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“[...]fórmulas sublimes pouco podem contra as paixões” (Freud, 1915 [1914], p. 171)
Introdução
Em primeiro lugar eu quero agradecer à Professora Rosângela
Silveira/UNIMONTES, à Professora Andréa Guerra/UFMG e a toda a equipe que
compõe o vigoroso trabalho do PSILACS – Núcleo de Psicanálise e Laço Social no
Contemporâneo/UFMG, e a todos vocês aqui presentes.
A inserção nas políticas públicas leva-nos à interrogação de nossa própria prática
profissional num tempo em que as condições do mundo não são as mesmas da época do
surgimento da psicanálise. Quando identificamos os limites com os quais somos
confrontados no cotidiano de trabalho, devemos considerar as condições fornecidas pela
psicanálise para operarmos no mundo sem, no entanto, fazermos um inventário de
questões que podem angustiar e paralisar, mais do que nos mobilizar e colocar a trabalho.
As questões com as quais nos deparamos são estas mesmas do tempo atual de
nossas vidas. Evitar a nostalgia de um tempo paradisíaco ou do retorno a um estado
anterior de coisas é manter no horizonte a condição de possibilidade, trabalhar com os
recursos que dispomos numa época de precariedade generalizada. São precários os
recursos, as condições, as relações e os laços.
São condições que nos levam a considerar como necessária a articulação entre a
subjetividade e a política para pensarmos a atualidade de nossa ação nas instituições e na
cidade. O sujeito de nossa época explicita muito mais os seus novos modos de viver e
operar na cidade em relação àquele sujeito do tempo de invenção da psicanálise. Isto é
1
Conferência para o Programa Laços: Psicanálise, subjetividades contemporâneas e laço social; parceria
PSILACS/UFMG e UNIMONTES. Montes Claros-MG, 29 de maio de 2018. Texto inédito, disponível para uso interno.
2
Psicanalista. Doutorando (2017-2021) e Mestre (2016) em Teoria Psicanalítica pela FAFICH/UFMG. Coordenador do Projeto de
Extensão Já É do PSILACS/UFMG.
importante, pois o tempo em que vivemos é marcado pela explicitação quase obscena de
nossa singularidade no espaço público.
Ocorre que esta expressão da singularidade no espaço público também é portadora
das evidentes modificações advindas da composição de uma multiplicidade de fatores que
a formam e nela interferem. São condições que expressam determinados contextos e, não
somente marcam a presença do sujeito no mundo, mas tornam-se elas mesmas a marca
da subjetividade de nossa época.
Muitas vezes tal inscrição no mundo é marcada pela exclusão da cena pública, do
espaço político e o sujeito é encoberto pelos discursos vigentes que não lhe deixam
margens móveis que lhe permitam ser capturado para dentro do sistema político. Tal
condição, marca de alguns no mundo contemporâneo, exige que se invente formas de
operar a partir da exclusão e frente à segregação.
Em alguns contextos, a exclusão é pensada como índice da inclusão, ou seja, o
sujeito só se inclui na condição de estar excluído. Condição que é fortalecida pela
segregação em sua dimensão estrutural, isto é, não pode ser eliminada, mas a resposta de
cada sujeito à mesma decorre da articulação entre o determinismo inconsciente e a
contingência.
Assim, a nossa prática profissional - seja a clínica, a investigação, a pesquisa e
extensão - deve levar em consideração a afirmação freudiana de que a psicanálise não tem
uma Weltanschauung (Freud, 1976/1933), ou seja, uma visão de mundo ou um constructo
intelectual capaz de responder a todos os problemas de nossa existência sem deixar algo
sem resposta. E diante das inúmeras indagações que a contemporaneidade nos coloca,
consideramos a recomendação de Lacan (1998/1953) quanto à importância de o
psicanalista “alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época” (p. 322) ou caso
contrário renuncie à sua prática.
Duas orientações que nos guiam a fim de tomarmos posição em relação aos
discursos normativos e disciplinares, pois, caminhamos em direção oposta aos
dispositivos e artifícios produzidos pela ciência e pelo capital, que visam o apagamento
do sujeito e sua singularidade, algo tão precioso à psicanálise.
Portanto, se Freud (1976/1921) já nos advertia que a psicologia do indivíduo é
também social, a psicanálise desempenha importante papel na subjetividade
contemporânea e o discurso psicanalítico pode fazer frente à montagem entre o discurso
da ciência e do capital a fim de que se produzam novas formas de respostas, pois, a
normatização da subjetividade e a exclusão dos indivíduos não resolvem o problema do
mal-estar, uma vez que não é possível extirpá-lo de toda forma de laço social. Na
psicanálise, portanto, dispomos de um recurso fundamental, a transferência, que funciona
como índice para operarmos na clínica e nas instituições. A partir deste ponto, propomos
uma reflexão sobre a nossa prática a fim de não tornarmos o sujeito impermeável e nem
diminuirmos as margens móveis para as suas invenções.
.
1 – A transferência: de Freud a Lacan
“o problema consiste em perceber a relação que liga o Outro ao qual se dirige a demanda
de amor à aparição do desejo. O Outro não é, então, de modo algum, nosso igual, o Outro
ao qual aspiramos, o Outro que não o amor, mas alguma coisa que representa, falando
propriamente, uma sua queda – quero dizer, algo que é da natureza do objeto” (p. 172)
QUADRO 1
CASO CLÍNICO CASO SOCIAL
- Compreender o significante e o objeto; - Equivalência do peso crescente de uma
- Resolvido pelo sujeito que é o verdadeiro equação que igual serviços, direitos,
operador se colocado nesta condição; saúde, assistência à mercadoria
- Não exclui o caso social; - Discurso do puro significante, dos
- É condição para que haja o caso social instrumentos jurídicos e assistenciais;
- Conduzido pelos operadores;
COMPLICAÇÃO: DUAS CONSTRUÇÕES DA CLÍNICA QUE SE OPÕEM
- Uma mantém separado o caso clínico do - A outra os articula entre si;
caso social; - Quando articulados: concepção da
- Separados: relação transitiva entre clínica como discurso que torna ativo o
terapeuta e paciente – T P paciente – T P
DUAS CONCEPÇÕES
- Transferência como repetição; - Uma orientação que mantém um vazio
- Posição do analista como lugar do Outro do tempo clínico, de saber;
do saber; - Tempo preliminar à entrada no discurso
- Momento clínico transformado em analítico;
instrumento terapêutico; - Vazio que permite passar à posição de
- Baseia-se numa hierarquia de saberes e trabalho;
funções; - Vazio que possibilita fazer perguntas;
- Opõem-se interpretação e intervenção - Não colocar a pergunta: o que fazer por
corretiva; ele?
- Esvazia-se a possibilidade de o sujeito se - Perguntar: o que ele pode fazer para
perguntar: o que faz aqui, como sair? sair?
QUADRO 2
A CONSTRUÇÃO DO CASO
- É distinto da interpretação, esta visa decifrar significantes e extrair o real do gozo;
- A construção não visa reintegrar os significantes perdidos;
- Deve restaurar a topologia do furo, do furo da falta que causa o desejo;
- Consiste no testemunho das diversas fases do trabalho do analisante/paciente;
- Inclui a transferência, o sintoma e a demanda;
- Difere do primeiro tipo de clínica, para o qual basta a transferência;
- Para o segundo tipo, é preciso que o sujeito se implique naquilo de que se queixa;
- Passagem que não pode ser provocada;
- Isolar o significante que inclui o analista na transferência;
- O analista não é um expert, mas compreende o trabalho dos colegas não-analistas;
- Na construção não há exigência de um sujeito suposto saber como na supervisão;
- Construção do ato como ponto de não retorno, através do qual o sujeito consegue bem
dizer, aprende a falar;
- Cabe ao analista construir o caso, colocar o paciente a trabalho, registrar seus
movimentos, recolher as passagens subjetivas importantes, escutar a sua palavra
quando esta vier;
- Registrar uma mudança é fundamental, pode ser uma mensagem a se fazer notar;
- Na construção não se interpreta uma mudança, pois, a interpretação levaria ao
esmagamento do sujeito com o nosso saber;
- Trata-se mais de notar quanto há um ato, uma mudança, do que saber o motivo do
ocorrido;
- A interpretação só ocorrerá quando o sujeito começar a colocar a sua pergunta para
alguém.
QUADRO 3
A CONSTRUÇÃO DO CASO E O TRABALHO EM EQUIPE
- Implica abandonar o saber do mestre;
- Trabalho orientado pelo debate democrático que leve a um ponto de orientação e
autoridade que faça a equipe tomar uma decisão;
- O trabalho de construção do caso dentro do grupo tende a trazer à luz a relação do
sujeito com o seu Outro
- Construção de um diagnóstico de discurso e não do sujeito;
- Considerar que o sujeito pode não estar no discurso, mesmo estando na instituição;
- Possibilitar que o sujeito se pergunte acerca do que o Outro quer dele pode promover
uma inclusão no discurso;
- A construção servirá para operar o deslocamento do sujeito dentro do discurso.
QUADRO 4
ESCANSÃO DA CONSTRUÇÃO DO CASO EM DOIS TEMPOS
1 – Situar em que discurso o sujeito é 2 – Produzir um projeto que tenha
colocado; objetivo;
CONSTRUÇÃO DO CASO EM DOIS ASPECTOS
1 – Considerar o sujeito e sua ausência de 2 – Vários profissionais envolvidos;
condições de se representar dentro do - A construção opera um corte transversal
próprio discurso; sobre os profissionais;
- Reativar a relação do sujeito com o - Interrogar o lugar dos profissionais em
Outro; relação ao paciente;
- Margem de previsão e efeito da - Os lugares de saber fundam-se com o
intervenção a posteriori; trabalho;
- Construir escansões que considerem o - O trabalho constrói um saber possível
resultado como forma de avaliação sobre o sujeito;
- Interrogações do grupo de trabalho sobre - Um corte que ativa o desejo, desejo de
o paciente sem reificá-lo, torna-lo um ocupar um lugar para aquele sujeito;
objeto conhecido, mas abrir um caminho à - Ausência de garantia quanto aos papéis;
subjetivação. - Desejo de arriscar-se
Considerações finais:
Ciaccia, Antonio Di. (1999). Da fundação por Um à prática feita por vários. Revista
Curinga, nº 13. BH: EBP-MG, p. 60-65
_______. (1921/1976). Psicologia de grupo e análise do eu. In: Edição standard das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. XVIII, p. 89-179). Rio
de Janeiro: Imago. (Texto original publicado em 1921)
Lacan, J. (1953/1998). Função e campo da fala e da linguagem. In: Escritos (Trad. Vera
Ribeiro, p. 238-324). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Viganó, C. (1999). A construção do caso clínico em Saúde Mental. Curinga, nº 13, BH:
EBP-MG, p. 50-59.