Você está na página 1de 5

mich.html http://luisvpinto.no.sapo.pt/mich.

html

Página do autor

Ernest Hemingway
Tradução do texto original com o título
Up in Michigan
in The snows of Kilimanjaro and Other Stories
Penguin Books, 1968
©Luís Varela Pinto

Lá em cima no Michigan

Jim Gilmore veio do Canadá para Hortons Bay. Comprou a


oficina de ferreiro ao velho Horton. Jim era baixo e
moreno, com grandes bigodes e mãos igualmente grandes. Era
um bom ferrador de cavalos e não tinha muito o aspecto de
ferreiro, mesmo quando trazia o avental de couro. Vivia por
cima da oficina e comia no D.J. Smith.
Liz Coates trabalhava no Smith. Mrs.Smith, que era uma
mulher muito forte e limpa, dizia que a Liz Coates era a
rapariga mais arrumada que jamais conhecera. Liz tinha umas
belas pernas e usava sempre aventais de algodão lavados e o
Jim reparou que ela tinha sempre o cabelo bem arranjado
puxado para trás. Gostava da cara dela por ser tão alegre,
mas nunca pensava nela.
Liz gostava muito do Jim. Gostava da maneira como ele
caminhava quando vinha da oficina, e muitas vezes ia até à
porta da cozinha para o observar a caminhar pela rua
abaixo. Gostava do bigode. Gostava da brancura dos dentes
quando ele sorria. Gostava muito de ele não parecer um
ferrador. Gostava do muito que D.J. Smith e Mrs.Smith
gostavam do Jim. Um dia descobriu que gostava do preto dos
pêlos dos braços e de como eles eram brancos na parte de
cima não queimada do sol, quando ele se lavava no lavatório
do quintal. Gostar assim fazia-a sentir-se esquisita.
Hortons Bay, a cidade, era apenas constituída por cinco
casas à beira da estrada principal entre Boyne City e
Charlevoix. Havia a loja que vendia de tudo e era também o
correio, com uma alta fachada falsa e talvez uma carroça
presa em frente, a casa do Smith, a do Stroud, a do
Dillworth, a do Horton e a do Van Hoosen. As casa ficavam
num pequeno arvoredo de ulmeiros e a estrada era muito
arenosa. No cimo da estrada, já afastada, ficava a igreja

1 of 5 08-04-2005 6:53
mich.html http://luisvpinto.no.sapo.pt/mich.html

Metodista, e no outro extremo ficava a escola municipal. A


oficina do ferreiro estava pintada de vermelho e ficava em
frente da escola.
Uma estrada íngreme descia da colina até à baía pelo meio
da floresta. Da porta das traseiras do Smith avistavam-se
os bosques, que desciam até ao lago, e a baía. Era uma
vista muito bela na primavera e no verão, o azul e o brilho
da baía e geralmente, para lá do promontório, no lago, as
ondas cobertas de espuma branca da brisa que soprava de
Charlevoix e do Lago Michigan. Da porta das traseiras do
Smith Liz via as barcas de minério lá longe, no lago,
dirigindo-se para Boyne City. Quando olhava para elas
parecia que não se mexiam, mas se ela entrava para limpar
mais alguns pratos e voltava outra vez à porta já tinham
desaparecido para lá do promontório.
Agora ela passava o tempo a pensar no Jim Gilmore. Ele
parecia não reparar muito nela. Falava com D.J. Smith sobre
a oficina, sobre o Partido Republicano e sobre James G.
Blaine. À noite lia The Toledo Blade e o jornal de Grand
Rapids à luz do candeeiro, na sala da frente, ou saía com
D.J. Smith para a pesca ao candeio na baía. No outono ele e
Smith e Charley Wyman meteram tenda, comida, machados,
espingardas e dois cães numa carrinha e partiram para a
caça ao veado nos pinhais para lá de Vanderbilt. A Liz e
Mrs.Smith cozinharam para eles durante quatro dias antes de
eles partirem. A Liz queria fazer qualquer coisa especial
para o Jim levar, mas acabou por não o fazer porque teve
receio de pedir ovos e farinha a Mrs.Smith e, se os
comprasse, que ela a apanhasse a cozinhar. Para Mrs.Smith
estava tudo bem, mas a Liz teve medo.
Durante todo o tempo em que o Jim esteve ausente na caça ao
veado Liz só pensava nele. Enquanto ele esteve fora, foi
terrível. Não dormia bem a pensar nele, mas descobriu que
também era bom pensar nele. Se se entregasse aos seus
impulsos ainda era melhor. Na véspera à noite do dia em que
deviam regressar não dormiu mesmo nada, ou melhor, ela
pensava que não estava a dormir, porque estava tudo
misturado entre um sonho de que não dormia e a realidade de
não dormir. Quando ela viu a carrinha a descer a estrada
sentiu-se como que fraca e enjoada por dentro. Ficou
ansiosa enquanto não viu o Jim, e parecia-lhe que tudo
ficaria bem quando ele chegasse. A carrinha parou lá fora,
debaixo do grande ulmeiro, e Mrs.Smith e Liz saíram. Todos
vinham de barba crescida, e traziam três veados na parte de
trás da carrinha, com as patas estendidas para fora da
caixa. Mrs.Smith beijou D.J. e ele abraçou-a. Jim disse
“Olá, Liz,” e sorriu. Liz não tinha ainda previsto o que é
que iria acontecer quando o Jim voltasse, mas tinha a
certeza de que iria acontecer alguma coisa. Nada

2 of 5 08-04-2005 6:53
mich.html http://luisvpinto.no.sapo.pt/mich.html

acontecera. Os homens apenas tinham voltado, era tudo. Jim


puxou os sacos de serapilheira que envolviam os veados e
Liz olhou-os. Um deles era um grande macho. Estava hirto e
foi difícil tirá-lo da carrinha.
“Foste tu que o mataste, Jim?” perguntou Liz.
“Fui. Não é uma beleza?” Jim pô-lo às costas para o levar
para o defumadouro.
Nessa noite Charley Wyman ficou no Smith para jantar. Já
era muito tarde para voltar para Charlevoix. Os homens
lavaram-se e foram para a sala da frente à espera do
jantar.
“Não sobrou qualquer coisa no jarro, Jimmy?” perguntou D.J.
Smith, e o Jim foi lá fora à carrinha, no celeiro, buscar o
jarro de whisky que eles tinham levado para a caça. Era um
jarro de quatro galões e havia um bocado a balançar no
fundo. Jim bebeu um bom gole no regresso à casa. Era
difícil erguer um jarro tão grande para dele beber. Algum
whisky escorreu-lhe pela camisa abaixo. Os dois homens
sorriram quando o Jim entrou com o jarro. D.J. Smith mandou
vir copos e Liz trouxe-os. D.J. serviu três grandes doses.
“Bem, à tua, D.J.,” disse Charley Wyman.
“Àquele maldito macho, Jimmy,” disse D.J.
“Aqui vai a todos os que falhámos, D.J.,” disse o Jim, e
emborcou o copo.
“Faz bem a um tipo.”
“Não há nada como isto nesta altura do ano para aquilo que
nos chateia.”
“E que tal outro copo, rapazes?”
“Aqui vai, D.J.”
“Pela boca abaixo, rapazes.”
“Ao ano que vem.”
Jim começou a sentir-se óptimo. Ele adorava o sabor e o
toque do whisky. Sentia-se bem por voltar para uma cama
confortável, para uma comida quente e para a oficina. Bebeu
mais um copo. Os homens foram jantar alegres, mas
portando-se respeitosamente. Liz sentou-se à mesa, depois
de servir a comida, e comeu com a família. Foi um bom
jantar. Os homens comeram com ar sério. Depois do jantar,
voltaram para a sala da frente e Liz e Mrs.Smith levantaram
a mesa e lavaram a louça. Mrs.Smith foi para cima, e pouco
depois Smith saiu e foi para cima também. Jim e Charley
ficaram ainda na sala. Liz estava sentada na cozinha, junto
do fogão, a fingir que lia um livro e a pensar no Jim.
Ainda não queria ir para a cama porque sabia que o Jim ia
sair e ela queria observá-lo quando ele saísse para poder
ver se ele dava algum sinal de querer ir para a cama com
ela.
Ela estava a pensar intensamente nele, e então o Jim saiu.
Os olhos brilhavam-lhe e tinha o cabelo um pouco

3 of 5 08-04-2005 6:53
mich.html http://luisvpinto.no.sapo.pt/mich.html

desgrenhado. Liz baixou os olhos para o livro. Jim


aproximou-se da cadeira, por detrás, e ficou ali, e ela
podia sentir-lhe a respiração e depois ele pôs-lhe os
braços à volta. Sentiu-lhe nas mãos os seios roliços e
firmes e os bicos erectos. Liz estava terrivelmente
amedrontada, nunca ninguém a tocara, mas pensou,
“Finalmente ele veio ter comigo. Veio realmente.”
Ela ficou hirta porque estava com medo e não sabia o que
fazer e o Jim apertou-a contra a cadeira e beijou-a. Foi
uma sensação tão aguda, dorida e dolorosa que pensou que
não aguentava. Sentia o Jim através das costas da cadeira e
não conseguia suportar aquilo, e então qualquer coisa
despertou dentro dela e a sensação tornou-se mais quente e
mais suave. O Jim segurou-a com força contra a cadeira e
agora ela já queria sentir aquilo e o Jim segredou-lhe,
“Vamos dar uma volta.”
Liz pegou no casaco que estava pendurado no cabide na
parede da cozinha e saíram os dois. O Jim pôs-lhe o braço à
volta da cintura e a cada passo paravam e abraçavam-se e o
Jim beijava-a. Não havia luar, e eles caminhavam muito
juntos na estrada arenosa, através das árvores, em direcção
ao ancoradouro e ao armazém, na baía. A água marulhava nos
pilares e o promontório do outro lado da baía estava
escuro. Estava frio, mas a Liz sentia-se toda quente por
estar com o Jim. Sentaram-se debaixo do telheiro do armazém
e o Jim puxou-a para junto de si. Ela estava com medo. Uma
das mãos do Jim penetrou-lhe no vestido e acariciou-lhe o
seio e a outra mão estava-lhe no regaço. Ela estava com
medo e não sabia como é que ele ia proceder mas aninhou-se
junto a ele. Então aquela mão que tanto lhe pesava no colo
deslocou-se para a perna e começou a subir por ela acima.
“Não, Jim,” disse a Liz. Jim fez deslizar a mão mais para
cima.
“Tu não deves, Jim. Não deves.” Nem o Jim nem a sua grande
mão lhe prestaram atenção.
As tábuas eram duras. Jim puxou-lhe o vestido para cima e
estava a tentar fazer-lhe qualquer coisa. Ela estava com
medo, mas queria-o. Ela tinha de o acolher, mas aquilo
amedrontava-a.
“Tu não deves fazer isso, Jim. Não deves.”
“Tem de ser. E vou fazê-lo. Tu sabes muito bem que temos de
o fazer.”
“Não, não temos, Jim. Nós não temos de o fazer. Oh, não
está certo. Oh, ele é tão grande e magoa tanto. Tu não
podes. Oh, Jim. Jim. Oh.”
As pranchas eram duras e ásperas e frias, e o Jim
pesava-lhe em cima e tinha-a magoado. Liz empurrou-o,
sentia-se tão desconfortável e tolhida. Jim estava a
dormir. Não se mexia. Ela conseguiu sair debaixo dele e

4 of 5 08-04-2005 6:53
mich.html http://luisvpinto.no.sapo.pt/mich.html

sentou-se e endireitou a saia e o casaco e tentou arranjar


o cabelo. Jim estava a dormir com a boca um pouco aberta.
Liz inclinou-se sobre ele e beijou-o na face. Ele
continuava a dormir. Ela levantou-lhe um pouco a cabeça e
abanou-a. Ele virou a cabeça e engoliu. Liz começou a
chorar. Caminhou até à beira da doca e olhou a água. Uma
bruma subia da baía. Ela estava com frio e sentia-se
desgraçada, e tudo se fora. Voltou para o sítio onde o Jim
estava deitado e abanou-o para ter a certeza. Estava a
chorar.
“Jim,” disse ela. “Jim. Por favor, Jim.”
Jim mexeu-se e enroscou-se um pouco mais. Liz despiu o
casaco, inclinou-se e cobriu-o com ele. Enrolou-o
cuidadosamente à volta dele. Depois atravessou a doca e
caminhou pela estrada arenosa acima para ir para a cama.
Uma bruma fria levantava-se da baía através dos bosques.

Topo

5 of 5 08-04-2005 6:53

Você também pode gostar