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MIGUEL REALE

GE
u NY NA CULTURA JURIuDICA BRASILEIRA

1. Condições propı́cias, no Brasil, à recepção do pensamento de Gény. — 2. O


naturalismo de Pontes de Miranda em confronto com o « irredutı́vel Direito Natural ».
— 3. Carlos Maximiliano tenta harmonizar Gény com Saleilles. — 4. O pensamento
jurı́dico de Gény numa compreensão culturalista.

1. O pensamento jurı́dico de François Gény, tão renovador e


abrangente, repercutiu em múltiplas direções na cultura jurı́dica
brasileira, sobretudo após a Primeira Guerra Mundial. Abstração
feita do valor intrı́nseco de sua obra, vários fatores operaram em
sentido favorável a essa recepção doutrinária, a qual se estendeu até
mesmo ao plano de legislação.
Para compreender-se melhor a repercussão da obra de Gény no
Brasil, é necessário, preliminarmente, tecer algumas consideracões
de ordem geral sobre a situação da Ciência Jurı́dica em nosso paı́s,
que, nas últimas décadas do século passado e nas primeiras do atual,
se dividia entre duas correntes teóricas de marcado antagonismo,
uma fiel à tradição do Jusnaturalismo de fonte tomista, e outra sob
a influência direta da Filosofia Positiva, entendido este termo em
sentido lato, pois seria errôneo afirmar, como frequentemente se diz,
que imperava então no Brasil a tradição comteana. Na realidade, a
influência de Augusto Comte, apesar de muito ligada ao advento do
regime republicano, por ser dominante no meio militar,
desenvolveu-se, no Brasil, em correlação concomitante com as
diretrizes do evolucionismo spenceriano, do monismo kaekeliano,
bem como dos ensinamentos metodolólogicos de Stuart Mill, tudo
tendo como referencial a profunda alteração produzida nas ciências
sociais pela idéia matriz de evolucão introduzida por Darwin no
plano biológico, espraiando-se por todos os domı́nios da cultura.
Poder-se-ia dizer que a intelligentia jurı́dica brasileira corres-

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pondeu, no perı́odo histórico supra lembrado, à que prevaleceu na


Itália, na mesma época, sob a influência, na Filosofia Geral, por
exemplo, de um Ardigò, e, na Filosofia Jurı́dica, a do positivismo
jurı́dico, lato sensu, que se estende desde a posição mais ortodoxa de
Fragapane até o magistério de Icilio Vanni, cujo pensamento já
albergava certos valores do criticismo, ponte de passagem para a
posição neokantiana de Del Vecchio.
Todavia, não obstante a contraposição de ordem metodológica,
notadamente quanto à preferência dada à indução como instru-
mento por excelência das pesquisas sociológicas e sociológico-
jurı́dicas, os nossos adeptos da Filosofia Positiva mostraram-se, em
geral, sensı́veis a exigências éticas não redutı́veis ao sistema da
legislação positiva. Bastará lembrar, nesse sentido, a evolução
operada no pensamento de Tobias Barreto, no Norte, e de Pedro
Lessa, no Sul do paı́s. Enquanto o primeiro superava seu primitivo
« horror à Metafı́sica », acolhendo-a no plano gnoseológico, sob o
influxo de idéias neo-kantianas, afirmando que, « se não há um
Direito Natural, há uma lei natural do Direito », já o segundo, após
polemizar com os adéptos de comtismo ortodoxo, acabava não
vendo incompatibilidade entre um Direito Natural, desvencilhado
de pressupostos teológicos, e seu entusiasmo pela Lógica de Stuart
Mill, o que o levara a distinguir entre a Ciência Jurı́dica, considerada
de base indutiva e de cunho sociológico, e a Dogmática Jurı́dica,
prevalecentemente dedutiva e subordinada àquela (1).

2. Nesse clima cultural, é compreensı́vel a simpatia com que,


em ambos os campos em conflito, ou seja, por « jusnaturalistas » e
« naturalistas », foram recebidas as meditações de François Gény,
indiscutivelmente um jusfilósofo e teórico do Direito que se distin-
guia por sua serena visão complementar dos valores do « irredutı́vel
Direito Natural » e das contribuições positivas da Escola de Exe-
gese, bem como da Escola Histórica.
A obra de Gény surgiu, pois, como uma diretriz adequada, por
tentar conciliar, sem rupturas arriscadas, o que havia de vivo na

(1) Sob esses pontos, v. Miguel REALE, Filosofia em São Paulo, 2a ed., São Paulo,
1976, pags. 149 segs.; Horizontes do Direito e de História, 2a ed., São Paulo, 1977, págs.
215 e segs.; e Nova Fase do Direito Moderno, São Paulo, 1990, págs. 181 e segs.

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grande herença jurı́dica do século XIX com a necessidade por todos


sentida de atender aos valores éticos, sociais e históricos superve-
nientes.
Devemos, com efeito, reconhecer que as contribuições de Gény
antecederam às da Jurisprudência de Interesses, abrindo claros
caminhos a uma nova compreensão das fontes do Direito, o que
importava em alterações substanciais no que se refere à sua inter-
pretação e aplicação. Nenhum jusfilósofo da época demonstrou ser
tão preciso ao determinar a correlação essencial entre a crise do
Direito e a de suas fontes, mantendo, todavia, uma posição de
prudente equilı́brio que somente um estudo superficial ou prevenido
poderá apodar de conservantismo.
Senhor das técnicas mais apuradas da Jurisprudência dos
Conceitos, e reconhecendo quanto seria prejudicial o olvido dos
valores teóricos com que ela enriquecera o mundo jurı́dico, Gény se
colocava em posição sobranceira àquela « ventania romântica », que,
conforme já foi dito por ilustre historiador itálico, sacudira a milenar
árvore do Direito, ameaçando-a desde as raizes, que não podem
deixar de ser normativas, por mais que recebam influxos de ordem
factual ou axiológica, ao longo das conjunturas históricas.
Lembrada essa correlação entre o sentido da obra de Gény e os
anseios da cultura jurı́dica brasileira na época em que ele veio
elaborando seu pensamento renovador, já estamos em condição de
proceder a uma análise, embora preliminar, de sua repercussão nas
produções mais representativas de nosso saber jurı́dico.

3. Foi a partir do 1o após guerra que houve mais significativos


contatos entre Gény e os juristas brasileiros, a começar por Pontes
de Miranda e Carlos Maximiliano, cada um deles assinalando formas
distintas de compreensão.
O grande jurisconsulto Pontes de Miranda, não obstante o largo
emprego das categorias jurı́dicas vigentes na Pandectı́stica alemã,
não conseguiu jamais se libertar dos pressupostos do cientificismo
naturalistas que desde o inı́cio inspiram sua poderosa obra que
culmina nos surpreendentes sessenta volumes de seu Tratado de
Direito Privado, sı́ntese de todas as suas produções anteriores.
Pois bem, foi, em 1922 — quando o Brasil comemorava o 1o
centenário de sua independôncia polı́tica — que Pontes de Miranda

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publicou seu famoso Sistema de Ciência Positiva do Direito, fazendo


minucioso levantamento dos jusfilósofos e juristas mais representa-
tivos das cinco décadas anteriores, sempre com oportunas remissões
aos grandes mestres do passado.
Dada a sua formação positivista, já então sob a influxo do
empiriocriticismo de Mach e Avenarius, o que mais atrai a atenção
de Pontes de Miranda na obra de Gény são as suas colocações no
plano da técnica jurı́dica. Concebendo o Direito como expressão de
constantes processos de adaptação social visando a fins práticos,
numa correlação essencial entre o factual e o normativo, obediente
a pressões vitais, Pontes não concorda com a distinção de Gény
entre o « dado » e o « construido », em sua tentativa de conciliar, diz
ele, « o elemento racional, em que domina a ciência, e outro
artificial, em que prima a vontade », fazendo ele remissão à pág. 21
do Vol. II de Science et technique en droit privé positif, publicado no
ano anterior (2).
Enquanto Gény sustenta que a técnica « desempenha o papel
mais notável na formação e no desenvolvimento efetivo do Direito »,
Pontes, sem contestar as exigências ordenadoras da prática, dá
maior ênfase aos resultados imanentes ao processo social, resultante
de fatores biológicos, econômicos, psicológicos e históricos, consi-
derando excessivo o « voluntarismo » do jurista francês. Efetiva-
mente, este sublinha que a técnica jurı́dica, enquanto « forma oposta
à matéria », se caracteriza « essencialmente como construção, larga-
mente artificial, do dado, obra da ação mais que da inteligôncia, na
qual a vontade do jurista se possa mover livremente, dirigida tão
somente pelo fim predeterminado da organização jurı́dica que
sugere os meios de sua própria realização » (3).
Não obstante a importância por ele atribuida ao conhecimento
cientı́fico, Pontes de Miranda condena em Gény a função atribuida
aos elementos intelectuais nos artifı́cios da Jurisprudôncia, manten-

(2) Nesse tópico, GENY declara tratar-se de « uma distinção de importância


capital », mas convem precisar que ele diz, mais propriamente, que no elemento racional
« régne principalement la connaissance », o que já demonstra a cautela com que ele
estabelece suas distinções, fundadas, segundo o conhecido critério de Francis BACON,
mais sobre elementos dominantes do que sobre caracterı́sticas absolutas.
(3) Science et Technique, pág. 23.

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do-se fiel à sua tese fundamental de que a cultura transforma o


Direito, mas este continua sendo fundamentalmente um fenômeno
natural sujeito à lei universal da adaptação, que é de ordem biológica
em se tratando da experiôncia jurı́dica.
Foi essa, penso eu, a primeira crı́tica de fundo no Brasil à
teoria de Gény, tendo Pontes o cuidado de situar seu pensamento
perante o do mestre de Nancy. Não será demais transcrever o
tópico em que ele aponta esse contraste, o que demonstra a
relevância atribuida à distinção de Gény entre « ciência » e « téc-
nica ». Eis as suas afirmações:
« Nas consequências, extremam-se a concepção de Gény e a nossa:
1. A de Gény, em detrimento da ciência, exalta a técnica, atribue-lhe
importância preponderante, e reduz as fontes formais do direito a simples
processos técnicos, sem tirar às construções artificiais o alicerce indispensá-
vel da ciência e da crença. A noção de técnica é metafı́sica: representa, diz
ele, no conjunto do direito positivo, a forma oposta à matéria (distinção
escolástica, fundada em Aristóteles) e tal forma consiste essencialmente em
construção, largamente artificial, do dado, mais obra de ação do que de
inteligência, em que a vontade do jurista se possa mover livremente, somente
dirigida pelo fim predeterminado da organização jurı́dica que sugere os
meios da sua realização.
2. A nossa: atende a que a noção do conhecimento é mais vasta do
que a de racional e, por outro lado, a de racional mais extensa que aquella;
não há, conseguintemente, correlação; considera próprio da ciência teorética
o indicativo, da prática o imperativo (regras jurı́dicas), e técnico o meio para
conseguir o imperativo e para a execução dele (sem que nos esqueça a
técnica da ciência teorética, para a elaboração do próprio conhecimento
cientı́fico ou descritivo); tem o conhecimento e a técnica como progressiva-
mente aperfeiçoáveis, à proporção que se insere nos atos da ciência e da
técnica a investigação consciente e metódica » (4).

No que se refere a essas ponderações de Pontes de Miranda,


ressalvando sua posição pessoal situada nos quadros de um natura-
lismo jurı́dico integral, nada tenho a observar, a não ser que o
« donné », na concepção de Gény, não se limita ao racional, tendo
ele sido, aliás, criticado por conceber o dado como « matière de
science et de croyance », quando abrange também o « donné histori-
que » e o « donné ideal », cuja base me parece ser genericamente

(4) Sistema de Ciência Positiva do Direito, cit., Vol. II, págs. 243 e seg. Note-se
que, escrevendo em 1922, PONTES DE MIRANDA não podia fazer alusão a uma série de
abrandamentos com que GENY veio a precisar melhor o papel do « construit », à luz do
Direito Natural, no IV volume de Science et Technique, publicado em 1924.

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ética, implicando Direito Natural segundo os pressupostos que lhe


parecem irredutı́veis. Voltarei, oportunamente, ao exame da distin-
ção fundamental de Gény entre donné e construit, ciência e técnica.
Por ora, cabe-me salientar que a divergência entre Gény e
Pontes é de ordem mais geral, como o demonstram as reservas feitas
à sua « elaboração cientı́fica », acusada de basear-se em uma « teoria
mesclada de racionalismo e de intuicionismo, escolástica e pragma-
tista », aceitando, assim, a crı́tica de Georges Davy, a que Gény se
refere especialmente no prefácio ao IV tomo supra lembrado de sua
obra capital (5).
Posta a questão nesses termos, era impossı́vel a Pontes de Mi-
randa, por sua própria « forma mentis » de naturalista convicto, pe-
netrar nas nuances do pensamento de Gény, onde as distinções teó-
ricas não obedecem a cortes lógico-formais rı́gidos, por ter ele em
conta mais as caracterı́sticas dominantes do que separações radical-
mente concebidas, o que explica as sucessivas revisões de suas posi-
ções doutrinárias, muito embora sem abandono de suas teses essen-
ciais, que não padecem do horror positivista à Metafı́sica, tendo
sempre presente o que há de plástico e variável na vida jurı́dica.
É claro que o contraste entre Pontes e Gény abrange também os
problemas hermenêuticos, por não admitir aquele uma dicotomia
entre elaboração da regra de direito e sua interpretação, entendendo
que esta — dada a gênese das normas a partir de exigências factuais
— as acompanha desde a sua origem até suas consequências. É
curioso, todavia, advertir que, em sua obra dogmática, Pontes, com
certa contradição, quase que se limita a exegeses normatives, pondo
entre parênteses os tão decantados « pressupostos fáticos »... Isto
não obstante, Pontes não deixa de reconhecer os méritos da « libre
recherche du droit » na investigação cientı́fica, concordando com
Gény na crı́tica ao « positivismo jurı́dico », termo por ele empregado
em sentido estrito para indicar a concepção baseada apenas na
interpretação e aplicação da legislação positiva do Estado, sem
lacunas, segundo « o dogma da integridade da ordem jurı́dica
positiva » (6). Quanto à necessidade de recorrer a elementos socio-

(5 ) Cf. Sistema de Ciência Positiva, Vol. II, págs. 356 e seg.


(6 ) Cf. Sistema, cit., Vol. I, págs. 325 e 336.

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lógicos para preencher o vazio de legislação há convergôncia de


opinião entre os dois jurisconsultos.

4. Bem mais compreensiva da posição de Gény é a abordagem


feita por Carlos Maxilimiano em sua obra Hermenêutica e Aplicação
do Direito, cuja 1o edição é de 1924, e que, através de sucessivas
edições, ainda continua sendo a melhor contribuição brasileira no
que tange à interpretação do Direito.
De formação germânica, entende Carlos Maximiliano que a
influência da cultura jurı́dica alemã revela-se em cada página dos
escritos de Gény ou de Saleilles, o que me parece excessivo, não
sendo demais salientar, como o faço em Nova Fase do Direito
Moderno, que no concernente ao tema da nova exegese, Gény ocupa
uma posição pioneira — não obstante a influência recebida de
mestres germânicos — sendo central em seu pensamento a proble-
mática das fontes do direito (7).
Abstração feita, porém, dessa questão, o certo é que o livro
fundamental de Carlos Maximiliano reflete constante meditação das
principais teses hermenêuticas de Gény, como se pode perceber pela
seguinte enumeração:
a) a compreensão da regula iuris como um ente « de natureza
elástica e dutil », às vezes dissimulando, debaixo do invólucro fixo e
inalterado, « pensamentos diversos, infinitamente variegados e sem
consistência real », fazendo, nesse ponto, remissão a Science et
Technique, 1914, Vol. I, pág. 150-151;
b) a não aceitação da Freie Rechtifindung de Ehrlich, com seu
despreso pela hermenêutica, preferindo a orientação de Gény
quanto à impossibilidade de não se atender aos mandamentos legais,
mas indo além de seu aspecto formal a fim de « tirar da fórmula legal
tudo que na mesma se contem implı́cita e explicitamente » (Herme-
nêutica e Aplicação do Direito, 10o edição, Rio de Janeiro, 1988, págs.
61 e 111);
c) a compreensão conjugada dos vários processos hermenêu-
ticos, o que não significa que deva ser simultânea, visto como é a

(7) V. Miguel REALE, Nova Fase do Direito Moderno, Ed. Saraiva, São Paulo, 1990,
pág. 105.

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natureza de cada caso que indica qual é a forma de compreensão


mais adequada (Op. cit., pág. 127);
d) à necessidade de sempre se atentar para a conexidade
existente entre os dispositivos legais que versam sobre a mesma
espécie, bem como para « o complexo das idéias dominantes na
época », donde a relevância para a Jurisprudôncia do « elemento
histórico » (entendido em sentido sociológico ou cultural), assim
como do Direito Comparado (Op. cit., pág. 129, 133 e 103).
Cabe, todavia, observar que Carlos Maximiliano não aceita a
fidelidade de Gény aos métodos tradicionais da Jurisprudência dos
Conceitos, inclusive no tocante ao valor dado à « intenção do
legislador », para, somente à vista de sua insuficiência, poder o
intérprete recorrer à livre pesquisa do Direito. Nesse ponto, a
posição do jurista pátrio achega-se mais à compreensão histórico-
evolutiva de A. Saleilles quando este substitui a divisa de Gény,
inspirada em Jhering: « Pelo Código Civil, mas além do Código
Civil » — por esta outra: « Além do Código Civil, mas pelo Código
Civil » (8).
Parece ao jurista brasileiro, que foi um dos mais ilustres
Ministros de nosso Supremo Tribunal Federal, que há certo artifi-
cialismo na pretensão de Gény ao fazer « tabula rasa » da evolução
operada no processo hermenêutico a partir do segundo Jhering, para
voltar-se à submissão inicial do intérprete ao texto legal, ainda sob
o impacto do Code Napoleon. Mais acertada lhe parece a orientação
de Saleilles no sentido de uma hermenêutica histórico-evolutiva, mas
com o reconhecimento — e esta me parece a sua posição mais
original — de sua insuficiência, dando lugar ao apelo final a todas as
técnicas intrepretativas que compõem a libre recherche de Gény.
Por outras palavras, Carlos Maximiliano prefere, de inı́cio,
captar o sentido do complexo da legislação em seu sentido histórico-
evolutivo, admitindo que, em complemento, sejam preenchidas as
lacunas do texto « por meio da analogia e de outros recursos defensá-
veis em toda linha » (sic). Opta, pois, por uma conciliação entre os
pontos de vista de Gény e de Saleilles, o que me parece plausı́vel,
pois nunca me convenceu o intento do primeiro de preservar por
inteiro a validade dos processos consagrados pela Escola da Exe-

(8 ) Carlos MAXIMILIANO, op. cit., pág. 71.

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gese, objeto de crı́ticas inamovı́veis e salutares, como as desenvolvi-


das, entre muitos, por Windischeid e Wach, e que tiveram em
Ferrara o mais ilustre representante peninsular.

5. Não me parece necessário fazer referência a sucessivos


estudos de Teoria General do Direito, a maior parte de carater
didático, que expuseram, no Brasil, com objetividade os pontos
capitais do pensamento de Gény, merecendo lembrança a crı́tica, até
certo ponto irônica de Wilson de Sousa Batalha, ao dizer que Gény
teria reduzido o Direito Natural ao mı́nimo possı́vel, a fim de
torná-lo irredutı́vel...
Na realidade, o que o mestre francês fez não foi senão volver
às fontes originais do pensamento tomista, em cujo ambiente o ius
naturale cuida apenas dos primeiros princı́pios, deixando à lex
humana a especificação ou particularização dos mandamentos
universais em número bem reduzido. Com isso ele corrigia, não
apenas os exageros do jusnaturalismo racionalista pós-
renascentista, duplicata inútil do Direito Positivo, mas também a
persistência de subordinar à denominação genérica de Direito
Natural — como era ainda o caso, por exemplo, de Krause e de
seu discı́pulo Ahrens — um sistema de princı́pios universais de
Filosofia do Direito em conexão com princı́pios ou diretrizes de
Teoria Geral do Direito. Nesse sentido, a preocupação de Gény,
sempre cioso de preservar o campo do construit perante o campo
do donné — distinção esta ditada por sua preocupação de rigor
epistemológico — teve o efeito indireto de pôr termo à persi-
stente sinonimia, sobretudo nos textos de inspiração escolástica,
entre Filosofia do Direito e Direito Natural.
Voltando, porém, ao estudo da experiência jurı́dica brasileira,
parece-me que, muito embora não se possa attribuı́-la exclusiva-
mente à influência de Gany, a ele se deve, em grande parte, a
significativa revisão operada em nossa legislação positiva, quando,
em 1942, se procedeu à reforma da Lei de Introdução ao Código
Civil.
Afigura-se-me de inegável inspiração genyniana, ainda que
parcial, o disposto no Art. 4o que assim dispõe:
« Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a
analogia, os costumes e os princı́pios gerais de direito ».

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Em um paı́s, onde imperava desmedido apego ao texto legal,


que se entendia capaz de dar resposta a todos os fatos emergentes na
vida social, o reconhecimento explı́cito de lacunas na legislação
positiva, tinha uma importância decisiva, sobretudo quando se
voltava a reconhecer o costume como fonte geral do Direito. Bastará
dizer que o último artigo do Código Civil brasileiro, promulgado em
1916, declarava revogados os « usos e costumes concernentes à
matéria de Direito Civil », somente admitindo o Direito consuetu-
dinário em matiéra não disciplinada pelo Código. Desse modo,
praticamente só se admitia a fonte costumeira em matéria comercial.

6. Finalmente, seja-me lı́cito manifestar como, ao longo de


meus estudos filosófico-jurı́dicos, me situei perante o pensamento de
Gény, por mim interpretado em sentido, por assim dizer, cultura-
lista.
Foi no fim da década de 1930 que dei maior atenção às
contribuições do Mestre de Nancy, sobretudo cotejando-as com as
de seus dois grandes compatriotas, Leon Duguit e Maurice Hauriou.
A rigor, esse estudo deu-se num quadro mais amplo, atendendo ao
propósito de, não digo classificar, mas pelo menos correlacionar
melhor as teorias fundamentais que haviam surgido do último
quartel do século passado até o « primeiro após-guerra », isto é,
come resultado da crı́tica movida à Dogmática Conceitual e ao
positivismo jurı́dicos que lhe correspondia.
Pareceu-me necessário, nessa primeira tentativa de « ordenar os
estudos », adotar certo critério de referência, parecendo-me ade-
quado verificar o papel desempenhado pelos elementos empı́ricos
(fato) axiológicos (valor) e técnicos (norma) em cada uma das maiores
concepções filosófico-jurı́dicas em contraste, dando, desse modo,
uma aplicação mais ampla à « divisão tripartida », de prevalecente
cunho didático que prevalecia no ensino da Filosofia do Direito, na
Itália, desde o exemplo de Icı́lio Vanni, seguido por Giorgio Del
Vecchio e Adolfo Ravà, em suas conhecidas lições sobre a matéria.
Observava, por outro lado, que nessa divisão tripartida, até
então de uso apenas didático, havia algo mais a ser objeto de estudo,
pois ao fato correspondia o problema da eficácia; ao valor, o proble-
ma do fundamento, e, finalmente, à norma correspondia o tema de
validade. Eis aı́ a raiz de minhas primeiras meditações que, através

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de renovadas pesquisas, me iriam conduzir à teoria tridimensional do


Direito, que somente surge como tal com a idéia básica da dialeti-
cidade dos três apontados elementos, o que implicou, naturalmente,
em novo enfoque do probolema do valor e da norma, até então
concebidos como aspectos distintos de um objeto ideal, tal como
ainda prevalecia nas posições axiológico-idealistas de Ernst Cassirer,
Max Scheler e Nicolai Hartmann (9).
Perguntar-se-à por qual motivo estou relembrando a gênese de
minhas cogitações, mas — e aqui fica um dado auto-biográfico — é
que as colocações correlatas de Gény entre donné e construit e
science e technique, contribuiram a fortalecer em meu espı́rito a
necessidade de proceder-se a um estudo da realidade jurı́dica
dotado, ao mesmo tempo, de integralidade (repulsa a toda e
qualquer forma de reducionismo) e de distinções essenciais,
evitando-se, assim, a perda do fino lavor conceitual e hermenêutico
legado por exegetas e pandectistas.
Pois bem, foi em meu livro Fundamentos do Direito, que é de
1940, que, ao formar ao lado daqueles que, como Gustavo Radbruch
e Emil Lask, procuravam atingir — através de diversas formas de
coordenação e composição de elementos fatuais, axiológicos e
normativos — uma visão integral do Direito, superando o unilatera-
lismo normativo de Kelsen ou o sociologismo de Duguit, ou mesmo
a composição binada de Jellinek (fato-normativo) ou de Hauriou
(fato-idéia), me pareceu que François Gény, embora por outros
caminhos, visava ao mesmo objetivo.
É claro que no espı́rito do compatriota de Descartes pesou a
preocupação por idéias claras e distintas, levando-o a optar pelos
dois já apontados esquemas epistemológicos capazes de, por si
mesmos, se imporem à razão, mas não recebi tais critérios distin-
tivos como processos abstratos e estanques, mas antes como duas
posições do espı́rito em vias de correlação e de auto-distinção
recı́proca.

(9) Sobre essas e outras caracterı́sticas de meu pensamento, em confronto, por


exemplo, com de Gustav RADBRUCH e Wilhem SAUER, v. Miguel REALE, Teoria Tridimen-
sional do Direito, 4o ed., reestruturada, São Paulo, 1986. Cfr., outrossim, O Direito como
Experiência, São Paulo, 1968, com tradução italiana, prefaciado por Domenico COCCO-
PALMERIO, Dott. A. Giuffrè Editore, Milano, 1973.

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Quem analisa cuidadosamente a obra fundamental de Gény não


pode deixar de ser testemunha de seu constante esforço de atribuir
ao donné o que lhe cabe e ao construit o que lhe toca, sempre sem
o propósito de cavar um abismo entre ambos: no fundo, sempre me
pareceu que esses elementos subentendem uma co-implicação es-
sencial, visto como só se pode falar em « dado » para um « con-
struido », e em « construido » resultante de um « dado », e vista a
variegada concepção do « donné » em versões distintas, a natural, a
histórica, a racional e a ideal.
Objetou-se com certa afoiteza, invocando-se ensinamentos da
moderna Epistemologia, que não existe fato natural bruto, visto
como todo fato já pressupõe noções anteriores que lhe condicio-
nam e dimensionam a percepção, assim como se proclamou, com
os mestres da fenomenologia, que todo conhecimento já envolve
certa noção do perguntado. Mas o fato de Gény ter-se referido a
« dado histórico » è sinal que ele jamais teve em vista, no processo
da compreensão jurı́dica global, partir de dados primeiros ou
originariamente puros, anteriormente não postos ou propostos,
pois não podemos recusar a um espı́rito tão lúcido o desconheci-
mento de que o histórico já é da per si um construido. O que
Gény quer dizer é, no meu entender, bem outra coisa, ou seja,
que toda construção jurı́dica qua talis (cada momento, em suma,
do incessante processo de investigação e elaboração técnica) pres-
supõe sempre « donnés » como pressupostos da indagação e da
construção, muito embora esses « donnés », como os históricos, já
possam ser o resultado de uma construção técnica anterior. Nico-
lai Hartmann dirá, depois, até com certo exagero, que a obra
criada, o « construit », uma vez exteriorizada ou objetivizada (e
não somente objetivada) torna-se um corpum mortuum, um obstá-
culo contraposto a seu próprio criador.
Ora, Gény, que jamais pretendeu ser filósofo, teve ciôncia
intuitiva desse sucessivo alternar-se de donnés e construits que, no
seu todo, representa o processo interminável da cultura, pois o que
ele quer é que o que se tornou história seja respeitado como um dado
por quem (legislador ou jurista) esteja construindo novas normas: « o
que chamo dado histórico, afirma ele, são as práticas acumuladas ao
longo dos séculos, servindo de alicerce sólido às regras que nelas se

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contem » (10). Concepção conservadora, talvez, mas concepção


histórica da experiôncia jurı́dica.
Daı́ afirmar eu que não tomei as referidas distinções de Gény
como esquemas analı́ticos vazios e estáticos, mas sim como critérios
plásticos e entre si correlacionados no universo dinâmico da cultura.
A minha foi, e continua sendo, até certo punto, uma interpretação
culturalista do pensamento de Gény, fazendo « pendant », mas em
bem diverso sentido, à Antropologia cultural de Lévy-Strauss, onde
o cru e o cuit adquirem uma valência dialética que inexiste nas
páginas sempre revistas de Science et Téchnique.
Compreende-se, por tais motivos, a razão pela qual Gény sofreu
duas ordens de crı́ticas contraditórias: acusado, por um lado, de
pretender inferir artificialmente, de reduzido número de noções
triviais do senso comum (o « irredutı́vel Direito natural ») todo o
magestoso edifı́cio de suas elaborações técnicas; e acusado de dar
importância excessiva à Técnnica em detrimento da Ciôncia, a
começar pela ciência dos primeiros princı́pos ontólogicos e éticos
considerados na plenitude de seu conteudo e alcance.
Gény deu-se bem conta dessas crı́ticas, não apenas no Prefácio
ao IV Vol. de Science et Téchnique, mas sobretudo, bem mais tarde,
no artigo esclarecedor publicado, em 1931, nos Archives de Philo-
sophie du Droit et de Sociologie Juridique, já referido, verdadeiro
mise-au-point de seus propósitos e do que pensara ter efetivamente
elaborado ao longo de sua operosa existência, como saliento em
minha Filosofia do Direito (11).

7. Para que se não afirme que essa interpretação culturalista


do pensamento de Gény paira na generalidade, passo a dar breves
exemplos concretos.
Em primeiro lugar, posta em cotejo com a temática das fontes
do Direito, até então reinante, o jurista francês, longe de recusar-lhe
validade, procede, como è de seu feitio, a uma mudança de atitude
diante do problema: ao invés de situar-se dentro do sistema legal —

(10) V. GENY, La notion de droit en France, em Archives de Philosophie du droit et


de Sociologie Juridique, 1931, 1-2, pág. 30.
(11) V. Miguel REALE, Filosofia do Direito, 14o ed., 1990, São Paulo, pág. 431,
n. 15.

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364 MIGUEL REALE

atitude própria da Escola da Exegese — situo-se fora dele, para


indagar se era possı́vel ao cientista do Direito continuar a considerá-lo
logicamente pleno e auto-suficiente, ou, se, ao contrário, não lhe era
necessário verificar o valor complementar dos mandamentos jurı́dicos
emanados dos costumes, uma fonte legal esquecida, apesar das origi-
nárias exaltações da Escola Histórica, cujos adeptos haviam acabado
se conformando com estudos sobre « os precedentes históricos dos
atos legislativos »... Ao lado dos costumes, via, outrossim, o mundo
dos princı́pios, a um só tempo racionais e ideais, desafiando a livre
pesquisa das exigências normativas a partir das conquistas das ciên-
cias sociais e históricas. Essa constitui, sem sombra de dúvida, uma
atitude metodológica de cunho cultural.
Se, por outro lado, se propunha um problema hermenêutico,
jamais se contentou com o estudo isolado do texto legal ao qual a
hipótese se subsumia, mas, para completar-lhe o entendimento,
mandava que se levasse em conta também o determinado, em
primeiro lugar, pelas normas legais congêneres, para, em seguida, ter
presente o ordenamento jurı́dico em seu conjunto, levando às últimas
consequências o ensinamento de Portalis, no Código Civil, de que os
dispositivos legais se interpretam uns pelos outros. Sempre, pois,
uma compreensão integral e abrangente, na qual o preceito norma-
tivo não é visto como dado lógico « a se », mas como algo cujo
significado atual e real depende da conjuntura histórico-cultural em
que se situa.
Se passarmos, depois, à análise de um problema particular,
como, por exemplo, a perda da validade da lei pelo desuso, ao
invés de limitar-se a discussões abstratas sobre a matéria, Gény
prefere situá-la em função do conjunto da organização social,
propondo uma série de hipóteses, somente suscetı́veis de soluções
« in concreto ».
Essa é a nota dominante de sua pesquisa, sempre procurando
harmonizar as exigôncias empı́ricas com imperativos éticos, até o
ponto de pretender salvar o ponto de vista do « positivismo jurı́dico
real », isto é, baseado tão somente nos fatos: « ele poderia ser
facilmente retificado e completado de algum modo, declara Gény,
mediante uma intuição profunda, que, instalando-se, na medida do
possı́vel, no coração da realidade, para captar-se o sentido da
mudança (la mouvance) souber unir os processos racionais à obser-

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GÉNY NA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA 365

vação dos fatos e penetrar nos mistérios da natureza moral, a fim de


dela melhor extrair as normas » (12).
Quem colocava assim os problemas não podia ter uma conce-
pção do Direito Natural como simples idéia pura, mas como
« realidade moral, reconhecida como tal pela consciência » (13), ou,
dirı́amos hoje, após longa experiência axiológica, como irrenunciá-
vel exigência primordial revelada quando se focaliza a massa
histórica das realizações jurı́dicas segundo o valor da Justiça.

(12) Archives, cit., 1931, págs. 15 e seg.


(13) Archives, cit., pág. 19.

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