Você está na página 1de 12

Dom Casmurro

e a temática do adultério feminino


Cem anos depois da morte de Machado de Assis (1839-1908), sua obra
ainda tem um efeito inquietante junto aos leitores e críticos. Sua escrita
visionária, capaz de revelar nuances da alma e do comportamento huma-
nos, desafia a análise e a interpretação. A maior prova da genialidade e da
vitalidade da obra do autor é o interesse e as reviravoltas que a crítica lite-
rária tem dado para apresentar estudos convincentes e aprofundados das
invenções literárias presentes na obra de Machado. Romances como Dom
Casmurro ou Memórias Póstumas de Brás Cubas guardam um frescor novo a
cada leitura. O travo amargo e irônico desses narradores que reconhecem
a própria miséria coloca o leitor diante de si mesmo e de seus embates pes-
soais e existenciais. O desafio de leitura e estudo de romances como esses
oferece ao leitor a suma recompensa de poder retornar ao livro sempre e a
cada vez ser surpreendido com elementos novos e instigantes.

A temática
do adultério feminino no Realismo
O Realismo europeu enfatizou um tema bastante instigante na litera-
tura: o adultério feminino. Desde a Ilíada, de Homero, a traição feminina é
referida como causa de grandes conflitos.

No poema épico Ilíada, composto 800 anos a.C., é narrada a história da


Guerra de Troia, provocada pelos amores da esposa de Menelau, Rei de
Esparta, pelo jovem troiano Páris. O rapto de Helena por Páris teria sido a
causa da Guerra de Troia, segundo os registros de Homero.

Shakespeare também tematizou as consequências da traição feminina, ou


pretensa traição, como é o caso da famosa peça Otelo, composta no século
XVII e encenada muitas vezes desde então. Nessa peça, Shakespeare mostra
o avanço dos ciúmes de Otelo, desconfiado de que sua esposa Desdêmona o
está traindo com um de seus soldados. Otelo enlouquece de ciúmes e, instiga-
do por Iago, acaba por assassinar a esposa inocente em um acesso de fúria.
Realismo na Literatura Brasileira

No Romantismo alemão, temos também um famoso caso de amor, tempe-


rado com a possibilidade do adultério. Trata-se do romance Werther, de Goethe,
publicado em 1774, e que conta, por meio das cartas que Werther escreve a um
amigo, as desventuras de seus amores por uma mulher casada. Embora a traição
não se consume, a tensão narrativa está toda concentrada no fato de haver um
triângulo amoroso entre Werther, Charlotte e seu esposo Albert.

Na França do século XIX, já no Realismo, Gustave Flaubert publicou o famoso


romance Madame Bovary, em que uma mulher casada trai o marido em busca de
uma satisfação existencial que o casamento e a família não lhe ofereciam.

Eça de Queirós, no Realismo português, também tematizou o adultério femini-


no em vários de seus romances, como O Primo Basílio e Alves & Cia., entre outros.

No Brasil, o grande mestre do tema é Machado de Assis. O casamento e seus


melindres aparecem nos vários romances e contos de Machado, de modo a
revelar o olhar aguçado do autor para essa instituição tão problemática quanto
detentora das esperanças de homens e mulheres.

Vejamos alguns momentos em que o adultério feminino é sugerido em


alguns dos contos e romances de Machado de Assis.

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas

A mulher quando ama a outro homem, parece-lhe que mente a um dever,


e portanto tem de dissimular como arte maior, tem de refinar a aleivosia (MA-
CHADO DE ASSIS, 1978, p. 56).

No conto “Primas de Sapucaia”, de Histórias sem Data

Adriana é casada; o marido conta 52 anos, ela 30 imperfeitos. Não amou


nunca, não amou mesmo o marido, com quem casou por obedecer à família.
Eu ensinei-lhe ao mesmo tempo o amor e a traição; é o que ela me diz nessa
casinha que aluguei fora da cidade, de propósito para nós (MACHADO DE
ASSIS, 2001, p. 39).

No conto “A causa secreta”, em Várias Histórias

A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-


se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e
a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que
lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agita-

120
Dom Casmurro e a temática do adultério feminino

va, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto
da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-
lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo, para que entre ele
e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde
apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o
silêncio, mas não se deu por achada (MACHADO DE ASSIS, 1999, p. 45).

Esses são alguns exemplos dessa temática tão recorrente na obra do autor.
No entanto, foi com o romance Dom Casmurro (1899) que Machado de Assis
sedimentou o tema do adultério feminino em um tratamento original que vem
desafiando a crítica desde então.

O narrador em Dom Casmurro


Juntamente com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba
(1891), Dom Casmurro forma a tríade dos romances mais famosos de Machado
de Assis. Porém, diferentemente dos outros dois, Dom Casmurro não foi publi-
cado primeiramente em folhetim: quando apareceu em livro, era obra inédita.
Em prefácio a uma edição relativamente recente de Dom Casmurro, Fábio Lucas
comenta o romance nos seguintes termos: “Talvez esse aspecto de peça acaba-
da, que guarda desde o início, tenha feito recair sobre ela o mais alto entusiasmo
da crítica, ao mesmo tempo em que o público tem acolhido com interesse o
famoso relato de um amor desenganado” (LUCAS, 1997, p. 3).

A crítica realmente vem dedicando muitas palavras a este livro de Machado. O


foco recorrente da análise é quase sempre o narrador. Já em Memórias Póstumas
de Brás Cubas, o narrador se apresentava como um elemento de desconcerto e
novidade, tanto pelo fato de tratar-se de um narrador-autor defunto como pelo
cinismo e a auto-análise de que esse narrador é capaz nessa obra. Em Dom Casmur-
ro, esse recurso se problematiza ainda mais, pois também aqui o narrador se apre-
senta em primeira pessoa, dedicado a escrever suas memórias para “atar as pontas
da vida”. A temática do adultério feminino, muito presente na obra de Machado
como vimos, aparece aqui não mais como o registro pela voz daqueles que traem
ou pela voz em terceira pessoa que atesta de fato a traição: em Dom Casmurro é
o marido supostamente traído que empreende o registro de suas memórias para
comprovar para si mesmo e ao leitor a veracidade do adultério da mulher.

O que ocorre, portanto, é a rememoração e a análise dessas memórias sob o


ponto de vista daquele que se julga traído. Essas lembranças estão, como é de se
121
Realismo na Literatura Brasileira

esperar, contaminadas pelo tempo e pelo sentimento de ciúme que constrange


o narrador ao longo de todo o seu relato.

O narrador-autor
Assim como Brás Cubas em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Bento Santiago,
o narrador de Dom Casmurro, empreende a escrita de um livro de memórias, mas
enquanto as Memórias Póstumas de Brás Cubas envolvem todo o curso de uma vida,
poderíamos considerar que em Dom Casmurro há apenas memórias amorosas.

Bento Santiago encontra-se na idade dos 55 anos, vivendo sozinho em uma


casa no bairro do Engenho Novo, Rio de Janeiro. Nesta fase de sua vida é que lhe
ocorre a ideia de escrever um livro. O narrador explica já no primeiro capítulo
que o título do livro que escreve, Dom Casmurro, é decorrência do apelido que
lhe deu um mau poeta ofendido com o desinteresse de Bento por seus versos
– como o apelido pegou, Bento resolveu usá-lo também no livro. Trata-se, claro,
de uma auto-ironia, pois casmurro significa alguém calado, de pouca conversa,
teimoso, obstinado. Vejamos agora como o narrador explica o interesse por es-
crever um livro:
Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos
que me põem a pena na mão.
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado
de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos,
lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga rua de Matacavalos,
dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor
entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de
frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e
das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que
as tomam nos blocos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e
ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por
baixo... Não alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Matacavalos,
já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo
meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo e
parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça
velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior,
que é pacata, com a exterior, que é ruidosa.
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois,
senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia
é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas
que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 13-14)

A solidão do narrador é algo que marca o discurso, mas sua linguagem é con-
tida, não há auto-piedade em nenhum momento, ele não se lamenta aberta-
mente, apenas constata a própria solidão, como se fizesse isso com um certo
distanciamento emocional. O fato de ter reproduzido na casa em que mora na

122
Dom Casmurro e a temática do adultério feminino

velhice a mesma casa em que morou na rua de Matacavalos revela o desejo de


retorno ao período da infância e da adolescência. A escrita do livro, como ele
mesmo diz, é também uma tentativa de “atar as duas pontas da vida”: a adoles-
cência e a velhice.

Apresentado o projeto do livro, Bento empreende a escrita. Sua memória


retorna a uma “tarde de novembro” em que se descobriu apaixonado pela
vizinha Capitu, uma moça que mora em uma casa agregada à sua, por amizade
e proteção da mãe de Bento, D. Glória. Os amores e os desenganos de Bento e
Capitu são toda a história de Dom Casmurro. A concentração do enredo é grande
e toda a ação pode ser resumida de modo muito rápido. Vejamos.

A ação: amor e ciúme


Ainda adolescente, Bentinho apaixona-se por Capitu, sua vizinha. Crê que é
correspondido, mas há um obstáculo externo para o namoro: a mãe de Bentinho
prometera mandá-lo para o seminário e julga que deve isso a Deus. O jovem
casal sofre com a perspectiva da separação, mas por alguns arranjos próprios
consegue dissuadir a mãe de fazê-lo padre.

Enquanto esteve no seminário, Bento tornou-se muito amigo de Escobar. Já


adulto e formado em Direito, Bento se casa com Capitu, e seu amigo Escobar
também se casa com Sancha, uma amiga de Capitu.

Capitu e Bento vivem bem, embora os ciúmes dele se manifestem aqui e ali,
principalmente quando a beleza de Capitu desperta a atenção em torno. A única
pequena frustração do casal é a demora pela chegada de um filho: esperam dois
anos, até que Capitu finalmente engravida e dá à luz ao menino Ezequiel.

A essa altura, o casal Sancha e Escobar já tem uma filha, familiarmente cha-
mada de Capituzinha, para diferenciar, já que ela tem o mesmo nome da esposa
de Bento.

A relação entre os dois casais é estreita, são grandes amigos.

Até o dia em que Escobar morre afogado, nadando no mar em frente ao


bairro do Flamengo. No famoso capítulo 123, intitulado “Olhos de ressaca”, os
ciúmes de Bento rompem a barreira da racionalidade e invadem sua vida. Nesse
momento, Bento observa Capitu olhando para o caixão de Escobar e acredita
que a mulher mantinha um caso amoroso com seu melhor amigo:

123
Realismo na Literatura Brasileira

Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o


desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres
todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria
arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o
cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas
poucas e caladas...
As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto
para a gente que estava na sala.
Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também.
Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto
nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse
tragar também o nadador da manhã. (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 160-161)

Bento surpreende o olhar de Capitu para o cadáver de Escobar e isso é o sufi-


ciente para toda a vida de ambos ser colocada em revista tendo em mente esse
novo elemento. A partir daí, os ciúmes só crescem e a conclusão acerca de uma
semelhança entre Ezequiel e Escobar é de que o menino só pode ser filho do amigo.
Diante disso, há alguns movimentos dramáticos do narrador, que tenciona matar-
se, depois pensa em matar o filho, mas por fim, manda a mulher e o filho para Paris,
como para salvar as aparências, e assim fica sozinho. Capitu falece no exterior. O
filho cresce, viaja para o Egito, contrai uma doença e também falece. Bento San-
tiago está sozinho e assim o encontramos no momento em que decide escrever o
livro. Esse é o mote, ou seja, o elemento que desencadeia a ação do romance.

O que interessa, claramente, é o modo como tudo isso é narrado. Bento San-
tiago, o narrador-autor, vai ao passado para tentar compreender os fatos de sua
vida. Tudo é lembrado e questionado, e em vários momentos ele coloca dúvidas
sobre a veracidade da traição. Em nenhum momento Capitu confirma que teve
alguma coisa com Escobar.

Como todos os outros morreram, Bento não pode mais – passados tantos
anos – deles extrair confissões, em qualquer sentido. Essa é a essência de sua
solidão: ele está sozinho com as decisões que tomou, não há como voltar atrás
ou pedir perdão. Disso resulta sua teimosia, sua contenção.

O texto sempre nos dá a impressão de uma emoção contida: Bento não revela
claramente o que sente. Podemos intuir seu sofrimento, mas não há um lamento
explícito e isso torna o relato ainda mais amargo. Vejamos o trecho em que ele, já
tomado pelo ciúme, decide comprar veneno para suicidar-se:
A ideia saiu finalmente do cérebro. Era noite, e não pude dormir, por mais que a sacudisse de
mim. Também nenhuma noite me passou tão curta. Amanheceu, quando cuidava não ser mais
que uma ou duas horas.
Saí, supondo deixar a ideia em casa; ela veio comigo. Cá fora tinha a mesma cor escura, as
mesmas asas trépidas, e posto avoasse com elas, era como se fosse fixa; eu a levava na retina,
não que me encobrisse as cousas externas, mas via-as através dela, com a cor mais pálida que
de costume, e sem se demorarem nada.

124
Dom Casmurro e a temática do adultério feminino

Não me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas, comprei uma substância, que
não digo, para não espertar o desejo de prová-la. A farmácia faliu, é verdade; o dono fez-se
banqueiro, e o banco prospera. Quando me achei com a morte no bolso senti tamanha alegria
como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior, porque o prêmio da loteria gasta-se,
e a morte não se gasta. Fui à casa de minha mãe, com o fim de despedir-me, a título de visita.
Ou de verdade ou por ilusão, tudo ali me pareceu melhor nesse dia. Minha mãe menos triste,
tio Cosme esquecido do coração, prima Justina da língua. Passei uma hora em paz. Cheguei a
abrir mão do projeto. Que era preciso para viver? Nunca mais deixar aquela casa ou prender
aquela hora a mim mesmo... (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 170, grifo nosso)

Ao lembrar que naquela tarde comprara “uma substância” – o veneno para se


matar –, Bento comenta que não lhe diz o nome para “não espertar o desejo de
prová-la”. Isso revela muito do estado de espírito do narrador nesse momento de
registro de suas memórias: também agora o desejo de morte está nele, alojado
em algum canto de sua alma, disfarçado pelas palavras contidas.

A representação da mulher em Dom Casmurro


Capitu não tem voz em Dom Casmurro a não ser nos diálogos transcritos pela
memória do narrador. Não sabemos o que ela pensa ou o que sente, podemos
apenas tirar conclusões por meio do que nos diz Bento, o narrador e marido
supostamente traído.

Mas também esse marido vê em Capitu um mistério. Muitas das falas dessa
esposa são incompreendidas pelo narrador e em algumas circunstâncias ele
adota uma percepção alheia para compreendê-la e só então ousa definir o que
vê conforme os próprios sentimentos. É o caso do capítulo 32, em que utiliza
pela primeira vez a expressão “olhos de ressaca”:
— Juro. Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e
dissimulada.” Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam
chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os
vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da
contemplação creio que lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto
para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto
atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram
aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade
do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá
ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força
que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para
não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos
espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha
crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos
gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve.
(MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 55)

125
Realismo na Literatura Brasileira

Ao observar os olhos de Capitu, chamados por José Dias, de “olhos de cigana


oblíqua e dissimulada”, Bento sente o efeito daquele olhar e os denomina “olhos
de ressaca”. Essa definição é com certeza uma definição amorosa: um olhar capaz
de engolir o outro como as ondas do mar em movimento de ressaca, só pode ser
associado à ideia de um olhar apaixonado.

Disso podemos concluir que Capitu era apaixonada por Bento? Mas depois,
quando Escobar morre, Bento diz surpreender esse mesmo olhar de Capitu diri-
gido ao cadáver do amigo. Seriam delírios de marido ciumento e inseguro ou de
fato Capitu se apaixonou por Escobar?

O embate interpretativo não resolve essa questão e não poderia querer fazê-
lo, pois Machado de Assis mantém Capitu como uma imagem diluída entre o
amor esmerado de Bento e os ciúmes destruidores que ele experimenta. Assim,
a genialidade desse romance de Machado está em atualizar constantemente
o mistério de Capitu, fazendo com que suas ações e sentimentos sejam todo o
tempo especulados – pelo narrador e pelo leitor.

E é importante compreender que a solução do impasse sobre se Capitu traiu


ou não traiu não é o mais importante na leitura de Dom Casmurro: o que inte-
ressa é perceber o funcionamento de uma personalidade – Bento Santiago, o
narrador solitário que, lançando mão dos recursos da memória, tempera-os com
a solidão e o sofrimento, e enfrenta as memórias do seu amor desenganado. É
uma história de amor, uma triste história de amor, e por isso mesmo tem um
apelo universal que se renova o tempo todo.

Texto complementar
Disponibilizamos uma crônica de Machado de Assis para que você se fami-
liarize ainda mais com o estilo irônico e crítico do autor. Trata-se de uma crônica
que, com leveza e ironia, aborda a Abolição da Escravatura.

Bons dias!
(MACHADO DE ASSIS, 2008)1

Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois


do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e
1
Crônica publicada originalmente na Gazeta de Notícias, em 19 de maio de 1888.

126
Dom Casmurro e a temática do adultério feminino

juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por
mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei
de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus 18 anos, mais ou menos.
Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por 1.000, perdido por 1.500, e dei
um jantar.

Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de


outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem 33
(anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.

No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua),


levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando
as ideias pregadas por Cristo, há 18 séculos, restituía a liberdade ao meu
escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as
mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um
dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.

Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio


abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho)
pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembleia que correspondesse ao ato
que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbai-
xo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos
os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e
não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando
o meu retrato, e suponho que a óleo.

No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:

- Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhe-
cida e tens mais um ordenado, um ordenado que...

- Oh! meu senhô! fico.

- ...Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste


mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste
tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro
dedos...

- Artura não qué dizê nada, não, senhô...

- Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que
a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.

127
Realismo na Literatura Brasileira

- Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta


com oito. Oito ou sete.

Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia
seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu
expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular
o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de
mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despe-
dido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta
quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humilde-
mente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei
aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em
casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda
a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escre-
ver e contar, (simples suposições) é então professor de filosofia no Rio das
Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são
os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és
livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos
e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.

Boas noites.

Estudos literários
1. Em Dom Casmurro, temos um narrador

a) em terceira pessoa onisciente.

b) em terceira pessoa neutro.

c) testemunha em terceira pessoa.

d) personagem em primeira pessoa.

2. Dom Casmurro foi lançado em

a) 1900.

b) 1960.
128
Dom Casmurro e a temática do adultério feminino

c) 1899.

d) 1901.

3. Explique com suas próprias palavras as razões de Bento Santiago para escre-
ver um livro de memórias a que ele deu o nome de Dom Casmurro.

129
Realismo na Literatura Brasileira

130

Você também pode gostar