto
para a teoria das sistemas sociais. Nesse campo de pesquisa,
para cujo esclarecimento contribuíram cientistas das mais
diferentes áreas — fenomenólogos e psicanalistas, psicólogos
sociais e teóricos do aprendizado, sociólogos e teóricos da
cibernética — devem ser descobertas as origens da singular
necessidade de ordenam ento que é satisfeita pelo direito; ao
mesmo tempo é aqui que encontram-se as bases das estrutu­
ras e dos processos elementares na formação do direito. T an ­
to a problemática desse campo quanto os mecanismos para
sua superação têm a ver com o fato de que a relação do
homem com o mundo é constituída de form a sensitiva. Os
mecanismos desse campo de pesquisa, que poderri ser carac­
terizados sem o recurso a construções sistêmicas especifica­
mente psíquicas ou sociais, chamaremos de “ elementares” .
Ess^ conceito compreende condições prévias permanentes e
processos constitutivos de toda formação do direito, ou seja
que também têm que ser pressupostos nas sociedades m o­
dernas altamente complexas — não sendo apenas proprie­
dades de sistemas jurídicos arcaicos ou processos de intera­
ção face a face em pequenos grupos..8
Devido à com plexidade dessa problemática devemos sub­
dividir a pesquisa em diversas partes. Inicialm ente (1 ), ten­
taremos captar a problem ática do convívio humano senso-
rialmente orientado, através dos conceitos da contingência
e da complexidade, tentando também mostrar como a sobre­

44
carga aí localizada é atenuada pela form ação de estruturas
de expectativas. Isso também ocorre (2) através da diferen­
ciação entre estruturas cognitivas e normativas de expecta­
tivas, dependendo se no caso de desapontamento está pre­
vista sua assimilação ou não. Expectativas normativas são
mantidas apesar da não satisfação. D aí seus problemas e
suas condições de estabilização estarem vinculados (3) ao
ajustam ento de desapontamentos, que assegura a estabili­
dade no tempo, no sentido de estabelecer as condições de
continuidade da expectativa. A o lado dessas condições tempo­
rais é necessário considerar as condições sociais e materiais
da generalização de expectativas. As primeiras (4) são dis­
cutidas no contexto do tema da institucionalização, e as se­
gundas (5) no da identificação de complexões de expectati­
vas. Tão-só a partir dessas pesquisas prévias será possível
(6) defin ir e descrever a função do direito como congruen­
te, ou seja, como generalização de estruturas de expectativas
coerentes em todas as dimensões. Com relação a essa função
(7 ) pode ser esclarecido em que medida o direito depende do
poder físico sob diferentes condições sócio-estruturais. O ca­
pítulo encerra-se (8) com considerações sobre a relação entre
a estrutura e o com portamento divergente.

1 — Complexidade, contingência e a expectativa


de expectativas

O homem vive em um mundo constituído sensorialmen-


te, cuja relevância não é inequivocamente definida através
do seu organismo. Desta form a o mundo apresenta ao ho­
m em uma multiplicidade de possíveis experiências e ações,
em contraposição ao seu lim itado potencial em termos de
percepção, assimilação de inform ação, e ação atual e cons­
ciente. Cada experiência concreta apresenta um conteúdo
evidente que remete a outras possibilidades que- são ao mes­
mo tem po complexas e contingentes. Com complexidade que­
remos dizer que sempre existem mais possibilidades do que
se pode realizar. P or contingên cia entendemos o fato de que
as possibilidades apontadas para as demais experiências po­
deriam ser diferentes das esperadas; ou seja, que esssa indi­
cação pode ser enganosa por referir-se a algo inexistente,
inatingível, ou a algo que após tomadas as medidas neces­
sárias para a experiência concreta (por exemplo, indo-se ao

45
ponto determ inado), não mais lá está. Em termos práticos,
complexidade significa seleção forçada, e contingência sig­
nifica perigo de desapontamento e necessidade de assumir-se
riscos.
Sobre essa situação existencial desenvolvem-se estrutu­
ras correspondentes de assimilação da experiência, que
absorvem e controlam o duplo problema da com plexidade e
da contingência.9 Certas premissas da experimentação e do
comportamento, que possibilitam um bom resultado seletivo,
são enfeixadas constituindo sistemas, estabilizando-se rela­
tivam ente frente a desapontamentos. Elas garantem uma
certa independência da experimentação com respeito a im ­
pressões momentâneas, impulsos instintivos, excitações e sa­
tisfações, facilitando assim uma seleção continuada também
ao longo do tempo, tendo em vista um horizonte de possibi­
lidades ampliado e mais rico em alternativas. As com prova­
ções e as satisfações imediatas são em parte substituídas por
técnicas de abstração de regras confirm adam ente úteis, e de
seleção de formas adequadas de experimentação e de auto-
certificação. A esse n ível do comportamento seletivo podem
ser formadas e estabilizadas expectativas com relação ao
mundo circundante. Seu efeito seletivo é ao mesmo tem po
inevitável e vantajoso, m otivando assim a retenção de tais
estruturas, mesmo frente a desapontamentos: não se desiste
da expectativa por um caminho sólido e viável só por se
ter escorregado uma vez!
Na experimentação a complexidade e a contingência de
outras possibilidades aparecem estruturalmente im obiliza­
das como “ o m undo” , e as formas comprovadas de seleção
relativam ente imune a desapontamentos aparecem como o
sentido, cuja identidade pode ser apreendida — por exemplo
como coisas, homens, eventos, símbolos, palavras, conceitos,
ftormas. Nelas se ancoram as expectativas. Neste mundo com­
plexo, contingente, mas mesmo assim estruturalmente con-
jecturável existem, além dos demais sentidos possíveis, outros
homens que se inserem no campo de m inha visão como um
“ alter ego” , como fontes eu-idênticas da experim entação e
da ação originais. A partir daí introduz-se no mundo um
elemento de perturbação, e é tão-somente assim que se cons­
titu i plenamente a com plexidade e a contingência. As pos­
sibilidades atualizadas por outros homens também ,se apre­
sentam a mim, também são minhas possibilidades. A pro­
priedade, por exemplo, só tem sentido como defesa nesse

46
contexto.10 As possibilidades me são apresentadas na m edi­
da em que os outros as experimentam, sem podê-las atua­
lizar totalm ente como experimentações propriamente suas.
Com isso adquiro a chance de absorver as perspectivas dos
outros, ou de utilizá-las no lugar das minhas, de ver através
dos olhos dos outros, de deixar que me relatem algo, e dessa
form a am pliar meu próprio horizonte de expectativas sem
um m aior gasto de tempo. Com isso alcanço um imenso au­
m ento da seletividade im ediata da percepção.11
O preço disso está na potenciação do risco: na elevação
da contingência simples do campo de percepção, ao nível
da dupla contingência do mundo social.12 Reconhecer e
absorver as perspectivas de um outro como minhas próprias
só é possível se reconheço o outro como um outro eü. Essa é
a garantia da propriedade da nossa experiência. Com isso,
porém, tenho que conceder que o outro possui igualm ente a
liberdade de variar seu comportamento, da mesma form a
que eu. Tam bém para ele o mundo é complexo e contingen­
te. Ele pode errar, enganar-se, enganar-me. Sua intenção
pode sign ificar m inha decepção. O preço da absorção de pers-
pectativas estranhas é, form ulado em termos extremados, sua
inconfiabilidade.
Frente à contingência simples erigem-se estruturas es­
tabilizadas de expectativas, mais ou menos imunes a. desa­
pontamentos — colocando as perspectivas de que à noite se­
gue-se o dia, que amanhã a casa ainda estará de pé, que a
colheita está garantida, que as crianças crescerão. . . Frente
à dupla contingência necessita-se outras estruturas de ex­
pectativas, de construção muito mais complicada e condi­
cionada: as expectativas. A vista da liberdade de com porta­
m ento dos outros homens são maiores os riscos e também a
com plexidade do âmbito das expectativas. Conseqüentemen­
te, as estruturas de expectativas têm que ser construídas de
form a mais complexa e variável. O comportamento do outro
não pode ser tomado como fato determinado, ele tem que ser
expectável em sua seletividade, como seleção entre outras
possibilidades do outro. Essa seletividade, porém, é com an­
dada pelas estruturas de expectativas do outro. Para encon­
trar soluções bem integráveis, confiáveis, é necessário que
se possa ter expectativas não só sobre o comportamento, mas
sobre as próprias expectativas do outro. Para o controle de
uma complexão de interações sociais não é apenas necessá­
rio que cada um experim ente, mas também que cada. um

47
possa ter um e expectativa sobre a expectativa que o ou tro
tem dele.13 Sob as condições da dupla contingência, portanto,
todo experim entar e todo agir social possui uma dupla rele­
vância: uma ao nível das expectativas imediatas de com ­
portamento, na satisfação ou no desapontamento daquilo
que se espera do outro; a. outra em termos de avaliação do
s ig n ifc a d o do com portam ento próprio em relação à expecta­
tiva do outro. Na área de integração entre esses dois planos
é que deve ser localizada a função do norm ativo — e assim
também do direito.
Quem pode ter expectativas sobre as expectativas de ou­
tros — quem, por exemplo, pode prever e considerar quando
um romance cristalizará expectativas matrim oniais, e de
quem serão essas expectativas — pode ter um acesso .mais
rico em possibilidades ao seu mundo circundante, e apesar
disso viver mais livre de desapontamentos. Ele pode superar
a comolexidade e a contingência mais elevadas, em um nível
mais abstrato. Ele pode, se não for demasiadamente atrapa­
lhado por motivos próprios, realizar internam ente as ade­
quações com portam entais necessárias, ou seja quase sem co­
municação. Ele não precisa expor-se e fixar-se verbalm ente
— evitar verbalizações desnecessárias é um m om ento essen­
cial do tato social — e ele economiza tempo, conseguindo,
portanto, conviver com outros em sistemas sociais muito
mais complexos e abertos em termos de com portamento.
Ele é capaz de reservar os processos de comunicação, morosos
e delicados (pois exigem auto-explicações demasiadamente
com prom etedoras), para poucos pontos im portantes de con­
flito, e escolher sobre o que se falará.
Na convivência social cotidiana tais ajustamentos não
manifestos são esperados como algo óbvio e fundam ental. O
graji e a form a com que o indivíduo é capaz de participar
desses ajustamentos caracterizam -no como membro de um
certo grupo, e determ inam parcialm ente seu status social
e sua capacidade de impor-se. Desta form a conduz-se não só
a cooperação, mas tam bém os conflitos.14 A estrutura de ex­
pectativas é mais fundam ental ainda que um a eventual con-
tradicão, conduzindo assim as mudanças entre com porta­
mentos amistosos ou inamistosos, na medida em que se es­
pera que o outro veja a relação como amistosa ou inam isto-
sa. É claro que o trato social só é possível através da expec­
tativa de expectativas, pois ele não é apenas a satisfação de
expectativas alheias, mas sign ifica um com portam ento atra­

48
vés do qual A se representa como aquele que B necessita
como parceiro, para que ele (B ) possa ser aquele que ele gos­
taria de representar fren ta a A. Esse comportamento só pode
ser adotado por quem pode esperar expectativas. Mas tam ­
bém os conflitos originam-se e são resolvidos ao nível da
expectativa de expectativas — e não porque A experimenta
um com portamento inamistoso por parte de B, reagindo en­
tão; e também não porque A espera um comportamento ina­
mistoso de B, antecipando-se então; mas porque A espera
que B espere sua inimizade, definindo daí o comportamento
de B como inamistoso, o que perm ite a A ser ao mesmo tempo
inim igo e não inimigo, um inim igo inocente, que só existe
enquanto expectativa de A sobre as expecativas de B, tor-
nando-se porém culpado ao realizar cada vez mais a inim i­
zade no seu comportamento.
Apesar desse tema do reflexo social da experimentação,
da reprocidade das perspectivas e da im portância constitu­
tiva de tu com relação ao eu, poder ser encontrado até no
idealismo alemão, só atualm ente inicia-se o esclarecimento
da construção intrincada das estruturas de expectativas do
convívio cotidiano.15 As alusões ao longo do parágrafo ante­
rior dão apenas uma fraca noção inicial do grau de comple­
xidade que esse submundo do tão simples comportamento
cotidiano apresenta. É necessário considerar ainda que exis­
tem um terceiro, um quarto, e outros planos da reflexivida-
de, ou seja expectativas sobre expectativas de expectativas...
E isso tudo com relação a uma m ultiplicidade de temas, fren­
te a uma multiplicidade de pessoas, e com uma relevância
constantem ente em alteração conforme cada situação.
Exem plificando, é apenas no terceiro nível da reflexividade
que se consegue considerar, no trato social, não só a auto-ex-
pcsição momentânea do outro, mas também suas certezas
em termos de expectativas. Se, por exemplo, uma mulher
sempre serve ao seu marido comida fria no jantar e espera
que o seu marido espere isso, esse marido, por seu lado. tem
que esperar essa expectativa de expectativas — de outra
form a ele não perceberia que ao desejar inesperadamente
um a sopa quente ele não só causaria um incômodo, m<?s tam ­
bém enfraqueceria a segurança das expectativas de sua
m ulher com relação a ele próprio, podendo finalm ente che­
gar a um novo equilíbrio, no qual ele teria que esperar em
sua m ulher a expectativa dele como alguém voluntarioso e
imprevisível.

49
O fato de que as expectativas se sobrepõem, formando
conjuntos imperscrutáveis de rejeições, pode te r sua raiz
na casualidade dos contatos humanos. A função da comple­
xidade dessas estruturas é a de aumentar a complexidade
dos sistemas físicos e sociais, aumentar o âmbito da expe­
riência e da ação expectáveis de form a a adequar-se a um
mundo complexo, com m últiplas situações e exigências ins­
táveis. Com isso, no entanto, sobrecarrega-se a capacidade,
fatualm ente determinada, de estabelecimento de orientações
congruentes. Na experim entação corrente do cotidiano é im ­
possível acompanhar tais estruturas de expectativas fática
e concretamente, ou seja fixá-las e controlá-las consciente­
mente — e isso sem considerar que freqüentem ente se está
m uito cansado, desinteressado ou distraído, ou simplesmente
com fome, sede, pressa.10 A adaptação social da reflexidade
das expectativas ainda pode ser possível em sistemas sociais
pequenos e constantes, em fam ílias e grupos de amigos, nas
faculdades tradicionais ou em pequenas unidades müitare.s
(e isso pelo menos no contexto de situações-problema). mas
no caso de crescente complexidade dos sistemas sociais, ou
no acúmulo de situações-problema em sistemas sociais sim­
ples, é necessária a criação de reduções, simplificações, abran­
damentos, que poderão ter a form a física ou social.
Isso é necessário porque, com a complexidade e a referên­
cia mútua das expectativas, também aumentam a comple­
xidade e o risco de erros. Posso enganar-me na interpretação
daquilo que o outro espera de mim, e desapontá-los exata­
m ente por procurar preencher a expectativa esperada. Mas
também a sua expectativa pode ser irrealística, pode ser
correta ou erradamente suposta como sendo irrealística e
portanto irrealizável. etc., etc. Pode haver concordância ou
não nas expectativas, mas também pode-se esperar, certa
ou'erradam ente. que h aja concordância ou não; pode-se ter
a expectativa correta ou errada do parceiro cômo alguém que
espera, correta ou erradamente, concordar ou não com nossas
expectativas, etc., etc. Para uma análise científica do pro­
cesso de interação e dos sistemas que o conduzem seria im ­
prescindível uma dissecação precisa desses diversos planos
das discrepâncias possíveis e das estratégias daí decorrentes
no sentido da interpretação defensiva e do com portamento
de conflito.17 Naturalm ente, isso não pode ser realizado na
vida cotidiana. P o rta n to , as simvlificações, inevitáveis •na
busca de orientação, precisam estar, ao mesmo tem po, im u ­

50
nizadas contra o risco do erro. Elas precisam, em outras pa­
lavras, poder preencher sua função estruturalizante até
mesmo quando interpretam erradam ente a realidade ou as
expectativas sobre a realidade.
Os sistemas psíquicos parecem apoiar suas sim plifica­
ções principalmente "na circunstâncias de que a expectativa
sobre expectativas alheias pode (e em grande parte até pre­
cisa) ser conduzida como questão interna ao próprio sujeito,
ou seja, como reação às suas próprias condições. A consis­
tência do sistema próprio e seus problemas tornam-se então
princípios seletivos mais ou menos restritivos, e espera-se do
outro que suas expectativas esperadas fortaleçam, e não
perturbem a identidade do sistema próprio.18 Tais expecta­
tivas sobre expectativas podem, com o auxílio de esquema-
tizações interpretativas altam ente flexíveis, ser praticamen­
te Imunizadas contra a refutação através da expectativa fá-
tica e do comportamento do outro. Na medida em que essa
imunização dê resultado, produz-se, para a satisfação de ne­
cessidades psíquicas, a equivalência funcional entre a auto-
caracterização e as caracterizaçõas do outro: tanto faz per­
ceber a si mesmo ou ao outro como agressivo, por ambos os
caminhos chega-se à descarga (ab-reação) das tensões psí­
quicas através do comportamento inamistoso. Os psicólogos
chamam uma tal orientação de projeção. Evidentemente o
grau de proximidade à realidade das assimilações projetivas
da experimentação está fortem ente relacionado à amplitude,
à riqueza em alternativas, à capacidade de abstração, ou
seja à complexidade do sistema psíquico correspondente. A
projeção torna-se patológica na medida em que o sistema
psíquico introduza demasiadamente pouca complexidade
própria na relação com seu mundo social circundante.19
Trata-se de uma hipótese saudável, presumir que aqui
se encontram os riscos e as disfunções psíquicas peculiares
à expectativa sobre expectativas, podendo-se também supor
que a experimentação projetiva muitas vezes assuma a for­
ma normativa. Maiores detalhes têm que ser deixados para
a teoria psicológica da personalidade, a qual deveria pesqui­
sar a função da normatividade da expectativa no contexto
da constituição de uma personalidade autoconsciente. A so­
ciologia do direito poderia, quando muito, interessar-se em
indagar se, e em quais circunstâncias, seria possível separar
essas condições e esses mecanismos psíquicos daqueles da

51
estabilização de normas, aliviando assim o direito do exercí­
cio de funções de superação do medo.20
Os sistemas sociais utilizam um outro estilo de redução.
Eles estabilizam expectativas objetivas, vigentes, pelas quais
“ as” pessoas se orientam. As expectativas podem ser verba­
lizadas na form a do dever ser, mas também podem estar aco­
pladas a determinações qualitativas, delimitações da ação,
regras de cuidado, etc. O im portante é que se consiga um a
simplificação através de uma redução generalizante. “ Ho­
rário de visitas: domingos entre 11 e 12,30 horas” — essa
r-tegra é anônima e impessoal, ou seja tem uma validade in­
dependente de quem espera ou não espera. Ela é estável no
tempo, aplicável de dom ingo a domingo sem necessitar cer­
tificações renovadas, e ela é objetivam ente tão abstrata que
pode com patibilizar as expectativas recíprocas de visitantes e
visitados com uma mais ou menos grande am plitude de
modos comportamentais. Ela não serve apenas, e nem mes­
mo principalmente, para tornar os comportamentos previ­
síveis — quem saberia se alguém virá e a quem visitará? —
mas também para regular a expectativa sobre expectativas:
sabe-se, escudado nessa regra, que se pode fazer visitas (mes­
mo que só para deixar um cartão-de-visitas); pode-se espe­
rar um com portam ento correspondente por parte dos visita­
dos, ou pelo menos esperar que eles esperem essa expecta­
tiva de expectativas — ou seja que eles não perguntem ao
mensageiro que traz um cartão-de-visitas o que isso signi­
fica, que eles não vejam o mensageiro como o próprio visi­
tante,'que eles não façam o mensageiro ir buscar o visitante
propriam ente dito, e assim por diante.
A função de tais sínteses regulativas do sentido não é
captada plenam ente se partirmos, e essa é a compreensão
predominante, apenas da visão da expectativa comoorta-
mêntãl, e em decorrência concentrarmo-nos na questão da
garantia do com portamento conforme às expectativas. Essa
função tem seu centro de gravidade no plano reflexivo da ex­
pectativa sobre expectativas, criando aqui segurança em
termos de expectativas, à qual se segue, apenas secunda­
riamente, a segurança sobre o com portamento próprio e a
previsibilidade do com portamento alheio. É m uito im portan­
te, para a compreensão do direito, ter uma visão clara dessa
diferença.21 Isso porque a segurança na expectativa sobre ex­
pectativas, seja ela alcançada por meio de estratégias pura­
mente psíquicas ou por normas sociais, é uma base impres­

52
cindível de todas as interações, e m uito mais im portante que
a segurança na satisfação de expectativas.22
Sínteses comportamentais anonimizadas evitam , nor­
malmente, até mesmo a percepção do entrelaçam ento de ex­
pectativas concretas. Elas funcionam como uma espécie de
fórm ula curta simbólica para a integração de expectativas
concretas. A orientação a partir da regra dispensa a orienta­
ção a partir das expectativas. E la absorve, além disso, o risco
de erros da expectativa, ou pelo menos o reduz, isso porque,
graças à regra, pode ser suposto que aquele que diverge age
erradamente, que a discrepância se origina, portanto, não
da expectativa (própria) errada, mas da ação (alheia) erra­
da. Nessa m edida a regra alivia a consciência n o contexto
da complexidade e da contingência. Mas é também necessá­
rio absorver a relação inversa. Na experimentação e no com­
portam ento fáticos sempre se pode escapar de tais regras,
na medida em que se esteja em condições de esperar corre­
tamente, em termos fáticos e corretos, expectativas ou expec­
tativas sobre expectativas. Nesse caso a regra pode ser nova­
mente retrocedida ao nível de uma adequação concreta em
termos de expectativa, e o entendim ento mútuo fornece a
base para um com portam ento que altere, modifique, ou
transgrida a norma. A flexibilidade da estrutura norm ativa
simples de pequenos sistemas sociais reside essencialmente
nessa possibilidade de estabelecer concordâncias casuísticas
e divergências em comum.23 A vigência de normas funda­
menta-se na impossibilidade fática de realizar isso em todos
os momentos e para todas as expectativas de todas as pes­
soas. Dessa forma, a vigência de normas reside em última
análise na complexidade e na contingência do campo da ex­
perimentação, onde as reduções exercem sua função.

2 — Expectativas cognitivas e norm ativas

A referência à complexidade e à contingência no âmbito


da experimentação acrescenta às expectativas concretas —
e em especial às abstrações que as regulam e integram —
a função de uma estrutura. Até agora utilizam os essa concep­
ção dé estrutura sem maiores esclarecimentos e precisamos,
portanto, especificá-la conceitualmente.
Em geral a estrutura é definida por uma propriedade,
isto é, por uma constância relativa. Isso não está errado,

53
mas é impreciso e improdutivo, pois obstrui o acesso à mais
interessante indagação nesse contexto: porque essas cons-
tâncias relativas são necessárias? Como pretendemos m an­
te r o acesso a essa questão, definimos a estrutura através da
sua função de fortalecim ento da seletividade, na medida em
q.ue ela possibilita a dupla seletividade. Em um mundo cons­
tituído sensorialmente, e portanto altam ente complexo e
contingente, torna-se vantajoso, e até mesmo imprescin­
dível, referir os diversos passos da seleção uns aos outros. No
processo cotidiano de comunicação isso ocorre inicialm en­
te na medida em que alguém escolhe uma comunicação en­
tre diversas outras comunicações possíveis, e o seu destina­
tário trate o que foi comunicado não mais como seleção, mas
sim como fato, ou como premissa de suas próprias seleções,
ou seja, incorporando a escolha do outro no resultado da se­
leção prévia.24 Isso alivia o indivíduo em grande parte do
exame próprio das alternativas. As estruturas potencializam
esse efeito aliviante na medida que estabelecem as referên­
cias de um a seleção a outra. Através de um ato de opção,
geralm ente não percebido com o tal, as estruturas restringem
o âm bito da possibilidade de opções. Em termos imediatos
elas delim itam o optável. Elas transform am o indefinido em
palpável, a am plidão em redução. Na medida em que a se­
leção é aplicada sobre ela mesma, a estrutura a duplica,
potenciando-a. O m elhor exem plo disso é a linguagem que,
através da sua estrutura, ou seja, da seleção prévia de um
“ código” das significados possíveis, perm ite a escolha rápida,
fluente e coerente da verbalização correspondente.
Inicialm ente as estruturas surgem no processo de co­
municação na medida em que se parte de suposições em co­
mum, ou seja não em decorrência da comunicação intencio­
nal. de seu sentido.25 D aí elas se configurarem de form a im ­
precisa e não comprometedora. Sua seletividade própria per­
manece latente, e é exatam ente isso que as assegura. De
im ediato sua capacidade de redução consiste no óbscureci-
m en to de alternativas. Isso torna desnecessária a explicita­
ção das suposições estruturalizantes das quais se parte. Mes­
m o quando as estruturas são incontestavelmente aceitas na
vida cotidiana, e não são apreendidas como decisões seleti­
vas, a análise sociológica tem que captar, em seu conceito
de estrutura, a seletividade e com isso também o questiona­
m ento da auto-evidência de todas as estruturas, fornecendo
assim um a descrição da realidade com um grau de com pli­

54
cação e de riqueza em alternativas m aior que o percebido
por aqueles que nela vivem. É tão-somente sobre o pano-de-
fundo das outras possibilidades que as estruturas podemUor-
nar-se tema e problema.26
A estrutura de seleção continua sendo seletiva, mesmo
quando ela não é realizada conscientemente, quando é sim­
plesmente vivenciada. Existem outras possibilidades, e elas
se apresentam ao ocorrerem desapontamentos de expecta­
tivas. É nessa possibilidade do desapontamento e não na re­
gularidade da satisfação que se evidencia a referência de
um a expectativa à realidade.27 As estruturas sedimentam,
como expectáveis, um recorte mais delim itado das possibili­
dades. Dessa form a elas são enganosas com respeito à real
complexidade do mundo, permanecendo, em decorrência, ex­
postas aos desapontamentos. Assim elas transformam, a so­
brecarga perm anente da com plexidade no problema da ex­
perim entação eventual do desapontamento, contra o qual
pode ser feito algo concreto. Do ângulo do sistema psíquico,
portanto, podemos também dizer: elas regulam o medo.
Com isso todas as estruturas contêm imanentemente o
problema do desapontamento — e isso não só no sentido de
um a insuficiência (tem porária) do conhecimento, ou de uma
maldade do homem (que infelizm ente sempre volta a se m a­
n ifestar), mas sim no sentido de um a especificação de pro­
blemas, realizada justamente pela estrutura. Isso significa
que a avaliação da adequação de estruturas sempre deve
considerar o problema do desapontamento.28 A racionalização
de estruturas, portanto, envolve a dosagem da relação entre
vuna complexidade sustentável e carga suportável de desa­
pontamentos. A estabilização de estruturas contém não ape­
nas o esboço coerente do seu p erfil — o reconhecimento de
leis naturais ou o estabelecimento de normas — mas tam ­
bém a disponibilidade de mecanismos para o encaminha­
m ento de desapontamentos — tal como um serviço de manu­
tenção e reparos da estrutura.
Essa dependência de estruturas que têm qúe ser consis­
tentes, continuando, porém, sensíveis a desapontamentos,
força a aceitacão de riscos. Especialmente em um mundo
com crescente comolexidade e contingência isso rxxleria con­
duzir a um nível insustentável de tensões e problemas de
orientação, caso o sistema social da sociedade como um todo
não apresentasse duas possibilidades contrárias de reação a
desapontamentos de expectativas. Mesmo quando os desa­

55
pontamentos se tornam visíveis e têm que ser inseridos na
visão de realidade como objeto da experimentação,^ ainda
existe a alternativa de m odificação da expectativa desapon­
tada, adaptando-a à realidade decepcionante, ou então sus­
tentar a expectativa, e seguir a vida protestando contra a
realidade decepcionante. Dependendo de qual dessas orien­
tações predomina, podemos falar de expectativas cognitivas
ou norm ativas.30
Nessa acepção (in con ven cion al), a diferenciação entre
o cognitivo e o norm ativo não é definida em termos semân­
ticos ou pragmáticos, nem referenciada aos sistemas afirm a­
tivos que as fundam entam ou à contradição entre afirm a­
ções inform ativas e diretivas31 — mas sim em termos fun­
cionais, tendo em vista a solução de um determ inado pro­
blema. Ela aponta para o tipo de antecipação da absorção
de desapontamentos, sendo assim capaz de fornecer uma
contribuição essencial para o esclarecimento dos mecanis­
mos elementares de formação do direito. Ao nível cognitivo
são experimentadas e tratadas as expectativas que, no caso
de desapontamentos, são adaptadas à realidade. Nas expec­
tativas normativas ocorre o contrário: elas não são abando­
nadas se alguém as transgride. No caso de esperar-se uma
nova secretária, por exemplo, a situação contém componen­
tes de expectativas cognitivas e também normativas. Que
ela seja jovem, bonita, loura, só se pode esperar, quando
muito, ao nível cognitivo; nesse sentido é necessária a adap­
tação no caso de desapontamentos, não fazendo questão de
cabelo louro, exigindo que os cabelos sejam tingidos, etc. Por
outro lado espera-se norm ativam ente que ela apresente de­
terminadas capacidades de trabalho. Ocorrendo desaponta­
mento nesse ponto, não se tem a sensação de que a expec-
tatiya estava errada. A expectativa é mantida, e a discrepân­
cia é atribuída ao ator. Dessa form a as expectativas cogni­
tivas são caracterizadas por uma nem sempre consciente
disposição de assimilação em termos de aprendizado, e as
expectativas normativas, ao contrário, caracterizam-se pela
determinação em não assimilar os desapontamentos. O caso
de desapontamento é previsto como possível — é sabido que
o mundo é complexo e contingente, e que, portanto, os
outros podem agir de form a inesperada — mas de antemão
isso é considerado irrelevante para a expectativa. Mas essa
irrelevância não está fundam entada na experimentação na­
tural — como no caso de se saber que uma casa permanece­

56
rá de pé mesmo que outra seja demolida — ela se baseia em
processos de neutralização simbólica, pois um a expectativa
em si, ou seja como expectativa propriam ente dita, não vê
indiferentem ente sua satisfação ou seu desapontamento.
Sendo assim, as normas são expectativas de com porta­
m ento estabilizadas em term os contrafáticos. Seu sentido-
im plica na incondicionabilidade de sua vigência na medi­
da em que a vigência é experimentada, e portanto também
institucionalizada, independentemente da satisfação fática
ou não da norma.32 O símbolo do ‘.‘ dever ser” expressa prin­
cipalm ente a expectativa dessa vigência contrafática, sem
colocar em discussão essa própria qualidade — aí estão o
sentido e a função do “ dever ser” .33
Se bem que orientado em termos contrafáticos, o senti­
do do dever ser não é menos fático que o de ser. Toda expec­
tativa é fática, seja na sua satisfação ou no seu desaponta­
mento o fático abrange o normativo. A contraposição con­
vencional do fático ao norm ativo deve, portanto, ser aban­
donada. Ela é uma construção conceituai errônea, como no
caso de se querer contrapor ser humano e mulheres; uma
manobra conceituai que nesse caso é prejudicial às mulhe­
res, e naquele ao dever ser. O oposto adequado ao norm ati­
vo não é fático, mas sim o cognitivo. Só é possível optar-se
coerentemente entre essas duas orientações com respeito
ao tratam ento de desapontamentos, e não entre o fático e
o normativo.
Além disso é importante não extrapolar imediatamente
dessa diferenciação entre expectativas cognitivas e norma­
tivas, postulando-se uma oposição primeira, objetiva ou ló gi­
ca, entre ser e dever ser, mas sim compreender inicialm en­
te a função da própria diferenciação. Ela coloca à disposi­
ção duas estratégias, diferentes mas mesmo assim funcio­
nalmente equivalentes, para a seqüência da vida após desa­
pontamentos. Pode-se assimilar ou não. Ambas as possibili­
dades podem ajudar na superação de situações de desapon­
tamentos, preenchendo assim, apesar das orientações con­
trárias, a mesma função. O sucesso está baseado no fato de
que a mesma função é preenchida não só por comportamen­
tos “ semelhantes” , mas por comportamentos diretam ente
opostos. Isso facilita o encontro de uma solução para qual­
quer caso de desapontamento. Dependendo da relevância da
expectativa e das chances de realizá-la, pode-se optar por sua
sustentação ou pela renúncia a ela.

57
Com o auxílio dessa diferenciação a sociedade pode ajus­
tar um compromisso entre as necessidades de adaptação à
realidade e de constância das expectativas. Ela instituciona­
lizará cognitivam ente expectativas comportamentais, isto é,
não censurará seus membros por uma adaptação da expecta­
tiva à' realidade da ação, se predominar o interesse na adap­
tação. Ela deslocará e articulará as expectativas ao nível nor­
m ativo quando forem vitais a segurança e a integração so­
cial das expectativas.
Devido a essa dupla estratégia pode ser reduzido o risco
de desapontamentos em todas as estruturas, transpondo-o a
formas previam ente estabelecidas de encaminhamento dos
problemas. Dessa form a torna-se sustentável o alto n ível de
complexidade e contingência. Dessas considerações podemos
extrair uma im portante hipótese, que desenvolveremos nos
próximos capítulos: com a crescente complexidade da socie­
dade crescem tam bém os riscos estruturais, que têm que ser
prevenidos através de uma m aior diferenciação entre as ex­
pectativas cognitivas e as normativas. A separação entre ser
e dever ser, ou entre verdade e direito não é estrutura do
mundo dada a ‘p rio ri, mas uma aquisição da evolução.
Isso porque temos que partir da suposição de que, in i­
cialmente, as expectativas cognitivas e normativas se apre­
sentam indeterminadamente entremeadas, tanto no contex­
to das expectativas elementares como em sociedades prim i­
tivas. Para aquele que espera não existe nenhuma obrigação
abstrata no sentido de que ele se comprometa, de antemão e
em qualquer caso, com um ou o outro estilo de expectativa.
Eventuais desapontamentos podem ser compensados por ex­
pectativas de cunho típico, altam ente prováveis, mas não
sem exceções e que não levam a sensações de refutação di­
reta no caso de desapontamentos isolados.34 É justamente o
fa to 'd a diferenciação entre o cognitivo e o norm ativo só ser
determianada a partir do caso do desapontamento que faz
com que exista um am plo campo de expectativas raram ente
desapontadas, em cujo contexto uma tal decisão prévia é
desnecessária. Que nas conversas cotidianas se m antenha
uma certa distância — ou seja que o parceiro não tente
m anter uma conversação a 100 metros de distância, nem se
aproxime a 5 centím etros35 — isso é esperado de form a di­
reta e quase inconsciente, sem sequer imaginar-se a possi­
bilidade de um desapontamento. Citando um outro exemplo,
da mesma form a as exigências de precisão no contexto dos

58
contatos cotidianos também se regulam por si próprias, de
forma a que a um “ bom dia” não se retruque: que dia, até
quando, em que sentido?36 Finalmente, muitas ações, se bem
que possíveis, são tão absurdas que sua.possibilidade ultra­
passa o limiar da exclusão normativa consciente.37 Por isso
mesmo inumeráveis situações óbvias do convívio cotidiano
assumem aquela forma de expectativas difusas, indefinidas
com relação a desapontamentos. Aliás, existem desaponta­
mentos, além das expectativas comportamentais no sentido
estrito, que inicialmente são experimentados tão-só como si­
tuações ou características pessoais negativas, e apontam
apenas secundariamente no sentido de um potencial mais
ou menos incerto de divergência comportamental: aparên­
cia estranha, sujeira, doença, defeitos físicos, etc.38
Naturalm ente, nem o alto grau em auto-evidência nem
o estilo indeterminado de um a expectativa exclui efetiva­
mente qualquer desapontamento. O desapontamento pode
então levar à formação de normas através da ncrmatização
a posteriori.s9 Assoma à consciência que não é possível abdi-
car-se dessa expectativa, tornando-se necessária a exigên­
cia de um comportamento correspondente. Essa é a form a
de pensar o surgim ento do direito a partir de desapontamen­
tos. É mais típico, porém, encontrar-se uma saída ao ver o
com portam ento desapontador em termos estritamente fá ti­
cos, como perturbação, isolando-o como excessão, “ normali­
zando-o” no caso de repetição ou de concluir-se por sua ine­
vitabilidade.40 No nosso ambiente cultural, por exemplo,
existe a regra altamente auto-evidente de que não se deve
cochilar na presença de outras pessoas, mas sim apresentar-
se sempre ocupado, a não ser que determinadas situações o
perm itam (viagem de tr e m !)41. Em outras palavras, sempre
tem que haver um tema, ou pelo menos dar-se a impressão
disso. Apesar disso transgressões eventuais dessa regra não
a trazem à consciência, mas apenas fazem como que o co­
chilo em público pareça um com portam ento estranho, anô­
malo, inoportuno. A regra não é normatizada. Também não
existe um a norma pela qual se tenha que m anter o fluxo de
um a conversação, que responder coerentemente — e não, por
exemplo, respondendo a uma pergunta sobre as horas com
a constatacão de que “ está chocando” . Transgressões d*sse
tipo seriam registradas como esquisitices, mal-entendidos,
como piadas e, no caso de repetições, como incapacidade.
Elas não provocam normatizações, mas sim normalizações:

59
a perturbação é descartada através de sua “ explicação” , ou
então ela é tornada expectável.42 Nos casos crassos de repe­
tidas transgressões graves, opta-se tipicamente pela saída
da declaração do ator desapontador como doente m ental43,
excluindo-o assim da comunidade dos sujeitos humanos,
suas experimentações, suas expectativas e suas visões de
mundo. Isso demonstra que transgressões às expectativas
nessa esfera freqüentem ente são tratadas como transgres­
sões à verdade, como incapacidade para reconhecer o mundo
— um sintoma nítido de que não se diferencia os estilos cog­
n itiv o e norm ativo das expectativas.
A explicação e o tratam ento do desvio como com porta­
mento patológico, ou até psicopático, pressupõe um alto grau
de auto-evidência e de indiferenciação das bases das expec­
tativas. A reação tom a tipicam ente como referência trans­
gressões claras contra as regras da interação face a face or­
denada, cuja rutura por um lado é rara, pois torna-se im e­
diatamente manifesta, e por outro lado é grave, pois choca
os presentes e abala seu referencial de ação — um tipo de
delito que por assim dizer, é cometido sob as vistas do pró­
prio guarda na prisão, e por isso parece ser de antemão
absurdo. Sobre esse fundo erigem-se singulares superposições
da psiquiatria e da moral, cujo p erfil foi bem delineado no
contexto norte-americano.44 Na medida em que o tratam ento
psiquiátrico é humanizado e propagado parece tornar-se
possível incluir um a parcela cada vez maior da m oral com-
portam ental cotidiana na esfera das expectativas, onde o
comportamento divergente pode ser referido a perturbações
“ internas” . A explosividade simbólica do com portamento di­
vergente não é desativada pela difamação moral, mas sim
por ele ser tratado como excepcionalmente involuntário, ex-
plicando-o assim a si mesmo e a outros.
A especificidade das expectativas comportamentais mais
profundas não é apropriadamente captada pela sociologia do
direito, através das convencionais tipologias das normas.43
Não se trata de form a algum a de um simples hábito fático.
O característico dessa camada elementar de expectativa con­
siste não na sua faticidade e também não em tratar-se de
uma convenção sem sanções, mas sim em sua indiferencia­
ção, no sentido de que os componentes cognitivos e norm a­
tivos das expectativas form am uma unidade coesa. Além
disso é possível mencionar cinco outras características que
diferenciam entre as normas e esse nível pré-normativo de

60
expectativas. (1) a satisfação da expectativa é tão óbvia que
uma transgressão não é levada a sério, ou então é caracteri­
zada como involuntária. Por trás do comportamento diver­
gente não é possível descobrir-se nenhum interesse humano
compreensível. Daí ser típico (2) inexistir um empenho para
conduzir o divergente de volta ao caminho correto. Ele é ta­
xado de excepcional, e dessa form a isolado. Ele obtém um
papel divergente — de anormal, de alguém que usa barba,
que m antém um espírito infantil, que é doente mental, etc.46
Reage-se ao desapontamento não através da tentativa de eli­
m inação do desvio, mas sim por seu oposto; interpretando e
estabilizando o desvio como tal, o qual, agora já como exce­
ção, não mais atinge a regra.47 A gora exige-se apenas que o
divergente permaneça consistente e expectável nos moldes de
sua divergência. O processamento através da normalização
(3) adequa-se às circunstâncias individuais de cada caso.
Isso leva a uma individualização da im plem entação de n or­
mas, que não é vinculada a padrões universais, igualmente
válidos para todos.48 Esse processo (4) ocorre ssm o estabe­
lecim ento de perspectivas para o fu tu ro, sem uma delim ita­
ção tem poral de conseqüências. Ele não visa ações, mas si­
tuações. Ele não exige nenhuma concepção de futuro e nessa
medida é fácil de lidar-se com ele, mas seus efeitos sobre os
participantes são mais duradouros do que no mecanismo
normatização/sanção. Finalmente, (5) é característico que
nem o desvio nem a norm a são tipificados e denominados
— não se trata de roubo, transgressão de um contrato, ho­
mossexualidade, erro administrativo, sonegação de imposto,
mas sim um imprevisto concreto, com o a perda de um re­
lógio, o vestido novo da esposa, a doença do superior, isto
é, trata-se de um caso isolado que não exige a articulação
de expectativas constantes. A ausência de uma classificação
e de uma denominação traz consigo a impossibilidade de
estereotipagem 49, dificultando a percepção da possível ho­
mogeneidade de uma multiplicidade de singularidades, fa­
zendo com que elas não sejam facilm ente sentidas como
ameaçadoras. Os desapontamentos são processados de caso a
caso. Essa concreção do processamento da experimentação
não dá origem à construção de alternativas.
Dessa base das expectativas indiferenciadas em termos
cognitivos e normativos destacam-se as expectativas com­
portam entais mais especificadas com respeito à sua tema-
tização e ao seu estilo. Isso traz a vantagem de tornar ex-

61
pectável também o que não é evidente. Onde a proteção da
evidência inexiste ou não é suficiente torna-se im prescindí­
vel esperar também os desapontamentos, impondo-se então
a fixação antecipada da form a de reação no caso .de sua
ocorrência: assimilando-as ou não. É tão-somente nessa es­
fera das expectativas não auto-evidentes que surge uma dife­
renciação entre expectativas cognitivas e normativas; essa
diferenciação como que substitui a auto-evidência.
Certamente os riscos dessa estratégia são altos — dema­
siadamente altos para todos os sistemas sociais mais simples,
já que significa ter que decidir de antemão sobre a manu­
tenção ou o abandono de expectativas desapontadas, sem
um m aior conhecimento da situação futura, seus detalhes
concretos, os comportamentos possíveis e as chances de con­
senso. A separação entre expectativas cognitivas e norm ati­
vas exige que esse risco seja deslocado para o interior da
estrutura de expectativas, onde ele emerge à consciência e
é controlado. Trata-se não mais de lidar simplesmente com
uma “ natureza” concretam ente impenetrável, indetermina-
damente complexa, enganosamente movediça, mas de des­
locar o dut^o problema de complexidade e da contingência
para o interior da própria estrutura de expectativas, que a
partir daí é obrigada a sustentá-lo na form a de uma contra­
dição. Em termos de um a expectativa cognitiva isso sign ifi­
ca o recuo a suposições hipotéticas sobre a realidade, passí­
veis de revisão, na form a institucionalizada no conceito de
verdade das ciências contemporâneas. Em termos de uma
expectativa normativa, por outro lado, isso significa o recuo a
uma projeção contrafática, como a exem plarm ente realizada
através do direito garantido pelo Estado. No caso de expec­
tativas cognitivas essa diferenciação exige medidas que per­
m itam a real assimilação de situações de desapontamento,
basiante rapidamente e em sen tido,i nitidam ente apontados;-'0
já no caso de expectativas normativas ela exige que em si­
tuações de desapontamento seja possível a demonstração da
sustentação da expectativa. O princípio im plícito em ambos
os casos sustenta o avanço de uma evolução, e sign ifica o
aumento da complexidade interna da estrutura de expecta­
tivas, que se torna, assim, mais adequada ao mundo.
Além disso formam-se, tanto na esfera das expectativas
cognitivas quanto na das normativas, estratégias de minimi-
zações de riscos. No âm bito das expectativas cognitivas per­
siste a possibilidade de que desapontamentos não sejam assi-

62
miladss. Com relação às expectativas normativas existem
possibilidades de assimilação. A m inim izaçãò do risco, por­
tanto, é obtida através de um momento estranho ao estilo
da expectativa, através da introdução encoberta da possibi­
lidade do com portamento oposto. A solução do problema re­
side na admissão de uma contradição/ que deve persistir
como tal, de form a latente.
Mesmo quando se tem expectativas cognitivas, ou seja,
quando se esteja disposto à assimilação, nem todo desapon­
tam ento leva à adaptação. Em geral busca-se inicialmente
apoio em explicações aâ hoc e em hipóteses adicionais, que
m antêm a expectativa e interpretam o desapontamento co­
mo exceção. Especialmente aquelas expectativas comprova­
das e centrais na estrutura cognitiva não são abandonadas
tão rapidam ente assim. O esquema regra/exceção, a concep­
ção de desdobramentos normais e irregulares, e ainda a cons­
trução de uma complicada visão de mundo, sustentada por
hipóteses básicas abstratas e quase irrefutável, garantem
um alto grau de imunização perante desapontamentos tam ­
bém 11o caso d? expectativas cognitivas.01 Mesmo no contex­
to das ciências contemporâneas, especialmente voltadas para
o processo do conhecimento, que se apresentam em princípio
como hipotéticas e abertas às necessidades de revisão, é qua­
se impossível fazer desabar, a partir de experimentações crí­
ticas isoladas, áreas mais amplas da estrutura cognitiva que
regula as expectativas normais.52
No sentido inverso, também as expectativas normativas
não estão atadas à sua proclamada resistência à assimila­
ção. A possibilidade de perseverança interna de expectativas
repetidam ente desapontadas tem seus limites. As placas de
estacionamento proibido cercadas pelos carros parados aca­
bam por não mais provocar expectativas normativas, mas
tão-só cognitivas: olha-se para ver se há algum policial por
perto. A isso acrescenta-se que a elasticidade da formulação
de algumas normas permite procedimentos adaptativos —
por exemplo no caso do tão discutido aperfeiçoamento da
legislação através da jurisprudência. Existe, portanto, mes­
mo no direito, uma assimilação apócrifa, e nas sociedades
muito complexas com, direito positivo temos até mesmo mu­
danças legais do direito, assimilação legitimada.
Para alguém preso à lógica, tais contradições poderão
ser perturbadoras e bloquear seu raciocínio. O sociólogo, no
entanto, deve reconhecer que elas favorecem o equilíbrio ins­

83
titucional. A inserção de possibilidades contrárias não anula
o direcionamento original, que continua constituindo a base
do comportamento regular. Ninguém se ridiculariza ao sus­
tentar suas expectativas no âm bito normativo, professando-
as apesar de decepções (ou ao adaptar-se aos fatos no âmbito
das expectativas cognitivas). Caso um tal com portamento
traga dificuldades consideráveis, porém, existem saídas acei­
táveis. É tão-somente dessa form a que se realiza plenamente
a vantagem de se ter a disposição estratégias contrárias, mas
funcionalm ente equivalentes, para o tratam ento de desa­
pontamentos, ou seja a vantagem de se assimilar, ou não,
conforme as circunstâncias.
Além das formas do entremeamento indiferenciado e
da subordinação de possibilidades contrárias é necessário
discutir ainda um terceiro modo de combinação de expecta­
tivas cognitivas e normativas. Ele está baseado na possibi­
lidade de se ter expectativas sobre expectativas. Esse pro­
cesso de desdobramento e referência recíproca de expectati­
vas perm ite estabelecer elos entre estilos opostos, form ando
cadeias de expectativas, que acomodam ao mesmo tempo
possibilidades de assimilação e possibilidades de não assimi­
lação. “ A ” pode esperar cognitivam ente que “ B ” tenha ex­
pectativas cognitivas, ou normativas; e “ A ” pode esperar
normativamente que “ B ” tenha expectativas cognitivas, ou
então normativas. No caso de dupla reflexividade, portanto,
temos quatro possibilidades de combinação: cognitivo-cogni-
tivo, cognitivo-norm ativo, norm ativo-cognitivo e normativo-
normativo — e esse número de possibilidades cresce propor­
cionalmente à freqüência da reflexividade.
As pesquisas até agora desenvolvidas são insuficientes
para esclarecer plenam ente essas possibilidades de combina­
ções. Por isso tam bém desconhecemos quais constelações
predominam em quais campos de expectativas. Desta forma,
nos limitamos ao esboço de duas utilizações do esquema, fa ­
cilmente compreensíveis e necessárias para a discussão sub­
seqüente.
Através da expectativa norm ativa de expectativas, o es­
tilo dessas expectativas pode ser submetido a regras norma­
tivas. A questão da assimilação ou não, no caso de desapon­
tamentos, é tão im portante ao ponto dela não poder ser re­
legada ao arbítrio privado. A escolha de um ou outro tipo
tem que ser institucionalizada. Um professor, por exemplo,
esperará de seus alunos um comportamento civilizado, obe­

64
diência, asseio, roupas normais, cabelo cortado, etc. Se, e
que medida essas expectativas são cognitivas ou norm ati­
vas, isso é novamente objeto de expectativas normativas que
orientam essa escolha, e e.ventualmente procuram corrigi-la.
A administração escolar, os pais, a opinião pública não assi­
m ilariam uma expectativa qualquer do professor, não acei­
tando, por exemplo, se ele esperasse normativamente o uso
de camisas brancas ou até mesmo uniformes, não mais o
apoiariam se ele tentasse impedir a entrada de quem esti­
vesse com camisa vermelha ou cabelos compridos. Vemos
nesse exemplo que a própria opção pelo estilo normativo ou
cognitivo das expectativas é mutável, e que, no correr do
tempo, a norma pode deslocar-se do estilo norm ativo para ?
tolerância do cognitivo54 (ou vice-versa). Mesmo assim per­
siste a normatizacão da expectativa não mais normativa,
que continua expectável. No sentido de se evitar conflitos,
é necessário, nesses casos, que se espere cognitivamente que
os outros esperem normativamente que se tenha expectati­
vas cognitivas.
Uma diferenciação entre os estilos cognitivo e norma­
tivo das expectativas só se estabelece se a própria opção por
tim desses estilos é expectável; só assim ela torna-se social­
mente regulada, só assim ela pode ser prevista. A expecta-
bilidade das expectativas dos outros é, assim, uma sólida con­
quista no convívio humano. É só a partir dessa base que po­
dem formar-se expectativas especializadas no estilo norma­
tivo e na sua manutenção, mesmo no caso de desaponta­
mentos.
O caso contrário, ou seja, o da expectativa cognitiva de
uma expectativa norm ativa ou cognitiva, privilegia a assi­
m ilação individual e não a regulamentação social. Aqui o in­
divíduo está orientado no sentido da assimilação das expec-
tivas dos outros, sejam elas normativas ou cognitivas. Ele
não estabelece normas, mas tom a conhecimento de even­
tuais surpresas e está em condições de adaptar-se se^ outros
reform ulam suas expectativas normativas ou cognitivas ■—-
por exemplo auando é prom ulgada uma nova lei, uma^ deci­
são jurídica inesperada, ou quando se alteram os hábitos
norm atizantes da vida cotidiana, quando a moda muda, a
m oral se liberaliza. Veremos ainda que essa fundamentação
puramente cognitiva, e aberta a alterações, de estruturas
normativas é especialmente im portante nas condições do
direito pcsitivo.

65
As considerações até aqui desenvolvidas já revelam um
campo bastante com plexo de premissas da formação do di­
reito, que evidenciam o caráter relativam ente simples da
concepção dogm ática que fundam enta a vigência de normas»
através de normas superiores. No lugar de uma tal funda­
mentação por meio de uma hierarquia de fontes do direito
vemo-nos diante da fundamentação através de processo» re­
flexivos da expectativa de expectativas, que perm item uma
diferenciação entre expectativas cognitivas e normativas
podendo, assim, por meio de diferentes constelações, fazec
ju z a exigências as mais diferenciadas. Com isso, porém,
apenas esboçamos o ponto de partida para a compreensão
dos processos de form ação do direito. Um a expectativa nor-
m atizada e inabalável frente a decepções é, inicialm ente,
apenas uma projeção, um projeto subjetivo. Temos, então,
que observar mais detalhadamente esses mecanismos de pro­
cessamento das decisões, que estão supostos nas projeções
normativas, separando-nos, assim, da esfera das estruturas
de expectativas em princípio cognitivas, cujo estudo mais
aprofundado caberia à sociologia do conhecimento.

3 — Processamento de apontamentos

Estruturas seletivas de expectativas, que reduzam a


complexidade e a contingência são uma necessidade vital.
É por isso que a não satisfação de expectativas se torna um
problema. Ela pode surpreender negativa ou positivam ente
— em qualquer caso ela também questiona a expectativa
atingida, independentemente do seu efeito particular. A si­
tuação não é a mesma que antes. Agora torna-se inegavel­
mente evidente que a expectativa era apenas uma expecta­
tiva. Mesmo tratando-se de uma surpresa positiva, por exem­
plo ao receber-se um presente inesperado, ela tem seu lado
incômodo. Ela ameaça a continuidade das expectativas de
modo pouco relacionado com os prejuízos ou as vantagens
efetivas do evento concreto. Ela ameaça anular o efeito re-
dutor da expectativa estabilizada, fazer reaparecer a com­
plexidade das possibilidades e a contingência do poder atuar
diferentemente, desacreditar a história das expectativas e
das comprobações acumuladas. Desapontamentos levam ao
incerto. Esse aspecto do problema não se deixa resolver por
uma compensação de custos ou benefícios caso a caso. Se a

66
expectativa não pode ser modificad.a ou substituída por no­
vas seguranças, é ela mesma que precisa ser reconstituída
no seu nível funcional generalizado, através de processos
simbólicos de exposição das expectativas e de tratamento do
evento deGapontador.
A repercussão do desapontamento de expectativas nor­
mativas, extravazando os casos individuais, demonstra-se
através da força da reação.'3 O desapontamento estimula a
atividade, ele não pode ser simplesmente aceito. A experi­
mentação do desapontado adquire uma colaboração emo­
cional; freqüentem ente ela é até mesmo transm itida ao
sistema orgânico e desencadeia processos psicológicos, espe­
cialm ente em casos de refream ento de possibilidades de ação.
Ele se excita. Para atenuar a pressão são mobilizados meca­
nismos psíquicos, quando não orgânicos. Seu acionamento,
por outro lado, não pode ser ignorado no sistema social. O
tratam ento do desapontamento não pode ser deixado a car­
go apenas dos mecanismos individuais de excitação e tran-
qüilização. Existe o duplo perigo de que o desapontado, de­
vido à excitação, aja de form a imprevisível, que ele, para
salvar uma expectativa, desaponte muitas outras expecta­
tivas, ou seja, crie mais problemas que soluciona; ou que
ele, no calor da excitação, perca o autocontrole, esquecen­
do-se de si mesmo, interrompendo a continuidade e a confia­
bilidade de sua auto-exposição, arriscando, por causa de
uma expectativa, a identidade social da sua personalidade,
ridicularizando-se e inflingindo a si mesmo danos irrepará­
veis. É por isso que o sistema social tem que orientar e ca­
nalizar o processamento de desapontamentos de expectati­
vas — e isso não só para impor eficazm ente expectativas
corretas (p. ex. normas jurídicas), mas sim para criar _a
possibilidade de expectativas contrafáticas, que se anteci­
pem a desapontamentos, ou seja: normativas. Aquele que
espera tem que ser preparado e apetrechado para o caso de
se defrontar com uma realidade discrepante. De outra forma
ele não poderia ter a coragem de esperar norm ativa e persis­
tentemente. A canalização e o arrefecim ento de desaponta­
mentos fazem parte da estabilização de estruturas.
A distinção convencional entre norma e sanção enco­
bre essa relação elementar da consolidação de expectativas
com o processamento de desapontamentos. Não basta defi­
nir determinadas normas, p. ex. jurídicas, por meio da amea­
ça de sanções, mas é necessário considerar-se que a experi­

67
mentação norm ativa só se constitui a partir da precisão de
possíveis comportamentos no caso de desapontamentos. É
preciso que seja determ inável se, e quando, será possível
m anter as expectativas frente a desapontamentos. Mesmo
no caso de desapontamentos a expectativa ainda deve poder
ser manifestada. Ela deve permenecer intacta enquanto ele­
mento da auto-imagem do desapontado e enquanto base de
seu com portamento subseqüente, não devendo ser descarta­
da simplesmente como erro, como engano cognitivo, como
ingenuidade ridicularizante. Ela tem que encontrar, apesar
de tudo, um lugar e um sentido no mundo; precisa poder
persistir. E isso só é possível com determinados sustentá-
culos sociais.
Muitas transgressões às normas são superadas, ou des­
pidas de suas implicações simbólicas, apenas por serem igno­
radas. Isso ocorre tanto nos pequenos contextos56, quanto
nos mais abrangentes.57 Esse ignorar tem em vista não os
fatos, mas a norma; ele a protege contra informações dis-
crepantes que a questionam, e protege aquele que se desa­
ponta da obrigação de reagir. Essa proteção está baseada na
circunstância de que as normas se enraizam em comunica­
ções, e não em fatos.
Quando o desvio se apresenta tão abertamente, ao ponto
de não mais poder ser ignorado, ou quando a situação de
interesses não perm ite o conluio do silêncio, surgem novas
necessidades de cooperação. Essas podem ser classificadas
em dois grupos, dependendo se dizem respeito a experiências
ou a ações daquele que se desaponta. Ele precisa poder con­
siderar, interpretar e explicar o desapontamento como fato,
e precisa ter à disposição comportamentos alternativos, atra­
vés dos quais ele possa expressar a continuidade da vigência
da expectativa não correspondida.
' O próprio fato de que o comportamento desapontador é
sentido como um desvio, confirm a a norma. Isso por tratar-
se aqui de uma modalidade de im putação da discrepância:
não era a expectativa que estava errada, mas sim a ação
que foi errada ou então incomum58; não se trata de esclare­
cer um erro, mas de questionar o comportamento. Dessa for­
m a a norma já está salva, e aquele que a rompe está quase
que perdido. Apesar da discrepância ter sido igualm ente
causada por ambos os lados de form a que uma observação
puramente causai não perm itiria rigorosamente nenhuma
imputação, um entendim ento prévio ao nível da expectativa

fi8
de expectativas perm ite que se estabeleça uma imputação
unívoca. criando assim uma base para as ações, apontando
a direção a ser seguida em cada caso. Os juristas tendem,
então, a interpretar a base da im putação como uma “ capa­
cidade” da vítim a — como capacidade jurídica, im putabili­
dade, capacidade geral, culpabilidade, etc. — de tal form a
que a seleção apareça como se fosse determ inada pela pró­
pria vítim a, e não a partir da expectativa. A norm a perm a­
nece norma, e a “ causa do desapontamento reside no com ­
portam ento d ivergen te.59
Dessa form a não apenas isola-se, individualiza-se, perso­
naliza-se o acontecimento, mas ao mesmo tempo é forneci­
do um ponto de referência para um a explicação do desapon-
tam ento. As explicações de desapontamentos têm a função
de acomodar no mundo o desapontamento que se tornou
inegável enquanto fato. Ele tem aue ser integrado aos fatos
conhecidos, tornando-se, assim, com preensível — pois só se
pode esperar em termos contrafáticos em alguns sentidos,
e não absolutamente, por princípio. A explicação, porém,
não pode lesar a norma. P or isso ela deve distanciar o acon­
tecim ento desapontador da expectativa. A expectativa e o
acontecim ento têm que ser sim bolicam ente isolados de tal
form a que o acontecim ento não possa afetar a expectativa,
não colocando em questão sua continuidade. Os pontos de
vista que se prestam nesse sentido, pouco têm a ver com as
explicações cientificam ente verificáveis, pois elas não devem
fundam entar a regularidade, a contingência circunstancial
da expectabilidade, mas sim o oposto — sua excepcionali-
dade.
Um a possibilidade de tais explicações de desapontamen­
tos consiste em atribuir o incidente a uma atuação de fo r­
ças sobrenaturais, descrevendo-o como feitiçaria, como vin ­
gança dos mortos, como um justo castigo divino. Um outro
tipo de explicação aponta para as intenções m alignas do
ator, para seu “ in terior” , para a culpa. A caracterização co­
mo in im igo ou como estranho, ou sejam caracterizacões de
papéis, preenchem uma função semelhante. Variações m o­
dernas fornecem conceitos ou rearas treu d ocien tífn as: o
com portam ento desapontador é atribuído ao “ comnlexo de
inferioridade” do ator, a frustacões em sua infância, à sua
situação de classe, a forças circunstanciais, etc. Outros
exemplos podem ser encontrados nos estereótipos negativos,
com os quais se rotula “ a burocracia” , “ os políticos” , “ os

69
judeus” , “ a ju stiça” , a “ juventude de h o je” , os “ capitalistas
e monopolistas” , apresentando-os como fonte de desaponta­
mentos. A valoração n egativa da causa presumida do desa­
pontam ento é um sintom a de que a norm a deva ser- .prote­
gida contra críticas.60 Acrescente-se ainda uma série de ex­
plicações de desapontamentos baseados em argumentos es­
pecificam ente circunstanciais — como por exemplo a expli­
cação de erros com a “ sobrecarga de trabalho” da burocra­
cia. O que inicialm ente surgia quase que como um crime,
pode, assim, ser transform ado em um simples incidente.
Em todos esses casos a expectativa abalada pode ser recons­
tituída na medida em que o acontecimento desapontador é
afastado como algo irregu lar ou negativo. DeSsa form a o
desapontado pode salvar-se através de expectativas prospec-
tivas de expectativas: ele passa a esperar que ninguém es­
pere seriamente que ele abandone suas expectativas por
essas razões.
Apesar da variedade de possíveis explicações de decep
ções, a escolha entre elas não é arbitrária, mas sim pré-mol-
dada por dados do sistema social abrangente. Sobressai prin­
cipalm ente o ancoram ento de tais explicações nas estrutu­
ras cognitivas. A referência a outras concepções do dever
ser, a uma m oral divergente daquele que desaponta, não é
suficiente como explicação de desapontamentos, pois isso
não confirm aria a expectativa própria, mas a apresentaria
como contingente e duvidosa. O desvio, que é um fato, ,?.ó
pode ser neutralizado se fo r tratado como um fato sem sig­
nificado valorativo. Dessa form a a explicação de desaponta­
mentos depende das fontes sociais da plausibilidade cogn iti­
va e daquilo em que se acredita — seja isso a magia, a reli­
gião ou a ciência.
Esse aspecto é im portante, pois nem todo tipo de con­
vicção fornece explicações igualm ente boas. As explicações
mágicas e religiosas, por exemplo, perm item explicações
m uito concretas do fato de que o desapontamento atinge
exatam ente a m im e minhas expectativas.01 Isso tam bém é
em parte atingido através de explicações personalizadas,
como a intencionalidade ou a culpabilidade, enquanto que
as explicações generalizadas do tipo científico ou dos este­
reótipos negativos hão satisfazem tão concretamente. Isso
porque continua-se sem saber porque, por exemplo, um me­
nor abandonado rouba exatam ente o meu carro. Tais expli­
cações satisfazem apenas em uma sociedade cujas estrutu­

70
ras de expectativas sejam suficientem ente sedimentadas, ao
ponto de tornar o acaso, a sorte ou a desgraça aceitáveis en­
quanto explicações parciais de desapontamentos.618
Fin alm en te é preciso considerar que nem todo tipo de
explicação é com patível com o estilo norm ativo de expec­
tativas. Na medida em que as expectativas se diferen­
ciem como cognitivas e normativas, sua separação também
tem conseqüências seletivas sobre a viabilidade das form as
de explicação do desapontamento. Dessa maneira, explica­
ções em si aplicáveis precisam ser excluídas, ou então re­
servada,? para a esfera das surpresas cognitivas. Tais lim i­
tações podem ser observadas até mesmo em sociedades sim­
ples. A explicação usual da bruxaria ou da incorporação de
maus espíritos não é aplicada quando se trata de delitos en­
tre os próprios membros da tribo, ou seja, quando se trata
de um a esfera de expectativas em princípio normativamen-
te reguladas.02 A explicação religiosa dos crimes como “ de­
sígnio d ivin o” não está de todo elim inada, mas exige um a
alta capacidade de abstração do sistema explicativo, e uma
estrutura de normas escalonada e hierarquizada, pois natu­
ralm ente tem que ser excluído que o criminoso não preten­
da a absolvição argum entando um “ flagelo divino” . Nos or­
denamentos jurídicos modernos a explicação científica do
com portam ento divergente tem seus lim ites intransponíveis.
Mesmo sendo universalmente praticável, da mesma form a
que a explicação através da bruxaria, por não criar nenhu­
ma dificuldade para a vinculação de qualquer comportamen­
to a causas sociais ou psíquicas, não controláveis pelo ator,
essa explicação é fortem ente lim itada na esfera normativa,
sendo perm itida apenas em casos extremos, enquanto que
em geral é substituída por um a explicação am plamente fic ­
tícia: a suposição da culpa individual.
Seja qual for a explicação escolhida para o desaponta­
mento, sua função consiste em possibilitar a manutenção
da expectativa apesar de acontecim entos discrepantes. Esta
não é só uma questão de interpretação. Aquela manutenção,
pelo menos a lõngo prazo, dificilm ente será possível se a ex­
pectativa desapontada fosse totalm ente impedida de expres­
sar-se. Um a expectativa constantem ente desanontada, sem
poder manifestar-se, esvai-se. Ela é im perceptivelm ente de­
saprendida e, finalm ente, seu próprio sujeito não mais acre­
dita nela. Ele acostuma-se ao desapontamento e lembra-se
•eventualmente da sua expectativa “ propriam ente dita” . Esse

71
definham ento devido à fa lta de possibilidade de expressão é
acelerado se a decepção tem lu gar no contexto de situações
sociais, ou seja é percebido pelos outros. Nesse caso as ex­
pectativas recíprocas sobre expectativas fazem surgir uma
pressão para que haja decisão. Os expectadores vêem o pro­
blema, também são abalados em suas expectativas de expec­
tativas, passando, então, a esperar um esclarecimento das
expectativas do desapontado. Esse, por seu lado, esperará
que os expectadores esperem dele um esclarecimento de
suas expectativas, e se sentirá forçado a tom ar uma decisão
sobre a manutenção ou o abandono de suas expectativas, e
a m ostrar que tom ou essa decisão. Isso só é geralm ente pos­
sível no momento da situação, ou m uito próxim o a ela. As
ofensas públicas só se pode reagir imediatamente. Qualquer
atraso reduz sua credibilidade, ou até sua legitim idade, pois
no meio tempo os expectadores já constituíram ,suas expec­
tativas de expectativas, e tam bém não ouerem ser desaoon-
tados.03 A interdependência das expectativas abaladas con­
verte-se em pressão de tempo, mas dessa form a apenas aguça
um problema que já existe: o desapontado não pode, mes­
m o se o quiser, ign orar a realidade, mas pode não adm i­
ti-la, não aceitá-la. Com isso ele ae coloca num dilem a
com mssibilidades claram ente delimitadas de comportamento.
Se ele não quiser abdicar da sua expectativa terá, então, que
colocar o desapontamento como tem a do seu com portam en­
to, aue expressar a continuidade da vigência da expectativa
na form a com que trata o desapontamento.64
A verbalização da explicação serve de ponte entre a ex­
plicação e a reação, e na m aior parte dos casos cotidianos
Isso já basta. Frente a desapontamentos de expectativas nor­
m ativas usa-se a argumentação, exige-se, apresenta-se ou
aceita-se esclarecimentos, justificativas, desculpas, escusas.65
Em situações não duvidosas esse processo condensa-se em
rápidos entendimentos, aue não deixam surgir dúvidas, m e­
lindres ou sentimentos. Trata-se aqui de tentativas em co­
mum, de salvar a norm a ameaçada, de superar o abismo en­
tre a norma e o com portamento. O desvio é neutralizado
simbolicamente. Todos se curvam frente a norma, apontan­
do, pelo menos através das implicações daí resultantes, no
sentido da continuidade da vigência da norma, e aue aque­
le que dela se desviou permanece confiável, apesar do desvio.
Em cada situação, principalm ente em função do grau de
intim idade entre os participantes, podem variar o com por­

72
tam ento apropriado, o estilo mais solto ou mais form al, os
limites da inquisição, o grau de propensão à ficção e à con­
sistência com relação a comportamentos anteriores, os pa­
drões culturais, cs fatos a serem tratados cognitivamente,
ou mesmo a própria fisionomia (ru borizar-se!), etc. As re­
gras lingüísticas das escusas e desculpas, por seu lado, con­
sistem em expectativas cognitivo-normativas, quando não
puramente normativas, que muitas vezes possuem um peso
m aior ainda que a própria norma, cuja transgressão deve­
riam regular. Um tom errado na desculpa pode significar
um crime ainda m aior!06
Tudo isso, porém, pressupõe que existem chances para
um entendim ento sobre a norma atin gida ou pelo menos
sobre seus componentes essenciais. Freqüentemente isso não
é possível, ou não o é com a rapidez necessária, especialmen­
te quando o próprio com portamento deixou m uito evidente
uma intencionalidade contra a norma. Nesses casos, inicial­
mente a norm a é sustentada solitariam ente. A saída mais
im portante e típica para essa situação forçada é a sancão. O
desapontamento punp o desapontador por meio de olhares,
gestos palavras ou atos; sei a para induzi-lo a um compor­
tam ento conforme à expectativa, ou seja apenas para salva­
guardar demonstrativamente sua expectativa frente à de­
cepção. Sua tentativa de im por sua expectativa a posteriori,
ou pelo menos para casos futuros, demonstra ao mesmo tem ­
po com toda clareza sua decisão no sentido de m anter a ex­
pectativa. Isso leva a ten tativa de definição do conceito da
norma por meio da disposição ao uso de sanções nos casos de
sua transgressão.07 Dessa forma, porém, restringe-se dema-
siadamente, ou até mesmo ignora-se, o repertório das possi­
bilidades. e o fato de que a manutenção da expectativa é
mais im portante que sua imposição. Ainda mais, a “ teoria
da sanção” parte de uma contradição intransigente entre
aquele que espera e aquele que desaponta, tendendo a ign o­
rar os muitos casos onde ambos — não raram ente às custas
da verdade — cooperam para reabilitar a norma atingida. A
par das sanções, portanto, existem outras estratégias da es­
tabilização contrafática. que se eqüivalem em termos fun­
cionais.08 Algumas dessas alternativas podem ser exem pli­
ficadas.
Se combinei encontrar-me com um am igo em um bar, e
ele não vem. sinto-me atingido não só nas minhas expectati­
vas cognitivas, mas também nas normativas. Ele deveria

73
estar lá! É necessário, então, algum “ processamento” do de­
sapontamento da expectativa, mas existem diversas possibi­
lidades a disposição, nem todas com a característica de san­
ção. Posso, por exemplo, perguntar por ele ao garçom, e no
meu modo de falar expressar m inha expectativa normativa
como decepção, desgosto ou preocupação. Isso é recomendá­
vel, especialmente quando o garçom me conhece e m e vê es­
perando inutilmente. Mostro, então, que eu, com minha
norma, me encontro do lado correto. Outras pessoas que es­
tivessem de algum a form a interessadas na situação pode­
riam ser considerados como expectadores que confirm ariam
a norma atingida, sem que o pecador disso tivesse conheci­
mento. Tam bém posso me d irigir diretamente a ele, telefo­
nar-lhe ou repreendê-lo em um encontro posterior. A seguir
pode ocorrer um procedimento de escusas como acim a ex­
posto: posso aceitar de meu amigo, sem qualquer sanção,
um a desculpa, contanto que ela reafirm e a certidão da m i­
nha expectativa. Essa desculpa pode ser fictícia, eu posso
saber que ela é fictícia, e ele pode saber que eu sei que ela
é fictícia, contanto que se expresse que no geral, e na pró­
xim a vez, os compromissos devem ser mantidos.
Uma outra estratégia opera com aspectos não verbais da
própria situação. Posso sair do bar im ediatam ente e deixar
que o atrasado arque com os prejuízos. Isso tam bém pode in ­
cluir uma intenção de sanção, que nesse caso não precisa
apresentar-se como tal, nem justificar-se, ou que se apresen­
ta apenas para alguns como sanção, enquanto que os outros
a percebem só como prejuízo. Também posso ficar sentado
no bar, e esperar infinitam ente, para demonstrar a relevân­
cia da norma através da dimensão do meu sacrifício. Posso
fazer um escândalo, para desfrutar a ressonância social, já
que não da norma, pelo menos do escândalo.®9 Existem di-
versàs possibilidades de expressão da velha norma adaptada
a uma nova situação, de tal form a que mesmo os de nature­
za menos robusta, incapazes de exercerem sanções, possam
continuar vivendo com suas normas: técnicas de divulga­
ção do escândalo e desfrute de seus reveses, técnicas de
advertências para o respeito à norma, de demonstração de
se estar magoado, ou da aceitação polida de escusas, técni­
cas de auto flagelação e de sofrim ento persistente70, ou ainda
técnicas de ampliação .inocente dos prejuízos e da justa sa­
tisfação com o prejuízo alheio.

74
Um outro tipo de processamento situa-se entre a não
consideração e a sanção. Ele consiste em definir-se o ator
desapontador como uma pessoa fora da norma, com a qual
não existe uma comunhão ao nível da honra e do direito,
que não precisa ser levado a sério, que pertence a outra
casta ou classe, que não é passível de sanções, ou que por
qualquer outra razão não possui significância simibólica.71
Aqui torna-se necessário apoiar-se em delimitações sociais
firm em ente institucionalizadas, ou então lançar mão de uma
capacidade de expressão superior: presença de espírito, d ig­
nidade inabalável, ocupação ascética com coisas elevadas, ou
algo semelhante.
Em resumo, a vida cotidiana oferece uma opção consi­
derável entre possíveis explicações de desapontamentos e
form as de reação. Com isso abre-se a inúmeras projeções nor­
m ativas a perspectiva de sua persistência, sem que haja de
antem ão a necessidade de que ela seja consensual, possua
consistência ou esteja livre de contradições. P ara á escolha
do com portam ento apropriado são determinantes o poten­
cial de ação do decepcionado, sua capacidade de disciplinar
seu tem peram ento e de retardar sua reação, o status da nor­
ma em sua estrutura de expectativas, as constantes que
atuam na situação, as possibilidades de estabelecer-se um
consenso, além de muitos outros fatores — entre eles o sis­
tem a explicativo escolhido e que medeia a sua relação com
as auto-evidências cognitivas. Essa riqueza de possibilida­
des de adaptação corresponde ao estilo das expectativas na
vida cotidiana, entranhada norm ativam ente, que por seu
lado é imprescindível, pois a personalidade humana sempre
depende da estabilização norm ativa de suas estruturas sele­
tivas. P or isso existe uma superprodução de normas, ou seja,
existem m uito mais projeções norm ativas relativam ente es­
táveis, resistentes, que o sistema social possa integrar e,
assim, transform ar em direito.
A tese de uma necessária superprodução de expectativas
normativas, de uma m ultiplicidade e contradição sempre de­
masiadamente amplas no sistema norm ativo da sociedade, é
de im p ortâ n cia fundam ental para um a teoria evolutiva do
direito. Seria errado, e elim inaria im portantes possibilida­
des de esclarecimento, a partir apenas do .direito já consoli­
do, para retornar a tais manifestações caracterizando-as,
assim, por suas deficiências, como expectativas que possuem
um caráter apenas subjetivo e facultativo, como projeções

75
normativas que ainda não são propriamente direito, e re­
presentam, quando muito, um estágio prévio da form ação
do direito. Mesmo essa teoria do estágio prévio é insuficiente
enquanto concepção evolutiva, pois ela não explica por que
o estágio prévio ainda é necessário mesmo após o direito já
estar plenamente d e se n v o lv id o .7- A moderna teoria evolutiva,
como será demonstrado no capítulo III. 1, apresenta um a in­
terpretação mais convincente.
A contribuição da expectativa norm ativa para o desen­
volvim ento de sistemas complexos está relacionada a sua
tendência a dilatar as possibilidades de expectativas, jun ta­
mente com sua interação contrafática. Essa contribuição
fundamenta-se nas necessidades do convívio social, em sua
necessidade elevada de expectativas normativas, que leva a
uma superprodução. Esse mecanismo pode ser caracterizado
por fundamental, pois é ele que possibilita a formação do
direito — não no sentido da norma superior justificando a
inferior, ou do estável sustentando o instável, mas sim ao
contrário: é aquele mecanismo que gera as possibilidades do
esperar-se norm ativam ente, com relação ao qual o direito
pode ser uma estrutura seletiva.
Ao mesmo tempo essa análise aponta para o que ainda
nos falta. O grupo de mecanismos até agora tratado, que
estão especializados para a estabilização tem poral e para a
imunização das expectativas frente ao desapontamento, ape­
nas preenche aquela prim eira necessidade de alta variabi­
lidade do sistema. Eles não avançam no sentido da consis­
tência, da ausência de conflitos, nem da especificação fun­
cional do conjunto de normas. Precisamos continuar pro­
curando os processos de seleção e de estabilização das expec­
tativas destacadas como constituindo o direitò, e os encon­
traremos quando, no próxim o item, considerarmos, além da
dirqensão temporal, a dimensão social e, no item seguinte, a
dimensão objetivo-sensorial da experimentação de expecta­
tivas. A institucionalização produz uma seleção evolutiva na
medida em que escolhe-se consensualmente quais proieções
normativas são úteis em uma sociedáde. E a identificação
objetivo-sensorial produz a estabilização evolutiva dessas
aquisições ao absorverem a norma em um sistema consisten­
te de significados, sedimentando-a e, assim, esclarecendo
que agora é ela que gera consenso, via interpretação e fu n ­
damentação, tornando-se. assim, capaz de atravessar as os­
cilações dos mecanismos im titucionalizantes.

76
4 — Institucionalização

A segurança da satisfação e a integração social não es­


tão dadas tão-somente na eperim entação normativa. T a l la~
bilidade, como fo i mostrado, não é uma catástrofe, mas uma
condição do preenchimento das necessidades de normatiza-
ção na vida cotidiana, e ao mesmo tem po um a condição para
o desenvolvim ento do direito. T oda sociedade, conform e sua
própria complexidade, precisa prever um volume suficiente
de diversidade de expectativas normativas, e possibilitá-la
estruturalm ente, por exemplo por meio da diferenciação de
papéis. Dessa form a é perfeitam ente norm al que projeções
norm ativas conflitam uma com as outras, e que a norm a de
um torne-se o desapontamento do outro. A sociologia atual
está plenam ente capacitada para considerar como normais
as contradições entre expectativas e até mesmo um grau
tolerável de conflito declarado, reconhecendo isso até mesmo
como uma condição para a m anutenção do sistema social em
um am biente demasiadamente complexo.
Isso não a libera da tarefa de seguir procurando solu­
ções, ou pelo menos abrandamentos dos problemas derivados
desses conflitos. Naturalmente, as expectativas normativas
não podem ser indefinidam ente expostas a desapontamentos;
com mais razão ainda é lim itada a tolerância a desaponta­
mentos gerados estruturalmente, continuadamente. Em ter­
mos gerais as expectativas norm ativas têm que ser direcio­
nadas de form a a poderem ser bem sucedidas. Discutiremos
o com plexo mecanismo que provoca isso através do conceito
da institucionalização de expectativas com portam entais.
Com ele pretende-se delinear o grau em que as expectativas
podem estar apoiadas sobre expectativas de expectativas su­
postas em terceiros,73
As análises até aqui desenvolvidas baseiam-se em um
modelo dualístico que perm itia considerar aquele que espera
(ou aaueles oue esperam) e aquele (ou aqueles) que atua
conform e ou contra a norma. Essa noção básica pode absor­
ver um número ilim itado de pessoas, mas previa apenas dois
tipos de posições — o que espera e o que age — perm ane­
cendo, portanto, pouco complexo. A relação entre essas duas
posições é, naturalmente, uma relação social. Se passarmos,
porém, a observar a própria dimensão social da formação do
direito, veremos que aquele modelo simples não satisfaz. As

77
relações são mais complexas. Surge a possibilidade da par­
ticipação de terceiros.
Somente no caso de sistemas sociais simples, efêmeros,
pode-se conceber que o ator se veja diante de um grupo
unitário de detentores de expectativas. Mesmo assim é ne­
cessário considerar-se o mecanismo da expectativa de expec­
tativas, segundo o qual também o ator tem que esperar algo
daquele que espera, e que sem a expectativa de um a ação do
que espera não é possível ter expectativa sobre qual ação é
esperada. Ambos os lados, portanto, iniciam um a reíação
sempre como aquele que espera e aquele que age, passando a
intercam biar constantem ente essa orientação inicial. Acres­
cente-se ainda que a diferenciação objetiva dos temas das
expectativas ou do agir estabelece também um a diferencia­
ção do interesse em sua concretização. N em todos podem es­
perar tudo concretam ente, e tampouco todos podem realizar
todas as ações esperadas. Aqueles que esperam ou agem con­
cretamente, portanto, tendem a separar-se, destacando-se
dos demais, que entrementes estão preocupados com outras
coisas. Isso acontece com todos que adotam um tema, e por
analogia todos são potenciais terceiros entre si.
É im portante com preender corretam ente esse entrelaça­
mento, essa sim ultaneidade da expectativa, da ação, do ser
um terceiro, pois disso dependem os argum entos a seguir.
Todo aquele que participa em um sistema social preenche
todas essas funções praticam ente ao mesmo tempo. Já vimos
que na expectativa e na ação não se trata de papéis diferen­
tes, mas de situações sistemáticas permanentes. Dessa mes­
m a form a têm que ser compreendidas a função e a situação
de terceiros. Ser um terceiro não significa originalm ente
preencher um papel criado especialmente para isso, como
um *espectador restrito à observação, mas sign ifica ser al­
guém que está ocupado com outras coisas, mas possivelmen­
te pode ser atraído para uma particapção concreta em ju l­
gamentos, condenações, ações. Se é um terceiro não em te r­
mos da concretude m om entânea de sua própria expectativa
e acão, mas sim no horizonte das expectativas daqueles que
se orientam concretam ente por possíveis coadiuvantes.
Se bem que a função de terceiros no sentido neutrali-
zante, objetivador, am énizador de disputas, seia um tema
clássico da sociologia, ela quase nunca foi suficientem ente
distinta do papel do espectador.74 o espectador é um terce5ro
concretam ente captável, suas disposições podem ser vaci­

78
lantes, influenciáveis e modificáveis a partir da situação con­
creta. A ele, portanto, não pode ser confiada a instituição.75
Ao contrário, são os desconhecidos, anônimos terceiros, cuja
suposta opinião sustenta a instituição. Os espectadores im e­
diatos atuam apenas como órgãos de um senhor que nunca
se mostra como tal. Isso já aponta para o problema da trans­
formação de terceiros em espectadores, ou seja de sua atua­
ção como coadjuvantes concretos, para um processo comu­
nicativo de opiniões. A atenção consciente é escassa. Os ter­
ceiros têm outras coisas para fazer. Eles têm que ser corte­
jados, motivados, conduzidos a seu papel de espectadores, e
eventualm ente solicitados a proferir um julgamento. Aqui
reside a proxim idade entre a norm a e o escândalo. É neces­
sário cham ar atenção, para provocar o interesse de terceiros.
E é principalm ente nisso que residem as vantagens dos pa­
péis profissionais de terceiros não participantes — os papéis
para os juizes, nos quais inicialm ente a competência é me­
nos relevante que a "presença: o que im porta é a invocação
facilitada.
Um segundo problema reside na mesma raiz: a escassez
da atenção em um mundo demasiadamente complexo. Ao
indagar quanto à integração das expectativas, mesmo os so­
ciólogos rem etem norm álm ente ao consenso. Desde a derro­
cada do direito natural afirma-se que a vigência do direito
está fundam entada em convicções comuns.76 Mas essa con­
cepção esvai-se à menor observação criteriosa: quem. por
exemplo, pensa em algum m om ento no artigo 54 do Código
Civil? Qual é o fato empírico a que se refere quem fala de
convicções comuns? O problema do consenso tem que ser
m elhor refletido, e desenvolvido no sentido dos mecanismos
que sustentam a interação. Não é suficiente avançar das an­
tigas concepções que consideravam o consenso essencial e
desejável, no sentido de teorias que vêem o consenso apenas
como um a variável empírica, só lim itadam ente necessária.77
Além disso devem ser considerados o potencial m uito lim i­
tado de concretização da experimentação e a diversidade dos
possíveis temas. Considerando o consenso fático como uma
experimentação sincrônica no tempo e em seu sentido, ele
seria m uito raro, e de qualquer form a em um sentido con­
creto, rico em determinações, não seria possível uma expe­
rimentação totalm ente adequada, e m uito menos um pleno
consenso.

79
O problema, por isso, não pode consistir em ampliar-se
o consenso consideravelmente. Isso absorveria o potencial de
atenção disponível para outros temas, esgotando-o rapida­
mente. A institucionalização de expectativas sobre expecta­
tivas só poderá estar voltada para o melhor aproveitam ento
de um mínim o em experiências simultâneas e sinônimas,
distribuindo-as igualm ente entre os significados e os mo­
mentos socialmente relevantes, tornando o consenso expectá-
vel e ativável caso necessário, mas principalmente expan­
dindo as predisposições ao consenso, de tal form a que o
“ consenso social geral” só precise ser coberto pela experi­
ência atual de algumas pessoas, em alguns sentidos e em
alguns momentos. Dessa forma, a função das instituições
reside menos na criação e mais na economia do consenso,
que é atingida, principalmente, na medida em que o consenso
é antecipado na expectativa sobre expectativas, ou seja, como
pressuposto, não mais precisando, em geral, ser concreta-
mente expresso. É essa institucionalização que perm ite uma
comunicação rápida, precisa e seletiva entre pessoas. Pode-se
trccar fluentem ente de situações e parceiros, sem perder a
base de entendimento e ter que reconstituí-la repetidamente.
Quando a institucionalização envolve desconhecidos, até
mesmo neles pode ser presumido um consenso, e suposto que
mesmo sem um entendimento prévio explícito exista uma
concordância genérica quanto a um conjunto m ínim o de
expectativas sobre expectativas. Nos resta, então, descrever
mais precisamente como se processa essa operação impres­
cindível para o convívio humano.
O mecanismo da institucionalização inicia-se onde o pro­
blema tem sua origem : na capacidade lim itada de atenção.
Toda interação social exige a escolha de sentidos como tema
de atenção comum. Todo sentido, porém, tem mais im p li­
cações que as que podem ser explicitadas através da comu­
nicação. Para poder atuar no sentido proposto, portanto, é
necessário supor uma definição aceita da situação, desen­
volvê-la em uma direção determinada e encam inhar os outros
participantes aos seus respectivos papéis. Já que nem todos
podem falar simultaneamente, a condução cabe a um ou
a aleuns participantes que se alcam ao centro da aten^ãc
comum, aí encontrando ressonância para sua comunicação.
Inicialm ente todos têm o direito de protestar; mas ninguém
que queira participar de interações pode protestar sem cessar

80
e explicitam ente contra tudo que está im plícito. Se ele não
conseguir assumir a própria condução seletiva do tema, só
lhe resta o protesto genérico através da ruptura da relação,
ou a aceitação do consenso suposto em sua base, assim como
a história de sua seleção que ainda pode ser influenciada
apenas nos detalhes. A continuidade da participação inten­
cionalmente ou não, representa o consenso genérico, e as
representações comprometem, já que os demais participantes
constroem expectativas correspondentes. Qui tacet corisentire
videtur. Dessa form a o engajam ento surge através da pre­
sença. Formam-se auto-evidências supostas em comum, ini­
cialm ente não articuladas, e oue reduzem fortem ente a
m ultiplicidade das opiniões em si possíveis e manifestáveis.
Nisso se baseia, em princípio, o mecanismo procurado de
seleção que lim ita a multiplicidade das projeções normativas.
Essa redução institucional não pode ser apressadamente
compreendida como compulsão social ou mesmo como deter­
minação social do comportamento. Ela simplesmente ocorre.
Ela surge obrigatoriamente, mas não atua no sentido de
uma compulsão que exclua outra possibilidade. Ela mantém
boa parte da variedade das projeções normativas, certas pos­
sibilidades de divergência e principalm ente possibilidades de
m odificação na adaptação a condições alteradas. A temati-
zacão e a medificaeão de premissas com portamentals não
estão necessariamente bloqueadas por interesses de peso, Esse
mecanismo da institucionalização não estabiliza sem mais
nem menos, especialmente expectativas normativas, mas
inicialm ente estabiliza apenas hipóteses de continuidade, cujo
status norm ativo ou cognitivo pode permanecer indefinido.
Nele se baseia também a form ação de subculturas diver­
gentes, delinqüentes.78 Nessa acepcão. o conceito de insti­
tuição possui sua característica específica não na compulsão
social, não na ampliação do consenso faticam ente concreti­
zado. e também não na norm atividade das expectativas, ape­
sar de não excluir nenhuma dessas características. Sua fu n ­
ção reside em uma distribuição tan gível de encargos e riscos
comportamentais, que tornam provável a manutenção de
uma redução social vicenciada e que dão chances previsivel-
m e n tí melhores a certas nrojeções normativas.
Aquele cujas expectativas sejam contrárias à instituição,
ter^ enntra si o peso de uma auto-evidência presumida. In i­
cialm ente ele tem que contraditar bases comportamentais

81
aceitas, já abertamente assumidas pelos demais. Com isso
ele atinge autoprojeções, tomando-se incômodo ou até mesmo
perigoso. Ele precisa arriscar uma iniciativa, sem estar pro­
tegido por expectativas pré-estabilizadas. Suas expectativas
surgem inesperadamente. Ele precisa tem atizar ou proble-
m atizar o que é suposto tacitamente, ou mesmo expressa­
mente aceito, dirigindo-o para o foco de interesse comum e
aí destruindo-o, apesar dos demais possivelmente desejarem
utilizar a situação com propósitos totalm ente distintos, de­
senvolvendo-a em outras direções. Ele tem que ser capaz de
ocupar o centro das atenções comuns — não é suficiente
murmurar suas reservas para um dos presentes, ou ridicula­
rizá-los após a situação. Isso significa que a crítica a ex­
pectativas institucionalizadas está acoplada a pretenções de
liderança, as quais, independentemente de conteúdos, pro­
vocam resistências. O risco é proporcionalmente alto, e com
freqüência desencorajadoramente alto. Talvez o crítico obte­
nha ressonância e possa tornar-se porta-vcz de uma am pla
insatisfação latente, mas talvez lhe seja indicado, mais ou
menos politicam ente e perante todos, que ele está tentando
fixar-se em território inimigo.
A isso acrescenta-se a carga da verbalização e da expli­
cação. A instituição pôde constituir-se e desdobrar-se quase
que desapercebidamente. Para derrubá-la necessita-se da pa­
lavra. O atacante tem que encontrar as palavras certas, os
argumentos que desestabilizam a instituição. Ele precisa le­
vantar os motivos contra ela, e geralmente ainda fornecer
também uma proposta alternativa. P ara tanto ele não po­
derá apoiar-se em experiências e comprovações concretas,
mas terá que recorrer apenas a concepções abstratas — não
à experiência real de vida, mas a possibilidades difusas de
uma outra existência. O ataque poderá ser facilitado se a
instituição já incluir expectativas, princípios, constituicões
que form ulem explicitam ente a possibilidade de modificações.
Mas, mesmo nesse ca.~o. recai sobre o atacante o peso da com­
plexidade. É ele que deve reconstituir o " status n aturalis”
da contingência social e a m ultiplicidade das possíveis ex­
pectativas normativas, que não podem continuar as mesmas,
sendo assim o responsável por novas reduções.
De qualquer form a, aquele que propõe desvios ou m o­
dificações chama a atenção a si mesmo. Ele se expõe. En­
quanto que as expectativas institucionalizadas podem ser

82
seguidas imperceptivelmente, quase que distraidamente, o
rebelde se expõe singularmente, de form a em inentem ente
pessoal. Sua ação sobressai e lhe é pessoalmente imputada,
já que lhe falta a instituição enquanto explicação. Quem
permanece sob a proteção da instituição pode sentir-se se­
guro. Quem sobressai é levado a um a perigosa auto-exposi-
ção, correndo o risco de levar um fo ra desmoralizante. Essa
alternativa entre perm anecer seguro na invisibilidade e o
risco de sobressair-se é característico para a situação moti-
vacional com respeito a expectativas institucionalizadas. Ela
não bloqueia qualquer desvio, qualquer conflito, qualquer
proposta de renovação, sempre podendo existir pessoas e
grupos que encontrem exatam ente nesse perigo um a insti­
gação, um m otivo, uma chance de ação conseqüente. A alter­
n ativa não obriga à obediência como tam bém não o dever
ser norm ativo. Mas ela m otiva aquele que não queira arcar
com as conseqüências a não expressar sua discordância, es­
truturando assim as chances de comunicação no sentido da
instituição. Dessa form a ela fortalece a impressão de uma
opinião u n itária acima da m ultiplicidade das expectativas
fáticas, tornando assim as expectativas expectáveis.
P o r meio da expectativa sobre expectativas institucio­
nalizadas pode-se generalizar esse mecanismo seletivo para
além do sistema im ediato de interação, para além dos pre­
sentes. Isso perm ite a acima descrita diferenciação entre
aqueles que esperam e terceiros que estão ocupados com
outras coisas. Só assim formam-se instituições culturalm ente
relevantes e que sejam independentes de situações in divi­
duais, de sua gênese e de sistemas elementares de interação.
O engajam ento pela presença tom a-se engajam ento através
da existência social. Já que todos estão ligados entre si atra­
vés de possibilidades de comunicação e contracomunicação,
todos se sentem obrigados a dar continuidade aos compro­
missos e autoimagens também na relação com terceiros que
não vivenciaram o engajam ento. Se alguém certa vez se dispôs
a tornar-se soldado, marido, vereador, etc., a freqüentar um
curso de dança, a com prar um a casa, ele ar,sumiu obrigações
para com qualquer um, e não apenas com relação a quem
o tenha conduzido a essa ligação. Em outros contextos isso
pode ser pouco relevante, mas não se pode negar frente a
terceiros a condição de marido, pai, proprietário, membro de
um partido político, etc., e ao mesmo tem po pressupor os

83
compromissos institucionais correspondentes. Espera-se expec­
tativas correspondentes, portanto, não só a p artir daqueles
presentes e interessados, mas tam bém de não participantes,
ausentes e ocupados com outras coisas — e nesse caso em
possibilidades de controle contínuo através da experiência
fática e tam bém sem a possibilidade de obtenção da apro­
vação im ediatam ente visível para inovações arriscadas.
Vemos então com um a clareza cada vez m aior porque a
estabilização social de expectativas sobre expectativas não
pode estar apenas baseada no consenso daquele a quem a
expectativa se d irige: esse consenso seria facilm ente revo-
gável e, portanto, im possível de ser estabilizado no tempo.
É realm ente sedutor o raciocínio de que bastaria m otivar
aquele sobre cujo com portam ento se tem expectativas: o
que deveria varrer a rua, o que deveria proceder ao enterro,
o que deveria apresentar sua declaração de renda, etc. Mas
isso não basta, U m a tão forte especificação e localização
social do consenso necessário reduziria o institucionalm ente
suposto ao consenso faticam ente inconstante, m inim izaria o
lim iar de comunicação que envolve a instituição, e tornaria
a abolição d a instituição um objeto de m era comunicação
sempre possível. O sim ou o não dependeria, assim, de ca­
prichos, situações, personalidades ou acordos “ de parceria” .
Tom ar-se-ia impossível, ou pelo menos m uito d ifícil, um
esperar a longo prazo, um a assimilação de expectativas e
uma projeção de expectativas a situações ainda bastante
desconhecidas. É exatam ente a indeterminação, o anonimato,
a im previsibilidade e a in cógn ita de terceiros relevantes que
garante a confiabilidade e a homogeneidade das instituições.
E la se baseia na neutralização de todas as referências que
levam a que determ inados terceiros possam ter outras ex­
pectativas que as esperadas.79
As instituições se fundam entam , então, não na concor­
dância fática de determ ináveis manifestações de opiniões,
mas sim no sucesso ao superestimá-las. Sua continuidade está
garantida enquanto quase todos suponham que quase todos
concordem; e possivelmente até mesmo enquanto quase todos
suponham que quase todos suponham que quase todos con­
cordem. D aí surge, com parativam ente ao consenso fático,
um a m aior estabilidade e um a mais apurada sensibilidade.
Constituídas sobre a areia movediça da experiência concreta,
através de mecanismos de seleção, as instituições podem

84
tornar-se am plam ente independentes da distribuição fática
das experiências reais com respeito a temas e momentos, e
tam bém das entradas e saídas de seus participantes, pas­
sando então a moldar elas mesmas a estrutura de expecta­
tivas desses processos. Ao n ível das expectativas sobre ex­
pectativas de terceiros, elas atin gem um grau tão caraterís-
tico de sedimentação, ao ponto de não mais tolerarem um
recurso à realidade concreta das opiniões e do com porta­
mento. A certeza de suas expectativas se baseia na assimi­
lação de hipóteses improvisadas que não foram oportuna­
m ente refutadas, no descobrimento de suas implicações e
de outras possibilidades, no m anter latente a m aior parte
dos desvios e todas comunicações que sinalizem expectativas
divergentes e que possam dar-lhes ressonância social — mas
principalm ente na dilatação das chances fáticas do consenso.
As instituições não estão totalm en te soltas, sem sustentá-
culos, como idéias puras sobre a realidade, mas sua hom o­
geneidade é am plam ente fictícia e, portanto, sensível à co­
municação de fa to s .80 Isso explica a vulnerabilidade das
instituições a pesquisas de opinião, à comunicação desen­
freada, a plebiscitos (mesmo quando eles confirm am a ins­
tituição com m aioria su ficien te), e a “ Kinsey reports” de
todos os tipos, o que ao mesmo tem po torna com preensível
porque instituições aparentem ente sólidas desmoronam im e­
diatam ente, como pôde ser ob.~ervado na época da revolução
francesa.
Essa visão geral sobre as funções e o modo de funcio­
nam ento da institucionalização evidencia a ocorrência não
de “ soluções definitivas” , mas apenas de constelações de pro­
blemas de conseqüência, o que é típico para todas as insti­
tuições sociais. É possível prever-se um a série de dificuldades
que tenderão a crescer na m edida em que aum enta a com ­
plexidade da sociedade.
A necessidade de se distender, sim ular e substituir o
consenso fático tem suas condições agravadas com a cres­
cente m ultiplicidade das possibilidades no campo da expe­
rim entação da ação. Não é mais possível te r expectativas con­
fiáveis sobre o consenso de um terceiro qualquer com res­
peito a determinadas expectativas, e menos ainda prevê-lo
para expectativas novas. Não se sabe, por exemplo, quais
tendências da reform a universitária seriam preferidas pelos
camponeses, qual a m elhor organização judiciária para as

85
donas de casa, quais condições de comércio atacadista são
preferidas por professores secundárias. Em term os realísticos
é necessário supor que tais opiniões sequer possam existir
ou serem geradas, e que só se possa produzir a ficção ins­
titucional das opiniões. Isso rem ete à necessidade da política.
A lém disso coloca-se a ameaça de perder-se a lim ita d a ca­
pacidade adaptativa das instituições, já que os terceiros re­
levantes tom am -se inacessíveis nas crescentes ordens de gran­
deza. A previsibilidade, elasticidade e mutabilidade do con­
senso presumido, quase que autom aticam ente garantidas nos
sistemas elementares de interação, têm que passar por so­
luções alternativas nos casos de maiores proporções.
£ ainda necessário considerar as conseqüências daquela
lei do desenvolvimento, na qual já D u rk h e im baseava sua
sociologia do d ir e it o 81: com a crescente diferenciação fu n ­
cional da sociedade dim inui o número das expectativas de
validade comum para todos, e por outro lado crescem des­
proporcionalm ente as expectativas específicas com respeito
apenas a papéis e sistemas parciais diferenciados. E m outras
palavras: poucas expectativas genéricas têm que ser subs­
tituídas por muitas expectativas específicas. Esse desenvol­
vim ento, independentem ente de outras conseqüências, sobre­
carrega o mecanisirío da institucionalização em um duplo
sentido: é m termos globais é necessário que se possa ter
mais expectativas, e a diferenciação entre as expectativas
tem que ser convincente. As pesquisas até agora desenvolvi­
das, baseadas na teoria dos pequenos grupas, fornecem uma
noção ainda m uito insuficiente de como esses problemas po­
deriam ser solucionados.82
No caso das expectativas válidas igualm ente para todos,
a institucionalização pode ser alcançada mais facilm ente,
pois 'Si distinção entre aquele que espera, aquele do qual se
espera, e terceiros não é defin itiva, mas apenas situ a cion al.83
T odo aquele que espera pode ser levado a situações onde
ele mesmo tenha que preencher expectativas — com prar
um a mulher, vacinar-se, ir à igreja, m orrer sem lamentar-se.
Seu esperar é disciplinado por seu próprio interesse. A co-
participação é visível e contribui para o poder de convicção
das instituições, que são sustentadas por um tipo de comedi-
m ento e de sensatez imanentes. Essa base, porém, se esvai
quando as instituições têm que apoiar-se nas expectativas
de terceiros, os quais nunca se encontrem na situação de

86
ter que preencher tais expectaivas, ou seja sequer saibam
que é necessário molhar-se para lavar o seu carro por conta
própria. No caso da diferenciação hierárquica nota-se que
os senhores não mais conhecem as condições sob as quais o
povo trabalha, superdimencionando assim suas exigências.
Atualm ente o caso parece inverter-se, no sentido do povo não
mais conhecer as condições sob as quais os senhores tra ­
balham, e daí superdimensionando suas exigências. Além
disso desenvolveram-se inúmeras diferenciações horizontais
que d ificu ltam a um ju iz avaliar o tem po necessário para o
conserto de um a campainha, mas por outro lado dificulta
o eletricista na avaliação da rapidez com que um processo
poderia ser concluído.
O núm ero e o grau de diferenciação das expectativas
a serem esperadas cresceram de ta l form a que quase não
se pode mais esperar expectativas apropriadas por parte de
terceiros. Os terceiras perdem, com referência a expectativas
comDortamentai." concretas, sua função de a lter ego. Eles
tendem a expectativas generalizantes, exageradas e tam bém
dem asiadam ente frouxas, cuja incom petência é evidente.
Dessa form a a pretensão norm ativa das instituições sociais
globais perde sua credibilidade, e passa a ser esperada cogni-
tivam ente. como um dado que é assimilado ou ignorado, e
isso caso aquelas instituições ainda existirem.
Apesar de tais condições, é necessário m anter e até
mesmo am pliar a eficiência da institucionalização no sentido
da m elhor seletividade e da estabilização social de expecta­
tivas comportamentais. A co-partieipação institucionalizante
de terceiros é substituída pelo a nonim ato. Dessa form a, po­
rém. a capacidade adaotativa da instituição passa a ser o
problema em auestão. A gora menos que nunca as instituições
podem persistir na im obilidade anonim am ente constituída;
elas têm aue ser precisas, com unicáveis e adaptáveis, ou
seia, m odíficáve:s conform e as necessidades — e isso sign i­
fica tam bém a necessidade de que elas encontrem porta-
vozes representativos. A totalidade das estruturas e dos pro­
cessos nesse sentido necessários, direta ou indiretam ente, só
pode ser adeauadamente descrita através de um a teoria
abrangente da sociedade.84 P ara o caso da institucionali­
zação do direito merecem consideração três aquisições evo­
lutivas esr>eciais: a especificação do autocom prom etim ento
no co n tra to, o destaque de “ grupos de referência” especí-

87
íicos enquanto co-participantes relevantes nas expectativas,
e a institucionalização da fu nção in stitu cion a liza nte através
de papéis especiais. Finalizando, concentremo-nos nessas três
form as de encam inham ento das questões.
No co n tra to tornam-se especialmente sensíveis os lim ites
de uma colocação puramente ju rídica do problema. Colocar
as coisas em termos da indagação quanto a qual norma
compromete a palavra empenhada, esvai-se em um postulado
tautológico ou na afirm ação abstrata de um a necessidade
correspondente: onde chegaríam os, se qualquer um pudesse
quebrar sua palavra! Isso até que está correto, mas não
am plia nosso conhecimento. D a mesma form a não avança­
mos com a teoria de D u rk h e im de que o contrato não com ­
prom ete a vontade individual, mas sim que por seu in ter­
médio a sociedade compromete-se com o in d ivíd u o .83 Em
termos jurídico-sociológicos o problem a não diz respeito à
derivação da expressão “ pacta su nt servanãa” , mas sim à
indagação sobre como e por que essa form a específica do
com prom etim ento desenvolve-se a p artir dos mais prim itivos
mecanismos do auto-com prom etim ento, sedimentando-se na
form a do direito.
Isso porque em princípio os com prom etim entos surgem
de qualquer auto-exposição perante outros.86 Como vimos,
a m era presença já com prom ete. Qualquer aparecim ento, e
em especial qualquer ação em sociedade, provoca nos outros
expectativas de continuidade, que podem passar do n ível cog­
n itivo para o norm ativo. Quem se apresentou como não
fum ante não pode com eçar a fu m a r sem qualquer explicacão
ou desculpa; pelo menos ele tem que assegurar que no resto
permanece o mesmo. Esse com prom etim ento se baseia em
que toda identidade pessoal é constituída no contexto da
interação social das expectativas de expectativas, fazendo
com que todo aquele oue deseje perm anecer idêntico com si
mesmo tenha que cuidar que os outros tam bém perm aneçam
idênticos a si mesmos: se um perde sua identidade, a dos
outros também fica ameaçada. 87 Aquele que prenuncia ex­
pressamente um certo com portam ento, invoca esse mecanis­
m o elem entar e facilita aos outros a interpretação norm a­
tiva de suas expectativas e a expressão de possíveis desa­
pontamentos.
O com prom etim ento com a palavra empenhada é am pla­
mente institucionalizado e norm ativam ente esperado fora do

88
âm bito restrito das obrigações jurídicas. É possível observar-
se uma tal necessidade especialmente nas esferas onde o
com portam ento dispõe de muitas alternativas, por exemplo
onde estão institucionalizadas amplas liberdades constituindo,
assim, uma grande complexidade social que tem que poder
ser rapidam ente reduzida a bases universais de ação .88 Nesse
contexto a especificidade do contrato não reside em que ele
crie comprometim entos norm ativam ente expectáveis, mas
sim em que ele submete a configuração de tais com prometi­
mentos às declarações explícitas dos participantes, usando
a concordância dos parceiros contratuais como anteparo
contra o a rb ítrio .89 As vantagens disso residem, entre outras,
no desafogam ento das necessidades de ordenam ento norm a­
tivo. Entendimentos fundamentam-se em si mesmos, e se
forem suficientes não necessitam pressupor ou criar normas.
Eles com prom etem juridicam ente — mas apenas para o caso
contratualm ente regulam entado, e não como prejulgados
generalizáveis, obrigatoriam ente repetitivos.
H istoricam ente o contrato não se desenvolveu como um
instrum ento de com prom etim ento das partes no futuro, mas
só assume essa função mais tarde. Ainda hoje esse efeito de
com prom etim ento é uma questão problem ática no caso de
contratos não cumpridos por ambas as p artes.90 Mesmo se
fo r possível alcançar-se um com prom etim ento “ apenas” con­
tratual, confiável e im plem entável, essa não é a única função
do instituto jurídico do contrato. Não é tanto o próprio com­
prom etim ento, mas mais a liberdade de escolha entre com­
prom etim entos (e nesse sentido também a criação de novos
tipos de com prometim entos) que contém o risco a ser con­
trolado e significa a conquista evolutiva do contrato. A figura
do terceiro institucionalizante retorna à posição de garante
genérico dos respectivos acertos. Ao mesmo tempo especifica-
se m elhor o mecanismo da modificação, distinguindo-o da
liberação dos compromissos, facilitan do assim a adaptação:
necessita-se apenas um novo acerto ou um a rescisão perm i­
tida pelas regras do acerto a n terio r.91 Nesse caso é neeessário
conservar a garantia institucional das expectativas norm a­
tivas, a possibilidade de acionar-se expectativas em comum
com terceiros, mas isso não mais é referido a expectativas
concretas, rígidas, mas sim às expectativas do momento em
questão.

89
Visto a partir do ângulo do mecanismo da instituciona­
lização, esse é um avanço altam ente improvável. A variedade
e a superprodução de expectativas normativas foi, porém, su­
ficien te para estabilizá-las — mesmo que só lentam ente e,
ao início, com um grau de liberdade m uito lim ita d o .92 A
improbabilidade reside na institucionalização de aleatorieda-
des, na previsão estrutural da variabilidade. Terceiros têm
que tom ar partido por expectativas sobre cujo conteúdo eles
não têm qualquer influência, que foram criadas sem sua
participação, e que podem a qualquer m om ento serem sus­
pensas por iniciativa dos participantes — até mesmo depois
deles se em polgarem por elas! Supor isso sign ifica supor
tam bém uma separação relativam ente am pla entre terceiros
e o ator-expectador, e ainda uma am pla indiferença dos ter­
ceiros com relação ao conteúdo dos acertos, e em lu gar disso
seu interesse mais abstrato pela form a, assim como m eca­
nismos que, apesar de tudo, assegurem que os terceiros as­
sumam a posição de garantes. D aí temos que o desdobra­
mento mais am plo do direito no sentido de uma instituição
do direito só é possível se a função institucionalizante dos
terceiros desembocar em papéis especiais que possam pre­
encher essa condição: trata-se do papel do ju iz .93 Logo vol­
taremos a essa questão. P o r enquanto devemos fix a r que o
desenvolvimento do contrato enquanto instituição contribui,
para a elevação do grau de abstração, da elasticidade, da
capacidade de adaptação e da possibilidade de diferenciação
de expectativas com portam entais institucionalizadas. Ele
erige-se a partir do mecanismo elem entar da institucionali­
zação. transformando-o, sem porém rompê-lo.
Um a outra solução para as dificuldades de um a insti­
tucionalização demasiadamente concreta e invariante con­
siste na lim itação daqueles terceiros cuja participação seja
considerada relevante. Aquele que espera orienta-se, então,
por um “ grupo de referência” mais restrito, que apresenta
perspectivas comuns, mas não necessariamente válidas para
a totalidade social. Formulando-se ao contrário: destaca-se
uma grande parcela entre os terceiros, cujas expectativas
não possuem qualquer relevância institucionalizante, podendo
assim ser ignorados.
Os mecanismos que levam à form ação de tais gruoos
de referência; a am plitude das expectativas por eles institu­
cionalizadas; as condições que determ inam até que ponto

<W)
no caso de tais grupos também é possível distender-se e
homogenizar-se o consenso fático; a m edida em que suas
expectativas são projetadas norm ativam ente (e não só cogni-
tiv a m e n te ); o grau em que eles têm que ser congruentes com
sistemas fáticos de interação, para poder fornecer as possi­
bilidades de comunicação e de assimilação na medida do
necessário; os problemas ao nível da totalidade social em
conseqüência de uma diferenciação de grupos de referência
entre si e com relação a sistemas de interação — tudo isso
está pouco pesquisado, e certam ente apresenta grandes va­
riações de caso a caso. Parece que, com a crescente diferen­
ciação social, o indivíduo tende a escolher, enquanto grupo
de referência, ou seus pares, ou então as camadas sociais
mais elevadas, e nesse últim o caso só quando existem chances
de ascensão social. Dessa form a criam-se na sociedade bar­
reiras contra uma experimentação em comum de relevância:
apenas os nobres podem ju lgar nobres; só os juristas podem
avaliar corretam ente quando é defensável um desvio da
“ opinião dom inante” ; apenas os médicos podem afirm ar se
um a m orte se deu por erro médico. A form ação de tais
grupos de referência ocorre ao n ível das expectativas de ex­
pectativas — e nisso eles se diferenciam de sistemas con­
cretos de interação — e essa formiacão possui a funcão de
possibilitar institucionalizações parciais, e portanto diferen-
ciáveis.94
Inúm eras ordens de expectativas em sociedades diferen­
ciadas baseiam-se tão-só em grupos de referência restritos.
Com relação à formação do direito propriam ente dita, e à
adaptação do direito ao seu desenvolvimento através da pró­
pria sociedade, porém, essa form a de encam inhamento não
adquiria m aior relevância — apesar de alguns indícios nesse
sentido, por exemplo no direito das corporações durante a
Idade média. Possivelmente isso está relacionado a que no
caso de expectativas exclusivamente norm ativas já seria de
qualquer form a d ifícil aceitar grupos estranhos como grupos
de referência. Mas é principalm ente a relevância do próprio
direito em termos sociais globais que obstaculiza uma m aior
relevância nesse contexto, da especificação de grupos de re­
ferência. 95 Sem dúvida existe o grupo de referência restrito
dos juristas, a partir do qual o jurista se orienta quando se
tra ta do uso técnico da linguagem jurídica, dos limites e
da m aleabilidade de conceitos, da elegância ou eloqüência

91
de exposições e fundamentações, ou então quando se trata
de combater pressões inqualificáveis. Como iremos v e r ,90 a
profissionalização e o controle colegiado dos papéis profis­
sionais que lidam com o direito, possuem uma im portante
função. No entanto não é isso que sustenta a institucionali­
zação do próprio direito. O direito vale não só para os juristas.
P or m aior que seja o numero de instituições variadas com
relação a grupos de referência, ou a freqüência com que se
referencia padrões de expectativas exclusivamente a grupos
restritos — o direito continua existindo como um meio de
integração da sociedade em sua globalidade, representando,
pelo menos dentro das fronteiras territoriais dos sistemas
políticos, a expectativa de todo e qualquer um. Isso é tão
imprescindível, que o direito até mesmo perde sua legitim ação
religiosa quando essa passa a poder ser institucionalizada
somente em termos de grupos de referência: ele pode pres­
cindir mais de sua santidade do que suas expectativas sociais
globais.
Sendo assim, o desenvolvimento de instituições especi­
ficam ente jurídicas tin h a que encontrar uma outra solução
para a crescente discrepância entre a com plexidade e a di­
ferenciação sociais, por um lado, e os processos elementares
de institucionalização, por outro lado. Ela consistiu na dife­
renciação de papéis especiais e de sistemas parciais com
poder decisório sobre o direito, ãe efeito vin cu la tivo em
term os sociais globais.
De início surpreende que essa form a de solucionamento
do problema funcione melhor, apesar de ser m uito mais a r­
riscada, im provável e totalm ente diferente da institucionali­
zação elementar. Em vez de grupos pelo menos maiores, mais
difusos, que qualificassem seus membros no sentido de “ qual­
quer u m " e não necessariamente do companheiro, colega ou
camarada, a função institucionalizante é agora exercida por
papéis individuais especialmente diferenciados para tanto.
Em vez de pelo menos ainda muitos terceiros pessoalmente
indeterminados, apresenta-se agora apenas um ou poucos
terceiros em posição destacada. Por que tal solução foi bem
sucedida em termos evolutivos, e tão bem sucedida que em
larga escala só se passa a falar de direito quando passam
a existir tais papéis?
Em princípio a vantagem dessa solução consiste em que
a função institucionalizante dos terceiros torna-se reflexiva,

92
por referir-se inicialm ente ao próprio processo instituciona­
lizante, antes de desenvolver-se.07 A diferenciação de papéis
especiais para a concessão do consenso norm ativam ente re­
levante possui a form a básica da institucionalização do ins­
titucionalizar expectativas com portam entais.98 O possível
co-esperar de terceiros anônimos, por um lado, referencia-se
ainda diretam ente ao comportamento, que é esperado nor­
m ativam ente; mas além disso ele se referencia ainda ao com ­
portam ento des papéis especiais, onde se form ula o que será
esperado normativamente. A partir do ângulo do indivíduo
isso significa que ele tem que esperar que dele se espera o
que os juizes dele esperam; em termos mais aguçados: que
ele espera que seu parceiro na interação espera dele. o que
os juizes — e portanto todos — de ambos esperam.
Isso pode parecer desnecessariamente complicado. R eal­
mente a experimentação fática reduz essa estrutura, e muito
mais ainda, a form a abreviada com pacta do “ dever ser” . Só
quando se esclarece a estrutura de expectativas que esse
“ dever ser” simboliza e escamoteia — mais ou menos —
é possível reconhecer-se que e porque essa solução foi bem
sucedida em termos evolutivos. Ela apresenta não só a antes
discutida possibilidade de diferenciar-se entre os componen­
tes cognitivos e normativos das expectativas (por exemplo:
esperar cognitivam ente expectativas norm ativas do ju iz). Ela
tam bém perm ite estabelecer a ligação entre o anonimato
difuso e não localizável das expectativas de terceiros com a
prática decisória do juiz, recorrível e influenciável, e dessa
form a repetir, em uma estrutura diferenciada, aquilo que
sistemas sociais muito peauenos, quase nada diferenciados,
são capazes ds realizar. D r - a form a a reflexividade do pro­
cesso de institucionalização possibilita que esse processo seja
em si mesmo diferenciado funcionalm ente, acrescentando-lhe
assim capacidades em si incompatíveis, ou seja, realizando
uma m aior abstração, uma m aior precisão, uma m aior se­
gurança m otivacional em um único ponto — o papel do
juiz — e a partir daí transferindo-as a toda a estrutura de
expectativas.

5 — Identificação de complexões de expectativas

Nos dois últimos itens, ao procurarmos identificar pro­


blemas pré-jurídicos de ordenamento, em relação aos quais

93
o mecanismo do direito pudesse ser compreendido funcional­
mente, tratamos da estabilização tem poral e social de ex­
pectativas sobre expectativas, baseadas na expectativa espe­
rada por parte de terceiros. Antes de podermos indagar
quanto aos efeitos do próprio direito, temos que apresentar
a problem ática e os mecanismos de encam inhamento de uma
outra dimensão de ordenam ento: a dimensão do sentido prá­
tico — ou seja, no nosso contexto, das expectativas com­
portamentais.
A partir das nossas considerações anteriores podemos
obter algumas indicações que apontam para certos m eca­
nismos necessários à estabilização de estruturas de expecta­
tivas, e que determ inam certas necessidades tam bém para a
constituição do sentido prático, para a relação do que pode
ser esperado. As expectativas comportamentais norm ativas
têm que ser imunizadas contra um certo grau de contradi­
ções ao n ível fático, e têm que poder ser vinculáveis a jus­
tificativas cognitivam ente plausíveis para desapontamentos.
Elas têm que possibilitar a suposição de uma base consensual,
apesar das diferenças entre situações e interesses ainda des­
conhecidos em seus aspectos particulares, e mesmo isso só
é atin gível em íntim a vinculação com estruturas cognicíveis
do mundo circundante. Dessa form a, a dimensão tem poral e
a dimensão social atuam seletivam ente sobre o que é possível
no sentido prático. P ara podermos reconhecer o conteúdo
propriam ente problem ático da constituição do sentido de
expectativas com portamentais, temos que voltar ao problema
básico da expectativa de expectativas.
Já que não se pode participar diretam ente da cons­
ciência de outras pessoas, a expectativa de expectativas só
é passível através da mediação de um mundo em comum,
no cmal estão igualm ente fundamentadas todas as expecta­
tivas. É nesse mundo das coisas, dos eventos, das ações visí­
veis e dos símbolos para o invisível, que se apresentam a
referência intencional da experiência aos outros, e ao mesmo
tem po outras possibilidades de experiências próprias. Ele or­
dena o acesso seletivo a outras possibilidades de experiência,
e é nessa m edida que ele possui um sentido. Dessa form a o
sentido serve como síntese, intersubjetivam ente acessível, de
uma m ultiplicidade de experiências possíveis.99 Tais sínteses
do sentido tornam desnecessária a realização sim ultânea de
todas as possibilidades apontadas, e mesmo assim as m antêm

94
à disposição para escolha. Com isso elas também tornam
desnecessária a concretização consciente da expectativa sobre
as expectativas de outros, a participação em seu experimen­
tar, e possibilitam um procedim ento abreviado de sentido a
sentido, baseado na suposição de que a experiência do outro
poderá vir a seguir. Passa-se um a m oeda sem preocupar-se
com o aspecto que essa moeda assume aos olhos de outro,
ou com suas expectativas nesse sentido, conquanto que a
atitude do outro perm ita interpretar-se uma disposição ge­
nérica à interação. Só se ocorrerem perturbações é que sur­
girão m otivos para a indagação (sempre possível) com res­
peito à experiência e às expectativas do outro.
Através da referência a identificações de sentido, os
temas da experiência, ou seja, no nosso caso, as expectativas
com portam entais se autonomizam com respeito à vida cons­
ciente concreta a cada caso. Elas não são mais uma im ­
pressão, mas um tem a em si, que fica, mesmo quando não
se pensa nele, ao qual pode-se voltar e que pode ser refe­
renciado automaticamente. Dessa form a as expectativas com­
portam entais podem transformar-se de cópia em modelo,
podem ser “ seguidas” ou “ não seguidas” , podem tornar-se
objeto de entendimentos sociais ou opiniões de orientação a
sanções ou ao escamoteamento de desvios. Elas podem es­
tabelecer, com outras expectativas, um a complexão de sen­
tido de fundamentações e confirmações mútua.3, podendo ser
apetrechadas e defendidas com bons argumentos. Elas tor-
n am ^ e m anifestáveis, simbolizáveis, representáveis e recusá-
veis — . e isso enquanto expectativas, e não só enquanto ações
esperadas. Elas podem servir de ponto de cristalização para
informações, experiências e interesses. Um a tal complexão
de sentido adquire um valor próprio para o indivíduo e tam ­
bém para o conjunto que dela participa socialmente, de tal
form a que só por isso já se torna d ifíc il sacrificar a expecta­
tiva frente a um evento, um desapontamento único. Um com ­
portam ento divergente não constitui ainda m otivo para o
abandono da expectativa com todas as suas vantagens em
termos de constituição de sentido; ela não poderia ser subs­
titu íd a tão rapidam ente assim.
Dessa form a, o próprio sentido prático já oferece m o­
tivos para persistir na sustentação da expectativa frustrada
— representando ao mesmo tem po sustentáculos de expecta­
tivas contrafáticas. A solidez des.sa relação baseia-se em um

95
í

esforço de abstração. O próprio manejo das interações na


vida cotidiana (e não apenas sua análise cien tífica) torna
necessária uma compreensão in teligível do sentido, relativa­
mente abstraída de seu contexto, se bem que inicialm ente
relativam ente concreta, ou seja, possibilitando ainda a rápida
absorção de percepções concretas. '"'a O grau da abstração,
porém, pode ser aumentado e crescentemente deslocado da
dimensão concreta do quem, como, quando, onde da experi­
mentação imediata. O nível de abstração norm alm ente ne­
cessário no inter-relacionam ento varia conforme o grau do
desenvolvimento social. Perm anecer abaixo desse nível é con­
siderado patológico . 100 Todas expressões contrafáticas, ou
seja também qualquer experiência norm ativa, contêm um
certo grau de abstração que em certa medida têm que ser
norm alm ente expectáveis. Não im porta se um felá não pode
im aginar o que faria se assumisse o papel de Presidente da
República, e até mesmo sequer entendesse uma tal indaga­
ção; mas no caso de um europeu essa mesma incapacidade
seria patológica em termos de fixação em um n ível dema­
siadamente concreto de form ação de sentido. Vê-se nesse
exemplo como o grau de abstração norm al no processamento
da,s experiências cotidianas está relacionado com as estru­
turas sociais, não podendo, portanto, ser arbitrariam ente
modificados. Isso sign ifica que a separação entre expecativas
cognitivas e normativas, a diferenciação das expectativas
normativas enquanto normas, que não “ são” , mas apenas
“ vigem ", também está condicionada pelo desenvolvimento
que altera c grau generaüzadamente expectável de abstração
da orientação sensorial.
Tais diferenças podem ser mais nitidam ente reconhe­
cidas quando observamos como as expectativas — aqui en­
tendidas enauanto expectativas com portamentais — são
identificadas ern sua ccm plexão através de um cerne inva-
riante de sentido. Expectativas não surgem isoladamente, e
também não são expectativas isoladamente. O term o e o
conceito de expectativa não devem induzir à suposição de
que existiriam na realidade objetos correspondentes, em
termos de unidades estáveis e isoláveis. A natureza não de­
term ina o oue seja “ um a” expectativa, onde ela começa e
termina, que detalhes concretos ela contém e quais possibi­
lidades de variação ela permite. A expectativa é a intencio-
nalidade que aponta para o futuro do fluxo da experim enta­

96
ção, que procura sempre conteúdos cambiantes, e que expe­
rim enta a realidade através do seu câmbio. Identificações
de sentido estão em um n ível mais alto de abstração, são
sínteses de muitas expectativas, concretizáveis e particula-
rizáveis conform e as necessidades. Isso pode ser visualizado
em uma coisa concreta, um a mesa, um a casa, um a m on­
tanha, mas também em uma pessoa conhecida, um papel,
uma tarefa, uma melodia, um romance, um p rocesso...
Trata-se sempre de um complexo feixe de possíveis expecta­
tivas, atado pela identidade através de um princípio de sen­
tido, mas m odificávei através da experiência e liberável, con­
form e as necessidades, para um a concretização seletiva. O
sentido patrocina o encadeamento das expectativas, regula
a passagem de uma expectativa a outra, a assimilação de
experiências e desapontamentos no contexto das expectati­
vas, a possibilidade de substituição de antigas por novas ex­
pectativas, e tam bém o alcance da revogação da cadeia de
expectativas no caso de desapontamentos, assim como o tipo
e o tempo necessário das possibilidades de assimilação daí
resultantes.
Essa form a de assimilação da experimentação é uma
condição da sustentação de uma construção-de-mundo alta­
mente com plexa e contingente. Apesar de projetar-se um
mundo indeterminado, as exigências daí decorrentes perma­
necem ao nível do realizável desde que a identificação em
termos de sentido não se refira a todas as expectativas, mas
apenas a tipos abstratos que possam perm anecer constantes,
atuando com o regras geradoras das diversas expectativas.
De outra form a seria difícil realizar o equilíbrio entre uma
m ultiplicidade das mais diferentes expectativas. As necessi­
dades de consistência, porém, continuam a referir-se à pró­
p ria expectativa: sempre que possível, a geração de expecta­
tivas opostas, que se bloqueiam m utuamente, devem ser
evitadas no próürio indivíduo ou também na interação so­
cial. 101 Mas o controle da consistência só pode ser realizado
com o auxílio das abstrações de sentido, e por isso ele é
superficial. A tão decantada “ consistência do direito” , bus­
cada com todos os meios da lógica, no sentido da ausência
de contradições, não é uma garan tia necessária, nem alcan­
çável e sequer suficiente, para a consistência das expectativas,
mas aoen’as um filtro valioso que separa a massa das con­
tradições im agináveis e torna o resto passível de decisões.

97
A identificação de complexões de expectativas em termos
de sentido possibilita, ainda, a conservação e a reativação de
expectativas, sedimentando-as como acervo cultural. Não é
necessário criar-se constantem ente suas expectativas a cada
caso, ou deduzi-las de cada situação; podemos reproduzi-las
e fundamentá-las sempre que necessário, a partir de um dado
contexto organizado em termos de seu sentido. É tão-só sobre
essa base que as normas assumem o caráter de algo que
“ v ige ” , que os direitos assumem o caráter de algo que se
possa “ ter” , que os institutos do direito tornam-se disponíveis
como tipos que podem ser escolhidos através de decisões.102
A cada plano do sentido dado à identificação genera-
lizante decide-se o grau de concretividade de uma estrutura
de expectativas. No processo fático de conscientização já se
encontram de antemão, e de form a entrelaçada, pré-concei-
tos abstrato-generalizantes e antecipações concretas. Eu ès-
pero, por exemplo, que a correspondência a m im endereçada
chegue a m im de algum a form a — e espero tam bém que
às oito e meia da m anhã o carteiro, sem cheirar a cachaça,
coloque a correspondência na caixa, sem dobrá-da e sem
deixar nada de fora para que não se molhe com a chuva, e
que eu possa reconhecer, olhando pela fenda na caixa, se ela
contém algo. Características mais abstratas e mais concretas
das expectativas não se excluem, e também não são sentidas
como objetivam ente contraditórias. A questão está em que
plano da abstração está o ponto focal, relativam ente inva-
riante da form ação de sentido, através do qual a complexão
de expectativas é identificada e o processamento das expe­
riências que se seguirão é regulado. Disso, por exemplo, pode
depender se, e até que lim ites, é possível distinguir-se entre
aspectos cognitivos e norm ativos das expectativas; se e onde
desapontamentos tornam-se relevantes, necessitando explica­
ções: quais expectativas parciais são desacreditadas através
de desapontamentos, ou então desestabilizadas, necessitando
um melhor controle; onde se apresentam interdependências
com outras expectativas ctue passam então a estabelecer con­
dições de confiabilidade; ou seja: como a com plexão de ex­
pectativas é integrada concreta ou abstratamente.
Permanecendo no nosso exemplo, se espero que a distri­
buição da correspondência seja ordenada pela’ pessoa do car­
teiro. a sensação de um cheiro de álcool colocará em dúvida
a confiabilidade dessa distribuição; acho então que se o

98
jorn al ficou aparecendo, tendo se molhado, fo i culpa do
carteiro e não da caixa m al construída. Se espero do carteiro
apenas a execução de um papel, a complexão de expectativas
torna-se indiferente frente a detalhes individuais — ela ad­
quire variantes aceitáveis. Se espero apenas a execução da
legislação postal, os desapontamentos só se tornam relevan­
tes onde a própria lei me fornece possibilidades de ação, por
exem plo através de reclamações formais.
U m a coisa é certa: quem in tegrar suas expectativas de
form a demasiadamente concreta, e mesmo assim normalizá-
las, terá um a vida rica em desapontamentos e dificilm ente
poderá assimilá-los. Ele terá uma relação instável com a rea­
lidade, pois seu potencial para a superação de desaponta­
mentos será sobrecarregado, sem ser aliviado através de
processos de assimilação. Ele sempre correrá o risco de es­
tabelecer projeções normativas irrealísticas, e de seus desa­
pontam entos extrapolará conseqüências demasiadamente am ­
plas, incompreensíveis para os que com ele convivem, pois
eles sequer sentem esses desapontamentos como tais. Devido
esse erro estrutural de colocação ele terá uma vida sobre­
carregada, sem m uito alcançar. Reconhece-se aqui que a
fixação em um estilo especial de expectativa norm ativa pres­
supõe um grau m ínim o de abstração do contexto das ex ­
pectativas, acompanhado de um grau correspondente de in ­
diferença. Mas também o processamento demasiadamente
abstrato das experiências tem seus perigos. Ele leva à indi­
ferença e em última análise à incapacidade de engajar-se
corretam ente no m eio-am biente: não se conhece o carteiro,
não se cum prim enta ele, a ele não é dirigida qualquer pa­
lavra am igável, nem se lhe dá qualquer gratificação de festas.
Por trás dessas caracterizações de “ demasiadamente” con­
creto ou abstrato apresenta-se aquele problema ao qual já
chegáramos an tes: de quais estruturas sociais depende o grau
de abstração necessário ao ordenam ento menos atritivo pos­
sível das expectativas?
P ara podermos aprofundar-nos nessa indagação, preci­
samos diferenciar entre diversos planos da abstração, nos
quais são utilizados diferentes princípios de identificação.
Expectativas com portamentais podem referir-se a pessoas
concretas, a determinados papéis, a determinados programas
(fins, norm as), ou a determinados valores. Essas diversas
possibilidades oferecem pontos de referência expressos para

99
a expectativa de expectativas — ao contrário de esperar-se
concreta e alternadam ente determinadas comportamentos ou
expectativas, por exemplo, imagina-se as “ características” de
um a pessoa conhecida. As referências não se excluem —
pode-se ver ao mesmo tem po a pessoa e seu papel — mas,
dependendo do que tenha a prim azia estrutural, diferem as
fundamentações de com plexão de expectativas e as fontes da
convicção, as possibilidades de combinação e de exclusão, o
número e a definição das expectativas abrangidas e as alter­
nativas disponíveis.
Se por um lado a unidade de um a pessoa individual
garante uma complexão de expectativas, sua integração per­
manece fix a em um plano de sentido relativam ente concreto
e plástico. As expectativas se referem ao que pode ser im pu­
tado a uma pessoa concreta em termos de experiências e
ação. Elas não podem ser nem mais nem menos transferidas
a outras pessoas. P ara se poder esperar com segurança, é
necessário conhecer essa pessoa “ pessoalmente” . Isso pres­
supõe uma história de interações em comum, uma vida
comum, ao longo da qual o outro se expôs e tornou-se co­
nhecido. A interação não pode ser demasiadamente “ impes­
soal” , ela tem que apresentar possibilidades de auto-expo-
sição — o que não é tão evidente assim em contatos coti­
dianos. 10:! Ã segurança nas expectativas depende, assim,
essencialmente do mecanismo de com prom etim ento da auto-
exposição e dos instrum entos de sancão do trato social.
Está claro que esse tipo de identificação personalizada
de normas é im portante, principalm ente para grupos íntimos,
os quais, através de suas especificidades, podem norm atizar
seu colorido local. Fora dos grupos íntimos ele se apresenta
na norm atização de rendimentos excepcionais, que não po-
dem*ser esperados generalizadam ente.1(13a Aquele que durante
um certo tempo afirmou-se como operário que produz acima
das normas, como um convidado divertido, como desportista
excepcional, etc., é pessoalmente norm atizado nos termos
comprovados, e isco de tal form a que o ressalte pessoalmente,
tornando-o incomparável, e portanto sem com prom eter os
outros a essa mesma norma. A ele imputa-se capacidades
correspondentes, cuja não realização pode ser levada a mal.
Os heróis não podem ser esperados, mas quando eles se apre­
sentam impede-se ou dificulta-se aue eles mesmos reduzam
as expectativas por m eio da sua “ n o r m a liz a ç ã o ” .

100
Em contrapartida, a identificação de uma com plexão
de expectativas por m eio de papéis pode desprezar caracte­
rísticas pessoais e individuais. Papéis são feixes de expecta­
tivas, 104 lim itados em seu volum e p or sua exeqüibilidade, mas
não vinculados a uma determ inada pessoa, podendo ser as­
sumidos por diferentes atores, possivelmente altem ando-se.
Através da identidade do papel, as expectativas tornam-se
transferíveis de uma pessoa a outra. Com isso avança-se em
term os de abstração, mas tam bém aumentam os riscos em
termos de expectativas. Desaparece a garantia da com plexão
de expectativas através da identidade do ator pessoalmente
conhecido. Os moradores de um a aldeia nas montanhas, por
se conhecerem pessoalmente, esperam a ajuda recíproca no
caso de um a avalancha. A expectativa não se baseia em um
papel, mas em que aqueles que esperam sempre voltam a
encontrar-se, identificadas pessoalmente apesar de represen­
tarem um a m ultiplicidade de papéis. Do guia tam bém es­
pera-se um tal auxílio, apesar de não o conhecermos mais de
perto — e isso através do papel. Aqui a certeza baseia-se na
instituicionalização do papel, no fa to de que a expectativa é
norm ativam ente com partilhada por terceiros, os quais tam ­
bém se orientam a partir do papel e não do indivíduo enquan­
to pessoa. A lém disso, talvez até exista um a organização, um a
associação de guias que, para proteger interesses proficionais
da categoria, exerça determ inadas funções de recrutam ento
e de controle, e cuja eficiência seja presumida quando se con­
fia em “ alguém ” enquanto guia.
D a mesma form a que a identidade de um a pessoa, ta m ­
bém a identidade de um papel pode enfeixar expectativas de
diferentes naturezas. Ela baseia-se tipicam ente em um a idéia
básica, que serve de auxílio para a interpretação e a assi­
m ilação, e explora os lim ites da expectabilidade. Em alguns
papéis predomina um a determ inada intenção, em outros caços
um a determ inada atitude ou convicção mais íntim a. Alguns
papéis são em princípio definidos por uma relação h ierár­
quica, outrcs através de critérios de companheirismo. Qual­
quer desses tipos de papéis pode ser especificado mais de­
talhadam ente através das diferenças objetivas existentes
entre as diversas intenções, ou então através de expressões
concretas do conteúdo das convicções, através da posição real
na escala hierárquica ou através de sistemas que definem os
critérios de pertinência a determ inado grupo. Caso neces­

101
sário, tais princípios podem ser combinados entre si — por
exemplo no papel do guia podem ser inseridos elementos
intencionais e de convicção. P or seu grau de abstração mais
elevada os papéis oferecem possibilidades de especificação e
de diferenciação de complexões de expectativas, que nunca
seriam sequer aproxim adam ente atingidas através de iden­
tificações personalizadas — entre outras razões porque as
pessoas se individualizam mais acentuadamente apenas como
conseqüência da diferenciação social de papéis. Através da
diferenciação e da especificação a sociedade adquire novas
possibilidades de estabilização das expectativas e de supe­
ração daquele risco mais elevado: ou seja, a .estabilização
através da indiferença. Enquanto que no caso das id en tifi­
cações pessoais qualquer deslize com portam ental tem que
ser assumido m oralm ente, ameaçando desacreditar todo o
contexto de expectativas, no caso dos papéis apenas poucas
frustrações são relevantes enquanto divergências, e muitas
outras podem ser ignoradas por serem atribuídas a outros
papéis ou apenas à pessoa. Pode não ser sem im portância
se o guia bebe, mas certam ente é irrelevante se ele freqüenta
a igreja, se ele tem dívidas, se ele v o to u . . .
U m grau de abstração m uito mais alto e mais forte­
m ente variável pode ser alcançado ao apoiar-se um a com-
plexão de expectativas não mais na unidade de um ator dentro
de um papel (mesm o que intercam biável e não identificado
pessoalm ente), mas sim apenas em uma regra decisória ver­
balm ente fixada, cuja aplicação seja garantida através da
institucionalização. Para uma pessoa ou para um papel pode,
então, existir uma m ultiplicidade de tais regras decisórias,
e uma regra decisória pode valer para uma m ultiplicidade de
pessoas ou papéis. O grau de abstração do entrelaçam ento
das expectativas, o número das ações executivas e o número
de suas variantes tornam-se quase que indiscrim inadam ente
variáveis. Pede tratar-se, por exemplo, de fechar uma de­
term inada cancela ao aproximar-se de um trem, ou então
de desenvolver um horário para um a rede ferroviária e
adaptá-lo anualmente. A inda mais. a regra pode ser m odifi­
cada sem que as pessoas ou os papéis percam sua identidade
e, vice-versa, a vigên cia da regra não é afetada pela m orte
de uma pessoa concreta ou pelo fato de determinados papéis
estarem desocupados.

102
Tais regras denominaremos program as, quando as con­
dições de sua aplicabilidade são especificadas. Este é o caso
quando, ao conhecer-se m elhor a situação, as regras levam
a esperar-se determinadas ações ou determinadas conseqüên­
cias de ações. Dessa form a os program as exercem a dupla
função de servir de apoio a decisões e a expectativas. Isso é
efetuado por programas intencionais que fixam determ ina­
das conseqüências e condições para a ação esperada, mas
tam bém por programas condicionais que definem determ i­
nadas causas como desencadeadoras de determinadas ações,
através de um esquema “ se/então” . Mais tarde teremos que
trata r mais detalhadam ente dessa diferenciação entre os
tipos de programas. Por exem plo é insuficiente constatar o
que eles têm em comum: através de program as a aprovação
institucional da regra pode ser transferida para a aprovação
da ação. Um a ação que corresponde ao program a é correta.
Essa justificação da ação não é atingida quando a com­
plexão de expectativas é identificada apenas no nível mais
abstrato da generalização, ou seja apenas através de valores.
Valores são julgam entos sobre a preferibilidade de ações. Eles
não especificam, porém, quais ações têm preferência sobre
quais outras ações, fornecendo portanto referências m uito
indeterminadas para a form ação e a integração de expecta­
tivas. A o contrário do campo dos programas, a esfera dos
valores apresenta uma com plexidade m uito indeterminada
com referência à ação perm itida, oferendo grandes possibi­
lidades de consenso, sendo assim dificilm ente modificável,
além de conter uma série de contradições práticas — e tudo
isso são indicadores de que os valores preenchem uma outra
função que os programas. P or exemplo, podemos estar se­
guros d e'defen der um valor considerável e não nos ridicula­
rizarmos ao propugnarmos pela saúde pública. Em termos
grosseiros isso também delim ita o campo de eventos e ações
que podem ser observados da m esm a form a; permanece
porém em aberto quais são as ações que devem fom entar a
saúde pública, e que por isso deveriam ser esperadas nor-
m ativam ente, quanto dinheiro (de outras pessoas) a saúde
pública poderia custar, e tam bém se ela seria preferencial no
caso de con flito com outros valores, por exemplo econômicos,
culturais, da liberdade e da dignidade individuais. D iferen­
tem ente dos programas, os valores são formulados tão abs­
tratam ente que a relação recíproca entre os diferentes va­

103
lores não pode ser estabelecida em termos constantes. Podemos
institucionalizar e generalizar abstratam ente som ente as
próprias posições valorativas, mas não as relações entre elas.
Não existe em “ sistema de valores” ou “ hierarquias de va­
lores” . Daí os valores, em si mesmos, não poderem justificar
qualquer ação correspondente nem merecerem um a conside­
ração incondicional em qualquer programa. Sua urgência
sempre depende do grau em que outros valores tam bém
estejam sendo afetados, e do próprio grau do seu cum pri­
mento. É exatam ente por isso que são necessários os pro­
gramas concretam ente estruturados, que tornam a ação cor­
reta expectável e optável.
Dessa form a as pessoas, os papéis, os program as e os
valores representam diferentes momentos da generalização,
através dos quais expectativas com portamentais podem ser
enfeixadas por m eio de um princípio objetivo de id en tifica­
ção, e assim ancoradas no mundo exterior. Podemos partir
da constatação de que as sociedades mais complexas neces­
sitam crescentemente de premissas mais abstratas das ex­
pectativas, para poderem perm itir e legitim ar estruturalm ente
mais amplas possibilidades em termos de expectativas e com ­
portamentos. Seria, porém, demasiadamente simples, e evi­
dentemente incorreto, supor um desenvolvim ento a partir da
orientação individual, passando pela norm alização através de
papéis e programas, e finalm ente desembocando em normas
sedimentadas valorativam ente (por exemplo como normas
ideológicas). Aparentem ente o què ocorre é que com a cres­
cente complexidade da sociedade todos os planos da gene­
ralização são mais fortem en te exigidos, tendo então que ser
mais nitidam ente diferenciados. É por isso que a sociologia
do direito tem que esclarecer qual seria a função que caberia
ao direito nessa diferenciação, e quais seriam as conseqüên­
cias disso sobre o próprio direito.
Os diferentes planos do sentido têm que ser vistos como
um todo e a partir do princípio de sua inter-relação. Eles se
pressupõem e condicionam mutuamente. Nesse sentido, por
exemplo, a institucionalização de valores é condição prévia
para o desenvolvimento e para a interpretação de programas.
Mas também no sentido oposto existe uma relação de de­
pendência: valores só podem ser institucionalizados se exis­
tirem program as que interm edeiem a realização dos valores
e assegurem que, em outros momentos, os demais valores

104
eventualm ente postergados tenham a sua vez. É óbvio que
os papéis pressupõem pessoas que os executem. Eles dão ao
expectável a form a exigida pela continuidade dos sistemas
sociais e que não pode ser deixada a cargo apenas da indi­
vidualidade de determinadas pessoas. Eles aliviam o indivíduo
da responsabilidade pessoal com relação às expectativas dos
outros. N o sentido inverso, porém, eles também pressupõem
que se possa aprender a esperar como um chefe, médico,
professor, etc., concreto interpreta e executa seu papel. Sabe-
se, àssim, que no caso de troca da pessoa que exerce um
papel algumas, mas não todas expectativas têm que ser
modificadas, e dessa form a obtém-se pontos de referência
para um a decisão sobre um a ta l troca.
A separação dos diversos planos no sentido não leva
então ao isolamento mútuo. Ela tam bém não sign ifica que
as expectativas vivenciadas teriam que ser colocadas exclu­
sivam ente em um ou outro plano. A função da separação
reside na criação de um a variabilidade relativam ente inde­
pendente.
N a m edida em que os diversos planos do sentido se di­
ferenciem mais claramente entre si, torna-se possível utilizar
paralelam ente e interdependentem ente diferentes princípios
da identificação de expectativas, e modificá-los separada­
mente. Podemos atacar ou trocar valores, por exemplo desa­
creditando o valor da nacionalidade ou o valor da instrução,
sem sequer tocar o conjunto dos papéis ou a identidade do
indivíduo. São exatam ente essas identidades remanescentes
que oferecem um a seeruranca suficiente em termos de ex­
pectativas, servindo assim de respaldo para uma revolução
dos valores no sentido da adaptação ao desenvolvimento
social. P o r outro lado é possível, em nome de valores cons­
tantes, reestruturar-se program as e papéis, para adaptar-se
a um a realidade modificada, por exem plo no sentido do ar­
gum ento m edieval de que a ãiversitas tem poru m exigiria
outros meios para a realização de ideais eternos. As pessoas
podem trocar seus papéis, e os papéis seus detentores, sem
sobrecarregar seu meio am biente com o peso insustentável
do reaprender ou da incerteza.
Todos os planos do sentido sempre participam da for­
mação de expectativas. Tam bém as sociedades simplificadas
não podem prescindir de critérios de preferência valorativa
ou de program as para a ação correta. O que acontece é que

105
lá os diversos planos estão tão entrelaçados que qualquer
alteração am eaça o todo, provocando assim resistências. No
caso de uma m odificação dos seus valores, por exemplo com
relação à religião, aos sistemas de parentesco ou a antigas
leis sagradas, não existem alternativas no plano dos papéis
e no auto-entendimento pessoal. Os program as para a ação
correta, as normas e os objetivos estão tão fortem ente entre­
laçados com a pessoa que se to m a d ifícil separar o crime do
criminoso e medir a pena, enquanto conseqüência de um
program a decisório, apenas tendo em vista o crime. O crime
desacredita a própria pessoa, e to talm en te.105 Na própria
legislação, até o fim da Idade M édia ainda era d ifícil referir
a força obrigatória da lei ao papel (continuado) do legis­
lador, e não ao com prom etim ento pessoal de cada s en h o r.108
P or outro lado, um tal entrelaçam ento — e isso o torna
estável — não perm ite o surgimento, e m uito menos a ins­
titucionalização, da personalidade puramente individual, da
“ consciência” no sentido contem porâneo.107 O conjunto de
normas toma uma feição concretam ente personalizada, mas
menos individualizada que a nossa.
A estrutura mais simples das sociedades antigas reflete-
se em uma mais simples concepção da moral. No essencial,
nas sociedades arcáicas, e mesmo nas grandes culturas da
antigüidade até os tempos modernos, basta um dualismo
simples. Elas confrontam a ação real com a ação indicada,
correta; aquela corresponde ao homem concreto, com seus
erros e suas insuficiências, e a outra sign ifica a norm a do
verdadeiro e do bom, pela qual é necessário guiar-se. Essa
contrastação simples garante um alto grau de segurança nas
expectativas sob a form a de convicções morais. As expecta­
tivas normativas podem apoiar-se em certezas socialmente
amparadas; o desapontamento, a frustração só pode ser
atribuída ao que age errada ou maliciosamente. A necessidade
de uma diferenciação funcional da esfera norm ativa não
chega a surgir, e tam bém seria incom preensível.108 Um a in ­
terpretação social ou funcional do com portam ento divergente
é impossível no contexto desse padrão. Evidentemente, o di­
reito está do lado da moral.
Aumentando a com plexidade da sociedade em conse­
qüência da crescente diferenciação e da crescente abstração
das premissas da assimilação do experim entar, esse esquema
simples torna-se inadequado por vários motivos. Não basta

106
mais pensar que apenas o com portam ento possa variar com
respeito à norma; as próprias normas passam a ser pressio­
nadas por modificações desejadas. A lém disso, a certeza das
expectativas, em vista do grande número de possibilidades
com portam entais que agora têm que ser permitidas, não pode
mais ser convincentemente garantida pela concepção con­
creta do bem em contraposição ao mal. O desenvolvimento
da sociedade obriga a uma m aior diferenciação dos diversos
planos do sentido, o que aum enta a com plexidade e a fle x i­
bilidade da totalidade das estruturas de expectativas. O es­
quema duplo tem que ser substituído por esquema quádruplo,
pela separação entre pessoas, papéis, program as e valores
enquanto diferentes planos da construção de complexões de
expectativas — uma conquista evolutiva da sociedade m o­
derna, cuja institucionalização ainda hoje é altam ente pro­
blemática.
A diferenciação entre o papel e a pessoa tom ou-se um
fato altam ente corriqueiro. In icialm en te ela tornou-se cons­
ciente sob o aspecto da alienação ou da impersonalidade e
do anonim ato da vida social nas sociedades modernas, o que
foi form ulado na sociologia com a concepção do p a p e l.100
A diferenciação entre valores e programas, ao contrário, não
encontrou um a consideração correspondente.110 As aborda­
gens conceituais da teoria dos valores são tão disparatadas,
tão controversas e tão carregadas de pretensões exageradas,
o que leva a sociologia a tender à resignação e não a tentar
um a especificação funcional das diferentes conseqüências da
institucionalização através de valores ou através de progra­
mas. P or isso carecemos de trabalhos exploratórios que nos
possibilitem avaliar seguram ente quais são os mecanismos
que afastam aqueles quatro planos da identificação de com ­
plexões de expectativas uns dos outros, tornando-os inva-
riantes entre si, e quais são os significados que daí surgem
para o direito.
Partin d o do estágio de desenvolvim ento atual da socie­
dade industrial moderna, o centro de gravidade da form a­
ção de estruturas sociais parece deslocar-se para os planos
interm ediários dos papéis e programas. É somente nesses
planos ctue a com plexidade da sociedade pode ser reproduzida
adequadamente. Para tanto as pessoas seriam identificações
demasiadamente concretas, e os valores seriam demasiada­
m ente abstratos. Naqueles planos interm ediários define-se

107
a com plexidade ta n gível da sociedade. Tendo em vista um
grande número de diferentes papéis, as pessoas são indivi­
dualizadas e mobilizadas, tornando-se intercam biáveis face
preferências específicas e aptidões. Tendo em vista os pro­
gramas, os valores são ideologizados, isto é inútilizáveis.
Esse prim ado dos planos intermediários não significa que
programas e papéis seriam estabelecidos de form a invariante,
e teriam que ser, enquanto bases de estruturas sociais, mais
duradouros que valores ou pessoas; ele sign ifica apenas que
as funções seletivas necessárias são governadas a partir da­
queles planos. Os program as e os papéis tam bém são dina­
mizados — o “ prim ado” não envolve a noção de úm a duração
mais lon ga — mas eles mesmos, através de sua própria com­
plexidade, geram suas necessidades de modificação. As m o­
dificações do arcabouço das normas e dos papéis sociais obtêm
seus impulsos e suas orientações não mais “ do alto” , da es­
fera norm ativa — por exem plo quando, na Idade Média, a
legislação era com preendida e fundam entada como aproxi­
mação do direito humano ao direito divino ou ao direito
natural, aproxim ação essa sempre necessária devido à pe-
caminosidade da natureza humana e à diversitas tem porum .
A dinâm ica das estruturas de normas e de papéis também
não pode ser diretam ente derivada das necessidades ou dos
interesses de pessoas individuais, que neutralizam-se recipro­
camente por suas m últiplas facetas e suas contradições, tendo
oue ser agregadas em papéis políticos para poderem in tro­
duzir processos de mudança. Os papéis e os programas, ao
contrário, através do alto grau de complexidade, franqueza,
interdependência e contradição das expectativas comporta-
mentais com eles identificados, produzem eles mesmos, cons­
tantemente, aspirações de mudanças. Quanto m aior fo r sua
interdependência, mais dinâmica será a sociedade, mais im ­
prescindível será encontrar novas soluções para a estabili­
zação social e institucional de expectativas comportamentais.
Podemos supor que essa acentuação dos planos inter­
mediários significa que também o mecanismo do direito des­
locou-se, mais fortem ente que nas sociedades antigas, para
os planos dos papéis e dos programas. O direito adquire seu
centro de gravidade em papéis específicos e program as es­
pecíficos para o processo decisório jurídico. A diferenciação
de papéis jurídicos, que trabalham segundo program as de-
cisórios próprios, deve ser uma das condições históricas para

108
uma mais forte separação dos diferentes planos das expec­
tativas. Isso não sign ifica que as pessoas e os valores perdem
seu significado para o direito, mas sim que a identificação
e a mutabilidade das complexões de expectativas no direito
não mais estão vinculadas à unidade de uma pessoa ou à
ju stificativa através de um valor. Separação não quer dizer
isolamento, mas apenas invariância relativa e variabilidade
independente.

6 — Direito como generalização congruente

Neste ponto encerramos nossas considerações prelim ina­


res à discussão específica da teoria sociológica do direito.
Elas sondaram um campo de problemas e mecanismos muito
complexos. A gora trata-se de localizar a í o direito através de
sua função e sua ação específicas. Evidentem ente nem todas
as normas, instituições e princípios de identificação são ju­
ridicam ente relevantes. No caso do direito tom a-se necessário
form u lar um critério mais estrito, em relação ao qual defi-
nir-se-á funcional e seletivamente o cam po de interação a ser
discutido.
P ara facilitar a compreensão, os resultados até agora
obtidos podem ser resumidos sob a form a de algumas teses:
o com portam ento social em um mundo altam ente com plexo
e contingente exige a realização de reduções que possibilitem
expectativas com portamentais recíprocas e que são orienta­
das a p artir das expectativas sobre tais expectativas. N a
dimensão tem poral essas estruturas de expectativas podem
ser estabilizadas contra frustrações através da normatização.
Fren te à crescente com plexidade social isso pressupõe uma
diferenciação entre expectativas cognitivas (disposição à as­
sim ilação) e normativas, além da disponibilidade de mecanis­
mos eficientes para o processamento de desapontamentos,
frustrações. N a dimensão social essas estruturas de expecta­
tivas podem ser institucionalizadas, ou seja apoiadas sobre
o consenso esperado a partir de terceiros. Dada a crescente
com plexidade social isso exige cada vez mais suposições fic­
tícias do consenso e também a institucionalização do ato de
institucionalizar através de papéis especiais. N a dimensão
prá tica essas estruturas de expectativas podem ser fixadas
externam ente através de um sentido idêntico, compondo um a
inter-relação de confirmações e lim itações recíprocas. Dada

109
a crescente com plexidade social isso exige uma diferenciação
dos diversos planos da abstração. Para podermos dispor de
um conceito mais am plo sobre as necessidades dessas três
dimensões, falarem os a seguir da generalização de expecta­
tivas com portam entais e, nos ca,:os específicos, dia generali­
zação temporal, social e prática.
Essa condensação em um conceito justifica-se por um
evidente paralelism o enfcre as situações nas d ;ferentes di­
mensões. O problema comum entre elas consiste em que,
através da generalização, são superadas as descontinuidades
típicas a cada dimensão, eliminando-se assim os perigos es­
pecíficos a cada dimensão. Dessa form a a norm atização dá
continuidade a um a expectativa, independentem ente do fato
de que ela de tempos em tempos venha a ser frustrada. A tra­
vés da institucionaliação o consenso geral é suposto, inde­
pendentemente do fa to de não existir uma aprovação in divi­
dual. A identificação garante a unidade e a in terd ep en d ên ­
cia do sentido, independentem ente das diferenças objetivas
entre as expectativas. Dessa form a a generalização gera um a
imunização simbólica das expectativas contra outras possi­
bilidades; sua função apóia o necessário processo de redução
ao possibilitar um a indiferença inofensiva. 111
A unidade do conceito e o paralelismo dos efeitos não
escondem o fato de que a generalização sign ifica exigências
altam ente discrepantes em cada uma das dimensões. Os me­
canismos das generalizações temporais, sociais e objetivas são
m uito heterogêneas, N ão se pode, portanto, supor que eles se
processem continuam ente de modo idêntico, que eles estejam
aferidos por um a espécie de verdade natural do ser e sempre
generalizem as mesmas expectativas. Nesse caso, que corres­
ponde à concepção do direito natural, não seria possível qual­
quer desenvolvimento do direito. O próprio fa to da evolução
contradiz, então, essa hipótese. Na realidade existe um alto
grau de discrepância na form a de funcionam ento desses
mecanismos. Eles podem generalizar expectativas diferentes.,
incompatíveis. Eles podem blcquear-.se, dificultar-se recipro­
camente. Essas incongruências form am um problem a estru­
tu ral de qualquer sociedade, e é face a esse problem a que o
direito con stitu i sua função social.
Nas sociedades arcaicas sobressaem fortes diferenças en­
tre essas sociedades em termos da relação entre generaliza­
ção e institucionalização tem poral e normativa. De sociedade

110
para sociedade encontramos encam inhamentos m uito dife­
rentes para a questão se e até que ponto a afirm ação e a
imposição do direito próprio são institucionalizadas enquan­
to obrigação ou, ao contrária, institucianalm ente desencora­
jadas. Existem povos decididam ente conscientes do seu d i­
reito, belicosos, que cultuam a honra; outros povos que
cultivam , como elevada virtude, a convivência prática e a
renúnsia. “ Som e like litig a tio n and some d o r ít” , com entava
um etnólogo sem tentar explicar essa discrepância tão acen­
tuada. 112 Nas sociedades mais complexas essa diferença pa­
rece diluir-se ou ser atribuída aos temperamentos individuais.
N o seu lu gar a discrepância entre a generalização tem poral
e a social assume uma outra form a, agora intrínseca à socie­
dade: em qualquer sociedade passam a existir mais expecta­
tivas norm ativas que possibilidades de institucionalização.
Já falam os de uma superprodução de normas. Isso vale não
só para a invenção indiscrim inada de normas privadas indi­
viduais. Existem tam bém expectativas norm ativas universal­
m ente difundidas e intensam ente vivenciadas e que apesar
disso não podem ser institucionalizadas. Nesse sentido qual­
quer um espera dos seus parceiros de interação que eles
m antenham a opinião externada sobre ele, mesmo quando
ele esteja ausente, ou seja, que não falem m al dele nas suas
costas. Essa norm a possui um a im portância central, já que
todos se constituem através dos olhos dos outros, e a con­
tinuidade da expectabilidade de suas expectativas depende
da m anutenão dessa auto-imagem. Mesmo assim a norm a
apenas pode ser esperada, mas não institucionalizada. Todos
participam de afirmações sobre terceiras, afirmações que não
seriam feitas em sua presença, e todos sabem que o mesmo
acontece ccm ele. Essa discrepância entre a norm atização e
a institucionalização não pode ser desfeita, mas é apenas um
pouco diluída quando permite-se o uso de uma falsa iden­
tidade. Então seria apenas necessário evitar-se situações nas
quais inesperadamente constatar-se-ia a presença de supostos
ausentes,113 e é exatam ente isso que teria que ser institu cio­
nalizado no lugar da norma. Vê-se nesse exem plo que a fa lta
de congruência não é um problem a insolúvel nos seus aspec­
tos específicos, mas continua sendo um problema enquanto
um todo.
Existem também exemplos para o nosso problema no
campo das normas que oficialm en te são proclamadas como

111
normas jurídicas. Mesmo estas freqüentem ente não são ins­
titucionalizadas, seja porque juizes não as reconhecem ou
sejam porque elas são negadas nas expectativas normais da
vida cotid ia n a .114 Seria ridículo, ou pelo menos ferir-se-ia
expectativas im plícitas de terceiros, se certas determ inações
fossem estritam ente obedecidas — por exem plo passar por
uma obra na estrada nos 20 km/h perm itidos pelas placas.
Tam bém pode acontecer estarmos claram ente com o direito,
e mesmo assim nos ridicularizamos. O m arido traído é um
exemplo. A tudo isso acrescenta-se que algum as reações de
frustração, evidentes e especialm ente eficientes para a nor-
m atização e expressão das normas — por exem plo a luta
corporal — não podem ser institucionalm ente amparadas.
Outras divergências surgem, numa ótica inversa, quando
se parte da especificidade dos processos institucionalizantes.
Eles atingem não só expectativas normativas, mas tam bém
as cognitivas, e não estão em princípio adaptados a um a
diferenciação entre esses dois estilos de expectativas. Eles
cobrem tam bém expectativas que não podem ser expressas
através de regras norm ativas — por exem plo a expectativa
de que nas conversas seja m antida uma distância física ra­
zoável — e freqüentem ente não deixam claro se e até que
ponto tam bém cobrem um processamento de frustrações.
É característico nesse sentido o fato de encontrarmos em
sociedades arcaicas ordenamentos de expectativas fortem ente
institucionalizados que deixam em aberto a questão da rea­
ção a frustrações — presumivelmente porque predom inam
cs mecanismos da institucionalização, e os da norm atização
im unizante fren te a frustrações ainda não estão suficiente­
mente desenvolvidos.
* Não é diferente a relação entre as generalizações práti­
cas e as temporais e sociais. As necessidades de formações do
sentido iden tificador e de indiferença prática não se combi­
nam sem mais nem menos com aquelas da estabilização nor­
m ativa e da institucionalização. Deve ser observado, antes de
tudo, que pode existir um interesse em manter-se os valores
ou os program as na form a do apenas desejável, ou seja
identificá-las praticam ente mas não ncrm atizá-los enquanto
e x M ír expectativas a serem mantidas quando atingidas por
frustrações.113 Isso torn a possível, por exemplo, form ular
abertam ente desejos acentuar e até institucionalizar a liber­
dade de sua realização, m anifestar o reconhecim ento por bons

112
serviços, utilizar a avaliação de rendim entos (por exemplo
notas) como base de processas distributivas — e tudo isso
sem desencadear o mecanismo da exigência e da sanção.
Além disso os diversos princípios de identificação são
diferentem ente mais ou menos apropriados para a norm ati-
zação e a institucionalização. Valores abstratam ente conce­
bidos, por exemplo, são bem institucionalizáveis, mas em
term os práticos eles são insuficientem ente exclusivos para
perm itirem um a form ação de norm as instrutivas e um a
orientação com portam ental prática. No interesse da form ação
de consenso e da norm atização duradoura, que atin ja situa­
ções de tipos vários, um p rn c íp io de sentido freqüentem ente
tem que ser form ulado tão indeterminadamente, ao ponto
dele perder grande parte de seu valor prático de ordenam en­
to ou, ao contrário, toda ten tativa de tom á -lo mais preciso
passar a am eaçar as ba-es consensuais e o alcance das nor-
matizaçõsis. A capacidade prática de combinação entre ex­
pectativas não se traduz sem mais nem menos em consenso,
porque ela sempre está ligada ao exercício de sanções que
podem encontrar resistências.110
A o contrário da institucionalização de valores, a institu­
cionalização de pessoas poucos efeitos produz. A integração
pessoal de expectativas com portam entais dificilm ente pode
ser elevada a um a institucionalização. Mas tam bém existem
indícios nessa direção — assim quando em algumas tribos
indígenas o papel do cacique permanece não regulam entado
e cabe sempre a alguém que tenha se sobressaído enquanto
pessoa ou líder e encontre seguidores pelo menos durante
algum tempo. A o mesmo tem po esce exem plo demonstra,
porém, o quão d ifícil é atingir-se a segurança social por
esse caminho. A elevação da pessoa ao n ível do indivíduo
exem plarm ente institutcionalizado, com o herói ou vilão tra­
dicional, é um a ten tativa interessante de am pliação dos li­
mites dessa combinação. A necessidade de fublim ação do
excepcional significa, porém, que ta l orientação a partir de
indivíduos exemplares não adquire grande relevância em ter­
mos de regulam entação da vida cotidiana. Tam bém a con­
gruência entre generalização social e prática de expectativas
com portam entais não pode, portanto, ser sem mais nem m e­
nos suposta ou obtida, encontrando soluções mais ou menos
problemáticas, sempre tem poralm ente limitadas.

113
No contexto da relação entre a dimensão tem poral e a
prática é im portante observar que os interesses da norm ati-
zação buscam estabelecer um a interdependência entre trans­
gressão da norm a e sanção, a qual inicialm ente pode ser
com pletam ente incom preensível: o que tem um a ofensa a
ver objetivam ente com um a m u lta em dinheiro? As dificul­
dades da institucionalização dessa relação têm , entre outras,
a explicação de que ela não é capaz de convencer por si mes­
ma. O princípio do talião “ olho por olho, dente por dente”
é uma das mais inventivas soluções para esse mesmo pro­
blema. Da mesma form a a evolução ao lon go do desenvolvi­
mento social que D u r k h e i m afirm a exi.stir.117. das sanções
repressivas às restitutivas, tem que ,cer vista como busca por
processamentos de frustrações m elhor encadeáveis em termos
práticos.
Esses exemplos demonstraram a in con gru ên cia natu ra l
dos mecanismos de generalização mas tam bém evidenciam
que é possível descobrir-se possibilidades de soluções coeren­
tes, constituindo-se configurações eficientes em termos evo­
lutivos. Em princípio, tais soluções se baseiam em que, nas
diferentes dimensões, não se dispõe apenas de um, mas sim
de vários possíveis encaminhamentos, funcionalm ente equi­
valentes, para os problemas que se apresentam. Na dimensão
tem poral existe um considerável repertório de possibilidades
para a explicação e para o processamento de frustrações; o
processo de institucionalização apresenta muitas variantes,
dependendo de quais são os expectadores e quais são suas
expectativas; e a form ação prática de sentido pode adaptar-
se às necessidades, ta n to em term os de conteúdo quanto
através de abstrações, sem permanecer atada à lógica estrita
do assim ser mundano. Essa oferta excessiva de possibilida­
des precisa, em prim eiro lugar, ser percebida com o correlato
que é do risco das estruturas de expectativas. O risco é ame­
nizado na m edida em que se apresentem, para enfrentá-lo,
diferentes form as correspondentes de encam inham ento das
expectativas e da ação. As possibilidades seletivas que aí
residem não podem, porém, ser ativadas indiscrim inadam en­
te. Elas são, de antemão, estreitadas através de certas neces­
sidades de compatibilidade. Os próprios mecanismos das di­
ferentes dimensões já atuam de form a reciprocam ente sele­
tiva. Elas delim itam o campo do que é realm ente possível para
as outras. A necessidade da sua atuação conjunta conform a

114
um todo de limitações estruturais das variações, as quais
garantem a com patibilidade recíproca dos diversos mecanis­
mos. 118 Isso não elim ina efetivam ente expectativas e ações
divergentes, nem projeções normativas, institucionalizações
ou identificações divergentes, mas constitui um a restrição na
escolhia de expectativas comportamentais, as quais são gene­
ralizadas tan to em termos tem porais quanto sociais e práti­
cos, desfrutando assim de um a especial proeminência e segu­
rança. As expectativas com portam entais generalizadas co n ­
gruentem ente, nesse sentido acim a descrito, identificarem os
como o d ireito de um sistema social. O direito produz con­
gruência seletiva e constitui, assim, um a estrutura dos sis­
temas sociais.
D efinido ne?ses termos, o d ireito é concebido funcional
e seletivam en te119 — ou seja não através da constância de
um a dada qualidade origin al do “ dever ser” , nem através
de um determ inado mecanismo fático, per exemplo a “ san­
ção estatal” . Esses elementos convencionais da definição do
direito não são, com isso, excluídos ou tom adas irrelevantes,
mas são referidos como características que determ inem a
natureza do direito. O direito não é prim ariam ente um orde­
nam ento coativo, mas sim um alívio para as expectativas.
O alívio con«iste na disponibilidade de caminhos congruen­
tem ente generalizados para a,s expectativas, significando um a
eficiente indiferença inofensiva contra outras possibilidades,
que reduz consideravelmente o risco da expectativa contra-
fáti^a. A coação relevante para o direito em termos constitu­
tivos reside na obrigatoriedade de selecionar expectativas, a
qual, por seu lado, em poucos mas im portantes casos pode
m otivar a imposição de determinados comportamentos. A ne­
cessidade de segurança que m olda o direito se refere inicial­
m ente à segurança das expectativas próprias, principalm ente
enquanto expectativas sobre expectativas, referindo-se ape­
nas secundariamente à .segurança do preenchimento dessas
expectativas através do com portam ento esperado. Apenas
após assegurar-se a congruência das expectativas através do
direito do sistema social é que podem se desenvolver formas
mais elevadas da generalização específica a cada dimensão,
assim como congruências ao plano reflexivo das expectativas
sobre expectativas. Nesse sentido o direito: é um a das bases
imprescindíveis da evolução social.

115
Dersa form a a função do direito reside em sua eficiência
seletiva, na seleção de expectativas com portam entais que
possam ser generalizadas em todas as três dimensões, e essa
seleção, por seu lado, baseia-se na com patibilidade entre de­
terminados mecanismcs das generalizações temporal, social
e prática. A seleção da form a de generalização apropriada e
com patível a cada caso é a variável evolutiva do direito. Na
sua mudança evidencia-se como o direito reage às m odifica­
ções do sistema social ao lbngo do desenvolvim ento histórico.
Dentre as diversas estratégias possíveis no caso de frus­
trações, e que deveriam garan tir a m anutenção da expecta­
tiva norm ativa, algumas são excluídas ao longo da evolução,
como por exem plo o desconhecimento, a desconsideração do
“ b em -feito!” , manifestações de autopiedade, lamuriar-se ju n ­
to a terceiros e o escancaramento de um escândalo, na m e­
dida em que deixam de ser institucionalizáveis.120 Em socie­
dades mais desenvolvidas a correção de um a norm a só pode
ser documentada através da norm atização tam bém das for­
mas de processamento das frustrações, através de sanções ou
de garantias para a imposição de exp ectativas,121 pois é ape­
nas por meio da intensão e da ten tativa de impcr-se a expec­
ta tiva que o consenso subentendido pode ser convincente­
m ente demonstrado a terceiros. Dessa form a a simples vigên-
, cia da norm a é suficiente para provocar sanções. Fren te às
| outras form as de processamento das frustrações, as sanções
i têm a im portante van tagem de poderem ser continuadas,
i sendo repetidas e intensificadas nos casos de fracasso. Mas
* a isso corresponde a desvantagem de que ao lançar-se mão
de sanções praticam ente exclui-se outras estratégias de pro­
cessamento das frustrações. Ssndo assim as sanções represen­
tam o interesse puram ente tem poral da estabilização con-
trafática. A lém disso, são elas que m elhor encam inham a
regulam entação m aterial e a institu cion alização.122 Nas so­
ciedades mais diferenciadas não se pode mais subentender
que todos estejam de acordo com uma simples satisfação com
a desgraça (p or exem plo ao esperar-se por sanções sobrena­
turais), ou com a participação no auto-sofrim ento ou no
escândalo. A sanção ao in frator do direito tom a-se então o
m eio mais expressivo e institucionalm ente privilegiado, da
m anutenção de normas. O interesse na generalização con­
gruente traduz-se, na dimensão temporal, na preferência pelo
processamento de frustrações através de sanções (e é só nesse

116
sentido que se justifica d efin ir o direito através da predispo­
sição ao uso de sanções, mesmo que isso não seja m uito
esclarecedor).
A dimensão tem poral também não pode dar form a ju rí­
dica a todas as possibilidades da institucionalização, pois
tam bém ela está sujeita à seleção a partir de critérios de con­
gruência. O interesse tem poral e prático por fixações estáveis
de sentido só em circunstâncias extremamente simplificadas
pode satisfazer-se com as opiniões a cada m om ento represen­
tadas. Em sociedades mais diferenciadas os presentes não são
mais representativos com relação aos ausentes, e tam bém não
mais estão em condições de certificar-se do que seria mate­
rialm ente correto no contexto de complexas estruturas de
sentido. A representação do caráter obrigatório instituciona­
lizado só é compatibildzável com as necessidades de um a fo r­
mação de expectativas resistente a frustrações e diferenciada
com relação aos sentidos possíveis se ocorrer através da
diferenciação de processos específicos, nos quais são tomadas
decisões institucionalizadas como possuindo efeito vinculativo
coletivo. In icialm en te a institucionalização deve referir-se aos
processos institucionalizantes, e só então às próprias normas.
Dessa form a é necessário escolher-se um modo especial de
institucionalização, o qual está agravado com conseqüências
problemáticas em termos políticos e organizacionais.
Na dimensão prática, ao longo do desenvolvimento social
ocorre uma m aior separação entre pessoas, papéis, program as
e valores enquanto princípios da identificação de complexões
de expectativas. Nem todos esses princípios, porém, podem ser
juridicam ente formulados. Tam bém aqui a necessidade de
uma generalização congruente leva à seleção. Sob o aspecto
da institucionabilidade, a pessoa é excluída na m edida em
que é compreendida como um a combinação de expectativas
puram ente individual, e porque não se pode supor que um
enfeixam ento tão pessoal de expectativas seja aceitável para
qualquer um. O valor abstraído e destacado em term os de
preferência é bem institucionalizável, mas — contra a ex­
pectativa comum — dificilm ente norm atizável, porque ao
estabelecer-se programas ele tom a-se sujeito a constantes re­
núncias e preterimentos, não oferecendo assim, para as ex­
pectativas, uma base imune a frustrações. P or isso o direito
situa-se preferentem ente no plano dos papéis e programas,
porque é aqui que se alcança a mais alta complexidade e ao

117
mesmo tem po a congruência mais convincente das expecta­
tivas. A o longo do desenvolvimento do direito essa tendência
é reforçada e afinada pelo fato de que nas outras dimensões
se estabelece um a seleção entre sanção (com o m odo de pro­
cessamento de frustrações) e processo (enquanto modo de
institucionalização). Nem puros valores, nem pessoas in divi­
duais podem ser tratados processualmente com o regra para
expectativas consistentes, e tam bém não são sancionáveis
em sua continuidade. Nessas condições também os papéis são
demasiadamente concretos. Nem todas as expectativas que
se deposita em um pai, um barbeiro, um hóspede, etc., e nem
mesmo com referência a um juiz, podem tom ar-se objeto de
u m processo no qual decide-se quanto ao caráter sancionável
das expectativas. Nessas condições o direito é reduzido a um
com plexo de program as decisórios.
A tabela aqui apresentada dá uma visão geral sobre as
conclusões dessa análise. Ela caracteriza no eixo vertical
as possibilidades de generalização de tuna dimensão, e no
eixo horizontal o ponto de vista da com patibilidade seletiva
com respeito às possibilidades de generalização de outras di­
mensões. O mecanismo apropriado a cada caso, do ponto de
vista da congruência, é sublinhado.

Compatibili- Possibilidades de generalização


dade seletiva

T em poral Social P rática

Valores
T em poral Observador Program as
Processo Papéis
Pessoas

Desconhecim ento Vaiores


Social Sofrim ento Program as
V ingança Pavéis
Sanção Pessoas

Desconhecim ento
P rática Sofrim ento Observador
Vingança Processo
Sanção

118
Ao juntarm os os mecanismos sanção-processo-programas
evidencia-se que nos deparamos com as características usuais
de definições do direito. Através do recurso aos processos ele­
mentares da form ação do direito pode-se demonstrar que
essas características não precisam ser introduzidas por meio
de um a m era definição nom inal do conceito de direito, mas
podem ser deduzidas sociologicam ente; que não se trata de
uma pura convenção, mas sim de algo objetivam ente funda­
mentado, i;a medida em que se acentue esses elementos con­
ceituais. P or outro lado tom a-se igualm ente nítido que o
direito, com essas características específicas, é uma conquis­
ta da evolução, a qual se constitui em dependência da estru­
tura social em seu caminho em direção à diferenciação de
expectativas especificamente jurídicas. Visto do ângulo da
função da generalização congruente, o direito existe em qual­
quer sociedade; mas o grau de diferenciação estrutural do
direito modifica-se ao longo do desenvolvim ento social, e isso
n a m edida em que a complexidade da sociedade aum enta e
m elhor se caracteriza a necessidade de expectativas com por­
tam entais normativas, congruentem ente generalizadas. O di­
reito não pode ser apropriadam ente entendido apenas sob o
aspecto de ordem e proibição, repressão de tendências natu­
rais ou coação exterior; nessa ótica não seria possível com­
preender o amplo campo das form as jurídicas disponíveis.
O direito .serve principalm ente à possibilitação de uma ação
mais complicada, mais rica em condicionantes, e ele realiza
isso através da generalização congruente entre as premissas
contingenciais de tal ação.
No terceiro capítulo desceremos a maiores detalhes sobre
as possíveis .soluções desse problema de congruência nas di­
versas etapas do desenvolvim ento social. Nesse m om ento é
im portante chegar a uma conclusão sobre quando e como
a função do direito pode ser preenchida através da seleção
de estruturas compatíveis. Sob este mesmo aspecto da fu n ­
ção e suas expressões estruturais, evolutivam ente variáveis,
é possível também verificar se e até que ponto, em cada
estágio do desenvolvimento social, o direito pode ser substi­
tuído por outras estruturas funcionalm ente equivalentes, por
exem plo através da linguagem , da verdade ou da lógica. Um a
definição funcional sempre tem que ser estabelecida em ter-
m js relativam ente amplos, perm anecendo assim relativam en­
te inespccífica com respeito às estruturas e aos processos con-

119
eretos que preenchem a função em determinadas sociedades.
P or isso tom a-se mais im portante ainda esclarecer os lim ites
desse conceito de direito. Ele se refere a expectativas com ­
portam entais — ou seja não só a interpretações puramente
estéticas da beleza das formas, as quais também se funda­
m entam (de outra form a) na seleção segundo o aspecto da
compatibilidade. Ele se refere a expectativas sobre o com por­
tam ento de outras pessoas — ou seja não a interpretações
da pura racionalidade do com portam ento próprio, de sua
adequabilidade ou conveniência, que também podem ser con­
gruentem ente generalizadas, se bem aue d iferen tem en te.12:5
Ele se refere, finalm ente, apenas a expectativas norm ativas
mais ou menos diferenciadas, ou seja não ao campo do co­
nhecimento cognitivo regulado pela verdade e pelos métodos
da ciência. Essas delim itações já perm item a constatação de
que, também nas sociedades mais simples, as esferas do cos­
tume e do direito não coincidem, se bem que a delim itação
mais exata entre elas só pode ser estabelecida concreta e
em piricam ente: a form a e o modo de produzir-se e de ador­
nar-se vasos não evidenciará, certamente, características do
direito; mas esse será o caso em expectativas de que os dentes
sejam limados de certa form a, de que a caca seja distribuída
de modo determinado, ou de que os m ortes sejam guardados
de uma dada maneira.
Mais d ifícil é fundam entar uma delim itação mais nítida
entre o direito e a linguagem e seus acessórios (por exemplo
as regras da o rto g r a fia ). 124 Se bem que intu itivam ente esteja
claro que o direito não é idêntico à linguagem , é necessário
um pouco de reflexão para encontrar o ponto decisivo dessa
diferença. Existem expectativas com portam entais normativas,
congruentem ente generalizadas, sobre a form a correta de es­
crever e falar. Essas expectativas, porém, possuem apena.s a
função de constituir um horizonte de possibilidades de com­
preensão e de troca de perspectivas. Elas não tornam expec-
táveis nem o com portamento, nem as expectativas dos outros
— a não ser quanto a seus aspectos puramente lingüísticos.
A linguagem regulam enta só o como dizer, e não o que di­
zer. A linguagem possibilita uma exortação ao assassinato;
mas o direito não o permite. Dessa form a a linguagem cons­
titu i um a esfera de liberdade dé escolha, enquanto que o di­
reito regulam enta parte do exercício dessa liberdade. É atra­
vés da linguagem que o mundo se constitui enquanto um

120
campo com plexo e congruente de escolhas, em relação ao
qual torna-se problem ática a expectativa sobre as expectati­
vas des outras. Daí o direito depender da linguagem em um
duplo sen tid o: ele se refere ao m undo das outras possibilida­
des constituído através da com unicação por meio da lingua­
gem, e tam bém utiliza a lin guagem para exercer sua escolha
entre essas possibilidades. M as a linguagem não pode ser
por si só o mecanismo dessa escolha. Já que ela apresenta,
em termos de sentido, a com plexidade e a contingência desse
mundo, ela não pode ser ao mesmo tem po o estatuto que
comanda e integra socialmente o experim entar e o agir nesse
campo de possibilidades; caso contrário ela destruiria, através
da redução, aquilo que ela deve expor e manter. Não é tanto
apenas a linguagem , mas mais a estabilização da diferença
entre a linguagem e os mais variados mecanismos de seleção,
que distingue o homem do animal.
Essas considerações m ostram que ainda nos fa lta uma
outra característica para a definição do direito: a utilização
do direito enquanto estrutura do sistema social. Para essa
função o direito necessita de um a técnica de relação de al­
cance m uito m aior que a simples regulam entação da form a
correta de falar, e que escolha, dentro do campo das possibi­
lidades lingüísticas do falar, pensar e fazer, aquilo que se
perm ite falar, pensar e fazer. N o direito, a congruência das
expectativas é utilizada no sentido de um a seleção mais
estreita, que não anula as possibilidades criadas pela lin gua­
gem, mas as trata como possibilidades para submetê-las a
uma nova redução. A í reside a am bivalência característica
da capacidade de ordenam ento de estruturas normativas,
que ainda analisaremos a seguir, peia qual elas dão sentido
ao com portam ento conforme e tam bém ao com portam ento
divergente.
Podemos agora d efin ir o direito como estrutura de um
sistema social aue se baseia na generalização congruente de
expectativas com portam entais norm ativas. Reservamos por
ora para outro capítulo a questão da delim itação dessa defi­
nição com respeito ao direito da “ sociedade” enquanto siste­
ma social abrangente. Temos, porém, que acrescentar algu­
mas considerações quanto ac aspecto evolutivo desse conceito
de direito.
A fixação conceituai bloqueia o acesso ao fato de que a
form ação do direito é uma conquista evolutiva, e de que

121
o direito diferenciou-se de acordo com seu conceito apenas
através de um longo desenvolvimento histórico. Com isso
não retornam os à m u ito difundida tese de que na histó­
ria da humanidade ou até mesmo na com paração intercul-
tural contemporânea seria possível encontrar-se sociedades
sem o direito (ou seja, aquelas que não dispõem de um apa­
relho estatal im p o sitivo ). 1-l! Nosso conceito funcional de
direito tom a, ao contrário, claro que o direito preenche uma
função necessária em toda sociedade que se constitui senso-
riaim ente enquanto tal, tendo então que existir sempre. O de­
senvolvim ento do direito não deve ser compreendido como
salto da sociedade pré-jurídica à sociedade do direito, mas
sim como uma paulatina diferenciação e autonom ização fu n ­
cional do direito. Nesse processo de desenvolvimento, a cria­
ção de papéis especiais para a decisão jurídica e para a apli­
cação de sanções teve um a im portante função, mas essa
função só pode ser com preendida se não se considera isso
como o m om ento inicial do direito, mas sim como um passo
im portante em sua diferenciação, que possibilitou um a m aior
seoaração do direito com relação à linguagem , à verdade, à
arte e à prática racional.
Nosso conceito de direito contém, assim, elementos cons­
tantes e variáveis. Como uma constante temos a função da
generalização congruente, que tem que ser de algum a form a
preenchida em toda e qualquer sociedade humana. Evoluti­
vam ente variável, por outro lado, é o grau de diferenciação
dos mecanismos do direito, e com isso tam bém o grau em
que se form am estruturas e processas correspondentes ao
conceito do direito. O m otor da evolução, porém, é a cres­
cente com plexidade da sociedade, que torna mais sensível a
digcrepância nas diversas dimensões da generalização, exigin ­
do em conseqüência um a atuação mais eficiente no sentido
da generalização congruente, ou seja da seletividade mais
rigorosa, levando com isso a um grau mais elevado de sua
especialização nessa função. Dessa form a a evolução do d irei­
to pode ser observada através de suas condições à com plexi­
dade da sociedade, de suas condições à complexidade da socie­
dade, de seus mecanismos de diferenciação de papéis e pro­
cessos especificam ente jurídicos, e de seus resultados no
sentido da autonomização de estruturas de expectativas ju rí­
dicas, as quais liberam o direito cada vez mais dos entrela­
çamentos com a linguagem , com as interpretações globalís-

122
ticas do mundo, com a verdade, com a praxis racional e,
finalm ente, até mesmo com outras esferas normativas, entre
elas principalm ente a moral. Esse quadro teórico de referên­
cia, ao qual chegamos através de um a análise da am pla
com plexidade dos mecanismos elementares da form ação do
direito, será nossa orientação nos capítulos terceiro e quarto,
ao lon go dos quais trataremos o direito enquanto estrutura
da sociedade, em sua evolução e em sua configuração atual
com o d ireito positivo.

7 — Direito e força física

As necessidades intrínsecas às diversas dimensões levam


a lim itações recíprocas ao nível da seletividade, restringindo
assim fortem ente a esfera do d ireito possíveL É necessário,
porém, desenvolver m elhor essa construção em relação às
form as do processamento de frustrações, sobre as quais se
apóia o próprio direito (diferentem ente de outras projeções
n orm ativas). Já havíamos visto que as expectativas compor­
tam entais de estilo misto, que não se fixam em um proces­
samento assimilador ou não, podem seguir diversos caminhos
para a “ norm alização” ao se defrontarem com perturbações.
Tam bém aquele que espera de form a puramente norm ativa
tem ao seu dispor todo um repertório de possibilidades de
processam ento de frustrações. É claro que nem todas pos­
sibilidades podem ser congruentem ente generalizadas, ou seja
normatizadas, institucionalizadas e identificadas em um con ­
texto fatual. Tendo em vista a congruência, impõe-se um a
escolha: tom a-se necessário privilegiar processamentos de
frustrações capazes de apoiar ao mesmo tem po generalizações
temporais, sociais e objetivas das expectativas com portamen­
tais. Dessa necessidade resulta um primado da força física
no processamento de transgressões ao direito.
É am plam ente difundida a concepção que define o direito
através do instrum ento da força física, ou mais precisamente
através da aplicabilidade legítim a (reconhecida socialm ente)
da força física no caso de transgressões à n o rm a .127 Pensa-
se aqui não só no emprego da força autorizado ou executado
pelos órgãos estatais; o conceito tam bém inclui formas mais
prim itivas da legítim a defesa. Essa definição facilita a dis­
tinção do direito das outras normas. Mas não fornece in di­

123
cações suficientes para a resposta às diversas indagações que
deixa em aberto. Por isso preferimos defin ir o direito através
de sua função — ou seja a da generalização congruente —
fundam entando a partir dessa função a explicação de por
que e em que lim ites a força física assume aquela posição
Droeminente.
A generalização congruente necessita da integração na
medida em que a normatização, a institucionalização e o
contexto definido do sentido são criados para as mesmas
expectativas. A frustração, portanto, representa para o direi­
to não só um problema (apenas tem poral) de m anutenção
da expectativa, mas além disso um problema de m anutenção
integral dos mecanismos generalizadores. Não é só a expec­
tativa da expectativa que deve comprovar-se nas condições
adversas da frustração, mas também sua cobertura através
do consenso e do sentido. O direito não pode redundar em
que uma expectativa se com prove como m ais consistente,
outra como melhor, e ainda outra como mais consensual. Se
a qualidade da expectativa enquanto direito não deve ser de
todo perdida, não poide permanecer em aberto para quais
das diferentes expectativas pressupõe-se o consenso. P or isso é
necessário dispor de um modo de processamento das frustra­
ções que apresente resultados tão inequívocos que perm itam
o encadeamento direto da suposição do consenso, ou até do
próprio consenso. Isso é produzido pela força física.
Para vermos como, prim eiro temos que descartar duas
linha,s erradas de interpretação.
A força física interessa-nos aqui não em seus efeitos
físicos, enquanto m ovim entação ou danificação de corpos,
enquanto ferim en to ou m orte de organismos, mas sim em
s&us aspectos sensoriais e simbólicos, que acom panham o
evento físico-orgânico e apresentam os elem entos de decisão.
É semente através da generalização enquanto símbolo para
outras possib;lidades que a força física adquire um a relevân­
cia abrangente em sistemas sociais. Mesmo na interação im e­
diata da luta física, as diversas situações dos lutadores, seus
objetivos e suas perspectivas, aquilo que eles evitam e pode­
riam evitar sua,s vida e m orte ou seja: suas identidades são
constantem ente simbolizadas e sensoríalmente assimiladas.
Dessa forma, per exemplo, o encerram ento da luta através
da subjugação é sempre uma possibilidade presente, a ser
considerada. 1-’s Principalm ente o valor da força física em

124
term os de poder se baseia não nos efeitos físicos que provoca
mas, m uito ao contrário, no simbolismo de sua generalização,
que possibilita sua não utilização. A exposição dem onstrativa
da força física, a execução simbólica, é um espetáculo espe­
cialm ente m ontado para atuar enquanto espetáculo, e não
através dos efeitcs de sua realização.
P or outro lado força física não pode ser confundida com
coerção (fís ic a ). Seu sentido pode incluir a imposição de
expectativas, ou seja, pode ter em vista motivações, mas não
se reduz a isso. A utilização atual da força física é até mesmo
um m eio de coerção altam ente inadequado, pelo menos an ti­
econômico, na m edida em que a ação esperada deva apresen­
ta r algum tipo de autonomia. A força física é prim ordialm en­
te um instrum ento de apresentação e de certificação, e não
de imposição de expectativas. Tem es que considerar isso para
podermos compreender como a utilização da forca em prin­
cípio repressiva e vingativa em sociedades mais simples se
relaciona com o direito. Tom ando por exem plo a instituição
da vendeta, generalizada quase que universalmente, não se
trata de punir o culpado (parentes podem ser mortos em seu
lu gar) , nem de desenrolar publicamente um conflito, sob a
form a de lu ta (freqüentem ente a vin gan ça é feita de embos­
cada), nem da extorsão de um a reparação (mecanismo que
só foi inventado para superar-se a v e n d e ta ), mas se trata, isso
sim, de um a exposição, em geral socialm ente esperada e
quase obrigatória, da perseverança em m anter-se um a expec­
tativa lesada.
For meio do uso da força física com todos os seus riscos,
que afetam a vida e a morte, aquele que teve sua expectativa
frustrada assegura a si mesmo a perseverança em sua expec­
tativa, assegura a própria coesão de sua linhagem, e além
disso assegura à sociedade que o d ireito ainda vige. P ara um a
sociedade mais simples tem que parecer impossível que haja
outra possibilidade de neutralizar-se um a transgressão ao
direito concreta e drasticamente experimentada. Quem não
está disposto a defender seu direito com a força física tem
mais é que perdê-lo, pois é exatam ente essa disposição que
m antém a vigência do direito. I-‘J Naturalm ente que na rea­
lidade os motivos especificamente norm ativos do u~o da força
não podem ser inconfundivelm ente separados das outras pos­
síveis intenções. I;!0 Independentem ente disso, a força física
atuava em um sentido para nós atualm ente impensável: 131

125
com o com provação da existência do d ire ito .132 O tam anho do
perigo com prova o direito, pois nele transparece a identidade
entre o direito e o ser próprio, entre o direito e a vida; 133
ele não com prova nenhum a culpa da transgressão e nenhum
fato enquanto condição para a utilização de normas jurídicas,
mas comprova o próprio direito. O uso da forca física não é
um meio, mas sim uma manifestação. Ele simboliza e efetua,
com sua vocação à decisão, a congruência dos mecanismos
form adores do direito. Apenas mais tarde, ao longo do desen­
volvim ento do direito, se estabelece a separação entre a sim-
bolização e a efetivação da congruência, e isso só sob con­
dições institucionais complicadas, como logo veremos mais
det alhadamente.
Essa tese inquietadora, que parece submeter o direito à
força, necessita de um m elhor esclarecimento. A força física
baseia-se na natureza física do homem. Enquanto possibili­
dade ela não é elim inável do convívio humano. O direito,
porém, não pode sobreviver enquanto direito se do outro lado
está a força física. Nesse caso as projeções norm ativas ainda
podem ser sustentáveis, e com elas a pretensão de um direito
ideal, a expectativa pode ser m antida através do sofrim ento
persistente, do prazer na desgraça alheia ou cultivada em
círculos secretos; mas e.s complicados mecanismos que asse­
guram as expectativas de expectativas dos outros, dos tercei­
ros, fracassam ou têm que ser substituídos por um experi­
m entar projetivo. Inversam ente, a força física pode disso­
ciar-se do direito enquanto ação isolada, enquanto ato sem
intenções jurídicas, mas não enquanto base perm anente para
o apoio de expectativas próprias, pois na medida em que ela
engendre expectativa.3 e as institua estará criando direito.
A *força física, por isso, não pode ser vista apenas como um
instrum ento para a execução de um direito por si mesmo
vigente; como os antigos símbolos jurídicos nos ensinam, ela
é parte integrante da m infestação da presença do direito na
.rociedade. Ela coloca em evidência a seletividade da ordem.
É necessário ter coragem para perceber isso, pois só assim
é possível com preender por que a evolução do direito está
ligada a um a história da domesticação da força fís ic a .134
A força física acom panha o direito como uma sombra irre-
m ovível, mas certos problemas ligados a essa associação entre
direito e força podem ser m elhor resolvidos em sociedades
mais complexas.

126
Dois problemas principais podem aqui ser destacados.
No prim eiro plano da consciência histórica apresenta-se fre­
qüentem ente o efeito insuportável da m orte de muitas pes­
soas e da destruição de bens ao lon go de demoradas disputas,
cadeias de vendetas e devastações aue poderiam debilitar ao
extrem o as forças econômicas e poüticas de sociedades mais
simples. A evidência desses efeitos sempre ensejou tentativas
de regular-se o uso da força física.
U m outro problema não se apresenta de form a tão clara
assim, mas ganha em relevância com a crescente com plexi­
dade da sociedade. Enquanto base de poder a força física
possui a característica de ser altam ente independente em
termos estruturais. Comparando-se ela com o poder baseado
na dependência em outros papéis ou n a interdependência fun­
cional e sua sensibilidade a interferências, com o poder ba­
seado em retribuições e vínculos de gratidão, poder baseada
n a independência, poder baseado na posição hierárquica mais
elevada então sobressai o elevado grau de liberdade que a
força física goza. Ela é altam ente independente de estruturas
sistêmicas, pois ela pressupõe apenas um a força superior, e
não determinados ordenamentos de status,, relações entre
papéis, delimitações grupais, distribuições de informações,
concepções valorativas; tão só a organização do apoio recíi-
prcco no uso d a força física gera certas dependências. A lém
disso, a força física é de u,so quase universal, oiu seja am pla­
mente indiferente quanto ao tempo, à situação, ao objeto e
ao contexto da ação; assim ela tam bém pode dissociar-se das
estruturas existentes em termos de fixação de objetivos. P or
isso ela não precisa .ser diferenciada de form a correspondente
às normas e aos fatos jurídicos, mas permanece organizável
ás form a unitária, por mais que o d ireito possa tornar-se
com plexo.
É neise elevado grau de liberdade dos meios fís ic o s 135
que se fundam enta sua inestim ável relevância para a evolu­
ção da sociedade humana, sua função inovadora, sua superior
capacidade de organização, mas nisso tam bém baseiam-se
seus perigos específicos para a continuidade estrutural da
sociedade. Força física pode sustentar ou derrubar a ordem
existente. Em si mesma ela não contém garantias de que vá
sustentar expectativas que possam ser coerentem ente encai­
xadas em um arcabouço institucionalizado, ou o melhorem
consistente mente. Ela também pode expressar ou dar resso­

127
nância a expectativas norm ativas frustradas pela ordem
dominante. Enquanto força, ela é indiferentg a ambos os
usos.1:16 Essa am bivalência da força física é parte integrante
insuperável do sistema social, mas assume diferentes formas
na medida em que a estrutura da sociedade se modifica. Sob
condições crescentemente complicadas ela assegura ao mes­
m o tempo a evolução e a continuidade.
A form a natural, e\ por longo tempo predom inante da
reação violenta a frustrações consistia em um com portam en­
to punitivo, com um ente assassino (ou seja irrestrito ), do
próprio ferido ou sua p aren tela.137 Um a tal defesa própria
não pode ser vista apenas como uma solução paliativa, em
vista da falta de um a justiça e de um a polícia; m uito ao
contrário, ela expressa p rim itiva e diretam ente a relação en­
tre o direito e a força. O direito se m anifesta onde ele é
atingido; e tendo em vista a dúvida daí resultante, parece
apropriado o exagero da reação, que faz com que o direito
perca o direito. Até onde se pode observar historicam ente,
nota-se terem existido tendências de controle do livre arbítrio
da reação; e isso já porque de outra form a ela quase não
poderia ser diferenciada da própria transgressão ao direito.
Mas a institucionalização do processamento de frustrações
oferece, já que o direito mesmo se expressa concretam ente
na força, apenas possibilidades lim itadas para a contenção
da vingança e da disputa, permanecendo precária quando
elas vão longe demais. O ponto de referência para uma regu­
lam entação encontra-se inicialm ente, portanto, menos na li­
m itação da am plidão da vingança, mas em seus pressupostos
e em suas formas. É necessário que se trate de um a força
pensante, de uma ação previam ente avisada, como no caso
dog germanos, ou de um últim o recurso após o fracasso de
uma tentativa de interm ediação plena de pressões, como no
caso dos ifugaos (das Filipin as) e muitos outros povos. Isso
regula a liberação da reação, mas não afeta o cerne da ins­
tituição do direito, enquanto que todas as tentativas no sen­
tido da satisfação, da superação da vingança t:nham uma
referência antiinstitucional, e sempre sign ificavam algo hu­
m ilhante para os participantes. Em termos práticos os efeitos
disfuncionais acim a esboçados não podiam ser amortecidos
pela própria instituição, mas tinham que ser absorvidos por
uma clara fissura do poder, que obrigava o subjugado a ceder.

128


O fato de que o direito arcaico se evidencia e se com prova
na sanção violenta também pode ser observado na instituição
do ju ra m en to. O juram ento não é inicialm ente nada mais
que o deslocamento da luta violenta em to m o do direito para
o plano m ágico — endereçado não ao juiz que com a ajuda
dessa ou daquela prova descobre a verdade e decide sobre o
direito, mas sim ao opositor que deve ser ven cid o.13S Sobre
o juram ento não se decide; ele mesmo decide, e não na for­
m a de um veredito, mas por seus efeitos imediatos: ao pro­
vocar a força mágica, sob determ inadas formas, empregando
a própria pessoa. O juram ento é uma com provação do direito
porque a força física que ele substitui já o era. Mas o ju ra­
mento, ao substituir a força física, apresenta melhores pos­
sibilidades de transform ação em um instrum ento processual
de busca da verdade e de estipulação do direito. Desisa form a
ele pode estabelecer a transposição às formas posteriores do
direito, m antendo sua continuidade e identidade, mas m odi­
ficando seu sentido e sua fu n çã o .133
A reestruturação daquela relação original entre direito
e força, que se realiza ao longo do desenvolvim ento da socie­
dade, parece estar ligada a duas condições que devem ser
entendidas como conquistas evolutivas essenciais. Um a reside
na concentração política da decisão sobre o uso da força
física, que só lentam ente e apenas na época contemporânea
foi assegurada definitiva e abrangentem ente nas mãos do
“ Estado” . Isso pressupõe a diferenciação de papéis correspon­
dentes para a decisão e a execução jurídica (ou seja, uma
construção social relativam ente com plexa) e assegura às
expectativas que são confirm adas como de direito, através
dos processos decisórios organizados, uma superioridade tão
efetiva em qualquer caso, que cada vez mais se pode pres­
cindir do ato de força enquanto form a de expressão. Em seu
lugar surge a decisão. A execução da pena tem lu gar por trás
dos muros. O exercício público da força física torna-se pra­
ticam ente desnecessário. Onde ele ocorre, tom a-se desagra­
dável — um sintom a do fracasso político, que hoje até pode
ser “ provocado” enquanto tal, para que a ordem dom inante
se apresente como ilegal, na form a da força.
A força, que se envergonha de aparecer e de apoiar o
direito, não se to m a dessa form a dispensável; mas ela perde
sua função enquanto símbolo e com provação do direito. Isso
leva a uma segunda e não menos im portante condição da­

129
quela reestruturação: a comprovação do direito tem que ser
obtida de outra form a — mais abstrata, especílfiea e diferen­
ciada. A alternativa se apresenta através de um a concepção
que seria estranha ou incompreensível em ordenam entos ju ­
rídicos mais simples: a de que o direito é um conjunto de
normas abstratam ente formuláveis, reciprocam ente consis­
tentes e que podem ser fixadas através de sua interpretação
nos casos individuais. Com o surgim ento dessa concepção, e
tão-só aí, diferenciam-se as questões dos atos e as questões
do direito, e correspondentemente as fontes da. informação.
Essa diferenciação dá ao processo da aplicação ju rídica um
alto grau de autonomia. Ela não pode ser determ inada isola­
damente nem através das normas (ou daqueles que as fi­
xam ) , nem apenas pelos fatos (ou pelos que os con h ecem ). 140
A com provação do direito reside agora na dissolução dessa
diferença, n a resposta com binada às questões sobre o ato e
às questões jurídicas, e ela é apresentada com o decisão.
Essas sugestões, cuja com plementação tem que ser dei­
xada para capítulos posteriores, perm item perceber que a
domesticação da força física se fundam enta em bases alta­
mente complexas e im prováveis enquanto evolução. Os cam i­
nhos tortuosos e variados desse desenvolvimento não podem
ser detalhadam ente traçados a q u i.141 Sua gênese interessa
menos que seu resultado, que parece ser estabilizável através
de sistemas, independentemente das diferentes condições ge­
néticas. Esse resultado, porém, pode ser caracterizado como
um a separação da efetivação e da sirribolização da congru ên ­
cia do direito.
Para a efetivação da generalização congruente de expec­
tativas com portam entais permanece im prescindível a dispo­
nibilidade da força física pelo lado das expectativas legais —
im prescindível para a m otivação de indivíduos resistentes,
mas principalm ente im prescindível para a construção de um a
confiança generalizada no direito, ou seja ao n ível das ex­
pectativas sobre expectativas. Em uma sociedade sempre
crescentemente com plexa ninguém, a não ser em círculos
m uito restritos, pode avaliar corretam ente quais motivos con­
cretos mobilizam as pessoas. T an to maior, então, é a neces­
sidade de um instrum ento de m otivação altam ente genera-
lizável, que funcione sempre e independentemente das es­
truturas m otivacionais individuais, e goze enquanto tal da
confiança gen eralizada.1,2 As liberdades estruturais que a

130
força física goza são inseridas nas estruturas de expectativas
com o elem ento de segurança. Pode-se con fiar que a força
organizada operará com exatidão seja com quem for, soib
condições ainda desconhecidas. Sua indiferença com respeito
às circunstâncias é correspondente à fa lta de inform ações
sobre as circunstâncias. A té mesmo as longas cadeias de
expectativas, impossíveis de serem claram ente percebidas,
com o as necessárias em um a sociedade diferenciada segundo
critérios da divisão do trabalho, mantêm-sle expectáveis a
partir da premissa de que sempre que ocorrem frustrações
a expectativas legalm ente asseguradas (seja qual for seu con­
teúdo) pode-se ativar a força física, sem que isso dependa
da força do frustrado, de seu séquito de amigos e parentes,
de sua fortuna ou de suas relações (ou seja sem depender de
fatores inesperados). “ O ordenam ento ju rídico” é, assim, abs­
tratam ente assegurado frente a conteúdos desconhecidos e
variáveis, tornando-se expectável. A congruência dos m eca­
nismos do direito fundamenta-se na expectativa de que os
outros esperam que o direito esteja coberto pela força fí­
sica. 143 O consenso institucionalizante suposto é assim re­
duzido ao denominador comum com um m ínim o em moral.
Isso sign ifica que ele se to m a com patível com a am pla dife­
renciação entre as morais e as consciências individuais.
Tam bém nas sociedades modernas altam ente complexas,
e principalm ente nelas, a certificação da expectabilidade de
expectativas é m uito mais im portante que assegurar-se a
realização das expectativas. N o caso de perturbações sempre
existem soluções alternativas, possibilidades substitutivas e
compensações, que podem ser organizadas e criadas ad hoc.
A certeza da expectabilidade, porém, continua fundam entan­
do-se no últim o recurso da força física. M ais fortem ente que
nas sociedades mais simples, porém, essa função da força
física pode aqui ser especificada e separada das outras tare­
fas de apresentação simbólica do direito. A cobertura através
da força física dilui-se enquanto um conteúdo óbvio e anô­
nim o do direito, não mais assumindo a form a de auto-afir­
mação da expectativa. P or um lado ela se refere a conteúdos
desconhecidos é variáveis, perdendo assim sua relação con­
creta de sentido com determinadas expectativas, mas por
outro lado não mais depende da própria força e das circuns­
tâncias. O m om ento de insegurança nervosam ente esperado
não é o resultado da luta física, mas o resultado de um pro­

131
cesso decisório, ao qual as participantes se submetem. A in ­
terpretação m ítica da força enquanto autoafirm ação ao de­
safiar-se o destino é substituída pela im agem inofensiva do
mero instrum ento para fins (legais), fins esses sobre cuja
legalidade pode-se tom ar decisões. Com tudo isso a força
perde sua qualidade simbólica, transferindo-a à decisão. A se­
letividade da ordem manifesta-se agora na decisão.
N a m edida em que se desloca da força física as funções
expositivas, tom a-se possível uma lim itação essencial dos
casos de interação seriamente violentas. A força recua en­
quanto form a de expressão da sociedade.144 Não é necessário
portar armas para sair à rua, já anunciavam os gregos como
uma conquista de sua polis. Nas sociedades complexas a rela­
ção entre casos de violência e casos jurídicos tom a-se extre­
mam ente b a ix a .145 Com isso reduzem-se tam bém os proble­
mas de conseqüência da força: o número de mortos culpados
ou inocentes, de mutilados, de órfãos e viúvas, o núm ero de
distúrbios funcionais no todo das interações. O direito se ade-
qua não bem aos mandam entos da humanidade, m as pelo
menos às necessidades de uma sociedade funcionalm ente
diferenciada. Essas necessidades não tornam a força desne­
cessária para o direito, e tam bém não im possibilitam o uso
da força contra o direito. Mas definem para ambos esses
aspectos um outro peso valorativo no quadro da ação social.

8 — Estrutura e comportamento divergente

Os sistemas de ação são estruturados através de entre­


laçamentos de expectativas, e não por m eio de norm as es­
truturais. 148 Estruturas de expectativas estão expostas a
frustrações, e é aí que reside sua realidade. Isso é especial­
m ente válido para as expectativas normativas, que buscam
uma redução da complexidade quase que desnatural por ser
contrafática. Sua frustração surge não tanto pela ação de
outros fora dos parâmetros esperados, mas principalm ente
na medida que outros tenham expectativas não esperadas, e
nelas encontrem sua identidade. Dessa form a a expectativa
de um tom a-se a frustração do outro. Um a projeção norma­
tiva contrapõe-se à outra. O próprio direito tom a-se contro­
verso. O mecanismo da institucionalização providencia um
alto grau de integração ao conceder às diversas expectativas

132
chances diferentes de realização, mas ele não interrom pe a
superprodução de normas.
Na verdade existe um âm bito da pura divergência, que
se vê com o imune e isenta de normas, orientando suas ex­
pectativas pela ordem norm ativa dom inante apenas cogniti-
vam ente, só para m elhor poder transgredi-la. Mas, fren te à
necessidade de comunicação, também o transgressor tem que
explicar-se plausivelmente, desenvolvendo valores próprios
ou até mesmo normas próprias, pois de outra form a ele não
pode se expressar, não pode ter nenhum futuro no sistem a.147
Mesmo um ladrão que reconheça que não se deva roubar
projetará normas (e não só desculpas!) com referência às
circunstâncias do seu caso e de sua pena. Dessa form a as
frustrações se apresentam não só com respeito à ordem do­
m inante, mas também a seus transgressores. Os jovens per­
turbam a ordem porque a ordem perturba os jovens ( Schel-
s k y ). Em ambos os lados surgem problemas de processamen­
to de frustrações, se bem que com um a distribuição diferen ­
ciada das estratégias possíveis, das chances de realização e
dos respectivos problemas de conseqüência.
Em princípio esse dilem a é inevitável, mesmo que possa
ser desdobrado em pequenos problemas. Ele reside em que os
participantes da vida ju rídica têm que procurar um futuro
em com um para suas diferentes auto-imagens e iden tifica­
ções, ou seja, na relação entre estrutura e tempo. Sistemas
de ação conduzem processos através de suas estruturas em
direção a um futuro em aberto. As estruturas orientam es­
colhas sem lhes retirar o caráter de opção, ou seja sem des­
truir a possibilidade, em princípio, de uma seleção diferente.
É apenas o tempo, e não a escolha que destrói a chance de
realização de outras possibilidades, tornando os eventos fatos
do passado e portanto inalteráveis, retirando-lhes a possibi­
lidade de ter outra configuração. A m anutenção da possibi­
lidade em princípio de um a outra opção ocorre ao manter-se
o futuro em aberto, exigindo as,sim a sustentação de um
futuro não lim itado, a sustentação da contingência no m un­
do. Nas expectativas sensorialmente estruturalizantes, por­
tanto, o futuro e o passado se apresentam de m odo diferente;
eles são diferenciados, tornando-se disponíveis, enquanto di­
mensão de ordenamento, para a complexidade. Um a sociedade
não pode alcançar um a elevada complexidade sem recorrer
ao tempo enquanto dimensão de ordenam ento, e isso não só

133
no sentido de fixar, através do planejam ento, a seqüência dos
eventos (o que só é possível nos casos de um a reduzida com­
plexidade m aterial e s o c ia l), mas também para preparar suas
estruturas e seus processos para possíveis surpresas.
O preço de um futuro em aberto, rico em possibilidades
e contingente é a possibilidade de que expectativas sejam
frustradas, é a inconfiabilidade da estrutura. Quanto mais a
complexidade e a contingência forem expressas na dimensão
temporal, quanto mais eventos e futuras possibilidades de
alteração forem consideradas, tanto mais serão sobrecarrega­
das as estruturas de expectativas em sua função de absorção
de incertezas e frustrações.
Em term os grosseiros, identificam os essa relação entre
horizonte tem poral e desempenho estrutural n o desenvolvi­
m ento do direito. Em sociedades mais simples não existe a
possibilidade de experimentar-se, e m uito menos de institu­
cionalizar-se um futuro em aberto, um excesso de possibili­
dades, das quais nem todas se tom a rão realidade. Já no nível
da linguagem faltam as possibilidades de expressão para tan ­
to necessárias.,48 De form a análoga, as instituições jurídicas
não são em princípio concebidas no sentido da fixação sele­
tiva do futuro ou da absorção de possíveis fru strações.149
Não é a problem ática temporal, mas .sim a problem ática
social da integração que exerce o prim ado funcional nesse
estágio do desenvolvimento. Nessas circunstâncias, o desvio
é sentido com o algo que escapa à ordem, com o perda das
referências que m antêm as pessoas em comunidades, e não
como apenas algo que desencadeia um program a institucio­
nalizado de correções. Suicídio, desterro, estigm atização, m al­
dição perpétua dos parentes e descendentes são aspectos sin-
tqpiáticos dessa relação com o desvio — em contraposição às
sanções que deveriam m otivar ou corrigir o com portamento,
ou afirm ar a vigência da norm a apesar da sua fru stra çã o .150
O pensamento clássico dos gregos apresenta, principal­
mente em Aristóteles, um a form ulação conscientemente opos­
ta a esse institucionalism o a rca ico .151 As instituições concre­
tas da polis grega perm anecem como ponto de referência e
base para a interpretação, mas nelas registra-se um desen­
volvim ento que estabiliza uma nova conquista evolutiva: a
in stitu içã o ético-p olitica. Ela tem sua essência em referir-se
ao homem enquanto ser humano, naquilo que o distingue do
animal: na posse da linguagem e da possibilidade daí decor­

134
rente orientar-se a partir da diferença entre o bem e o m a l.152
O aspecto do futuro é incluído no d ireito como pode ser visto
no caso dos ju ram en tos.153 A instituição ética pessupõe o
homem enquanto ator, que pode optar entre o bem e o mal.
E&sa opção foi vista como contingente, mas não como indis­
crim inada e sim como orientada por um a preferência pelo
bem, ontologicam ente fundamentada. A o longo de sua pro­
longada e rica tradição, a ética esforçou-se em elaborar uma
exegese e uma fundam entação da preferência pelo bem, mas
não em iden tificar as exigências estruturais impostas às ins­
tituições que se defrontam com a possibilidade da ação pau­
tada pelo. bem e o mal. Analogam ente, tam bém não se reflete
sobre a relação entre a com plexidade social, a dimensão tem ­
poral e a estrutura norm ativa de expectativas. A ação diver­
gente era norm alm ente condenada, também na ciência. Dessa
form a a sociologia só conseguia abrir seu próprio cam inho
para penetrar na esfera norm ativa ao romper com a abor­
dagem ética tradicional.
Um a outra interpretação pré-sociológica do com porta­
mento divergente, tão im portante quanto a anterior, tam ­
bém se refere a desenvolvimentos sociais faticam ente dados,
ou seja a explicações para frustrações que se tornam pos­
síveis com as crescentes complexidades da sociedade, abstra­
ção da religião e “ individualização do m edo” . 154 N a tradição
judaicG-cristã, junto com a personalização da relação religio­
sa dos indivíduos com Deus, é desenvolvida a concepção de
uma culpa individual, institucionalizada como uma possível
explicação para frustrações, que logo passa a ser predomi­
nante. Isso levou a que a culpa passasse a ser vista como fa to
( “.íntim o” ) e por exemplo não como algo que poderia levar
a questionar-se uma estrutura norm ativa. Até mesmo a ciên­
cia e a história contemporâneas do direito tratam o desen­
volvim ento do princípio da culpabilidade como a descoberta
de um fato, como a descoberta do m otivo em si da punibili-
dade, ou seja como um “ progresso” . 155 Da mesma form a
que o louvor ao bem, também a estigm atização da culpa, não
esclarece a função dessa conquista evolutiva. A novidade
desse princípio reside não só no aperfeiçoam ento dos modos
de im putação ou dos meios de m otivação, mas principalm en­
te em que a culpa possibilita redenção — ou seja conside­
rando, na dimensão temporal, um fim das conseqüências do
com portam ento divergente.

135
O surgim ento e a relevância desse tem a da redenção é
um im portante indício no sentido de tratar-se de uma rele­
vante conquista evolutiva. P ara podermos compn^ender a
função da culpa e da redenção, temos prim eiro que nos vol
tar para ordenam entos jurídicos mais antigos Em termot.
típicos, suas estruturas apresentam poucas alternativas, de
tal form a que um desvio da ordem freqüentem ente não o fe ­
recia possibilidades de correção ou re to rn o .156 Quem rompia
o tabu do incesto ou as regras prescritivas da escolha con­
jugal, confundia para si e para seus descendentes o sistema
de parentesco precisamente definido, do qual dependia toda
a condução da vida. Quem se desacreditava em um papel não
encontrava parceiros nos outros papéis. Tam bém a institui­
ção quase universal da vindita não se referia à culpa, não
apresentando assim um fim natural e plau sível.157 Esses
fatos estruturais sedimentavam-se enquanto experiência, es­
pelhavam-se em mitos do pecado original, que nos foram
transmitidos através do A n tigo Testam ento e das tragédias
gregas, se bem que já em um a form a interpretada e proble-
matizada. O coro dos terceiros institucionalizantes observa
horrorizado, registra, adverte, lam enta o inexorável desenro­
lar-se da ordem que saiu dos trilhos, mas não intervém para
avaliar e delim itar as conseqüências em função do grau da
culpa. A necessidade de colocar-se um ponto fin a l nas fa ta li­
dades desencadeadas pelo desvio só pôde ser satisfeita em
sociedades relativam ente complexas, que dispunham de alter­
nativas suficientes para reencam inhar um desvio à trilh a da
ordem; sociedades, portanto, que anteviam um futuro variá­
vel pelo menos em alguns aspectos. Somente nessas socieda­
des tornou-se possível institucionalizar a culpa e a redenção
como modalidades da experim entação e do tratam ento do
com portamento d ive rg e n te .158 O deslocamento do m otivo da
pena para “ dentro” , enquanto culpa, simboliza concomitan-
temente que é necessária um a neutralização dos papéis e
dos interesses sociais e um isolamento dos fatores causais
externos. E para tanto é necessário encontrar-se aquele ca­
minho, incompreensível e certam ente paradoxo para o direito
antigo, que localiza o fundam ento jurídico da sanção no pró­
prio transgressor, e não mais na frustração do atingido pela
transgressão.
Da mesma form a que a ética não pode ser reform ulada
no sentido de uma teoria estrutural da sociedade e do direito,

136
também a função da experiência da culpa não poderia to r­
nar-se objetivo legítimo. “ Profundo arrependim ento redim e
a culpa, mas a consciência não pode saber desse resultado”
— assim H e l m u t K u h n form ula essa lim ita çã o .159 Mas, por
que? P or que não con descender com a necessidade, que sem­
pre irrompe, de uma prática mais racional da redenção? Por
que são acionados aqueles irracionalismos calvinistas para
to m a r insegura a certeza da salvação? M uito especulou-se,
a partir de M a x W e b e r , sobre a im portância desse represa-
m ento de motivações para a secularização da ânsia moderna
de sucesso.1(10 Não podemos desenvolver aqui essa discussão.
Mesmo que se dê pouco valor, em term os de motivação, à
crença religiosa na redenção, através de sua configuração
podemos observar a estrutura da sociedade: o empecilho ao
cálculo pragm ático-racional da redenção simboliza que a so­
ciedade necessita concretam ente do mecanismo da culpa
como fato e como explicação para frustrações, não podendo,
portanto, funcionalizá-lo como m ero atalho para a redenção.
Em termos gerais a concepção pré-sociológica do com­
portam ento divergente permanece, portanto, vinculada a uma
estrutura de preferências prescrita de antemão, que é in ter­
pretada a partir da essencialidade da diferença entre a boa
ação (esperada norm ativam ente) e a má ação (fru s tra n te ),
sem porém problematizá-la enquanto estrutura. Na medida
em que se parte da unidade do dever ser jurídico, sem dis-
crim iná-la dimensional e funcionalm ente, existe apenas uma
possibilidade para a negação do direito: a ilega lid a d e.1151
Nesse contexto o m al é renegado a partir da tendenciosidade
unilateral da norm atividade própria, e a contradição entre o
bem e o m al é confundida com a contradição entre a norma
e o fato. Não se indaga sobre a função dessa disjunção com
preferências implícitas. Em contraposição, a sociologia do
com portam ento d ivergen te1'1- registrou progressos considerá­
veis, pois abriu perspectivas que romperam com os esquemas
de pensamento das ciências éticas e normativas, cuja supe­
ração teórica, porém, ainda está para ser realizada.
Com parativam ente à abordagem moral-filosófica, a aná­
lise sociológica do com portam ento divergente depende em
um grau mais elevado de “ neutralizações simbólicas” , e isso
em pelo menos dois sentidos. Por um lado ela só é im aginá­
vel se o pesquisador se afastar da perspectiva do julgam ento
moral e se o fato dele lidar com o com portam ento divergente,

137
avaliando-o, não for passível de censura (a não ser por d efi­
ciências puramente cien tíficas). Além disso, ela exige que a
im putabilidade do com portam ento divergente seja objetivada
e isolada, sem diluir-se no contexto explicativo, pois só assim
é possível explicar o com portam ento divergente referindo-o a
causas positivam ente avaliadas ou até mesmo à totalidade
de um sistema estruturado. Em outras palavras: a escolha
da explicação não pode ser dificultada, nem objetiva nem
subjetivamente, pela m óralidade do evento a ser explicado.
Isso pressupõe o desenvolvimento de uma alta capacidade de
negação diferenciada.
Atualm ente não é mais necessário com provar que o com­
portam ento divergente é socialm ente provocado, apoiado por
processos sociais, e que ele segue regras pesquisáveis do com ­
portam ento social, não sendo assim um com portam ento sim­
plesmente “ associai” , redutível tão só a um 'mpulso maligno.
Essa percepção deu novo impulso à indagaçao quanto aos
motivos do com portam ento divergente, conduzindo à des­
coberta das contradições estruturais em sistemas sociais. O
modo pelo qual um sistema estipula preferências engendra
ensejos e motivos para o com portam ento divergente como
uma entre diversas possibilidades de adaptação à estrutu­
ra. 163 Nesse sentido o com portam ento divergente é visto
como o correlato norm al das estruturas do sistema — não
mais como uma quota de desobediência, lam entável e resul­
tante da natureza humana, mas como conseqüência de deci­
sões estruturais do sistema social, que com isso. e através
disso, tom a-se variável. Finalm ente, a partir de S u t h e r l a n d ,
acentua-se que os processos, especialmente os processos de
assimüação, que provocam o com portam ento divergente, são
idênticos aos que levam ao com portam ento conforme, de tal
form a que também nesse sentido o desvio é um a reação
“ norm al” . 164
Paralelam ente desenvolveu-se ainda um a teoria do com­
portam ento divergente que não partia das estruturas dos sis­
temas, mas dos processos de interação, compreendendo a
divergência com uma rotulação que só surge n a interação
e é fixada na medida das necessidades simbólicas do processo
de interação — não sendo, portanto, uma qualidade natural
ou moral (pela qual se é culpado!) da ação, mas sim uma
representação simbólica engendrada no próprio desenrolar-se
da história do processo de interação, que perm ite aos parti­

138
cipantes apresentar-se a si mesmos através de identificações
positivas ou negativas, e neutralizando eventuais conteúdos
ilícitas do com portam ento p ró p rio .165 É tão-só a assimilação
de eventos na interação que constitui o fato do “ com porta­
m ento divergente” . lll(i Com isso afirma-se, além da an tiga
concepção de que o am biente m otiva o com portam ento di­
vergente com a intermediação de processos psíquicos, que a
divergência, através da percepção e da rotulação, é um fen ô­
meno puram ente social. Tais pesquisas podem inserir-se na
teoria da,s estruturas sistêmicas n a m edida em que se con­
sidere que os processos de interação não podem constituir
divergências arbitrariam ente, tendo que submeter-se mais ou
menos rigorosam ente às condições param etrais dos sistemas
mais abrangentes, no m ínim o porque de outra form a as di­
ficuldades de entendim ento n a interação corrente tom ar-se-
iam demasiadamente grandes. A sociologia do direito poderia
recuperar essas noções e m ostrar que apenas no caso de ex­
pectativas com portam entais congruentem ente generalizadas
é possível atingir-se um grau suficiente de univocidade na
classificação de discrepâncias com o divergência e na atribui­
ção da culpa, pois só assim pode engendrar-se um a “ rede de
controle social” . 167
Tais considerações sobre o condicionam ento estrutural e
processual das divergências em sistemas sociais são comple­
mentadas pela tese de que o com portam ento divergente, em
alguns aspectos, também preenche funções positivas, sendo
até mesmo útil — como por exem plo ao impulsionar a revi­
talização do sentim ento norm ativo ou a confirm ação cerim o­
nial da ordem vigente, como fonte de inovações ou até mes­
m o com o “ variety p ool” 16s do sistema s o c ia l.169 Tais a firm a­
ções não buscam, ju stificar o com portam ento divergente, mas
afirm am que os desvios não poderiam desaparecer sem que
certos problemas deixassem de ser solucionados, tornando
assim necessárias reestruturações de am plo alcance.
Essas diversas contribuições para uma nova concepção
do com portam ento divergente foram desenvolvidas a partir de
diferentes abordagens teóricas (teoria de sistemas, teoria
da interação, teoria das expressões simbólicas, funcionalis­
m o) e por isso elas apresentam colorações distintas. Elas
encaixam-se, porém, em um mosaico, configurando um qua­
dro in teligível, na medida em que se conceba o conceito de
estrutura de uma nova forma.

139
Um a im portante característica, comum a todas as in ter­
pretações sociológicas do com portam ento divergente, consiste
em ver não só o com portam ento conforme, mas tam bém o
divergente, como parte integrante do sistema social estrutu­
rado, atribuindo-o, portanto, ao sistema. A diferenciação en­
tre os com portamentos conform e e divergente não demarca
a fronteira entre o sistema e seu am biente;170 ela é uma
diferenciação t i o -próprio sistema. Os sistemas sociais não se
compõem apenas de “ boas” ações. O sentido tanto do com ­
portam ento conform e quanto do divergente está referido à
estrutura de expectativas — seja através do ator ou através
de outros que convivam, interpretem e submetam sua ação
às exigências das expectativas. Usando os term os de M a x
W e b e r ; 171 é o fa to da ação ser orientada a p artir de uma
ordem, e não sua observância que determ ina a vigência dessa
ordem.
Dessa form a a caracterização de um com portam ento
como divergente não é vista apenas como interna ao sistema,
mas também como relativa conforme o sistema, o que signi­
fica uma com plicação na teoria, pouco considerada em todas
suas conseqüências. É necessário considerar (pelo menos)
três dicotomias: entre com portamento conform e e com por­
tam ento divergente; entre com portam ento interno (do pró­
prio sistema) e externo (a m b ie n ta l); e entre expectativas
cognitivas e normativas. É evidente que essas dicotomias não
podem tom ar-se congruentes sem mais nem menos; mas por
outro lado a relação entre elas também não é indeterminada.
Os lim ites de um sistema não diferenciam ao m esm o tempo
com portam ento conform e e divergente ou expectativas nor­
m ativas e cognitivas com respeito à diferenciação entre o
âm bito interno e o externo; por outro lado eles não são irre­
levantes para o estilo das expectativas e para o tratam ento
do com portam ento fru s tra n te .1T-
Um sistema social que estabelece suas próprias delim ita­
ções não se satisfaz com a simples dicotom ia entre compor­
tam ento conform e e com portam ento divergente; ele tem que
dispor de uma definição de sentido que perm ita esperar um
com portam ento am biental que, porém, não é norm atizado
no próprio sistema. O fato de que na In gla terra se d irija pela
esquerda é, no nosso sistema de trânsito, um com portam ento
não normatizado, mas expectável. A m arca de dentifrício
usada por um a fam ília não é norm atizada em nosso sistema

140
econômico, a troca de marca, portanto, não constitui um
com portam ento divergente para a economia, representando
um evento que tem que se adaptar aos processos de assimi­
lação. No âmbito da fam ília, porém, pode surgir um a frus­
tração de expectativas normativas, se as crianças tiverem
que deixar de usar den tifrício adocicado, substituindo-o por
um outro, pretensamente mais saudável, mas baseado em
leite de magnésia. Um sistema social não pode prescindir de
expectativas cognitivas, nem em term os de referência externa
nem interna, mas ele pode. através de expectativas norm ati­
vas, d efin ir um âm bito mais restrito de premissas com porta­
mentais, cujo caráter obrigatório se estenda apenas aos com­
portam entos atribuídos ao próprio sistema. É tão-só com re­
ferência a esse âm bito restrito que faz sentido a diferenciação
entre com portam ento divergente e com portam ento conforme.
Essa própria diferenciação, e não apenas as expectativas
norm ativas e as ações correspondentes, faz parte da estru­
tura interna do sistem a.173 As expectativas norm ativas pos­
sibilitam, pelo menos em sociedades mais complexas e mais
ricas em alternativas, uma mais acentuada redução da com­
plexidade e da contingência. Essa vantagem , porém, tem a
contrapartida de que essa solução é válida para com porta­
mentos intrínsecos ao sistema, definindo o futuro de form a
pouco clara, ou seja apenas em termos da alternativa entre
com portam ento conform e e com portam ento divergente. Essa
alternativa, a disjunção da m oralidade do com portam ento
conform e e do com portam ento divergente acompanhada de
um a preferência à conformidade, representa como que a
“ visão in tern a” da seletividade. Ela projeta essa seleção para
dentro do próprio sistema, sem apresentar-se a si mesm a
como questão e problema: o com portam ento cotidiano se re­
fere não mais à alternativa em si, mas à alternativa entre
com portam ento conforme ou divergente, cuja diferenciação
é considerada como dada. A opção no sistema se dá entre
um a ação conform e ou divergente, opção essa que é facili­
tada no sentido da ação conform e — mas norm alm ente não
se questiona mais o porquê dessa opção. A possibilidade da
opção im ediata entre com portam ento conform e e divergente
obscurece a questão prelim inar da escolha dessa form a de
opção. Com isso a estrutura se exim e de qualquer problema-
tização.

141
Ela é pressuposta, pelo menos no com portam ento nor­
mal. Além disso pode-se supor ser impossível a consolidação
de subculturas divergentes baseadas em um direito próprio,
sem qualquer apoio no quadro norm ativo d om in a n te.174 Sen­
do assim, o com portam ento divergente só pode ocorrer oca­
sionalmente, e apesar de todas as justificativas não estabelece
uma estrutura de expectativas congruentem ente generaliza­
da, tendo que derivar sua autc-interpretação a partir da
ordem dominante. Acom odada a essa limitação, a contingên­
cia m oral da boa ação ou m á ação escamoteia a contingência
estrutural dos sistemas sociais — que envolve riscos m uito
maiores. A busca de m otivos é tratada de caso a caso, e só
em cabeças filosóficas ela é dirigida à fundam entação da
benignidade do bem ou da possibilidade do m al — desviando
assim da questão da função estruturalizante dessa própria
disjunção. Dessa form a a estrutura preenche sua própria fu n ­
ção de estabelecim ento de uma “ dupla seletividade” , 175 ao
separar a escolha de uma certa abordagem de disjunção m o­
ral da escolha do com portam ento segundo essa disjunção.
A disjunção m oral é uma transformação da complexidade
insuportável, excessiva em problemas m anejáveis — e o m al
quando intencional passa a ter seu próprio direito, enquanto
protesto contra a lim itação do mundo pelo bem.
Só quando se ultrapassa a antiga tradição européia do
direito natural ético, absorvendo na sociologia do direito os
fragm entos de uma teoria sociológica do com portam ento
divergente, e ainda mais, esclarecendo a função da estrutura
norm ativa no sistema social com respeito à seletividade, é
que se torna possível com binar os mais im portantes aspectos
de uma teoria da evolução do direito. O desenvolvim ento do
direito não pode ser concebido como um progresso no sentido
de uma m elhor realização da virtude e da razão, de uma
cada vez m aior elim inação do com portamento divergente, etc.
— ou seja no sentido de aproximação a ideais que, indepen­
dentemente da respectiva estrutura social, sempre vigiram .
A o contrário, o desenvolvim ento do direito sempre tem que
ser visto juntam ente com a;s modificações estruturais ao nível
do próprio sistema social.
Se nossas considerações sobre a solução entre os limites
do sistema e a seleção norm ativa da estrutura estiverem cor­
retas, então poder-se-ia supor que ao longo do desenvolvi­
m ento social impor-se-iam condições especiais ao direito atra­

142
vés da c r^ c e n te necessidade de lim ites múltiplos e unívocos
para sistema. Realmente, o desenvolvim ento do direito esteve
vinculado a tais limites, possibilitando concomitantem ente
que eles fossem fixados de form a unívoca. Isso esclarece a
im portância que os lim ites territoriais, enquanto símbolos
dos lim ites do sistema, tiveram no desenvolvim ento do direi­
to. É bem verdade que as distribuições territoriais do espaço
podem ser encontradas até mesmo nas sociedades mais sim­
ples e não surgiram apenas como conseqüência da dom inação
p o lític a .178 Enquanto, porém, a sociedade estava estruturada
como sistema de parentesco, seus lim ites não podiam ser
referidos univocamente a um território. A s relações de paren­
tesco eram instáveis, pois diluíam-se no distante e no inde­
terminado, e nisso se baseavam im portantes mecanismos de
estabilização, por exemplo a possibilidade de solução de con­
flitos através da secessão ou do ativam ento de relações mais
longínquas de parentesco.177 No âm bito de lim ites territo­
riais, ao contrário se pôde cultivar e especializar o direito
sem se considerar um ambiente de nômades, montanheses,
bárbaros ou outras culturas estranhas, com respeito às quais
esse direito não podia nem devia v ig e r .178 Sendo assim os
lim ites territoriais são uma condição prévia imprescindível,
mais por sua relevância simbólica que física para a seleção
de um âm bito melhor delim itado de expectativas, para o de­
senvolvim ento de formas jurídicas mais elevadas e sua coor­
denação com as instâncias decisórias e os poderes sanciona-
dores. Só dentro de limites territoriais seria possível estender
a muitas esferas da vida a norm atividade das expectativas e
com isso a disjunção entre o com portam ento conforme e o
divergente, inclusive form ulando-a detalh adam en te.179 Até
mesmo atualmente, quando há m uito já desapareceram as
causas para tanto, e quando as sociedades não mais podem
ser delim itadas através de lim ites territoriais, mesmo as
normas jurídicas mais elevadas só vigem no âm bito de tais
limites.
Somente dentro dos limites assegurados do sistema tam ­
bém é possível separar expectativas cognitivas e norm ativas
e, independentemente das situações, predispor o processa­
m ento das expectativas norm ativas segundo a disjunção en­
tre o com portam ento conforme e o divergente. Enquanto que
internam ente já existem normas estabelecidas, e também já
está esclarecido em que situações se deve ter um comporta-

143
jfiento assimilador ou não, com respeito a o raeio am biente se
ffiantém um estilo concreto de comportamento, mesclado de
^ p e c to s norm ativos e cognitivos, principalm ente no que diz
respeito à omissão de intrusões e perturbações. A autoafir-
inação é ao mesmo tempo norma para o m eio am biente e
regra para a assimilação. Esse princípio arcaico da não in­
tervenção entre fam ílias, hordas e tribos, porém, tem que ser
estendido, com a crescente necessidade de regulam entação de
diferenciações sociais, também crescentes, a lim ites “ extra-
políticos” cada vez m ais distantes, aumentando assim o âm-
pito dentro do qual não se pode diferenciar entre as expec­
tativas norm ativas e as cognitivas. Essa diferenciação, atra­
vés da qual o direito surge com o um a conquista cultural
autônoma, pressupõe a proteção através de lim ites do siste-
jna, depende da crescente diferenciação do sistema e com ela
$e desenvolve. Apenas em sociedades especialm ente amplas e
diferenciadas é que podemos esperar normas jurídicas ela­
boradas, necessidades morais apuradas e princípios m ais abs­
tratos de orientação religiosa. Quando as fronteiras externas
não são suficientes para delim itar as necessidades de norma-
tização, surge o “ direito internacional” — um sintom a de
que a sociedade, principalm ente devido a casamentos e ao
comércio assumiu um âm bito m aior que o possível de ser
realizado politicam ente.
As mais im portantes conclusões da nossa análise das
funções das estruturas norm ativas se referem, talvez, à rela­
ção en tre estruturas e tem po. O conceito usual de estrutura
resolve e disfarça esse problema através de definições — ele
define a estrutura com o constância de padrões com portam en­
tais. O problem a do tempo, então, só pode ser colocado como
um problema da mudança de estruturas (con stantes), ou
seja na form a de tuna imprecisão conceituai, ou até mesmo
com o uma co n tra d ictio in adjecto. Como podemos ver no tra ­
tam ento do d ireito positivo, isso não é su ficien te.180
Se considerarmos, no entanto, a função e a seletividade
das estruturas, conquistaremos um a ótica n a qual a relação
entre estrutura e tem po pode ser concebida com o variável,
e isso no sentido de evolução. A possibilidade de diferenciação
entre futuro e passado e o grau de abertura do futu ro que
uma sociedade pode sustentar, discutir e institucionalizar
dependem do grau de incerteza que suas estruturas podem
absorver. Já tínham os apontado para isso no início desse

144
item. A gora vemos de form a mais clara como e quando um
futuro aberto, incerto, pode ser absorvido na disjunção dos
aspectos morais na distinção entre o com portamento confor­
me e o divergente, transformando-se assim em base compor-
tam ental atual.
Se só existisse a possibilidade de relação cognitiva e
assimiladora com o futuro, então um futuro im previsível e
variado seria uma perspectiva insuportável; seria necessário
estar preparado para “ tudo possível” . A colocação cogniti­
va é portanto típica para a verdade estanque e depende da
continuidade da experiência passada. Só muito mais tarde,
e apenas no campo especial da ciência, que ela é institucio­
nalizada de form a puramente hipotética e confrontada com
um futuro em aberto. A partir de expectativas normativas,
no entanto, pode-se visualizar um futuro em aberto, ainda
não decidido, e com isso também o livre com portam ento dos
outros, pois isso corresponde à possibilidade de classificar um
com portam ento inesperado como divergente, sendo que essa
perspectiva desde iá oferece a segurança necessária. O futuro
ocorre não por determinação, mas pela disjunção moral, é
interpretado não como simples continuidade do passado, mas
como alternativa que apresenta duas possibilidades para as
quais desde já se pode estar preparado. Em vez da contin­
gência, pode-se então voltar para o problema “ mais simples”
do com portam ento divergente.
Torna-se então compreensível que seja a perspectiva
norm ativa, e não a cognitiva, que perm ite encontrar e ins­
titucionalizar aquelas seguranças que possibilitam conviver
com um a produção superabundante de futuras possibilidades
e surpresas contingentes. Até os dias de hoje o direito e a
política sempre sofreram os riscos da evolução social. Nisso
não tem importância, em termos práticos, se o futuro “ na
realidade” é determ inado ou não. De qualquer form a uma
tal determ inação permanece irreconhecível (pois o tempo
corre demasiadamente rápido para que se possa explorar o
passado o quanto seria necessário). Por isso a estrutura da
sociedade tem que estar preparada para possibilidades em
aberto da ação, e até agora ela institucionalizou essa orien­
tação predom inantem ente de form a normativa.
Essa necessidade de abertura do futuro se fortalece na
medida em que a sociedade altera suas disposições no sentido
da diferenciação funcional. Isso significa que os diversos sis­

145
temas parciais são orientados para funções específicas e pro­
duzem, em cada direção funcional abstrata, mais possibili­
dades de experimentação e de ação que seria possível realizar
na sociedade em sua totalidade — por exem plo: o sistema
político gera mais poder do que seria com patível com a auto­
nom ia de outras esferas da sociedade; 181 o am or projeta um
n ível de exigências que não é com patível com a profissão; a
ciência produz verdades e possibilidades insustentáveis poli­
ticam ente; a fa m ília tem que assegurar-se contra flutuações
econômicas, etc. Um a sociedade assim ordenada gera, já por
seu princípio estrutural da diferenciação funcional, um ex­
cesso constante de possibilidades que não podem ser todas
realizadas. E la experim entará o tempo, então, com o um fu­
turo em aberto, tendo que estar preparada para surpresas.
Tom a-se duvidoso se sob tais condições ainda é possível fe ­
char o futuro através da disjunção m oral do com portam ento
conform e do divergente. Esse problema, tentarem os esclare­
cer nos capítulas quatro e cinco, no contexto do fenômeno
do direito positivo e sua função.
Com isso já insinuamos que um projeto norm ativo do
futuro tem suas lim itações para a captação da complexidade.
Elas residem principalm ente na classificação sumária do
com portam ento frustrante com o divergente — exatam ente
no mecanismo que prom ete a segurança. Com isso é obscure-
cido aquilo que os gregos já sabiam antes da descoberta éti­
ca: que o direito se encontra a si próprio durante a disputa.
Com isso contesta-se o futuro aos estranhos. Nega-se, a 'priori,
a legitim idade da inovação, mesmo que em muitos casos o
novo possa parecer com o simples desvio do já existente. Um a
sociedade que se altera rapidamente, com um a grande neces­
sidade previsível de inovações, não pode dar-se ao luxo de
julgam entos tão sumários, sem pelo menos institucionalizar
certos controles. Ela tem que form ar mecanismos que passam
descobrir, tam bém no com portam ento divergente, a chance
de novas estruturas, ou seja estruturas que não se deixam
enganar pela aparência ilegal ou até im oral do novo, estando
em condições de absorvê-lo e assimilá-lo sem in dignar-se.182
Tais mecanismos necessitam esquematizações mais com plica­
das e abstratas para absorção e assimilação de informações,
que a simples disjunção m oral não é capaz de-oferecer. Elas
têm que ter lu gar também para a norm atividade das expec­
tativas contrárias à norma, para as frustrações dos crim ino­

146

I
sos. Além disso elas têm qué ser com patíveis com os meca­
nismos certam ente necessários à projeção norm ativa e ao
processamento de frustrações. A sociedade terá, em outras
palavras, que m anter e com binar de form a mais racional as
duas estratégias básicas de processamento de frustrações de
expectativas: a assimilação e a não assimilação.
U m a teoria dos mecanismos elem entares da form ação do
direito é suficiente para fundam entar essas indagações, mas
não é capaa de respondê-las. Já a explicação mais detalhada
da colocação dessas indagações e principalm ente a percepção
de soluções que façam sentido exige a inclusão de outras
premissas sobre aquelas estruturas sistemáticas em cujo con­
texto o direito deve v ig e r .183 U m a ta l opção por premissas
complementares pode, enquanto opção teórica, ser indeter­
minada, dependendo do tipo de sistema social pelo qual cada
um se interessa. Poder-se-ia pesquisar o direito da Siemens,
da Ordem dos Dominicanos, da fa m ília Kennedy, etc., como
a totalidade das expectativas com portamentais congruente­
m ente generalizadas em cada um desses sistem as.184 O que
interessa em termos centrais, porém, é o direito no plano da
totalidade social, ou seja da sociedade institucionalizada
enquanto sistema social. Somente na própria sociedade é que
a diferenciação do direito como um a estrutura específica de
expectativas ocorre com um a envergadura significativa. Só
a sociedade desenvolve para essa função da generalização
congruente de estruturas norm ativas de expectativas meca­
nismos altam ente especializados, e mesmo isso apenas ao
correr de um longo desenvolvim ento pleno de retrocessos.
A sociologia do direito não perde m uito se concentrar-se no
direito da sociedade, deixando a pesquisa de outras formações
jurídicas em sistemas parciais da sociedade para outras so-
ciologias especiais, como a sociologia da fam ília e a sociologia
da o rga n iza çã o .185

147
NO TAS DO 2.° CAPITU LO

1 Sobre o ponto de partida para urna sociologia do direito


Nicholas S. T IM M A S H E F F (A n in tro d u c tio n to th e sociology o f law.
Cam bridgeíM ass., 1939, p. 68) afirm a: “ ‘ought to be’ is a primary
irreductible content of consciousness”. Ou então, em uma form ula­
ção de simplicidade insuperável: “Norms here means, obviuosly,
w hat people ought to do.” (B O H A N N A N , Paul. S ocia l a n th ro p o lo g y .
Nova Iorque, 1963, p. 284).
2 A linguagem e as definições diferem. Cf. p. ex.: VO N
JH E R IN G , Rudolf. D e r Zw eck im R e ch t. Leipzig, 1923. SUM M ER,
W illiam G. Folkw ays. Boston, 1906. T õ N N IE S , Ferdinand. D ie S itte.
Frankfurt, 1909. W E IG E L IN , Ernst, S itte , R e c h t und M o ra l. Berlim/
Leipzig, 1919. W EBER, op. cit., 1960, p. 63 ss. TIM A SH E FF, op. cit.,
1939, p. 135 ss. G E IG E R , op. cit., 1964, p. 125 ss. e 169 ss. SEGERSTEDT,
Torgny. G e s e lls ch a ftlich e H e rrs c h a ft ais soziologisches K o n z e p t.
Neuwied/Berlim, 1967. K Õ N IG , René. Das Recht im Zusam m enhang
der sozialen Nomensystem. S O R O K IN , Pitirim A. Organissirte Gruppe
(Institution) und Rechtsnormen. Os dois últimos em HIRSCH /
R E H B IN D E R , op. cit.
s Cf.: R A D C L IF F E -B R O W N , Alfred R. Primitive law. E n c y c lo -
pedia o f th e socia l sciences, vol. IX , Nova Iorque, 1S33, p. 202-206.
G E IG E R , op. cit., 1964, p. 125 ss. TR APPE, Paul. Z u r S itu a tio n der
R ech tssoziologie. Tübingen, 1968. PO IR IE R , Jean. Introduction à
l^thnologie de 1’appareil juridique. Em: Idem, E th n o lo g ie générale.
Parífe, 1968. Naturalm ente os etnólogos se defenderam contra essas
conseqüências. Ver, p. ex.: H OEBEL, E. Adamson. T h e law o f p r i­
m itiv e m an. Cambridge/Mass., 1954, p. 18 ss. P O P IS IL , Leopold.
K a p a u k u papuans and th e ir law. Y ale University Publications in
Anthropology, n.° 54, 1958. M AIR , Lucy. P r im itiv e g o v e rn m e n t. H a r-
mondsworth, 1962, p. 35 ss. G L U C K M A N , Max. T h e ju d ic ia l process
a m on g th e barotse o f N o th e rn Rhodesiu. Manchester, 1S55, p. 163 ss.
e 224 ss. Idem. A frican jurisprudence. A d v a n ce m e n t o f science, n.°
18, 1962, p. 439-454. Idem. T h e ideas in barotse ju ris p ru d e n ce . New
Haven/Londres, 1965. V er ainda NADEL, Sigfried F. Reason and
unreason in african law. Á fric a , n.° 2(J, 1956, p. 160-173.
4 A caracterização como teoria do direito puramente psico­
lógica foi, por exemplo, levantada pura o teórico russo Petrazycki,
atribuindo-lhe a incapacidade de captar o campo propriamente

148
jurídico. Cf.: P E T R A Z Y C K I, Leon. ü b e r die M o tiv e des H andelns
und ü b e r das W esen der M o ra l u n d des R e ch ts . Berlim, 1907. Idem.
Law and fn ora lity . Cambridge/Mass., 1955. Nesse contexto cf. B A U M ,
K a rl B. L e o n P e tra zy ck i und seine S ch ü le r. Berlim , 1967. U m outro
exemplo seria o de STOOP. Adrian. A nalyse de la n o tio n du d ro it.
H aarlem , 1927. Especialmente problemáticas são as tentativas de
construção de correlações entre impulsos psíquicos e instituições
jurídicas, como por exemplo em B IE N E N F E LD , Franz R. Prolegom ena
to a psychoanalysis of law and justice. C a lifó rn ia Law R eview ,
n .° 53, 1965.
5 Argum entando nesse sentido temos, por exemplo: H O M AN S,
G eorge C. B rin gin g men back in. A m e ric a n s o cio lo g ica l review ,
n .° 29, 1964. A LBER T, Hans. Erwerbsprinzip und Sozialstruktur.
J a h rb u ch f ü r Sozialw issenschaft, n.° 19, 1968. M A L E W S K I, Andrzej.
V e rh a lte n u n d In te ra k tio n . Tübingen, 1967. H U M M E L, H ans J. e
OPP, K arl-D ieter. D ie R e d u z ie rtb a rk e it v o n S o zio lo g ie a u f P s y c h o -
logie. Braunschweig, 1971.
6 Cf.: M EAD , George H. M in d , s e lf and society f r o m th e
s ta n d p o in t o f a socia l b eh a viorist. Chicago, 1934. Y IN G E R , J. Milton.
Research implications of a field view of personality. A m e ric a n
jo u r n a l o f sociology , n.° 68, 1963, PA R SO N S, Talcott. Leveis of o r-
ganization and the mediation o f social interaction. S o c io lo g ic a l
in q u iry , 1964. Idem. The position of identity in the general theory
of action. Em G O R D O N , Chad e G E R G E N , Kenneth J. T h e self in
socia l in te ra c tio n . Nova Iorque, 1968. U m a aproxim ação à teoria
reducionista foi recentemente form ulada por Parsons no contexto
de sua teoria geral de sistemas de ação. V er PA R SO N S, Talcott. Some
problems of general theory in sociology. Em M C K IN N E Y , John C. e
T IR Y A K IA N , Edward A. T h e o re tic a l sociology. Nova Iorque, 1970.
7 Essa utilização da palavra “elem entar” é encontrada n a etno­
logia francesa, a partir de D U R K H E IM , Emile. Les fo rm e s é lé m e n -
ta ires âe la v ie religieuse. Paris, 1912.
8 Cf. H O M AN S, George C. S o cia l beh a vior. Nova Iorque, 1961.
o Interessantes contribuições p ara a questão da contingência e
da motivação podem ser encontradas em OLDS, James. T h e g ro w th
and s tru c tu re o f m otives. Glencoe/Ill., 1956.
10 Aqui já se pode inserir um a Interpretação em termos de
sociologia do direito. A função, a estabilidade e a dependência de
legitimação de um a instituição jurídica com a propriedade_ não
podem ser vistas apenas do ângulo da economia, e também não só
do da injustiça e da desigualdade. Elas dependem essencialmente
da riqueza de alternativas e da fantasia m odificadora de um a so­
ciedade, da mobilização da comunicação, da facilidade do inter­
câmbio de perspectivas e da troca de papéis, do acesso, em termos
de experiência e então tam bém real, às possibilidade dos outros, ou
seja, de quem, em quais situações, funciona como a lte r ego.
11 Cf. M A C K A Y , Donald M. The inform ational analysis o f ques-
tions and commands. Em C H E R R Y, Colin. In fo r m a tio n T h eory .
Londres, 1961.
12 vista mais detalhadam ente, a contingência simples se evi­
dencia como um estado de coisas já ordenado. A atualização da

149
experiência esperada depende não só de mim mesmo, mas também
de que o mundo coloque essa possibilidade à minha disposição e não
a modifique até que eu a alcance. OLDS (Op. cit.) já a designa
como contingência dupla, considerando a contingência social apenas
um caso secundário. Seguimos aqui a terminologia de PAR SO N S. Cf.
PARSO NS/SH ILLS, op. cit. Num a form ulação posterior: PAR SO NS.
Talcott. Interaction. Social interaction. In te rn a tio n a l encycloped ia
o f th e social sciences, vol. 7, 1968.
1S A teoria da complementaridade de Parsons (cf. as indicações
da nota 21, do cap. I ) abandona esse aspecto rápido demais, não
fornecendo assim base suficiente para uma teoria da norma. O
motivo disso parece residir em uma concepção em si pré-sociológica
do ator (no estilo de H obbes), como um indivíduo que maximiza
a satisfação de seus interesses e por isso é sensível a sanções internas
ou externas. P a ra a crítica desse ponto ver R ITSE R T, Jürgen.
Substratbegriffe in der Theorie des sozialen Handelns. S oziale W elt,
n.? 19, 1968. P ara uma exposição mais detalhada c. PA R SO N S, Talcott
e BALES, Robert F. F a m ily , socia liza tion and in te ra c tio n process.
Glencoe/íll., 1955.
" Cf. para a questão do conflito: SC H E LLIN G , Thom as C. Th e
stra tegy o f c o n flic t. Cambridge/Mass., 1960. SPIE G E L, John P. The
resolution of role conflict w ithin the family. P sy ch ia try , n.° 20, 1957.
SCHEFF, Thomas. A theory of social coordination applicable to
m ixed-m otive-gam es. S o cio m e try , n.° 32, 1967.
Cf.: L A IN G , Ronald D.; P H IL L IP S O N , H erbert e LEE, A.
Russel. In te rp e rs o n a l p e rc e p tio n . Londres, 1966. B LU M E R , Herbert.
Psychological import o f the hum an group. Em SH ER IF, M uzafer e
W ILSO N , M. O. G ro u p re la tio n s a t th e crossroaãs. Nova Iorque, 1953.
L A IN G , Ronald D. P h ã n o m e n o lo g ie der E rfa h ru n g . Frankfurt, 1969.
M AUCO R PS, Pau l-H . e BASSO UL, René. E m p a th ies et connaissance
d’a u tru i. Paris, 1960. Idem. Jeux de mirois et sociologie de la co-
naissance d ’autrui. Cahiers in te rn a tio n a u x de sociologie, n.° 32, 1962.
M A ISO N N E U V E , Jean. P s y ch osociolog ie des a ffin ité s . Paris, 1966.
SCHEFF, Thomas J. Toward a sociological theory of consensus.
A m e rica n s o cio lo g ica l review , n .° 32, 1967. G A L T U N G , op. cit., 1959.
Ver também, apesar de restrições ao seu conceito de expectativa,
W EBER, Max. Über einige Kategorien der verstehenden Soziologie.
Em G esa m m elte A u fstã tze zu r W issenschaftslehre. Tübingen, 1968.
3.a ed.
Cf. A U B E R T, Vilhelm. E lem en ts o f sociology. Nova Iorque.
1967.
17 Cf. L A IN G et al., op. cit., e SCHEFF, Consensus, op. cit.
IS Isso pode resultar de um a auto-idealização através dos olhos
dos outros, mas também pode legitimar a agressividade necessária
para a resolução dos problemas próprios, na form a de um a “inim i­
zade inocente”.
111 A esse respeito podemos encontrar hipóteses notáveis em
H AR VEY, O. J.; SCH RODER, H arold M. e H U N T, David E. C o n -
ce p tu a l systems and p e rs o n a lity o rg a n iza tion . Nova Iorque/Londres,
1961.
Ver também o item 4 abaixo.

150
- 1 Essa distinção permite compreender também que as socie­
dades simples podem possuir um direito que se satisfaça com um
pequeno grau de segurança através de sanções e certeza quanto à
imposição. Cf. R A D C L IF F E -B R O W N , Alfred R. T h e andam an is-
landers. Cambridge, 1922.
Cf. a distinção entre “segurança de orientação” e “segurança
de realização” em G E IG E R , op. cit.
- :{ A form a aparente desse processo de contornar, modificar ou
diluir foi freqüentemente observada, por exemplo: TUR NER , Ralph H.
The navy disbursing officer as a bureaucrat. A m e ric a ii s ociolog ica l
review , n.° 12, 1947. B E N SM A N , Joseph e GERVER, Israel. Crime
and punishment in the factory. A m e ric a n so cio lo g ica l revieio, n.° 28,
1963. STRAUSS, Anselm et al. The hospital and its negotiated order.
Em FR EID SO N, Eliot. Th e h o s p ita l in m o d e m society. Nova Iorque,
1S63. SPIT T LE R , Gerd. N o rm und S a jik tio n . OlteníFreiburg, 1967.
- 1 Tais processos são caracterizados como “absorção de in­
certeza” em M ARCH , Janes G. e SIM O N , Herbert A. O rganizations,
Nova Iorque/Londres, 1958, p. 164 ss.
Por isso fracassa a tentativa de definir o conceito de norma
por um conceito supostamente fundam ental do imperativo, como
foi observado em G E IG E R , op. cit., p. 64 s. G erar parcialmente
estruturas normativas através de ordens só é possível através de
complicadas condições.
Essas questões serão tratadas a seguir. Antecipando, men­
cionemos apenas que os temas do direito natural e da positividade
do direito só são tratados adequadam ente se se localiza em todo
o direito uma seleção. O desenvolvimento do direito da sociedade,
assim, pode ser descrito como o crescimento da consciência da seleção
estrutural, e como o crescimento da capacidade de controle da
variação estrutural.
- 7 A esse respeito, são interessantes as observações sobre a
experiência em G AD AM ER , H ans-G eorg. W a h rh e it und M eth od e.
Tübingen, 1360, p. 329 ss.
- s Para criar uma com parabilidade entre essa concepção so­
cio ló g ica e a concepção ética tradicional, formulemos de outra
m aneira: as estruturas se referenciam a eventos contingentes, e.
no âmbito do comportamento humano, a uma ação que poderia ser
encam inhada em outra direção. A especificidade da concepção ética
(ver p. ex. ARISTÓ TELES, N ik o m a ch is ch e E th ik III, 1-5 e V, 10>
consiste em que esse poder agir diferentemente é concebido como
liberdade de decisão individual interpretada a partir da estrutura,
de tal form a que um uso da liberdade contrária à estrutura (apesar
dela ser liberdade!) surge como um a culpa censurável.
Deixaremos de lado as igualm ente importantes, funcional­
mente equivalentes estratégias, em principio psíquicas, da não per­
cepção e do deslocamento — trataremos apenas das frustrações
percebidas.
:l(l Essa terminologia corresponde a uma sugestão de G A L T U N G ,
op. cit., 1959. Concepções semelhantes encontramos em AUBERT,
Vilhelm e M ESSING ER , Scheldon L. The criminal and the sick!
In q u iry , n.° 1, 1958.

151
31 Um a visão geral sobre a confusa e múltipla terminologia da
sociologia no contexto do conceito da norma é fornecido por L A U T -
M AN N . Rüdiger. W e rt u n d N o rm . Colônia e Opladen, 1969. Cf. tam ­
bém G IB B S , Jack P. Norms. T h e a m e rica n jo u r n a l o f sociology,
n.° 70, 1965.
32 Esse conceito de norm a se distingue claramente daquele que
G E IG E R julgava necessário por razões teórico-científicas e meto­
dológicas (Cf. G E IG E R , op. cit., p. 65 ss. e 205 ss.). P a ra G eiger as
normas seriam apenas gradualm ente vinculativas; na m edida em
que a alternativa fosse realizada agir-se-ia de modo conforme, ou
ocorreria a sanção. U m a transgressão à norm a seria impensável,
pois a norma inclui a alternativa do comportamento sujeito à sanção,
e o desvio que não sofre sanção é captado apenas como um a re­
dução do grau de vinculação da norma.
33 Até onde eu vejo, inexiste um a tentativa de analisar socio­
logicamente o dever ser. O que existe são tentativas de definir o
conceito sociológico de norm a como uma regularidade meramente
estatística, ou então o sentido do “dever ser” foi absorvido, sem
maiores esclarecimentos, da linguagem quotidiana, definindo-se as
normas através da concepção do dever ser ao nível fático. Ver a
nota 1, no capítulo II. P o r outro lado os juristas discutiram deta­
lhadam ente a distinção entre o ser e o dever ser, sem porém
chegarem a resultados unívocos. Ver p. ex. SC H N E ID E R , Peter. Sein
und S o lle n im E rfa h ru n g s b e re ich des R ech ts. Wiesbaden, 1970.
34 Ver a esse respeito as pesquisas psicológicas sobre a esta­
bilização de expectativas, as quais demonstram que expectativas
absolutas, exclusivas, são muito mais instáveis que aquelas que já
prevêem frustrações eventuais. Cf. p. ex.: H U M P H R E Y S , Lloyd G.
The acquisition and extinction of verbal expectations in a situation
analogous to conditioning. J o u rn a l o f e x p e rim e n ta l p sy ch ology , n.° 25,
1939. IR W IN , F. W . The realism of expectations. P s y çh o lo g ica l
review , n.° 51, 1944. JE N K IN S, W illiam O. e S T A N L E Y , Julian C.
Partial reiforcement. P s y c h o lo g ic a l b u lle tin , n .° 47, 1950.
35 Cf.: C AVAN , Sheri. L iq u o r Ucense. Chicago, 1966. FELIPE,
Nancy Jo e SOM M ER, Robert. Invasions of personal space. S o cia l
problem s, n.° 14, 1966, SO M M ER, Robert. Sociofugal space. T h e a m e ­
rica n jo u r n a l o f sociology , n.° 72, 1967. ROOS, Ph ilip D. Jurisdiction.
H u fíia n rela tion s, n.° 21, 1968. SOM M ER, Robert. P e rs o n a l space:
th e b e h a v io ra l basis o f design. Engelwood Cliffs, 1969.
“ T h e p re s e n t w rite r fo u n d in m e n ta l h osp ita is th a t those
obsessive p sychotics w h o a re ca ra c te ris tic a lly fa n a tic , c o n tra ry to
p o p u la r 'assum ption, ra re ly select o rig in a l data b u t sim p ly take'
‘to o lite ra lty th e m o re g e n e ra lly a ccep ted o rth o d o x ie s in th e c u ltu re .”
NETT, Roger. Conform ity-deviation and the social control concept.
E th ics, n.° 64, 1952, p. 44.
37 Isso porque o potencial consciente do homem, é também
seu potencial para a negação explícita, são reduzidos, tendo que
ser resguardados p ara temas realmente críticos.
38 CL: D A V IS , Fred. Deviance disavowal. S o cia l p rob lem s, n.° 9,
1861. G O FFM A N , Erving. S tig m a . Frankfurt, 1967.

152
39 Dessa íorma, a formação' de normas é freqüentemente ex­
plicada geneticamente. Ver p. ex. G E IG E R , op. cit., p. 95 s.
40 Cf.: SC H W A R TZ, Charlotte G. Perspectives on deviance.
P s y ch ia try , n.° 20, 1957. D A V IS, Fred. Op. cit. H ABER, Lawrence D.
e SM ITH , Richard T. Disability an deviance. A m e rica n s o cio lo g ica l
review , n.° 36, 1971.
41 Cf. G O FFM A N , Erving. B e h a v io r in p u b lic places. Nova
Iorque/Londres, 1963.
4- Ver: G A R F IN K E L , Harold. A conception of, and experiments
with “trust” as a condition of stable concerted actions. Em H AR VEY,
O. J. M o tiv a tio n and social in te ra c tio n . Nova Iorque, 1963. Idem.
Studies of the routine grounds of everyday activities. S o cia l p r o ­
blem s, n.° 11, 1964.
43 O fato de que nos “sintomas” de doença mental, supostamente
comprovados medicamente, podem ser localizadas as imagens re­
fletidas do comportamento norm al foi destacado principalmente
por G offm an. Ver: G O FFM A N , Erving. Asylum s. Chicago, 1962. Idem.
In te r a c tio n ritu a l. Chicago, 1366, p. 137-148. P a ra a caracterização
da diferença com respeito à perspectiva norm ativa jurídica ver ainda
A U B E R T , Vilhelm. Legal justice and m ental health. P sy ch ia try ,
n.° 21, 1958.
44 P a ra uma visão geral sobre as pesquisas quanto às condições
sociais para o surgimento de doenças psiquiátricas ver B E R N D T,
Heide. Zur Sociogenese psychiatrischer Erkrankungen. Soziale W elt,
n.° 19, 1968. Ver ainda PETRAS, John W. e CURTIS, James E.
The current literature on social class and m ental disease in America.
B eh a viora l science, n.° 13, 1968. Sobre a crescente importância da
explicação psiquiátrica do comportamento divergente encontramos
interessantes indicações em D O H R E N W E N D , Bruce P. e C H IN -
SC H O N G , Edwin. Social status and attitudes toward psychological
disorder. A m e ric a n socio lo g ica l review , n.° 32, 1967. P ara o ambiente
das organizações ver B LAU , Peter M. e SCOTT, W . Richard. F o rm a l
orga n iza tion s. São Francisco, 1962.
43 Cf. a introdução desse capítulo.
46 Cf. D ENTLER , Robert A. e E R IK S O N , K a i T. The functions of
deviance in groups. S o cia l p rob lem s, n.° 7, 1959. U m exemplo opor­
tuno pode ser encontrado em SP IT T LE R , Gerd. N o rm u n S a k tion ,
op. cit., p. 115 s. P a ra a absorção nas reações de outros papéis
divergentes implícitos ver SC H W A R T Z, Michael; FEARN, Gordon
F. N. e STR Y K E R , Scheldon. A note on self conception and the
emotionally disturbed role. S o cio m e try , n.° 29, 1966.
47 As divergências assim estabilizadas são tratadas em L E -
M ERT, Edwin M. H u m a n deviance, socia l p rob lem s and social c o n tro l.
Engelwood Clifs, 1967.
4s sobre a individualização da imposição como característica
de “códigos inform ais” ver S H IB U T A N I, Tamotsu. S ociety and p e r-
sonality. Engelwood Cliffs, 1961, p. 428.
49 Cf. SIM M O NS, J. L. Public stereotypes of deviants. S o cia l
P rob lem s, n.° 13, 1965.
30 As condições para um a tal capacidade de absorção são
criadas, por exemplo, por teorias científicas ou por modelos de

153
planejamento, que consistem de “variáveis” e fornecem um a es-
quematização para a experiência, caracterizando prognoses e também
frustrações.
51 V er nota 34 acima.
52 Cf. K U H N , Thom as S. D ie S tru k tu r w iss e n s ch a ftlich e r R e v o -
lu tio n e n . Frankfurt, 1967.
63 A im portância dessa construção para as expectativas foi
descoberta por G A L T U N G , op. cit., 1959, p. 220 ss.
54 Cf. D eu tsch e R ic h te rz e itu n g , 1968, p. 7 e as observações de
ECK STEIN, K arlfriedrich. Ibjdem , p. 179.
55 Ver também as pesquisas sobre frustrações de expectativas
cognitivas, as quais teremos que deixar de lado. Cf. p. ex.:
CAR LSM ITH , J. M errill e AR O N SO N , Elliot. Some hedonic conse-
quences of the confirm ation and disconfirmation o f expectancies.
T h e jo u rn a l o f a b n o rm a l and socia l p sychology, n.° 66, 1963.
K EISNER , Robert H. Affective reactions to expectancy disconfir­
mation under public and private conditions. T h e jo u r n a l o f p e rs o -
n a lity and socia l p sychology, n.° 11, 1969.
56 Cf. p. ex.: G O U L D N E R , Alvin. P a tte rn s o f in d u s tria l b u re a u -
cracy. Glencoe/Ill., 1954 B L A U , Peter M. T h e d ynam ics o f b u re a u -
cracy. Chicago, 1955. SY K E S, Gresham. The corruption of authority
and rehabilitation. S o cia l force s , n.° 34, 1956. B E N S M A N , Josephe e
GERVER, Israel. Crime and punisnment in the factory. A m e ric a n
and rehabilitation. S o cia l forces, n.° 34, 1956. B E N SM A N , Joseph e
GERVER, Israel. Crime and punishment in the factory. A m e rica n
s o cio lo g ica l review , n.° 28, 1S63. HARPER, Dean e EM M ERT, Frederick.
W ork behavior in a Service industry. S ocia l forces, n.° 42, 1963.
ZURCHER, Louis A. The sailor aboard ship. S ocia l forces, n.° 43, 1965.
57 V er p. ex. E D E LM A N , M urray. T h e symbolic uses of p o litics .
Urbana/Ill., 1964. P O P IT Z , Heinrich. Über die pr ü v e n tiv w irk u n g des
Nichtw issens. Tübingen, 1968.
58 “O fato de que o psiquiatra não tem nenhum contato com
o paciente prova que algo não está certo com o paciente — mas não
que algo não está certo com o psiquiatra.” L A IN G , Ronald D.
P h à n o m e n o lo g ie der E rfa h ru n g . Frankfurt, 1969.
69 Ver p. ex.: K A U F M A N N , Felix. M e th o ã e n le h rs der S o z ia l-
w issçnschaften. Viena, 1936. K ELSEN , Hans. V e rg e ltu n g und K a u -
salità t. Haia, 1941. H EID ER , Fritz. Social perception and pheno-
m enal causality. P s y ch o lo g ica l revieio, n.° 51, 1944. H AR T, H. L. A.
The ascription of responsability and rights. Em FLE W , Anthony.
Essays on lo g ic and laguage. Oxford, 1951. JONES, Edw ard E. e
D A V IS, K eith E. From acts to dispositions. Em B E R K O W IT Z ,
Leonard. A dvances in e x p e rim e n ta l social psychology. Nova Iorque,
1965. K E LLE Y , H arold H. A ttr ib u tio n th e o ry in socia l psychology.
Nebraska symposium on motivation, 1967. JONES, Edw ard E. et al.
A ttr ib u tio n : p e rc e iv in g th e causes o f beha vior. Nova Iorque, 1971.
F A U C O N E T, Paul. La respon sa bilité. Paris, 1928.
60 N a escola durkheim iana fala-se de um a “simbolização” da
norm a através do responsável pelo rompimento da norma. Cf.
FAUCO NET, op. cit., p. 247 SS.

154
61 A m onografia clássica sobre essa questão é: E V A N S -P R IT -
CHARD, E. E. W itc h c ra ft, oracles and m a g ie a m on g th e azanáe.
Oxford, 1937. Cf. ainda CLAUSEN, Lars. Behauptung der Magie.
In te rn a tio n a le s Ja h rb u ch f ü r R elig io n s s o zio lo g ie , n.° 5, 1969.
6ia P a ra as sociedades mais antigas ver FOSTER, George M.
Peasant societies and the image of limited good. A m e ric a n A n th r o -
p o lo g is t, n.° 67, 1965. U m exemplo atual é tratado em SU C H M A N ,
Edw ard A. A conceptual analysis o f the accident phenomenon.
S o cia l p rob lem s, n.° 8, 1961.
62 Cf. G IL L IN , J. p. Crime and punishm ent among the B aram a
River carib. A m e ric a n a n th ro p o lo g is t, n.° 36, 1934. DOLE, Gertrude E.
Sham anism and political control am ong the kuikuru. V ô lk e rk u n d liçh e
A b h a n d lu n g e n , n.° 1, 1964. Idem. Anarcy without chaos. Em S W A R T Z ,
M arc J.; T U R N E R , Victor W . e T U D E N , Artur. P o litic a l a n th ro p o lo g y .
Chicago, 1966. Cf. também G L U C K M A N , Max. A fr ic a n ju ris p ru d e n ce ,
op. cit.
63 U m bom exemplo nesse sentido foi o atraso do ultimato
austríaco à Sérbia, que desencadeou a prim eira guerra mundial.
64 Essa reação inicialmente é exposta como sendo um a livre
opção, mas isso é apenas um a abstração analítica. Antecipando
a discussão do próximo item, notemos já agora que no caso de
norm as institucionalizadas tais reações podem ser esperadas cogni­
tiva ou até mesmo normativamente. P a ra um detalhamento ver
B R Y S O N , Frederick R. T h e p o in t o f h o n o r in s ix te e n th -c e n tu ry
Ita ly . Nova Iorque, 1935.
65 Cf. SCOTT, M arvin B. e L Y M A N , Stanfòrd M. Accounts.
A m e ric a n s o cio lo g ica l review , n.° 33, 1968. Observações sobre des­
culpas em G O F F M A N , Erving. In te r a c tio n ritu a l, op. cit., p. 242 s.
se A isso se referem delitos conscientemente construídos em
duas fases. Eles consistem de um delito prévio e da omissão da
desculpa esperada, em si ocorrendo só após essa omissão. O prin ­
cipal exemplo disso são os encontrões.
67 Essa interpretação é especialmente difundida entre juristas
(ver p. ex. SCH REIBER, Rupert. D ie G e ltu n g v o n R e ch ts n o rm e n .
Berlim /Heidelberg/Nova Iorque, 1966), mas é defendida também
por sociólogos por razões mais metodológicas que teóricas: a sanção
é um comportamento facilmente constatável em termos empíricos.
Cf.: G E IG E R , op. cit. D A H R E N D O R F, R alf. H o m o sociologicus. Colô-
nia/Opladen, 1964. PO P IT Z, Heinrich. Soziale Normen. Europãisches
A rc h iv f ü r S oziolog ie n.° 2, 1961. SP IT T LE R , op. cit. S C H U M A N N ,
K a rl F. Z e ic h e n der U n fe ih e it. Freiburg, 1968. Como condensação de
diversas definições ver L A U T M A N N , Rüdiger. W e rt und N o rm .
Colônia/Opladen, 1969.
68 Nossa principal diferença com respeito à “teoria da sanção”
consiste em que não definimos as norm as através de um mecanismo
empírico, mas por um problema funcional, deixando em aberto
quais mecanismos funcionalmente equivalentes podem vir a solu­
cionar esse problema.
69 Cf. WEKLER, Hans-Joachim , ü b e r die Bedeutung von
Skandalen für die politische Bildung. H a m b u rg e r J a h rb u ch fü r
W irts ch a fts — und G e s e lls ch a fts p o litik , n.° 13, 1968.
70 Mesmo os juizes podem ser colocados na situação de uma
"opção pelo m artírio” ao defenderem normas importantes, mas im ­
populares. Cf. M U R P H Y , W alter F. Elem ents o f ju d ic ia l strategy.
Chicago/Londres, 1964, p. 197.
71 G O F F M A N , Erving. Op. cit., p. 255 ss.
No resto, a teoria das etapas apresenta as mesmas defi­
ciências que a tipologia de normas esboçada no inicio desse capí­
tulo: ela não encam inha uma teoria do processo de desenvolvimento
como um todo.
73 P ara uma delimitação desse conceito e dos esclarecimentos
a seguir, é necessário apontar três versões conceituais a serem
diferenciadas, apesar de suas semelhanças.
a) Os juristas compreendem a instituição em geral como um
complexo de normas, cuja relação interna fornece um apoio à
interpretação ou pode até mesmo ser considerada como um a fonte
do direito. Cf. p. ex. R O M AN O , Santi. L ’o r d in a m e n to g iu rid ico . Flo-
rença, 1945. H A U R IO U , Maurice. D ie T h e o rie der I n s t it u ii o n . Berlim,
1965. SCH NUR, Roman. In s t i t u t i o n u n d R e c h t. Darm stadt, 1968.
b ) Os sociólogos referem o conceito de instituição ao preenchi­
mento de necessidades antropológicas fundam entais que, devido à
abertura da relaçao do liomem com o mundo, não podem ser satis­
feitas na relação natural e têm que ser deslocadas para a relação
social. Cf. p. ex. SC H E LSK Y , Helmut. ü ber die Stabilitàt von In s-
titutionen, besonders Verfassungen. J a h rb u ch f ü r Sozialwissenschaft,,
n.° 3, 1952. G EH LEN , Arnold. U rv ie n s c h und S p ü tk u ltu r. Bonn, 1956.
Cf. ainda SC H E LSK Y , Helmut. Z u r T h eo rie der In s t it u t io n . D üs-
seldorf, 1970.
c) N a sociologia de Talcott P A R SO N S o conceito da institu­
cionalização é referenciado à necessidade específica de assegurar-se
as expectativas complementares através da interpenetração dos as­
pectos culturais, sociais e pessoais do sistema de ação. Os padrões
comportamentais normativos são objeto da institucionalização. Cf.
PARSONS, Talcott. T h e social system. Glencoe/Ill., 1951, p. 36. D i­
ferentemente dessas concepções, utilizaremos um a estrita separação
analítica entre mecanismos normatizadores e mecanismos insti-
tucionalizadores, pois só assim é possível elaborar-se a problemática
e a evolução da form ação do direito.
* 4 Cf. p. ex.: SIM M EL, Georg. Soziologie. Munique/Leipzig, 1922,
p. 32 ss. V IE R K A N D T , Alfred. Gesellschaftslehre. Stuttgart, 1928,
p. 405 ss. V O N W IESE, Leopold. System der A llg e m e in e n Soziologie
ais L e h re von den sozialen Prozessen und den sozialen G ebild en
der M enschen. Munique/Leipzig, 1933, p. 473 ss.
75 Ponderações semelhantes em S C H U M A N N , K a rl F. Zeich e n
der U n fr e ih e it. Freiburg, 1968, p. 53 s.
76 Cf. W E LZE L, Hans. A n den G re n z e n des Rechts. Colônia/
Opladen, 1965.
77 Essa é uma posição generalizada entre os sociólogos atuais.
P a ra um exemplo especial ver G E O R G O PO U LO S, Basil S. Normative
structure variables and organizational behavior. H u m a n relations.
n.° 18, 1965.

156
78 Cf. M ATZA, David. D e lin q u e n cy and d rift. Nova Iorque/
Londres/Sidnei, 1964, especialmente p. 50 ss.
79 “ T h e ‘th e y ’ co m m o n ly in v o k e d to d en ote th e u phold ers o f
som e so cia l p a tte rn are n e v e r q u ite as hom ogen eou s as th e term f
suggests; but, to th e in d iv id u a l, th e use o f ‘th ey ’ to rep resen t a
supposed u n ifo r m ity is a necessary c o n v e n ie n ce as a basis f o r be­
h a v io r ” H O LLA N D E R , E. P. Conformity, status and indiosyncrasy
credit. P s y ch o lo g ica l review , n.° 65, 1958.
so Essas afirmações estão bem fundam entadas por pesquisas
empíricas sobre a diferença entre expectativa institucional e opinião
fática. Cf. especialmente: SC H AN C K , R ichard L. A study o f a
c o v im u n u ty and its groups and in s titu tio n s con ceived as behaviors
o f ind ivid u a is. Psychological monographs, vol. 43, n.° 2, Princeton/
N.J., 1932. R O M M E TV E IT, R agnar. S o cia l n o rm s and roles. Oslo/
Mineapolis, 1955. Cf. ainda L A IN G , Ronald D. P h ã n o m e n e lo g ie d er
E rfa h ru n g < Op. cit., p. 69 ss.
81 Cf. introdução ao capítulo II.
82 Isso reside principalmenet no fato de que por razões da
disponibilidade experimental indagou-se predominantemente apenas
quanto às condições da conformidade ou do desvio na relação com
norm as grupais homogêneas, pesquisando além disso apenas opiniões
norm atizadas e não comportamentos normatizados.
83 Cf. a discussão desse problem a em G E IG E R , op. cit., p. 72 ss.
e S P IT T LE R , op. cit., p. 68 s.
84 Cf. p ara o caso de sistema parciais relativamente autônomos
SC H W A R T Z, Richard D. Social factors in the development of legal
control. T h e Y a le law jo u rn a l, n.° 63, 1954.
85 Cf. D e la d ivision du tra v a il social. Paris, 1902, p. 82.
86 Cf. G O F F M A N , Erving. T h e p re s e n ta tio n o f self in everyday
life . G arden City, 1959.
67 Cf.: GROSS, Edward e STONE, Gregory P. Embarassment
and the analysis of role requirements. T h e a m erica n jo u rn a l o f
sociology, n.° 70, 1964. K R A P P M A N N , Lothar. S oziologisch e D im e n -
sion en d er Id e n tità t. Stuttgart, 1971.
88 U m 'b o m exemplo para isso representam as normas inform ais
nas instituições legislativas que vinculam o representante até mesmo
contra sua liberdade de escolha juridicam ente garantida. V er por
exemplo W A H L K E , John C. et al. T h e le g is la tiv e system. Nova Iorque,
1962, p. 144. Ver também BAR B E R , James D. T h e lawmakers. Nova
Iorque/Londres, 1965, p. 160.
89 Cf. D U R K H E IM , Emile. Leçon s de sociolog ie physique des
m oeurs et du d roit. Paris, 1950, p. 206 ss. W E B E R , Max. R e ch ts s o zio -
logie. Neuwied, 1960, p. 105 ss. D A V Y , George. L a fo i ju ré e . Paris,
1822. W A R N O T T E , D. Les orig in e s sociologiqu es de V ob liga tion c o n -
tra ctu e lle . Bruxelas, 1927. ZAK SAS, Joseph. Les tra s fo rm a tio n s du
c o n tr a t e t le u r loi. Paris. 1939. P O S P IS IL , op. cit., p. 123 e 208 ss.
só Cf., n a falta de pesquisas empíricas suficientes, M A C A U LE Y ,
Stewart. Non-contractual relations in businesse behavior. A m e rica n
s o cio lo g ica l review , n.° 28, 1963.
ai W IL L M S , Bernard. Gesellschaftsvertrag und Rollentheorie.
J a h rb u ch f ü r R ech tssoziologie und R e c h ts th e o rie , n.° 1, 1970, p. 281:

157
o contrato é caracterizado como “uma imagem da liberdade que se
vincula por si mesma e cuja dimensão, além da obrigatoriedade,
também inclui a possibilidade de sua denúncia”.
92 Mesmo o direito romano não foi capaz de fazer com que
uma promessa puramente contratual se transformasse diretamente
em obrigação, possibilitando recursos jurídicos: nuda p a c tio o b li-
g a tio n e m n o n p a r i t (m as já : sed p a r it e x c e p t io n e m ) _ D 2, 14, 7, 4.
Necessitava-se da form a (m ágica) ou do desempenho real (visível
para terceiros enquanto gerador de obrigações) para criar uma
vinculação para com os outros. Só mais tarde e no contexto de tipos
fixos, é que foram excepcionalmente permitidos “contratos consen­
suais” (de compra, aluguel, sociedade e, unilateralmente, m an dato).
93 A institucionalização do contrtao puram ente consensual
pressupõe ainda outros desenvolvimentos processuais, com a desmon­
tagem da excução pessoal arcaica e a autonomia decisória com
possibilidades de controle da questão de fato em tribunal. Cf. para
o direito grego G E R N E T , Louis. D r o i t et société ãans la G r è c e a n -
cienne. Paris, 1955, p. 76 ss. P a ra o direito hindu ver R U B E N , W alter.
D ie gesellschaftliehe E n t m c k l u n g i m alten I n ã ie n . Berlim, 1968,
p. 144.
94 O conceito de grupo de referência obteve conotações con­
traditórias na discussão sociológica atual, principalmente por não se
considerar suficientemente a expectativa de expectativas como plano
orientador do comportamento. P a ra uma conceituação semelhante à
aqui usada ver: E ISE N ST A D T , S. N. Studies in reference group be­
havior. H u m a n rela tions, n.° 7, 1954, p. 191-216. Idem. Reference group
behauvior and social integration. A m e r i c a n sociological re v ie w , n.° 19,
1954. S H IB U T A N I, Tamotsu. Reference group as perspectives. T h e
a m erica n j o u r n a l o f sociology, n.° 60, 1955. K E M PE R , Theodore D.
Reference groups, socialization and achievement. A m e r ic a n so cio ­
logical review, n.° 33, 1968.
95 Em certa medida os comerciantes puderam impor um direito
próprio ou até uma justiça comercial própria, excluindo-se assim
do direito geral. P a ra um exemplo referente à China ver K T -T C H ’AO
Lean. La c o n c e p t io n de la loi et les théories des L é g i s t e i à la v e ille
des Ts’in. Pequim, 1926. Ver também V A N D ER SPR E N K E L, Sybille.
L e g a l in s titu tio n s in M a n c h u China. Londres, 1962, p. 80 ss.
»o Ver o item 8, capítulo IV, do segundo volume desse texto.
*i7 Cf. LU H M A N , Niklas. Reflexive Mechanismen. Soziale Welt,
n.° 17, 1966.
98 Um a tal “dupla institucionalização” ou reinstitucionalização
transform a-se em critério em si para o direito em B O H N N A N , Paul.
The differing realms of the law. Em idem. Law and warfare. G arden
City, 1967. Cf. também G E IG E R , op. cit., p. 149 ss. e H AR T, Herbert
L. A. T h e c o n c e p t o f law. Oxford, 1961. (Esse último p ara o im ­
portante conceito de "secondary rules”.)
99 Cf. LU H M A N N , Niklas. Sinn ais G rudbergriff der Soziologie.
Em H ABERM AS, Jürgen e L U H M A N N , Niklas. T h e o rie der Gesells ch aft
oder S o zia ltech nolo gie? Frankfurt, 1971.
99a Cf. p. ex. G A R F IN K E L , H arold e SACKS, Harvey. On form al
structures of praticai action. Em M C K IN N E Y , John C. e T IR Y A K IA N ,
Edward A. T h e o r e tic a l sociology. Nova Iorque, 1970.

158
100 Cf. G O LD ST E IN , K u rt e SCHEERER, M artin. A bstra et and
c o n c r e t behavior. Psychological m onographs n.° 53, 1941. H A R V E Y,
O. J. et al. C o n ce p tu a l systems and pers ona lity organiz ation. Nova
Iorque/Londres, 1961.
101 Cf. a contribuição de PA R SO N S, Talcott em H IRSCH , Ernst
E. e R E H B IN D E R , M anfred. Studien und M aterialien zur Rechtsso­
ziologie. K ò l n e r Z e i t s c h r i f t f ü r S ozio lo gie und Sozialpsychologie, ca­
derno especial n.° 11, 1967.
102 É característico da teoria de sistemas de Parsons que esse
desempenho seja percebido e descrito — na função da “manutenção
latente ( ! ) de padrões” — permanecendo insuficientemente distinto
da função norm ativa em termos analíticos.
103 Cf.: L U H M A N N , Niklas. F u n k t i o n e n und Folg en f o r m a le r
Org a n isa tion . Berlim, 1964, p. 355 ss. T H IB A U T , John W . e K E LLE Y ,
H arold H. T h e social psychology o f groups. Nova Iorque/Londres,
1959, p. 64 ss. N EW C O M B, Theodore M. T h e a c qu a in ta n ce process.
Nova Iorque, 1961.
103a p a ra um a análise desse problem a ver FE IN B E R G , Joel.
D o in g and d eservin g: essays in th e th eo ry of responsability. Prin-t
ceton/N. J„ 1970, p. 3 ss.
1W Essa definição do conceito do papel através de expectativas
não é inquestionável, mas permanece incontornável. Quem quiser
evitá-la acaba reintroduzindo a expectativa mais tarde, sem per­
cebê-la e portanto sem controlá-la. U m exemplo disso encontramos
em P O P IT Z , Heinrich. D e r B e g r i f f der sozialen R o lle ais E le m e n t
der soziologischen Theorie. Tübingen, 1967. Popitz rejeita o recurso
às expectativas comportamentais, mas define o papel explicita­
mente através de conjuntos comportamentais. _
ior> Corretamente G E IG E R , op. cit., p. 156, indica que a lei
do Talião do Antigo Testamento (olho por olho, dente por dente)
não deve ser vista apenas como um formalismo arcaico, mas como
um a conquista evolutiva. P a ra a origem dessa noção, ver também
M ü H L , Max. U n te rs u ch u n g e n z ur a lt o r ie n t a lis c h e n und a lth e lle n is -
ch e n Gesetzgebung. Leipzig, 1933, p. 45 ss. Ver ainda o item 6 a
seguir e o item 2 do capítulo III.
hk v e r p. ex. K RAUSE, Herman. D auer und Vergánglichkeit
im mittelalterlichen Recht. Z e i t s c h r i f t der S a v ig n y -S t if t u n g f ü r
R e c h ts g e s c h ic h te . 1958. P ara maiores detalhes ver o item 4 do capí­
tulo III abaixo.
J»' A dificuldade que persiste até hoje quando se procura des­
tacar o conceito da consciência da simples receptividade para n or­
mas superiores, e assim individualizá-lo, documenta a continuidade
dessa tradição. Cf.: SCHOLLER, Heinz. Das Gewissen ais G estalt der
F re ih e it. C o l ô n i a / B e r l i m / B o n n / M u n i q u e , 1962. LU H M A N N , Niklas.
Die Gewissensfreiheit und das Gewissen. A r c h i v des ò ff e n t l ic h e n
Rechts, n.° 90, 1965.
A subsunção de todos os bons propósitos no bom em si é
uma formulação conceituai puram ente classificatória que acentua
a característica comum dos propósitos. Não pode ser confundida
com a aqui sugerida separação entre program as e valores. A ética

159
não possuía um conceito de valor, que não casualmente iniciou sua
grande carreira no século X IX .
109 Essa colocação histórica do problema explica porque o con­
ceito do papel teve seu desempenho teórico decisivo (e problem ático)
principalmente através da “mediatização entre o indivíduo e a
sociedade”. Cf. p. ex.: PAR SO N S, Talcott. The socia l system . Glencoe/
111., 1951, p. 25 s. e 39 s. NAD EL, Sigfried F. T h e th e o ry o f social
s tru ctu re. Glencoe/lll., 1957, p. 20. D A H R E N D O R F, R alf. H o m o s o cio -
logicus. Colônia/Opladen, 1968. PLESSNER, Helmut. Soziale Rolle und
menschliche Natur. Em F e s ts c h rift T h e o d o r L it t . Düsseldorf, 1960.
T E N B R U C K , Friedrich H. Zur deutschen Rezeption der Rollen-
theorie. K ó ln e r Z e its c h r ift f ü r S oziolog ie und S ozia lp sy ch ologie, n.°
13, 1961. O conceito do papel conquistou dessa form a um a relevância
tal para a autocompreensão da sociologia mais recente, o que é
injustificável tendo em vista seu limitado alcance objetivo.
110 Existem diversas abordagens para uma diferenciação entre
diversos planos da form ação de estruturas em sistemas, nas quais
distinque-se entre “norm as” e “valores”. Por exemplo a concepção
de uma “hierarquia de controle” em PAR SO NS, Talcott. Duerkheim ’s
contribution to the theory of integration of social systems. Em
W O LFF, K urt H. E m ile D u rk h e im , 1858-1917. Columbus/Ohio, 1960,
p. 122 ss. Cf. ainda: SM ELSER, Neil S. T h e o ry o f c o lle c tiv e beh a vior.
Nova Iorque, -963, p. 32 ss. K A T Z , Daniel e K A H N , Robert L. T h e
social psych ology o f o rga n iza tion s. Nova Iorque/Londres/Sidnei, 1966,
p. 37 s. M A Y H E W , Leon H. Law and equal o p p o rtu n ity . Cambridge/
Mass., 1968.
111 Cf. p ara uma visão geral sobre essa questão STEN D EN BAC H ,
Franz J. Soziale In te r a k tio n u n d Lernprozesse. Colônia/Berlim, 1963,
p. 90 ss. Ou ainda EY FE R T H , Klaus. Lernen ais Anpassung des
Organismus durch bedingte Reaktion. Em H a n d bu ch d er Psy ch ologie,
vol. I, Gõttingen, 1964, p. 103 ss.
112 R E D FIE LD , Robert. Primitive law. Em B O H A N N A N , Paul.
Law and w arfare. Nova Iorque, 1967, p. 22.
113 Cf. a experiência em W E IN S T E IN , Eugene A.; W IL E Y , M ary
Glenn e D E V A U G H N , W illiam . Role and interpersonal style as com-
ponents of social interaction. S o cia l forces, n.° 45, 1966.
114 Observações nesse sentido acum ulam -se nos assim chamados
países em desenvolvimento, que tentam modernizar seu direito mas
frequentemente não podem norm atizá-lo e institucionalizá-lo. Ver.
p. ex.: BER G ER , Morroe. B u rea u cra cy and society in m o d e m Egypt.
Princeton/N. J., 1957, p. 114 ss. M ECHAM , C. Lloyd. Latin american
constitutions. J o u rn a l o f p o litic s , n.° 21, 1959, p. 98 ss. MASSEL,
Gregory J. L aw as an instrum ent of revolutionary change in a
traditional milieu. Law and society review , n.° 2, 1968. Maiores
detalhes no segundo volume desse texto, capítulo IV, item 9.
115 Isso nega um a definição do conceito de norm a ou uma
dedução do dever ser a partir do conceito do valor ou da valoração.
Ver p. ex. G IB B S , Jack P. Norms. T h e a m erica n jo u rü a l o f sociology,
n .° 70, 1965, p. 589.
110 Esse problema foi pesquisado por M A Y H E W , Leon; op. cit.,
no exemplo do postulado da igualdade das raças, com o resultado

160
de que ele poderia ser plenamente institucionalizado apenas en­
quanto valor, mas não enquanto program a. Nesse contexto é possível
reconhecer-se a função d a lógica, descobrindo regras para uma
combinação objetiva unívoca e ao mesmo tempo um a transferibi-
lidade intersubjetiva, ou seja a congruência entre a dimensão obje­
tiva e a social. Nisso reside a afinidade da lógica para com o direito.
117 Cf. capítulo I acima.
11* N a teoria de sistemas m ais recente fala-se de “ s tru c tu ra l
c o n s tra in ts ” , significando a seleção da estrutura a partir de uma
esfera de possibilidades ou, em outra formulação, a limitação es­
trutural das possibilidades de um sistema. Cf. B U C K L E Y , W alter.
S o cio lo g y and m o d e m systems th e o ry . Engelwood Cliffs, 1967, p. 82 s.
Ou então PAR SO NS, Talcott. T h e socia l system , op. cit., p. 177 ss.
P a ra a origem etnológica desse conceito ver G O LD E N W E ISE R , A le-
xander A. The principie of limited possibilities in the development
of culture. J o u rn a l o f a m e rica n fo lk -lo r e , n.° 26, 1913, p. 259 ss.
Esse conceito assemelha-se distintamente à concepção da “com-
possibilidade” em L E IB N IT Z , a qual no entanto era pensada para
o próprio m undo e não para sistemas no mundo.
119 “ A c h ie f fu n c tio n o f law is seen to be on e o f s e le ctin g n orm s
f o r le g a l s u p p o rt th a t a ccorã w ith th e basic postulates o f th e c u ltu re
in w h ich th e law system is set.” H OEBEL, E. Adamson. T h e law
o f p r im itiv e m a n . Cambridge/Mass., 1954, p. 16.
120 A ação conjunta de todos esses motivos está comprovada em
P O S P IS IL , Leopold. K a p a u k u papuans and th e ir law. Yale University
Publications in Anthropology, n.° 54, 1958.
121 Sociedades que desencorajam institucionalmente qualquer
afirm ação direta e toda implementação do direito contra o trans­
gressor (e em vez disso apelam p ara a vingança dissimulada ou para
práticas m ágicas) só são conhecidas em estágios culturais muito
primitivos. Cf. G IL L IN , op. cit. e DO LE, op. cit. (ver nota 62 a c im a ).
Cf. também capítulo III, item 2 abaixo.
122 É notável que um autor mais recente (S C H U M A N N , K a rl F.
Z e ic h e n der U n fre ih e it. Freiburg, 1968) julgue que a institucionali­
zação seja imprescindível até mesmo p ara a especificação do c o n c e ito
da sanção.
123 Essa delimitação não exclui que o comportamento racional
de ou tros seja normatizado, tam bém juridicamente. Cf. V O N
JH E R IN G , Rudolf. D e r Zw eck im R e c h t. Leipzig, 1923, 6.a ed., vol. II,
p. 330 ss.
124 Não conheço na literatura um tratam ento adequado dessa
questão. Isso se deve a que ela se torna problem ática apenas a partir
da concepção f u n c onalista do direito aqui desenvolvida. N atu ral­
mente são tratados aspectos isolados da relação entre linguagem
e direito — como no pensamento jurídico chinês (confuciano) que
vê no tratamentp correto das palavras e dos textos a base p ara a
constituição de uma relação correta com o mundo, ou no nosso caso
a questão da influência das form as da linguagem sobre as possibi­
lidades do pensamento jurídico.
125 a n o ção . de que o direito está vinculado aos limites da
linguagem será desenvolvida no segundo volume desse texto, mais
precisamente no capítulo IV, item 2.

161
120 Cf. indicações contidas na nota 3 acima.
127 Cf.: T H U R N W A L D , Richard. D ie m e n s ch lich e G es e lls ch a ft
in ih re n e th n o -s o z io lo g is ch e n G ru n â la g e n . Berlim/Leipzig, 1934, vol.
V, p. 2. HOEBEL, E. Adamson. T h e law o f p r im itiv e m an. Cambridge/
Mass., 1954, p. 28. No sentido oposto ver P A R SO N S e seus seguidores,
para os quais a força física é um fenômeno político que se localiza
fora do sistema jurídico. Cf. M A Y H E W , Leon H. Law. The legal system.
In te rn a tio n a l en cy clop ed ia o f th e socia l sciences, vol. 9, 1968, p. 61.
128 Só assim a escolha (e a perda) do momento correto para
o encerramento da luta pode constituir um problem a. Cf. COSER,
Lewis A. C o n tin u itie s in th e study o f socia l c o n flic t. Nova Iorque,
1967. p. 37 ss.
129 Cf., no lugar de muitos outros, M A IR , Lucy. P r im itiv e g o -
v e rn m e n t. Harm ondsworth, 1962, p. 40.
130 Cf. BE R N D T , Ronald M. Excess and re s tra in t. Chicago, 1962.
131 Lem brem o-nos que mesmo na nossa sociedade que exige
como prova de am or sua realização física, as concepções m ágicas
desse tipo não são tão estranhas. De resto, ver a sugestiva inter­
pretação da relação entre direito e força em B E N JA M IN , W alter.
Z u r Kritik der Gewalt. Em idem. A ngelus novus. Frankfurt, 1966.
132 p a ra o tratam ento dessa questão por parte de teóricos do
direito cf. B R U N N E R , Otto. L a n d und H e rs ch a ft. Brünn/Munique/
Viena, 1943, 3.a ed., p. 120 ss. P a ra um exemplo oposto ver G IL L IN ,
John. Crime and punishm ent am ong the B aram a River carib of
British Guiana. A m e ric a n a n th ro p o lo g is t, n.° 36, 1934.
!33 a autonomização desse mecanismo na sociedade atual é
tratada em G O F F M A N , Erwing. In te r a c tio n ritu a l. Chicago, 1967,
p. 149 ss.
131 Nisso se baseia um a tese mais antiga, segundo a qual o
direito teria surgido como substituto para a luta. Cf. H O R V Á TH ,
B arna. R ech tssoziologie. Berlim , 1934, p. 149 ss. _
135 Cf. L U H M A N N , Niklas. Klassische Theorie der Macht.
Z e its c h r ift fü r P o litik , n.° 16, 1969, p. 155 ss.
136 por trás das tentativas de diferenciação qualitativa da
força, dependendo se surge contra ou a favor da ordem dominante
(p. ex. na diferenciação entre fo rç a e vio lê n cia em SOREL, Georges.
R e fle x io n s su r la v io le n ce . Paris, 1936, 8.a ed., p. 256 s.) sempre se
vislum bra a tentativa de indução à tom ada de partido.
137 Já nas sociedades mais simples (por exemplo entre os es­
quimós) existem casos de punição coletivamente deliberada. Mas
eles permanecem excessão. As transgressões típicas que assim podem
ser tratadas são: assassinato repetido, feitiçaria e rompimento do
tabu sexual. T H U R N W A L D , op. cit., p. 10, localiza o motivo da
ação em comum excepcional no fato de que nesses casos a socie­
dade se sente am eaçada como um todo. Mas, por que nessas e
não em outras transgressões? O motivo me parece residir em que
nesses casos os atingidos não são especificáveis, e com isso a ação
em comum tem que ocupar o lugar da reação justa e violenta dc
atingido. Por isso esses casos não se prestam para serem tomados
como ponto de partida p ara o desenvolvimento de um direito penal
público.

162
i::s Isso pode ser bem reconhecido na instituição dos ajudantes
no juram ento, que são apresentados pelos participantes não para
confirm ar fatos ou credibilidade, mas para participar da luta mágica
pelo direito.
>:i:> Cf.: G ER NET, Louis. Droit et prédroit en Grèce ancienne.
L ’a nnée sociologiqu e, série 3, 1948-49, p. 59 ss e 98 ss. Idem. Le
temps dans les formes archaiques du droit. J o u rn a l de p sy ch ologie
n o rm a le e t p a th o lo g iq u e , n.° 53, 1956.
140 Cf. LU H M A N N , Niklas. L e g itim a tio n d u rch V e rfa h re n .
Neuwied/Berlim, 1969, p. 69 ss.
141 Tam bém nesse desenvolvimento a força e até mesmo a
transgressão ao direito teve um papel imprescindível. A importância
das conquistas bélicas para a estabulização de uma dominação po­
lítica, independentemente de vínculos de parentesco do tipo antigo
de sociedade, é um exemplo conhecido para tanto. Menos consi­
derado foi o fato de que a constituição de um monopólio da força
física politicamente controlado significou um claro rompimento com
a ordem jurídica vigente, que se baseava no d ire ito à disputa. Cf.:
SCHRÕDER, R ichard e F R E IH E R R V O N K Ü N S S B B E R G , Eberhard.
L e h rb u c h d e r deutschen R e ch ts g e s ch ich te . Leipzig, 1919, 6.a ed., vol. I,
p. 712 ss. SEAG LE, W illiam . W e ltg e s c h ic h te des R ech ts. Munique/
Berlim, 1951, p. 113.
142 Cf. L U H M A N N , Niklas. V e rtra u e n : e in M ech a n ism u s d er
R e d u k tio n sozialer K o m p le x itü t. Stuttgart, 1968, p. 44 ss.
143 O valor do dinheiro baseia-se na expectativa de que outros
esperam que o dinheiro seja aceito como valor.
144 U m a das conseqüências é aquela ilusão do desaparecimento
da violência na vida hum ana, censurada por SOREL, op. cit.
14» Comparativamente, o recurso à força física parece ser uma
característica típica para sistemas sociais relativamente indiferen-
ciados e simples. Cf. COSER, op. cit., 1967, p. 93 ss.
,4I! Essa interpretação é questionada por muitos sociólogos que
defendem um conceito estatístico de estrutura, que caracteriza a
simples freqüência de correlações. Cf.: LA ZA R SFE LD , P aul F. e
H E N R Y , Neil V/. L a te n t s tru ctu re analysis. Boston, 1968. B LA U ,
Peter M. Structural effects. A m e ric a n socio lo g ica l revieio, n.° 25,
1960. Essa concepção tem por pressuposto que a form a caracterís­
tica de orientação do comportamento humano, ou seja a escolha
consciente, possa ser tratada como um a dimensão neutralizável, e
isso desqualifica um tal conceito de estrutura para a pesquisa do
direito.
147 Cf. EPSTEIN, A. L. J u rid ica l tech n iqu es and th e ju d ic ia l
process. Manchester, 1954. Ver também S PIT T LE R , op. cit., 1967,
p. 117 ss. Logo que se formam grupos maiores com interesses diver-
gente3 coincidentes pode-se observar o surgimento de papéis es­
peciais para o arrazoamento da divergência. Cf. BECKER, H ow ard S.
O utsiãers. Nova Iorque/Londres, 1S63, p. 38 s. G O F F M A N , Erving.
S tig m a . Frankfurt, 1967.
14* Ver p. ex. M BTI, John. Les africains et la notion du temps.
A jr ic a , n.° 8, 1967. Cf. ainda LEE, D. Demetracopoulou. A primitive
system of values. P h ilo s o p h y o ] science, n.° 7, 1S40.

163
149 Cf. G E R N E T , Louis. Le temps dans les form es archaiques
du droit, J o u rn a l de psy ch ologie n o rm a le e t p a th o lo g iq u e , n.° 53,
1956.
350 Cf. N A D E L , Siegfried F. Social control and self-regulation.
S o c ia l force s n.° 31, 1953.
151 Sigo aqui a interpretação de R IT T E R , Joachim. Z u r
G rundlegung der praktischen Phllosophie bei Aristóteles. A r c h iv fü r
R e ch ts — u n d S o z ia lp h ilo s o p h ie , n.° 46, 1960.
152 “A linguagem dirige-se à revelação do útil e do nocivo, e
portanto tam bém do correto e do incorreto. Pois é próprio ao
homem, em diferença aos outros seres vivos, que somente ele possa
ter conhecimento do bem e do mal, do direito e da injustiça. A
generalização desse conhecimento permite o surgimento da casa e
da cidade.” (A R IST Ó T E LE S. P o lític a , 1253a 14-18.)
153 Cf. G E R N E T , Louis. D roit et prédroit en Grèce ancienne,
op. cit., p. 117: " L e d é v e lo p p e m e n t de la ca té g o rie lin g u is tiq u e est
en ra p p o rt, ic i co m m e en d’autres cas, avec V e v o lu tio n in s titu -
tio n e lle .’,
1 r,t Cf. com referência à renovação político-religiosa budista
D R E K M E IE R , Charles. K in g s h ip and c o m m u n ity in ea rly ín d ia .
Stanford, 1962, p. 289.
155 v e r p. ex. FEHR, Hans. D eu tsch e R e ch ts g e s ch ich te . Berlim ,
1948, 4.a ed., p. 146.
i r>6 Cf. NAD EL, op. cit., 1953.
157 Cf. a visão geral em T H U R N W A L D , Richard. Die m ens-
chliche Gesellschaft in ihrem ethno-soziologischen Grundlagen. Op.
cit., p. 21 ss.
,riS O fato de existirem outras soluções para esse problem a
pode ser exemplificado no caso dos índios chyenne, com sua ex­
tremamente am ena punição p ara o assassinato de um membro da
tribo: desterro por cinco anos. Cf. L L E W E L L Y N , K a rl N. e HOEBEL,
E. Adamson. T h e ch ey en n e way. N o rm a n , 1941, p. 132 ss.
159 B egegn u n g m it d em S ein . Tübingen, 1954, p. 113.
180 Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus.
Em Gesam (m elte A ufsa tze z u r R elig ion ssoziolog ie, vol. I, Tübingen,
1922.
let No fim desse texto (segundo volume, considerações finais)
form ularei algum as indagações à teoria do direito, as quais se di­
rigem à superação dessa ingenuidade da negação indiferenciada.
362 A sociologia do comportamento divergente consolida-se como
um a sociologia especial em si, fora do contexto da sociologia do
direito, através de títulos como “comportamento divergente”, “com­
portamento coletivo”, “desorganização social”. M as sua abordagem
teórica não pode ser destacada da sociologia do direito. P a ra um a
introdução ver: C L IN A R D , M arshall B. S ociolog y o f d e v ia n t beh a vior.
Nova Iorque, 1963, 2.a ed. COHEN, Albert. A b w eich u n g und K o n tr o lle .
Munique, 1968.
103 Cf.: M E R TO N , Robert K. Social stracture and anomie.
A m e ric a n s o cio lo g ica l review , n.° 3, 1938. Idem Conformity, deviation,
and opportunity structures. A m e ric a n s o cio lo g ica l review , n .° 24,
1959. C LO W A R D , R ichard Illegitimate means, anomie and deviant

164

A
behavior. A m e rica n s o cio lo g ica l review , n.° 24, 1959. D U B IN , Robert.
Deviant behavior and social structure. A m e rica n so cio lo g ica l review ,
n.° 24, 1959. E R IK S O N K ai T W ayw ard p u rita n s . Nova Iorque, 1966.
Cf.: S U T H E R L A N D , Edwin. p rin c ip ie s o f crim in o lo g y . P h i-
ladelphia, 1934. T A N N E N B Á U M , Frank. Crime and the comunity.
Nova Iorque, 1351, p. 51 ss.
ms c f. para o último ponto: SYK E S, G reham M. e MATZA..
David. Techniques of neutralization. A m e ric a n so cio lo g ica l revieio,
n.° 22, 1957. Ver ainda G E IG E R , op. cit., p. 76 s.
mi v e r p. ex.: K ITSU E , John I. Societal reaction to deviant
behavior. S ocia l problem s, n.° 9, 1962. BECKER, Howard S. O utsiders.
Nova Iorque/Londres, 1963. SCHEFF, Thom as J. B e in g m e n ta lly ill.
Chicago, 1965. LEM ERT, Edwin M. S o cia l p a th ology . Nova Iorque,
1931. Idem. H u m a n deviance. Engelwood Cliffs, 1967. M A T ZA , David.
D e lin q u e n cy and d rift. Nova Iorque/Londres/Sidnei, 1964. CICOUREL,
A aron V. The social organization of juvenile justice. Nova Iorque/
Londres/Sidnei, 1968. R U B IN G T O N , E arl e W E IN B E R G , Martin.
D evia n ce. Nova Iorque/Londres, 1968. D O U G L A S , Jack D. D évia n ce
and re s p cta b ility . Nova Iorque, 1970. U m a integração dessas con­
cepções com as mais antigas é pleiteada em AKERS, Ronald L.
Problem s in the sociology of deviance. S o cia l forces, n.° 46, 1968.
107 Cf. STOLL, Clarice S. Im ages of man and social control.
S o cia l forces, n.° 47, 1S68.
B U C K L E Y , W alter. S ociology and m o d e m system th eory .
Engelwood Cliffs, p. 167.
p a ra um a visão geral ver COSER, Lewis A. Some functions
of deviant behavior and normative flexibility. T h e a m e rica n jo u r n a l
o f sociology, n.° 68, 1962. P a ra as diversas funções ver: D U R K H E IM ,
Emile. Op. cit., 1902, p. 35 ss. Idem. Les règles de la m éth o d e s o c io -
logiqu e. Paris, 1£27, 8.a ed., p. 80 ss. M EAD, George H. The p?ychology
of punitive justice. T h e a m e rica n jo u r n a l o f sociology, n.° 23, 1918.
NETT, Roger. Conform ity-deviation and the social control concept.
E th ics , n.° 64, 1953. D EN TLER , Robert A. e ER IK SO N , K ai T. The
functions of deviance in groups. S o cia l p rob lem s, n.° 7, 1959.
170 ER IK SO N , K ai T. Notes on the sociology of deviance. S o cia l
p rob lem s, n.° 9, 1962. M ais detalhadam ente: Idem. W ayward p u rita n s.
Op. cit., 1966.
17] R ech tssoziologie. Neuwied, 1960, p. 54 s.
172 Cf. a tese de que a tolerância interna de desvios é um
mecanismo de fortalecimento dos limites do sistema, por exemplo
em D E N T LE R /E R IK SO N , op. cit., p. 101.
173 Conclusões semelhantes podem ser encontradas em SACK,
Fritz e K Õ N IG , René. K rim in a l-S o z io lo g ie . Frankfurt, 1968, p. 469 ss.
i - i M A T Z A , op. Cit.
175 V er acima, item 2.
Nesse sentido é preciso m odificar a antiga tese de que o
parentesco e a dominação territorial eram princípios discrepantes
e substitutivos, como p. ex. em M A IN E , Henry Sumner. Op. cit.,
p. 93 ss. Cf.: LO W IE , Robert H. T h e o r ig in o f th e state. Nova Iorque,
1927. B A R T O N , R. F. T h e h a lf-w a y sun. Nova Iorque, 1930, p. 106 ss.
SCH APER A, Isaac. G o v e rn m e n t and p o litic s in trib a l societies. Lon ­

165
dres. 1956. Ver ainda SCHOTT, Rüdiger. A n fa n g e der P r iv a t — und
P la n w irts ch a ft. Braunschweig, 1956, p. 187 ss.
177 Cf.: SA H LIN S, M arsh all D. The segmentary lineage: an
organization of predatory expansion. A m e rica n a n th ro p o lo g is t, n.° 63,
1961. G U L L IV E R , P. H. Structural dishotomy and ju ra i processes
among the arusha of northern Tanganyika. Á fric a , n.° 31, 1961.
FALLERS, Lloyd. Political sociology and the antropological study
of african politics. Europüisches A rc h iv f ü r S oziologie, n.° 4, 1963,
p. 313 ss.
,7S A relação desse nível de desenvolvimento com a idéia do
direito natural, que limita o direito próprio, será detalhada mais
abaixo, no item 3 do capítulo III,
17!> Abaixo do nível do sistema social global, nas organizações
modernas, a univocidade da diferenciação dos membros e não m em ­
bros em torno de papéis preenche a mesma função de estabeleci­
mento de limites e detalham ento de uma estrutura norm ativa alta­
mente seletiva. Cf. L U H M A N N , Niklas. F u n k tio n e n und F o lg e n
fo rm a le r O rg a n isa tion . Berlim, 1964.
,f'c> Cf. volume 2, capítulo V, item 4.
P a ra a função dos direitos fundam entais ver LU H M A N N ,
Niklas. G ru d re c h te ais In s titu tio n . Berlim, 1965.
1S2 Cf. EM ERY, F. E. The next thirty years. H u m a n rela tion s,
n.° 20, 1967.
ls" P a ra a fundam entação metodológica dessa afirm ação ver
LU H M A N N , Niklas. Funktionale Methode und juristische Entschei-
dung. A rc h iv des ò ffe n tlic h e n R ech ts, n.° 94, 1969.
No campo da ciência do direito essa concepção pluralista
foi defendida principalmente por RO M ANO , Santi. V o rd in a m e n to
g iu rid ic o I. Florença, 1962, 2.a ed. P a ra a etnologia cf. P O S P IS IL ,
op. cit,, p. 272 ss. P a ra a sociologia do direito cf. G U R V IT C H , Georges.
E x p è rie n ce ju rid iq u e e t la p h ilo s o p h ie p lu ra lis te du d ro it. Paris.
1935. Idem. G ru d zü ge d er S oziolog ie des R ech ts. Neuwied, 1960.
Isso não exclui a análise das relações entre sistemas ju r í­
dicos sociais e subsociais. Cf. EVAN, W illiam M. Public and private
legal systems. Em idem. Law and sociology. Nova Iorque, 1962.
I I I — O D IR E IT O COMO E S T R U T U R A D A SOCIEDADE

1 — 0 desenvolvimento do direito e da sociedade

A sociologia clássica do direito tentou referir-se à teoria


da sociedade. Naquele tempo, porém, a teoria da sociedade
estava em um processo de dissolução. O instrum ental da pes­
quisa sociológica que então com eçava a desenvolver-se apre­
sentava exigências teóricas e m etodológicas que não mais
podiam ser satisfeitas com as antigas concepções globalizan-
tes da totalidade social. A teoria da sociedade como a totali­
dade abrangente do convívio social desmoronou. Isso blo­
queou tam bém o desenvolvimento da sociologia do direito, ou
pelo menos a desviou no sentido do que era possível meto-
dologicam ente, transform ando-a em uma sociologia dos pa­
péis profissionais, dos processos decisórios, etc.. ou seja em
um a sociologia cujo tem a não era mais o direito.
Os motivos desse processo de dissolução ainda não estão
de nenhuma form a superados. Ainda inexiste uma teoria da
sociedade adequada, mesmo que parcialm ente baseada em
novos fu n dam entes.1 Nessas condições, qualquer ten tativa
de desenvolver uma .sociologia do direito teoricam ente funda­
m entada tem que permanecer provisória e insegura. Mesmo
assim formam-se novas abordagens com relação à teoria so­
ciológica de sistemas e certas concepções sobre a evolução
social. Nesse contexto não é possível uma exposição e um a
avaliação mais detalhadas sobre a discussão atual dessas
questões. Tem os porém que apresentar algum as característi­
cas básicas dos fundamentos conceituais que apenas estão se
consolidando. Sem uma cia,reza sobre essas premissas não é
possível uma compreensão da relação entre o desenvolvimen­
to da sociedade e o desenvolvim ento do direito. Inversam ente,
só se a análise do desenvolvim ento do direito referir-se expli­
citam ente a problemas da teoria da sociedade, é que a socio­
logia do direito contribuiria para a construção e para o con­
trole em pírico da própria teoria da sociedade.
Partindo de sugestões para o desenvolvim ento da teoria
de sistemas 2 parece lógico que se conceba a sociedade como
um sistema social que, em um am biente altam ente com plexo
e contingente, é capaz dé m anter relações constantes entre
as ações. Para tanto o sistema tem que produzir e organizar
um a seletividade de tal form a que ela capte a alta com plexi­
dade e seja capaz de reduzi-la a bases de ação, passíveis de
decisões. Quanto mais com plexo é o próprio sistema, tan to
mais complexo pode ser o am biente no qual ele é capaz de
orientar-se coerentemente. A com plexidade de um sistema é
regulada, essencialmente, por m eio de sua estrutura, ou seja
pela seleção prévia dos possíveis estados que o sistema pode
assumir em relação ao seu ambiente. P or isso as questões
estruturais, e entre elas as questões jurídicas, são a chave
para as relações sistema/ambiente e para o grau de com­
plexidade e seletividade alcançável nessas relações.
Essas hipóteses, que pretendem validade para qualquer
tipo de sistema social (fam ílias, empresas, conventos, asso­
ciações, ou mesmo festas, conferências, etc.) são especialmen­
te im portantes para a sociedade. A sociedade é aquele siste­
m a social cuja estrutura regula as últimas reduções básicas,
às quais os outros sistemas sociais podem referir-se. Ela
transform a o indeterm inado em determinado, ou pelo menos
em um a complexidade determ inável para outros sistemas,
A sociedade garante aos outros sistemas um am biente por
assiaji dizer domesticado, de m enor complexidade, um am ­
biente no qual já está excluída a aleatoridade das possibili­
dades, fazendo assim com que ele apresente menos exigên ­
cias à estrutura do sistema. Nesse sentido a estrutura da
sociedade possui um a função de desafogo para os sistemas
parciais formados na sociedade. Essa correlação é válida tam ­
bém no sentido inverso: na m edida em que os sistemas na
sociedade sejam capazes de suportar um am biente mais com ­
plexo — seja por sua organização ou por am or — a socie­
dade como um todo pode ganhar em com plexidade e to m a r
possíveis form as mais variadas do experim entar e do agir.

168
Mas, o que é o ambiente dessa sociedade enquanto sis­
tem a social? M uita coisa depende da exatidão da resposta a
essa pergunta.
P ara a antiga tradição européia da filosofia social e da
filosofia do direito era evidente que o homem encontrava
sua liberdade e sua virtude, sua sorte e seu direito enquanto
parte viva da sociedade também viva. A sociedade era vista
com o associação de homens concretos, muitas vezes explici­
tam ente chamada de corpo social. Era exatam ente por con­
sistir de homens que ela apresentava seu humanismo eviden­
te e abrangente, e sua pretensão m oral. Nesse contexto, o
am biente da sociedade, sem se considerar a natureza não
humana, só podia constituir-se de outras sociedades — ou
seja de corpos sociais formada? por outros homens. Conse­
qüentemente, os lim ites da sociedade eram concebidos como
lim ites da descendência ou lim ites territoriais que agrupa­
vam os homen,s nas categorias de pertencentes ou não per­
tencentes.
Os desenvolvimentos mais recentes de teoria sociológica
de sistemas força o rom pim ento com tais concepções. O sis­
tem a social, enquanto sistema estruturado de ações relacio­
nadas entre si através de sentidos, não inclui, mas exclui o
hom em concreto. O homem vive como um organism o com an­
dado por um sistema psíquico (personalidade). As possibili­
dades estruturalm ente perm itidas para esse sistema psíqui-
co-orgânico não são idênticos às da sociedade enquanto sis-
tem social. Form ulando de outra m aneira: a relação de sen­
tido que une as ações no sistema da sociedade é diferente da
relação tam bém de sentido, mas organicam ente fundam enta­
da, das ações reais e possíveis de um homem. A identidade
das ações que constituem ambos os sistemas não perm ite con­
cluir que os próprios sistemas sejam idênticos, que possuam
sua unidade na diferente seleção das possibilidades. P or isso
homem e sociedade são reciprocam ente ambiente. Cada um
é para outro demasiadamente com plexo e contingente. E am-
bes estão estruturados de tal form a que apesar disso possam
sobreviver. A estrutura e os lim ites da sociedade reduzem a
com plexidade e absorvem a contingência das possibilidades
orgânicas e psíquicas. Eles representam principalmente lim i­
tes com respeito ao próprio homem. Asseguram assim que as
possibilidades dos homens sejam reciprocamente expectáveis.
1

Essa inversão do raciocínio altera também ais condições


para a avaliação da relação entre a sociedade e o direito.
Com isso supera-se a base do pensamento em term os de
direito natural, ao estilo europeu tradicional. A legalidade
das relações entre os homens não pode mais ser derivada
da sua natureza e da sua condição de vida como parte da
sociedade (naturalm ente não se pretende aqui negar que a
sociedade seja uma necessidade vital para o homem, mas
apenas negar que isso obrigue a pensá-lo com o pa rte da
sociedade). A legalidade resulta m uito mais dos problemas
de com plexidade e contingência que precisam ser resolvidas,
se é que deva ter lu gar algum a interação e até mesmo cons­
tituição de sentido.
Sendo assim, o direito tem que ser visto como um a es­
trutura cujos lim ites e cujas form as de seleção são definidas
pelo sistema social. Ele não é de nenhum a form a a única
estrutura social: além do direito devem ser consideradas as
estruturas cognitivas, as meios de comunicação (com o por
exemplo a verdade ou o am or), e principalm ente a institu­
cionalização do esquema de diferenciação de sistemas na so­
ciedade. Mas o direito é im prescindível enquanto estrutura,
porque sem a generalização congruente de expectativas com ­
portam entais norm ativas os homens não podem orientar-se
entre si, não podem esperar suas expectativas. E essa estru­
tu ra tem que ser institucionalizada ao nível da própria so­
ciedade,, pois só aqui podem ser criadas aquelas instâncias
que dom esticam o am biente para outros sistemas sociais.
Ela se modifica, portanto, com a evolução da com plexidade
social.3
Tom ando essas hipóteses como premissas, pode-se estabe­
lecer a ligação da teoria do direito com uma teoria da evolu-
çã<£ social. Tam bém aqui a teoria de sistemas fornece im por­
tantes indicações.
Hoje, a teoria da evolução não pode m ais ser interpre­
tada como um processo causai simples, como um a relação de
causa e efeito, para então se referir a categorias morais
de interpretação de .sentido da evolução ccm o “ progresso” . 4
Ela tem que recorrer às concepções da teoria de sistemas,
que podem esclarecer por que as mudanças estruturais, im ­
prováveis a partir do ângulo da situação antiga, podem ser
estabilizadas como conquistas e vo lu tiva s5 — por que, por
exemplo, as form as m ágicas de superação coletiva do medo

170
1

podem ser substituídas por um a religiosidade que impuque


em uma responsabilidade individualizada e concebida abstra­
tam ente; ou por que as antigas form as de ajuda m útua entre
vizinhos enquanto instrum ento de compensação tem poral de
necessidades podem ser substituídas pelo crédito financeiro,
juridicam ente garantido; por que em outras palavras novas
combinações se tom a m sustentáveis a partir de riscos e van­
tagens maiores. Tais problemas de estabilização têm sempre
que ser avaliados com respeito à relação entre sistema e
ambiente.
Com isso afirmasse sim ultaneam ente que pelo menos na
esfera social não se pode supor um desenvolvim ento imanen-
te dos sistemas, por si mesmos, analogam ente ao crescimento
orgânico. Enquanto a an tiga teoria da evolução pressupu­
nha um tal processo de crescimento orgânico através da auto-
diferenciação, ou então trabalhava com o princípio da “ luta,
pela sobrevivência” como único fa to r de seleção, a nova teo­
ria de sistemas aponta para um a abordagem a partir da com­
plexidade dos sistemas sociais e suas relações com o ambiente.
Nessas relações deve-se supor o efeito regulador da evolução,
e a diferenciação assim com o a lu ta pela sobrevivência trans­
parecem apenas como aspectos desse raciocínio básico.
Já devido à diferenciação física, e principalm ente à d i­
ferenciação entre sistemas orgânicos vivos, o mundo se torna
mais com plexo e mais problem ático enquanto am biente de
todos os sistemas individuais. Nesses sistemas individuais
afirmam-se, nas relações com o am biente em questão, form as
de adaptação mais generalizadas e mais elaboradas, que po­
dem surgir “ casualmente” , mas que um a vez existindo são
usadas e cultivadas — por exem plo a reprodução, a autolo-
comoção, a capacidade de ccmbate, visão e m ão com o cor­
respondente sistema coordenador, linguagem , escrita, etc.
Através da estabilização dessas conquistas evolutivas aumen­
tam as possibilidades no mundo, crescem a com plexidade e à
contingência do ambiente de todos os outros sistemas. Esses
sistemas podem reagir fortalecendo sua indiferença ou de­
senvolvendo form as próprias, m ais elevadas, de adaptação e
autoconservação; em todos os casos porém eles assumem
um a seletividade mais elevada, pois estabilizam um elenco
m aior de possibilidades. Dessa form a a evolução no sistema
social pressupõe um a superprodução de possibilidades inicial­
m ente “ casual” , mas daí p or diante cada vez mais depen­

171
dente de estruturas, ao ponto de chegar a ser planifícável
nos sistemas sociais atuais, perm itindo a m anutenção da se­
letividade dos sistemas através de estruturas, com o que
ordenamentos im prováveis tornam-se prováveis. O impulso e
o regulador da evolução é o hiato de com plexidade entre o
sistema e o ambiente.
Essas idéias básicas também oferecem um esquema in-
terpretativo para a evolução socia l.8 Tam bém os sistemas
sociais inventam, mais ou menos casualmente, m elhores fo r­
mas de solucionar seus problema,s de relacionam ento com seu
ambiente, encontrando form as mais elevadas e com mais al­
ternativas para a adaptação à complexidade superabundante.
Com isso aumentam a com plexidade e a contingência das
relações intra-humanas, a vida social adquire novas possibi­
lidades — sejam elas chances ou psrigos. Os nômades domam
o cavalo e ccm isso ganham uma mobilidade e uma superio­
ridade guerreira de ta l m onta que podem fazer com que
outros povos construam fortalezas e aceitem uma organiza­
ção política. Os povos agrícolas aprendem a organizar a pro­
dução de excedentes e o armazenam ento de estoques, o que
pode tornar-se. para povos montanheses, um atrativo objeto
de pilhagem. Ilustrando com um exemplo mais moderno, os
meios de comunicação de massa, altam ente desenvolvidos,
noticiam escândalos e violências, de tal form a que uma oposi­
ção política nova, que ainda não possa com prar a imprensa,
vislumbre a possibilidade de ganhar publicidade através de
escândalos e violências. Exem plificando juridicam ente: tro-
vato la legge, trov a to Vinganno. O princípio do desenvolvir
m ento são as crescentes complexidades e contingência da
sociedade. É a partir daí que as estruturas da sociedade, en­
tre elas o direito, sofrem pressões no .sentido da mudança.
"No contexto da sociedade podem existir sistemas sociais
capazes de resguardar-se da pressão da crescente com plexi­
dade .sem se tornarem relevantem ente mais complexos — por
exem plo através de uma crescente indiferença ou por técni­
cas específicas de adaptação. É só pensar nos sistemas reli­
giosos na sociedade moderna. Outras soluções residem na
adoção de um princípio sistêmico de alta com plexidade que
é generalizado, mas para funções específicas, abrindo muitas
possibilidades de adaptação que não poõsam ser utilizadas
em qualquer parte da sociedade. É só pensar na fa m ília ce­
lular baseada em relações de amor ou na empresa baseada

172
no lucro. Todas essas soluções específicas a partes do sistema
pressupõem que o sistema global da sociedade lhes forneça
um am biente domesticado, e isso tom a-se cada vez mais d ifí­
cil nas condições da crescente complexidade.
P or isso temes que in dagar com o as estruturas do siste­
m a social reagem a tais modificações. A linha geral da m u­
dança evolutiva da estrutura está clara: se as conquistas evo­
lutivas devem ser estabilizadas, então as estruturas devem
perm itir mais ações, por seu lado mais variadas, ou seja
devem ser com patíveis com um núm ero m aior de situações
no sistema social — ou seja, devem perm itir maiores liber­
dades. 7 P o r outro lado, tendo em vista a constante oferta
superabundante de expectativas norm ativas, as estruturas
devem possuir mais possibilidades de rejeitar expectativas;
a possibilidade de dizer não tem que ser fortalecida. Nesse
sentido geral e quase vazio pode-se falar de um a in evitabili­
dade da evolução. Mas isso não perm ite concluir quais são
as estruturas e os mecanismos concretos apropriados para a
solução desse problema de seleção, e m uito menos quais so­
luções serão realm ente escolhidas e realizadas em determ i­
nadas situações do desenvolvim ento social. O desenvolvim en­
to geral da evolução em direção à m aior com plexidade não
perm ite in ferir o processo concreto e o resultado correspon­
dente do processo evolutivo. P ara nos aproximarmos de um a
concretização temos que en trar em hipóteses mais detalhadas
sobre o mecanismo da form ação do direito e sobre o m eca­
nism o da evolução, estabelecendo ainda os elos entre esses
dois aspectos.
N o capítulo anterior referim os a form ação do direito à
contingência e à com plexidade das possibilidades plausíveis
que surgem em todas as relações interpessoais e que sobre­
carregam o indivíduo. No cam po da interação humana coti­
diana essa sobrecarga gera um a necessidade de generaliza­
ções congruentes de expectativas com portamentais, baseadas
em atitudes normativas, não assimiladoras. Essa relação en­
tre problema, função e estrutura fo i inicialm ente apresenta­
da só em uma perspectiva estática, agora ela tem que ser
com preendida como evolutivam ente variável.
Com a crescente m ultiform idade da vida social m udam
a contingência e a com plexidade dos campos de interação
do com portam ento cotidiano. Elas só podem mudar, porém,
se for assegurada a perm anência da possibilidade de volta

173
a sínteses do experim entar e do agir. Sociedades mais simples
só podem atin gir tais sínteses em reificações autoevidentes
e comuns, em um a visão de mundo ao mesmo tem po natu­
ralista e moral, com um a linguagem que parece ser o pró­
prio ser. Todos os outros desenvolvimentos têm que ser gera­
das pela contingência e pela complexidade mais elevadas, e
só elas podem institucionalizar as abstrações e os riscas cor­
respondentes. Na m edida em que essa tendência ganha corpo
as pessoas, na vida cotidiana, vislumbram mais possibilidades
da experim entação e do com portam ento e ao mesmo tem po
possibilidades mais livres, “ mais subjetivas” mais fáceis de
se dispor sobre elas. Esperar expectativas dos outros torna-se
mais difícil. P or isso tem que ser possível o estabelecim ento
de sínteses do sentido com patíveis com a com plexidade da
visão de mundo e do sistema social, oferecendo então mais
possibilidades de opção, evitando ao mesmo tem po o divórcio
entre a experim entação e o agir. N o varejo isso pode ser pos­
sível através da adaptação de institutos do direito e conceitos
jurídicos, mas fren te a momentos mais básicos da evolução
isso ,có pode ocorrer se o próprio nivel da form ação da cons­
ciência é deslocado.
Isso sign ifica que na passagem da sociedade arcaica
para as altas culturas, e destes para as sociedades modernas
m od ificam ^e aqueles dispositivos que garantem a form ação
de generalizações conscientes de expectativas com portamen-
tais, e com isso muda a form a da vigência do direito. A afi­
nação dos diversos mecanismos de generalização modifica-se
naquilo que ela pressupõe, e naquilo que ela causa. U m nú­
mero m aior de com portam entos mais variados torna-se ju ri­
dicam ente possível. D im inui a dependência do direito de sen­
tidos concretam ente fixados e da am algam ação com outras
esferas funcionais com o a linguagem, estruturas cognitivas,
meios de comunicação, form as de socialização; por outro lado
cresce a dependência de um mecanismo especial de seleção
do direito vigente e de tudo aquilo que esses dispositivos com­
plementares e amparadores pressupõem. A form ação do d i­
reito se retira dos sistemas cotidianos estruturalm ente sim­
ples, funcionalm ente difusos, e é “ estatuído” por outros sis­
temas. As premissas sócio-estruturais da form ação do direito
des’ ocam-se em direção de condições e interdependências
mais complicadas, de m aior improbabilidade e m aior capaci­
dade de desempenho.
Isso tudo não representa um processo necessário, mas
apenas um processo possível e que participa da criação de
suas próprias condições, através da form ação de sistemas.
Para compreendê-lo como processo temos que voltar-nos para
a teoria da evolução. Parece que tanto no campo orgânico
quanto no sentido da evolução de sistemas compexos é n e­
cessária a ação conjunta de três tipos de mecanismos: (1)
mecanismos de geração da variedade no sentido de um a su­
perprodução de possibilidades; (2 ) mecanismos de seleção das
possibilidades aproveitáveis-, (3 ) mecanismos de m anutenção
e estabilização das possibilidades escolhidas, apesar do campo
de escolha permanecer com plexo e con tin gen te.8 Essa com­
binação representa uma condição para a descoberta e a m a­
nutenção de características relativam ente improváveis do
sistema — cu seja para que ao lon go da evolução o im pro­
vável torne-se provável e aumente a com plexidade do mundo.
A partir desse modelo geral, das conclusões parciais já
bem sedimentadas na teoria da sociedade e da teoria do di­
reito desenvolvida no capítulo anterior, podemos defender as
seguintes hipóteses sobre a mudança estrutural:
1) O sistema social, na m edida em que aumenta sua
complexidade, é reestruturado no sentido da form ação de
sistemas parciais fu ncion a lm ente específicos. Isro leva a nm a
m aior variedade, à superprodução de possibilidades de expe­
rim entação e de ação, inclusive de projetos normativos nos
sistemas parciais, forcando assim um a m aior seletividade.
2) A o desempenhar-se seletivamente, esse desenvolvi­
m ento é levado à esfera do direito através da diferenciação
de sistemas ( processos) especiais de interação, específicos ao
direito, os quais se to m a m sustentáculos sociais, crescente­
m ente autônomos, das decisões jurídicas imperativas.
3) O próprio direito é autonom izado ao nível da socie­
dade através da crescente separação entre expectativas co g ­
nitivas e norm ativas, e o arcabouço de suas definições de sen­
tido assume representações mais abstratas ( mais ricas em
variações) no lugar de noções concretas.
Esses três mecanismos referem-se a diferentes dimensões
da form ação do direito. O centro de gravidade da superpro­
dução de possibilidades Icealiza-se no nível norm ativo, ou
seja, na dimensão temporal. O mecanismo da in stitu cion a li­
zação atua como fa tor de seleção, selecionando entre as novas
expectativas aquelas para as quais pode ser suposto consenso
por parte de terceiros. A estabilização efetua-se por m eio da
fixação do sentido capaz de ser transm itido através da lin -
guagem e que pode ser inserido e m antido no contexto das
definições de sentido do direito. A base com um dos mecanis­
mos que as,sim se desenvolvem reside na com plexidade social.
Eles fornecem contribuições distintas, mas complementares,
para a adaptação estrutural e processual da sociedade à m aior
complexidade. Sua ação conjunta garante a m anutenção das
expectativas com portam êntais normativas mesmo frente à
crescente complexidade da sociedade. Dessa form a eles estão
entrelaçados entre si e com todas as outras estruturas im ­
portantes do sistema da sociedade — e isso sign ifica que a
configuração dos aspectos normativos, institucionais e de
sentido objetivo não ocorre indiscriminadamente, mas sem­
pre referindo-se ao n ível do desenvolvimento e às outras di­
mensões. Antes de analisarmos mais detidam ente a ação con­
jun ta desses aspectos ao longo das diversas épocas do desen­
volvim ento da sociedade e do direito, é necessário esclarecê-los
conceitualmente.
A distinção entre diferenciação segm entaria e diferencia­
ção fu n cion a l refere-se ao princípio de divisão da sociedade
em sistemas parciais. N a diferenciação segm entária são fo r­
mados diversos sistemas iguais ou semelhantes: a sociedade
compõe-se de diversas fam ílias, tribos, etc. N a diferenciação
funcional os sistemas parciais, ao contrário, são formados
para exercerem funções especiais e específicas, sendo portan­
to distintos entre si: para a política e a adm inistração, para
a economia, para a satisfação de necessidades religiosas, para
a educação, para cuidar dos doentes, para funções fam iliares
residuais (assistência, socialização, recrea çã o), etc. Um a pau­
latina transform ação da diferenciação segm entária para a
diferenciação funcional nas mais im portantes áreas funcio­
nais da sociedade constitui, genericamente, um traço bá°ico
do desenvolvimento social.9 A rigor sempre existem ambas
as formas. Mesmo nas sociedades mais simples os papéis se
diferenciam funcionalm ente conform e a idade e o sexo, e
mesmo nas sociedades industriais mais complexas existem
vá.rios campos funcionais nos quais a diferenciação .segmen­
tária se confirm a com o coerente — continuam existindo vá­
rias famílias, vários hospitais, vários distritos adm inistrati­
vos, etc. A redisposição se refere à principal diferenciação
da sociedade enquanto sistema social. Na época contem porâ­

176
nea, após diversos ensaios históricos principalm ente nas
áreas da religião e da política, a diferenciação principal da
sociedade desloca-se generalizadam ente da form a segm entá-
ria para a funcional. A partir daí as especializações em ter­
mos de desempenho não precisam mais inserir-se em orde­
namentos de sistemas parciais segmentários, como domicílios
ou tribos, mas as form as de diferenciação segm entária que
ainda restam ou que ze form am é que têm que justificar-se
em relação às exigências específicas de desempenho de um
sistema parcial funcionalm ente especificado. Essa mudança
leva a um imenso aum ento das possibilidades im agináveis e
realizáveis na experim entação e na ação, já que cada sistema
parcial, na perspectiva abstrata de sua função específica,
pode desenvolver mais possibilidades do que seria possível
im agin ar para sistemas estruturados de form a funcional­
m ente difusa, têm que dar sustentação a todas as funções.
A diferenciação funcional aum enta a superprodução de pos­
sibilidades e ccm isso as chances e a pressão no sentido da
seleção. E la é a form a na qual a alta com plexidade social
torna-se organizável.
P ara a esfera do direito isso sign ifica que o,s diferentes
sistemas parciais da sociedade provocam o surgim ento de
projeções norm ativas mais acentuadamente divergentes — e
em número m aior que o possível de tom ar-se direito. Com
is? o o fa to r seletivo da institucionalização é sobrecarregado,
e a questão é saber quais são as conseqüências disso sobre a
estrutura e a form a de operação, sobre o grau de consciência
e abstração, sobre a capacidade de gerar consenso e sobre a
indiferença do processo de seleção. As possibilidades de opção
são organizadas conscientemente (a fin a l!), ao serem distri­
buídas per passos parciais que se condicionam e complemèn-
tam reciprocamente, porém sem nunca mais encontrar, em
si próprios, seu pleno sentido. “ W e were chosen people; now
we are choosing people” ; assim S a h l i n s comentou esse desen­
volvim ento. 10
Isso leva ao nosso segundo ponto: a diferenciação de
processos — isto é de sistemas de interação que são realiza­
dos para a seleção de decisões jurídicas. Um a concepção mais
abstrata do direito, descolada de im agens concretam ente re­
memoradas dos atos, torna-se possível apenas quando o de­
sempenho seletivo aí im p lícito tam bém é atingido. P ara tan ­
to, desenvolve-se, na form a do processo, um ordenam ento
próprio do com portam ento que, através de situações espe­
ciais, fórmulas e símbolos especiais, locais especiais, papéis
especiais e, finalm ente, até mesmo normas especiais, se isola
da vida cotidiana, autonomizando-se, podendo dessa form a
concentrar-se na decisão jurídica, principalm ente na solução
de conflitos normativos.
No conceito do processo acentuou-se o aspecto proces­
sual em si, a concepção de um encam inham ento ordenado.
Essa acentuação do caráter sucessivo aproxima-se porém da
banalidade. O que é interessante e relevante n o processo,
enquanto conquista evolutiva, é sua estrutura como sistema
so c ia l.11 Os procedimentos são sistemas sociais orientados a
curto prazo, constituídos tendo em vista um fim , aos quais
são atribuídas funções especiais de elaboração de decisões
vinculativas — ou seja, não devem ser confundidas um tip o
de sistema genericam ente disponível e m uito menos com o
direito processual. Cada processo, enquanto sistema tem po­
rário de interação, pode ser especificado funcionalm ente, mas
também diferenciado e estabelecido com autonom ia relativa.
Com isso ele adquire possibilidades próprias e um a tem ática
também própria, com regras especiais sobre a relevância ou
irrelevância, assumindo, nesses limites, um a m argem de pos­
sibilidades, a correspondente incerteza e uma história pró-
pria que absorve essa in certeza .12 Diferentem ente das outras
ações jurídicas de procedim ento processual, um processo só
existe quando há incerteza sobre sua conclusão, a qual é
superada através dele mesmo enquanto processo decisório se­
letivo. Isso im plica em lim ites à relevância. O que é válido
no mundo, não vale necessariamente no processo; ele precisa
ser “ introduzido” no processo. Qvod non est in actis, n on est
in mundo. Os papéis .são diferenciados de form a análoga.
Atilá-se no processo não enquanto sogra, padeiro, adúltero,
etc., e é só no processo que se decide quais outrcs papéis
dos participantes são relevantes, ou não naquele contexto — ■
se policiais são mais fidedignos ou não, se o acusado é um
adúltero ou não, ,se o ju iz deve ou não ser rejeitado como
parcial, devido aos seus outras papéis.13
Uma outra particularidade da instauração de processos
decisórios reside em. colocar em potencial decisório à dispo­
sição dentro de um certo quadro de referência, segundo o
qual as decisões podem ser esperadas. Isso tem por conse-

178
qüêncía que agora a própria omissão de decisões torna-se
um a decisão que eventualm ente tem que ser respondida.
Como no caso dos processos litigiosos, essa responsabilidade
pode ser form alizada através da proibição da recusa do seu
processamento jurídico; mas ela tam bém pode, como n o caso
dos processos legislativos, expressar-se enquanto responsabi­
lidade política perm anente de manutenção, ou seja não m o­
dificação, do direito vigente. Isso significa que com o auxílio
de processos e dentro dos lim ites do potencial de decisões que
eles inauguram sempre é possível institucionalizar-se um a
responsabilidade a todo tem po concretizável com respeito às
normas.
P ara a manutenção da alta complexidade no direito e
para a estabilização das form as processuais de solução de
problemas, o próprio sentido geral do d ireito tem que satis­
fazer as crescentes exigências e submeter-se a mudanças
tangíveis; e com isso chegamos à nossa terceira diferencia­
ção. As identificações de sentido, com as quais expectativas
concretas são geradas no direito, têm que ser abstraídas para
poderem captar um número m aior de possibilidades mais
variadas, A dimensão do con creto abstrato representa tam ­
bém um aspecto essencial da variação do processo evoluti­
vo. 14 Essa diferenciação deve ser entendida como gradual e
não dicotômica. Ela se refere ao sentido em sua função es-
truturalizante, com o premissa relativam ente constante da
seleção e do processamento das experiências. O sentido é tan­
to mais concreto quanto mais ele perm anecer dependente do
conteúdo im ediato das experiências e das condições subjeti­
vas da capacidade de percepção. O sentido concreto, portanto,
confronta a experim entação e a ação com nenhum a ou
poucas alternativas (ou seja, apresentando poucos encargos
d ec is ó rio "), apresentando-se em suas indicações a outras pos­
sibilidades, ou seja em sua referência ao mundo, de form a
extraordinariam ente difusa e indeterm inada; ele se apresenta
com o um cantinho confiável em mundo sinistro. Dessa fo r ­
m a sistemas que se baseiam em um a experim entação con­
creta tendem tipicam ente a vínculos fortem ente tem áticos
em um horizonte relativam ente estreito, o qual delim ita um
mundo cuja complexidade é indeterm inada e indeterm inável.
D aí resultam, principalm ente no direito, tendências a ju lga­
mentos apodícticos e à não percepção da participação do
próprio sistema nos acontecimentos em seu am biente (auto-
causação, cu m plicidade).
A abstração muda isso tudo. O sentido passa a apresentar
mais a ltern a tivas,15 e ao mesmo tempo ele se torna utilizável
independentemente do contexto. Sua seletividade é reestru­
turada. Ele se refere não mais im ediatam ente ao desenca-
deamento de experiências ou ações que satisfaçam, mas sim
à escolha inicial de alternativas e critérios de seleção, tor­
nando-se assim só indiretam ente relevante em termos com-
portamentais. As referências ordenadas em termos do senti­
do, e portanto experimentáveis, abrangem agora possibilida­
des relativam ente distantes, adquirem uma form a m ais pre­
cisa, o decidir torna-se mais demorado, cada sim im plica em
cada vez mais nãos. O horizonte das outras possibilidades
ccncretizáveis, especialmente o horizonte tem poral, se am­
plia, a complexidade do mundo aumenta. De um direito con­
cebido de form a abstrata resultam melhores possibilidades de
integração, nele pode-se acomodar mais expectativas norm a­
tivas, mas ele tam bém pressupõe processos mais eficientes de
seleção que ajudem a superar a grande distância que separa
as premissas program áticas para decisões das próprias deci­
sões em cada caso. Além disso um direito mais abôtrato se
afasta mais das outras esferas do sentido — não por preten­
der um isolamento obstinado, mas tendo em vista o resultado
de que as outras esferas pcssam tornar-se objeto de decisões
jurídicas. Com todas essas relações temos um processo de
abstração, por exemplo, quando a orientação da vida jurídica
muda de referência do perm itido/proibido para o vá^do/
nulo.
Aqueles três pontes — diferenciação com superprodução
de normas, processos e abstração — devem ser vistos como
fatores interdependentes de desenvolvimento. Eles não podem
ser reduzidos a uma relação simples de causalidade linear,
mas condicionam-se reciprocam ente: progressos no desenvol­
vim ento em um a direção pressupõem um determ inado está­
gio de desenvolvimento em outros aspectos. Dessa forma, por
exemplo, uma institucionalização de processos realm ente de-
cisórios só pôde ocorrer quando o sistema político já estava
separado, pelo menos em termos iniciais, dos outros papéis
do sistema de parentesco. Só com o auxílio do processo é que
as normas jurídicas puderam ser abstraídas em um .sentido
capaz de sedimentar, por seu lado, a legitim idade da dom i­

180
nação política. Inversam ente, a am pliação do princípio do
processo antecipou-se ao desenvolvimento, apontando para a
constituição do direito estatuído. Isso foi seguido pela adap­
tação do sistema político a essa variabilidade estrutural
recém-adquirida pela legislação corrente, que tomou a form a
da democratização, ou seja da m obilização do apoio político.
A té hoje ainda falta um direito cujo aparato conceituai apre­
sentasse um grau de abstração com patível com a legislação
e que possibilitasse uma política jurídica. No momento esse
parece ser o ponto de estrangulam ento do desenvolvimento,
que impede a plena exploração das possibilidades do direito
positivo.
Resumidam ente podemos fixa r o seguinte: a diferencia­
ção fu n cion a l parece ser o mecanismo prim ário da geração
da variedade, da diversidade de alternativas e da superpro­
dução de normas, pois ela dota seus sistemas parciais com a
capacidade de ver o am biente de form a mais abstrata, e daí
menos transigente e portanto mais necessitada de compen­
sações, desenvolvendo também as respectivas expectativas.
Os processos sãc antes de tudo mecanismos de in stitu cion a ­
lização seletiva. Neles é decidido quais normas geram um
consen:o real ou presumível, tomando-se socialmente u tili­
záveis. Ao mesmo tempo gera-se e estabiliza-se nos processos
aquela sedimentação de sentido que firm a as normas em um
contexto interpretativo, tornando-as transmissíveis. O grau
de abstração e a complexidade do conjunto de normas a cada
caso vigente enquanto direito dependerá de processos instau­
rados, e isso, por seu lado, não seriá independente do tipo
e do grau de diferenciação sistêmica da sociedade.
Com isso foi apresentado o esquema conceituai com a
ajuda do qual exporemos a seguir a história do desenvolvi­
m ento do direito. Não se pode esperar dessa exposição um a
am pla verificação da,s hipóteses acim a formuladas. Para ta n ­
to nem o espaço e em muitos casos nem o m aterial disponível
são suficientes. O objetivo é m ais modesto: tornar razoavel­
mente plausíveis as hipóteses gerais da teoria sociológica da
sociedade e do direito. Mas já avançaremos muito com a cons­
tatação de que tais conceitos e hipóteses podem ser transpos­
tos às mais diferentes culturas jurídicas — do direito arcaico
ao direito positivo — e de que com eles as diferenças entre
essas culturas tornam-se mais compreensíveis.

181
2 — O direito arcaico

No quadro de um a sociologia geral do direito não é pos­


sível descrever a história do direito nem a do desenvolvim en­
to de suas formas. Isso não significa afirm ar que a sociologia,
a história e a etnologia do direito seriam disciplinas separa­
das, incom patíveis ao nível da teoria. M uito ao contrário, as
barreiras atualm ente existentes por meras razões acadêmicas
devem ser desmontadas, pois o volume do m aterial a ser
estudado ju stifica a divisão de trabalho na pesquisa, mas
não diferentes conceitos teóricas. É só por razões práticas
que a apresentação das hipóteses gerais da pesquisa socioló­
gica do direito deixa de lado a variedade das diferentes for­
mações concretas, históricas e culturais do direito. M ais ne­
cessário ainda, então, é a reflexão sobre os procedim entos
e o tratam ento adotados.
A perspectiva histórica e a da comparação cultural se
deparam com a am pla variedade e m ultiplicidade de form as
que o d ireito assume. A diversidade das origens e das etapas
da form ação do d ireito que alcançam o im penetrável desco­
nhecido histórico, exclui a hipótese de um a única causa ou
constelação de causas do direito. Todas as sociedades hu­
manas, ao longo da história conhecida, atuaram de form a
“ equifinal” 16 por sempre gerarem direito, se bem que com
diferentes concepções normativas, instituições, interesses di­
vergentes, procedimentos, e ainda entrelaçam entos m uito
distintos com as estruturas sociais extrajurídicas. Em certos
casas existem realmente, em especial nas culturas jurídicas
mais desenvolvidas, m uitos institutos do direito com pleta­
m ente semelhantes, se bem que de origem heterogênea —
por exemplo sempre que se estrutura um a situação especial
de ■interesses de ta l form a que sejam poucas as soluções pos­
síveis para os problemas em ergen tes.17 Tendo em vista o
grande número de problemas a serem resolvidos no convívio
social, e em um contexto que apresenta um baixo grau de
abstração e de contatos culturais, forma-se um a m u ltiplici­
dade de instituições concretas que respondem de form a m ui­
to diferente aos problemas do sistema.
Vista em termos abstratos, essa m ultiplicidade é um fato
relevante. É ela que possibilita a evolução, pois apenas a
superprodução torna possível a seleção e torna provável que,
ao longe de um prazo m aior de tempo, as inovações evolu­
tivas bem sucedidas sejam estabilizadas e possam ser trans­
mitidas através da comunicação. A não integração dessa va­
riedade de formas em um sistema social, a falta de um a
.sociedade mundial e de um direito mundial, têm que ser vis­
tas como condição inicial e essencial para o desenvolvimento.
O que deve ser ressaltado, portanto, não são as poucas seme­
lhanças encontradas, se existirem, mas as diferenças dos
ordenam entos jurídicos m ais antigos.
O que puder ser reduzido a um denominador com u m 18
permanece, ao proceder-se apenas de form a indutiva e gene-
ralizante, ao nível da abstração vazia de conteúdo. O mesmo
é válido para a busca de um conjunto m ínim o de normas
que vigoraria em qualquer parte e que por isso poderia ser
suposto como direito natural. Da mesma form a é questioná­
vel o procedim ento inverso, ao deduzir-se de um a teoria geral
do direito em que o direito concreto deveria consistir, e de­
pois procurar até encontrá-lo. Para tanto seria necessário
u tilizar construções racionais de um grau de abstração que
não corresponde à cultura ju rídica e às instituições daí de­
correntes :— por exemplo a concepção de direitos e obrigações
subjetivas. Com isso veda-se o acesso não só à compreensão
dessa cultura, mas também ao entendim ento da função do
fa to de que o direito é m uito mais concreto, indeterm inado
e am bivalente em sua institucionalização que o suposto pelo
esquema interpretativo. P ara evitar es.ses inconvenientes u ti­
lizam os uma abordagem funcionalista, que oferece im portan­
tes vantagens ao ser em pregada em sistemas bastante estru­
turados e complexos.
Nosso constante ponto de partida, no sentido teórico,
não são determinadas normas ou instituições, mas apenas
problemas de caráter hipotético 19 — e entre eles o problema
básico do direito: a generalização congruente das expectati­
vas com portam entais normativas. Com isso tom a-se possível
fazer jus a uma m ultiplicidade de soluções em aberto e ao
m esmo tempo assegurar a com parabilidade de normas e ins­
tituições m uito heterogêneas, através da referência em co­
m um ao problema. Ao mesmo tempo, e na medida em que
a abordagem teórica não tenha em vista a similitude das
instituições mas sim a heterogeneidade dos encam inham en­
tos funcionalm ente equivalentes para cs problemas, reduz-?c
a im portância do difícil problem a da divisão em períodos
históricos, épocas, em si insolúvel. Podemos satisfazer-nos
com uma divisão grosseira, distinguindo apenas se já existe
uma diferenciação de processos decisórios de cunho jurídico
e se eles se referem apenas à aplicação do direito ou também
à legislação. Essas diferenças marcantes caracterizam con­
quistas evolutivam ente improváveis, cuja estabilização pra­
ticam ente altera toda a problemática do direito. Nesse sen­
tido distinguimos o direito arcaico, o direito das, altas cultu­
ras antigas e o direito positivo da sociedade moderna. O de­
cisivo nessa distinção é o grau relativo de desenvolvimento,
e não a ocorrência cronológica objetiva, de tal form a que
mesmo sistemas sociais contemporâneos podem ser conside­
rados arcaicos ou cultivados se apresentarem as caracterís­
ticas correspondentes.21
O ponto de partida para a compreensão do direito arcai­
co reside na estrutura da sociedade. As sociedades do tipo
arcaico — e entre elas compreendemos também as socieda­
des “ prim itivas” ainda existentes que apresentem as carac­
terísticas correspondentes — fundamentam-se em princípio
no parentesco. - A partir daí ocorrem graus distintos de
influência sobre a superação de disputas jurídicas, mas ne­
nhuma com petência de decisão jurídica surge independen­
temente do parentesco. Inicialm ente, todas a,s funções sociais
encontram sua base natural, sua sustentação social e sua
legitim ação na proxim idade do parentesco. Isso é válido para
as funções econômicas do auxílio mútuo e da compensação
de necessidades, para o poder político e até mesmo, no início,
para as funções mágico-religiosas. Se a unidade de parentesco
extravasa o tam anho m áxim o do convívio fam iliar, ocorre a
diferenciação segm entária, principalm ente no sentido da for­
m ação de outras fam ílias, cuja coesão em uma tribo é m an­
tida com base na ascendência e na história comum. Os outros
critçpos de associação, como o do sexo ou o da mesma idade,
também se baseiam em referências naturais e concretas, in-
controláveis a partir do indivíduo e da sociedade, sendo fre ­
qüentemente interpretados segundo o modelo do parentesco.
Característico desse princípio estrutural é sua grande
auto-evidência — as pessoas simplesmente são parentes —
e a ausência de alternativas — já estão determinados o
grau e a proxim idade ou distância desse parentesco. Isso
certamente não exclui que diferentes sociedades tribais de­
senvolvam uma m ultiplicidade de costumes e concepções, pois
o parentesco não determ ina seu conteúdo. Dependendo da

184
linguagem e das condições de vida podem surgir culturas
m uito diferentes Mas o princípio do parentesco lim ita as
diversas sociedades a uma com plexidade relativam ente redu­
zida e que no essencial não pode ser ampliada mas apenas
re p e tid a .23
Tendo em vista o grau relativam ente baixo de diferen­
ciação funcional de papéis não é necessário, nem possível,
abranger critérios especiais para a “ vigência” do direito
(p. ex. na form a de condições para que costumes ou ordens
^ °lf sarri se.r reconhecidos como d ir e ito ), nem institucionalizar
a “ vigên cia” do direito como condição suficiente para a im­
posição do direito. A “ vigên cia” neutra é um símbolo para
a imposição do direito neutra em relação aos papéis, e isso
não existe. Nas disputas jurídicas não se pode ignorar quem
são os direta e indiretam ente envolvidos, quais são suas re­
ferências. com respeito a antepassados, propriedades, prestí­
gio e séquito. A função da arbitragem e da pacificação, de­
vido à proxim idade do direito ao poder, só pode ser realizada
apoiando-se na estrutura social e na distribuição de poder
dela derivada. A norm a em si não pode reivindicar um a v i­
gência absoluta, o que pode ser deduzido, por exemplo, da
relativa facilidade com que a vin d ita ou a pena de m orte
prescrita podem ser regatadas pela compra. “ O princípio do
su m m um ius\ ‘jia t iu stitia et pereat m undus’ é estranho
para muitas sociedades primitivas, e por isso a prática ju rí­
dica européia de julgam entos baseados em regras rigorosa­
mente obrigatórias, sem considerar qualquer circunstância
do ato, mesmo que juridicam ente irrelevante (na nossa con­
cepção), é freqüentem ente vista como incompreensível e re­
jeitada por ser considerada desumana” . 24 O mesmo é válido
para a concepção de que o direito resulte numa alternativa
forçosa, do tipo ou/ou, certo/errado, tu do/nada.2r’ O direito
ainda está em um contato im ediato com os processos elem en­
tares da form ação do direito, podendo então ser a qualquer
m om ento esvaziado ou m ultiplicado por expectativas concre­
tas sobre expectativas.20 O modo preferencial de estabiliza­
ção, portanto, é a pcbreza em alternativa, a pequena com­
plexidade da sociedade — e não a sanção.
M esmo faltando um caráter obrigatório abstrato e con­
seqüente via vigência, em todas as sociedades arcaicas que
podemos observar encontramos algum as normas diferencia­
das, cu seja expectativas mantidas em termos contrafáticos.
'1

pospisil, por exemplo, encontrou junto aos papuas kapauku


da Nova Zelândia, que vivem ao nível de desenvolvim ento da
idade da pedra, uma “ in ten tk m o f universal a pplication ”
para uma série de regras comportamentais, as quais no en­
tanto só podiam impor-se realmente em cerca da m etade dos
casos.27 Tais regras são sempre form uláveis através da lin ­
guagem, tom ando-se assim objetivam ente identificáveis como
a mesma nos diferentes casos, tornando-se então institucio-
nalizáveis — como direito.
Para a form ação mais detalhada desse direito arcaico
aquela baixa complexidade da sociedade significa, então, que
os mecanismos elem entares da form ação do direito atuam
de form a não mediatizada. O direito surge inicialm ente na
frustração e na reação do frustrado, ou seja n a eclosão im e­
diata da cólera, a p artir daí ligando-se àquela estreita relação
com a força física anteriorm ente caracterizada (item II. 7).
Sem a defesa própria do atingido e sua parentela, sem sua
disposição de usar a força, não seria possível separar as ex­
pectativas cognitivas das normativas; ninguém saberia quais
expectativas deveriam ser mantidas e quais devem acomodar-
se a frustrações. As instituições do direito arcaico da defesa
própria violenta, da vindita, do juram ento e do amaldiçoa-
mento, típicas em sociedades segmentares, não se referem à
“ imposição” do direito (com o se para tanto não valesse a pena
m anter uma polícia, podendo qualquer um assumir essa fun­
ção) , mas sim à salvaguarda das próprias expectativas, à sua
manutenção frente eventos adversos.2S A função expressiva
da afirm ação de expectativas tem preferência à função ins­
trum ental da imposição. Daquela depende im ediatam ente a
diferenciação das expectativas normativas, a própria cons­
tituição do direito. P or causa dessa van tagem diversas con­
seqüências disfuncionais de^se sistema jurídico são aceitas
como mais ou menos inevitáveis.
Um a im portante condição funcional do direito baseado
na autodefesa e na vin d ita parece consistir em que a solida­
riedade do parentesco em grupos mais estritos sobrevive à
transgressão do direito, de tal form a que a incrim inação da
“ culpa” pela ameaça de vindita evidencia-se com o elemento
de ügação mais forte que o próprio direito. A parentela não
se desfaz de um transgressor do direito — a não ser em casos
extremos como o de um m alfeitor notório — defendendo-o
mesmo com perigo de m o rte .29 Isso sign ifica que a trans­

186
gressão do direito não leva, por si só, ao isolamento social.
Tam bém nisso transparece a preferência inevitável do sis­
tem a de parentesco. Inversam ente, o indivíduo não possui
nenhum acesso independente de sua parentela ao desenca-
deam ento de outras possibilidades; por isso sua personalidade
jurídica existe tão-só por pertencer a uma parentela, tendo
então que sujeitar-se às suas pressões no sentido da transi­
gência em questões de direito. Em correspondência a esse
modo de processamento, o sentido objetivo do direito perm a­
nece concebido de form a concreta e oferece poucas alterna­
tivas, como todo o sistema de assimilação de experiências.
Isso pode ser demonstrado em diversos aspectos. O direito
da tribo é sentido como o único direito possível, como o d i­
reito em si. As pessoas estranhas, as tribos do am biente e
com as quais não existem relação de ascendência em comum,
parecem não possuir d ireito .30 O direito é afirm ado de form a
absoluta e sem referência a processos de revisão e decisão
em casos de dúvida. A participação na projeção da norma,
a subjetividade da demanda por direito não podem ser sepa­
radas do direito objetivam ente vigente. P or isso fa lta tam ­
bém a concepção do direito com o um sistema de norm as que
teria que impor-se apenas por estar vigente. As norm as per­
m anecem concebidas em estreita proxim idade das circuns­
tâncias reais, que podem ser experim entadas, na form a das
“ figurações” , na feliz form ulação de T h u r n w a l d , 31 que se
tip ifica m ao longo do tempo, imunizando-se com referênçia
a diferenças em casos específicos, às vezes formulando-se èm
palavras ou frases, tornando-se assim transmissíveis. As re­
lações conceituais são m ediatizadas por coisas concretas ou
por concepções explícitas não sendo, portanto, m uito abran­
gentes. 32 O grau reduzido de abstração não perm ite a trans­
ferên cia para casos diferentes; ele im pede que o próprio sen­
tido da norm a sirva de apoio da argum entação e da avaliação
para decisões em novos casos ou em expectativas jurídicas
divergentes. É também por isso que não se pode abdicar da
força com o form a de com provação do direito. A luta ou o
form alism o levam à decisão, e não à in terpretação do sentido.
Considerando que o im ediatism o dos casos, a concretude
e a pobreza em alternativas constituem características estru­
tu ralm ente condicionadas do d ireito arcaico, podemos com ­
preender tam bém suas referências sacrais e tradicionais, fre­
qüentem ente superestimadas. Elas não devem ser vistas como
motivos auto-explicativos e não são suficientes para explicar
o direito arcaico a partir da “ visão de m undo” tam bém ar­
caica. O traço fundam ental da estrutura é a ausência de
alternativas para a ordem. “ Na sociedade prim itiva, até mes­
mo nas dos mais elevados horizontes culturais, a sociedade
existente é a única possível, que corresponde ao desejo divino,
sendo assim santificada.” 33 O sacral e o passado podem tor­
nar plausível a não existência de outras possibilidades no
presente. Ambas as referências de sentido apenas simboli­
zam a deficiência de alternativas, de qualquer form a exis­
tente. Isso pode ser visto no fato de que a fundam entação
mágico-transcendental do direito arcaico não leva à concep­
ção de um direito enviado por Deus (pois criação sign ifica­
ria contingência, ou seja, escolha entre outras possibilidades).
As forças sobrenaturais protegem o direito, elas penalizam e
restituem, mas não geram nem m odificam o direito. O direi­
to vincula os deuses da mesma form a que os homens. San­
tificação e história são símbolos para o não poder ser dife­
rente, para o não estar disponível. In terpretam o medo e a
incerteza que a ordem tem que sentir perante com porta­
mentos novos, incomuns, e expectativas não asseguradas es­
truturalm ente, não congruentes sho um reflexo do perigo
de desvio para caminhos desconh»- idos, de descarrilam ento
irreversível dos trilhos da ordem, incapaz de in tegrar desa­
certos e inovações.
O centro de gravidade da consciência arcaica reside, por­
tanto em seu presente constantem ente arriscado e pobre em
possibilidades, o qual logo se obscurece na penum bra de um
horizonte tem poral indeterm inado do passado, e que quase
não tem fu tu r o ;34 pois só no presente existem vida e comu­
nicação. Só assim torna-se com preensível a preferência por
meias simbólicos, os quais protegem o presente contra a
ameaçadora irrupção de outras possibilidades. Sempre que
dim inui a necessidade de simbolização sacral ou tr? cacional,
o direito necessário surge sem referência s a c ra l,33 ius ao lado
de fas, e a consciência tradicional freqüentem ente possui um
caráter apenas m arginal, sem im pedir inovações, na medida
em que elas se afirm am no presente rápida e convincente­
mente. 36 Existem várias comprovações de aue a própria v i­
gência do direito pode basear-se em concepções de parentes­
co, vivificada em um culto dos antepassados e entendida
como obediência aos pais mortos (tam bém poderosos enquan­

188
I

to m o rto s ). ::T isso possibilita uma exposição plausível da


relação entre estrutura social e direito. Mas tanto os rituais
sagrados quanto os juridicam ente especificados, devido à sua
form a explícita, podem ser destacados dessa relação de sen­
tido. É exatam ente devido à sua fixação no concreto que eles
apresentam possibilidades de autonomização frente às pro­
jeções norm ativas imediatas dos participantes, e até mesmo
frente às figurações da tradição ligada a situações. Por isso
o ritualism o sagrado e o form alism o tridicional são capazes
de fornecer aqueles elementos constantes que possibilitam a
transmissão do direito arcaico até às altas culturas, m anten­
do assim, através do direito arcaico, importantes funções.;íi|
A ausência de alternativas caracteriza as concepções
causais m ágicas que distinguem o direito arcaico em suas
form as mais desenvolvidas. A palavra certa, o gesto certo, a
m ágica certa, o juram ento ou a m aldição ativam o direito
imediatamente. Pergunta-se: “ spondesne?” , ç responde-se:
“ spondeo” , e isso é o spom io, o contrato. No fundo não se
deveria falar de causalidade, de qualquer form a não de uma
causalidade mecânica da magia. Pois no conceito de causa-
ção que é historicamente posterior, o decisivo é exatam ente
a seletividade que aqui ainda não é esperimentada. Temos
que considerar que na vida prática, até mesmo das socieda­
des mais antigas, a m agia era acionada como instrum ento
de seleção e de comando, mas ela não era institucionalizada
enquanto tal. Já por razões da linguagem :,!) a causalidade
não é entendida como uma relação unilateral ou até m utua­
m ente variável, mas como uma qualidade inerente ao evento
ou ao ato. A aparência ou a form a é o próprio sentido, no
sentido a causa parece efeito. Se um efeito desejado não
ocorre, a frustração é imputada a outras causas. Para o pen­
samento arcaico, portanto, está vedado ver o direito como
m eio para a conform ação das relações sociais, ou seja ver o
direito como algo disponível.
Correspondentemente, o procedim ento jurídico parece
um ritual, como procedimento presente, como presença con­
creta da afirm ação do direito — e não como esclarecimento
de um passado em disputa, ou com o seleção de um futuro
preferido. É óbvio que mesmo no mundo arcaico a ação h u ­
m ana se orienta na dimensão tem poral, mas o direito não é
institucionalizado tendo em vista o tem po enquanto dim en­
são. Para tanto falta aquele segundo plano da observação, a

189
partir do qual poderia ser concluído, no presente, o que o
passado foi e que o fu tu ro deverá ser; para tanto fa lta o pro­
cesso que poderia esclarecer o passado e assegurar a per­
sistência no futuro das seleções atualm ente executadas.40
Dessa form a tam bém o juram ento divino é experim entado
como uma estipulação concreta e presente do direito, mas
não com o um prejulgado para casos futuros ou até mesmo
como revelação de um a regra geral. E a obrigatoriedade do
direito ( ob lig a tio) transparece no rom pim ento de um a ex­
pectativa justificada no presente; ela não é concebida como
um a obrigação fu tu ra .41
É claro que nessas condições sócio-estruturais e nos
pressupostos conceptuais correspondentes pode-se form ular
princípios jurídicos genéricos e normas gerais, mas não con­
cepções jurídicas abstratas ou mesmo críticas; não pode sur­
gir nenhuma idéia da justiça que se anteponha ao direito
existente. Existem porém motivos conceptuais m uito antigos,
nos quais as dimensões supratemporal, identificadora e social
do direito se encontram e aos quais todas as, abstrações pos­
teriores da idéia da justiça se referem : os m otivos da repre­
sália e da reciprocidade.
O princípio da represália significa e institucionaliza a
exigência de que o direito se baseie em um a relação tem poral
da ação de diferentes pessoas. A transgressão do direito exige
não só a defesa preventiva ou imediata, não só a criação da
situação certa, mas além disso vingança — ■ mesmo que o
tem po tenha passado (vindita,s se prolongam freqüentem en­
te por gerações) e que a ação possa assumir form as incompa­
ráveis à expectativa jurídica original. Essa condensação de
sentido é o desempenho decisivo, e ela não significa neces­
sariamente também uma medida de referência para a reação.
A represália é a generalização elem entar do direito, quase
que incondicionalmente institucionalizável e que combina as
dimensões temporal, objetiva e social; ela representa o pri­
meiro princípio jurídico. Ela deve m anter a expectativa en­
quanto tal, e não preenchê-la retardadamente, elim inando
o dano. O centro de gravidade reside na função expressiva.
For isso a vingança é inicialm ente “ com todo o d ireito” des­
mentida. 4- Sua moderação através do princípio do Talião,
através de catálogos de penas precisamente especificadas,
etc., é uma conquista evolutiva das sociedades arcaicas tar­
dias, representando uma condição essencial para a m aior di­

190
ferenciação do complexo norm ativo — e é ao mesmo tempo
um dos primeiros rompimentos do direito em sua longa
evolução.
Menos claro é o caso da reciprocidade. Esse princípio
resolve o mesmo problema da generalização temporal, obje­
tiva e social no sentido dos desempenhos positivos. Também
aqui é característico que, apesar do desvio temporal e da
diferença objetiva no desempenho das diversas pessoas, é
possível constituir-se uma relação de sentido. A reciprocidade
é convincente na medida em que as situações, nas quais cs
direitos e os deveres se baseiam, sejam reversíveis: só quem
puder ser colocado na situação em que o outro se encontra
poderá tam bém reconhecer-se e respeitar-se no outro. O sen­
tido inverso dos desempenhos, o dar e receber, pode ,ser for­
m alm ente representado como simetria, e por isso é capaz de
justificar um grau considerável de desigualdade nos m om en­
tos, nos desempenhos e nas pessoas. O sucesso da reciproci­
dade no estabelecimento da ordem reside em uma igualdade
que não existe.
A o contrário do caso da represália, porém, não pode ser
suposto que essa relação seja percebida e institucionalizada
nas sociedades arcaicas. Reciprocidade seria o princípio do
direito a rca ico ,43 sem porém que este fizesse jus ao seu sen­
tido. Naturalm ente existem instituições que estabelecem a
reciprocidade de form a duradoura e que normatdzam a con­
vivência com desequilíbrios nas relações: instituições de aju­
da ao,s vizinhos e do dever do agradecimento, do tornar-se
dependente ao aceitar-se favores, da entrega obrigatória de
excedentes; em outras palavras — instituições de compensa­
ção transitória de necessidades. Já que essa compensação é
tão essencial, a encontramos tipicam ente norm atizada de
form a concreta. Ela é vista a partir de cada desempenho,
que pode ser esperado enquanto tal e não por causa de uma
retribuição específica. 11 O desempenho individual é realiza­
do como dever institucionalizado ou como possibilidade ins­
titucionalizada de poder, e tão-só a sua retribuição é vista
como dependente do desempenho prévio, sendo norm atizada
como um dever a ele referido mas não especificado. Isso é
possível quando a reversibilidade das situações e a dependên­
cia recíproca ainda são auto-evidentes,4-1 e oferece a vanta­
gem decisiva de ser altam ente elástico e estar pouco sujeito
a perturbações, correspondendo assim ao nível técnico e eco­

191
nôm ico do desenvolvim ento das sociedades arcaicas: os par­
ceiros e o volum e da retribuição não precisam ser especifi­
cados a p rio ri com o no contrato, e perturbações em uma es­
fera de desempenho não se transfere autom aticam ente às
outras. Existe a troca realizada diretamente, e existe a pro­
blem ática instituição do dever não especificado de agradeci­
m ento ao aceitar-se um desempenho voluntário ( “ fa vor” ) . 48
O contrato que desenvolve a troca de desempenhos para obter
retribuições com o um instrum ento de compensação tem poral
de necessidades pressupõe, em sua generalização e especifica­
ção, um n ível mais alto de desenvolvimento. O mesmo deveria
valer para a reciprocidade, que parte da suposição de m o ti­
vos, principalm ente ao supor que o desempenho inicial seja
volu n tário.47
A represália e a reciprocidade (freqüentem ente denom i­
nadas em conjunto com o reciprocidade no sentido am pliado)
form am noções básicas do direito par expressarem uma ge­
neralização congruente de expectativas com portam entais.48
Elas simbolizam a transcendência de distâncias no tempo,
nas diferenças objetivas e de sentido entre as ações, e entre
as pessoas no caso da frustração de expectativas e no caso
de desempenhos positivos. Nessa medida elas possuem o ca­
ráter de noções básicas do direito. Isso não im plica im edia­
tamente, porém, em que se possa ver nessas noções básicas
critérios abstratos que possam ser confrontados com o com ­
portam ento real ou com o direito vigente. Todavia podemos
observar nas fases tardias do direito arcaico, principalm ente
em sociedades que conhecem um certo grau de organização
política e vestígios de processas de arbitragem ou até de to­
m ada de decisões, o reconhecimento do caráter norm ativo
dessas noções da represália e da reciprocidade, utilizando-as
enquanto princípios da igualdade. Mesmo aqui a institucio­
nalização ocorre mais facilm ente com respeito à represália,
onde o princípio do T alião lim ita a am plitude da vingança,
enquanto que a abrangência da retribuição necessária é mais
d ifícil de ser estabilizada devido à função da compensação de
necessidades. Principalm ente na tradição m. is an tiga ao
pensamento jurídico grego podemos verificar o quanto o pro­
blema do excesso está inserido nas instituições do direito —
no caso da represália através da profunda convicção de que
já a afirm ação e a imposição do direito próprio levam à in­
justiça, no caso da reciprocidade através do reconhecimento

192
de que a existência de um dever não especificado de agrade­
cim ento im plica no perigo da insolência ( hybris).
Na reduzida complexidade das sociedades arcaicas e seu
direito encontram-se tam bém os estr angu». >.nentos e as d ifi­
culdades que motivam, possibilitam e sugerem o desenvolvi­
m ento posterior. A teoria da evolução já abandonou a con­
cepção de causas determ inantes e de caminhos previam ente
traçados para um desenvolvim ento linear e contínuo; a pro­
babilidade da evolução reside exatam ente no fato dela poder
ocorrer de diferentes modos. M esmo assim, nenhum sistema
estrutural dispõe de possibilidades indiscriminadas para seu
desenvolvimento. É por isso que um a análise das estruturas
arcaicas, a partir do ângulo da situação am biental e da com ­
plexidade, promete fornecer alguns esclarecimentos sobre
impulsos, possibilidades e estrangulam entos do desenvolvi­
mento.
Um a das disfunções mais evidentes e pesadas do direito
arcaico são os custos diretos e indiretos da. vindita. Esses
custos podem ser reduzidos através da regulam entação das
condições da realização da defesa própria e de meios de san­
ção funcionalm ente equivalentes (com o a suposição da ocor­
rência de sanções sobrenaturais e a introdução de sanções
humilhantes, desonrosas, mas não v io le n ta s); mas eles não
são eliminados e evidenciam-se cada vez mais com a cres­
cente complexidade da sociedade. Na medida em que a pa­
rentela é o sustentamento da defesa própria, daí surgem mais
djficuldades para a criação e a imposição de um d ireito in ­
terno. Um a “ jurisdição” instituída para regular disputas tri­
bais pára na soleira da casa. É por isso que nas sociedades
simples o assassinato entre parentes próximos freqüentem en­
te não é expiado, por um lado porque o assassino controla
sua intim idade im ediata e ninguém pode assumir o papel de
vingador, mas também por um sentim ento jurídico, pois o
assassino como que prejudicou-se a si m esm o.49
Paralelam ente, tam bém tem peso o baixo grau de abstra­
ção e de detalham ento do direito. Sua elevação é bloqueada
pelo caráter drástico das sanções. Um a form ulação m ais pre­
cisa das disposições jurídicas para a adaptação a necessidades
ram ificadas e diferenciadas só é possível se a defesa própria,
a lu ta e a vindita não puderem ser desencadeadas por qual­
quer transgressão, mas estiverem sujeitas a um catálogo mais
apurado de possibilidades de processam ento.50 Além disso,

193
faltam possibilidades de um processamento mais exigente e
objetivo das inform ações em questões jurídicas. Isso atinge
tanto o esclarecimento de fatos passados como também o
aperfeiçoamento de critérios de julgam ento. Em ambos os
sentidos, enquanto um processo decisório não fo r institucio­
nalizado, o direito somente poderá postular exigências m í­
nimas e isso lim ita drasticamente a complexidade das nor-
matizações possíveis.
Onde se localizam, nessa problemática e nessas condi­
ções estruturais, as referências para o desenvolvimento?
Um ponto de partida, reside na diferença no tem po entre
o ato e a represália. Isso possibilita acionar a reflexão e a
influência social, que atuam no sentido de regular a disputa,
já que nenhuma vigên cia absoluta da norm a prescreve a
execução incondicional de uma pena. O direito de asilo, am ­
plamente difundido, também preenche em princípio a fu n ­
ção de ganhar tem p o .31 Dessa form a surgem processos sim­
ples de mediação e arbitragem , de vigilân cia do com porta­
m ento e de pressões, os quais podem ser institucionalizados
como condição prévia para a legalidade da defesa própria. 32
Nesses processos é que pode ser inserida um a argumentação.
O sentido de uma tal intermediação, sob a form a de apala-
vram ento ou exposição da disputa, consiste mais na m anu­
tenção do direito que na sua estipulação ou imposição. T rata-
se de interromper, atrasar ou evitar atos violentos. O siste­
ma de interação originado pela disputa envolve líderes não
participantes e freqüentem ente poderosos terceiros, organi­
zando opiniões e pressões; mas inicialm ente não é pensado
como um processo de tomada de decisões que encerraria a
disputa através de uma conclusão im perativa, juridicam ente
fundam entada,3:! O acatam ento da decisão não é normati-
zadç» enquanto tal. De qualquer forma, porém, criam-se e
vivenciam-se assim sistemas de interação processuais en­
quanto tipos culturais, de form a que a instauração posterior
de tribunais que decidem im perativam ente n ão seja vista
como algo que surge do nada, mas baseada no já conhecido
e com provado.34
Pode-se ver, portanto, que um sistema social precisa de
tempo para com binar os mecanismos em uma nova forma.
Só quando isso for possível é que o tem po pode tornar-se
um m om ento da concepção do direito. As reservas de tempo
para casos de frustrações são, assim, uma condição essencial

194
do desenvuivimento. Mas não eó. Das descrições anteriores
das culturas jurídicas arcaicas pode-se ainda extrair que os
mecanismos jurídicos da resolução de conflitos ainda não
são funcionalm ente especializados e capazes de auto-susten-
tar-se. Eles pressupõem a sustentação através de outros tipos
de estruturas e processos, e aqui surgem apoios mais ou m e­
nos^ propícios ao desenvolvimento. A m ultiplicidade das re­
ferências possibilitam experiências e escolhas evolutivas. A
solução da tribo tangu (N ova G uiné) de liga r a liquidação
do con flito a festividades — ou seja a situações excepcionais
que de qualquer form a ocorreriam, nas quais dançava-se até
a exaustão, com o que expressava-se a raiva, fazia-se dis­
cursos, travava-se negociações e redefinia-se expectativas —
não foi m u ito difundida. M ais freqüente era a aliança
com concepções e práticas mágicas, mas esse cam inho tam ­
bém evidenciou-se como beco sem saída para a evolução.
A ruptura no sentido de form as mais elevadas da cultura
jurídica parece só ter sido alcançada em sociedades que
apoiavam seus mecanismos de resolução de conflitos nas d i­
ferenças de poder entre grupos, ou nas diferenças de status
entre pessoas — uma solução de início nada óbvia. Essa
referência pode diferenciar e generalizar uma form a espe­
cial da dominação política. Posteriorm ente retomaremos esse
ponto.
Um a outra form a de progresso no desenvolvimento pode
ser constatada na form alização e na ritiia liza çã o de alguns
direitos arcaicos tardios. Vistos do ângulo retrospectivo, os
form alism os desse tipo apresentam uma rigidez sem sentido:
um gesto errado provoca a ira divina, um a palavra errada
transform a o que é direito em injustiça, É claro que com isso
removia-se encargos decisórios insolúveis, e essa função pode
ser encontrada mesmo no procedim ento judicial de culturas
relativam ente elevadas.r,,i Vista do ângulo dos primórdios do
desenvolvim ento do direito, no entanto, a função do ritua-
lism o reside no desempenho de abstração, na especificação
e na neutralização das formas jurídicas frente &os^ papéis,
tcrnando-as independentes das eventuais contingências, com
o que elas passavam a poder ser transm itidas e, enquanto
formas, excluídas da disputa. Dessa forma, o procedim ento
judicial, com seus formalismos e riscos incalculáveis, in icial­
mente ainda podia encaixar-se no conjunto de pressões que,
com o na.s sociedades arcaicas, em muitos casos provocava o
apaziguam ento da d isp u ta,57 e mesmo assim já contribuía
para destacar estruturalm ente o direito da dependência da
estruturação dos sistemas de parentesco.5S O fetichism o con­
ceituai dos dogm áticos jurídicos das altas culturas tardias
não teria sido possível sem essa prelim inar, e eles apenas a
desenvolvem até a obscuridade dos conceitos, atin gin do assim
um a m aior riqueza de variações e possibilidades de adapta­
ção. A form ação autônom a do direito no sentido de m aior
abstração e complexidade, ao lon go do desenvolvim ento pos­
terior, depende então com pletam ente de que os rituais ga­
rantam o apoio à transmissão do direito, mas não se to m e m
o único sustentáculo funcional, o único princípio de diferen ­
ciação do direito, tom ando-se assim tam bém imprescindíveis,
mas que passam ser desativados n a m edida em que passem
a ser prescindiveis, com a ajuda de entidades politicam ente
inseridas; um a condição que pôde ser preenchida prim eiro
na área m editerrânea an tiga e depois na passagem para era
moderna.
A lém disso tam bém deve ser considerado o desenvolvi­
m ento econômico, conseqüência da passagem para o cultivo
agrícola e então para am pliação das relações comerciais, que
levou a uma diferenciação mais acentuada, a uma m aior
especificação e, finalm ente, à m obilização de colocações ju ­
rídicas econom icam ente relevantes. Regulam entações m uito
antigas sobre a cooperação na obtenção de bens, sobre a dis­
tribuição e a compensação dos riscos, encontradas já nas
mais simples sociedades extrativas, têm que ser reformadas,
aperfeiçoadas, m ultiplicadas e ampliadas à propriedade da
terra, às provisões, etc. Onde se in icia a econom ia m onetária
surgem disputas jurídicas entre pessoas de diferentes cama­
d a » sociais e que exigem decisões. Proprietários de terras
assumem dívidas. Surgem problemas de crédito que não po­
dem mais ser solucionados n o contexto da dependência recí­
proca entre vizinhos, mas dependem sim de um mecanismo
jurídico previsível e que funcione. O crédito não é mais com­
preendido como função do con texto do parentesco ou da co­
munidade política, mas deve ser isolado na esfera do econô­
mico e, portanto, assegurado juridicam ente. A constituição
de riquezas possibilita a renúncia à força im ediata, que para
o camponês já não representa um recurso tão auto-evidente
quanto para os povos caçadores. A substituição da vindita

196
por um sistema de composições predomina e tom a-se nor­
mal. 59
Ao longo do desenvolvimento, porém, essa solução, à pri­
m eira vista óbvia, evidencia-se como pouco útil, pois ela
apenas atenua mas não evita os conflitos. Tom am -se neces­
sárias mudanças estruturais m uito mais radicais. A ruptura
no sentido de um novo avanço evolutivo passa por um cam i­
nho totalm ente diferente. Com o desenvolvim ento econômico
o núm ero de casos de disputas jurídicas cresce. Com isso a
defesa própria e a luta tom am -se crescentemente inoportu­
nas, surgindo uma necessidade de institucionalização de pro­
cessos regulares para decisões sobre disputas jurídicas, cor­
respondendo, no campo do direito m aterial, a um a necessi­
dade de separação entre direito civil e direito penal, que não
era poTSÍvel no campo da vigên cia da defesa própria. 60 Isso
é facilitado na medida em que com a crescente diferenciação
dispõe-se cada vez mais de possibilidades para a organização
de modos de vida, o que leva a um núm ero cada vez m aior
de partes em disputa, as quais não dependem de um a fu tu ra
vida em comum. A alternativa arcaica entre a reconciliação
e a lu ta pode ser substituída pela nova form a de decisões
jurídicas vinculativas, que não dependem de concordância,
não encam inham um entendim ento entre as partes e servem
apenas para liquidar determinada,s disputas jurídicas, dei­
xando para o indivíduo o encargo da correspondente acomo­
dação de si mesmo e de suas relações sociais. Tais processos
perm item que concom itantem ente o direito seja elaborado
para situações bastante diferentes mas presum ivelm ente re­
petitivas, fixando-o através de decisões de cunho obrigatório,
até que a escrita seja inventada, tom a n d o a preservação de
tais decisões independentes da m emorização e da tradição
oral, aum entando assim im ensam ente a passível com plexi­
dade do direito. Com isso o direito ultrapassa o lim iar das
altas culturas antigas.
Finalm ente, deve ainda ser considerado que o desenvol­
vim en to econômico e político das sociedades arcaicas avan­
çadas aguçavam o problema do crime, na m edida em que
un ificava e pacificava territórios mais amplos, pois isso sig­
n ificava am pliar o âm bito das possibilidades para o crim e —
principalm ente no sentido de possibilidades de escapar do
alcance da parentela, fugindo para outras regiões. A “ seces­
são” do criminoso é uma solução simples apenas para os

197
povos nômades. Ela se torna problem ática e leva à continui­
dade da vida criminosa se para seguir vivendo necessita-se
de bens e se a tribo que absorveria o crim inoso não estiver
interessada na conquista de novos e fortes memhros. É um a
m era suposição afirm ar-se que a centralização da justiça
penal na an tiga China teve seu início com tais criminosos
peram bulantes; 61 mas isso está com provado com respeito aos
criminosos do im pério dos fran cos.62 O problem a criado atra­
vés do desenvolvim ento econômico e da pacificação política
só podia ser solucionado politicam ente — através da in tro ­
dução de um a jurisdição que atuasse diretam ente sobre o
indivíduo. A introdução de processos decisórios em questões
jurídicas, porém, só é possível a partir de certas condições
prelim inares ao nível do sistema político da sociedade. Nesse
sentido, a diferenciação de papéis especificamente político-
adm inistrativos e respectivos sistemas de interação consti­
tuem não só um a da diversas causas, mas configuram uma
condição im prescindível para o prosseguimento do desenvol­
vim ento do d ire ito .63 D a mesma form a que o desenvolvimen­
to social e econômico em geral é im portante para a carac­
terização das normas jurídicas materiais, tam bém o desen­
volvim ento político é relevante para a institucionalização do
processo. Em todas sociedades mais simples, a função polí-
tico-adm inistrativa de geração e imposição de decisões cole­
tivam ente acatadas é preenchida e legitim ada tam bém no
contexto fam iliar; quando m uito ela é diferenciada conform e
as situações em questão, mas nunca diferenciada de outras
esferas funcionais, segundo papéis, ou menos ainda enquan­
to sistema social estabilizado.64 Dessa form a as funções
político-adm inistrativas podem ser assumidas por homens
fortes, anciãos, conselhos tribais, chefes de fam ílias proem i­
nentes ou até mesmo individualm ente por variadas pessoas,
sem qualquer designação institucional e conform e as neces­
sidades; ou então podem ser formadas associações tribais
acim a das comunidades individuais e locais, com seus pró­
prios chefes, constituindo assim uma h ierarqu ia.65 As rela­
ções de parentesco continuam sendo a base para a regulação
de uma m ultiplicidade de diferentes funções, e essa estru­
tura funcionalm ente difusa lim ita as possibilidades de com-
plexificação da sociedade — no direito: lim itação dos objetos
que poderiam ser submetidos a decisões.

"08
A continuidade do desenvolvim ento baseia-se no desco­
lam ento da dominação política das relações de parentesco,
e na sua constituição relativam ente autônoma. As causas
históricas que levam a isso podem ser m uito variadas: m i­
grações e superposições através de guerras (p. ex. na Am érica
pré-columbiana, na A frica O rien tal), construção e adminis­
tração de sistemas de irrigação (nos impérios fluviais da
Ásia e do E g ito ), ou um desenvolvim ento econômico autóc­
tone, com a form ação de cidades (n a área do M editerrâneo).
A estabilização é efetuada principalm ente através da con­
centração de força física e da legitim ação m ágico-religiosa
através de categorias mais abstratas, que não dependem mais
do culto aos ancestrais. O resultado disso é a criação de um a
instância decisória com pletam ente nova, que ocorre em a l ­
guns casos independente entre si, e apesar de muitos retro­
cessos: uma instância independente das partes em dispute
e capaz de impor-se (se bem que freqüentem ente através do
compromisso com as fam ílias m ais poderosas). 68 A possibi­
lidade de estabelecer-se decisões vinculativas é agora institu­
cionalizada com uma certa m argem de seletividade, perm i­
tindo a organização de processos que realizem essa seleção
da decisão. A partir daí o desenvolvim ento do direito pode
(m as não tem que) seguir n a direção das culturas avança­
das, das quais trataremos a seguir. Isso m antém em aberto
um a alternativa essencial para o desenvolvim ento do direito:
se os processos políticos, com o no caso da China, se voltam
principalm ente para o desenvolvim ento do direito penal ou,
como nas cidades — estado do M editerrâneo, principalm ente
em Roma, consegue, além disso, criar aquela desconcertante
instituição de um “ direito político privado” ( “ direito civil” )
do qual o indivíduo participa enquanto cidadão político.
Resumindo, podemos fixa r que em todos os sentidos
aqui discutidos o desenvolvim ento do direito depende das
possibilidades de aumento da com plexidade d isp on ível.87
Para tanto, certas condições são necessárias no campo das
form as jurídicas, na área da econom ia e na esfera funcional
político-adm inistrativa. As sociedades arcaicas são encontra­
das em um nível de com plexidade relativam ente baixa. Seus
problemas são mais simples, porque elas dispõem de menos
possibilidades de resolução dos problemas. Sua estabilidade
se baseia na falta de alternativas. Sua visão de mundo, suas
form as de afirm ação do direito e de processamento de frus­
trações, seus problemas típicos, suas ameaças e estratégias
de defesa referem-se reciprocam ente através desse traço bá­
sico da pequena com plexidade do sistema social. Nessas con­
dições os problemas e as possibilidades de sua resolução
estão reciprocam ente adequados. Isso garante uma grande
estabilidade interna frente à forte ameaça externa. As pos­
sibilidades do desenvolvim ento baseiam-se menos na estru­
tura das sociedades individuais e mais n a m ultiplicidade das
diferentes sociedades que, partindo de situações e condições
am bientais distintas, tentam as mais diferentes combinações.
As crises ocorrem principalm ente quando se form a um a
m aior complexidade em esferas funcionais isoladas ■— por
exem plo através do desdobramento de formas rituais, da
individualização do medo e da generalização da moral, da
dominação política violenta ou da am pliação do potencial
econômico. Então surgem aqueles desequilíbrios (m u ltiplici­
dade de form as sem relação com a angústia individualizada
ou com as necessidades econômicas; dominação violenta sem
bastante potencial econôm ico e uma legitim ação religiosa
suficientemente abstrata; desenvolvim ento econômico sem
suficientes instâncias decisórias político-adm inistrativas e
sem uma religiosidade neutra em questões econômicas) quo
ameaçam a estabilidade da sociedade e provocam retrocessos
se as condições com plementares não puderem ser rapidam en­
te desenvolvidas. Pode ocorrer um período de transição, pois
nem tudo pode ser mudado de um a só vez. As funções de
transição são preenchidas pelas formas prelim inares (form as
jurídicas ritualizadas, processos de arbitragem , hierarquia
pim m idal, etc.) já expostas e que inicialm ente podem ser
absorvidas, sem rupturas, na nova ordem das sociedades
politicam ente constituídas das culturas antigas. Finalm ente,
a rriàior complexidade, a riqueza em variações e alternativas
tom am -se o mais im portante fator de estabilização, e com
isso os retrocessos tornam-se improváveis. A sociedade se es­
tabiliza em um nível mais alto de complexidade com o au­
xílio dessa mesma complexidade. Com isso o direito adquire
um outro sentido geral, mesmo quando as normas perm ane­
cem in alteradas.6S Ele é desenvolvido com o um complexo
de premissas para decisões, e sua referência aos processos
elementares de form ação do direito é m ediatizado através de
processos deeisórios.

200
3 — O direito das culturas antigas

Enquanto que no caso das sociedades arcaicas a m u lti­


plicidade das diferentes configurações de ordenamentos ju rí­
dicos relativam ente simples dificulta uma exposição resumi­
da, obrigando-nos a não considerar os detalhes, no campo
das culturas antigas o problema reside na complexidade in ­
trínseca às diversas configurações do direito. Poucas são as
sociedades que atingem um grau de desenvolvimento cor­
respondente às características de uma civilização no campo
do direito. Essencialmente temos que pensar na cultura ju rí­
dica chinesa, na hindu, na islâmica, na greco-romana, na do
continente europeu e na anglo-saxônica. É só no contexto
dos dois últimos ca.sos é que surgirão possibilidades de dife­
renciação interna de um sistema social lsvando a uma civi­
lização do direito, fazendo surgir ordens jurídicas das quais
resultem bases de sustentação para o prosseguimento do
desenvolvim ento no sentido da positivação do direito. Isso
significa que temos que tratar de poucos sistemas jurídicos.
Em compensação a complexidade interna dessas ordens ju rí­
dicas, a m ultiplicidade das normas vigentes são tão grandes
que o tratam ento adequado desse conjunto norm ativo torna-
se impossível no contexto da sociologia p;eral. Desca form a
teremos que nos lim ita r a alguns traços básicos e ao sentido
genérico da vivência daqueles sistemas jurídicos.
As culturas adiantadas anteriores à erà moderna fo r­
mam-se em sociedades com um a diferenciação funcional in ­
com pleta. T an to no campo político, quanto no econômico já
existem centros funcionais que se justificam pela especifici­
dade de seus desempenhos. Existem templos, igrejas ou mos­
teiros, .sacerdotes e sábios que se ocupam não mais apenas
com a interpretação religiosa dos eventos, mas com a in ter­
pretação da própria religião. Existem mercados ou locais de
armazenam ento e distribuição que servem para a compen­
sação de necessidades também entre não parentes. Existe
uma dominação política em certo grau capaz de tom ar de­
cisões e, normalm ente, de impô-las, mais poderosa que todas
as forças individuais do país, sendo então imprescindível por
causa desse desempenho ordenador em termos políticos e
administrativos. Vistos a partir da vida cotidiana, porém,
esses ccntros funcionais, geralm ente urbanos, governam ape­
nas situações excepcionais. A m argem deles, e de form a re­

•201
lativam ente autônoma, a massa da população vive na antiga
ordem de parentesco, nas “ casas” e em aldeias, ou eventual­
mente em estabelecimentos profissionais nas cidades.89 M an­
tém-se o padrão tradicional do modo de vida. Isso corres­
ponde a uma m aior necessidade em termos de direito, que
mesmo assim parece reduzida a partir das concepções, atuais.
Nas culturas mais antigas, ou seja no Oriente, que des­
tacam o sistema político e religioso da ordem de parentesco,
sem porém distingui-los entre si, desenvolve-se um direito
vinculado à religião, que é transm itido em bloco sem poder
ser suficientemente controlado e desenvolvido processual­
mente — apresentando por isso alguns traços pouco práticos
e resultando freqüentem ente em uma aplicação bastante
arbitrária. Não obstante foi possível, principalm ente na Me-
fopotâm ia, desenvolver um direito com ercial útil, baseado em
uma precoce diferenciação entre dispositivos econômico-reli-
giosos e político-m ilitares, e que posteriormente serviu de
fundam ento aos “ direitos sagrados” literalm ente canoniza­
dos. Tais direitos sagrados, dos quais o direito islâmico foi
a últim a e mais notável expressão, surgem no bojo de m ovi­
mentos de renovação religiosa. Apesar da abstração do pen
sarnento religioso, suas esquematizações conceituais não pu­
deram desenvolver aquela capacidade de assimilação, aquela
confrontação com experiências problemáticas que tanto ad­
miramos no direito romano; a experiência especificamente
jurídica não serve de base para o controle e desenvolvim ento
intrínseco, mas é transm itida como corpo literário, objeto de
tratam ento e ru d ito .70 Os impulsos para a racionalização do
direito não residem nos problemas do crescente intercâm bio
de mercadorias, mas na “ necessidade sentida por determ ina­
dos* círculos de devotos de valorar religiosam ente todas as
condições de vida.” 71 O desenvolvimento do direito no Orien­
te demonstrou freqüentem ente que, por baixo do campo nor­
m ativo de tais direitos sagrados, ainda podem ser praticados
direitos comerciais suficientem ente eficazes. Sua sistem ati­
zação e racionalização, porém, sofrem as conseqüências de
terem que levar o direito sagrado em consideração. No direito
chinês encontramos uma form a m uito interessante e estável
dessa situação, a qual, porém, apresentava poucas possibili­
dades de desenvolvimento, configurando um a centralização
p olítica religiosam ente explicitada por cima da continuidade

202
de uma ordem fam iliar arcaica. Daí resulta uma centraliza­
ção apenas do direito direito .penal e do direito público e ad­
m inistrativo fundamentado na punição, ao lado da continui­
dade de uma prática jurídica arcaica, sendo que a compen­
sação dessas contradições ocorre através da generalização do
uma m oral situacional e relacionai da sintonia harmônica
com a natureza, a qual, por ser arcaica, impede a eclosão de
direitos através da pura vigência, sendo que sua visão de
mundo generalizada e a acentuação da diferenciação corres­
pondem às necessidades da cultura avançada e, no restante,
às possibilidades especiais da lín gua chin esa.72
Um resultado diferente, se bem que igualm ente lim ita-
tivo, surge quando o sistema político é capaz de distanciar-
se das vinculações religiosas, permanecendo no entanto atado
à casa e à economia do senhor político (principalm ente à
propriedade da terra) constituindo assim uma form a de ad­
m inistração patrimonial. Exemplo do desenvolvimento autóc­
tone de tais situações são encontrados na Grécia da época de
Homero, em reinos africanos, na Rússia antiga, no próprio
E gito como form a de retrocesso tem porário de ordenamentos
políticos diferenciados, e principalm ente após a queda do
im pério romano. Nesses casos, a aplicação do direito é con­
duzida adm inistrativam ente, inserida no catálogo de direitos
e deveres da dinastia, sem porém possuir objetivos próprios
em termos de ordenamento, baseando-se no diretio das gentes
tradicionalm ente transm itido e instituído a cada caso. Aqui
também estão ausentes os impulsos para uma elaboração es­
pecificam ente jurídica do direito. A prática jurídica não ne­
cessita de fronteiras territorialm ente definidas nem de uni­
dade jurídica dentro dessas fronteiras, pois ela tolera um a
diferenciação do direito conforme os grupos de pessoas em
questão.
Um direito am plamente independente da religião e da
casa do senhor, construído a partir e para o processo ju rí­
dico pressupõe, como é comprovado pela história das antigas
cidade.s-estados, um prim ado s o c iil do ce n tro funcion a l da.
política. Essa é a condição para a grande produção jurídica
e principalm ente para aquelas construções jurídicas a rtifi­
ciais, mas muito oportunas para a relação entre as pessoas
e para os procedimentos processuais, que caracterizam o di­
reito romano — como por exem plo a idéia de atribuir o risco

203
do defeito ao com prador e não ao vendedor, ou então a de
deduzir a propriedade da posse atual (e não da an tiga).
Na área antiga do M editerrâneo a passagem para o di­
reito cultivado, tratado em termos especificamente jurídicos,
baseia-se na fundação da cidade, na constituição da polis
acima das casas e das linhagens da an tiga tradição. Não é
por acaso que Aristóteles interpreta a legalidade das relações
entre os homens livres como uma conquista evolutiva da
“ polis ou sociedade p olítica” ( pólis kaí he k oinon ía hé p oli-
tik é ; civitas sive societas civilis) 73 — uma fórm ula que re­
siste até o fim do século XV111 como parte essencial da tra­
dição doutrinária. A ordem política compreende não mais
apenas disputas entre linhagens, mas consegue impor-se cada
vez mais às relações entre os próprios indivíduos indepen­
dentemente de seus parentescos. O efeito propriam ente p olí­
tico, que 0 3 gregos não localizam nos impérios despóticos
( = de estrutura fa m iliar) dos bárbaros, reside não na domi­
nação e na imposição de decisões, mas na institucionalização
do direito com respeito às pessoas enquanto tais. ou seja en­
quanto um ser vivo que não pode agir de outra forma. O
homem deve ser inserido no direito e na sociedade como
alguém que atua independentemente de opções, e para tanto
é necessário um processo decisório juridicam ente ordenado.
As aldeias, enquanto simples derivações das casas.74 não são
capazes de provocar tais resultados. A configuração política
da sociedade através de instâncias e processos representa na
autopercepção grega, e com isso em toda a tradição européia,
antiga, a condição necessária para a realização da convivên­
cia entre pessoas livres de um a form a juridicam ente susten­
tável, e a sociologia só pode confirm ar essa tese.
Ao lado disso um a segunda conquista evolutiva se afir­
ma: a form a hierárquica da denominação que se desenvolve
paufatinamente, através de transformações quase impercep­
tíveis, a partir da an tiga construção piram idal da socieda­
de. 7ri Através da im agem sugestiva de um a diferenciação
entre “ superior” e “ in ferio r” sedimenta-se e unifica-se um a
m ultiplicidade de estruturas, inicialm ente independentes, que
se institucionalizam como um conjunto natural e indissolú­
vel. Isso ocorre (1 ) através, de um diferencial generalizado
de prestígio entre o “ superior” e o “ in ferior” que fundam en­
ta uma diferença sistemática de categoria (fundam entada
não só politicam ente, mas também em termos religiosas,

204
econômicos, militares, etc.) e que são visualizados e susten­
tados por diversos mecanismos secundárias, como símbolos
de status, form as diferentes de com unicação e até mesmo
línguas distintas para a relação entre os “ iguais” ou “ supe­
riores” ; (2) através de um a divisão de tarefas corresponden­
tes a essa diferenciação de categoria, no sentido de que aos
papéis de categoria mais elevada cabem atividades diferentes
das atribuídas às categorias mais baixas, o que inclui normas
e liberdades distintas, sendo que as atividades das categorias
superiores são consideradas mais im p o rta n tes ;76 (3) através
de um a estrutura assimétrica de comunicação, cabendo aos
superiores dar instruções e aos inferiores obediência obriga­
tória; e (4) finalm ente, através da fixação dos papéis cor­
respondentes no sentido de um potencial perm anente de
ação, de vigência independente da situação, através do qual
torna-se possível um desempenho decisório expectável, e que
não funcione apenas ocasionalmente.
Essa síntase de aspectos com portam entais distintos em
um ordenam ento consistente, no qual um m om ento sustenta
o outro, não seria possível em sociedades arcaicas; essa rela­
ção intrínseca não se evid en ciaria.77 Nas sociedades arcaicas
tardias encontramos im portantes rudimentos nessa direção.
Nas altas culturas a síntese generalizante de um a hierarquia
é imprescindível, se bem que permanece problem ática a com ­
binação das diferenças entre categorias com sua duração
independentem ente das situações.7S P or cima de todas as
diferenças entre as soluções individuais historicam ente con­
dicionadas podemos supor determ inadas condições gerais
para a estabilização da dom inação hierárquica, que variam
conform e a estrutura e o grau da com plexidade da sociedade.
Encontra-se a estrutura hierárquica da sociedade estabili­
zada de form a relativam ente concreta e sem alternativas.
Existe já uma mudança institucionalizada no cargo e, no
contexto das burocracias, existe até mesmo uma id en tifica­
ção distinta do cargo e da pessoa. Com isso a atividade do
cargo pode ser assegurada independentem ente da pessoa. P or
outro lado, os submetidos não podem conceber uma outra
ordem ou a ocupação de uma outra posição na ordem vi­
gente, 7n pois apenas uma pequena camada dirigente compete
pelos cargos, faz carreira e pode lid ar com a política e a
adm inistração considerando alternativas. Pelo lado da pró­
pria dominação, a ausência de alternativas pressupõe um

205
alto grau de “ congruência de status” . Ml Isso significa que
os critérios de atribuição de status social não podem ser con­
sideravelmente divergentes. Os papéis proeminentes têm que
sustentar, consistentemente, proeminências. Quem dom ina
politicam ente tem que ser rico também, tem que ser consi­
derado sábio, tem que ser de linhagem notável, tem que
habitar a m elhor casa e ter o m aior número de serviçais,
tem que exercer o comando m ilitar, ou seja: tem que sobres­
sair-se em quase que todos os sentidos. A sociedade não su­
porta uma m ultiplicidade de hierai’quia de status, a parti *
das quais surgiriam ordens hierárquicas discrepantes. Nesse
sentido a separação m edieval entre o poder eclesiástico e o
poder secular gerou uma situação instável da qual desen-
volveram-se formas mais abstratas de integração do sistema
social.
Podemos ver aqui por que e até que ponto as culturas
avançadas da antiguidade dependiam da incom pleta diferen­
ciação funcional do sistema social. A form ação hierárquica
da sociedade é convincente devido à generalização funcio­
nalm ente difusa, à ausência de alternativas, e é nisso que
reside a integração do sistema social. Dessa form a são esta­
belecidas certas condições gerais que delim itam as neces­
sidades e as possibilidades do direito.
É nesse contexto que se desenvolve o direito das culturas
antigas. Ele se baseia em uma sociedade já bastante com­
plexa, na institucionalização de certas possibilidades (liber­
dades) de opção, na realização de processos decisórics de
cunho jurídico, e na existência de uma hierarqiua de cargos
independente de situações, capaz de decidir e, norm alm ente,
de im por suas decisões, sem depender das armas dos paren­
tes ou dos partidários. Os processos e os cargos estão à dis­
posição para decidir sobre disputas jurídicas entre in diví­
duo?. as quais surgem constantemente de um a m u ltiplici­
dade de motivos imprevisíveis. Sob tais condições prévias,
cujas conseqüências jurídicas logo discutiremos, torna-se pos­
sível preencher a função da generalização congruente de
expectativas com portam entais em um plano mais elevado
em termcs de complexidade e abstração, ou seja, institucio­
nalizando um novo estilo de direito. A gora o direito estabe­
lece aquele com plexo de expectativas com portàmentais nor­
mativas, cuio reconhecimento é obtido através de uma ação
na justiça, no tribunal. O processamento de frustrações A
canalizado para o caminho jurídico, aliviando-se assim de
muitas conseqüências Hi^fnnHonnis. Na estrutura da expec­
tativa de expectativas a expectativa do juiz é absorvida como
momento final e decisivo. O processo decisório regulado rea­
liza agora aquela seleção entre possíveis projeções normati­
vas, aqueles processos institucionalizantes e aquelas identi­
ficações de expectativas que tom am o direito congruente nas
dimensões temporal, social e objetiva. Agora surge uma maior
separação entre os diversos tipos de projeções normativas e
aquelas selecionadas enquanto direito, e dessa forma aumen­
tam a complexidade e o potencial de desenvolvimento da
sociedade. A conquista decisiva reside, então, na institucio­
nalização do procedimento judicial — sistemas de interação
de tipo especial, cuja função consiste em determinar a deci­
são de uma situação em aberto, em ahsorver a incerteza e
dessa forma substituir a luta arcaica pelo direito por um
processo que apresenta mais alternativas e possibilita opções
fundamentais. O desenvolvimento do direito realiza-se atra­
vés do desenvolvimento de complexos sistemas processuais.81
Através das condições para institucionalização desses
procedimentos a ordem jurídica vincula-se às estruturas so­
ciais correspondentes, permanecendo dependente do estágio
do seu desenvolvimento (o que não significa, naturalmente,
que o direito processual resulte automaticamento da estru­
tura social). A diferenciação do processo enquanto sistema
de interação relativamente autônomo e capaz de estabelecer
decisões pressupõe a diferenciação prévia da dominação po­
lítica. A presença de um terceiro que sempre é mais poderoso
que qualquer das partes em disputa garante a liberdade de
decidir-se independentemente. Isso tom a possível o estabe­
lecimento da decisão durante o próprio processo, através de
orientações normativas (e não a partir do poder ou do con­
senso) ; a decisão não é predeterminada por configurações
externas de poder — por exemplo através da pressença de­
monstrativa de adeptos — mas permanece em aberto antes
e durante o processo. A incerteza do resultado é um momen­
to essencial da estrutura do processo, e motiva a participação
ativa e o engajamento das partes. Ela é simbolizada enquan­
to exigência da ética jurídica através do princípio da “ im­
parcialidade do juiz” . Ela substitui, em um nível mais ele­
vado de racionalidade e de liberdade de opção, os antigos

207
princípios de incerteza do resultado da luta e da determ ina­
ção m ágica através do “ julgam ento d ivin o” .
A dominação p olítica não esgota sua função jurídica ao
emprestar sua espada à justiça. Ela não pode ser vista ex­
clusivamente a partir do papel isolado do senhor e das liber­
dades resultantes desse papel. Realm ente existem becos sem
saída no desenvolvimento, na form a de variações despóticas
da dominação política. A inovação bem sucedida, no entanto,
reside na form ação de novos sistemas processuais que eli­
m inaram uma m aior incerteza através de processos de sele­
ção interativa e que conduzam a decisões, podendo assim
absolver riscos maiores em sua estrutura. P or força da con-
plexidade e da incerteza que lhe são próprias, os processos
jurídicos podem retratar os conflitos norm ativos de form a
mais com plexa que no caso da simplees luta física ou má­
gica, transferindo-os assim a um mecanismo de resolução de
con flito s.82 O senhor político é inicial e principalm ente
aquele que prom ove o processo — não necessariamente as­
sumindo o papel de ju iz ou de m andante de juizes. Essa
transform ação possui o caráter de uma inovação estrutural,
se bem que na transição são introduzidos no processo alguns
elementos m ágicos (p. ex. o juram ento) com o apoio das
decisões, e que só perdem sua relevância paulatinam ente e
na medida em que a capacidade decisória do sistema proces­
sual pode ser exp an d ida.83
A o considerar-se não apenas o papel do senhor juiz, mas
tam bém o processo enquanto sistema social especial, surgem
outras condições para a diferenciação e a autonom ia do pro­
cesso decisório. Elas significam , principalm ente: (a ) a espe­
cificação ão sistema de interação no sentido da preparação
de um a decisão ju rídica prescritiva, a partir de critérios fixos
de'antem ão, no lu gar da ta refa genérica da arbitragem le­
vando em consideração todas as circunstâncias relevantes;
(b ) a neutralização da personalidade individual do juiz (suas
preferências e relações pessoais, suas lembranças e seus co­
nhecimentos) enquanto fator da decisão; (c ) o isolamento
de outros papéis sempre que esses papéis não se constituam
em tem a da decisão; (d ) não consideração das reações do
público, especialm ente da “ colère publique” (D u rk h e im ),
enquanto condição ou em pecilho à execução das decisões; e,
finalm ente, (e ) a separação entre tribunal e processo, no
sentido de que a unidade atua como fator da form ação de

208
expectativas e da legitim ação, enquanto que u m tribunal
pode realizar diversos processos diferentes, até mesmo sim ul­
taneamente, podendo assim adequar-se apropriadamente a
tem áticas constantemente m utantes (sem prejudicar sua es­
trutura enquanto in stitu içã o). Tudo isso não pode ser criado
repentinam ente, ou introduzido por um a decisão legislativa.
Tais especificações, por seu lado, envolvem complexos pres­
supostos .sociais, por exemplo, com respeito à mobilidade dos
contatos, ao grau de abstração d e p r o c e s s a m e n t o d a s e x p e ­
riências, da tolerância e da indiferença nas relações sociais.
P or outro lado as diversas culturas jurídicas apresentam
acentuadas diferenças quanto ao grau e às formas da rea­
lização do princípio processual 84 e , como M a x W e b e k acen­
tuou, fortes diferenças no grau de racionalização do direito.
Em todos os sentidos antes mencionados não é necessário
atingir-se um estado ótim o de realização, e isso s e q u e r é p o s ­
sível. Mas o desenvolvimento m aterial do direito no sentido
de um sistema norm ativo especial depende do grau em q u e
esses pressupostos são preenchidos.
Protegido pelo poder p olítico estabilizado, desenvolve-se
o poder da argum entação e da demonstração. No processo
não se trata mais simplesmente de afirmar-se, ter o direito
concretamente, e apresentar isso com o um a expectativa que
se pretende m anter até a morte. Já nos processos de arbitra­
gem das sociedades arcaicas mais desenvolvidas surge um
estilo da argum entação que m anifesta a disposição à conti­
nuidade da relação social, apresentando assim a posição de­
fendida com o boa e razoável, mas dessa form a também sub-
metendo-se a um julgam en to correspondente.S(i As preten­
sões norm ativas perdem sua expressividade imediata. Elas
assumem um caráter moral, isto é, se referem explicitam ente
a valores e normas das quais pode ser esperado que qualquer
um as aceite como condição para uma convivência continua­
da. Em sua moralidade reside um apelo à ordem em comum,
acim a de todas as disputas, na qual se es,tá decidido a viver
no futuro, à qual todos se submetem, e da qual se espera
uma decisão da disputa. Princípios em comum são generali-
záveís pois agora não se trata de continuidade da vida em
um a pequena comunidade com suas poucas alternativas e
suas condições concretas de vida, que são conhecidas e sobre
as quais não se tem que refletir; trata-se sim de apresentar-
se como uma pessoa razoável, aceitável do ponto de vista de
n

uma m oral generalizante, ou seja: trata-se da sobrevivência


enquanto ser social.
Na im agem do “ hom em razoável” estão tam bém as pos­
sibilidades de dar-se cobertura m oral ao com portam ento d i­
vergente. Os próprios delinqüentes utilizam essa im agem ,
argum entam “ norm alm ente” através de valores e arraza-
mentos da ordem aceita, procurando apenas neutralizar sim ­
bolicamente o conteúdo especificamente ilegal do seu próprio
com portam ento.87 Dessa form a podem ser concom itante-
mente iniciadas modificações jurídicas — por exem plo sob a
form a de novas excesfõss a uma antiga regra. Essa estratégia
utitliza o grau mais elevado de abstração dos valores, ou seja
a circunstância de que é possível apslar-se para valores so­
cialmente reconhecidos mesmo para os com portamentos que
divergem das normas. Sua aceitação como argum ento ju rí­
dico indica um sintom a da diferenciação incom pleta entre
o direito e as outras esferas de sentido da sociedade. A u tili­
zação dessa argum entação é difundida; dependendo do está­
gio de desenvolvim ento a sociedade ela pode ser usada gene-
ralizadam ente no processo em tribunal, ou lim itada à utiliza­
ção profissionalm ente controlada no esclarecimento de dúvi­
das sobre a interpretação de textos le g a is .88
Resumindo, o processo força um grau mais elevado de
verbalização e reflexão a partir de uma auto-exposição so­
cialm ente aceitável e de uma m anifestação explícita e assu­
m ida à in dagação: quem sou eu ao ponto de ser futuram ente
aceito pelos outros como parceiro jurídico? Nesse contexto a
expectativa frente expectativas é comandada p or valores e
normas cuja função integradora é de qualquer form a tão
consciente que é impossível apoiar-se simplesmente nas pró­
prias presunções. Submeto-me a uma norm a por achar que
ela me dará direito — diferenciando asdm es.:es dois planos
das normas vigentes e da auto-afirm ação do direito. Nessa
complicação do experim entar e do expor reflete-se a nova
complexidade do processo, que o indivíduo m ediatiza ao ex ­
perim entar o direito. O direito agora é decidido no processo.
Não se pode mais estar seguro que o direito vigente e proces­
sualmente praticado corresponda e oriente aquilo que o in­
divíduo sinta como seu direito.
A isso acrescenta-se um outro aspecto: no processo pode
ser inserida a função da “ reinstitucionalização” , no sentido
de outorgar institucionalm ente aos juizes a atribuição de

210
institucionalizar expectativas através de suas decisões, le gi­
tim ando assim seus efeitos vinculativos enquanto “ expecta­
tivas de terceiros” . 89 CSom a objetivação da referência de
sentido da argumentação, o processo plenam ente desenvol­
vido altera também a efetividade social da decisão. Um a mu­
dança correspondente pode ser observada na dimensão tem ­
poral: um ju iz que não mais tenha apenas que mediar, fis­
calizar o ritual e assistir o desenrolar de um 'direito mágico,
mas que tenha que decidir, tem que defender sua decisão
com o um a expectativa n orm a tiva sua. Dessa form a o centro
de gravidade da norm atividade estatuinte desloca-se sutil-
mente. Não s,e trata mais da sustentação de expectativas
frustradas, mas da sustentação de decisões sobre expectativas
frustradas. O juiz tem que referir a norm atividade à sua pró­
pria decisão e norm atizar as expectativas formuladas nesse
c o n tex to .90 Ele tem que se apresentar com o um não parti­
cipe, até mesmo como desinteressado, e apesar disso querer
sustentar suas próprias expectativas. Dessa form a ele se sub­
m ete às normas e à necessidade de m anter consistência: ele
tem que decidir de tal form a que as expectativas expressas
na decisão sejam m antidas e seguidas em outros casos e
perante outras partes, mesmo que a disputa jurídica original
já há m uito tenha sido resolvida, que os partidos tenham
mudado de interesse, que a disputa tenha deixado de ser
im portante. N a decisão articula-se um a nova concepção de
norma, de estilo mais abstrato, e um outro plano da certifi­
cação da congruência das expectativas. E isso representa um a
condição para que o direito projetado na disputa seja degra­
dado ao n ível de simples afirm ação, possibilitando seu con­
trole a partir de normas preexistentes.
O processo judicial das culturas antigas é, assim, um a
com binação de diversas conquistas evolutivas em toda" as
dimensões da generalização de expectativas. E é só nessa
com binação que o processo muda o nível de congruência do
direito. Ó processo, portanto, não é nenhum a “ unidade na­
tu ral” , mas um a generalização que coordena vantagens —
de form a semelhante ao já visto com respeito à idéia da
h ierarq u ia.9t A am algam ação em uma unidade convincente
enquanto tal não é auto-evidente; inicialm ente ela é até mes­
mo im provável em termos evolutivos e só tem lu gar paula­
tinam ente, através de realizações parciais que se apóiam,
reforçam e condicionam reciprocamente. E é só no fim de

211
um longo desenvolvim ento que se pode con fiar no seu su­
cesso: na concepção abstrata de que no processo é possível
tomar-se decisões vínculativas.
Esse reordenam ento do mecanismo seletivo do desenvol­
vim ento do direito em um processo de estabelecim ento de
decisões vínculativas leva a mudanças ao n ível das form as
através das quais o direito é estabilizado e mantido. A decisão
exige que se lide oom a tem ática da disputa, que se considere
a moralidade própria das partes envolvidas. Seu dualismo
m oral desenvolve-se para o ju iz no sentido de um a dicotom ia
lógica segundo a qual apenas uma das partes pode ter di­
reito. 92 Résta então decidir qual. Com isso exclui-se aquele
raciocínio através do qual a tragédia grega re,sumia e trans­
m itia a form a arcaica de experim entar o direito: a idéia de
que o estar errado pode estar embutido na própria afirm ação
do d ireito .93 P a ra o juiz, a estrutura exclusivista do direito
garante sua capacidade de decidir sobre todas as disputas
jurídicas, a funcionalidade do seu papel, a sim plificação de
sua necessidade de inform ação, e uma perspectiva norm ativa
objetiva, pela qual as noções de direito das partes são ou não
são coincidentes.
A certificação da objetividade da decisão é o resultado
de um prolongado desenvolvimento e só pode ser adm itida
nas culturas jurídicas aqui discutidas com fortes restrições.
Temos, ao contrário, que supor que as sociedades mais an ti­
gas eram menos sensíveis que as atuais aos com ponente 3
subjetivos, pessoais e “ casuais” da decisão ju ríd ic a .94 A lem ­
brança das form as arcaicas da arbitragem e da resolução de
conflitos pode continuar a exercer algum efeito, e além disso
o direito era visto como externo e independente do processo.
Apenas na m edida em que a própria decisão serve para a
expesição do direito e para a orientação também do com ­
portam ento futuro é que a exclusão de elementos subjetiva­
m ente inseridos na decisão torna-se uma necessidade insti­
tucional.
Independentem ente dessa questão os sistemas proces­
suais atingem , ao longo da interação recíproca e das aí es-
tabilizadas expectativas sobre expectativas, uma nova in te­
gração das diferentes perspectivas dos participantes. A con­
cepção norm ativa e m aterial do juiz, determ inante da de­
cisão, tom a-se a referência das autoprojeções morais das
partes, o objeto da audiência, o objetivo do trabalho em

212
comum no sentido da redução da complexidade e da absor­
ção de incertezas. Os postuladores de seus próprios direitos
se submetem à moral e à razão pretensamente genéricas, a
partir das quais o juiz então decidirá a seu favor ou não.
O processo não garante um entendimento sobre seu resulta­
do, mas apresenta uma nova forma abstrata de consideração
e, de caso a ca.sc, uma sedimentação de critérios objetivos
segundo os quais os casos são decididos e contra os quais o
indivíduo se isola ao se sentir contrariado. Agora, o que
constitui “ o direito” e é tratado como generalização con­
gruente é composto por tais sedimentações de sentido pro­
vocadas por inumeráveis processos não mais rememorados
individualmente.
Com isso surge — e essa é uma novidade fundamental
— uma ordem normativa que permite o tratamento e a de­
cisão de controvérsias jurídicas. Os ensejos sociais imedia­
tos para esse desenvolvimento podem localizar-se, como M a x
W e b e r supunha,93 no surgimento de disputas quanto a di­
reitos individuais de status ou de propriedade intimamente
relacionados à reestruturação política da sociedade e ao iní­
cio da economia monetária, e que não mais podiam ser pro­
cessados na forma antiga da sanção à injúria e ao delito.
A vindicatio do direito romano demonstra de forma clássica
essas raízes e sua.s conseqüências para a formação do direito
material. Uma outra fonte desse desenvolvimento se deriva
de que freqüentemente eram os próprios contestadores ou
transgressores que procuravam introduzir um processo judi­
cial politicamente instituído e dessa forma escapar da defesa
própria arcaica, utilizando a chance que agora concedia di­
reitos e proteção até mesmo ao transgressor das normas. 96
Com isso o próprio direito atinge um grau mais elevado de
abstração. Ele não mais consiste da exposição da expectativa
do frustrado e da canalização de sua reação, ele é transfor­
mado em uni regulador mais abstrato que possibilita con­
frontar as representações jurídicas de ambas as partes, ven­
do-as e tratando-as inicialmente como meras afirmações ju­
rídicas, para interpretá-las de forma neutra e crítica, a
partir de padrões precedentes. O direito assume agora a for­
ma de programas decisórios axiomaticamente estabelecidos,
ou seja: formulando as condições sob as quais as decisões
são corretas. A partir daí toma-se possível mudar a orien­
tação do direito formulado da diferenciação concreta e ime­
diata entre o com portam ento perm itido (bom ) e o proibido
(m a l), para a diferença mais abstrata entre prescrições v i­
gentes e nulas, e aplicar o direito controlando criticam ente
sua vigência e por causa dessa vigência. O ensejo para isso
parece ter vindo não apenas dos interesses próprios ao sis­
tem a processual, mas tam bém dos interesses das sociedades
mais amplas na unificação territorial do d ire ito .97 Com o
desenvolvimento de critérios especiais de vigência atinge-se
um a diferenciação dos processos de norm atização e valo-
ra ç ã o .98
É necessário apontar para um im portante efeito secun­
dário dessa transform ação: a própria ação da disputa, a afir­
mação do ter direito e com ela todo o aparato argum enta-
tivo, as regras da retórica e da interpretação, a topologia, os
critérios da escolha de conceitos e o poder de convencim ento
.se descolam do direito, são expulsos em favor da sistematici-
dade interna do direito. O direito não é mais uma luta —
nem um a luta entre top oi e argumentos — e tornou-se uma
ordem abstratam ente regulada. Os artifícios do jurista, e
mesmo as imagens construtivas da dogmática, não são par­
tes integrantes imanentes do direito. Esse se reduz a axiomas
que vigem. Com isso conquista-se uma distinção mais nítida
entre o sentido pessoal e o program ático — a pretensão ju rí­
dica pode ser verificada sem referência à pessoa que a sus­
ten ta — e ao mesmo tem po surge uma m aior diferenciação
do fator de estabilização, do sistema de axiomas jurídicos,
dos mecanismos de geração e seleção de expectativas norm a­
tivas e com isso um aum ento do desempenho do mecanismo
e vo lu tivo .99 Se bem que exatam ente a literatura jurídica
mais recente foi bem sucedida na sua oposição a esse estrei­
tam ento, 100 do ponto de vista evolutivo ela deve ser vista
com o uma conquista, na qual se baseia toda a continuidade
do desenvolvim ento jurídico.
Com base nessas modificações, o direito pode desdobrar-
se não só de form a mais abstrata, mas também mais dife-
renciadamente, tom ando-se assim mais adequado à crescente
com plexidade da sociedade. Pouco a pouco surge um a con-
ceituação especificam ente “ ju rídica” , que em princípio pos­
sui funções instrum entais e não mais expressivas; que não
mais expressam im ediatam ente o experim entar jurídico, mas
o analisa, categoriza, classifica e avalia em termos de con­
teúdo, ou seja: possibilitando um a decisão racional sobre o
direito no caso de disputas. Com isso torna-se possível to m a r
a garantia do direito em princípio dependente de critérios
específicos, definidos a p rio ri e universais (isto é sem consi­
derar a proxim idade de particularidades e relações dos en ­
volvidos) — o que ocorreu pela prim eira vez, de form a apro­
ximada, nas culturas urbanas da M esopotâm ia.101
As variações mais expressivas e definidas dessas cultu­
ras jurídicas são o direito rom ano e a com m on law anglo-
saxônica. Ambas passuem características e conceitos eminen­
tem ente técnicos em termos jurídicos e processualmente re­
ferenciados, sem incluírem ainda a noção de um sistema
objetivo de normas. Ambos pressupõem, para sua realização
quotidiana e para seu desenvolvim ento um conhecim ento
m aterial específico, não generalizado, e isso não só no sen­
tido de um conhecimento quanto ao conteúdo das normas
de direito vigentes, mas além disso também experiência e
discernim ento com respeito ao potencial operativo dos con­
ceitos, às possibilidades de com portam ento e de argum enta­
ção, n a disputa jurídica, e às chances práticas de alcançar-
se determinados efeitos jurídicos, ou seja dom inando ainda
os aspectos em aberto, que apresentam alternativas, de um
conjunto de normas que, em term os de vigência, não está
também estabilizado no direito.
Os ordenamentos jurídicos das culturas avançadas ne­
cessitam d o s juristas ao n ível da constituição de p a p éis102 e
têm que institucionalizar nesse papel uma atitude particular­
m ente dlscrepante e distanciada para com o próprio direito:
o que im porta não é o envolvim ento íntimo, mas a agilidade
operativa que perm ite fundam entar convincentem ente as de­
cisões adotadas como as únicas corretas, vendo e consideran­
do, apesar disso, outras possibilidades, ou seja apresentando
a capacidade de operar em um horizonte de incertezas e
mesmo assim demonstrando segurança. A partir dessas con­
tradições intrínsecas ao papel do jurista tom a-se compreen­
sível que em muitas culturas avançadas, e não apenas nem
principalm ente em Roma, a cultura especificamente ju rídica
se d e s e n v o lv a inicialm ente fora do processo que leva a deci­
sões vínculativas. O jurista surge como respondente, pois
inicialm ente o im portante era dispor de orientação jurídica,
independentemente das respectivas pretensões e do contexto
social que torna determinados conteúdos relevantes.

215
E somente após o desenvolvimento de uma disciplina es­
pecificam ente burocrática que o jurista pode ter acesso à
d ecisão.101 Devido àquela distância com respeito ao direito
e àquelas liberdades no tratam ento das im agens jurídicas,
encontramos ainda hoje no papel do jurista elem ento ,3 fun­
cionais inexpressáveis, considerações táticas interm ediárias e,
eventualmente, arrazoados ilegítim os, que são aceitos como
risco específico ao papel dessa profissão e inseridas na ética
profissional. A nova complexidade do direito encontra sua
correspondência em exigências sobre os papéis, cujos encar­
gos podem ser absorvidos por honorabilidades, prestígio fun­
cional, organização profissional, disciplina do cargo, e espe­
cialm ente por possibilidades de obtenção de rendas, por sua
vez também suspeitas.104 Em termos psicológicos isso signi­
fica que uma form ação jurídica cunha a auto-identidade e
à estrutura m otivacional do jurista em planos relativam en­
te abstratos, possibilitando-lhe assim aquela característica
d.sta cia com respeito ao direito, como defesa contia um
engajam ento demasiadamente concreto no evento jurídico e
seus elevadas riscos, mas também como ba.se agilidade
operativa e de uma prática racional capaz d'. dK pcr entre
meios alternativos. Através dessas atitudes o ju iíít a é socia­
lizado para o trabalho na área do direito.
Só depois que o direito é desenvolvido conceitualmente
pelo jurista, tom ando-se passível de um tratam ento especia­
lizado, é que as questões jurídicas podem ser abstratam ente
diferenciadas, com a clareza necessária, do ato em qu estão.105
A divisão entre as fases “ in iu re” e “ in iu d icio” do processo
romano faz dessa distinção o princípio sustentador do orde­
nam ento tem poral do processo e cria assim a base para o
trabalho corrente em cim a de questões puramente jurídicas
que partindo de casos, mas independentemente da constata­
ção de fatos, desdobra, desenvolve e corrige o direito enquan­
to som atório de premissas de decisões. O direito agora não
mais se localiza concretam ente no próprio evento, mas ape­
nas na norma que serve de base para o julgam en to jurídico.
A interpretação correta do direito é um a questão que em
princípio pode ser decidida independentemente dos fatos que
se apresentam a cada caso. Inversam ente, a constatação das
fatos é possível independentem ente de questões jurídicas, e
apenas o julgam ento da relevância de uma constatação de

216
fatos depende do direito. Só agora faz sentido do falar-se de
“ aplicação” do direito.
Essa separação possui uma relevância inestim ável para
a “ m obilização” do direito, pois ela possibilita não apenas
uma crítica jurídica dos fatos, mas tam bém um a crítica do
direito orientada por fatos, do rig o r legis da antiguidade, dos
demasiadamente lim itados tipos de acusação, etc. Nisso re­
side, principalmente, um a gara n tia da a utonom ia do p ro­
cesso, latente mas por isso mesm o ainda mais efetiva. As
inform ações sobre o direito e as inform ações sobre os fatos
são fornecidas ao sistema processual a partir de ambientes
distintos, o que significa não existir apenas um ponto cuja
com unicação determ ine o resultado do processo.106 Isso é
uma condição básica para a estrutura m otivacional da incer­
teza dos resultados e para a credibilidade da independência
dos juizes no sistema processual.
Com tudo isso a congruência ju rídica de expectativas
sobre expectativas é deslocada para um plano de sentido
mais abstraído, especificado e de maiores conseqüências ins­
titucionais. A congruência reside agora não mais n a afirm a­
ção visivelm ente eficaz do direito fren te a frustrações (seja
por im posição violenta, reconhecim ento social ou autorização
e confirm ação sob ren atu ral); ela pasisa a se situar em con­
ceitos norm ativos e institutos jurídicos de sentido estabili­
zado e vigência permanente, que o orientam não por não
perm itirem alternativas, mas por oferecerem uma interpre­
tação de sentido. Vigência coritrafática constante, consenso
suposto e consistência m aterial do conjunto de expectativas
são integrados com o auxílio de instrum entos puram ente lin ­
güísticos, na form a de tipos de vigên cia ideal, que cada vez
mais podem prescindir de uma explicitação, sendo tratados,
enquanto conceitos, como realidades. O desenvolvim ento in­
terno do direito romano até às pandectas demonstram de
form a especialmente clara as dificuldades de concepção que
tiveram que ser superadas e quais riscos desconhecidos da
abstração conceituai tiveram que ser testados e inseridos no
direito, antes que se pudesse conceder uma posse descolável
da propriedade, a consideração do equívoco na conclusão de
um contrato, a cessão de demandas invisíveis, a representa­
ção em quase todas as transações jurídicas, a possibilidade
de levar-se a juízo todas as demandas jurídicas, etc.

217
O direito das culturas antigas se baseia em suas formas
de concepção e no grau de abstração com que ele preenche
sua função de generalização congruente, no processo de
aplicação do direito que o elabora. A ação decisória desse
processo, com suas limitadas liberdades de escolha, é a base
da formação do direito. Ela está no centro e regula o que é
possível juridicamente, também quando atos legislativos ou
a reflexão da ciência jurídica contribuem para a formação
do direito. Apesar da cobertura por parte de cargos políticos
e pela disponibilidade da força física, politicamente assegu­
rada, o direito permanece, no que diz respeito ao seu con­
teúdo, um direito dos juristas. Qs impulsos para seu desen­
volvimento são obtidos de problemas e reivindicações nor­
mativas que se apresentam no próprio direito — no direito
comercial e na disputa jurídica — e não de uma intenção
de modificação planejada da realidade social com o auxílio
do direito. O grau da regulamentação jurídica da vida quo­
tidiana permanece relativamente pequeno se comparado às
realidades contemporâneas. Mesmo para a regulamentação
de conflitos é possível encontrar nas aldeias o prosseguimen­
to de condições jurídicas quase arcaicas mais ou menos in­
tocadas. 107 O direito dos juristas mantém sua elasticidade
através da abstração e da variedade de tipos, é capaz de
adaptar-se às lentas alterações das necessidades sociais, mas
em princípio não é concebido tendo em vista a mudança.
No horizonte individual, também do jurista, as longas cadeias
da seleção que geneticamente levaram à constituição do di­
reito não são mais perceptíveis como atos opcionais. O direito
oomo um todo, por isso, não pode ser vinculado a um pro­
cesso decisório. Os processos decisórios instituídos, especifi­
cados para a aplicação do direito, possibilitam as culturas
jurwkicas altamente diferenciadas e ao mesmo tempo as con­
finam, são fonte e lim ite das concepções jurídicas institu-
cionalizáveis.
Nem todos os aspectos do sentido do direito podem ser
submetidos a processos, e nem todo o direito apresenta-se
como passível de decisões ou modificável por decisões. Em
quase todas as culturas jurídicas antigas as bases do direito
e mais ou menos amplamente também o conj tinto de normas
está institucionalmente protegido contra modificações atra­
vés de decisões. Isso é válido também para o direito intro­
duzido pela legislação, que se torna então instituição sagra­

218
da, como as doze tábuas romanas. Para a perspectiva e para
a autocompreensão do processo de aplicação do direito essa
lim itação é inicialm ente constitutiva. Nela se fundam enta a
ética específica do trabalho com o direito, através da qual
o ju iz se apresenta às partes e por elas é tratado. A inva-
riância fundam ental im aginada para o direito faz com que
qualquer insegurança em termos de expectativa pareça aci­
dental e apenas subjetiva. Ela sim plifica a situação a ser
decidida, pois só um reduzido horizonte norm ativo é proble-
m atizado em termos de variabilidade, e ela desloca a idéia
insuportável da absoluta contingência e indeterm inação de
todo o direito, que tem que ser insuportável, até mesmo por­
que não existem processos comprovados da legislação que
possam operar nas condições de uma com plexidade tão alta
e indeterminada.
Ê característico para as culturas antigas que elas, no
âm bito do direito e dentro de certos limites, já tenham ins­
titucionalizado uma m argem de liberdade de ação operativa
e que já se vislumbre possibilidades de seleção. P rin cipal­
m ente aum enta a relação entre as diferentes .sociedades, com
ta l intensidade que os outros povos não podem mais ser
sim plesm ente tratados como estranhos ou sem um direito
próprio. Impõe-se o reconhecim ento de que existem outras
form as do direito, cuja qualidade jurídica não pode ser sim­
plesmente n eg a d a .10S A partir da comparação, tom a-se cons­
ciente a percepção do direito próprio como um a configuração
social e historicamente condicionada. Mesmo assim não se
pode aceitar a total arbitrariedade do surgim ento do direito,
o que significaria conceder totalm ente a criação do direito
aos poderes políticos e abandonar a observância do direito ao
arbítrio da vontade ou da coerção. Nenhum a das sociedades
antigas vai tão longe. Para tanto, elas são organizadas de
form a demasiadamente simples. Em todos os casos a dom i­
nação política é inserida como vinculada ao direito, como
protetora e preservadora do direito, mas não responsabilizada
por toda a geração e pela alteração corrente do direito. A fun­
dam entação disso varia conform e o horizonte das concepções
religiosas e culturais. Em grande parte a ordem no m undo
é concebida em termos jurídico-m orais: o próprio desenrolar
da existência do ser se dá conform e o m érito e a culpa, re­
compensa e punição; " >:i inversamente, a ordem moral surge
como regra para a ação consistentemente proveitosa: seguir

219

á
a ordem não é apenas bom, mas também acionselhável. A apli­
cação do direito tem predominantemente funções simbólico-
expressivas de ativação e confirm ação da lei do mundo, quase
não apresentando intenções de alterar a realid ad e.110 A filo­
sofia político-ética dos gregos se abstém dessas especulações
cósmicas, mas acentua que o direito da sociedade humana
é im anente às suas necessidades e a seus propósitos, lim i­
tando a partir daí a indeterm inação do direito. m
Em qualquer caso as bases e os traços básicos, ou seja
um cerne essencial das normas do direito, são im aginadas
como sendo invariantes e indisponíveis. Ainda é impensável
uma separação entre a fundamentação da vigência e o con­
teúdo (con tingen te) das normas, como passou a ser possível
na concepção m edieval do criador absoluto. O direito é con­
cebido como verdade tan to em sua. vigência quanto em seus
traços essenciais, ou seja: apesar da sua norm atividade ele
é submetido ao modo de tratam ento das expectativas cogni­
tivas. 112 Para assegurar à norm a sua função específica de
constante vigência contrafática, essa qualidade de verdadeira
parece ser imprescindível. E é por isso que a função cogniti­
va não pode ser diferenciada, autonomizando-se com o ciência
assimiladora. A noção de mundo baseia-se em uma fusão de
expectativas norm ativas e cognitivas, funcionalm ente difusa
e portanto estática. Expectativas norm ativas e cognitivas, ser
e dever ser podem ser diferenciados na prática da técnica
jurídica, mas não na concepção de suas bases. A diferencia­
ção funcional incom pleta da sociedade corresponde a uma
separação incom pleta entre expectativas norm ativas e cog­
nitivas.
Essa ambivalência, estruturalmente condicionada e por
isso inicialm ente inevitável, da seletividade (perm itida e sem­
pre lim itada) do direitio, da form a praticada de tratam ento
das normas com base em concepções cognitivo-norm ativas,
exige formas especiais de construção mental. No direito Índico
encontramos fundamentações míticas contrastantes (teorias
ônticas da eternidade e teorias contratuais) que divergem
exatam ente com respeito aos pontos críticos da seletividade,
e por isso neutralizando-se reciprocamente. De form a seme­
lhante, na China essa questão se to m a objeto de uma disputa
entre escolas dos confucianos e dos legistas. n:i N o pensa­
m ento grego, ao contrário, abre-se a perspectiva de uma
orientação mais abstrata: não é a diferença em si, mas a

220
interpretação dessa diferença que se torna objeto do pensa­
mento e da formação de escolas; a decisão não se coloca
entre ambas as possibilidades do direito seletivo e do não
seletivo, mas em termos da relação dessas duas possibilida­
des. A partir dessa indagação a tradição da antiguidade
européia elabora uma notável solução para esse problema,
que acarretará importantes conseqüências.
A diferenciação grega en tre d ireito natural e d ireito
baseado no nomos (le i) é cunhada exatamente para essa
situação de uma ordem jurídica concebida como invariante
em importantes traços básicos, mas de resto plèna de alter­
nativas, diferentes de sociedade para sociedade, è até mesmo
m odificável.114 O conceito do direito natural surge aqui pela
primeira vez como um conceito discriminador e não deve
ser confundido com a absolutização arcaica' de cada ordem
ju rídica.115 Ele é necessário para delimitar o direito inva­
riante contra o direito variável que formou conteúdos distin­
tos através de construções do costume ou da legislação. Ele
fornece, em outras palavras, uma certa interpretação das
limitações estruturais da variabilidade do direito.116 No con­
ceito do natural o decisivo é a atribuição externa ao sistema,
ou seja a negação da autocausação do sistema — um recurso
ordenativo típico para sistemas ainda relativamente simples.
Além disso aqui também estão as raízes da associação do
natural e do igual (ou seja não selecionado diferentemente
e artificialm ente), tão importante para o pensamento pos­
terior. O conceito do nomos torna-se um conceito jurídico
essencial nessa e através dessa antítese.117 A diferenciação
do direito vigente em termos de physei e nomxA objetivava
a seletividade já captada, mas concebida como lim itada.118
Ela só fazia sentido para as sociedades do tipo aqui tratado.
Isso se mostra também no fato de que sua exposição em
A ris tó te le s 119 estava ligada a uma rigorosa rejeição da legi­
timação do direito em termos arcaico-tradicionais, que não
tinha mais espaco na nova forma do pensamento diferen­
ciado. No lugar do pensamento arcaico surge o pensamento
que lida com a seletividade da ação humana: a ética como
filosiofia prática. Só mais tarde, ao ser absorvida no pensa­
mento jurídico romano já fortemente refinado, e principal­
mente na Idade Média, é que aquela diferenciação entre
physis e nom os obteve a forma de uma diferença hierárquica
das fontes do direito em termos de lex natvirctMs e lex posi­

221

|
tiva; só então a noção do direito natural ganhou a força de
um princípio controlador, sob cuja proteção o direito positivo
pôde ser identificado e desenvolvido enquanto direito esta­
tuído através de decisões.120
A considerável expansão da complexidade do direito, sua
especificação e abstração e a captação parcial de sua dife­
renciação e variação seletivas oferecem às culturas antigas
a possibilidade de form ular o princípio jurídico como critério
abstrato e contrapô-lo ao direito preexistente com o referência.
Através das noções do justo e do correto o princípio jurídico
assume uma forma moral generalizada.
Um do.s impulsos para tanto parece ter residido nas
necessidades de correções das estruturas arcaicas de poder e
de controle das riquezas, as quais são assumidas pelos senho-
re políticos com o objetivo declarado de proteger os fracos
contra os fortes, os pobres contra os ricos. Intenções corres­
pondentes inserem-se no conceito do direito ou da lei. As
indicações mais antigas nesse sentido encontram-se nas le­
gislações da Mesopotâmia.121 Esses traços se apresentam
também nas formas jurídicas das antigas cidades-estado do
Mediterrâneo. A isso acrescente-se aqui que a consciência da
seletividade do nomos tom ava irrecusável a seleção correta.
Isso incita no sentido de expressar a congruência do direito,
enquanto postulado, em um tal critério. A problematização
e a explicação conceituai de um tal referencial da justiça
parecia inicialmente ser desnecessária nas culturas jurídicas
em princípio religiosamente determinadas, mas também na­
quelas mais avançadas em termos de técnica jurídica e do­
minadas pelos juristas. Ela é fruto da polis grega que, se bem
que sempre limitada ao sentido de suas próprias instituições,
inaugurou uma reflexão sobre a justiça enquanto t a l.122
Nos direitos arcaicos existiam inicialmente apenas aque­
las idéias jurídicas imanentes da vingança e da reciproci­
dade — versões do problema básico da generalização con­
gruente que expressavam o direito nas expectativas e nas
ações jurídicas.123 No pensamento jurídico grego essas idéias
básicas são ampliadas no conceito da justiça, que pode ser
anteposto ao próprio direito, e não só ao comportamento.
Agora é estabelecida uma relação indicativa entre o direito
enquanto conjunto de normas e o princípio da sua unidade,
relação essa que é pensada tanto como determinação da sua
essência quanto como norma em si. Com isso se tenta extra­

222
polar uma versão mais abstrata dos critérios arcaicos da vin ­
gança e da reciprocidade, que supere seus lim ites imanentes
e corresponda a condições mais complexas de vida. Com isso
o direito conquista um a n ova configuração histórica.
Justiça, em últim a análise, é um símbolo para a con­
gruência da generalização de expectativas norm ativas sobre
expectativas. E la é definida com o igualdade, ainda mística
mas já racionalmente. Mas igualdade significa m anter a
expectativa ao longo do tempo, c o n s i s t ê n c i a material, capa­
cidade de consenso — ou seja aquela concordância que con­
vence e é duradoura. Além disiso, e com intenção corres­
pondente, lança-se m ão da idéia da m oderação e da média,
daquela distância igu al com respeito a todos valores e todas
posições extremas, onde ,se encontra o razoável. Isso tam bém
expressa uma síntese, no sentido de garan tir o consenso
expectável e a vigência duradoura através do mesmo distan­
ciam ento com respeito a valores extremados. O princípio da
justiça só é juridicam ente relevante porque atinge a essên­
cia e a função do direito — e não porque parece ser um a
bonita virtude, com o para a ética posterior.
As elaborações posteriores do tem a da justiça por parte
de Aristóteles já se afastam desse simbolismo, cuia função
n u n c a chegou a ser plenam ente compreendida, impedindo
q u e 0,3 continuadores da tradição da filosofia do d ireito a ele
tivessem acesso. A partir do ângulo das funções de congruên­
cia do direito elas pareciam ser especificações conceituais
demasiadamente racionais e realísticas. Ambos os tipas da
justiça com utativa e da distributiva se referem à diferença
básica entre a estratificação social segm entária (ig u a l) e a
funcional (d esigu al), mas não m ais perm item iden tificar
nessa divisão qual é a noção de justiça que tem a ver com o
direito e porque ela sim boliza o princípio do direito. O pos­
tulado da justiça é desm itificado, etificado e dirigido ao se­
nhor e ao ju iz como uma norma, ou seja: não determ ina a
função do direito, mas apresenta uma espécie de supernorma
às normas jurídicas vigentes e im põe ao senhor sua virtude.
Nos direitos mais elaborados, ou seja no direito romano e na
co m m o n law, isso l e v a a um a confusão entre a justiça e
justeza ( aequitas, e q u ity ), sendo que as melhorias no sentido
de um a justiça compreendida em term os universais ocorrem
ju n ta m e n te com modificações particulares do conjunto nor­
m ativo existente segundo o m odelo regra/exceção e através

223

A
da introdução de recursos jurídicos para casos até então não
considerados.
Essa atenuação e concretização não pode ser explicada
por casualidades do pensamento da história das idéias; ela
corresponde à estrutura da sociedade, ao grau de com plexi­
dade atingido pela sociedade, à impossibilidade de desenvol­
ver-se critérios program áticos para o estabelecim ento do
direito. Seu princípio jurídico de justiça atua em parte como
reflexão e racionalização da im perfeição do direito, em parte
como provocação de novos desenvolvimentos no direito que
resultam em im portantes modificações, mas não em um
direito justo. Tam bém nesse contexto é característico para
as culturas antigas que elas assumam uma situação in ter­
m ediária entre o processamento concreto ou abstrato da ex­
periência, e a realização incom pleta das po:sibilidades que
se anunciam.
Já existe nas culturas antigas um a relativa autonomia
do desenvolvim ento do direito, uma lim itada assimilação
conceituai no direito e até mesmo uma transposição de certos
institutos do direito de um a sociedade a outra. O processo
da abstração da técnica jurídica, inovações processuais, des­
cobertas jurídicas seguem seus próprios caminhos. É por
exemplo d ifícil entender, pelo menos a partir das estruturas
sociais, por que os romanos, em comparação com os gregos,
desenvolveram o contrato consensual tão relutantemente,
porque o uso de documentos expandiu-se apenas na deca­
dência do im pério romano, etc. Ao mesmo tem po suas es­
truturas sociais condicionam os traços fundam entais dos
ordenamentos jurídicos dessas sociedades, os lim ites das suas
capacidades de abstração, o volume das liberdades de decisão
processualmente organizadas, o grau de separação entre
expectativas cognitivas e normativas e, principalmente, seu
potencial de complexidade, variabilidade e de crítica do di­
reito. A unidade tipológica estruturalmente condicionada das
culturas jurídicas antigas é dificilm ente captável através da
perspectiva cien tífica de cada uma de suas instituições ju rí­
dicas. Ela só é esboçável no quadro da concepção sociológica
do desenvolvimento da sociedade e do direito. Mas a unidade
e os lim ites daquele estilo de direito se apresentam de form a
mais clara quando se ilum ina o lim iar do desenvolvim ento
que encerra sua época — quando se reconhece quais são as

224
novidades sociológicas que a passagem para o direito positivo
acarreta.

4 — A positivação do direito

Apesar de toda a autonom ia e do desenvolvimento con­


tinuado das diferentes noções jurídicas, as mudanças fun da­
mentais do estilo do direito perm anecem condicionadas pela
m udança estrutural da sociedade, ou seja: são por ela incen­
tivadas e possibilitadas. A com plexidade da sociedade, rapi­
dam ente crescente na era atual, apresenta novos problemas
a todas as esferas do sentido, e portanto também ao direito.
A o mesmo tempo, sua riqueza de possibilidades contém o
potencial, se bem que não a garantia, de novas formas de
solução dos problemas. O crescimento da complexidade social,
porém, fundamenta-se em últim a análise no avanço da d ife­
renciação funcional do sistema so c ia l.124
A diferenciação funcional cria sistemas sociais parciais
para resolução de problemas sociais específicos. As colocações
de problemas relevantes modificam-se e são apuradas ao
lon go do desenvolvimento social,1-5 possibilitando diferencia­
ções crescentemente abstratas, condicionantes e arriscadas
em termos estruturais, como por exemplo sistemas não só
de obtenção, mas também de distribuição de recursos econô­
micos não apenas para objetivas obrigatórios como criar
filhas e defesa, mas também para objetivos optados com o a
pesquisa e até a pesquisa da pesquisa; não só para a educa­
ção mas também para a pedagogia; não só para o estabele­
cim ento de decisões vinculativas, mas também para sua pre­
paração política; não só para a justiça, mas também para
a legislatura. A conseqüência essencial disso é uma super­
produção de possibilidades aue só podem ser parcialm ente
realizadas, exigindo então cada vez mais o recurso a proces­
sos-de seleção consciente. As perspectivas funcionais abstraí­
das dos sistemas parciais dinam izam a sociedade. Elas im pli­
cam em possibilidades específicas a cada sistema parcial, que
não mais são integráveis por m eio de crenças em comum ou
por fronteiras externas da sociedade como um todo. A conse­
qüência é uma constante deficiência no cumprimento dos
objetivos, e isso se expressa através de uma perspectiva tem ­
poral m odificada e aberta quanto ao futuro, mas também

225
através de necessidades de planejamento. As verdades cien­
tificam ente alcançáveis, por exemplo, podem colidir com
necessidades econômicas e políticas, enquanto que, inversa­
mente, não se dispõe de verdades suficientes para as neces­
sidades de decisão no âm bito econômico e político. O amor,
enquanto princípio sistêmico da fam ília, im plica em exigên­
cia que, principalm ente no caso da mulher, são pouco com ­
patíveis com a atividade profissional. A econom ia gera temas
de decisão politicam ente incômoda. A ciência da psicologia
impõe tarefas irrealizáveis ao processo de educação n a fa m í­
lia e na escola. O aparelham ento tecnicam ente ideal do
exército ou dos hospitais não pode ser sustentado nem eco­
nôm ica nem politicam ente, etc. As possibilidades e a reali­
dade distanciam-se cada vez mais devido a esse princípio da
form ação de sistemas, e aqui parece residir o m otivo em si
para as tendências “ anômicas” que a sociedade moderna
apresen ta.126
Com essa m ultiplicação explosiva das possibilidades da
experiência e da ação aum enta também a contingência do
experim entar e do agir na sociedade. T odo o sentido palpável
passa a ser ilum inado por outras possibilidades, é relativizado
e problematizado. Dependências e relações de subsunção to r­
nam-se visíveis, são delineadas as chances do planejam ento
e da produção racionais, mas também do peso excessivo das
exigências de racionalidade. A racionalidade parece ser cada
vez mais alcançável e inalcançável. É óbvio que daí resulta
um a pressão para a adaptação dirigida a todos os setores
parciais da sociedade. T oda situação fática é uma seleção de
mais possibilidades, apresentando enquanto fato um a eleva­
da seletividade. Cada sim im plica em muitos nãos. Todas
estruturas e todos sistemas parciais têm que dar conta disso
•— seja através de uma crescente indiferença, seja aumen­
ta n d o sua elasticidade. A nós interessam aqui as conseqüên­
cias com respeito ao direito.
A necessidade de expectativas com portam entais norm a­
tivas congruentem ente generalizadas não permanece inalte­
rável sob certas circunstâncias. Os mais im portantes meca­
nismos da sociedade global, o da verdade, do amcr, do poder
e da compensação das necessidades econômicas, perdem sua
auto-referência a partir da orientação por funções a eles
específicas. Agora eles têm que ser m antidos nos lim ites do
socialm ente suportável, através de barreiras socialmente es-

226
tatuíidas. Para esses mecanismos tais barreiras são externas
e não auto-evidentes como algo natural, apresentando-se
como regras normativas, desempenho esperado, exigibilida-
des, prioridades.127 Por tornarem-se potencialmente confli­
tantes, eles devem ser regulamentados detalhadamente. Em
termos gerais, a diferenciação funcional acarreta um cresci­
mento dos problemas e dos conflitos internos na sociedade
e, dessa forma, um crescimento dos encargos decisórios em
todos os planos da generalização. Os sistemas parciais da
sociedade tornam-se cada vez mais reciprocamente depen­
dentes: a economia depende das garantias políticas e de
decisões parametrais; a política, do sucesso econômico; a
ciência, de financiamentos e da capacidade de planejamento
da política; a economia, da pesquisa científica; a família, do
resultado econômico dos programas políticos de pleno em­
prego; a política, da socialização através da família; e assim
por diante. Ao mesmo tempo os sistemas parciais, para po­
derem exercer sua função constante e confiavelmente, têm
que ser protegidos contra flutuações em outras esferas por
eles incontroláveis. As dependências e as independências re­
cíprocas dos sistemas parciais crescem simultaneamente. Em
princípio isso é possível porque aumentam os aspectos se­
gundo os quais se pode ser dependente e independente; nos
seus pormenores, porém, ocorrem múltiplos atritos e neces­
sidades de compensação, cuja superação é exigida do direito.
Dessa forma cresce a necessidade de disponibilidades e de
seguranças, que tem que ser satisfeita se bem que a liberdade
de um significa a insegurança do outro. Foi sintomática a
clareza com que esse problema se tornou consciente no final
do século X IX , com respeito à liberdade contratual e seus
limites. O.s problemas em conseqüência da diferenciação fun­
cional transparecem aqui, e também em outros casos, nos
diversos institutos do direito, no fato de que noções já fam i­
liarizadas se tornam questionáveis e inseguras; surgem ra-
chaduras nos sistemas dogmáticos. Um grande número de
novas expressões ainda não encaminhadas, como o direito
securitário, direito do trabalho, o direito do transito, "trans­
bordam o direito vigente e fazem com que decline sensivel­
mente o nível da arte conceituai e do domínio da matéria
no direito. Apesar de toda a valcrização da atividade decisó-
ria dos juizes pode-se perceber que esses problemas não po­
dem mais ser resolvidos no plano e na forma do direito dos

227
juristas até e^tão praticado. N a medida em que possam ser
resolvidos pelo direito, eles exigem cada vez mais o recurso
à legislação.
A legislação não é uma invenção da atualidade. A fixação
do direito através da legislação já era praticada nas culturas
da M esopotâmia 1->7a e, principalmente, na antigüidade. Em
alguns casos, principalm ente em Atenas e Rom a, grandes
obras de reform a da legislação estabelecem os lim ites tradi­
cionais com respeito a form as anteriores da cultura jurídica
político-religiosa, ou então, como nas leis C h’in (221-207 a.C.)
na China, apoiavam a unificação política de uma sociedade
territorialm ente ampla, Até mesmo sociedades que não ul­
trapassaram o lim iar da alta cultura, e na m edida em que
elas pelo menos diferenciem politicam ente as atribuições de-
cisórias, conhecem a coexistência entre o direito da tradição
e determinações mais ou menos genéricas do senhor, que
podem inserir-se no direito v ig e n te .128 Nas sociedades mais
aculturadas, que apresentam um a dominação politicam ente
consolidada, e em especial nos grandes impérios burocratica-
m ente administrados do mundo antigo, pôde desenvolver-se
um interesse político na apresentação mais concisa e com ­
preensiva e na administração unificada do direito — daí
resultando resumos do direito e autênticas fixações por es­
crito de questões jurídicas precárias ou controvertidas, novas
publicações e codificações ou reform as legislativas seletiva­
mente reelaboradas, como na M esopotâmia e novam ente na
China, na Rom a tardia, em Bisâncio, no reino dos sacsâmi-
das, no M éxico pré-columbiano. Os objetivos políticos então
pretendidos não eram propriam ente legislativos, mas volta­
vam-se principalm ente para a manutenção da ordem através
da jurisdlição: unidade, publicidade e alcance do direito,
assim como independência da aplicacão do diréito frente a
disputas locais, deformações e influências do poder. Além
disso existem casos nos quais a legislação enquanto compe­
tência impôs-se em lutas políticas e foi utilizada como arma
em tais disputas, permanecendo assim vinculada a objetivos
relativam ente concretos e situacionais. Exemplos disso podem
ser am plam ente encontrados n o fim da Idade M éd ia .1'-5’
O status jurídico desse tipo de legislação, porém, perm a­
nece precário. Em vista da de qualquer form a já elevada
m segurança jurídica é d ifíc il diferenciar-se entre ordens e
estabelecimento de n o rm as.1X0 Sua absorção pelo direito não

228
é necessariamente um efeito processualmente encaminhado,
mas uma questão de tempo, do costume, da publicidade
atingível, ou uma questão de adaptabilidade, ou do poder
político, ou da pressão de crises e capacidade de persuasão
circunstancial. Em termos materiais, essas limitações se ba­
seiam na inexistência de instituições e processos decisórios
que possam produzir a seleção válida entre as diversas pos­
sibilidades; em termos temáticos elas são articuladas através
da concepção de que nem todo o direito pode ser indiscrimi­
nadamente estatuído e modificado pela legislação, mas que
no contexto do direito vigente enquanto natural e verdadeiro,
ou seja tradicional, apenas uma esfera limitada estaria à
disposição para adaptações em seu detalhamento à “diver-
sitag tem porum ” ou à “varietas natwrae” , como se dizia na
Idade Média. Dessa forma, as leis podiam ser pensadas como
partes integrantes da ordem jurídica, cujo caráter jurídico
não era proveniente delas mesmas, mas de base3 extrajurí-
dicas.
Certamente o direito, e mesmo o direito “ divino” , em
muitos casos podia ser modificado de forma percebida ou
não, já que toda formulação normativa pode ser minada
ou modificada com o recurso a expectativas sobre expecta­
tivas. 131 em alguns casos, por exemplo na Me-opotâmia e
na Índia, a base disso foi uma alteração sutil do sentido:
o direito divinamente outorgado foi restaurado, complemen­
tado e executado, pelo direito dó legislador divinamente au­
torizado. Em todos os casos estabeleciam-se limitas estritos
para a variabilidade legitimável de normas jurídicas.132 O li­
miar de alteração da estrutura jurídica ass5m, era muito
distanciado. Em princípio, a vigência do direito era vista
como invariante, ou pelo menos como baseada em normas
de vigência invariante — e não em termos de adequabilidade
devido à comtante adaptação. A vigência do direito não pre­
cisava ser problematizada enquanto tal, nem fundamentada
em termos de sua contingência. A teoria romana das fontes
do direito diferenciava, por exemplo, entre diversas formas
de surgimento de normas jurídicas,133 mas só muito mais
tarde iniciou o desenvolvimento de critérios mais abstratos
para vigência do direito — como no sentido da moderna
teoria do direito consetudinário.134 Apesar de aceitar-se a
legislação, o direito com um todo tinha uma vigência ba­
seada na verdade, na implementação sagrada ou na tradição,

229
nunca constituindo um direito positivo construído e m odifi-
cável a qualquer momento. Mesmo H e g e l , o qual já via que
para a sociedade burguesa o direito torna-se em si direito
positivo, em contraposição S a v i g n y , acentuava a adequabi-
lidade circunstancial da legislação codificadora, podia acres­
centar como se fosre óbvio que “ não pode tratar-se de fazer
para um sistema novas leis em termos de conteúdo, mas sim
de reconhecer, ou seja captar pelo pensamento a generalidade
determ inada do conteúdo legal existente” . i:!r’
Ainda sob a proteção form al do direito natural realizou-
se no século X V I I I a transform ação do pensamento no sen­
tido da total positivação da vigência do d ire ito .138 Só no
século X I X que o estabelecimento do direito torna-se uma
questão de rotina do Estado enquanto legislação, que são
criados prccessos 0.3 quais inicialm ente se ocupavam em
períodos mais ou menos longos — hoje perm anentem ente —
com a legislação. Um enorme e creccente volume de leis é
tido por necessário e é produzido. A m atéria do an tigo direito
é reelaborada, codificada e colocada na form a de leis. e isso
não só devido à praticabilidade no uso em tribunal e à fa ­
cilidade de aplicação, ma.s também para caracterizá-la como
estatuída, m odificável e de vigência condicionada, com o que
garante-se agora a racionalidade do direito: “ As leis m an­
têm sua vigôncia até que sejam modificadas ou expressa­
m ente suspensas pelo legislador” , determ inava o parágrafo
9.° do Código C ivil G eral austríaco de 1811.
A reestruturação do direito no sentido da positividade
foi preparado no pensamento e nas instituições da Eurcpa
an tiga e pôde, por isso, ocorrer sem maiores atritos quando
surgiu uma m aior necessidade de legislação. (A s dificulda­
des surgiram inicialm ente menos no próprio direito e mais
na necessária reestruturação da preparação política das de­
cisões.) Em diversos centidcs o direito preparou e facilitou
essa transposição. 1:17
A prática jurídica da Rom a tardia possuía um modelo
com provado para a legislação imperial, que podia ser absor­
vido abstratam ente irs — sem as limitações do contexto con­
c r e t o — e integrado ao padrão cultural da Idade Média, sem
que tivesse que ser inventado e desenvolvido a p artir de suas
próprias in stitu ições.1:10 Isso aliviou riscas imprevisíveis da
inovação e facilitou fundamentações plausíveis. Assegurou-se
ass^m a possibilidade de conceber-se a legislação como form a

230
da constituição do direito, possibilitando sua legitimação en­
quanto tradição: o imperador só precisava voltar a exercer
um “ direito antigo” .
A isso acrescentou-se o catálogo de leis genericamente
aceito (se bem que em diferentes versões): a concepção de
uma ordem hierárquica de fontes e tinas do direito, diferen­
ciando entre direito divino, eterno, natural e positivo.140 Essa
noção, que torna imaginável a vinculação a um direito supe­
rior codificado, substitui ao longo da ídade Média avançada
as antigas fonnas muito mais concretas da infiltração reli­
giosa do direito. Com isso cimentava-se uma forma estrita
de fundamentação e limitação do direito inferior pelo ime­
diatamente superior. Como em muitos outros casos, também
aqui a idéia da hierarquia servia como esquema de mobiliza­
ção discreta das condições. A mudança pôde realizar-se pau­
latinamente e sem plena consciência do seu alcance. Em
nome e no contexto do direito superior a legislação podia ser
reintroduzida e desdobrada. Além disso, a estrutura hierár­
quica de normas diferenciava e canalizava as reações a in­
suficiências, a ambivalências ou à falta de normas, depen­
dendo do plano em que o problema fosse localizado. Tudo
isso garantia ao direito positivo em expansão uma espécie
de proteção. No contexto do modelo hierárquico as normati-
zações e os pesos podiam deslocar-se discretamente, até o
ponto atual onde a idéia do direito natural conserva apenas
a forma vazia da hierarquia de normas.
Igualmente importante foi elaboração cristã do direito
natural antigo. Ela deslocou a base do antigo direito das
instituições à vontade divina, da tradição à transcendência
— ou seja para o plano dos princípios passíveis de disputa
teológica. Com isso a discussão dos teólogos sobre a onipo­
tência divina e suas conseqüências para a ordem natural do
mundo tornou-se relevante para o direito.141 Uma desesta-
bilização considerável do sistema ju ríd ico142 não podia mais
ser amortecida por princípios religiosos — a não ser enquan­
to princípio da contingência de todo ordenamento e de todo
direito. No grau de abstração da discussão teológica já se
preparava a separação entre a religião e o direito. A idéia da
criação divina do direito, estranha às culturas jurídicas mais
antigas, ou no mínimo nunca desmitificadas ou ampliadas
no sentido da indeterminação das possibilidades, fazia com
que o direito parecesse contingente, pudesse ser diferente,

231
tendo então apenas que ser transposto ao sujeito humano,
à razão, à consciência, ao legislador.143 Dessa forma atingia-
se o mais alto grau de abstração possível para a justificação
religiosa do direito. A fundamentação teológica da invariân-
cia de conteúdos normativos tomava-se insustentável —
mantendo-se possível apenas em posições questionadas no
seio de disputas dogmáticas e confessionais cujas influências
tinham que ser com urgência politicamente neutralizadas.
Certamente a realidade social da vida jurídica não es­
gotava assim as possibilidades de variação do direito. A pre­
valência do direito antigo sobre o novo — e dessa forma a
proibição não de estatuir-se, mas de modificar-se o direito —
estava assegurada no início da Idade M édia.144 Mas chama
a atenção o fato de que ela era formulada como uma máxima
para decisões. Isso já aponta para a reflexão e faz com que
a inversão do princípio, através da regra de que o novo di­
reito rompe o antigo, se inspira na esfera do imaginável. Sua
realização parece ter sido bloqueada pelo fato de que o pen­
samento jurídico tradicional colocava erradamente o proble­
ma do estabelecimento positivo do direito, dessa forma pro­
curando sua solução por um falso caminho: tentava ini­
cialmente gerar, também para o direito estatuído, novo e
precário, as mesmas conseqüências vínculativas próprias ao
antigo. O ato do estabelecimento do direito, principalmente
em termos de distribuição de privilégios, era combinado com
os interessados ou os grandes do país, ou seja travestido na
forma contratual, por essa ?.sr a forma conhecida da vincula­
ção da vontade livre; a ele agregava-se a qualidade de eterno;
por razões de segurança ele era de tempos em tempos repe­
tido ou reforçado, o senhor evocava a vinculação também de
seusjsucessores ao novo direito, e esses ao tomarem o poder
eram chamados a acatar e reforçar o direito estatuído por
seus antecessores — e tudo isso com uma insistência que
parecia demonstrar a intenção de tranqüilizar o desespero
pela inutilidade dos esforços.145
A longo prazo o sucesso evolutivo dirigia-se ao sentido
exatamente oposto: ao princípio da não vinculação do legis­
lador a suas leis e à institucionalização desse maior risco
da irrestrita possibilidade de alteração do direito. Com isso
era necessário separar mais nitidamente ainda a pessoa do
papel do senhor enquanto legislador — não só no antigo
sentido de que o cargo possuía uma caracterização própria

232
e por isso ultrapassaria a troca de pessoas, mas também no
sentido de que a vinculação da pessoa e a vinculação ou
não do cargo ao direito positivo tinham que ser diferencia­
das. O senhor não podia m ais ser “ o Estado” , mas apenas
possuía um papel no E stad o.146 D evido ao cargo, e somente
devido ao cargo, é que a pessoa pode alterar o direito. Só
com essa diferenciação, que os juristas puderam tornar plau­
sível através da invenção da personalidade jurídica do Es­
tado foi possível institucionalizar-se processos de alteração
do direito que neutralizassem relações “ pessoais” referencia­
das a papéis.
Como a antiguidade nos ensina, principalm ente a his­
tória jurídica ateniense, para mudar-se o direito não é sufi­
ciente a instauração juridicam ente form al do processo. Além
disso, a existência desses processos tem que ser utilizada para
diferen ciar en tre desobediência e desejo de mudxinça. Da
mesm a form a que a com petência para m odificar o direito
não dispensa do respeito ao direito v ig e n te ,147 a intenção de
m odificar o direito não pode parecer um ato ilegal de deso­
bediência, um protesto contra o direito vigente, e tam bém
não pode ser controlada ou lim itada pelas discriminações
correspondentes.148 A canalização e a seleção prévia das
mudanças projetadas para o direito têm que ser realizadas
de outra form a, não a partir do direito vigente, mas só poli­
ticam ente e mantidas dentro dos lim ites do suportável. A co­
nhecida labilidade da prática jurídica ateniense, registrada
pela literatura como uma advertência, parece ter sido fu n ­
dam entada principalm ente na fa lta de um a política suficien­
tem ente diferenciada e capaz em termos de trabalho e orga­
nização (entre outras por causa da aversão contra os par­
tidos, baseada nas antigas disputas entre lin h agen s)..149
Apesar da legislação ateniense, na form a do controle
institucionalizado e anual de todo o direito codificado, poder
ser considerada como caso exem plar da concepção contin­
gente do direito, a cidade-estado an tiga não era suficiente-,
m ente grande e com plexa para um a plena positivação do
direito enquanto sistema. Somente nos Estados da era con­
tem porânea surgiu, no contexto da dissolução das pretensões
de uma dominação “ absoluta” , um a form ação de vontade
suficientem ente aberta e dirigid a em princípio a objetivos
políticos. Nessa situação, alguns sistemas políticos criam a
possibilidade de separar conceitualm ente e então tam bém

233
ínstitucionalmente a resistência contra transgressões do di­
reito da oposição contra o estabelecimento do d ireito,150 en­
contrando nisso uma das possíveis bases para uma prepara­
ção política ordenada em alternativas para a permanente
alteração das leis.
Todas essas condições — instauração do processo, sepa­
ração entre o cargo e a pessoa, entre desobediência e o
desejo de mudanças, entre resistência e oposição, e institu­
cionalização de processos políticos — não poderiam sustentar
a positivação do direito se a partir das mudanças na estru­
tura social não tivesse surgido um enorme volume de novos
problemas para decisão, que extravasavam a esfera das nor­
mas até então consideradas pela dogmática dos juristas. De
forma semelhante à passagem do direito arcaico da auto­
defesa para o direito das culturas avançadas, novas situa­
ções-problema e novas necessidades de decisão da economia
comercial, da propriedade individual da terra, da proteção
dos pobres e fracos, e do status relevante política e militar-
mente induziam a substituir o antigo direito unitário por
uma diferenciação processual entre direito civil e direito pes­
soal; agora o papel condutor cabe aos problemas que têm
que ser decididos em termos de direito público: inicialmente
na transformação da ordem social estamental na sociedade
industrial, e então cada vez mais voltados para a solução
de problemas de conseqüência desse novo tipo de sociedade.
No campo da dogmática jurídica tradicional já se dispunha
de formações de sentido que apresentavam uma complexi­
dade elevada e estruturada. Apesar de todos os desdobra­
mentos, só eram possíveis “ codificações” que, apesar da acen­
tuada tendência no sentido da racionalização e da sistemati­
zação, no essencial tinham que refe. r-se ao direito existente.
Mesm o com todo o radicalismo do iluminismo que exigia o
desaparecimento do direito antigo e a reconstrução da razão,
em suas construções jurídicas predominava materialmente o
direito precedente reelaborado. O “coãs civil” , por exemplo,
recorria conscientemente ao direito dos coutumes; o “ direito
territorial geral” (AUgemeine Lanãrecht) germanizava ex­
pressamente as pandectas do direito romano. Nesse campo
podia impor-se a exigência de um repensar racional do direi­
to e de uma autenticação legislativa do direito, ressalvando-
se a possibilidade de alterações; mas era não possível impor-
se a exigência de um direito em princípio variável, corrente­

234
mente sujeito à adaptação e que vive exatamento devido a
essa possibilidade. A plena positivação do direito nesse sen­
tido, que desenvolveremos mais detalhadamente no próximo
capítulo, tinha sua fonte no direito público ou em esferas,
como o direito do trabalho, que não podem ser claramente
classificadas, mas de qualquer forma se situam fora do cam­
po conceituai da dogmática tradicional. Coexistiam então a
necessidade e a possibilidade do surgimento de um novo
estilo jurídico, que hoje tomou-se obrigatório e generalizado.
Só então colocaram-se tantos problemas de fixação do direito,
principalmente no sentido de necessidades de evitar-se pos­
sibilidades de regulamentação legislativa, tomando-se neces­
sária no século X IX a instauração de processos legislativos
através do direito do Estado, como componente funcional
permanente do aparelho de Estado (e não só enquanto um
“ direito” utilizado pelas monarquias quando fosse necessá­
rio). Também aumenta, correspondentemente, a complexi­
dade da preparação política das decisões que exige cada vez
mais dedicação exclusiva e organização, ou seja a diferen­
ciação de uma esfera política (e partidária) no sistema polí­
tico. As condições sócio-estruturais prévias para tudo isso
relacionam-se de forma muito complicada e freqüentemente
mediatizada com a crescente diferenciação funcional e a
especificação de sistemas parciais.
A instauração de processos legislativos como componente
institucional da vida político-estatal é uma condição impres­
cindível para a reorientação global do direito em termos de
positivação, no sentido de uma premissa para decisões. Por
isso, a preparação da positivação do direito no plano con­
ceituai em geral e no plano do conceito jurídico-científico
concentrou-se inicialmente no processo legislativo131 — fi­
xando-se assim em um nível de abstração impenetrável para
a teoria. Com o estabelecimento do processo legislativo, com
a tra n sp a rê n c ia dessas formas de procedimento e de seus
resultados, reduz-se o medo frente ao novo Leviatã. desco­
nhecido, crescendo em contrapartida a convicção sobre lim i­
tes imanentes à legislação. Torna-se evidente que nem todo
o direito pode ser cunhado na forma genérica da lei, que as
fixações programáticas do legislador não podem captar inte­
gralmente o sentido do direito vigente. No século X X , no
entanto, isso não leva ao reconhecimento de princípios ou

235
de fontes invariantes do direito, mas sim a um a n ova acen­
tuação do direito dos juizes, e isso no terreno da positividade.
Essa caracterização do direito dos juizes ou da legislação
através da jurisprudência inclui recursos ao an tigo direito
dos juristas, por exem plo quando se acentua nos juizes a
neutralidade política, a articulação da consciência jurídica
n a sociedade, a responsabilidade pelas conseqüências das de­
cisões e a sensibilidade para o deslocamento cuidadoso das
imagens dogmáticas, do direito. A isso acrescentam-se, no
entanto argumentos que fundam entam uma contribuição es­
pecial do ju iz a p artir de sua posição em um processo deci-
sório diferenciado: a partir do seu controle direto das sanções
do direito, da sua proxim idade com os casos apresentados e
a concretude de sua experiência jurídica quotidiana, sua lida
com normas inacabadamente determinadas, de sua decisão
fixada legalm ente em termos apenas program áticos e não
definitivos. Tudo isso remete com plem entarm ente ao proces­
so legislativo.
A estreita relação entre esses aspectos pode ser interpre­
tada como sintoma de que tam bém a autocompreensão e a
ética profissionais dos juristas orientam-se no sentido da po­
sitividade do direito. A decisão do juiz não costuma apresen­
tar-se como um a escolha contingencial, mas em comunidade
funcional com a legislação ela sustenta a seleção do direito
e assim sua positivid ad e.152 A consideração da legislação
define não só as vinculações, mas também as liberdades do
ju iz: ele pode arriscar desenvolvimentos mais arrojados no
direito, na medida em que esteja seguro de ter em sua reta­
guarda o possível corretivo da legislação.
De qualquer form a podemos constatar hoje que a positi­
vidade do direito não pode ser suficientem ente com preendida
através do fato da competência legislativa sobre todo o di­
reito. No processo histórico de desenvolvim ento da positiva-
ção do direito trata-se não somente da am pliação das atri­
buições legislativas com respeito a um dado sistema jurídico,
também não do desaparecimento da hierarquia das leis, da
simples continuidade da lex positiva após a perda da crença
em fontes superiores do direito. Em term os mais estritos
pode-se fa la r de positividade — no sentido do d ireito enquan­
to totalidade — somente quando o próprio estabelecimento
do direito, ou seja a decisão, tomou-se base do direito. E isso
só pode ocorrer na m edida em que a própria seletividade

236
desse estabelecimento é aproveitada para a estabilização do
direito. O direito positivo vige não porque normas superiores
perm item , mas porque sua seletividade preenche a junção
do estabelecimento de congruência.
A passagem para o direito positivo, cuja vigência baseia-
se exclusivam ente na decisão e que é m odificável tam bém
através de decisão, m odifica novamente o estilo do direito,
m odifica o plano do sentido no qual procura-se e assegura-
se a generalização congruente de expectativas sobre expecta­
tivas. A complexidade e a contingência perm itidas estrutu­
ralm ente ao direito eleva-se ao incomensurável, e nease ho­
rizonte enorm emente expandido de possibilidades, o direito
muda^ sua qualidade propriam ente jurídica, apesar de 'toda
constância de normas e conceitos jurídicos isolados. Esse1pro­
cesso é com parável com a passagem do direito arcaico da
autodefesa para o direito civil e estatal das culturas avança­
das, no que diz respeito à abrangência da reestruturação,
suas condições e conseqüências sociais.
Não é um mero acaso que esse processo da positivação
do direito se dê em paralelo ao pleno desenvolvim ento da
diferenciação funcional do sistema social. Seria possível com­
provar o entrelaçam ento de interdependências diretas e in ­
diretas — basta pensar nos diversos motivos para a legislação
que surgiram da insuficiente integração entre economia e
fam ília, entre economia e política. O decisivo é a convergên­
cia em princípio. A diferenciação funcional especifica e abs­
trai as perspectivas dos sistemas parciais da sociedade, atri­
buindo-lhes funções e possibilidades desiguais. Já caracteri­
zamos isso como superprodução de possibilidades estrutural­
m ente condicionada. Essa mudança exige um direito que pode
captar mais possibilidades e ordená-las em processos seletivos
e cujo princípio satisfaça a riqueza de possibilidades e sua
redução. A diferenciação funcional do sistema social e a p o -
sitividade do direito convergem nesse traço básico de com ­
plexidade e contingência superdimensionadas — um a sobre­
carga que a sociedade se auto-impõe e que desencadeia pro­
cessos seletivos internos ao sistema.
Essa mudança tem conseqüências para a localização e a
qualificação conceituais do direito. O campo de opções do
hom em e dessa form a a construção de sentido do seu mundo
(daquilo que o mundo lhe apresenta como possibilidade)
sempre dependem da estruturação da sociedade. Sociedades

237
simples possuem visões de mundo relativam ente concretas,
antropomorfas, com categorias residuais para o inquietan­
te 15:1 com grande parcela de complexidade indeterm inável e,
correspondentemente, pouca seletividade organizada. Elas se
sentem .sobrecarregadas com o mundo e o fixa m da form a
mais concreta e invariante possível. As culturas avançadas
mais antigas, com o tínham os visto, ainda com preendiam seu
direito com o a ordem no mundo. A diferenciação funcional,
ao contrário, leva a auto-imposição de um a sobrecarga à
sociedade, através de possibilidades que variam ju n to com
suas estruturas, não podendo assim ser ancoradas no m un­
do em si. O direito é compreendido analogamente. Ele situa-
se em premissas norm ativas para decisões, as quais também
podem submeter-se a deci «>es. Seu surgim ento e sua função
residem no processo deeisorio e eventuais indeterminações
são encaminhadas com argumentos técnicos ou econômi­
cos1r‘4 ele tem que com provar sua adequação como program a
decisório.
Finalm ente, a positividade do direito pode ser concebida
como a seletividade intensificada do direito. O horizonte am ­
pliado do que é possível enquanto experiência e ação coloca
o direito natural supostamente invariante à luz de outras
possibilidades. O que se supunha ser constante, ser ordem
no mundo, passa a ser reconhecido como escolha, opção, e
tem que ser assumido com o tal, independentemente da m a­
nutenção ou m odificação das normas em cada caso. Essa
mudança estrutural (e não uma decisão) to m a a decisão o
princípio do direito. Sua positividade não resulta da consti­
tuição (m as vige tam bém quando a constituição a nega,
“ assumindo-se” com o direito natural ou in a lte rá v e l); ela não
resulta da referência lógica a uma ncrm a básica que confere
vigência norm ativa a determinadas decisões (m as quando
m uito é simbolizada e construída juridicam ente pela idéia
de uma tal norm a b á s ic a ); ela resulta, isso sim. do desen­
volvim ento social e está correlacionada com uma estrutura
social que gera um a superabundância de possibilidades atra­
vés da diferenciação funcional, apresentando por isso a ten­
dência de fazer com que todo o direito pareça contingente.

238
NO TAS DO 3.° C A PITU LO

1 É característico para essa situação que a única tentativa


destacável nesse sentido (PARSONS, Talcott. Societies: evolutionary
and comparative perspectives. Engelwood Cliffs, 1966. Idem. The
system of m odem societies. Engelwood Cliffs, 1971) recorre ao con­
ceito clássico da autarquia, contradizendo assim as orientações me- -
todológicas desse mesmo autor. Cf. ainda: KLAUSNER, Samuel Z.
The study o f total societies. Garden City, 1967. ZAPF, Wolfgang.
Complex societies and social ehange. Social science Information,
n.° 7, 1968.
2 Para uma exposição esquematizada ver: LUHMANN, Niklas.
Funktionale Methode und Systemtheorie. Soziale Welt, n.° 15, 1964.
Idem. Sociologie ais Theorie sozialer Systeme. Kólner Zeitschrift
für Soziologie und Sozialpsychologie, n.° 19, 1967.
3 Cf. p. ex.: SCHUR, Edwin M. Law and society. Nova Iorque,
1968, n. 107 s. BARKUN, Michael. Law without sanctions. New
Haven/Londres, 1968, p. 116 ss. SCHWARTZ, Richard D. e MILLER,
James C. Legal evolution and societal complexity. American journal
of sociology, n.° 70, 1964.
* Essa combinação entre “causação natural” e interpretação
moral é característica para a teoria vitoriana da evolução e prin­
cipalmente para Spencer. Cf. BUÍRROW, J. W. Evolution and society.
Cambridge, 1966.
s Para esse conceito ver PARSONS, Talcott. Evolutionary uni­
versais in society. American sociological review, n.° 29, 1964.
0 Uma concepção semelhante, a partir de Parsons, é encontrada
em BOSKOFF, Alvin. Functional analysis as a source of a theoro-
tical repertory and research tasks in the study of social change.
Em ZOLLSCHAN, George K. HIRSCH, Walter. Explorations in social
change. Londres, 1964.
7 Com essa noção Parsons fundamenta freqüentemente sua
tese da relevância do direito para o desenvolvimento social. Cf. p. ex.:
PARSONS .Talcott. The position of identity in the general theory
of action. Em GORDON, Chad e GERGEN, Kenneth J. The self in
social interaction. Nova Iorque, 1968, vol. I, p. 21 s. ACKERMAN,
Charles e PARSONS, Talcott. The concept of ‘social system’ as
a theoretical device. Em DIRENZO, Gordon J. Concepts, theory anã
erplanation in the behavioral sciences. Nova Iorque, 1966, p. 37 s.

239
P a ra Parsons, a crescente diferenciação exige crescente generaliza­
ção e reespecificação de símbolos, o que é fornecido pelo sistema
educacional e pelo sistema jurídico.
s Esclarecendo: na evolução orgânica essas funções são pre­
enchidas (1) pela mutação, (2) sobrevivência do que é útil e (3)
pelo isolamento reprodutivo; nos processos de assimilação essas
funções são preenchidas (1) pela percepção de um ambiente de­
masiadamente complexo, (2) pela diferenciação entre prazer e
repugnância e (3) pela memória. Para a teoria biológica da evo­
lução ver STEBBINS, G. Ledyard. Evolutionsprozesse. Stuttgart, 1368.
A transposição desse modelo geral para o campo da assimilação
cognitiva em sistema psíquicos foi proposta em CAMPBELL, Donald
T. Methodological suggestions from a comparative psychology of
knowledge processes. In q u iry , n.° 2, 1959. Maiores detalhes em idem.
Variation and selective retention in socio-cultural evolution. G e n e ra l
systems, n.° 14, 1969. Não conheço uma tentativa correspondente
para expectativas normativas. TIMASHEFF (op. cit., 1939, p. 120 s.)
distingue como condições para a. evolução do direito (1) a sugestão
de nova possibilidade, cuja maior parte é descartada; e (2) seleção
segundo a compatibilidade sentimental (! ) com o direito vigente.
A diferenciação entre in v e n çã o , co m u n ica çã o e h e ra n ça socia l é
encontrada em CAIRNS, Huntington. T h e th e o ry o/ lega l science.
Chapei Hill, 1941, p. 29 ss.
9 Essa tendência foi interpretada sociologicamente por Durk­
heim (ver capítulo I acima). Para novos posicionamentos ver:
EASTON, Davis. Political anthropology. Em SIEGEL, Bernard J.
B ie n n ia l review o f a n th ro p o lo g y . Stanford, 1959. SMELSER, Neil J.
S o cia l ch a n ge in th e in d u s tria l re v o lu tio n . Londres, 1959. PARSONS,
Talcott. Some considerations on the theory of social change. R u ra l
sociology, n.° 26, 1S61. Idem. Introducuun to part two. Em idem et
al. T h eories o f society. Glencoe, 1961. LAPALOMBARA, Joseph.
B ureaucracy and p o litic a l d evelop m en t. Princeton, 1963, p. 39 ss. e
122 ss. EISENSTADT, S. N. Social change, diferentiation and evo­
lution. A m e ric a n s o c io lo g ic a l review , n.° 29 1964.
10 SAHLINS, Marshall D. e SERVICE, Elman R. E v o lu tio n and
c u ltu re . Ann Arbor, 1960, p. 38.
11 Cf. LUHM ANN, Niklas. L e g itim a tio n d u rc h V e rfa h re n .
Neu^/ied/Berlim, 1969.
12 Cf. a análise do jogo enquanto sistema de interação em
GOFFMAN, Erving. E n co u n te rs . Indianapolis, 1961, p. 17 ss.
13 Mesmo nas sociedade atuais a diferenciação de processos só
pode realizar-se parcialmente. Cf. CICOUREL, Aaron V. T h e social
o rg a n iz a tio n o f ju v e n ile ju s tic e . Nova Iorque/Londres/Sidnei, 1968,
P. 172 ss.
14 Um desenvolvimento conceituai dessa dimensão só foi atin­
gido na psicologia. Cf.: GOLDSTEIN, Kurt e SCHEERER, Martin.
A b s tra ct a n ã c o n c re te b eh a vior. Psychological monographs, n.° 53,
1941, HARVEY, O. J.; HUNT, David E. e SCHRODER, Harold M.
C on cep tu a l systems an ã p e rs o n a lity o rg a n iza tio n . Nova Iorque/
Londres, 1961. WARE, Robert e HARVEY, O. J. A cognitive deter-

240
minant of impressic i formation. Journal of personality and social
■psychology, n.° 5 , 19 .7 .
15 Considere-se qi.e a form ação de fam ílias conceituais é apenas
um entre diversos tipo.', de abstração (se bem facilitado em certas
lín gu as). Ao seu lado existem por exemplo abstrações através da
especificação que partem de um a função específica, um efeito,
um objetivo, isolando essa perspectiva através de indiferenças.
i« Por equifinalidade é entendido 0 fato de que 0 mesmo estado
de um sistema (aqui: 0 do direito) pode ser atingido a partir de
diferentes constelações originais e através de diferentes caminhos.
Cf. VON BERTALANFFY, Ludwig. Zu einer allgemeínen Systemlehre.
Biologia generalis, n.° 19, 1S49, p. 123 ss. Essa concepção, mas não
seu conceito, é usual na teoria jurídica. Cf. p. ex. REDFIELD, Robert.
Primitive law. Em BOHANNAN, Paul. Law and warfare. Garden
City, 1967, p. 21 ss.
1T Um exemplo típico é 0 surgimento equifinal da herança
testamentária. Cf.: CAIRNS, Huntington The theory of legal science.
Chapei Hill, 1941, p. 33 ss. W AR NOTE, D Les origines sociologiques
de VoUigation contractuelle. Bruxelas, 1927, p. 35 ss.
18 Ver THURNWALD, Richard. Die menschliche Gesellschaft in
ihren ethnosoziologischen Grundlagen. Berlim/Leipzig, 1934, vol. V.
19 Essa hipótese tem a forma da afirmação de que esses pro­
blemas têm que ser resolvidos (de qualquer jeito) para qüe 0 sistema
sobreviva. A hipótese refere-se então inicialmente apenas à relação
entre 0 problema e a sobrevivência do sistma, e não à relação entre
o problema e sua solução, já que existem soluções funcionalmente
equivalentes. Uma tal teoria não permite, portanto, prever-se uma
determinada solução, nem futuros estados do sistema. A previsão
torna-se possível na medida em que se consiga introduzir no quadro
referencial da pesquisa premissas constantes em termos de decisões
estruturais.
20 Para uma tipologia mais detalhada ver GURVITCH, Georges.
Grudzüge der Sociologie des Rechts. Neuwied, 1960, p. 179 ss. Ou
ainda DIAMOND, A. S. The evolution of law and order. Londres, 1951.
-’1 Essa comparação em termos de estrutura e estágio de de­
senvolvimento impôs-se como uma técnica das ciências sociais já
no século X IX . Cf. BURROW, J. W. Evolution and society. Cam -
bridge, 1956, p. 13 s.
Para os limites desse princípio ver SEAGLE, William.
Weltgeschichte des Rechts. Munique/Berlim, 1951, p. 76 ss.
23 a teoria de sistemas diferencia entre o crescimento em
volume e o crescimento em complexidade como duas variáveis dis­
tintas. Cf.: PRINGLE, J. W. S. On the parallel between learning
and evolution. Behavior, n.° 3, 1951, p. 176 s. ZELDITCH, Morris e
HOPKINS, Terence K. Laboratory experiments with organization.
Em ETZIONI, Amitai. Complex organizations. Nova Iorque, 1961,
p 470 s THOMPSON, James D. Organizations in action. Nova Iorque,
1967, p. 74. HALL, Richard H.; HAAS, Eugene J. e JOHNSON, Norman
J. órganizational size, complexity and formalization. American
sociological review, n.° 32, 1967. Na sociologia do direito encontramos

241
uma diferenciação semelhante entre crescimento e fortalecimento
da eficácia (no sentido de mais apropriada a qualquer objetivo) em
HORVATH, Barna. R ech tssoziolog ie. Berlim, 1934, p. 121 ss.
24 Assim em SCHOTT, Rüdiger. Die Funktion des Rechts in
primitiven Gesellschaften. J a h rb u ch fü r R ech ts s o zio lo g ie u n ã R e ­
ch ts th e o rie , n.° 1, 1970, p. 133. Diversas comprovações podem ser
encontradas em POSPISIL, Leopold. K a p a u k u papuas and th e ir law.
Yale University publications in anthropology, n.° 54, 1958. Para o
direito chinês ver: ESCARRA, Jean. L e d ro it ch in ois. Pequim/Paris,
1936, p. 17 s. VAN DER SPRENKEL, Sybille. L e g a l in s titu tio n s in
M a n ch u C hina. Londres, 1962, p. 114. Para o Japão ver HENDERSON,
Dan Fenno. C o n c ilia tio n and japa n ese law. Seattle/Toquio, 1965,
vol. I. Para a Coréia ver PYONG-CHOOM , Hahm. T h e korea n
p o litic a l tra d itio n an ã law. Seoul, 1967, p. 40 ss.
25 Cf. M ALINOW SKI, Bronsilaw. A new instrument for the
interpretation of law. T h e Y a le law jo u rn a l, n.° 51, 1942, p. 1249.
26 Ver acima, cap. I, item 1.
27 Cf. BERNDT, Ronald M. Excess anã re s tra in t. Chicago, 1962,
p. 393 ss. Para a dependência do direito com respeito ao poder e
à capacidade de luta das associações de parentesco ver também:
BARTON, R. F. Ifu g a o law. Califórnia publications in american
archeology and ethnology 15, 1919, p. 1-186. MAIR, Lucy. P r im itiv e
g o v e rn m e n t. Harmondsworth, 1962, p. 35 ss.
28 Ver fundamentação teórica no item 7, cap. I.
29 Cf. RATTRAY, R. S. A s h a n ti law anã c o n s titu tio n . Oxford,
1929, p. 294 ss. Outro exemplo em sociedades primitivas em G ILLIN,
John. Crime and punishment among the Barama River carib of
British Guiana. A m e ric a n a n th ro p o lo g is t, n.° 36, 1934.
30 Isso também é um nítido sintoma de pensamento concreto,
que não possui a possibilidade de distinguir entre a negação do
conteúdo de uma expectativa jurídica, a negação de sua forma de
dever ser, e a negação do direito em si, e que torna impossível o
reconhecimento de um outro direito”. Em termos psicológicos, Isso
seria atualmente “patológico”.
31 Op. cit., p. 88.
32 Para exemplos no direito alemão antigo ver BEYERLE, Franz.
Sinnbild und Bildgewalt im àlteren deutschen Recht. Z e its c h r ift der
S a v ig fiy -S tiftu n g f ü r R e ch ts g e s ch ich te , n.° 58, 1938.
33 Assim citado em THURNW ALD, op. cit., p. 119, com a res­
trição de que “vontade divina” não quer dizer “criação divina”.
34 Cf. MBITI, John. Les africans et la notion du temps. Á fric a ,
n.° 8, 1967.
35 Ver DIAMOND, A. S. P r im itiv e law. Londres, 1955. As vin-
culações religiosas são acentuadas em BÜNGER, Karl e TRIMBORN,
Hermann. R egiòse B in á u n g e n in frü h e n un ã in o rie n ta lis c h e n
R e ch te n . Wiesbaden, 1952.
30 Cf.: HARTLAND, E. Sidney. P r im itiv e law. Londres, 1924,
p. 204 ss. WAGNER, Günter. The political organization of the bantu
of Kavirondo. Em FORTES, Meyer e EVANS-PRITCHARD, E. E.
A fric a n p o litic a l system . Londres, 1940. p. 202 s. NADEL, Siegfried F.

242
Social control and self-regulation. Social forces, n.° 31, 1955. Para
o caso de modificações dos limites do tabu do incesto ver POSPISIL,
op. cit., p. 109, 165 s. e 282 ss. Um outro exemplo (proibição de
porte de punhais) em GUTM ANN, Bruno. Das Recht des Dschagga.
Munique, 1926, p. 246. De qualquer forma nossas informações são
tão cheias de lacunas que dificilmente podemos avaliar a durabi­
lidade de alteração das tradições arcaicas.
37 Cf. p. ex. RATTRAY. B. R. S. Ashanti law and constitution.
Oxford, 1929.
3S Para o ritualismo sacral, essa função pode ser demonstrada
no desenvolvimento da índia no século V I a.C. Para formulação
mais tradicionalmente jurídica ela pode ser indentificada no de­
senvolvimento mais ou menos contemporâneo das cidades-estado
antigas. Cf.: BANDYOPADHAYA, Narayan Chandra. Developm ent
of hindu polity and political theories, Calcutá, 1927, vol. I, p. 143 ss.,
157. SEN-GUPTA, Nares Chandra. Evolution of ancient indian law.
LondresíCalcutá, 1953. p. 49. GERNET, Louis. Droit et prédroit en
Grèce ancienne. U année sociologique, série 3, 1948, p. 70 ss. HÁSER,
Max. Das altròmische ius. Gõttingen, 1949.
39 LEE, D. Demetracopoulou. A primitive system of values.
Philosophy of science, n.° 7, 1940.
4» Cf. GERNET, Louis. Le temps dans les formes archaíques
du droit. Journal de psychologie normále et pathologique, n.° 53, 1956.
Cf. p. ex.: GERNET, op. cit., 1956. WOLFF, Hans J. Beitrãge
zur Rechtsgeschichte Altgriechenlands und des hellenistisch-rõm is-
chen Âgypten. Weimar, 1961, p. 34 s. e 112 s. também SCHARFF,
Alexander e SEIDL, Erwin. Einführung in die àgypüsche Rechts­
geschichte bis zurn Ende des Nenen Reiches. Glückstadt/Hamburgo/
Nova Iorque, 1939, p. 29, 49 ss.
42 Ver p. ex. GLASSE, Robert M. Revenge and redress among
the huli. Mankind, n.° 5, 1S59.
« Ver p. ex.: THURNWALD, op. cit., p. 5 s., 43 s. M A LINO W SYI,
Bronsilaw. Sitte und Verbrechen bei den Naturvõlkem . Viena, sem
data, d. 26 ss. e 46 ss. SIGRIST, Christian. Regulierte Anarchie.
Olten/Freiburg, 1967, p. 112 ss. SCHOTT, op. cit., 1970, p. 129 ss.
44 Ver MAUSS, Marcel. Essai sur le don. Em idem. Sociologie
et anthropologie. Paris, 1950.
45 Na linguagem de Theodor G EIG ER ( V orstu d ien , op. cit.,
p. 62) poderíamos dizer: quando os destinatários e os beneficiários
da norma não são muito fortemente diferenciados.
Como exemplo ver em HERODOTO (Histórias II I ) a exi­
gência da dominação sobre Samos como retribuição para um manto
que Syloson tinha dado a Dareios quando esse ainda não era rei.
47 c f. SCHOPLER, John e THOMPSON, Vaida Diller. Role of
attribution processes in mediating amount of reciprocity for a favor.
Journal of personality and social psychology, n.° 10, 1968.
48 para poder compreender esses princípios do direito é ne­
cessário deslocar a noção da congruência do plano das expectativas
para o plano das ações. Na dimensão temporal, p. ex., trata-se não

243
da simples manutenção de expectativas, mas da superação da di­
ferença no tempo entre ato e desagravo.
4» cf. p. ex.: GRÀF, Erwin. Das Rechtsw esen d er h e u tig e n
B ed u in en . Walldorf, 1952, p. 41 ss. HASLUCK, Margaret. T h e u n w ritte n
law in A lb a n ia . Cambridge, 1954, p. 210 ss. SCHAPERA, Isaac. The
sin of Cain. J o u rn a l o f th e R oy a l A n th ro p o lo g ic a l In s titu te , n.° 85,
1S55. SIGRIST, op. Cit., p. 78, 118 ss.
oo As sociedades arcaicas já conseguem produzir regulamen­
tações bastante complicadas, sem uma justiça estatal, em áreas do
direito economicamente importantes. Ver p. ex. BARTON, R. F.
Ifugao law. U n iv e rs ity o f C a lifó rn ia p u b lica tio n s in a m e rica n a r-
ch eology and e th n o lo g y , n.° 15, 1919. KROEBER, A. L. H a n d b ook o f
th e in d ia n s o f C a lifó rn ia . Washington, 1925, p. 20 ss. SCHOTT,
Rüdiger. A n fà n g e der P r iv a t — und P la n w irts ch a ft. Braunschweig,
1956, p. 284 ss. GRAF, op. cit. SCHWARTZ, Richard D. Social factors
in the development of legal control. T h e Y a le law jo u rn a l, n.° 63,
1954, p. 484 ss.
si Cf. GRAF, op. cit., p. 78 ss.
52 Cf.: HOEBEL. T h e law o f p r im itiv e m an. Op. cit. LEIFER,
Franz. Zum rõmischen vindex-Problem. Z e its c h r ift f ü r v e rg le ich e n d e
R echtsw issen sch a ft, n.° 50, 1S36. POSPISIL, op. cit., p. 144 ss., 154 ss.,
254 s. BERNDT, op. cit., p. 311 ss. Cf. ainda: THURNWALD, op. cit.,
p. 145 ss. EKVALL, Robert B. Law and the individual among the tibetan
nomads. A m e ric a n a n th ro p o lo g is t, n.° 66, 1964. REDFIELD, op. cit.,
lo67, p. 8 ss.
53 Em alguns casos a disputa pode ser encerrada por chefes
poderosos, como foi verificado por POSPISIL, op. cit. Mas a inter­
venção não tem o sentido de aplicação vinculativa de uma norma,
mas representa apenas a arbitragem da autoridade invocando o
direito. O “último recurso” do chefe, ao qual todos se submetem,
são suas próprias lágrimas (ibidem, p. 255).
54 Até que ponto a passagem se dá impercebida ou consciente­
mente varia de caso a caso. Para as antigas cidades-estado era
característico um elevado grau de. consciência das modificações fun-
dãmentais.
55 Ver BURRIDGE, Kenelm. Disputing in Tangu. A m e rica n
a n th ro p o lo g is t, n.° 59, 1957.
30 Cf. SIEGEL, Heinrich. Die Gefahr vor Gericht und im
Rechtsgang. S itz u n g s b e rich te d er P h ilis o p h is c h -H is to ris c h e n Classe
d e r K a is e rlic h e n A k a d em ie der W issenschaften, Wien, n.° 51, 1865.
57 Cf. POLLOCK, Frederick, English law before the norman
conquest. T h e law q u a te rly review , n.° 14, 1898. Cf. também GAISSER,
Erich. M in n e und R e c h t in den S ch ó ffe n s p rü ch e n des M itte la lte rs .
Tübingen, 1E55. Ver ainda, na nota 24 acima, as referências aos sis­
temas jurídicos orientais.
58 Isso é acentuado em VON ZALLINGER, Otto. W esen und
U rsp ru n g des F o rm a lis m u s im a ltd eu tsch en P riv a tre c h . Viena, 1898.
Esse argumento é apoiado na tese de que o formalismo não é uma
característica jurídica originalmente arcaica, surgindo apenas na
fase da passagem para o direito processual.

244
59 Para uma visão geral ver HOBHOUSE, L. T.; WHEELER,
G. C. e GINSBERG, M. T h e m a te ria l c u ltu re and social in s titu tio n s
o f th e s im p le r peoples. Londres, 1915, p. 80.
«o Cf. WEBER, R ech tssoziologie, op. cit., p. 92 ss.
;:1 A relação contrária está documentada: o distanciamento do
criminoso era um meio político para evitar-se a vindita. Cf. CH’ü,
T ’ung-Tsu. Law and society in tra d itio n a l C hina. Paris/Haia, 1961,
p. 82 s.
02 Cf. SEAGLE, op. cit., p. 115. Sobre a continuidade histórica
desse problema ver RIBBON-TURNER, C. J. A h is to ry o f va gra n ts
and va gra n cy and beggars and b eggin g. Londres, 1887.
<i:i Cf. EISENSTADT, S. N. Primitive political systems. A m e rica n
a n th ro p o lo g is t, n.° 61, 1959. Ver também EASTON, David. Political
anthropology. Op. cit. MAIR, Lucy. Op. cit.
04 Para o funcionamento da política e da administração sobre
tal base sócio-estrutural ver: SMITH, M. G. On segmentary lineage
systems. T h e jo u rn a l o f th e R o y a l A n th ro p o lo g ic a l In s titu te o f G re a t
B r ita in and Ire la n d , n.° 86, 1956. FALLERS, Lloyd. Political sociology
and the anthropological study of african politics. Europâiscnes
A r c h iv fü r S oziologie, n.° 4, 1963. MAIR, op. cit. SCHAPERA, Isaac.
G o v e rn m e n t and p o litic s in trib a l societies. Londres, 1966. M IDDLE-
TON, John e TAIT, Davis. T rib es v A th o u t rules. Londres, 1958.
BARTH, F. P o litic a l leadership a m o n g th e swat pathans. Londres/
Nova Iorque, 1959. LEWIS, I. M. A p a s to ra l dem ocracy. Londres/Nova
Iorque/Toronto, 1961. VAN VELSEN, Jan. T h e p o litics o f k in sh ip .
Manchester, 1964. SIGRIST, op. cit.
(ir> Essa construção contrasta com as estruturas arcaicas mais
simples. Cf. SAHLINS, Marsall D. Poor man, rich man, big man,
chief. C om p a ra tive studies in society and h istory , n.° 5, 1962-1963.
A partir de SOUTHALL, Aidan. A lu r society. Cambridge, 1953. Dis­
tingue-se esse tipo mais antigo também conceitualmente como uma
construção “piramidal” de hierarquias sociais.
,i# Para os problemas de estabilização dessas dominações polí­
ticas ver EISENSTADT, S. N. T h e p o litic a l systems o f em pires. Nova
Iorque/Londres, 1963. Para estágios anteriores do desenvolvimento
ver também SIGRIST, op. cit., p. 240 ss.
07 Também os etnólogos vêem nisso a variável decisiva do
desenvolvimento do direito. Cf.: HOEBEL, op. cit., p. 289, 327.
REDFIELD, op. cit., p. 22.
,;s “Uma conversão de todos os valores ocorreu na medida em
que se passava do Estado menos rígido da autodefesa para o Estado
policial ” HEUSLER, Andreas. G e rm a n e n tu m . Heidelberg, 1936, 2.a ed.,
p. 11.
,1:> Ver HASLUCK, Margaret. T h e u n w ritte n law in A lbania,
op cit.
7I> Cf. SCHACHT, Joseph. A n in tro d u c tio n to isla m ic law
Oxford, 1964.
7' SCHACHT, Joseph. Zur soziologischen Betrachtung des is-
lamischen Rechts. D e r Jslam, n.° 22, 1935, p. 221.

245
72 cf.: ESCARRA, Jean. La conception chinoise du droit.
A rch iv e s de p h ilo s o p h ie du d ro it e t de sociolog ie ju rid iq u e , n.° 5,
1935. Idem. L e d r o it ch in ois. Pequim/Paris, 1936, p. 7-84. Sobre as
conseqüências para a legislação ver: BÜNGER, Karl. Die Rechtsidee
in der chinesischen Geschichte. S aeculum , n.° 3, 1952. T ’UN G -T SU,
Ch’ü. Law and society in tra d itio n a l C hina. Paris/Haia, 1961.
73 Cf. P o l. 1252a.
74 P o l. 1252c 17: a p o ik ía oikías, em geral erradamente traduzido
por “colônia das casas”.
75 Cf. nota 65 acima.
7« Na filosofia social européia antiga encontra-se um entre­
laçamento de dicotomias do tipo todoíparte, fim/meio, acima/abaixo:
a sociedade é vista como um todo que é composto por partes, as
quais necessariamente são hierarquicamente ordenadas, sendo que
as partes dominantes (apesar de serem partes!) representam e
sustentam o todo. Cf. p. ex.: ARISTÓTELES, P o l. 1254a. THOMAS
DE AQUINO. S u m a te o lo g ia e I q. 65 a .2.
77 Cf. MILLER, Walter B. Two concepts of authority. T h e
a m e ric a n a n th ro p o lo g is t, n.° 57, 1955.
78 Essa problemática se evidencia principalmente nas dificul­
dades em regular-se a sucessão em papéis dominantes. Cf. GOODY,
Jack. Sucession t o h ig h O ffice. Cambridge, 1966.
79 Um indício disso é o fato de que perguntas contrafáticas
(p. ex.: o que você faria se fosse rei?) são experimentadas como
erraéas ou sem sentido.
80 Sobre esse conceito ver HOMANS, George C. S o c ia l beh a vior.
Nova Iorque, 1961, p. 232 ss.
81 A defesa dssa tese é freqüente. Cf. p. ex.: HORVÁTH, Barna.
R ech tssoziolog ie. Berlim, 1934, p. 269 ss. HOEBEL, op. cit., p. 329.
82 Para as bases teóricas ver G ALTUNG, Johan. Institutionalized
conflict resolution. J o u rn a l o f peace research, 1965.
83 Cf. WOLFF, Hans Julius. Der Ursprung des gerichtlichen
Rechtsstreits bei den Griechen. Em idem. B e itrá g e z u r R e ch ts g e s -
c h ic h te A ltg rie ch e n la n d s u n d des h e lle n is tis c h -rõ m is c h e n à g y p ten .
Weimar, 1961. LAUTNER, Julius Georg. D ie ric h te r lic h e E n ts ch e id u n g
u n d die S tre itb e e n d ig u n g im a ltb a b y lon isch en P rozessrech te. Leipzig,
1922. Cf. ainda a nota 86 abaixo.
H\, Essas diferenças ficam claras nas dificuldades geradas pela
introdução do sistema processual inglês na Índia. Cf. COHN, Ber-
nard S. Some notes on law and change in north índia. E c o n o m ic
d e v e lo p m e n t and c u ltu ra l ch a n ge, n.° 8 , 1959. Ver também as refe­
rências na nota 24 acima.
85 Op. cit., p. 217 ss.
86 Ver EPSTEIN, A. L. J u d icia l tech n iqu es and th e ju d ic ia l p r o ­
cess. Manchester, 1954. Cf. ainda BOHNNAN, Paul J. Ju stice and
ju d g e m e n t a m o n g th e tiv. Londres, 1957. Comparando com processos
decisórios posteriores, ver GLUCKMAN, Max. A fric a n ju ris p ru d e n ce ,
op. Cit., p. 441 ss.
87 Cf.: SYKES, Gresham M. e MATZA, David. Techniques of
neutralization. A m e ric a n s o cio lo g ica l review , n.° 22, 1957. MATZA,

246
David. Delinquency and drift. Nova Iorque/Londres/Sidnei, 1964, p. 60
ss e 75 ss.
88 Cf.: GLUCKMAN, M a r The ideas In barotse jurisprudence.
New Haven, 1965. Idem. Reasonableness and responsability in the
law of segmentary societies. Em KUPER, Hilda e KUPER, Leo. African
law. Berkeley/Los Angeles, 1965. NADEL, Siegfried F. Reason and
unreason in african law. África, n.° 26, 1956. GREEN, Edward. The
reasonable man. Law and society review, n.° 2, 1968.
ss Cf. cap. li, item 4.
9» Cf. GERNET, Louis. Sur la notion du jugement en droit grec.
Em idem. D r o it et société áans la Grèce ancienne. Paris, 1955.
91 Cf. discussão acima.
92 Cf. AUBERT, Vilhelm. The hidden society. Totowa, 1965,
p. 102 s.
93 Cf. WOLF, Erik. Griechischen Rechtsdenken. Frankfurt, 1950
e 1952.
;i t Ver JONES, J. Walter. The law anã legal theory of the greeks.
Oxford, 1956, p. 150 s.
95 R ech tssoziologie, op. cit., p. 114 s.
06 Para o direito da antiga Babilônia essa parecia ser uma
questão não esclarecida. Cf. LAUTNER, Julius. Die richterliche
E n ts ch e id u n g und die Streitbeendigung im altbabylonischen P r o -
zessrecht. Leipz'g, 1S22, p. 10. Para o direito grego antigo ver WOLFF,
op. cit., 1961, p. 23 ss.
97 Cf. NôRR, Dieter. Z u r Entstehung d er gewohnheitsrechtlichen
T h e o rie . Gõttingen, 1969. Para a Idade Média ver BRYNTESON,
William E. Roman law and legislation in the middle ages. Speculum,
n.° 41, 1966. Um retrocesso foi observado em SCHACHT, Joseph. Zur
soziologischen Betrachtung des islamischen Rechts. D er Islam, n.° 22,
1935. p. 215.
98 Ver acima, cap. II, item 5.
99 As bases teóricas estão desenvolvidas no item 1 acima.
100 ver principalmente: VIEHWEG, Theodor. Topik und Juris-
pru d en z. Munique, 1965, 3.a ed. ESSER, Josef. Grundsatz und Norm
in d er ric h te rlic h e n F o rfb ild u n g des Privatrechts. Tübingen, 1956.
101 Ver as observações e indicações em EISENSTADT, S. N.
T h e p o litic a l systems o f em pires. Nova Iorque/Londres, 1963, p. 98 s.
102 c f. WIEACKER, Franz. Vom rõmischen Recht. Leipzig, 1944,
p. 7 ss. Ver também: KUNKEL, Wolfgang. Herkunft und soziale
S te llu n g des rõmischen Juristen. Graz/Viena/Colônia, 1967. K O S-
CHAKER, Paul. Europa und das rõmische Recht. Munique/Berlim,
1966.
103 Outra coisa é o fato de que uma prática jurídica privada
já parecia ser útil na Roma republicana, ao pleitear-se cargos
políticos.
104 a aversão generalizada, com excessão da Inglaterra, contra
a atividade rem unerada _ dos juristas, que chegava ao descrédito
moral ou até à proibição, estava motivada pelos problemas aqui
descritos com referência aos papéis, e também pelo receio de que

247
a remuneração provocasse um interesse no desdobramento e no
prolongamento de disputas. Por outro lado, os motivos podiam ser
apenas retóricos, permitindo aos juristas apresentar-se em tribunal
como “amigos” altruístas de seus mandantes. Cf. BONNER, Robert J.
Lawyers and litig a n ts in a n cie n t A th en s. Chicago, 1927, p. 200 ss.
105 Cf. também POSPISIL, op. cit., p. 285 ss.
1(>o Um exemplo contrário é fornecido por certos processos da
justiça política dos Estados modernos, nos quais o promotor do
processo fornece as normas e também as informações sobre os fatos,
eliminando com esse monopólio da informação, a autonomia decisória
do processo.
i»7 Sobre 0 paralelismo entre o direito dos juristas e a justiça
das aldeias ver, para o caso da Índia COHN, Bernard S. Anthro­
pological notes on disputes and law in índia. A m e ric a n a n tro p o -
logist, n.° 67, 1965.
.10* Muito conhecido é principalmente 0 interesse grego na
coleta e no estudo do direito em outros povos ( B a rb a rik à n ó m in a »
se bem que 0 resultado dessa pesquisa foi em grande parte perdido.
109 a expressão mais conhecida dessa noção encontra-se no
direito Índico, resumido no conceito do D h a rm a . Cf. p. ex.: BAN -
DYOPADHAYA, Narayan Chandra. D e v e lo p m e n t o f h in d u p o lity anã
p o litic a l th eories. Calcutá, 1927, p. 269 ss., 285 ss. SARKAR, U. C.
Epochs in h in d u legal h istory . Hoshiarpur, 1958, p. 21 ss. Cf. ainda
LINGAT, R. Evolution of the conception of law in Burma and Siam.
T h e J o u rn a l o f th e S ia m S ociety , n.° 38, 1950. Para a China cf.
CH’Ü, T ’ung-Tsu. Law and society in tra d itio n a l C hina. Paris/Haia
1961, p. 213 ss. Para o Japão cf. HENDERSON, Dan Fenno. C o n c i-
lia tio n and japanese law. Seattle/Toquio, 1965, vol. I, p. 47 ss.
no Sobre o simbolismo na organização ver RIGGS, Fred W.
T h a ila n ã . Honolulu, 1966.
111 Cf.: RITTER, Joachim. Zur Grundlegung der praktischen
Philosophie bei Aristóteles. A rc h iv fü r R ech ts — und S o z ia lp h ilo -
sophie, n.° 46, 1960. Idem ‘N a tu rre c h V bei A ristóteles. Stuttgart, 1961.
Idem. ‘Politik’ und ‘Ethik’ in der praktischen Philosophie des Aris­
tóteles. P h ilosop h isch es J a h rb u ch , n.° 74, 1967. RIEDEL, Manfred.
Zur Topologie des klassisch-politischen und des modern-naturre-
chtlichen Gessellschaftsbegriffs. A rc h iv fü r R e ch ts u n ã S o z ia l-
p h ilosop h ie, n.° 51, 1965, p. 295 s.
112 Em parte faltava até uma possibilidade de diferenciação
lingüística entre verdade e direito, p. ex. no Egito. Cf.: SCHARFF,
Alexandre e SEIDL, Erwin. E in fü h ru n g in die ágy p tisch e R e c h ts -
geschichte, bis zu m Ende âes N eu en R eich es, Glückstadt/Hamburgo/
Nova Iorque, 1939, vol. I, p. 42. WILSON, John A. Authority and law
in ancient Egypt. J o u rn a l o f th e A m e ric a n O rie n ta l S ociety , n.° 74,
1954, p. 6 s.
113 Cf. K ’I-T C H ’AO, Leang. La c o n c e p tio n de la lo i et les th eóries
áes légistes à la v e ille áes Ts’in . Pequim, 1926. DUYVENDAX, J. J. L.
T h e book o f lord S hang. Londres, 1928. NEEDHAM, Joseph. S cien ce
t t t t H p 1 T B a ! Í O n , - n China. Cambridge, 1956, vol. 2, p. 204 ss., 518 ss.
1 UNG-TSU, Ch’ü. Law and society in tra d itio n a l C h in a . Paris/Haia.

248
1961, p. 226 ss. VANDERMEERSCH, Léon. La formation du lègisme.
Paris, 1965. JYTJN-HSYONG, Su. Das chinesische Rechtsdenken im
Licht der Naturrechtslehre. Freiburg, 1966, p. 44 ss.
114 Para uma visão geral cf. JONES, J. Walter. The Law and
legal theory of the greeks. Oxford, 1956, p. 34-72. Para a interpretação
na Idade Média ver GAGNÉR, Sten. Studien zur Ideengeschichte
der Gesetzgebung. Estocolmo/Uppsala/Gõteborg, 1960, p. 179 ss.
115 Nadei aponta corretamente que a utilização de conceitos
como o da razão e o da justiça natural só podem ser encontrados
em sociedades que podem imaginar outras possibilidades nas ques­
tões de direito, podendo pensar o direito seletivamente e não apenas
como dado. Cf. NADEL, Siegfried P. Reason and unreason in african
law. African, n ° 26, 1956, p. 164 f. Ver também TEJADA, Francisco
Elias. Bemerkungen über die Grundlagen des Baturechts. Archiv für
Rechts — und Sozialphilosophie, n.° 46, 1960 , p. 532.
ii« Semelhante em COING, Helmut. Naturrecht ais wissens-
chaftliches Problem. Wiesbaden, 1966, 2.a ed.
117 Antigos significados do conceito referiam-se à indecisão e
ao desacerto da opinião popular, ao aprendido em contraposição
ao característico — ou seja a conotações que convergiam para a
noção da seletividade. Cf. BEARDSLEY, John W. The use of P flY S IS
in fifth -century greek literature. Chicago, 1918, p. 68 ss. ImpÒrtante
para o significado posterior é que nomos avançou para a posição
de conceito central, sendo assim traduzido por lex ou ius. Sobre as
razões políticas dessa mudança ver OSTWALD, Martin. Nomos and
fhe beginnings of athenian democracy. Oxford, 1969.
ns Ver a formulação em Instituições I 1.2.11 (“Sed naturalia
quidem iura, quae apud omnes gentes peraeque servantur, divina
quadam providentia constituía semper firm a atque immutabilia p e r -
m anent: ea vero, quae ipsa sibi quaeque civitas constituit, sape
mutari solent vel tácito consensu populi vel alia postea lege lata”)
na qual inserem-se outros momentos de uma vigência abrangente
do direito natural, insinuando sua origem divina indeterminada e
uma esquematização hierárquica.
ii» Cf. Ética 1134b 18-1135a 5.
is» ver item 4 a seguir.
i-i Cf. SZLECHTER, Emile. La ‘loi’ dans la Mésopotamie an -
cienne. R evue internationale des droits de Vanüquité, n.° 3, série 12,
1965. Ver também a regra praticada no Egito antigo, pela qual o
Vizir tinha que circular diariamente fora da sala do tribunal para
dar aos inibidos, pobres e fracos a chance de apresentarem seus
reclamos.
i'-- Apesar disso existiram não só uma tradição verbal, mas
também repetições desse desenvolvimento. Cf. SCHÕNFELD, Walther.
Das R echtsbew usstsein der Langobarden. Festschrift Alfred Schultze.
Weimar, 1934, p. 283 ss.
123 c f. acima, item 2.
124 a tese da diferenciação estrutural-funcional como variável
sustentadora do desenvolvimento é amplamente difundida desde o
século X IX . Cf. indicações na nota 9 acima. Considerando as múl­

249
tiplas críticas, porém, é necessário uma formulação mais precisa:
a noção não abrange qualquer diferenciação (do gosto, das relações
familiares, das caracterizações para o tempo na linguagem, etc.),
mas sim a formação de sistem as parciais, é isso não para qualquer
sistema, mas apenas para aqueles que se inserem no sistema global
da sociedade.
i25 Além disso Parsons entende que através de uma teoria geral
dos sistemas de ação seria possível constatar analítico-dedutiv?^-
mente quais problemas deveriam ser solucionados em cada sistema
de ação.
12« O mesmo problema é captado em MERTON, Robert K. S ocia l
th e o ry and socia l s tru c tu re . Glencoe, 1957, 2 a ed., p. 131 ss.
127 Nesse sentido interpretei a função dos direitos fundamentais
em G ru d re c h te ais In s titu tio n e n . Berlim, 1965.
127a As fontes disponíveis tornam difícil a avaliação da rele­
vância dessas “leis” mais antigas e do pensamento jurídico no qual
elas se baseiam. Cf.: SZLECHTER, Emile. La ‘loi’ dans la Mésopotamie
ancienne. R evu e In te rn a tio n a le des á roits de V a n tiq u ité , n.° 3, série
12, 1965. PREISER, Wolfgang. Z u r re c h tlic h e n N a tu r d er a lto r ie n ta -
lisch en ‘G esetze’. Festschrift für Karl Engisch. Frankfurt, 1969.
128 “w h ich in tim e becom e n o rm s ” : VANSINA, Jan. A traditional
legal system: the kuba. Em KUPER, Hilda e KUPPER, Leo. A fric a n
law. BerkeleytLos Angeles, 1965, p. 117. Cf. acima, nota 36.
129 Cf. no lugar de outros: KRAUSE, Hermann. K a is s e rre c h t
und R e ze p tio n . Heidelberg, 1952, p. 54. Idem. Kõnigtum und Re-
chtsordnung in der Zeit der sàchsischen und salischen Herrscher.
Z e its c h r ift d er S a v ig n y -S tiftu n g f ü r R e ch ts g e s ch ich te , n.° 82, 1965.
130 para a Idade Média ver: ALLEN, Carleton Kemp. Law in
th e m a kin g. Oxford, 1958, 6.a ed., p. 420 ss. BARRACLOUGH, G. Law
and legislation in medieval England. Law qu a terly review , n.° 56,
1940. PLUCKNETT, T. F. T. L e g is la tio n o f Edw ard I. Oxford, 1949.
SPRANDEL, Rolf. über das Problem des neuen Rechts im frühen
Mittelalter. Z e its c h r ift d er S a v ig n y -S tiftu n g f ü r R e ch ts g e s ch ich te ,
n.° 79, 1962, p. 122. KLINKENBERG, Hans Martin. Die Theorie der
Verànderbarkeit des Rechtes im frühen und hohen Mitterlalter. Em
WILPERT, Paul. L e x e t s a cra m e n tu m im M itte la lte r . Berlim, 1969.
WEBER, op: cit., p. 185.
^ Cf. acima, cap. II, item 1 e cap. III, item 2.
132 Cf.: SCHÕNFELD, Walther. Das Rechtsbew usstseis der L a n -
gobarden. Festschrift Alfred Schultze. Weimar, 1934, p. 323. DREK-
MEIER, Charles. K in g s h ip and c o m m u n ity in ea rly ín d ia . Stanford,
1962, p. 234. Sobre a legislação chinesa e sua impregnação por uma
moral literariamente codificada, ver: BÜNGER, Karl. Die Rechtsidee
in chinesischen Geschichte. Sa ecu lu m , n.° 3, 1952. NEEDHAM, Joseph.
S cien ce and c iv ilis a tio n in C hina. Cambridge, 1956, vol. II, p. 518 s„
543 ss.
133 Cf. Instituições 1, 2, 1.
134 Sobre o contexto geral dessa problematização tardia ver:
NÕRR, Dieter. Z u r E n ts te h u n g der g e w o h n h e its re ch tlich e n T h e o rie .
Festschrift für Wilhelm Felgentraeger. Gõttingen, 1969. BRYNTESON,

250
Wllliam E. Ron_an law and new law. Revue Internationale des droits
de Vantiquité, n.° 3, série 12, 1965. KRAUSE, op. cit., 1965, p. 52 ss. e
97 s.
135 G ru n d lin ie n der Philosophie des Rechts, § 211.
136 Cf. GAGNÉR, Sten. Studien zur Ideengeschichte der G e s e -
tzgébung. Estocolmo/Upsala/Gõtenborg, 1960, p. 15 ss. Ver ainda
DILCHER, Gerhard. Gesetzgebung-wissenschaft und Naturrecht.
Juristenzeitung, n.° 24, 1969. BLÜHDORN, Jürgen. Zum Zusamme-
nhang von ‘Positivitàt’ und ‘Empirie’ im Verstandnis der deutschen
Rectswissenchaft zu Beginn des 19. Jahrhunderts. Em BLUDORN,
Jürgen e RITTER, Joachim. Positivismus im 19. Jahrhundert.
Frankfurt, 1971.
137 Sobre a problemática correspondente na passagem do direito
arcaico para o cultivado, ver acima, item 2.
138 A mediação foi efetuada, como em muitas outras questões
processuais, pelo direito canônico. Cf. ODENHEIMER, Max Jõrg.
D er christlich-kirchliche Anteil an der Verdrãngung der m ittelal-
terlichen Rechtsstruktur und an der Entstehung der Vorherrschaft
des staatlich gesetzten Rechts im deutschen und franzõsischen
Rechtsgebiet. Basiléia, 1957. KRAUSE, Hermann. Dauer und Ver-
gànglichkeit im mittelalterlichen Rechts. Zeitschrift der Savigny-
Stiftung für Rechtsgeschichte, n.° 75, 1958. GAGNÉR, op. cit., w. 288
ss. KRAUSE, op. cit., 1965. BRYNTESON, Wllliam E. Roman law and
legislation in the middle ages. Speculum, n.° 41, 1966.
139 xJm dos exemplos isolados mais ricos em conseqüências foi
a interpretação da máxima "princeps legibus solutus est’f (D 1.3.31)
no direito público da Idade Média avançada, principalmente na
França. Cf. ESMEIN, A. La máxlme princeps legibus solutus est
dans l’ancien droit public français. Em VINOGRADOFF, Paul. Essays
in legal history. Londres, 1913. Ver ainda: VINOGRADOFF, Paul.
Land und Herrschaft. Brünn/Munique/Vlena, 3.a ed., 1943, p. 442 ss.
KRAUSE, op. cit., 1952, p. 53 ss.
Ko cf. p. ex.: THOMAS DE AQ U INO. Summa Theologiae II,
1 qu. 91 ss. Para uma visão geral ver LOTTIN, Odon. Psychologie et
morale aux X l l e et X l I I e siècles. Louvain/Gembloux, 1948, vol. n , 1,
p. 11 ss. Cf. ainda POST, Gaines. Studies in medieval legal thought.
Princeton, 1964, p. 494 ss. Especialmente para a fundamentação do
direito positivo ver GAGNÉR, op. cit., p. 121 ss.
i4i Para 0 desenvolvimento do direito ocidental foi de importân­
cia incomensurável que essa confrontação ocorreu apenas tardiamente,
ou seja, já encontrando um arcabouço jurídico autonomizado. As vin-
culações religiosas em cujo contexto 0 direito dos juristas foi inicial­
mente desenvolvido consistiam de um politeismo concretamentç
fixado e sem teologia, cuja contingência se expressava na possibi­
lidade de escolha entre deuses e formas de culto. Sobre essa base
a política e a religião podiam ser integradas no contexto de uma
complexidade social já bastante desenvolvida, sem que daí surgissem
problemas ou empecílios para o desenvolvimento do direito através
dos juristas. Na medida em que essa possibilidade de escolha foi
bloqueada pelo monoteísmo, tomava-se necessária uma teologia mais
abstrata, que redescobriria 0 problema da contingência na vontade

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divina, e conduziria, finalmente, a um a radical separação entre
religião, política e direito.
n - Com essa desestabilização das bases do direito não se quer
abranger a relevância do direito canônico para o desenvolvimento
do direito secular, que em algum as áreas criou maiores estabilidades.
143 Cf. B L U M E N B E R G , Hans. D ie L e g itim itü t d er N eu zeit.
Frankfurt, 1966.
144 Cf. as considerações freqüentemente citadas, mas superadas,
em K E R N , Fritz. Recht und Verfassung im Mittelalter. H is to ris ch e
Z e its c h r ift, n.° 120, 1919. Cf. ainda FR E U N D , W alter. Modernus und
andere Zeitbegriffe des Mittelalters. ColôniaíGraz, 1957.
Cf. K R A U SE , op. cit., 1958. Ver tam bém M Ü H L, Max.
Untersuchungen zur altorientalischen und althellenischen Gesetzge-
bung. K lio , separata 16, Leipzig, 1933, p. 88 ss.
A afirm ação “l’État c’est moi” só fascina por superar-se a
si mesma e pretender o inacreditável. P a ra os legistas chineses uma
separação conceituai entre o senhor e o cargo era ainda impensável.
Cf. VAN D ER M EER SC H , Léon. L a fo rm a tio n du légism e. Paris, 1965,
p. 175 ss.
147 V er nota 139 acima.
145 Exatamente esse era um dos caminhos — em geral mal
sucedido — adotado pelas cidades-estado gregas p ara evitar a perda
do controle sobre a possibilidade de alteração legislativa, em si
permitida constitucional e processualmente. Cf. K A R S T E D T , Ulrich.
Untersuchungen zu athenischen Behõrden, K lio , n.° 31, 1938,p.19 ss.
Cf. ainda A T K IN S O N , K. M. T. Athenian legislative procedure and
revision of the laws. B u lle tin o f th e J oh n R ylands L ib ra ry , n.° 23,
1S39, p. 130 ss. Como alternativa apresentava-se a possibilidade de
réservar aos magistrados o direito de propor petições, um a solução
que foi adotada em Rom a e que naquelas condições era melhor
controlável politicamente.
149 Outros motivos são: insuficiências na diferenciação de pro­
cessos para o estabelecimento e para a aplicação do direito, e a falta
de um direito dos juristas suficientemente consolidado em termos
conceituais e por isso mais resistente.
ir’° Cf. BODE, Ingeborg. U rsp ru n g und B e g r iff d er p a rla m e n -
ta ris ch e n O p p o s itio n . Stuttgart, 1962, p. 13 ss., 85 ss.
ir\i Diversas comprovações em G A G N É R , op. cit.
ir’- Cf.: SC H N EID ER , H ans Peter. R ic h te r r e c h t, G esetzesrech t
und V erfassungsrecht. Frankfurt, 1969. ESSER, Josef. G ru n d sa tz und
N o rm in der r ic h te r lic h e n F o rtb ild u n g des P riv a tre c h ts . Idem.
V orverstü n d n is und M e th o d e n w a h l in der R e ch ts fin d u n g . Frankfurt,
1970.
1.-.3 Ver, p . ex. D U R K H E IM , Emile e M AUSS, Marcel. De quelques
formes primitives de classification. V a n n é e sociologiqu e, n.° 6,
1901-1902.
154 Ver L U H M A N N , Niklas. R e c h t und A u to rn a tio n in der
o fje n tlic h e n V erw a ltu n g. Berlim , 1966, p. 52 ss.

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